Culturas Ancentrais e Contemporâneas Na Escola

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Culturas ancestrais

e contemporâneas
na escola
conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
Mônica do Amaral
Rute Reis
Elaine Cristina Moraes Santos
Cristiane Dias
(Organizadoras)

Culturas ancestrais
e contemporâneas
na escola
Novas estratégias didáticas para a implementação
da Lei 10.639/2003
Copyright © 2018 Mônica do Amaral, Rute Reis, Elaine Cristina Moraes San-
tos e Cristiane Dias (orgs.)

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Edição: Haroldo Ceravolo Sereza


Editora assistente: Danielly de Jesus Teles
Editora de projetos digitais: Marilia Chaves
Projeto gráfico, diagramação e capa: Mari Ra Chacon Massler
Assistente acadêmica: Bruna Marques
Revisão: Alexandra Colontini
Imagens da capa: <pixabay.com>

Alameda Casa Editorial


Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista
CEP 01327-000 – São Paulo, SP
Tel. (11) 3012-2403
www.alamedaeditorial.com.br
Sumário

Prefácio 7
Jamile Borges da Silva

Apresentação: uma discussão prévia com vistas à 29


descolonização do currículo

A roda de capoeira e seus ecos ancestrais e contemporâneos: 31


reflexões sobre a importância da capoeira como cultura
ancestral, arte e esporte no currículo escolar a partir das
canções e da linguagem corporal
Valdenor S. dos Santos (Mestre Valdenor)

Serviço de preto, muito respeito: introdução às discussões 68


sobre as raízes do racismo, da discriminação no Brasil e
história africana por meio do rap
Kleber Galvão de Siqueira Junior

Hiphopnagô: letramentos rítmicos e sonoros 116


Maria Teresa Loduca
Cristiane Correia Dias

Conversas com versos: o rap na disciplina de História 138


como meio de estudo autobiográfico
Daniel Bidia Olmedo Tejera (Daniel Garnet)
Entre o teatro negro e a literatura: revelações e valorização 178
das culturas afro-brasileiras no currículo do ciclo autoral
Dirce Thomaz

O samba e a cultura afro-brasileira na escola 207


Jefferson Barbosa

Griot Digital: ressignificando a ancestralidade afro- 227


brasileira na educação
Elaine Cristina Moraes Santos

Grupo de estudos junto à coordenação pedagógica para 233


pensar a questão étnico-racial
Maria Patrícia Hetti

O grupo operativo como estratégia de reflexão: a 270


experiência de docência compartilhada
Ohara de Souza Coca

Considerações finais 275


Prefácio

Jamile Borges da Silva1

Fui provocada pelo grupo que organiza esse livro a prefaciá-


-lo. De pronto aceitei, pela trajetória comprometida e pela seriedade
intelectual de seus membros. Todavia, o que ainda não sabia era o
tamanho da responsabilidade de produzir uma leitura-síntese que não
seja o exercício da vaidade intelectual, mas que seja afetivamente uma
interpelação aos meus próprios conceitos lançando mão das diferen-
tes ferramentas com que se dispuseram a enveredar pelas sendas das
escolas púbicas da cidade de São Paulo.
Escrevo esse prefácio numa condição singular, distante do meu
topos geopolítico e da minha luminosa cidade, São Salvador da Bahia.
Foi com intenção de ampliar minhas reflexões sobre o cam-
po dos estudos descoloniais e seus desdobramentos no horizonte
político e formativo das Universidades Latino-americanas que bus-
quei o Centro de Investigaciones Multidisciplinarias en Educacion da
Universidad Nacional de Mar Del Plata (UNMDP), onde me encon-
tro – nesse exato momento-realizando parte do meu trabalho Pós-
Doutoral, que se iniciou em junho de 2017, no Centro de Estudos
Internacionais da Universidade de Lisboa, esperando poder contri-
buir com as experiências e pesquisas realizadas no triângulo Brasil/
Portugal/Argentina.
É desse lugar, dessa cidade balneária tão importante para a histó-
ria da Argentina em sua luta pelos caminhos da democracia, que busquei

1 Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal


da Bahia/UFBA. Antropóloga. Investigadora do Centro de Estudos Afro-
Orientais da UFBA.
8 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

construir outras paisagens intersticiais2, isto é, espaços para estabelecer


refúgios, criar novos laços e ressemantizar nossas práticas e memórias
escolares no contato com colegas investigadores do eixo Sul-Sul. Esse
grupo de investigação assume a paixão como categoria analítica e nos
inspira a reconhecer a necessidade de refletir sobre nossa atividade
docente e os modos como ajudamos ou encarceramos sonhos, proje-
tos e horizontes de ação emancipatórios de nossos estudantes.
Categorias como urdidumbre ética que conjuga intelecto y
afectos, é outra categoria nativa do grupo de investigações multidis-
ciplinares em educação da UNMDP – e que ponen em el centro del
escenario de percepcion, el amor, el deseo y las passiones em las aulas
a partir de las biografias de professores que han sido designado como
memorables por sus estudiantes (Porta, 2017)3
Outra fonte de inspiração para essa conversa, veio do filóso-
fo congolês Valentin Mudimbe que cunhou o conceito de biblioteca
colonial, isto é, uma série de conceitos que se constituíram como um
conjunto de saberes, transatlânticos e com a marca da colonialidade.
Levar adiante uma proposta contra-hegemônica e descolonial
implica em revisitar essa “biblioteca colonial” incorporando a constru-
ção daquilo que poderíamos chamar de uma ‘biblioteca descolonial’.
Mas o desafio é ainda maior. É preciso articular e tecer outras matrizes
a partir do Pensamento Social da América Latina, do Oriente, da Ásia,
da África, enfim, outra mirada que desmantele a epistemologia do
ponto zero da ciência moderna como adverte Castro-Gómez (2005)4.

2 Tomo de empréstimo essa noção do investigador argentino José Trainer


da Universidad Nacional de Rosario/AR, 2017
3 PORTA, Luis. Pedagogias Vitales: cartografias del pensamento y ges-
tos ético-políticos em perspectiva descolonial. 1ª. Ed., Mar Del Plata,
EUDEM, 2017.
4 CASTRO-GÓMEZ, S. La hybris del Punto Cero: ciência, raza e ilustra-
ción em la Nueva Granada (1750-1816), Bogotá: Editorial Pontificia
Universidad Javeriana, 2005.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 9

Nesse sentido, as pesquisas desenvolvidas aqui demandam len-


tes novas e outro vigor para o trato com temas sensíveis à história das
populações afro-brasileiras, a exemplo das memórias da escravidão,
da dor, das lutas e resistências da capoeira em sua inventividade para
sobreviver ao projeto de criminalização de sua arte/ciência, novas
estratégias didático-empíricas para refletir sobre processos de cura-
dorias e expografias do tráfico transatlântico e as formas singulares
de re-existência das populações negras como se pode ver no Museu
Afro-brasileiro de São Paulo.
Em 2008, o sociólogo polonês Z. Bauman5, conhecido por tratar
das tensões que envolvem a chamada ‘modernidade líquida’, escreve um
texto crucial para as reflexões descoloniais a que nos propomos nessa
conversação. Intitulado “Arquipélago de exceções”, o livro trata do esta-
do de suspensão jurídica e da profunda desigualdade que tem afetado
homens e mulheres ao redor do mundo. Adotando a metáfora do arqui-
pélago, o autor reflete sobre esse ‘lugar’ como um espaço – ou ilhas – em
que todos os que estão fora da normatividade – branca, hetero, cisnor-
mativa e ocidental – são colocados e exilados de seus direitos funda-
mentais, vivendo numa condição eterna de fronteira e marginalidade.
Vivem como párias, entregues à própria sorte por um estado moderno,
neoliberal e ainda essencialmente patriarcal e colonial.
Antes de Bauman, a pensadora indiana G. Spivak6 publicou
um artigo que, ao lado dos livros já citados, tornou-se outro cânone
do pensamento e da crítica pós-colonial: Pode o subalterno falar?
A obra de Spivak é uma profunda crítica à intelectualidade que
pretende falar em seu nome, alegando que “nenhum ato de resistência
pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato seja imbricado
no discurso hegemônico”

5 BAUMAN, Z. Archipélago de excepciones, Katz editores, 2008.


6 SPIVAK, G. Can the Subaltern Speak? Londres, Macmillan, 1998.
10 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

(Re)pensar, portanto, a descolonialidade no contexto brasi-


leiro implica (re)criar epistemologias atentas aos contextos e marcas
culturais locais através da formulação de abordagens interseccionais
que abarquem os diferentes marcadores sociais como gênero, sexua-
lidade, raça, classe. Significa ainda aprender a ler a gramática desses
novos tempos e a emergência de um novo léxico: hibridismos, su-
balternidade, deslocamentos forçados, migrações, pós-colonialidade,
geopolítica, entre outros.
Assim, o empreendimento interpretativo e metodológico ado-
tado pelo grupo de investigação que apresenta esse livro tem, já de
partida, o mérito de reconhecer nos registros biográficos – tomados
como exercício metodológico-epistemológico – como as vidas poten-
tes de jovens e docentes de escolas públicas e periféricas de SP me-
recem ser narradas como exercício descolonial para apontar outras
miradas, projetos e desejos.
É, portanto, um trabalho que se ancora nas vivências do samba,
do Hip-hop e do Rap em sua polifonia, sua prosa valente, inspirando
letramentos outros, fazendo ecoar as itinerâncias freirianas em nome
de aprendizagens significativas. Do mesmo modo, esse trabalho pres-
ta homenagem ao Teatro Negro de Abdias do Nascimento que abriu
as portas ao trabalho e à performance de jovens negros para a drama-
turgia, ao tempo em que escancarava o racismo estrutural do Brasil.
Os registros biográficos e memorialísticos são importantes
para nos auxiliar na leitura das distintas formas de descrever as tem-
poralidades presentes nos relatos de experiência das pessoas, sobre-
tudo aquelas que não se encaixam nas narrativas crononormativas
idealizadas pelo empreendimento colonial e pelos imperialismos, de
certa maneira, ainda vigentes.
Este livro reflete o amadurecimento crítico do grupo de pes-
quisa que propõe diversos modos de atravessamento da prática pe-
dagógica, estabelecendo diálogos interdisciplinares com as teorias
críticas e pós-colonial, amplificando as tensões e as inquietações de-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 11

correntes da instabilidade das políticas públicas no Brasil, sua conti-


nuidade e o declínio das utopias de esquerda, que nos últimos anos
foram fundamentais para tornar mais democráticos os mecanismos
de distribuição de renda e a inserção da parcela mais pobre da popu-
lação nas universidades públicas.
Promover o debate sobre a adoção das Políticas de Ação
Afirmativas no Brasil, com a implementação da Lei 10.639/2003,
mostra como é importante a criação de mais grupos de estudos e pes-
quisas sobre o tema da diáspora e das relações raciais neste que foi o
último país no mundo a abolir formalmente a escravidão.
Com textos que resultam de pesquisa e de experimen-
tos em escolas da rede pública do Estado de São Paulo por jovens
pesquisadores(as), assim como de projetos de investigação de
investigadores(as) mais experimentados no trato com a prática e o
manejo de diferentes corpus teóricos, esse livro apresenta uma rica di-
versidade de temas, abordagens e perspectivas.
Sabemos que os currículos de nossas escolas funcionam como
vetores ainda estratégicos de manutenção do discurso da coloniali-
dade do saber e poder – como apontava o sociólogo Peruano Aníbal
Quijano – e que essas matrizes curriculares necessitam ser alvo de
propostas de intervenção não apenas no campo da difusão de outras
epistemes/alteridades, mas também projetos onde a poiéses se instale
como substrato necessário à formação de indivíduos comprometidos,
ética, política e esteticamente com a transformação social.
Em nossas trajetórias temos tentado romper a senda da into-
lerância histórica no campo do currículo buscando produzir modos
de ser e fazer (como aposta Michel de Certeau) que incorpore outra
lógica na produção do conhecimento: narrativas mais compartilhadas
com aqueles que vivenciam as salas de aula e as experiências de convi-
vencialidade em lugar de “falas” autorizadas para os pares.
Esse livro que chega às suas mãos está pleno de fecundâncias,
de pedagogias que incitam Outridades e subjetividades animadas
12 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

por aquilo que eu chamo de Epistemologias Atentas7, isto é, longe de


buscar a obsessão fundacional das genealogias ocidentais com os pais
fundadores da ciência – pensamento falocêntrico -, me interessa por
em perspectiva aquilo a que Blaise Pascal chamou de sprit de finesse e
sprit de geometrie8 para se referir a diferentes racionalidades na pro-
dução do conhecimento.
Enquanto a geometria corresponde aos ditames da ciência po-
sitiva e da razão prática, o espírito de finesse, a delicadeza, diz respeito
ao campo da compreensão, da atenção, da escuta e da compaixão. São
epistemologias assentes na escuta sensível, no trato ético com os sa-
beres das populações subalternizadas, no entendimento da delicadeza
que compõe a sofisticação daqueles saberes produzidos nas fronteiras,
nas bordas de nossas academias e centros de investigação.
Epistemologias atentas, no sentido de Ad-tendere, ou seja, pôr-
-se à serviço de modo verdadeiramente interessado nas produções
desses jovens negros e negras das periferias; nos saberes das rodas
de outra cena em que a capoeira é espaço de conversação sem afas-
tar ou hierarquizar homens e mulheres; estar vigilante às armadilhas
do sistema-mundo-colonial-patriarcal-moderno; ser respeitoso com
os saberes intergeracionais e multirreferenciais; ser comedido na crí-
tica àqueles que habitam as diferenças de raça, classe e gênero; ser
afetuoso na (re)escrita das narrativas e biografias dos(as) nossos(as)
interlocutores(as).
Enfim, esta obra é um desafio sensível em tempos de obscuran-
tismo. É uma tessitura com muitas mãos, muitos passos e muitas ge-
ografias habitadas por seus pesquisadores e estudantes. É disruptivo

7 SILVA, Jamile B. da. Notas pedagógicas: por otras narrativas vitales y


gestos descoloniales. IV Jornadas de Investigadorxs, grupos y proyectos
de investigación em educación. Universidad Nacional de Mar del Plata/
UNMDP, 12 e 13 de abril de 2018.
8 PASCAL, B. Pensamentos. (1623-1662)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 13

e perturbador no melhor sentido desses termos. Desestabiliza nossas


crenças e organiza-se como um livro de denúncia: contra as ausências
e os imperativos totalizadores que apagaram os discursos das perife-
rias do mundo, apresentam um livro-vivência que aporta as experiên-
cias de docentes com as práticas vividas de seus interlocutores, pro-
duzindo a emergência de outras pedagogias. Pedagogias vitais9 como
propõem nossos colegas Yedade & Porta (2017) que se constroem em
outras paisagens semióticas, outros signos distintivos de saber (poe-
sia, rap, hip-hop, capoeira) e outros horizontes desejantes.
É também um livro que convoca ao combate. Provoca desde
nossos confortáveis lugares de ação docente a um ativismo descolo-
nial; a assumir as lutas junto com as populações subalternizadas sem
nos arrogar o direito de falar por elas.
Mais que um livro como corolário de pesquisas, é um desafio a
recriar outros dispositivos e postular outras ontologias como exercí-
cio de descolonialidade.

Mar Del Plata, Argentina


abril de 2018

9 YEDADE, Ma.M. & PORTA, Luis. Pedagogias Vitales: cartografias del


pensamento y gestos ético-políticos em perspectiva descolonial. 1ª. Ed.,
Mar Del Plata, EUDEM, 2017.
Apresentação: uma discussão prévia com
vistas à descolonização do currículo

Mônica G.T. do Amaral1


Rute Reis2
Elaine Cristina Moraes Santos3
Cristiane Dias4

O leitor encontrará nesta coletânea um conjunto de estratégias


didáticas renovadas, entremeadas por relatos de experiências de do-
cências compartilhadas entre pesquisadores da universidade, artistas
populares e professores da rede municipal de ensino da cidade de São
Paulo. Tratam-se de propostas amadurecidas ao longo de três anos de
pesquisa5 em duas escolas públicas, EMEF Saturnino Pereira, situada
na Cidade Tiradentes e EMEF Roberto Mange, no Rio Pequeno, cujo
objetivo era construir com os professores, estratégias de aula e a cons-
trução prática de atividades que contemplassem as artes ancestrais,
como a capoeira e o maculelê e contemporâneas, como o hip-hop e
o funk, para o ensino de história da África e culturas afro-brasileiras.

1 Profa Associada da Faculdade de Educação da USP e Pesquisadora res-


ponsável pelo Projeto de Políticas Públicas.
2 Diretora da EMEF Saturnino Pereira, ProfaDra da Universidade Brasil e
Pesquisadora Principal do Projeto de Políticas Públicas.
3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da FEUSP.
4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da FEUSP.
5 Projeto de Pesquisa de Políticas públicas: O ancestral e o contemporâneo
nas escolas: reconhecimento e afirmação de histórias e culturas afro-bra-
sileiras (processo: FAPESP: 2015/50120-8), em parceria com a Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo.
16 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Nossa proposta surgiu das dificuldades encontradas para a im-


plementação da Lei 10.639/03 nas escolas de ensino fundamental e mé-
dio. Pretende contribuir para a descolonização do currículo e provocar
tensões no interior da própria transmissão do saber técnico-científico
veiculado pelas disciplinas escolares, além de criar novas estratégias di-
dáticas para o ensino de história, literatura, geografia, inglês, português,
educação física, entre outras disciplinas, por meio da música, da poesia,
da dança e de lutas ancestrais. Ao mesmo tempo, a ideia era superar
hierarquias de saberes e conhecimentos, pela via do reconhecimento
das contribuições das culturas que foram renegadas ou distorcidas pelo
saber acadêmico, marcadamente monocultural e eurocêntrico.
A construção da docência compartilhada envolveu, inicial-
mente, toda uma troca de conhecimentos e saberes entre o(a) profes-
sor (a), com sua experiência em sala de aula e os pesquisadores(as) e
artistas que traziam os saberes populares, fazendo emergir represen-
tações, musicalidade e formas de ver e conceber o mundo, que foram
sistematicamente negadas pelo pensamento ocidental e, por conse-
quência, pelas instituições sociais e pela escola, em particular. Não se
pode esquecer que a Lei 10.639/03, em sua redação inicial, indicava
a importância de se estabelecer uma íntima relação entre os agentes
escolares e os movimentos sociais do campo e da cidade, como forma
de se promover um diálogo formativo que propiciasse o encontro da
escola com os saberes acumulados por diversas comunidades e etnias
afro-indígenas, fundamentados sobretudo na transmissão oral. Esta
como condição da preservação e do reconhecimento de inúmeras cul-
turas – ancestrais e contemporâneas - que constituem o rico matizado
do Brasil e das Américas.
Houve, a partir desses encontros, um longo percurso envol-
vendo o processo de tessitura das aulas, que pressupunha o planeja-
mento antecipado das aulas, a preparação e a seleção do material a ser
discutido com os alunos, e pensar nas formas de diálogo entre cada
área de conhecimento e os saberes populares.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 17

Um momento importante de nosso trabalho conjunto entre


a equipe de pesquisadores e professores das duas escolas - a EMEF
Saturnino Pereira e a EMEF Roberto Mange - foi a visita feita ao
Quilombo Ivaporunduva no final de 2016, que conferiu uma nova
dimensão aos estudos que fizemos sobre a história de resistência do
negro no Brasil desde os tempos coloniais até o tempo presente.
Nesse sentido, cada um dos professores, coordenadores e pes-
quisadores, incluindo entre estes, artistas e estudantes de graduação e
de pós-graduação, deixaram-se penetrar pela vida da comunidade qui-
lombola, com suas árduas lutas pela conquista e manutenção de seus
direitos, podendo extrair dessa experiência o que há de mais humano
desse nosso Brasil profundo. A ruptura de uma percepção romantiza-
da do quilombo, no entanto, foi experienciada por alguns com certa
decepção, e por outros, com clareza sobre os desafios que se impõem
perante o avanço das leis do mercado na região. Em todo caso, foi unâ-
nime a percepção de que há muito o que fazer, sobretudo no plano da
educação quilombola, levando consigo a importância de se conhecer as
consequências do sistema escravocrata implantado no país, não apenas
na cidade, mas na vida daqueles que nos fazem lembrar mais direta-
mente de quão árdua tem sido a luta pelos direitos à terra e à moradia e
de uma vida digna para os afrodescendentes de nosso país.
Outra importante iniciativa da pesquisa foi promover a visita
ao Museu Afro-Brasil, que tinha como objetivo propiciar aos (às) alu-
nos (as), do Saturnino e do Mange, um contato vivo com os diversos
temas estudados a respeito da história do negro no Brasil, da diáspora
afro-americana do Atlântico e de suas lutas de resistência política e
cultural. Sentiu-se, ainda, a necessidade de se debruçar sobre a reli-
gião afro-brasileira, especialmente sobre a importância dos Orixás,
uma vez que surgia, com certa frequência, uma resistência por parte
dos alunos e um silenciamento por parte dos professores em relação
às manifestações culturais de matriz africana. Estas eram identifica-
18 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

das, em sua imediatez, à magia, sendo, muitas vezes, demonizadas e,


de um modo distorcido e estereotipado, eram associadas à macumba.
Desde o início, durante nossas conversas com os (as) profes-
sores (as) - seja em reuniões de planejamento conjunto, seja em meio
às discussões teóricas nos grupos de estudos, ou mesmo nos grupos
operativos - ficou clara a importância de articularmos todas essas nos-
sas experiências de formação dentro e fora da sala de aula com o acú-
mulo de propostas e reflexões do conjunto dos(as) professores (as),
muitas delas registradas nos documentos elaborados em reuniões de
formação promovidas pela SME na gestão Haddad. Com a mudança
de gestão municipal, muitas dessas discussões, em particular sobre
as questões etnicorraciais ficaram rarefeitas. Foi possível, no entanto,
tomar em consideração as diretrizes curriculares da atual gestão mu-
nicipal, procurando dar ênfase às culturas afro-brasileiras.
Estas diversificadas formas de trabalho conjunto entre profes-
sores (as), artistas e pesquisadores(as) e alunos(as) conduziram-nos
a uma série de reflexões teóricas, que nos pareceu refletir adequada-
mente o saber renovado que estávamos construindo, constituindo-se
em uma forma de nos aproximarmos das culturas populares que há
muito vinham sendo apagadas e negadas de nossa memória coletiva.
Não se pode esquecer que o projeto de modernidade implanta-
do no país, como apontado por Roberto Schwarz6, se deu graças à es-
tranha combinação que se fez presente desde o início, entre o projeto
de modernização e a barbárie herdada do regime escravocrata. Uma
combinação esdrúxula, cujos resquícios se fazem presentes ainda hoje
na mentalidade escravocrata internalizada pela elite, criando-se uma
hierarquia camuflada - entre o pobre/rico, entre o negro/branco, en-
tre o branco/negro/mestiço - sob os auspícios da ideia de democracia

6 Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.


_____________.  Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas
Cidades, 1990.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 19

racial, gerando, na verdade, o que Kabengelê Munanga7 chamou de


“racismo à brasileira”.
Um projeto que exigiria, como sustenta Boaventura de S.
Santos (2017)8, renovar as bases ocidentais da teoria crítica e tensio-
ná-la a partir de uma “objetividade engajada”, de uma “subjetividade
rebelde” e de “ações rebeldes” que venham a expandir a experiência
do presente e contrair a do futuro para deste cuidar com atenção e
adequá-los – tanto o presente, quanto o futuro - às necessidades e
aos modos de viver e de pensar dos países situados no hemisfério sul,
considerados “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento”. Ora, para
tanto, propõe uma Epistemologia do Sul que rompa com os cinco sen-
tidos do monoculturalismo ocidental: do saber e do rigor científicos,
do tempo linear, da naturalização das diferenças, da escala dominante
e do produtivismo capitalista.
Procurou-se retomar essas ideias do autor e repensar par-
ticularmente os conceitos de “emancipação”, trabalhados por T.W,
Adorno (1995)9 e de “reconhecimento”, tal como concebido por Axel
Honneth (2003)10, ambos identificados com a teoria crítica, a par-
tir da leitura proposta por Achille Mbembe, autor do livro Crítica da
Razão Negra (2017)11, uma vez que este último pareceu-nos apro-
fundar o debate travado por Boaventura acerca da epistemologia do

7 Prefácio de Kabengelê Munanga. In: CARONE, Iray e BENTO, Maria


Aparecida Silva. Psicologia social do racismo - estudos sobre branquitu-
de e branqueamento no Brasil. 6ª edição, RJ: Vozes, 2017.
8 SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a teoria crítica e reinventar a
emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2017.
9 ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995.
10 HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos con-
flitos sociais. 1ª. Ed. São Paulo: Editora 34, 2003.
11 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Marta Lança.
Portugal, Lisboa: Antígona,2017.
20 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

sul, com base no debate afrocêntrico. Nesta obra, Mbembe defende


a descolonização do modo de pensar europeu com base no respeito
ao outro, acompanhada de uma ampla concepção de justiça e de res-
ponsabilidade social, para cuja efetivação haveria que se promover a
reparação do racismo infligido aos povos negros, cujo legado seria o
racismo institucional.
A ideia era analisar como o hip-hop e a capoeira - ou seja, as
culturas contemporâneas e ancestrais estudadas por nós - realizam, de
algum modo, este diálogo tensionado entre uma epistemologia do sul
e a crítica da razão negra. O hip-hop, ao propor um modo contunden-
te de afirmação de tudo que tem sido negado aos nossos afrodescen-
dentes, ao mesmo tempo, que, valendo-se da ironia, exercitam uma
sorte de pensamento crítico-destrutivo justamente em relação aos
pilares da razão moderna ocidental – liberdade, igualdade e frater-
nidade. Pilares que Boaventura considera essencial serem repensados
de acordo com uma epistemologia do sul e que Mbembe sugere que
sejam alargados em direção à construção do “devir-negro” do mundo.
Já as músicas de capoeira, seu ritual e debates travados pelos Mestres
de capoeira nos levam a repensar a história da diáspora e do negro no
Brasil, com ênfase nas raízes históricas do preconceito e exclusão dos
afrodescendentes do mundo do trabalho e da escolarização.

Emancipação estética do negro


Uma das questões que permeou nosso trabalho de interven-
ção artística nas escolas por meio das docências compartilhadas, algo
que foi reforçado pelas lembranças suscitadas entre os(as) alunos(as)
durante as atividades, era de como despertar a memória das culturas
afro-brasileiras que se mantinha adormecida na memória coletiva.
Ao longo de nosso trabalho, percebemos que esta memória foi sendo
despertada por meio de expressões estéticas contemporâneas (como
o graffiti, o breaking e o rap) e de práticas ancestrais como a capoeira,
a qual é mantida viva ainda hoje pelos (as) mestres.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 21

Desta forma, o debate sobre a questão da diáspora afro-america-


na tornou-se fundamental justamente para que pudéssemos nos apro-
fundar na construção das culturas e identidades híbridas em nosso país.
A diáspora africana do Atlântico, bem como aquela promovi-
da pelo período pós-colonialista resultaram em toda uma reconcei-
tuação no campo histórico-filosófico que pôs em questão a própria
ideia de Estado e, como afirma Gilroy (2012)12, produziu identidades
e culturas diaspóricas. O autor menciona, nesse sentido, as culturas
diaspóricas como resultado de um longo processo de hibridação.
Desde os anos idos de (1970), a juventude negra periférica tem
encontrado na estética engajada do hip-hop um modo de restaurar sua
identidade étnico-racial, ao mesmo tempo em que afirmava sua iden-
tidade na linha tênue que a diáspora do Atlântico lhe reservara para
se constituir como sujeito por meio de uma arte de rua feita às mar-
gens, mas que conforme o filósofo Christian Béthune (2003)13, pro-
voca uma ruptura com a tradição ocidental da arte contemplativa e
joga o sujeito no “coração da ação” por meio de “atos de linguagem”. E
que, a nosso ver, desloca-a da periferia para o centro como fizeram os
grafittis de New York que acompanhavam o ir e vir dos trens do me-
trô. O hip-hop, ao promover uma prática comunicativa real, concreta
e performática remete-nos a toda uma corporeidade perdida com o
advento da escrita e a invenção do alfabeto e a uma ancestralidade
oral, de matriz africana. O rapper, por sua vez, converte-se no cronis-
ta contemporâneo das sociedades periféricas. E quando o DJ realizar
mixagens musicais nas bases do rap - associadas nos EUA, aos ritmos
do jazz, blues e cantos gospel e no Brasil aos ritmos do samba, do re-
pente e da embolada, muitas vezes ritmadas pelos atabaques - promo-

12 GILROY, P. (2012). O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência.


São Paulo: Editora 34.
13 BÉTHUNE, C. (2003). Le rap- une esthétique hors de la loi. Paris:
Autrement.
22 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

ve, não apenas a telescopia histórica, que supõe tomar os fenômenos


do passado e vê-los com as lentes do presente, mas também provocam
verdadeiras rupturas de campo em nossa escuta inconsciente indivi-
dual e coletiva.
Daí o entendimento que propomos neste livro, com nossas
propostas didáticas, de não apenas construir as bases de uma epis-
temologia do sul, como sugere Boaventura de Souza Santos, mas de
propiciar uma formação que restitua o lugar de fala às populações
historicamente prejudicadas - que no caso do Brasil são os afrodes-
cendentes e indígenas – de modo a constituir uma consciência crítica
e impulsionar ações emancipatórias entre alunos, mas também nas
práticas cotidianas escolares.
Acreditamos que todo esse debate teórico, assim como as es-
tratégias didáticas apresentadas nos capítulos deste livro, possam for-
necer as chaves de leitura de um fenômeno estético e de afirmação ét-
nico-racial contemporâneo da juventude negra periférica, como, por
exemplo, as diversas artes reunidas no movimento hip-hop. Ao mes-
mo tempo, as artes ancestrais, como a capoeira e o maculelê, puderam
ser vivenciadas pelos(as) alunos(as) resgatando sentidos e significa-
dos, capazes, inclusive, de dialogar com as culturas contemporâneas.

Diretrizes curriculares para a implementação da lei


10639/03
A história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a
explicar-nos.
Alberto Costa e Silva

Você sabia que o Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854,


não admitia escravizados nas escolas públicas de nosso país? Você ti-
nha conhecimento que o Decreto nº 7.031-A, de 6 de setembro de
1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período no-
turno? Você já ouviu falar de todas as estratégias políticas que foram
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 23

realizadas no sentido de impedir o acesso da população negra às uni-


dades escolares?
Ainda que na Constituição de 1988, tenha sido declarada a de-
mocratização do ensino público com ênfase na cidadania, na dignidade
e no acesso igualitário à educação, a realidade do Brasil é marcada por
inúmeras manifestações de preconceito, racismo e discriminação em re-
lação aos afrodescendentes. O Brasil, durante os períodos da Colônia, do
Império e da República, manteve historicamente, dos pontos de vista, le-
gal e educacional, uma postura excludente diante de determinados povos
e foi apenas nos últimos anos que isso começou a mudar. Por isso, algu-
mas iniciativas representaram avanços significativos em termos de políti-
cas públicas, rompendo com o modelo educativo excludente que o Brasil
fomentou ao longo de sua história. O governo federal, a partir da eleição
do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, redefiniu o papel do Estado como
propulsor das transformações sociais, a partir do compromisso com
os direitos humanos básicos e da luta contra as desigualdades raciais.
Com a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade (SECAD) e a implementação da Lei 10.639/03 a questão ra-
cial ganhou destaque na agenda nacional rumo a uma sociedade mais
justa e igualitária, que visa a reparação dos perversos efeitos de prati-
camente cinco séculos de preconceito, discriminação e racismo. Com
a reestruturação do MEC e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana, o Estado “assume o compromisso
histórico de romper com os entraves que impedem o desenvolvimento
pleno da população negra brasileira” (Brasil, 2004, p.8). As políticas de
ações afirmativas que surgem com a criação da lei têm o papel de reco-
nhecer e valorizar a história, a cultura e a identidade da população afro-
descendente fazendo com que o Estado e a sociedade reparem os danos
psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais aos quais foram
submetidos os descendentes de africanos ao longo de uma história de
24 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

opressões e exclusões que se desenvolveu sob o regime escravista e sob


políticas explícitas de branqueamento e de exclusão.
As atuais diretrizes curriculares nacionais para a Educação
Básica orientam que a experiência escolar seja capaz de articular os
saberes dos (as) alunos (as) com os conhecimentos historicamente
acumulados, para que haja uma formação ética e estética, baseada em
valores e atitudes que possam reverberar no todo social. Quanto ao
ensino da História do Brasil, as novas diretrizes nacionais levam em
consideração as contribuições das diferentes culturas e etnias para a
formação do povo brasileiro (art. 26, §4º da LDB), assegurando o co-
nhecimento e o reconhecimento dos diferentes povos para a consti-
tuição da nação. A transversalidade também é um ponto em destaque
como uma maneira de trabalhar as áreas de conhecimento e os temas
sociais em uma perspectiva integrada. Para isso, os projetos interdis-
ciplinares devem ser formulados a partir de questões da comunidade
no intuito de fortalecer uma sociedade mais inclusiva, democrática,
próspera e sustentável.
Contudo, sabemos que, muitas vezes, as condições materiais
e concretas das escolas impedem que estas políticas se efetivem no
contexto da sala de aula. Afinal, tais orientações não dizem respei-
to apenas às mudanças no âmbito do discurso, mas na mentalidade,
no raciocínio, na postura, no comportamento e em toda uma cultura
escolar que já funciona há muitos anos do mesmo modo. Exige que
os professores conheçam uma história que a eles foi negada em sua
formação e exige a desconstrução do mito da democracia racial que
há séculos omite a estruturação social profundamente hierarquizada
e opressora à qual o negro foi submetido.
Assim, o nosso papel, enquanto grupo de pesquisa ligado à
Faculdade de Educação da USP, é contribuir, de algum modo, para
que os estabelecimentos de ensino tenham condições de se compro-
meter com as novas orientações, no sentido de promover uma edu-
cação compromissada com o entorno sociocultural da escola e com
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 25

a formação de cidadãos capazes de transformar as relações sociais e


étnico-raciais em um processo mais justo e democrático. Deste modo,
este material trará parte de uma experiência realizada na escola que
resultou em algumas estratégias didáticas inovadoras. Pretendemos
apresentar nas páginas que se sucedem, não uma proposta metodo-
lógica engessada, mas algumas possibilidades a serem construídas
diante da realidade escolar que cada experiência é capaz de promover.
Cap. 1. A roda de capoeira
e seus ecos ancestrais e
contemporâneos: reflexões
sobre a importância da
capoeira como cultura
ancestral, arte e esporte
no currículo escolar a
partir das canções e da
linguagem corporal
Apresentação
Na docência compartilhada da capoeira, conduzida pelos
Mestres Valdenor e Da Bahia1, procurou-se abordar a história desta
arte/luta ancestral como parte das lutas de resistência da população
negra de nosso país desde a época colonial até a República, sempre ex-
plorando o sentido dos cânticos e dos próprios movimentos de defesa
da capoeira. Noutros momentos, foi possível inclusive o ensino dos
instrumentos musicais da orquestra da capoeira – como do berimbau,
do atabaque e do pandeiro. Mestre Valdenor pode explorar, ainda, a
participação dos capoeiristas nas guerras e lutas abolicionistas, sem-
pre ressaltando as inúmeras dificuldades encontradas para o reconhe-
cimento desta prática ancestral, que embora hoje reconhecida como
patrimônio cultural2, enfrentou a discriminação e o preconceito por
vários séculos. Não se pode esquecer que sua prática foi considerada
crime e incluída enquanto tal no Código Penal Brasileiro (Decreto
nº 847, de 11 de Outubro de 1890), sendo revogada apenas em 1936,
durante o governo de Getúlio Vargas.
Procurou-se demonstrar ainda que a capoeira é uma expres-
são de resistência das mais antigas de nossos afrodescendentes contra
toda e qualquer forma de opressão e discriminação, cujas músicas e
letras são uma forma de não esquecer a barbárie cometida em territó-
rio brasileiro sob o regime escravocrata.
Se acompanharmos as práticas descritas pelo Mestre, percebe-
mos como as resistências dos(as) alunos(as) a entrar em contato com

1 Em parceria com a Profa Rosana Divino e Juliana Borges (Profas da


EMEF Saturnino Pereira) e Alessandro Marques da Cruz (Prof. da EMEF
Roberto Mange).
2 A capoeira foi elevada à categoria de Patrimônio Cultural Imaterial
do Povo Brasileiro pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Ministério da Cultura, em em 15/07/2008. Disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=3224. Acesso
em: Mar.2015.
30 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

o ritual da capoeira, ou mesmo com sua história e lutas por reconheci-


mento, foram rompidas pelo modo atencioso e a delicadeza com que
tratava as diferentes performances dos(as) alunos(as). Foi um exem-
plo de como se colocar em prática a Paideia afro-brasileira, que foi
considerada por Vilém Flusser (1998)3 responsável pela dominância
negra em nossa cultura, a despeito de todas as perseguições sofridas.
Para os Mestres Da Bahia e Valdenor, o debate sobre a luta pelo
reconhecimento de Axel Honneth toca diretamente em todos os pon-
tos da luta dos capoeiristas, seja do ponto de vista pessoal, jurídico ou
da estima social. Lutas fundamentais para a autoestima e autorespeito
do afrodescendente.
Falou-se muito sobre as lutas de resistência do escravizado,
para cujo êxito foi fundamental o desenvolvimento da luta da capoei-
ra, disfarçada em dança, como forma de aglutinar os povos escraviza-
dos e fortalecê-los no interior do movimento abolicionista.
Ao mesmo tempo que cantavam e jogavam capoeira com
os(as) jovens, iam esclarecendo que as músicas sempre se referiam
a algum episódio histórico importante da história de resistência do
negro, como a canção Marinheiro só, que fala da participação dos ca-
poeiristas na guerra do Paraguai, ou Meia Lua, que conta a história do
Mestre Bimba, que procurou formalizar alguns movimentos da capo-
eira como estratégia para obter o reconhecimento da capoeira e sua
descriminalização pelo governo Vargas, em 1937.
Enfim, as rodas de capoeira, com seus cânticos e responsórios,
constituíram-se em uma forma muito agradável de troca de informa-
ções sobre a história não contada de nossos afrodescendentes.

3 FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do Brasileiro – em busca de um


novo homem. Primeira edição em português organizada por Gustavo
Bernardo. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.
A Roda de Capoeira e seus ecos ancestrais e
contemporâneos: reflexões sobre a importância da
capoeira como cultura ancestral, arte e esporte no
currículo escolar a partir das canções e da linguagem
corporal

Valdenor S. dos Santos4


A Liberação política não elimina a presença do colonizador.
Ele continua na cultura imposta e projetada no colonizado.
O trabalho educativo pós-colonial se impões como tarefa
de descolonização das mentes e dos corações. (ROMÃO E
GADOTTI,2012, p.101).

A autorrealização do indivíduo somente é alcançada quando


há, na experiência de amor, na possibilidade de autoconfian-
ça, na experiência de direito, o auto- respeito e, na experiência
de solidariedade, a autoestima. (HONNETH, 2003).

4 Mestre de capoeira e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-


graduação da FEUSP.
32 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

As experiências de docência compartilhada com a capoeira


ocorreram em duas EMEFs: SATURNINO PEREIRA, sob a direção
da Profª Dra. Rute Rodrigues, localizada no bairro de Guaianases,
Zona Leste de São Paulo, onde o presente trabalho contou com a pre-
sença do Mestre de Capoeira Valdenor Silva dos Santos e a Professora
de Língua Portuguesa, Rosana Divino. b) ROBERTO MANGE, situ-
ada na Rodovia Raposo Tavares, KM 17.3, Jardim Ester, Zona Oeste.
Nesta EMEF, o Projeto passou por duas gestões na Direção, a da Profª
Guilhermina Dias Aleixo Sobral e a do Prof. João Felipe Rebelo Goto.
Em ambas as gestões, o trabalho foi realizado por meio da parceria
do Mestre de Capoeira Hipólito Roberto da Silva (Da Bahia) e o Prof.
Alessandro Marques da Cruz, responsável pela disciplina de Educação
Física. Destacamos o apoio e a colaboração das equipes docentes e
gestoras de ambas as instituições.

A Capoeira contribui para o desenvolvimento do educando


de forma integral, realizando a fusão de corpo e mente. Além
de ter um rico conteúdo histórico e desenvolver os aspectos
cognitivo e afetivo, é um excelente facilitador da aprendiza-
gem escolar. Integram em seus conteúdos ricas possibilidades,
sendo um potente instrumento de educação, integração so-
cial, podendo ser trabalhada perfeitamente no ambiente esco-
lar. (Cf. depoimento da Diretora da EMEF Roberto Mange).
Profª Guilhermina Sobral, diretora da EMEF Roberto Mange.

A parceria construída entre os pesquisadores da FEUSP,


Profª Dra. Mônica do Amaral e as professoras,professores e
estudantes da EMEF Roberto Mange, foi fundamental para
pensarmos coletivamente em estratégias e ações que concre-
tizem os objetivos e metas traçadas pelas leis nº 10.639/03 e
11.645/08, que tratam da obrigatoriedade do ensino da histó-
ria e cultura afro-brasileira e indígena, nas unidades de ensino
nos níveis Fundamental e Médio.
Prof. João Felipe Rebelo Goto, diretor da EMEF Prof. Roberto Mange
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 33

Projeto de Pesquisa de Políticas Públicas


Considerando a necessidade de atendimento à demanda das
escolas para o cumprimento da referida lei, a pesquisa propõe-se a
elaborar uma proposta em educação, orientada por uma perspectiva
multicultural voltada para a diversidade étnica e cultural presente nas
escolas brasileiras.
Pretendemos conduzir esta discussão junto aos professores,
que, por sua vez, serão estimulados a criar novas estratégias de en-
sino, em suas respectivas, inspirados pelo debate acerca de um en-
sino culturalmente relevante que se encontra pautado pelos funda-
mentos do multiculturalismo. (cf. Profª. Dra. Mônica G.T. do Amaral,
Pesquisadora responsável).
A capoeira foi uma das respostas mais fortes, marcantes e du-
radouras dada pelo negro escravizado, ao sistema cruel e desumano
imposto pelo colonizador europeu. Nasce como cultura de resistência,
como estratégia de luta baseada nos movimentos dos animais (disfar-
çada em dança, uma vez que, perante os olhos dos feitores, esta era a
única alternativa para lutar pela tão sonhada liberdade). A capoeira é,
pois, herdeira legitima da Diáspora Africana no Brasil.
Das senzalas aos quilombos, posteriormente passa a ocupar os
centros urbanos do Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia. Ganha a ade-
são de integrantes da nobreza, como Barão do Rio Branco, Floriano
Peixoto e Juca Reis, filho do Conde de Matosinhos, que figuram den-
tre os praticantes. A própria Princesa Isabel mantinha uma Guarda
Negra composta por exímios capoeiristas.
Além de sofrer perseguições, como acontecia com todas as ma-
nifestações culturais africanas e afro-brasileiras, a capoeira foi ainda ex-
plorada por políticos inescrupulosos, criminalizada e incluída no Código
Penal Criminal da República em 11/10/1890. Caso o capoeirista fosse
flagrado praticando sua arte ancestral, se brasileiro, era condenado a
uma pena de dois a seis meses de reclusão no Presídio de Fernando de
34 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Noronha; se estrangeiro, era deportado para seu país de origem. Vale


lembrar que as leis do Brasil Império de 1822 já puniam o escravizado
que praticava capoeira com 100 açoites e no Estado de São Paulo, encon-
tramos registros da proibição da capoeira, datados de 1833.

Manuel dos Reis Machado


Mestre Bimba
23/11/1889 a 05/02/1974
Vicente Ferreira
Mestre Pastinha
05/041889 a 13/11/1981

Em pleno Estado Novo, 1937, o baiano Manuel dos reis Machado,


Mestre Bimba, criou uma proposta regrada da luta. Nasce então a
Capoeira Regional Baiana. Recebido pelo Presidente Getúlio Vargas,
Mestre Bimba, conseguiu a liberação da Capoeira, descriminalizando-a,
e esta passou a ter sua prática permitida somente em recintos fechados.
Nesse período destacava-se no cenário da Capoeira da Bahia,
Vicente Ferreira Pastinha, que com seus seguidores não aderiram à
Capoeira Regional e permaneceram defendendo o estilo que passou a
ser conhecido como Capoeira Angola.
Embora descriminalizada, a capoeira só foi retirada do Código
Penal Brasileiro em 1949 e mesmo com uma crescente quantidade de
adeptos em todo o Brasil, a capoeira continuou sofrendo preconceito por
grande parte da sociedade brasileira, situação que só foi amenizada gra-
ças ao incansável trabalho e dedicação de inúmeros mestres anônimos.
Filha da necessidade, a capoeira sobreviveu aos percalços
dos períodos do Brasil Colônia, Império, República, Estado Novo,
Ditadura Militar até a chegada da democracia.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 35

Apesar de não figurar na maior parte dos livros didáticos, a ca-


poeira se fez presente em importantes revoltas: Dos Malês, Itororó, da
Vacina, da Chibata, Guerra do Paraguai e em muitos outros momentos
decisivos da nossa história. Influenciou a Literatura, as Artes Plásticas,
a Filatelia, a Música Popular Brasileira, o Cinema, o Frevo, o Futebol e
o Break, uma das linguagens do Hip-Hop. Muitos dos passos do Break
surgiram do convívio com a Capoeira de Mestre Jelon, em Nova York.
Só no Brasil, são mais de 6.000.000 adeptos, distribuídos nas di-
ferentes faixas etárias e camadas sociais. No exterior, a capoeira está
presente em mais de 170 países, o que permitiu àqueles (as) que a prati-
cam, aprender a Língua Portuguesa, além de outras manifestações cul-
turais, como o Samba de Roda, o Jongo, o Maculelê e a Puxada de Rede.
A capoeira, como Cultura, Esporte ou Educação, promove
a integração social e o exercício da cidadania, reforça a identidade
cultural e eleva a autoestima principalmente dos afrodescendentes,
contribuindo ainda para o maior entendimento da importância das
culturas africanas e afro-brasileiras na formação de nosso povo.
Podemos afirmar ainda que a capoeira é um dos elementos fa-
cilitadores das relações étnico raciais e que sua constituição e filosofia
encontram-se ancoradas nos valores civilizatórios afro-brasileiros,
como: a oralidade, a energia vital, a ancestralidade, a corporeidade,
a circularidade, a musicalidade, a religiosidade, a ludicidade e o co-
operativismo. Valores essenciais para o combate ao racismo, ao pre-
conceito e à discriminação. Por meio de seus cânticos e responsórios,
é possível refletir sobre a História do Brasil do ponto de vista afrocên-
trico, uma vez que quase sempre a totalidade dos heróis que se nos
apresentam são brancos e o negro pouco aparece como protagonista
de sua própria história.
Em 15 de Julho de 2008, a capoeira foi reconhecida como
Patrimônio Cultural Imaterial do Povo Brasileiro, pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Ministério da
Cultura – MINC e em 27 de Novembro de 2014, foi reconhecida pela
36 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura –


UNESCO, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Neste mesmo ano, o então senador Otto Alencar, ex-aluno de
Mestre Bimba, apresentou o PL 17/2014, reconhecendo a prática da
Capoeira na Educação.

As origens da musicalidade e dos mitos africanos sobre a


lenda do Berimbau
Uma menina saiu a passeio, ao atravessar um córrego abaixou-
-se e tomou água no côncavo das mãos. No momento em que saciava
a sede, um homem deu-lhe uma forte pancada na nuca. Ao morrer,
transformou-se, imediatamente num arco musical: seu corpo se con-
verteu em madeiro, seus membros na corda, sua cabeça na caixa de
ressonância e seu espírito, na música dolente e sentimental. (Conto exis-
tente no leste e no norte africano). Texto retirado da Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, nº 80 de 1956.

Imagens da animação Hungu, que narra a Lenda do Berimbau, Nicolas


Brault(Writer, Animator &Diretor) Mchele Belanger & Julie Roy (Producers)
Montreal, PQ: National Film Board of Canadá, 2008.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 37

Você sabia que os adornos utilizados pelos papas, foram inspi-


rados em modelos utilizados por sacerdotes africanos da antiguidade?

TARINGA, obra Máscara BAOULÉ -


de Picasso, fase do Costa do Marfim
Cubismo, inspirado
nas Artes Africanas.
38 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

A mulher africana, grande matriarca, mesmo vivendo em


condições restritas e rigorosas, foi a principal difusora do berimbau
africano na plateia continental e internacional, nos últimos cem anos.
Através do som melódico e hipnotizante do instrumento de uma cor-
da só, orgulhosamente cantam cantigas de centenas de anos atrás,
transmitidas pelos seus antepassados. Canções que contam histórias
das glórias dos seus povos, sobre a felicidade, a tristeza, o amor, o
ódio, a paixão, a traição, as desventuras de casamentos e cantigas in-
fantis. Não somente a mulher é tradicionalmente considerada a base
da família, mas também, compõe, canta e constrói os próprios instru-
mentos que toca.
A título de exemplo, menciono duas personalidades da mú-
sica tradicional Bantu-Nguni herdeiras da tradição de tocadoras de
arcos musicais, como a Princesa Zulu Constance Magogo e a Dona
Madosini Mpahleni, que conta com noventa anos de idade5.
Com este texto, Kandim chama a atenção para o respeito e o
reconhecimento devido a estas mulheres, além de convidar-nos a re-
fletir sobre a importância do Berimbau e sua ligação com as culturas
africanas e afro-brasileira.

5 Texto de Aristóteles Kandimba. Texto adaptado por Valdenor S. dos


Santos. Fonte: kandimbafilms.blogspot.com.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 39

Apresento a seguir cada um dos instrumentos da capoeira e o


método para tocar os instrumentos

O berimbau
40 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Método de Berimbau

Mestre Valdenor
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 41
42 Mônica do Amaral • Rute Reis
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Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

A capoeira na escola’
Na docência compartilhada entre a capoeira e as discipli-
nas de português e educação física, foram atendidos os Direitos de
Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e Autoral, conforme as di-
retrizes da Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo
no ano de 2016. Observe-se que as ações de Docência Compartilhada
nas disciplinas Língua Portuguesa e Educação Física se deram em
observância das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana, que tem como princípios norteadores: 1)
Consciência política e histórica da diversidade, 2) Fortalecimento de
identidades e de direitos e 3) Ações educativas de combate ao racis-
mo e às discriminações. Destacamos a seguir trechos dos documentos
acima relacionados, que associados a outros relativos às interseções
da História da Diáspora do Atlântico no Brasil, à vivência dos Mestres
de Capoeira e aos conhecimentos dos profissionais de Educação, fo-
ram essenciais, como ponto de partida para inúmeras reflexões, ten-
do como base a interdisciplinaridade e o componente curricular da
Língua Portuguesa, Cultura e Oralidade, contribuindo assim para que
os estudantes pudessem mergulhar numa nova leitura de mundo.

A economia portuguesa colonial é baseada na invasão de ter-


ras para exploração econômica, com o uso do trabalho for-
çado de seres humanos desterritorializados a partir de suas
aldeias, a partir do continente africano, a partir de suas co-
munidades. A aproximação dos autóctones com os alóctones
(europeus e africanos) criou a necessidade de se estabelecer
possibilidades de comunicação que atendessem aso interesses
do colonizador. (SME – Direitos de Aprendizagem dos Ciclos
Interdisciplinar e Autoral LINGUA PORTUGUESA, P.9).
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 49

A História da Capoeira está intimamente ligada à Diáspora


Africana e à trajetória social do negro, nos períodos do Brasil Colônia,
Império, República e Estado Novo. Nas lutas de resistência contra o
sistema escravagista, deparamo-nos com o protagonismo do negro
rebelando-se conta as leis e pressões sociais que buscavam desvalo-
rizá-lo enquanto ser social e aniquilar sua cultura. Podemos perce-
ber que estas reflexões contemplam os Direitos de Aprendizagem da
Língua Portuguesa. Sobre esta relação entre opressores e oprimidos.
Fanon observa:

Inferiorizar os valores simbólicos do conquistado sempre foi


uma estratégia largamente empregada por conquistadores,
em quaisquer circunstâncias, para negar ou matar identidade;
para silenciar; enfim, para impor novas maneiras de sentir,
pensar e ver o mundo (Fanon, 2008, p.34).

Podemos observar a partir dos conceitos de NEIRA, NUNES


E BETTI (2009) o quanto a disciplina de Educação Física passou por
transformações no decorrer da história. Durante a ditadura militar,
o currículo de educação física não apresenta abertura para as mani-
festações da cultura popular, assim como o ato de brincar era pouco
valorizado. Como se pode verificar:

Ao longo da década de 1970, em tempos de ditadura civil


militar, os discursos sobre os valores disseminados por meio
do esporte foram traduzidos simbolicamente pelos ideais de
perseverança, de luta, de vitória, de patriotismo e de desen-
volvimento nacional. O sujeito almejado por esta perspectiva
é aquele dinâmico e versátil, respeitador de regras e princípios
morais universais, dono de uma enorme capacidade física e
psíquica para enfrentar desafios movidos pelo melhor espírito
competitivo. (NEIRA e NUNES, 2009); (BETTI,2009).
50 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

A Educação Física tem como objetivo desenvolver conheci-


mentos a respeito das manifestações da cultura corporal, das formas
de apresentação do mundo expressas através do corpo, como os jogos,
os esportes, as danças, a ginástica, as lutas e outras práticas corporais
(cf SOARES, 2009.p.9).
Hoje, graças às transformações do currículo e às contribuições
de novos pensadores críticos, temos a educação física sendo trabalha-
da tanto na dimensão corporal quanto crítica.
A proposta de docência compartilhada entre o pesquisador
da área de capoeira (Mestre Da Bahia) e o Prof. de Educação Física
Alessandro deram ênfase à história da formação do povo brasileiro,
aliando a Capoeira e a Educação Física à construção de uma propos-
ta que possibilitou reflexões entre os jovens acerca da Diáspora do
Atlântico, assim como sobre as interseções da História do Brasil e os
heróis negros das inúmeras lutas de resistências.
Seria importante registrar o fato de que a docência realizada pelos
dois profissionais na EMEF ROBERTO MANGE, observou os Direitos
de Aprendizagem da Educação Física, que enumeramos a seguir:
Direito a desenvolver sua gestualidade por meio de manifesta-
ções da cultura corporal tais como: brincadeiras, danças, (capoeira),
lutas, esportes, ginástica entre outras; b) Direito de ter a prática da
cultura corporal de seu grupo social reconhecida como uma mani-
festação cultural, compreendida a partir de processos macro e mi-
crossociais, que marcam tais práticas como subjugadas; c) Direito a se
expressar por meio das múltiplas manifestações da cultura corporal,
sem que o sujeito seja discriminado por ser indígena, negro, branco
e de outros grupos étnicos; ou pertencer a qualquer condição social;
ou mesmo por sua aparência e/ou estereótipo corporal; ou ainda in-
dependentemente do gênero, de suas sexualidades e/ou por não se
enquadrar no perfil heteronormativo; ou simplesmente por não apre-
sentar um desempenho idealizado socialmente, devendo ser reconhe-
cido nos seus diferentes modos de fazer.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 51

Caderno de Imagens
52 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 53
54 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Prof“ Rosana Divino

Coordenadora Prof“ Juliana Medeiros


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 55

Atividade de capoeira com alunos (as) EMEF Saturnino Pereira


56 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 57
58 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 59
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Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 61
62 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 63

Bibliografia
AREIAS.A. O que é Capoeira. Coleção Primeiros Passos.
Brasiliense, São Paulo;1983.
ALMEIDA, I.R.C.A. A Saga de Mestre Bimba. Salvador: P&A,
1994.
AMARAL.M.G.T. do Amaral e Souza, M.C.C.C. de. Educação
Publicas nas Metrópoles Brasileiras. Paco Editorial: São Paulo: EDUSP,
2011.
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. SMPIR/MEC/2004.
CUNHA, P.F.A. A Capoeira e os Valentões na História de São
Paulo (1830-1930), São Paulo:Alameda,2013.
FREIRE, Paulo, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral
dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora34,
2003.
MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo:
Ática, 1998.
MUNANGA, K. Superando o racismo na escola.2ª ed. SECAD.
Brasília:2005.
NEIRA, M.G. e NUNES, M.L.F. Educação Física, currículo e
cultura. São Paulo: Phorte, 2009.
São Paulo(SP). Secretaria Municipal de Educação, Portaria nº
5930/13. Disponível em:
http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/
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059302013SME Acesso em 14/02/2018.
São Paulo (SP) Secretaria Municipal de Educação. ANEXO
I Programa Mais Educação São Paulo Notas Técnicas sobre o
64 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Documento de Referência do Programa de Reorganização Curricular


e Administrativa, Ampliação e Fortalecimento da Rede Municipal de
Ensino de São Paulo. São Paulo, SME, 2013, Disponível em:
http://www.sinesp.org.br/images/16_-_NOTAS_TECNICAS_
MAIS_EDUCACAO_SAO_PAULO.pdf.
São Paulo (SP). Secretaria Municipal de Educação.
Coordenadoria Pedagógica. Divisão de Ensino Fundamental e Médio.
Direitos de aprendizagem nos ciclos interdisciplinar e autoral. – São
Paulo : SME / COPED, 2016. – (Coleção Componentes Curriculares
em Diálogos Interdisciplinares a Caminho da Autoria), São Paulo (SP).
Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica.
Currículo da Cidade: Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. São
Paulo: SME / COPED, 2017.
SILVA, G.O.HEINE,V. Capoeira: Um Instrumento Psicomotor
para a Cidadania.São Paulo: Phorte, 2009.
Quero registrar meu agradecimento a todas e todos
que integram a equipe do nosso Projeto O ANCESTRAL E O
CONTEMPORÂNEO:AFIRMAÇÃO DE HISTÓRIAS E CULTURAS
AFRO-BRASILEIRAS, pela oportunidade que me foi dada para di-
vulgar a Capoeira junto a tantas outras linguagens que são de extrema
importância para o enriquecimento do Currículo Escolar.

Agradeço à Profª Dra. Mônica do Amaral e, ao fazê-lo, estendo


os agradecimentos a todo o nosso Grupo de Pesquisa, à Profª Dra.
Rute Reis e Corpo Docente da EMEF SATURNINO PEREIRA, e à
direção e ao Corpo Docente da EMEF Prof. Roberto Mange.

Quero ainda parabenizar em especial a Classe do 9º ano A, por


haver me proporcionado tantos momentos de alegria, aprendizado
e emoção durante nossas oficinas, espero que nossa vivência tenha
contribuído para o aumento das reflexões acerca da importância da
população negra e das suas contribuições para a formação do nosso
país, AXÉ! Mestre Valdenor
Cap. 2. Serviço de
preto, muito respeito:
introdução às discussões
sobre as raízes do
racismo, da discriminação
no Brasil e história
africana por meio do rap
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 67

Apresentação
A docência compartilhada conduzida pelo mestrando em
Educação, Kleber Siqueira Galvão (formado em História), contou
com a colaboração de Daniel Garnett (rapper e educador) em parce-
ria com as professoras Michele Bernardes (da sala de leitura) e Rosana
Divino, de língua portuguesa. Procurou-se combinar o ensino da his-
tória com discussões sobre o rap nacional e o rap local. Foi apresen-
tado aos alunos o rap Serviço de Preto, de autoria de Daniel Garnett,
para pensar a relação entre o preconceito racial e a história do negro
desde a diáspora do Atlântico até o escravismo no Brasil. Ao mesmo
tempo, a pesquisa feita em sala de aula sobre as comunidades qui-
lombolas, abordando desde suas origens nos tempos coloniais até o
momento presente, suas formas de organização e de resistência, for-
neceu novos elementos aos alunos para que estes se sensibilizassem e
mobilizassem a escola para o combate ao racismo e ao genocídio que
está atingindo, sobretudo, os jovens negros em nosso país.
Iniciou-se pela história da África antiga e clássica, para depois
abordar a diáspora afroamericana, em especial a brasileira, o tráfico
mercantilista como parte do avanço do capitalismo europeu, a des-
territorialização forçada dos africanos e o racismo no Brasil, que ser-
viu como justificativa do trabalho forçado e posterior abandono dos
afrodescendentes por parte do Estado brasileiro. Foi também muito
importante apresentar a história de resistência dos afrodescendentes,
desde o século XIX até as lutas da Frente Negra, do teatro negro e do
movimento negro, conhecimento necessário para se entender a polí-
tica de cotas e outras políticas afirmativas.
Ficou evidenciada, dado o sucesso desta parceria, a importân-
cia de um trabalho interdisciplinar em classe, envolvendo pesquisa-
dores, professores e artistas populares como forma de romper com a
especialização artificial das ciências, marcadas pelo monoculturalis-
mo eurocêntrico, e assim promover o engajamento dos alunos com
um saber culturalmente relevante.
68 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Serviço de preto, muito respeito: introdução à


discussões sobre as raízes do racismo, da discriminação
no Brasil e História africana por meio do rap

Kleber Galvão de Siqueira Jr1

Ao longo de três anos, procuramos desenvolver, por meio de


docências compartilhadas entre professoras(es) da rede municipal de
ensino de São Paulo, arte-educadores e pesquisadores2, uma proposta
de ensino de História da África, das populações afro-brasileiras e in-
dígenas, através da cultura hip-hop3.
Para tanto, além da parceria firmada com a EMEF Saturnino
Pereira, situada em Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo-
SP, contamos com o apoio da Fapesp e do grupo de pesquisa
Multiculturalismo Educação(CNPq) da Faculdade de Educação da
USP, coordenado pela Profª Drª Mônica do Amaral.
As aulas foram pensadas e desenvolvidas com as turmas finais
do ensino fundamental público, 8ºs e 9ºs anos, em conjunto com as
professoras Michelle Bernardes e Juliana Borges e com o rapper e ar-
te-educador Daniel Garnet.
Procuramos apresentar aos alunos discussões sobre questões
contemporâneas relacionadas ao cotidiano dos jovens estudantes e de
sua comunidade, trabalhando de maneira interdisciplinar, em aulas de

1 Pesquisador e Mestrando da FEUSP, sob orientação da Profa.Dra Mônica


do Amaral.
2 Contou com a participação de Daniel Garnet (rapper e bolsista da
FAPESP),em parceria com as profas Michele Bernardes e Juliana Borges
(EMEF Saturnino Pereira).
3 Tais pesquisas, conduzidas na EMEF Saturnino Pereira entre 2015 e
2017, resultaram no projeto de Mestrado intitulado A pedagogia hip-hop
e o ensino culturalmente relevante em história: novas estratégias didáticas
para o ensino fundamental em escolas públicas de São Paulo, que está em
fase final de elaboração e será defendido ainda ao longo de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 69

leitura, informática e história. Uma das estratégias didáticas que mais


despertou o interesse dos alunos envolveu a apresentação de letras e
músicas de raps com o objetivo de relacionar cada momento histórico
abordado com o cotidiano dos jovens afrodescendentes na periferia.
Ao mesmo tempo, abordamos também a história de culturas e
povos cuja contribuição para a formação da sociedade brasileira foi,
por muito tempo, eclipsada. O principal objetivo de nossa atuação
em sala foi amparar as diretrizes apontadas pela Lei 10.639/2003, mas
também avançamos em direção às orientações da Lei 11.645/2008.
Em um primeiro momento, estudamos a Antiguidade africana,
depois, a África dita clássica. E finalmente, já na época das grandes
navegações mercantilistas, abordamos os povos que foram retirados à
força de suas terras para construir, sob regime de trabalho forçado, o
Brasil e as Américas,
Em um segundo momento, abordamos elementos da histó-
ria dos afro-brasileiros e suas estratégias de sobrevivência no Novo
Mundo, através de estudos sobre as revoltas, os motins e, especial-
mente, a constituição e a remanescência das comunidades quilom-
bolas. Foram ressaltados diferentes fatos históricos e personagens,
como: Chico Rei e a compra de alforrias; Luíza Mahin e a Revolta dos
Malês; Luiz Gama e a luta abolicionista, bem como a luta de Zumbi
e Dandara dos Palmares, apresentados como símbolos de resistência
contra o regime escravista, quanto como modelo de construção de
uma sociedade igualitária. Por fim, apresentamos aos alunos a atual
configuração das comunidades quilombolas no Brasil, especialmente
após sua inclusão na Constituição de 1988 como “remanescentes”, re-
lacionando passado e presente, ancestralidade e contemporaneidade
dos afro-brasileiros em sala de aula.
Ao longo de ambos os eixos temáticos - história da África e his-
tória afro-brasileira -, intercalamos discussões relevantes para o con-
texto dos alunos, como discriminação social, preconceito e racismo,
70 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

apontando para suas origens no regime escravista em vigor ao longo


dos períodos Colonial e Imperial do Brasil.
De acordo com o antropólogo e pesquisador Kabengele
Munanga (2004), a formação da sociedade brasileira teria se pautado
em pensamentos e práticas racistas e eugenistas, desenvolvidas por
pseudo-cientistas nacionais e estrangeiros, sobretudo no início do pe-
ríodo republicano.
O Estado e a sociedade, baseando-se no que Munanga chama
de ideologia do embranquecimento, buscavam valorizar apenas as ori-
gens, as tradições e as culturas dos povos europeus, em detrimento da
história das populações não-brancas. Com isso, fomentavam práticas
de exclusão racial e social no Brasil, alimentando as desigualdades
econômicas, além de invisibilizar as contribuições, as lutas e os sabe-
res dos africanos, dos afro-brasileiros e dos indígenas.
Seria por essa razão que o ensino de história e cultura africana
e afro-brasileira e indígena teria sido eclipsado em nossas diretrizes
educacionais. O escravismo de outrora e os preconceitos e discrimi-
nações atuais seriam a razão também dos alarmantes dados demo-
gráficos brasileiros, questão especialmente evidenciada pelos índices
de violência e grau de inserção de brancos e negros no mercado de
trabalho e/ou nas altas esferas sociais. Não é à toa que o Brasil é um
dos países mais desiguais do mundo.
Contudo, é tarefa da educação e de um trabalho de conscien-
tização político-social lançar as bases para reverter essa vergonhosa
(e histórica) situação. E tal processo demandará muito esforço e (re)
conhecimento para se combater pré-conceitos.
As referidas legislações (10.639/2003 e 11.645/2008) foram
elaboradas após as lutas e pressões do movimento negro organiza-
do no Brasil, contando com apoio internacional, especialmente da
Conferência de Durban, ocorrida em 2001 na África do Sul. Após esse
evento internacional, o Brasil, deixou para trás o mito da democracia
racial e, reconhecendo-se como um país racista, comprometeu-se a
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 71

promover políticas públicas de ação afirmativa que revertessem ou


minimizassem os danos causados pela desigualdade e discriminação
social e racial no país.
A educação e a formação do povo brasileiro são elementos fun-
damentais na luta contra o racismo e suas manifestações. Estudar as
riquezas, os saberes, os valores, as práticas, as tradições, as culturas, as
formas de governo, a religiosidade e outras características das popula-
ções africanas é necessário para combater preconceitos, mas também
para valorizar os povos historicamente prejudicados (HONNETH,
2003) e suas contribuições para a humanidade.
De maneira análoga, é por meio do conhecimento sobre a
história, as obras e realizações dos personagens afro-brasileiros, que
podemos reconhecer a importância para a constituição da sociedade
brasileira de tais populações.
Além da valorização e do reconhecimento, o conhecimento so-
bre a ancestralidade africana e sua participação na formação do povo
brasileiro é elemento fundamental para a construção de identidades
negras de maneira positiva, fomentando a identificação dos sujeitos
com elementos e características afro que, outrora, pautando-se na
chamada ideologia do embranquecimento, procurou-se invisibilizar.
Foi a partir de tais ideias e inspirados pela Pedagogia Hip-hop
proposta pelo pesquisador Marc Lamont Hill (2014) e pelas discus-
sões teóricas sobre a ideologia do embranquecimento, de Kabengele
Munanga (2004) e a teoria crítica da luta pelo reconhecimento, de Axel
Honneth (2003), que elaboramos esse material.
Nesse material, o leitor irá encontrar uma síntese de uma das
estratégias didáticas, desenvolvidas em nossa pesquisa, de ensino
de história: a partir do rap “Serviço de preto” (2015), de autoria de
Daniel Garnet, Peqnoh e Phael, foi possível estudar, ao longo de um
semestre (ou mais) a história da África e as raízes do preconceito no
Brasil. Conduzimos tais discussões em dois momentos diferentes. Na
primeira vez, as discussões tinham como intenção discutir sobre as
72 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

questões contemporâneas suscitadas pela letra do rap. Já na segunda


vez, procuramos dar ênfase à história africana. Abaixo, como indi-
cado, apresentaremos uma síntese de ambos os planos-de-aula, com
exemplos da atuação prática junto aos alunos nos dois momentos.
Cabe ressaltar que esta não foi a única estratégia desenvolvida.
Ao longo de tres anos, estudamos, com os alunos, a respeito dos povos
indígenas, a partir de raps dos Brô’s Mc’s; abordamos, ainda, a história
de Chico Rei, a revolta dos Malês e comunidades quilombolas; por
fim, elaboramos aulas sobre a relação histórica entre o hip-hop, so-
bretudo o rap, e as produções culturais afro-americanas, com ênfase
na história do movimento no Brasil, nos EUA e em seu enraizamento
na ancestralidade africana.
Apresentaremos ao longo desta publicação, um exemplo de
abordagem didática com a qual esperamos inspirar práticas de en-
sino renovadas em História. Acreditamos que, a partir deste mate-
rial, os professores e educadores podem pensar e repensar docências
e métodos em prol do desenvolvimento das diretrizes apontadas pelas
Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, seja através de letras de rap, da arte
dos grafites ou tendo como base qualquer outra manifestação cultural
afro-americana.
Como visto, a riqueza e a diversidade dos povos e culturas afri-
canas afro-americanas e afro-brasileiras é tamanha que os educadores
interessados no tema não terão dificuldades para encontrar inspira-
ção para a elaboração de suas estratégias didáticas.

Serviço de Preto
Compositor: Daniel Garnet & Peqnoh (Part. Phael Camargo)

Imagine que você vive em harmonia


É livre tem pai e mãe, tem filho e filha
Num clique, numa armadilha, alguém te oprime
Regime que te humilha e te suprime
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 73

Reprime te aprisionando com gargantilhas


Presilhas, correntes não são bijuterias
Desiste, no porão negreiro o sol não brilha
Evite olhar pra trás no mar não ficam trilhas
É triste ser separado da sua família
Progride a viajem em direção a ilha
Decide, calar-se ou apanhar por milhas
Não grite, aqui ninguém fala a sua lingua
Seu tempo já não é dos astros e do universo
E sim a pressa do opressor que presa o progresso
Despreza o seu credo menospreza o seu costume
O clero impõe a crença e quer que você se acostume
A ser um bom escravo, e ao fim da vida ir pro paraíso
A gente já vivia nele antes disso
O que nos resta agora: trabalhar sem dia, sem hora
Sem escala, cem horas por semana, sem grana
Sem nada, sem pausa, com náusea, sem causa,
Com trauma são pretos ditos sem alma
Em jaulas chamas senzalas
Sem ganho, sem banho, o cheiro de morte exala

“éramos guerreiros príncipes e camponeses,


Agora nos denominam vagabundos, viajamos
Nos navios negreiros por meses, nosso mundo
Novo, agora é o novo mundo”
Refrão 2x
Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá: 
e nunca vou deixar de lutar

Eram pretos buscando liberdade veio a alforria


Um tipo de maquiagem pra esconder a hipocrisia
Uma utopia encomendada pra gerar frustração
Sem grana pra semente e nem terra para a plantação
Sem volta pra terra natal, sem embarcação
Agora são pretos buscando libertação
Demonizaram as crenças, padronizaram a cultura
Inventaram doenças, democratizaram a escravatura
74 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Restaram escombros dos antigos quilombos


Afastaram os troncos, cicatrizaram os lombos
Tiraram o peso dos ombros, venceram a chacota
O chicote não chacoalha mais, nem estala nas costas
Ginga pastinha e bimba ao toque do berimbau
Ou candeia e donga ao som do carnaval
Guerreiros sempre seremos
Sofremos e nós sabemos
Não queremos nada do que não merecemos
Fazemos nossa parte, nosso trabalho, nossa arte
Mas ninguém reparte o pão, não querem ver nosso estandarte
Não é tarde, ainda é tempo tá ligado
Olhe em nossa história e entenda qual que é nosso legado
Temos cultura e ninguém pode nos tirar isso
Agora a gente prova, honra e mostra nosso serviço
De preto, muito respeito
Somos herdeiros e queremos o que é nosso por direito.

Refrão 2x
Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá: 
e nunca vou deixar de lutar

Fomos escravos de ganho: mas, pro ganho de quem?


Trabalhamos pros senhores sem ganhar um vintém
Fomos agricultores, construtores, estrategistas
Somos produtores, professores, cientistas
Só nos quiseram como babás pras suas crianças
Hoje somos donos das casas da sua vizinhança
Dignamente sem falsidade ideológica
Preservando bem a identidade biológica.
Não somos melhores na música, não somos melhores no esporte
É onde tivemos melhores chances travestidas de sorte
Preta de branco é mãe de santo ou empregada doméstica
Não lhe passou na cabeça que poderia ser médica
Cê não admite que com bons olhos eu possa ser visto
Que eu posso subir na vida sem elevador de serviço
Sendo um advogado ou quem sabe um bom engenheiro
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 75

Isso é o que nós chamamos de serviço de preto


Refrão 2x: Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá: 
e nunca mais vão me acorrentar
Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá!
Dignamente sem falsidade ideológica
Preservando bem a identidade biológica.
Não somos melhores na música, não somos melhores no esporte
É onde tivemos melhores chances travestidas de sorte
Preta de branco é mãe de santo ou empregada doméstica
Não lhe passou na cabeça que poderia ser médica
Cê não admite que com bons olhos eu possa ser visto
Que eu posso subir na vida sem elevador de serviço
Sendo um advogado ou quem sabe um bom engenheiro
Isso é o que nós chamamos de serviço de preto
Refrão 2x: Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá: 
e nunca mais vão me acorrentar
Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar

Peqnoh, Daniel Garnet e Phael Camargo


76 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Aula inicial - Atividade de interpretação de texto e


leitura:
Depois da leitura da letra e de asssitir o clipe do rap
Serviço de preto (2015)1, escrito por Daniel Garnet e Peqnoh,
contando com a participação de Phael Camargo, pode-se per-
guntar aos alunos:
Qual os temas centrais da letra de rap?
Quais os elementos ou características que o ajudaram a
elaborar sua resposta?
Destaque o(s) trecho(s) mais interessante/relevante/sig-
nificativos em sua opinião e justifique.
Você vê relação entre desigualdade social, racismo e dis-
criminação? Tais práticas teriam origens históricas comuns?[

A partir da resposta dos alunos, o educador terá elementos


para iniciar as reflexões que introduzirão a temática das próximas au-
las. Nesta primeira docência, pode-se discutir sobre a relação entre o
escravismo, a desigualdade social, o racismo e o preconceito no Brasil
tomando por base a interpretação da letra de rap acima citado. Nas
demais aulas, retomamos pontos e ideias suscitadas pela letra e por
tais discussões iniciais.

Interpretação da letra Serviço de preto, de Daniel


Garnet, Peqnoh e Phael Camargo
O rap Serviço de preto é dividido em duas partes, uma que se
refere à captura dos africanos e seu envio como escravizados para as
Américas e outra, que diz respeito à situação de abandono dos afro-
-descendentes após a abolição, denunciando o preconceito, o racismo
e a discriminação na sociedade brasileira atual.
Os rappers partem da expressão preconceituosa serviço de
preto, ressignificando o termo e conferindo a ele um sentido inver-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 77

so, com uma conotação positiva. O clipe apresenta, no começo, re-


latos de pessoas negras que, independentemente da posição social
que ocupam (sejam médicos, mestres, dentistas, etc) sofreram com o
racismo. Logo em seguida, os rappers entram com sua letra, cuja nar-
rativa remete, em sua primeira estrofe, a um passado em África que,
por vezes, parece ecoar no Brasil contemporâneo: os autores relatam
a captura de um africano para ser vendido como escravo nos portos
inter-atlânticos.

Neste trecho inicial do rap, são abordados assunto, como: o


desenraizamento imposto às pessoas negras, a separação familiar, as
dores físicas e emocionais, a viagem até as ilhas atlânticas na Costa
Oeste africana, parada de muitos povos antes da complicada e sofri-
da travessia do Atlântico em condições insalubres, as dificuldades de
comunicação entre pessoas de diferentes origens, falantes das mais
variadas línguas e pertencentes a culturas diversas. Depois de mencio-
nar toda essa temática dolorosa da vida dos antepassados dos afrodes-
cendentes, os rappers cantam um refrão que faz ecoar pelos séculos
a afirmação de que os africanos em diáspora e seus descendentes nas
Américas irão viver, irão lutar e irão vencer. Os negros e negras, fi-
lhos da mãe-África superarão as adversidades impostas e retomarão
as glórias e riquezas dos povos africanos, sugere a letra.
78 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

A segunda parte do rap faz uma crítica semelhante à do pro-


fessor Munanga (2004) à abolição que não veio, denunciando que,
mesmo após o 13 de maio, as pessoas pretas e pardas no Brasil con-
tinuaram sofrendo com o preconceito, com a discriminação social e
racial, mantendo-se os abismos da desigualdade social brasileira.
Pouco foi feito para minimizar a situação de abandono impos-
ta aos ex-escravos e seus filhos. O racismo, por sua vez, impediu a
inserção dos mesmos no mercado de trabalho. As dificuldades econô-
micas dificultaram o avanço dos filhos nos estudos, uma vez que estes
foram compelidos a trabalhar para ajudar em casa. Como resultado
desse processo, pouquíssimos negros e pardos ocuparam postos de
destaque nos anos finais do Brasil Império e iniciais da República.
Há que se reconhecer, entretanto, que alguns personagens, mesmo
sob estas condições, ganharam notoriedade, como Luiz Gama, José
do Patrocínio, André Rebouças, Lima Barreto, Machado de Assis,
Presidente Nilo Peçanha, Francisco José, o Dragão do Mar, dentre ou-
tras figuras ilustres.
O preconceito demonizava as crenças e as práticas culturais dos
negros. A ideologia do embranquecimento, em voga em finais do sécu-
lo XIX e que, segundo Munanga (2004), teria pautado o pensamento
brasileiro e a construção da identidade nacional “oficial” no início do
período republicano, buscou aproximar-nos, cultural e fisicamente, dos
europeus, valorizando as origens e as ligações históricas com Portugal.
Além disso, introduziram um contigente significativo de imigrantes po-
bres europeus no mercado de trabalho, urbano e rural brasileiro, numa
tentativa de embranquecer a população e substituir as pessoas de ascen-
dência africana no mercado de trabalho. O governo chegou mesmo a
proibir a imigração de africanos para o Brasil no período.
Mesmo passados tantos anos após todos esses eventos traumá-
ticos para o negro no Brasil, consideramos importante recorrer à lem-
brança dos antigos quilombos como força inspiradora para as lutas di-
árias dos afro-abrasileiros, uma vez que remetem à importância, não
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 79

só da ancestralidade, mas também da valorização das raízes culturais


de povos historicamente prejudicados (HONNETH, 2003).Elementos
fundamentais para a construção e afirmação positiva da identidade
do sujeito negro, levando-o a desenvolver uma auto-estima de igual
maneira bem estabelecida, além de fortalecê-lo para a vida em socie-
dade. Tal reconhecimento cultural resultaria em benefícios psíquicos
necessários para o enfrentamento da estigmatização e aviltamento das
práticas culturais, religiosas de matriz africana e até mesmo dos valo-
res identitários, sofridos pelas pessoas negras e pardas, como também
lembra a estrofe.
Após a interpretação do rap, feita com os alunos nessa
aula introdutória, podemos avançar em direção às duas temá-
ticas planejadas para o semestre: primeiro, os estudos sobre os
povos africanos para, em seguida, promover discussões sobre
a questão do racismo e da discriminação no Brasil, finalizando
com uma proposta de produção de texto dos estudantes, que
aborde as discussões e estudos propostos.
O hip-hop é uma cultura de raízes ligadas à diáspora africana.
Além de ter sido criado pelos negros estadunidenses em meados dos
anos 1970, espalhando-se através das comunidades afro-americanas
pelas Américas ao longo dos anos 1980 e 1990, o hip-hop e seus ele-
mentos - o rap, o grafite, o break e a discotecagem - são manifesta-
ções que têm suas origens na cultura afro-americana. Com a música,
temos um ótimo exemplo dessa relação. O hip-hop desenvolve-se a
partir da disco music, com influências da funk music, do rithym and
blues, das sound-systems jamaicanas, do jazz, das work-sounds.
De acordo com o pesquisador afro-americano, Willian Smith
(2015), algumas características das músicas encontradas na costa
oeste africana desde meados do século XIV, são parte dos raps con-
temporâneos (e de outras manifestações musicais afro-diaspóricas):
as falas-cantadas, as signifying (indiretas), os double-entendre (duplos
sentidos), as chamadas-e-respostas, as escalas das melodias, o swing, a
80 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

improvisação e, sobretudo, o sampling – que seria o rearranjo criativo


de uma ideia, som ou elemento textual. Pode-se refletir com os alu-
nos sobre essas e outras influências culturais africanas presentes nas
letras selecionadas para as aulas, para, em seguida, promover a análise
da história dos povos afro, nas Américas e em África, buscando tais
origens e ancestralidade.

Aulas intermediárias - Raízes históricas africanas


Partindo destas reflexões estudamos, ao longo de algumas
aulas, a respeito de reinos, povos e nações da África antiga, como o
Egito, a Núbia, a civilização Axum e a Etiópi. Em seguida, abordamos
a África clássica, com foco no Império do Mali e o reino de Gana,
para, por fim, estudarmos os povos enviados para o trabalho força-
do nas Américas, com especial atenção àqueles relacionados com a
formação do Brasil, como os iorubás, os jejes, os reinos do Congo,
Luanda e Moçambique.
Para tal abordagem, pode-se seguir uma estratégia se-
melhante à apresentada abaixo.
Vamos retomar alguns trechos do rap Serviço de preto.

“éramos guerreiros príncipes e camponeses, Agora nos


denominam vagabundos, viajamos Nos navios negreiros por
meses, nosso mundo Novo, agora é o novo mundo”
Refrão 2x:
Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá: e nunca vou
deixar de lutar”
[...]
“Olhe em nossa história e entenda qual que é nosso
legado
Temos cultura e ninguém pode nos tirar isso
Agora a gente prova, honra e mostra nosso serviço de preto,
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 81

muito respeito. Somos herdeiros e queremos o que é nosso por


direito”

Ao longo da letra do rap, os autores se referem a ele-


mentos da vida cotidiana dos negros em África antes do con-
tato com os mercadores e traficantes europeus, como nos tre-
chos destacados acima. Pode-se perguntar aos alunos: Você
já estudou sobre os povos africanos? O que você sabe sobre o
continente africano e suas populações antes, durante e depois
da relação com o comércio mercantilista europeu e a explora-
ção econômica das Américas?

Após a reflexão dos alunos, caminha-se para a abordagem de


nações, reinos e povos africanos que iremos estudar. Apresento abaixo
verbetes introdutórios sobre os mesmos.
O professor pode aprofundar sua pesquisa e a preparação de
suas aulas consultando a Coleção da UNESCO sobre História da
África, as publicações do africanólogo Alberto da Costa e Silva, como
seu artigo Um Brasil, muitas Áfricas (Revista de História da Biblioteca
Nacional, 2012) ou O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX
(1994), além de consultar os livros do professor Kabengele Munanga,
como Origens africanas do Brasil contemporâneo e o livro didático O
que você sabe sobre a África?, de Dirley Fernandes, publicado em 2016
e cujo exemplar parece ter sido enviado para todas as escolas munici-
pais de São Paulo.
82 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Civilização Egípcia - O Egito “antigo”

“A história do Egito faraônico conta com 30 dinastias que se


sucederam entre cerca de 3000 e 333 a.C.” (Munanga, 2016).
A civilização egípcia é uma das mais antigas do mundo.
Registros arqueológicos encontraram evidências de povoações na re-
gião do Vale do Rio Nilo mesmo antes de 7.000 a.C. O Egito desen-
volveu-se mantendo uma importante relação com o Nilo. Aos pou-
cos, homens e mulheres da região aprenderam a controlar os ciclos
de cheias do rio para organizar sua produção agrícola, com ênfase no
trigo e na cevada, permitindo o desenvolvimento de sua população.
Seus cidadãos ocupavam diferentes posições sociais, dos Faraós aos
camponeses e escravos, passando por escribas (a escrita hieroglífica
egípcia é desenvolvida por volta de 4.000 a.C.), sacerdotes, soldados
e outros funcionários dedicados à administração do território. Em
3.200 a.C., Menés (ou Narmer), Faraó do alto Egito, domina o bai-
xo Egito, dando início à primeira das 30 dinastias. Sua divinização
deu tom a uma das características do Estado egípcio faraônico: uma
sociedade teocrática. O soberano foi alçado ao Panteão dos deuses
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 83

egípcios. Entre 3.000 e 1.200 a.C, o Egito não sofre com invasões, ex-
perimentando o auge da civilização. Com o excedente da produção
agrícola e sua anuidade, no restante do ano, o Estado mobilizava sua
mão-de-obra para as obras faraônicas. Estradas, diques, canais e ou-
tras obras de infraestrutura eram de uso de todos; já outras, como
as pirâmides, os palácios e os templos eram mais restritos, como a
pirâmide de Gizé, túmulo do Faraó Quéops, data de 2.550 A.C. Para
esta e outras construções, era necessário muito conhecimento em ma-
temática, física, engenharia e arquitetura, dentre outros saberes que
os egípcios dominavam muito bem, como a medicina e a astronomia.
Os egípcios mantinham relações comerciais com regiões longínquas,
como a Suméria na Mesopotâmia na região leste e a Núbia, ao sul.
Sua rede de influência atingia um enorme território. A partir da XX
dinastia faraônica, iniciaram-se os períodos de instabilidade. Invasões
de líbios, assírios, sudaneses, persas, greco-macedônicos guiados por
Alexandre e em seguida, os romanos, que dominaram o território
egípcio, alimentando sua população com a produção agrícola das fer-
téis terras ao longo do Vale do Nilo. Alternando períodos de sujeição
e independência frente às potências da antiguidade mediterrânica, o
Egito caiu sob o domínio dos bizantinos, que, por sua vez, foram su-
cedidos pelos povos árabes, que converteram boa parte da população
à religião muçulmana, tendo alçado o Cairo, capital egípcia, à condi-
ção de Califado. Com o desenvolvimento da geopolítica internacio-
nal no século XIX, a região é invadida novamente pelos europeus,
primeiro pela França Napoleônica e, em seguida, pelos ingleses. O
Egito moderno é uma nação soberana, membro da Organização dos
Estados Africanos e da ONU. Atualmente os egípcios, apesar de ter
populações devotas de outras religiões, como os cristãos coptas, são
uma nação de maioria islâmica, falantes do árabe.
84 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

O Reino da Núbia/Kush ou Cuxe

A Núbia foi um grande reino que se desenvolveu ao sul do Egito.


A população núbia era semi-nômade e artesã, com ênfase na produ-
ção de cerâmica. Desenvolveram o comércio com os egípcios, enviando
“ébano, marfim, incenso, gado, leopardos, enxota-moscas feitos de rabo
de girafa e cereais, e recebiam objetos de cobre” (Fernandes, 2016, p.
14). Por volta do ano 2.000 a.C., os núbios se reúnem sob o reino de
Kush, ou Cuxe. Em 1.500 a.C., o Egito domina a região. No entanto, a
Núbia, aproveitando-se de uma crise no poderoso país vizinho, a situa-
ção é revertida, período chamado de dinastia etíope ou dinastia núbia,
que, após 200 anos, foi encerrada com a invasão assíria. Em virtude das
guerras, os núbios deslocaram sua capital mais ao sul, para Meroé. “Em
170 a.C. a rainha Shanakdakhete passou a governar sem um rei, dando
início a um interessante período de matriarcado nessa civilização”; as
mulheres ocuparam papel de destaque no governo de Kush. As gover-
nantes eram chamadas de Senhoras de Kush ou Candace. O reino era
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 85

politeísta e mantinha relações culturais com os vizinhos do norte, como


podemos perceber em suas pirâmides, que guardavam suas próprias
características. Cuxe caiu sob o dominío do reino de Axum no ano de
350 d.C. Seguindo a influência da conversão bizantina do Egito, aos
poucos Kush se cristianiza, para, em seguida, também manter relações
com os povos da península arábica, especialmente os comerciantes. O
declínio desestabiliza as formas e organização social da região. Mas
deve-se ressaltar a contribuição da civilização Kushita: “Certos povos
na África ocidental derretem o bronze pelo processo de cera perdida,
como se fazia no reino cuxita. Mas a contribuição da capital do impé-
rio meroítico foi a disseminação da indústria do ferro no continente
africano” (Munanga, 2016, p. 51) Atualmente a região engloba areas de
principalmente dois países: Sudão e Sudão do sul, ambos enfrentando
complicadas questões humanitárias.

A civilização de Axum e o Reino da Etiópia


Por volta do século I-II d. C., um reino, cuja capital tem o mes-
mo nome, emergiu na região do chamado Chifre africano, no norte da
86 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

atual Etiópia e Eritréia, anexando nações próximas e avançando sua in-


fluência política sobre povos outrora dominados por Meroé, ao norte, e
pelos reinos do sul da Árabia, a leste. Uma civilização que surgiu ligada
ao controle das rotas comerciais e portos da região, como Adulis, e cujo
poderio e influência, em seu auge no século IV d.C, abrangia toda a
extensão da antiga Núbia e o sul da península arábica: Axum. Oriundos
de uma nação que duraria mil anos, os axumitas eram descendentes de
povos muito antigos. Registros escritos do mais antigo alfabeto encon-
trados na região datam do século V a. C., sendo uma variante de dia-
letos semitas da região sul da Arábia (MUNANGA, p.53, 2016). Com
o tempo, a escrita etíope adquiriu traços próprios, diferenciando-se da
grafia sul-arábica a partir do século II d.C (UNESCO, v. II, p. 377, 2016).
Desde o século III a.C., os povos da região dominavam a metalurgia, em
especial do ouro, do ferro e do bronze (UNESCO, vol. II, p. 371. 2012)
e a arte da cerâmica. Além de serem hábeis metalúrgicos, os axumitas,
aos poucos, assumem o controle político da região, eram agricultores,
com destaque para as plantações de trigo, uvas e o café, natural do norte
da Etiópia e de grande importância no Brasil e no mundo. Também se
dedicavam à pecuária, criavam gado, mulas, caprinos e até mesmo ele-
fantes. O Império de Axum era, sobretudo, dedicado ao comércio, re-
lação que foi base de sustentação para o surgimento do reino Axumita.
Suas mercadorias, como ouro, incenso e marfim (UNESCO, Vol. II, p.
374), alcançavam os litorais mediterrânicos sob influência romana, os
indianos e os desertos da Pérsia, com destaque para a extração de már-
more e o comércio de marfim, além da comercialização de escravos pri-
sioneiros de guerra. A posição central do comércio nessa sociedade e a
importância política alcançada por seus governantes são atestados pelas
cunhagens de moedas de ouro, prata e cobre, sendo Axum o primei-
ro reino da África tropical a desenvolver tal característica econômica
(UNESCO, v. II, p. 405, 2012). Também pode-se inferir que tenham
sido estabelecidas relações dos axumitas com a judeia. Além da língua,
alguns relatos indicam a presença de judeus em Axum desde os tempos
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 87

remotos, havendo até uma antiga lenda de que a comitiva da rainha


Makeda, conhecida como rainha de Sabá, teria levado a Axum a Arca
da Aliança, dada como presente pelo rei Salomão. A rainha tivera um
filho, Menelik I, com o rei Salomão, dando início à dinastia salômonica
na Etiópia, por volta de 950 a.C., cujo fim se deu apenas em 1974, com
a queda do Imperador etíope Heille Selasie I (Kebra Nagast, séc XIV,
descreve a linhagem dos imperadores etíopes).
De fato, na cultura axumita havia a tradição da prática da cir-
cuncisão dos meninos, de se respeitar o sabá, além da existência de
cantos litúrgicos e sagrados com referências à casa de Davi. No início
da Era Cristã, Axum também mantinha relações comerciais com o
Império bizantino. Essa relação pode ter influenciado a conversão do
reino africano de Axum ao cristianismo no século IV, construindo
uma cultura com influências de religiões tradicionais cuxitas, que cul-
tuavam elementos da natureza, além da religião judaica e da cristã. O
templo de Yeha e a Igreja de São Jorge, em Lalibela, são bons exem-
plos da arquitetura religiosa etíope. Registros arqueológicos atestam a
conversão ao cristianismo a partir do rei Ezana, com base nas moedas
axumitas encontradas que contêm representações dos 18 monarcas
de Axum (UNESCO, 2012). O Império Romano-bizantino tornou-se
um dos principais parceiros econômicos de Axum, bem como o Egito
(UNESCO, vol. II p. 408, 2012). No século XVI, o reino cristão da
Etiópia é confrontado com a expansão islâmica, que também deixara
suas marcas, sendo um dos principais legados dessa relação a difu-
são do hábito do consumo do café pelos comerciantes arábes. O reino
da Etiópia, descendente de Axum, foi o único país abaixo do Saara
que manteve sua soberania ao longo dos séculos, ocorrendo apenas
um breve momento de intervenção externa ao longo da história, uma
ocupação italiana e egípcia entre 1935 e 1948, no contexto das guerras
mundiais. A determinação da Etiópia e sua tradição histórica são sím-
bolos de resistência e união para os povos africanos. Após as lutas pela
independência frente ao colonialismo europeu, muitos países adota-
88 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

ram as cores da bandeira da Etiópia, que tornou-se referência para o


Movimento Pan-africanista surgido no século XX. Cabe lembrar tam-
bém que Lucy, denominação dada ao fóssil homo sapiens mais antigo
já descoberto, foi encontrado na Etiópia, corroborando com pesqui-
sas que apontam que a humanidade teria surgido em África e que foi
a partir da mãe-África, que os humanos povoaram o resto do mundo.

Império de Gana
Após a queda do Império Romano, que ocupava a porção norte
da África, sendo sucedido pelos Vândalos e pelos Bizantinos, a região
do Saara transformou-se com a expansão islâmica. A partir do século
VII, discípulos de Maomé, especialmente os mercadores árabes, pas-
saram a difundir a religião muçulmana pelo mundo, influenciando
também os povos africanos. O primeiro Estado a se desenvolver de
maneira notável, dotado de um poderoso exército e tendo reinos e
populações na região como tributários, foi o Império de Gana, conhe-
cido como “o país do ouro” (MUNANGA, p. 57, 2016). Sua capital,
Kumbi-Saleh, era formada por duas cidades, uma abrigando os pré-
dios e palácios reais, outra muçulmana, com 12 mesquitas, morada
dos juristas, dos letrados e dos mercadores. Gana controlava o co-
mércio através do deserto do Saara, trocando ouro por tecidos, sal e
outros utensílios. Em 1077, os almorávidas, povos berberes da costa
atlântica dominam Kumbi-Saleh, dissolvendo o Império em peque-
nos reinos, que pouco a pouco foram convertidos ao islã.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 89

O Império do Mali

O Mali foi o segundo grande império a se formar na região


do Sudão ocidental, sucedendo Gana. De acordo com as histórias
contadas, uma província mandinga havia sido atacada “pelo rei do
Sosso do então império de Gana” (MUNANGA, p. 59, 2016), que
massacrou os membros da nobreza local. Apenas Sundiata Keita, uma
criança então enferma, sobrevivera. Em 1235 o jovem mandinga reú-
ne forças e investe contra Sumaoro Kantê, soberano Sosso, atacando
a cidade de Kumbi-Saleh, vingando seu clã e estabelecendo um po-
deroso império, o Mali, tornando-se “Mansa”. O Mali, cuja capital era
Niani, foi, por mais de 200 anos, o Estado mais rico do oeste africa-
no. Os domínios do Mansa abrangiam muitas minas de ouro e cobre
da região oeste africana e rotas comerciais transaarianas, por onde
transportava-se diversos produtos, sobretudo sal. Além da pecuária, a
agricultura baseava-se na plantação de algodão, arroz, feijão, inhame
e legumes. Muitos povos diferentes eram súditos do Mansa e o con-
90 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

trole territorial era feito através de seu poderoso exército e por meio
da unificação religiosa em torno do islamismo. No século XIV, Kanku
Musa, Mansa do Mali, acumulou uma fortuna que, segundo econo-
mistas modernos, o tornou o homem mais rico da história.Um de
seus feitos mais memoráveis foi uma viagem realizada a Meca no ano
de 1324, acompanhado de um séquito de 60 mil súditos. Musa distri-
buiu ouro pelo caminho, sobretudo em prol da construção de inúme-
ras mesquitas, causando forte impacto no Cairo, capital do califado do
Egito. Quando de seu retorno, Mansa traçou novas rotas comerciais
e trouxe consigo pensadores árabes. Seu exército dominou a impor-
tante cidade de Timbuctu (ou Tombuctu), próxima à curvatura do rio
Níger, transformando-a em um importante centro religioso e estabe-
lecendo ali a primeira universidade do oeste africano, referência em
estudos e pesquisas. Muitas das tradições culturais e dos relatos orais
sobre o modo de vida do Mali foi transmitido por meio dos Griots,
sábios da costa oeste africana responsáveis por preservar e propagar
os costumes e os saberes de seu povo. No século XV, o Mali entrou em
declínio. Uma série de conflitos internos, problemas de sucessão ao
trono e o crescente ataque de nações vizinhas culminaram na erosão
desse poderoso império africano. Foi sobretudo o crescente poderio
dos Songhais que veio a enfraquecer o poder do Mansa. Contudo,
o início das relações comerciais com os navegantes portugueses, que
vieram no encalço dos marroquinos atraídos pelas lendárias regiões
auríferas, trouxe nova força política para o Mali, que se envolveu nas
relações mercantis escravistas fornecendo homens e mulheres em tro-
ca de mercadorias. Aos poucos, os portugueses incentivaram as pe-
quenas províncias, especialmente as litorâneas, a se rebelarem contra
o poder central do Mansa do Mali. As guerras cresceram de maneira
assustadora. Ao norte, ocorreram ataques de povos tuaregs e a oes-
te, o crescente Império Songai conquistou a cidade malinense, che-
gando mesmo a dominar Timbuctu e rotas comerciais transaarianas
importantes. Tais conflitos desmontaram de vez o Império por volta
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 91

de 1599. De acordo com Fernandes (2016), entre 1576 e 1600, 40 mil


africanos desembarcaram no Brasil, 274 mil nas Américas. As cam-
panhas militares para se obter prisioneiros, as guerras entre nações e
povos, o esvaziamento da mão-de-obra na agricultura e a desestabili-
zação política, econômica e social da costa oeste africana incentivada
pelo tráfico de escravizados transformou de maneira brutal as socie-
dades que ali viviam. O Brasil foi o principal porto de recepção dessas
pessoas arrancadas à força de suas terras.

Os Iorubás
Vivendo na costa oeste africana, onde hoje localiza a Nigéria,
Togo e Benin, os Iorubás, conhecidos também como nagôs, são povos
de diferentes nações e reinos que compartilham das mesmas tradições
e são da mesma origem cultural. Os iorubás foram muito importan-
tes para a formação do Brasil. Deve-se enfatizar especialmente suas
contribuições no âmbito religioso, influenciando no desenvolvimento
do candomblé, do Tambor-de-mina e de outras religiões de matrizes
92 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

africanas nas Américas, a partir da força de suas tradições, da crença


em seus orixás e em seus ancestrais e, evidentemente, da interpre-
tação sobre sua relação com outros povos, africanos e europeus, em
sua terra ou na diáspora. Em África, os Iorubás organizavam-se poli-
ticamente em cidades-Estado independentes, que compartilhavam a
mesma língua, história, religião e cultura desde pelo menos o século
XI, de acordo com o professor Munanga (2016). Entretanto, podemos
encontrar vestígios de sociedades desenvolvendo-se na região desde
muito antes. A ocupação humana no Vale de Ifé data de 350 a.C. A
partir do século VII, as aldeias locais organizam-se, criando uma im-
portante rede de estradas que ligavam, comercial e culturalmente, ci-
dades importantes, como Ifé, Ketu, Benin e Oió. Pela lenda, os iorubás
são descendentes de Oduduwa, que teria descido do céu com uma
galinha e uma cabaça de areia, e ao derramar a areia sobre o mar,
a ave espalhou-a, dando origem à terra dos Iorubás. De fato, cada
cidade-Estado Iorubá era governada por um monarca, que em Ifé, ci-
dade que teria originado as demais, chamava-se Oni; já em Oió, em
Benin e nas outras cidades-Estado, o governante era intitulado Obá,
e sua area de influência abrangia outras cidades menores, que lhes
eram tributárias, além das zonas de floresta, muito importantes para
a economia, a religiosidade e a subsistência nagô. Os iorubás domina-
vam a metalurgia, principalmente do cobre, e eram ótimos artesãos,
trabalhando como ferreiros, marceneiros, tecelões e oleiros, como
atestam as peças arqueológicas. A guerra era uma atividade central
na vida iorubá, importante para a dinâmica econômica, assim como a
agricultura, sendo os nagôs dedicados sobretudo ao cultivo de inha-
me e da palmeira. Por volta do século XVII e XVIII, o reino de Oió
sobrepõe-se às demais cidades-Estados naquela área da costa Oeste
africana. As guerras, vencidas por seu poderoso exército, alimenta-
vam o comércio de cativos para as Américas, fomentando a captura
e o envio de milhares de africanos para o Novo Mundo. Contudo, no
século XIX, foi Oió que sofreu com os ataques. Vieram os povos mu-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 93

çulmanos que destituiram o poderio desse reino. Outra grande leva


de nagôs foi enviada ao Brasil, sobretudo para a Bahia, em meio a
tais conflitos no país dos iorubás. Assim, os povos muçulmanos do
norte e os cristãos do litoral subjugaram os iorubás, mas apesar da
enorme pressão, as crenças e tradições nagôs persistem ianda hoje em
ambos os lados do Atlântico (MUNANGA, 2016). Outra importante
cidade nagô foi Benin, localizada a oeste. A cidade era especializada
na produção de tambores, na metalurgia do bronze e no artesanato. A
população organizava-se de acordo com uma estrutura social hierár-
quica, tendo o Obá como cargo superior. No século XV, Benin come-
çou a se relacionar com mercadores europeus, sobretudo portugueses,
o que alterou a dinâmica econômica e social local, passando cada vez
mais a se envolver nas guerras contra os outros reinos da região em
busca de influência política, capital econômico e, sobretudo, de ca-
tivos para alimentar o comércio inter-atlântico de escravizados, que
cada vez mais exigia homens e mulheres para os trabalhos forçados
no Brasil e nas Américas. No final do século XIX, os ingleses tentaram
se impor sobre o reino do Benin, sofrendo resistência por parte do
Obá e seus soldados. Em 1897, o Reino Unido enviou uma expedição
militar à região, destituindo o poder do Obá e pilhando a capital do
reino. Hoje, graças ao saque feito na época, muitas das obras de arte
iorubás encontram-se nos museus da Europa. Mas também há peças
no Brasil, país que recebeu a maior parte das pessoas vindas dessa
região da África e que guarda relações históricas e culturais com esses
povos, também considerados ancestrais do povo brasileiro. O acervo
do Museu Afro-Brasil possui peças de artistas e artesãos iorubás em
sua seção África: diversidade e permanência e também conta com or-
namentos e vestimentas que dizem respeito aos orixás do candomblé
e aos egunguns, além de instrumentos musicais, pinturas e esculturas
relacionados aos nagôs (e, evidentemente, a outros povos africanos).
“Tidos como Iorubás (e, no Brasil, tambem Nagos), sabiam-se oiós,
94 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

ifés, egbas, auoris, quetos, ijexás, ijebus, equitis, ondos, igbominas ou


de outras nações” (COSTA E SILVA, p. 2, 2012)

O Daomé
O reino do Daomé, cuja capital era a cidade de Abomey ou
Abomé, desenvolveu-se na costa oeste africana, onde hoje se encon-
tram o Togo, Gana e o Benin (antigo país Daomé) por volta de 1620.
Controlando uma pequena porção de território ao redor de sua capi-
tal, os jejes, como também é conhecida a população local, de língua
fon e subjugada ao rei do Abomé, viram seu reino crescer após a to-
mada do controle do porto escravista de Ouidah em 1747, um dos
principais portos responsáveis pelo embarque de cativos africanos.
Do porto de Ouidah, partiam navios que desembarcavam principal-
mente na Bahia, província que controlava o comércio de escraviza-
dos no período. Relacionando-se comercialmente com os europeus,
especialmente com os portugueses, com os quais trocavam cativos
escravizados por armas de fogo, os daomeanos inverteram a relação
conflituosa que alimentavam com seu principal rival, o reino iorubá
de Oió. No entanto, as guerras constantes entre ambos alimentaram o
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 95

tráfico negreiro. Num primeiro momento, Oió levou vantagem, sub-


jugando Abomey e Ouidah, mas com o declínio iorubá, o exército de
Daomé, composto de homens bem treinados e pelas famosas guerrei-
ras amazonas daomeanas, lançou campanhas contra as populações e
cidades nagôs despreparadas, o que viabilizou a captura e o envio de
milhares de cativos de guerra às Américas. Para o Brasil embarcaram
inclusive membros da família real de algumas cidades-Estado, como
Ketu e Oió, que foram responsáveis pela estruturação do candomblé
na Bahia, como conta a história do Candomblé da Casa Branca do
Engenho Velho. Mas as guerras também atingiram o Daomé interna-
mente. Em um conflito sucessório, a então família real daomeana foi
subjugada e enviada como escravizados ao Maranhão, onde a rainha
Nã Agotimé teria fundado a Casa das Minas e o culto aos Vuduns de
seus ancestrais conhecido como Tambor de Mina, no Maranhão, em
1849. Seu filho, Rei Guezo, ao reconquistar o trono do Daomé enviou
embaixadas à diversas regiões das Américas, tentando reencontrar
sua mãe, sem sucesso. No final do século XIX, com a proibição do
tráfico inter-atlântico de escravizados o reino de Abomé precisou re-
estruturar sua economia e sua política, voltando-se para a exportação
de óleo de palma com base em mão-de-obra cativa. Em 1894, uma
campanha militar francesa conquistou Daomé, depondo seu último
monarca, Behanzin.

O Reino Axante ou Achanti


Vivendo na região da Costa do Ouro africana desde meados
do século XV, os povos da etnia Acã se organizaram politicamente
em torno de um Estado unificado por volta do século XVIII, obra do
príncipe Osei Tutu e do mágico Okomfo Enokye, em 1700. Segunda
as lendas da região, o trono de ouro desceu do céu e repousou no
joelho de Tutu, nomeando-o líder dos Axantes. Até hoje a autoridade
Axante conserva seu trono, símbolo da autoridade, em Kumasi, antiga
capital do reino. A unificação Acã deu origem ao Império Axante e foi
96 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

uma reorganização política em resposta às transformações sociais e


econômicas pelas quais passava a região após a chegada dos europeus
ao litoral. O militarismo era uma característica axante, que mantinha
suas estruturas por meio de guerras e conquistas frente aos povos vi-
zinhos. Com economia voltada à extração de ouro e para o comér-
cio, especialmente com os europeus, com os quais obtinham armas
de fogo e outras mercadorias, os axantes desenvolveram-se devido ao
controle das rotas comerciais locais. É justamente nessa região da cos-
ta oeste africana que, em 1481, os portugueses constroiram o Forte de
São Jorge da Mina, que se tornou um dos mais notáveis portos comer-
ciais do Atlântico, transformando a dinâmica da região. O principal
produto exportado eram escravizados para o trabalho forçado nas
Américas, mas ali também comercializavam-se outras “mercadorias”
dentro da dinâmica da economia mercantilista da época. Trocava-
se pessoas do mesmo modo que negociava-se tabaco, armas, metais
preciosos, cachaça, marfim, noz-de-cola, tecidos, artesanatos e outros
produtos... O domínio desse comércio e de suas rotas levou à cen-
tralização e à ascensão do Império Axante. No contexto das disputas
imperialistas no final do século XIX, os Axantes entrraam em guerra
com os britânicos. A Rainha Yaa Asantewaa liderou a resistência de
seu povo, mas em 1902 os europeus subjugaram a região, declaran-
do-a colônia britânica. Os Axantes guardam muitas relações com o
Brasil, sendo responsáveis, dentre outros povos, como os Sossos, pelo
desenvolvimento das técnicas de metalurgia e mineração. De acordo
com o africanólogo Alberto da Costa e Silva: “Durante séculos, algu-
mas regiões como o Rio Falemé, o Alto Níger, o país Acã e o planalto
do Zimbábue foram os principais fornecedores (de ouro) da Europa
e do mundo muçulmano, trouxeram com eles as técnicas da bateia e
de escavação de minas. Alguns eram bons ourives, que criavam, na
África, joias de grande beleza, como as dos Axantes, e passaram a
fazê-las com novos modelos no Brasil” (COSTA E SILVA, p. 2, 2012).
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 97

O Reino do Congo

O Reino do Congo foi um importante Estado localizado na re-


gião centro-oeste africana, onde hoje é o norte de Angola e o litoral do
Gabão e do Congo moderno. No século XIV, o reino era governado,
na capital Mbanza Congo, pelo Manicongo, cargo de monarca ao qual
era eleito um dos chefes representantes dos antigos clãs locais, que
compunham o conselho real. A hierarquia social do Congo também
era composta por camponeses e escravos, para além dos funcionários
reais, dos soldados e da nobreza. Os congoleses pertenciam ao grupo
dos povos de cultura e língua bantu. Na região, compartilhavam o
idioma quicongo, o Mbundo e alguns outros dialetos, que tiveram in-
fluência no “português brasileiro”, cuja presença se fez sentir em pala-
vras como berimbau, samba, farofa, fubá, moleque, senzala, quilombo
e zumbi, dentre muitas outras . De acordo com Costa e Silva (2012):
“Os falantes de quimbundo, os Nbundos de Angola, compreendiam
vários grupos com dialetos e culturas diferenciados, entre os quais os
Ndongos, dembos, hungos, quissamas, songos, libolos e bangalas”. A
98 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

economia do Congo era baseada no comércio, nos impostos reais e


no escravismo. Os principais produtos comercializados eram tecidos,
marfim e conchas marinhas, usadas como moeda. Em 1482, logo no
início da presença portuguesa na região, o Manicongo Nzinga Kuvu
estabelece uma parceria econômica com o rei Manuel I, de Portugal,
por meio do navegador Diogo Cão. Foram enviados embaixadores
à Europa, retornando com homens especializados em determina-
das áreas, artesãos, missionários e diplomatas. Nzinga Kuvu enviou
seus filhos para serem educados em escolas portuguesas e ordenou a
construção da primeira Igreja Católica na região, em 1491, local no
qual foi batizado como João I. Em 1506, com a morte de Kuvu, subiu
ao trono seu filho Affonso I. Este Manicongo empreendeu um pro-
jeto de conversão religiosa em seu território, solicitando o envio de
mais religiosos missionários para a conversão da população. A cor-
te portuguesa, entretanto, tinha outros planos, visando, sobretudo,
assumir o controle econômico da região. Com este fim, associou a
missão religiosa ao monopólio comercial sobre o reino do Congo. Ao
longo do tempo, os portugueses fundaram os Fortes de Cabinda, São
Paulo de Luanda e Benguela, enfraquecendo e dividindo o poder dos
Manicongos. No contexto das guerras por entrepostos comerciais em
África e por terras para a colonização, empreendidas entre Portugal
e Holanda, o reino do Congo sofreu com ataques e invasões, espe-
cialmente por suas relações com Pernambuco, Bahia e o nordeste
açucareiro do Brasil. No final do conflito, os portugueses (oriundos
da colônia brasileira) expulsaram os holandeses de suas posses nas
Américas e na África e dominaram o comércio local. Foi em meio
a este conflito que, na Serra da Barriga, hoje Alagoas, os povos afri-
canos se reuniram no histórico Quilombo dos Palmares. Inspirados
por organizações sociais e militares da região do Congo, os quilombos
tornaram-se núcleos de resistência negra à escravidão nas Américas.
As comunidades quilombolas surgiram no Brasil e em outros países
e muitas existem até hoje . Os congoleses cultuavam os inquices (ou
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 99

Nkises), espíritos de seus antepassados e da natureza, que acredita-


vam influenciar em sua vida cotidiana. O culto aos inquices sobrevive
nos terreiros de religiões de matrizes africanas, no Brasil, em Cuba e
no restante das Américas.

Aulas finais - Reflexão e produção de texto


Como atividade-síntese das aulas pode-se propor para os alu-
nos que elaborem textos sobre a história e cultura africanas. Antes de
tal elaboração, e ainda tomando o rap como exemplo, pode-se discutir
em mais algumas aulas a respeito dos elementos literários, sobretudo
figuras de linguagem, elementos da narrativa e a cosntrução das rimas.
Após esses estudos de língua portuguesa, pode-se retomar as
aulas de história da África solicitando aos alunos que levantem pala-
vras-chave que remetem aos temas estudados anteriormente. A partir
de tais palavras, é possível construir um quadro de referências para
que os alunos elaborem versos sobre o que aprenderam, contendo
tanto o tema das aulas quanto as palavras-chave por eles selecionadas.
100 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Como exemplo, apresentamos um quadro elaborado em uma


de nossas abordagens4. Os alunos deverão selecionar as seguintes
palavras-chave:

Riqueza – Ouro – Reis – Rainhas - Rei Leão- Império


-Mansa Musa – Maomé - Núbia – Faraó - Pirâmides – Areia –
Cleópatra – Egito – Múmia - Costa do Marfim – Etiópia – Gana -
Brasil - Continentes - Mundo - Reino – Exu – Religião – Macumba
- Escravidão –África – América - Deuses - Mediterrâneo - Racismo
– Preconceito - Quilombo - Correntes - Bulling - Serviço de preto
- Desigualdade social -Machismo - Dança - Senzala - Capoeira -
Chicote - Música - Zumbi -Tambor - Palmares - Revolta.

A partir dessas palavras podem ser eleborados alguns versos,


que, em nossa experiência, foram apresentados pelos alunos para toda
a comunidade escolar da EMEF Saturnino Pereira em um evento cul-
tural de hip-hop no final do semestre letivo:

“Lutamos por justiça,


Para todos os brasileiros
e também para o mundo inteiro,
sempre sem preconceito!
Capoeira (também) é uma forma de resistência,
temos atitude e também nossa consciência...
Queremos o que é nosso por direito,
Somos considerados: cidadãos de respeito!”

4 No caso, havíamos estudado apenas o Egito, Núbia, Axum, Etiópia, Mali,


os Iorubás, Daomé, Congo e Luanda, além das discussões sobre questões
raciais e discriminatórias suscitadas na aula na qual interpretamos a letra
de Serviço de preto.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 101

“Zumbi...
Um pobre homem estava ali:
Brigando, lutando, batendo e apanhando...
Discriminado, um homem fica revoltado!
Preconceito revolta, racismo você chora!
É importante a reflexão:
Homens malvados querem mandar no cidadão!”

“Precisamos acabar com a desigualdade,


Que causa revolta na sociedade...
Fomos acostumados a lidar com a discriminação,
Mas não podemos deixar que isso vire o futuro da nação”

“Lutar pela liberdade,


Para acabar com essa maldade!
Sei que existe a lei,
Mas queremos conscientização
Para acabar com a discriminação”
“Tudo se iniciou em 20 de Novembro
Para ter conhecimento
No dia dos negros
E para ter respeito e conscientização,
Apenas para o cidadão: reflexão!
Eles lutaram, resistiram,
E hoje podem andar sorrindo:
Porque lutar pela nação
Não é mole não!
E hoje meu irmão:
são negros libertos da escravidão!”
102 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

“Temos que ter conscientização:


Desde a época da escravidão
Que os negros vêm sofrendo discriminação.
E também tem o preconceito de religião:
Muitos julgam o candomblé
E nem sabem o que é...
Negros sofriam desde a África,
Onde foram feitos escravos
E agora em 2016
Continuam sendo humilhados”

“Os negros já sofreram com muita discriminação,


Mas eles foram atrás da sua libertação.
Com muito trabalho e com boa vontade
Eles conseguirão acabar com a desigualdade.
O capitão-do-mato invadiu o Quilombo
Os negros chegaram com a capoeira
e ele levou um tombo.
Depois de tudo o que aconteceu
Mesmo assim conseguiram sua igualdade,
Destruiram seus inimigos,
conseguiram libertar os povos cativos
e todos saíram vivos...”
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 103

Conclusão
Por meio de nossas leituras e discussões, procuramos valorizar
a riqueza de culturas e povos do continente africano, ressaltando suas
contribuições para a humanidade. Refletimos sobre os saberes, as prá-
ticas e as visões-de-mundo africanas que foram trazidas na alma do
povo africano em diáspora para as Américas.
As contribuições dos povos africanos foram muitas: 1. para a
criação de gado, em que a experiência dos haussás e dos fulanis foram
importantes para o desenvolvimento desta prática na América por-
tuguesa; 2. na agricultura, tanto voltada para a subsistência, quanto
no trabalho nas grandes lavouras de monocultura destinadas ao mer-
cado externo; 3. também na mineração, com destaque para os sossos
e os axantes, cuja habilidade na extração e em ourivesaria merecem
destaque. Além da mineração e da agricultura, os homens e mulheres
africanos e afro-descendentes foram, desde o século XVII, a principal
força também nos trabalhos urbanos em geral e, não obstante, nos
domésticos, dentre inúmeros outros setores e exemplos possíveis de
trabalho subalternizado.
As habilidades e a inteligência dos africanos e dos afro-des-
cendentes foram e (são) fundamentais para a constituição do Brasil.
Podemos perceber sua influência em diversos elementos da cultura
nacional. O samba, a capoeira, o maculelê, o reisado, a congada, o
maracatu são exemplos, dentre muitas outras manifestações culturais,
cujas raízes remetem à força criativa dos afrodescendentes. A religio-
sidade destes povos não podem ser esquecidos, sobretudo a contri-
buição Jeje e Nagô, bem como dos povos bantus, para a elaboração do
Calundu, do Candomblé, da Umbanda, do Tambor-de-Mina e outras
práticas religiosas de origem afro no Brasil.
Em nossas docências compartilhadas, iniciamos a abordagem
dos temas pela análise e interpretação das letras de rap selecionadas
para cada aula. No caso de nosso exemplo, apresentamos a interpre-
104 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

tação de apenas uma letra de rap, mas em nossas docências comparti-


lhadas recorremos a mais produções do gênero.
Após refletir em conjunto com os alunos sobre o tema cen-
tral do rap, pediamos para que cada um, individualmente, destacasse
o trecho que consideravam mais significativo ou interessante, para,
então, debater com a turma sobre os principais pontos levantados.
Com esta atividade preparatória foi possível perceber os pontos mais
relevantes para os alunos de determinada classe.
No caso, a letra de Serviço de preto levou-nos a refletir, tanto
sobre as origens africanas do Brasil, como sobre as dificuldades e as
estratégias de sobrevivência e de resistência dos afro-brasileiros no
período escravista, bem como sobre o racismo vigente na sociedade
contemporânea.

Bibliografia e Webgrafia
AMARAL, Mônica. O que o rap diz e a escola contradiz: um
estudo sobre a arte de rua e a formação da juventude na periferia de
São Paulo. São Paulo: Alameda, 2016.
AMARAL, M. do e CARRIL, L. O hip hop e as diásporas afri-
canas na modernidade: uma discussão contemporânea sobre cultura
e educação. São Paulo: Alameda Ed./FAPESP, 2015.
DOMINGUES, Petrônio.  Movimento negro brasileiro:  al-
guns apontamentos históricos.  Tempo  [online]. 2007, vol.12, n.23,
pp.100-122. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/
v12n23a07.pdf. Acesso em outubro de 2017.
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira.  Movimento negro e edu-
cação.  Rev. Bras. Educ.  [online]. 2000, n.15, pp.134-158. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n15/n15a09.pdf. Acesso em ou-
tubro de 2017.
GOMES, Nilma Lino. Movimento negro e educação: ressigni-
ficando e politizando a raça. Educ. Soc. [online]. 2012, vol.33, n.120,
pp.727-744. 
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 105

HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática mo-


ral dos conflitos sociais. 1ª. Ed. São Paulo: Editora 34, 2003.
HILL, M. Batidas, rimas e vida escolar: pedagogia hip-hop e as
políticas de identidade. Petrópolis: Ed. Vozes, 2014.
MATTOSO, Katia. Ser escravo no Brasil. Trad. James Amado.
São Paulo: Brasiliense, 2001.
MUNANGA, K. “Por que ensinar a história da África e do ne-
gro no Brasil de hoje?”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.
62. 2016.  P. 20-31.
MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: iden-
tidade nacional versus identidade negra. 3ª Ed. São Paulo: Autêntica,
2004.
PEREIRA, AMILCAR. “A lei 10.639/2003 e o movimento ne-
gro: aspectos da luta pela “reavaliação do papel do negro na história
do Brasil”. Cadernos de história, Belo Horizonte, v. 12, n.17, 2011.

Links das imgens acessados em fevereiro de 2018:


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/14/
Ann_Zingha%2C_queen_of_Matamba.jpg
Manikongo João I of Kongo, alias Nzinga a Nkuwu or Nkuwu
Nzinga. https://en.wikipedia.org/wiki/File:Jean_Roy_de_Congo.jpg
http://www.aacdd.org/tl_files/events/2011/07/IMA/IFE_art.
jpg
http://static.messynessychic.com/wp-content/uploa-
ds/2016/03/Amazons_Dahomey_P-660x357.jpg
https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/87/33/45/87
3345a739f6f5a7a0e3a647df7a5ebf--richest-man-king-of-kings.jpg
http://www.ancient-origins.net/sites/default/files/field/image/
Axum.jpg
http://www.ancient-origins.net/sites/default/files/field/image/
Fallen-Kingdom-connection.jp
106 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

h t t p : / / a n c i e n t e g y p t s w a g . w e e b l y. c o m / u p l o a -
ds/4/4/3/7/44379973/8795701_orig.jpg
https://assets.answersingenesis.org/img/cms/content/content-
node/header_image/ancient-egypt.jpg
http://www.egyptarchive.co.uk/html/cairo_museum_54.html

(Footnotes)
1 GARNET, Daniel., PEQNOH e CAMARGO, Phael. Serviço
de preto in: GARNET, Daniel & PEQNOH. Avise o mundo. Pegada de
gigante: Piracicaba, 2015. Faixa 10. Videoclipe disponível em https://
www.youtube.com/watch?v=bkvjsqv-gHo. Maiores informações no
site da gravadora independente, da própria dupla de rappers: http://
www.pegadadegigante.com/#!noticias/c1xva. Letra disponível em
http://www.vagalume.com.br/daniel-garnet-peqnoh/servico-
-de-preto.html#ixzz44WOoHlTm. Acessado em maio de 2016.
2 Pode-se recorrer à interpretação do rap Tô na luta, da Karol
Conká (2016) para iniciar as discussões e os estudos sobre o reino
de Kush. A música procura valorizar a força e a luta das mulheres a
partir do exemplo da lutadora olímpica Joyce Silva, suscitando refle-
xões sobre a presença das mulheres na história e a importância do
reconhecimento e da valorização do papel feminino para a constru-
ção da sociedade. No caso, a civilização kushita tinha o matriarcado
como uma de suas formas de governo, política estabelecida desde a
antiguidade. Em nossas docências, recorremos às reflexões suscitadas
por essa letra da rapper Karol Conká para introduzir a história da
Luíz Mahin, abolicionista mãe de Luís Gama que teria participado de
diveras lutas sociais na Bahia, como a Sabinada e a Revolta dos Malês,
que estudamos por meio da história de Luíza.
3 Sobretudo para a seção sobre os povos Iorubás seria inte-
ressante, além da introdução do tema a partir da reflexão sobre a le-
tra de rap selecionada para essas docências, uma visita ao acervo do
Museu Afro-Brasil onde se pode acompanhar as relações culturais e
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 107

a influência da tradição dos povos iorubás na formação da sociedade


brasileira, com ênfase em suas práticas religiosas. O Museu oferece
visitas guiadas e realiza parceria com escolas para visitação. O Museu
Afro Brasil agenda visitas mediadas para os seguintes dias e horários:
Terça a sexta-feira 9h30, 11h30, 13h30 e 15h30; Sábados 10h30 e 14h;
Domingos 11h. Fonte: http://www.museuafrobrasil.org.br/educacao/
acoes-de-nucleo. Disponível em fevereiro de 2018.
4 “África: Diversidade e Permanência: Núcleo dedicado à ri-
queza cultural, histórica e artística dos povos africanos. Exibe obras
das mais variadas funcionalidades e concepções estéticas, que de-
monstram a competência técnica dos seus autores e exemplificam
a imensa diversidade desse continente. Nas vitrines estão expostas
desde máscaras e estatuetas feitas em madeira, bronze e marfim até
vestimentas bordadas em fios de ouro, todas originárias de diferentes
países e grupos culturais como Attie (Costa do Marfim), Bamileque
(Camarões), Luba (Rep. Democrática do Congo), Tchokwe (Angola)
e Iorubá (Nigéria). Museu Afro-Brasil. Para mais informações acesse:
http://www.museuafrobrasil.org.br/programacao-cultural/exposico-
es/longa-duracao. Disponível em fevereiro de 2018.
5 Para esta seção de nossa abordagem seria interessante recor-
rer ao documentário Atlântico negro Na rota dos orixás (1998), como
fonte. O documentário apresenta a relação das religiões de matrizes
africanas brasileiras com a religiosidade da costa oeste africana, so-
bretudo os povos jejes e iorubas. BARBIERI, Renato. Atlântico negro
Na rota dos orixás. 1998. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=5h55TyNcGiY. Acesso em fevereiro de 2018.
6 Para introduzir esta seção, também podemos recorrer ao rap
“Raiz de glórias”, do grupo paulistano Z’África Brasil, “Raiz de glórias”
in: Z’áfrica Brasil. “Tem cor age”. YB Music: São Paulo, 2006. Faixa 01.
e/ou a letra de “Zumbi”, de Jorge Ben Jor. JOR, Jorge Ben. “Zumbi”
in: JOR, Jorge Ben. “A tábua de esmeralda”. Philips records, Rio de
Janeiro, 1974. LP, Lado B, faixa 02.
108 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

7 Para mais palavras de origem africana no português-brasi-


leiro: https://www.normaculta.com.br/palavras-de-origem-africana/.
Acesso em fevereiro de 2018.
8 Para conhecer algumas comunidades de remanescentes
de quilombos no Brasil vale à pena conferir a matéria feita pela TV
Brasil:Quilombos – Caminhos da reportagem, TV BRASIL. 50 min.
Disponível em: http://tvbrasil.ebc.com.br/caminhosdareportagem/
episodio/quilombos
Cap. 3. Hiphopnagô:
letramentos rítmicos e
sonoros
110 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Apresentação
A docência compartilhada do Hiphopnagô, conduzida pelas
mestrandas Cristiane Dias e Maria Tersa Loduca, em parceria com
a Profa Rosana Divino (EMEF Saturnino Pereira), tinha como ob-
jetivo fortalecer os elementos musicais e de dança contemporâneos
contemplando o contexto social no qual se inserem as culturas ur-
banas, cultivadas especialmente pela juventude afrodescendente.
Tomando como referência os estilos musicais rap e funk, e a dança
de rua breaking – tomando o corpo como elemento fundamental da
afro-memória- procurou-se relacioná-los com a herança cultural tra-
zida pelos africanos escravizados, uma vez que tais estilos musicais
e danças populares urbanos faziam ressoar alguns ritmos oriundos
da diáspora e da cultura popular, tais como o batuque e o maxixe.
Neste sentido, o tambor foi o ponto de intersecção entre o ancestral e
o contemporâneo trazendo à tona o sentido de humanidade aos (as)
alunos (as), restituído pelo devir negro da cultura de matriz africana.
O contato com o passado fez ecoar uma dor ancestral e coletiva por
meio das lutas dos escravizados no Brasil, ao mesmo tempo em que
se evidenciou a resistência, a música, o canto, a dança que serviram
como dispositivos de elaboração psíquica - individual e coletiva - ao
serem ressignificados na atualidade por meio do hip-hop para curar as
feridas do passado e do presente.
Dado o distanciamento da cultura escolar em relação às cultu-
ras juvenis, evidenciou-se a necessidade de pesquisar novas situações
didáticas, em que se priorizassem linguagens, cujas formas de expres-
são estética contivessem o que alguns autores chamam de letramentos
de (re) existência, ou seja, envolvendo outras leituras de mundo, como
o fazem particularmente os rappers, com sua crítica áspera e contun-
dente em relação à sociedade brasileira excludente e racista. O bre-
aking surgiu como uma das linguagens do hip-hop bastante apreciada
pelos alunos (as), trazendo consigo a possibilidade de se explorar uma
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 111

rica combinação entre os movimentos da capoeira, do frevo e da dan-


ça de rua, que estiveram presentes em suas origens no bairro negro do
Bronx em Nova York.
Esta docência mixada entre a cultura de rua (hip hop) e as cul-
turas ancestrais oriundas dos povos Nagôs permitiu que se explorasse
especialmente as ressonâncias do tambor nas danças e revoltas dos
escravizados do passado (como na Revolta dos Malês), mas também
nas rodas de capoeira, de samba, de candomblé e que ainda repercu-
tem na memória musical e corporal dos afrodescendentes. Um aspec-
to que foi amplamente explorado por meio da dança breaking, como
uma forma de criar novas perspectivas para o futuro da juventude
negra e periférica, além de provocar tensões no currículo, de modo
a contribuir para um ensino capaz de dialogar com as necessidades
contemporâneas dessa juventude.

Hiphopnagô: letramentos rítmicos e sonoros

Cristiane Correia Dias1


Maria Teresa Loduca2

Introdução
Este capítulo3 pretende sugerir atividades com base nas
ações realizadas em sala de aula com os alunos (as) do oitavo ano
do Fundamental II, em docência compartilhada entre a Disciplina
de Língua Portuguesa, a dança breaking e a música, na EMEF Des.
Saturnino Pereira, localizada na Cidade Tiradentes. A escola faz parte
da Diretoria Regional de Ensino (DRE) de Guaianases.

1 Mestranda da FEUSP e dançarina de breaking – cultura hip hop.


2 Mestranda da FEUSP e trompetista.
3 A pesquisa intitulada Hiphopnagô: letramentos rítmicos e sonoros foi rea-
lizada em parceria com a Prof Rosana Divino( EMEF Saturnino Pereira).
112 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

O projeto está alinhado à Lei 10.639/03, que altera as Diretrizes


e Bases para a Educação Nacional conforme descrito no caput do
Art. 26-A da Lei 9394/964 e tornou obrigatória a implementação de
estudos sobre a história da África e da cultura afro-brasileira e sua
incorporação no currículo a fim de que se proponham novas situa-
ções didáticas envolvendo as relações étnico-raciais, sociais e peda-
gógicas dentro do processo de aprendizagem. Neste sentido, levou-
-se em consideração os seguintes princípios das Diretrizes Nacionais
para a Educação Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira de 2004:

Consciência Política e Histórica da Diversidade - a proposta


da pesquisa era construir uma atmosfera em que todos fossem ou-
vidos - professora, alunos (as) e nós, artistas e pesquisadoras – per-
mitindo que as negociações fossem flexíveis e passíveis de mudança,
rumo à construção de uma educação justa e democrática.
Fortalecimento de Identidades e de Direitos - por meio de pes-
quisas e relatos das histórias que nos foram negadas, foi possível tocar
na dor ancestral da população negra, ao mesmo tempo, em que se pro-
moveu uma virada criativa que possibilitou o engajamento dos alunos.
Ações Educativas de Combate ao Racismo e a Discriminação-
Este princípio foi fundamental na construção do nosso projeto, pois

4 Cf anexo no final do capítulo.


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 113

permitiu evidenciar a valorização da oralidade, da corporeidade e da


arte, ao lado da escrita e da leitura. A oralidade, o canto e a dança
trouxeram questões referentes à violência e ao racismo instituciona-
lizado, fazendo emergir a resistência do negro por meio das lutas dos
escravos no período abolicionista, ao mesmo tempo em que revelou
a potencialidade e força do (a) jovem negro (a) da favela por meio do
hip-hop. Esta intersecção entre passado e presente criou um reduto de
criatividade e permitiu a construção de uma consciência negra.
Também foi levado em consideração os Direitos de
Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e Autoral da Língua
Portuguesa de 2016, ao priorizar as práticas sociais do componente
curricular por meio da construção de um plano de ensino que ga-
rantia a voz de todos (as), que era reorganizado a todo momento de
acordo com as necessidades socioculturais da classe e das exigências
curriculares da disciplina. As atividades foram construídas a partir de
práticas sociais pautadas na oralidade e nos diversos tipos de letra-
mentos propostos pelo grupo.

Neste sentido, deixaremos como sugestão para o educador


algumas atividades em sala de aula que se inter-relacionam com al-
guns eixos do Currículo da Cidade do Ensino Fundamental da Língua
114 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Portuguesa de 20185 e que possam colaborar com a produção do ciclo


autoral que tem como característica:
Incentivar o papel ativo dos estudantes no currículo foi um
dos eixos norteadores do trabalho a partir da pesquisa dos temas pro-
postos e compartilhados no grupo. Temos como exemplo a apresen-
tação do instrumento de matriz africana, o atabaque, exibido por dois
alunos que tomaram a iniciativa de compartilhar essa experiência
com o grupo, contando com a mediação da pesquisadora e musicista.
A imagem acima refere-se ao trabalho de pesquisa sobre os gostos
musicais de todos (as) os participantes: professora, pesquisadoras/
arte-educadoras e alunos (as).
Fomentar a investigação, leitura e problematização, como
ocorreu a propósito da palavra macumba que surgiu inicialmente
de forma pejorativa, associada ao tambor, mas que, com o passar do
tempo, conforme as discussões foram sendo amparadas por leituras e
reforçadas com o passeio ao Museu Afro, passaram a ser associados
às religiões de matriz africana, que foram amplamente discutidas e
passaram a ser respeitadas por todos.

5 Embora as atividades descritas neste material tenham ocorrido no ano


de 2016, por ocasião da elaboração deste caderno pedagógico, em feve-
reiro de 2018, foram observadas também as orientações curriculares da
SME em vigor.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 115

Transformar professores e estudantes em produtores de co-


nhecimento foi também uma preocupação, uma vez que a pesquisa
transformou professora, pesquisadoras e alunos (as), em pesquisado-
res viabilizando a construção de um trabalho conjunto e interdisci-
plinar. No ano letivo de 2017, a classe estava no 9° ano e a profes-
sora Rosana participou da Docência Compartilhada com o Mestre
Valdenor dos Santos e juntos com outros pesquisadores e professores
do projeto construímos uma apresentação de abertura para os profes-
sores da rede pública da DRE de Guaianases com teatro, rap, breaking,
capoeira e poesia.
116 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

A construção interdisciplinar: linguagens estéticas e


orais em diálogo com as capacidades de escrita e leitura
Com o objetivo de ressaltar a importância da leitura de mundo
da população afrodescendente de modo a contemplar a diversidade e a
riqueza de sua herança cultural, buscou-se oferecer aos alunos os diver-
sos tipos de letramentos como prática social a fim de tornar visíveis os
elementos negados da cultura negra, fazendo ressoar a ancestralidade
afro-brasileira, mediante aspectos estéticos, rítmicos e musicais.
Neste sentido, as diversas linguagens trazidas pelos (as) jovens
pautadas na musicalidade do samba, do funk e do rap foram funda-
mentais para que estimulássemos a classe a exercer um protagonismo
dentro e fora da comunidade escolar que foi potencializado pelo re-
pertório artístico das pesquisadoras. Um repertório que acionou uma
pluralidade de linguagens tecnológicas, criando uma rede de compar-
tilhamento de conhecimentos para além do espaço escolar entre pro-
fessora, pesquisadoras e alunos (as), de modo que todos (as) se torna-
ram pesquisadores das práticas e ações desenvolvidas em sala de aula.

Hiphopnagô: axé!
O tema central da docência compartilhada foi desenvolvido
por meio da apresentação do livro de João José Reis, Rebelião Escrava
no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835 (2003)6, em que se
evidenciaram as formas de resistência e estratégias de comunicação
deste grupo de africanos que se rebelou na Bahia. Estratégias essas,
que, de acordo com o autor, encontravam-se intimamente relaciona-
das às formas de expressão estética, representadas pela sonoridade
dos tambores africanos, que atuou no contexto da revolta como um
meio de comunicação poderoso, um código interno cujos segredos só
os envolvidos conheciam.

6 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos


Malês em 1835. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 117

A resistência cultural presente na revolta foi relacionada em


sala de aula com outra forma de resistência, contemporânea: o le-
tramento como uma prática social de “reexistência”, que, em oposi-
ção ao modelo grafológico, valoriza a corporeidade dos jovens por
meio das performances da dança, do ritmo, da oralidade, da escrita,
com base em situações didáticas proporcionadas pela pedagogia hip-
-hop. Professora e pesquisadoras consideraram de suma importância
abordar o assunto para contribuir para a descolonização do currícu-
lo. A contribuição da música e da dança para a disciplina de Língua
Portuguesa se deu justamente por meio da reinvenção deste corpo, ao
trazer a escuta, a oralidade e a escrita, com uma abordagem que pro-
porcionasse a ressignificação da afro-memória sob a ótica das lingua-
gens estéticas do hip-hop. Um dos pontos fundamentais para o suces-
so do projeto era que, além da participação conjunta entre professora,
118 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

pesquisadoras e alunos (as) no planejamento e execução das aulas,


eram realizadas ainda, avaliações periódicas do trabalho.
Em uma atividade em que foi priorizada a escrita, os grupos
foram divididos de uma maneira que professora, pesquisadoras e alu-
nos participassem ativamente das discussões e decisões trabalhadas
em conjunto. Assim, em cada subgrupo, foram eleitas as seguintes
palavras: dançar, preconceito, cantar, valor, etc. Estas palavras fariam
parte das linguagens artísticas e de composição de letras de rap que
seriam posteriormente cantadas, tocadas e dançadas pelos (as) jovens,
os quais, por sua vez, teriam que construir no mínimo quatro versos,
ou seja, um quarteto de estrofes. Para cada um dos versos, elegeu-
-se um leitor. Segue um exemplo do resultado desse momento de
improviso:
“Numa competição onde se tem que dançar/Importante de tudo
não é ganhar/Importante é participar/Para mostrar aquilo que eu con-
sigo realizar!”
Em outra atividade, propusemos a letra de rap Antigamente
Quilombo, hoje periferia7, em que o rapper Gaspar refere-se a Zumbi
dos Palmares como inspirador de suas rimas, aspecto fundamental
para a escolha da música, uma vez que se relacionava à história de
resistência negra no Brasil. Os versos da letra foram recortados e se-
parados, tomando o cuidado de ocultar partes da letra que poderiam
identificar qual era música, já que a ideia era justamente que os (as)
jovens recriassem seus próprios poemas.
O processo de desconstrução da letra de rap prosseguiu com
cada grupo escolhendo deste fragmento de letra, quatro palavras que
fossem significativas. Em seguida, um representante foi eleito para re-
alizar a leitura das palavras selecionadas e escrevê-las no quadro ne-
gro. Todas as palavras eleitas foram escritas em tiras de papel sendo

7 Z’Africa Brasil. Antigamente quilombo, hoje periferia. 2002. CD. Faixa 4


(5min).
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 119

colocadas em um saco para a realização de um sorteio. Após o sorteio,


as novas palavras ampliaram as possibilidades do processo criativo
para a construção dos versos. As palavras escolhidas, de alguma for-
ma, conservavam a mensagem do rap original, reconstruídas segundo
a expressão dos (as) alunos (as).

Construção do grupo I:
No morro vai ter Guerra com carro blindado
No meu DNA de negro sou muito injustiçado
Passei para deixar o recado
SOS planeta bagunçado
A frase dita
Não será esquecida....

Construção do grupo II:


Baile de favela que tem na viela
Os policiais faz uma guerra na favela
Os caras tão no baile e fica manipulado
Os policiais ta na brisa e já chega atirando e faz uma guerra
Com os caras lá do morro que faz a segurança na favela

Construção do grupo III:


Ae tamo no corre na favela
Tirando uma onda com a magrela
120 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Na periferia somos oprimidos estamos sempre na guerra


Lamentos, choro, na viela...

Construção do grupo IV:


O A da alma
Mundo A vida
Alguém sem A de alma
Viva outro A de Alvo
A pessoa que caça Alvos
Viva Alvo
Alguém sem A de Alma
Vira outro A
A de Alvo
E A Alma (que) muda A Alma
Alguém sem A de alma
Viva outro A
De Alvo
A pessoa que caça Alvo
Na vida
Vira Alvo
As pessoas que modificam A cidade
Na verdade, são um bando de covarde
Neste processo, foi observado que o grupo em que estava a
pesquisadora Teresa se divertia muito tentando criar uma espécie
de trava-língua8 identificado na letra da música: É o Z Zumbi que
Zumbazido Zuabido Zumbizado! Após várias gargalhadas, quando
não conseguiu falar corretamente a frase na primeira tentativa, a
pesquisadora chamou a atenção da pesquisadora Cristiane para esta
possibilidade proporcionada pela escuta da voz do aluno, de forma

8 Trava-língua é uma espécie de jogo verbal, oriundo da cultura popular,


que foi empregado na composição do rap Antigamente quilombo, hoje
periferia.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 121

que rapidamente decidiram propor a atividade para toda a classe. A


frase foi escrita na lousa e as sílabas foram trabalhadas ritmicamente.
Dividimos os alunos em dois grupos distintos para competirem entre
si e ver qual deles conseguiria pronunciar corretamente. Por fim, a
professora Rosana aproveitou para desenvolver algumas modalidades
linguísticas, com ênfase no aspecto fonético.
Outro aspecto importante das atividades do projeto foi a con-
tribuição para a desconfiguração da disposição espacial dos (as) alu-
nos (as) em sala de aula (dispostos em colunas, um atrás do outro,
voltados para a lousa). Nossa intenção era que pudéssemos nos rea-
comodar de maneira a romper com os padrões impostos pelo modelo
de educação disciplinar da cultura eurocêntrica vertical e centralizada
na figura do professor. Assim, as atividades foram direcionadas para
a disposição em roda, que passou a ser o lugar comum para a troca
de ideias, acordos e para o desenvolvimento das atividades em geral,
tanto teóricos, quanto nas atividades com as linguagens artísticas.
Ao resgatar e reproduzir a dinâmica da roda na sala de aula,
foi encontrado um ponto de intersecção entre o conceito de cypher9
para os (as) dançarinos (as) de breaking e de roda para os africanos,
assim discutimos as três experiências estéticas trazidas com a diáspo-
ra: a música, o canto e a dança. Estas experiências nortearam o nosso
projeto e viabilizaram a criação de uma situação didática na qual os
(as) alunos (as) tiveram a possibilidade de identificar algo de si no
outro, ou seja, nas práticas comunitárias, buscando um caminho re-
flexivo para entender a si mesmos e entender o meio no qual estavam
inseridos. Assim, as atividades do ano foram impulsionadas por uma
espécie de pacto entre pesquisadoras, professora e jovens enfatizando

9 Cypher – Roda de breaking, um espaço sagrado para os (as) dançarinos


(as), lugar onde se tem a oportunidade de apresentar a sua dança e de ser
reconhecido pelos demais dançarinos (as).
122 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

a importância do respeito às preferências individuais sobre músicas,


crenças religiosas e culturas.

Ao trazer o movimento para a sala de aula, pretendeu-se valo-


rizar o poder de luta e de ressignificação da cultura, por meio de três
pontos que achamos fundamentais: a comunicação, o segredo e o lú-
dico, pensando, a partir de um corpo rítmico e ancestral, em tocar nos
temas do passado e do presente por meio da desconstrução e reflexão
sobre o racismo institucionalizado.
A desconstrução do preconceito direcionado à sonoridade dos
instrumentos de matriz africana, por exemplo, serviram como objetos
de estudo para desmistificar o preconceito identificado pelas pesquisa-
doras e pela professora na voz de alguns alunos que genericamente cha-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 123

mavam de “macumba” todo som advindo destes instrumentos musi-


cais, provocando a discussão sobre essas questões durante as atividades.

Apresentação dos instrumentos de matriz africana e


construção do som
O caxixi10 é um instrumento usado no Brasil, em conjunto com
o berimbau na capoeira, entre outros ritmos populares, foi apresen-
tado aos (as) alunos (as), visando a observação do material que teria
sido utilizado para confeccionar artesanalmente aquele caxixi.
Já o agogô11 tem como característica básica a produção de dois
sons diferentes, um agudo e um grave. Teresa enfatizou que o agogô de
matriz africana era feito de castanha artesanal sendo mais um dos ins-
trumentos de tradição africana, utilizado amplamente na música po-
pular brasileira em escolas de samba e nas práticas musicais familiares
dos afrodescendentes, como no samba de roda. No caso do agogô, a
intenção foi apresentar dois tipos deste instrumento, um artesanal e
outro industrializado de metal e pintado de preto. Observou-se como
o agogô industrial destituía de valor histórico o instrumento musical,
ao desvinculá-lo de suas origens, que remontava à tradição musical
africana, bem como do trabalho artesanal envolvido em sua criação.
Foi feita uma observação sobre os materiais: o agogô de castanha re-
metia a elementos da natureza, cuja ligação era de suma importância
para os povos africanos. O timbre da madeira, por exemplo, remetia
à natureza, ao aconchego, a suavidade, proporcionando um certo tipo
de tranquilidade; já o instrumento de metal, apesar de apresentar a

10 Instrumento de origem africana que consiste num cesto de palha, con-


tendo sementes que se entrechocam quando sacudido Cf. o livro Música
africana na sala de aula: cantando, tocando e dançando nossas raízes ne-
gras, de Lilian Rocha de Abreu Sodré. São Paulo: Duna Dueto, 2010.
11 Instrumento percussivo composto de duas a quatro campânulas de ta-
manhos diferentes, ligadas entre si pelos vértices. Para se tirar som deste
instrumento, usa-se uma baqueta de madeira. Sodré. 2010. Op.cit.
124 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

mesma estrutura na produção do som, com um som mais agudo e


outro mais grave, ganhava uma nova aparência que não lembrava em
nada o outro agogô artesanal, pois o timbre metálico é estridente, cor-
tante, agressivo aos ouvidos, uma vez que sua própria potência sonora
é maior devido à reverberação do metal.

O atabaque12 foi fundamental para o trabalho realizado pelas


pesquisadoras, uma vez que a batida do tambor ressoava de um modo

12 Designação geral dos vários tipos de tambor usados nos cultos afro-bra-
sileiros. No sentido estrito, é um instrumento de percussão que consiste
em um corpo de madeira cilíndrico e afunilado, revestido, na extremi-
dade mais larga, por uma pele de animal. Cf: Lopes, Nei. Enciclopédia
Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 125

especial nos ouvidos dos (as) alunos (as), pois remetia à musicalida-
de ancestral, também presente no break beat13 da música. O break
beat, elemento estético central nas batidas de rap e na dança break,
constituiu-se em uma forma contemporânea de ressignificação da
sonoridade ancestral dos tambores. Deste modo, o atabaque eviden-
ciou, por meio da música e da dança, novas possibilidades estéticas
de autoafirmação da identidade dos jovens alunos afrodescendentes.

Breaking: Vamos dançar!


Foram desenvolvidos alguns exercícios referentes aos funda-
mentos da dança breaking: o footwork14 (tree step, for step) e o drop15
intercalando o som e o silêncio vindos dos instrumentos musicais de
origem africana, tocados por alguns (as) alunos (as), interrompendo
a execução musical com um gesto, para explicar a toda a classe que o
silêncio causava uma expectativa para o som seguinte, colocando-o
em destaque. O objetivo foi também relacionar o som ao movimento
e o silêncio à imobilidade, estabelecendo uma conexão corporal com
o estímulo sonoro.
Passos aprendidos pela classe
O breaking é um dos elementos da cultura hip hop, seus fun-
damentos e variações (passos que deram origem à dança) servem de
base para que o b-boy/b-girl desenvolva a sua dança com criatividade
e construam as suas sessions (uma entrada) e combos (conjuntos de
passos com impacto).

13 Break beat: tempo da batida alargado pelo DJ Kool Herc possibilitan-


do que os (as) dançarinos (as) dançassem por mais tempo na batida da
música.
14 Footwork: passos feitos no plano baixo, ou seja, no solo.
15 Drop: Go Down são os passos transitórios, realizados para a mudança de
planos.
126 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Nos anos de 1980, os dançarinos de breaking da equipe


Rocksteady Crew, nos EUA, conferiram uma determinada configura-
ção à dança e a documentaram para que os passos não se perdessem
ou entrassem em desuso; desse modo, foram criadas as nomenclatu-
ras baseadas nos seguintes fundamentos: top rock, footwork / legwork,
freeze e power move, no interior dos quais foram instituídas as nomen-
claturas de cada passo. Com isso, universalizaram-se os critérios de
avaliações em batalhas, bem como em campeonatos mundiais. Segue
abaixo a relação de passos aprendidos em sala de aula:
Top Rock: movimentos realizados no plano alto com os pés.
Indian Step: (passo do índio) – passo clássico – original, sua exe-
cução é realizada abrindo e cruzando a perna contrária à frente do corpo,
as variações permitem trabalhar a lateralidade dos (as) alunos (as).
Kickout: movimento de chutar, pisar e jogar o pé oposto para
a lateral se assemelha ao Indian Step. Kickout-Swing: é uma variação
do Kickout incluindo o movimento circular dos quadris.
Truck: (caminhão) - esse passo envolve movimentos que pa-
recem como se estivéssemos dirigindo um caminhão enquanto se faz
o movimento (indian step) indo de um lado para o outro dando a
impressão de um pulo prolongado.
Salsa Rock: passo oriundo dos movimentos da dança de salão
chamada salsa.
Go-Dow: mudança de plano, transição entre plano alto e baixo.
Drop: agachamento simples para mudança de plano.
Kicout: chuta-se para lateral, coloca o pé no chão e agacha.
Kicspin-High: movimento que se assemelha à rasteira alta da
capoeira.
Kickspin-Low: movimento que se assemelha a uma rasteira
baixa da capoeira.
Sweep: um chute no alto com uma descida brusca.
Swing: balançar os quadris de um lado para o outro até chegar
ao solo, note que é diferente do Zig-zag.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 127

Walk In: colocar uma das mãos no chão e se posicionar para


realizar o footwork.
Zig-zag: descer balançando os joelhos de um lado para o outro.
Footwork / Legwork: movimentos no solo realizado com os
pés e mãos.
CC Long: Atualmente conhecido como 6 step (six step) é um
nome que a Rock Steady Crew atribuiu a esse estilo de footwork que
leva 6 passos para completar uma volta.
4 STEP (four step): footwork que leva 4 passos para completar
uma volta.
3 Step Baby Swipe: Estilo de footwork feito em 3 passos, sendo
que cada um deles é marcado de maneira forte, como um corte, uma pan-
cada. Criado entre o fim da década de 70 e o começo da década de 80,
quem mais dançou esse movimento foi Ken Swift (footwork rock steady).
Freeze:
Air Baby: É a posição do baby freeze, mas balançando sobre as
mãos como numa parada de mão, com um dos cotovelos no joelho e
algumas vezes em uma só mão) era chamado de “dady bear”.
Baby Freeze (original): Caindo no solo de lado chutando o
dedão apoiando o cotovelo na barriga.
Baby Freeze: Pressão balançando sobre as mãos no chão com
uma perna no joelho da outra (às vezes feito com ambas as pernas
abrindo e fechando como tesouras).
128 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 129

Articulações e continuidade da trajetória escolar

Apresentação e intervenção dos alunos (as) para o Fundamental I


e II durante os intervalos.
Esta foto se refere à participação dos (as) alunos (as) na mostra
final do projeto no ano de 2015 em parceria da linguagem estética
breaking com a disciplina de Educação Física. A classe propôs para o
evento um trabalho gráfico em forma de painel com a produção teóri-
ca e uma apresentação de dança. Os conhecimentos adquiridos foram
compartilhados com os colegas da escola pelos (as) alunos (as), em um
workshop após a apresentação, sob a coordenação de Cristiane. Esta
classe viria a ser a mesma que fez parte da experiência de Docência
Compartilhada em 2016 Hiphopnagô: letramentos rítmicos e sono-
ros. Deste modo, um vínculo já havia sido criado entre a pesquisado-
ra, a linguagem da dança e a classe, sendo este um ponto importante
considerado por ocasião da reunião pedagógica, que proporcionou a
integração dessas duas linguagens artísticas, música e dança.
II Seminário da EMEF Saturnino Pereira na Fábrica de Cultu-
ra da Cidade Tiradentes para educadores da rede da DRE de
Guaianases em 2017.
130 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

A apresentação da prática das atividades ocorridas entre 2016


e 2017 foram expostas pelo grupo em que professora, pesquisador
(as) e três representantes da classe puderam relatar, por meio das suas
experiências, o significado do curso para eles (as). Os (a) alunos (a)
deram seus depoimentos e foi emocionante, ao demonstrarem o sig-
nificado da cultura hip-hop em suas experiências na escola. No final,
grande parte dos professores em curso choraram.

Uma proposta de plano de aula da dança breaking para


os arte-educadores (hip-hop) e professores da rede
pública

Atividade 1
Roda de Apresentação para o grupo e troca de experi-
ências, em que se deve procurar saber qual o conhecimento do
grupo referente à Cultura hip hop-breaking;
Atividade 2
Aquecimento ritmado: good foot e danças sociais
Introdução a dança breaking:

Top Rock: Indian Step (passo do índio) - passo mais co-


nhecido, top rock original e suas variações com os pés cruzan-
do um a frente do outro, deslocamentos rotações.
Go-Dow: Drop agachar, mudar o plano, Zig-Zag Go-
Down descer balançando os joelhos juntos de um lado para
o outro.
Footwork: Hook-movimento na qual uma perna envol-
ve a outra na frente do tronco feito com pés e tronco em reve-
rencia, e suas variações.
Freeze: Baby Freeze as mãos são usadas para o contra-
peso, com o lado o mais próximo de sua cintura em um coto-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 131

velo e de um joelho no outro, trocando às vezes a colocação


do pé.
Alongamento geral de todos os membros
Conteúdos:

Adaptação e integração do grupo;


Participação em atividades rítmicas e expressivas utili-
zação as habilidades motoras básicas;
Apreciação e valorização da Cultura Hip Hop-breaking
por meio da vivência dos conteúdos estéticos da dança.
Objetivos:

Interagir e conhecer o perfil do grupo;


Orientar os alunos sobre os conteúdos básicos a serem
abordados no projeto;
Vivenciar a mudança de direções (progressões e pro-
jeções) dos níveis (baixo, médio e alto) e dos planos (altura,
largura e profundidade);
Vivenciar os fundamentos teóricos e práticos da dança
breaking.
Avaliação:

Observação na utilização do espaço, bem como a repos-


ta às mudanças circunstanciais do (a) aluno (a);
Assimilação aos conteúdos teóricos e práticos referen-
tes às atividades propostas, bem como a assimilação dos fun-
damentos da dança breaking.
Observação: Este plano foi realizado em uma das ati-
vidades previstas em classe, podendo ser reaproveitado pelos
professores da rede. Para tanto, basta acessar o youtube e clicar
em tutorial de breaking seguido de nome do passo, por exem-
plo: tutorial kickout b-boy Storm – Ver em: https://www.you-
tube.com/watch?v=7SRuyFEZfAI, acesso em 12/02/2018.
132 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Bibliografia
AMARAL, Monica G. T. do. O que o rap diz e a escola con-
tradiz: um estudo sobre a arte de rua e a formação da juventude na
periferia de São Paulo. São Paulo: Alameda Editorial, 2016.
ARTAXO, I.; MONTEIRO, G. A. Ritmo e Movimento.
Guarulhos: Phorte Editora, 2003.
CAPUTO, Stella Guedes. Educação nos terreiros: e como a es-
cola se relaciona com crianças do candomblé. Rio de Janeiro: Pallas,
2012.
HILL, Marc Lamont. Batidas, rimas e vida escolar: pedagogia
hip-hop e as políticas de identidade. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2014.
NESS, Alien. The art of Battle: understanding Judged Boy
Battles. Eastpark: Throwdown Publications, 2008.
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do Levante
dos Malês em 1835. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2003.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma explora-
ção pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negli-
genciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo:
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aula: cantando, tocando e dançando nossas raízes negras. São Paulo:
Duna Dueto, 2010.
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos da reexistência: poesia,
grafite, música, dança: HIP-HOP. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.
Websites
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Caminho da autoria -http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Colecao-
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Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 133

e Africana do ano de 2004, http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-


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Curriculo da Cidade- Língua Portuguesa- http://portal.sme.
prefeitura.sp.gov.br/Curriculo-da-Cidade, acesso em 12/02/2018.
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Disponível em <htpp://www.myspace.com/zuluherval/
blog/517244309 > Acesso em nov. de 2010.
Hip Hop History. Disponível em < htpp://www.zulunation.
com > Acesso em: maio/2009.
DVD
Storm Fundation – An Instructional b-boy DVD – www.stor-
mdance.de. Duração 1h47min. zone: all zones.
Anexo: Lei 10.639/03 altera as Diretrizes e Bases para a Educa-
ção Nacional16
Artigo 26A da Lei nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, ofi-
ciais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira. (Incluído pela Lei nº 10.639, de 9.1.2003)
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo in-
cluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resga-
tando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política perti-
nentes à História do Brasil.(Incluído pela Lei nº 10.639, de 9.1.2003)
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. (Incluído pela Lei nº
10.639, de 9.1.2003)

16 Cf: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/busca?q=Art.+26A+da+Lei+d
e+Diretrizes+e+Bases+-+Lei+9394%2F96 . Acesso em: 19/04/2018
134 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

§ 3o (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.639, de 9.1.2003)


Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino
médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá di-
versos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da po-
pulação brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, eco-
nômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº
11.645, de 2008).
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história bra-
sileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Cap. 4. Conversas com
versos: o rap na disciplina
de História como meio de
estudo autobiográfico
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 137

Apresentação
O projeto “Conversas com versos: o Rap na disciplina de his-
tória como meio de estudo biográfico” trabalhou o hip hop segundo
uma perspectiva histórico-cultural e estética, buscando incentivar e
estimular o engajamento social e cultural dos alunos.
A partir da experiência pessoal de Daniel Garnett como ra-
ppper e o engajamento e conhecimento em História e em Filosofia
do professor Sidnei Leal, foi estabelecida uma parceria que permitiu
uma reflexão sobre a construção da identidade étnica e territorial da
juventude. Inspirando-se em Hill (2009)1, a proposta desse trabalho
foi dar voz aos(às) alunos(as) por meio do rap, conhecer a sua histó-
ria e trabalhar outro viés da história africana, afro-americana e afro-
-brasileira, que dificilmente aparece nos livros didáticos, tomando a
arte de rua como instrumento de afirmação étnica e social. Com o
objetivo de oferecer aos(às) alunos(as) oportunidades para relacionar
a história de vida individual, por meio da autobiografia, e a história
coletiva, procurou-se estimulá-los a pesquisar os elos entre sua vida
e a ancestralidade africana. E, assim, contribuir para a construção da
identidade étnica.
Seria importante observar que a experiência de Daniel com
composição de rap e em batalhas de rima, conferiu às aulas outra di-
nâmica, bastante inovadora e bem aceita pelo professor, o que facilitou
a criatividade poética entre os(as) alunos (as), permitindo que estes
elaborassem sua autobiografia por meio da poesia. E isso foi feito es-
cutando música, batucando, dançando e, simultaneamente, compon-
do. Há momentos do trabalho feito com o Prof. Sidnei, onde esta mu-
sicalidade e expressão corpórea dos(as) alunos(as) aconteciam com
tamanha espontaneidade em combinação com a escrita, que acabou
delineando uma didática de novo tipo, capaz de romper com os câno-

1 HILL, M. L. Batidas, rimas e vida escolar: pedagogia hip hop e as políticas


de identidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
138 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

nes de um ensino cartesiano e claramente abstraído da musicalidade


corpórea, tão presente e apreciada pelas culturas de matriz africana.

Conversas com versos: o rap na disciplina de história


como meio de estudo autobiográfico

Daniel Bidia Olmedo Tejera2

O projeto “Conversas com versos: o Rap na disciplina de história


como meio de estudo biográfico”3 trabalhou o Hip-Hop segundo uma
perspectiva histórico-cultural e estética, buscando incentivar e estimu-
lar o engajamento social, cultural e o aperfeiçoamento dos alunos.
Com base em minha experiência pessoal com o rap, como pes-
quisador e artista, e no conhecimento em História e em Filosofia do
professor Sidnei, que se demonstrou bastante engajado na docência
compartilhada, foi estabelecida uma parceria que permitiu uma refle-
xão sobre a construção da identidade étnica e territorial da juventude
presente na disciplina. Inspirando-nos em Hill (2009), a proposta desse
trabalho foi dar voz aos alunos por meio do rap, conhecer a sua história
e trazer à tona outro viés da história africana, afro-americana e afro-
-brasileira que dificilmente aparecem nos livros, tomando a arte de rua
como instrumento de afirmação étnica e social, guiados pela intenção
de oferecer aos alunos oportunidades para que atuem como pesquisa-
dores de uma história que faz parte de sua ancestralidade. E, assim, con-
tribuir diretamente para a construção da identidade étnica e territorial.
Nesse sentido, consideramos importante a compreensão da
cultura Hip-Hop, com atenção especial ao seu seguimento musical, o
rap. Surgido na década de 1970, num contexto de desemprego, crise
de industrialização e aumento da violência, o hip hop emerge da reur-

2 Pesquisador FEUSP e rapper, Bolsista TTIII FAPESP.


3 Docência Compartilhada com o Prof. Sidnei Gomes Leal da EMEF
Roberto Mange
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 139

banização avassaladora em Nova York para as comunidades negras do


Bronx, e foi criado por jovens negros e imigrantes caribenhos, como
uma forma de expressão cultural (SILVA, 1999).
A fim de transformar a violência das gangues em disputas salu-
tares, estes jovens passaram a organizar festas, objetivando converter
as “rixas” em duelos que envolviam expressões artísticas, envolvendo
quatro elementos: MC (rima), DJ (música), Break (dança) e Grafite
(artes plásticas). A fusão entre o MC e o DJ originou o rap – Rythm
and Poetry – traduzido como Ritmo e Poesia (SOUZA e NISTA-
PICCOLO, 2006). O rap é uma manifestação da linguagem falada,
incorporada a uma melodia trabalhada numa base rítmica repetitiva.
Traz crônicas dos habitantes de um determinado grupo social situado
à margem (ROSA, 2004). No Brasil, o hip hop emerge na década de
1980, na capital paulista, como uma forma de reação dos jovens pe-
riféricos – a maioria não brancos – a tensões sociais, sofridas diaria-
mente pelas profundas desigualdades que as atravessam. Tal vínculo
se torna efetivo a partir do momento em que estes jovens, como res-
posta ao descaso das autoridades, passam a aprimorar seu discurso,
trazendo à tona as mazelas sociais e questões relativas a conflitos ra-
ciais, questionando a ordem social e propondo uma nova perspectiva
de sociedade (SANTOS, 2011).
A ideia de recorrer ao rap, como uma forma de construção po-
ética contemporânea, foi desenvolver a sensibilidade e a expressividade
estética e social entre os alunos. Para tanto, realizamos atividades va-
riadas, como: produção textual, análise de letras musicais, apresenta-
ção e exposição de trabalhos em formato artístico. Promoveram, ainda,
debates sobre a representatividade e história de Zumbi dos Palmares,
a abolição da escravatura, o estudo de músicas de rap que abordam o
racismo e até mesmo a leitura de contos e lendas que traziam de uma
maneira implícita ou explícita as questões étnico-raciais, que serviram
de base para que os alunos produzissem seus textos em forma de versos
e estrofes, além de apresentarem seus trabalhos para a classe.
140 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Tal proposta foi desenvolvida durante dois anos (2016/2017),


semanalmente, com três turmas da 6ª e 7ª séries do ensino fundamen-
tal da EMEF Roberto Mange. No primeiro semestre, foram trabalha-
dos contos, lendas e mitologia; no segundo, a história afro-brasileira;
no terceiro, a história do hip-hop e no quarto, cada aluno produziu o
seu rap autobiográfico, buscando correlacionar o conteúdo anterior à
sua própria história de vida.
Neste sentido, o professor Sidnei e eu conseguimos obter avan-
ços consideráveis com as classes. Jovens que até então não demons-
travam interesse ou se comportavam de maneira apática, passaram
a assumir uma postura mais protagonista e proativa, questionando,
opinando e até produzindo. A produção de texto em forma de rap foi
a principal maneira de dar respostas criativas aos temas abordados
nas aulas, contando com a apresentação dos trabalhos em forma de
recital, sarau, batalha, que foi fundamental para os alunos trabalha-
rem a comunicação e a autoestima.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 141

Apresentação: identificando as rimas e ritmo

Objetivo: Estreitar os laços com os alunos, apresentar a pro-


posta e introduzir os conceitos básicos do rap
Na primeira atividade, seria interessante introduzir questões
estéticas do rap de um modo didático, lúdico e prático. No primei-
ro semestre, pode-se trabalhar com uma literatura infanto-juvenil ou
uma temática específica. A partir do segundo semestre, é interessante
trabalhar figuras da história afro-brasileira, finalizando com uma au-
tobiografia. Como a última atividade será a apresentação de um rap
autobiográfico, seria importante, antes de trabalhar com qualquer li-
teratura ou temática, já fazer a iniciação ao gênero musical, utilizando
a própria história e conhecimento dos alunos por dois motivos: é uma
maneira didática para incorporar a noção de ritmo e rima, e possibi-
lita que, no último dia de docência, seja feita uma comparação entre
o olhar dos discentes para a própria vida, antes e depois do processo,
sendo possível avaliar também o quanto os alunos conseguiram in-
corporar o conteúdo da docência, vendo-se como indivíduos críticos,
criativos e participativos da história.
Como fazer?
1) Quebra-gelo: o professor (a) pode logo no início, cantar uma
música ou recitar uma poesia, autoral ou não. Para aqueles que têm
menos experiência, uma boa opção é a paródia4.
2) Introdução ao rap: antes de explicar teorias sobre a música
ou o movimento hip hop, conduza a seguinte dinâmica para trabalhar
com o “ritmo”:

4 Modalidade de intertextualidade que consiste em utilizar a estrutura


(ritmo, melodia e harmonia) de uma música já existente, alterando ape-
nas o conteúdo, ou seja a letra. Para o tipo de atividade aqui proposta,
vale ressaltar que quanto mais a música parodiada tiver relação com o
universo cultural do aluno, melhor.
142 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

a) Peça de maneira organizada, para que os alunos digam pa-


lavras que tenham a ver com a disciplina em questão, depois que tiver
uma lista razoável, instigue-os a dizer palavras que eles julgam rimar
com as que já foram postas na lousa. Para conferir maior fluência
à atividade, é aconselhável não usar critérios tão fechados para se
definir rima, nem introduzir muitos elementos da parte histórica e
teórica do rap e hip hop. Entraremos nesses detalhes mais adiante.
Exemplo de lista de palavras:
Critério – Mistério | História – Memória | Febril – Doentio
b) Divida a turma em dois grupos, sem tirar ninguém do
lugar (Ex: meninos e meninas ou números pares e números ímpa-
res). Para dividir da segunda forma, basta contar o número de alunos
apontado para cada discente pedindo para que eles guardem que
número são, e na sequência comunicar-lhes que os que têm número
par pertencem a um grupo e os que têm número ímpar, a outro.
c) Feita a divisão dos grupos, todos irão contar até 4, sendo que
um grupo só conta os números pares e o outro grupo só os ímpares,
a contagem deve se reiniciar de maneira cíclica e ritmada, exemplo:
1,2,3,4, 1,2,3,4, 1,2,3,4, 1,2,3,4, 1,2,3,4, 1,2,3,4, e assim sucessivamen-
te. Cada número representa uma batida, a cada 4 batidas (ou 4 se-
mínimas) temos um compasso, cada compasso tem espaço para um
verso5 cantado ou falado. Aqui temos uma marcação de tempo qua-
ternária, que é o formato do rap em geral.
Exemplo de compasso musical:

5 O que é verso. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/o-


-que-e-verso/>. Acesso em: 21 de março de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 143

d) Após ter executado essa ambientação rítmica com os alunos,


os números impares na contagem serão substituídos pelo som (boom)
e os números pares pelo som (pá). O professor, como um maestro,
deve sinalizar e ritmar através de um gesto com as mãos, para que
os alunos possam ter uma direção e o som sair sincronizado, agora
1,2,3,4 passará a ser (1) boom, (2) pá, (3) boom, (4) pá....
e) Agora, o último “pá” deve ser substituído por uma palavra,
até que a classe passe por todas as palavras listadas. Exemplo: (1)
boom, (2) pá, (3) boom, (4) critério, (1) boom, (2) pá, (3) boom, (4)
mistério, (1) boom, (2) pá, (3) boom, (4) história, (1) boom, (2) pá,
(3) boom, (4) memória, etc.
Como cada vocábulo tem um tamanho diferente, eles não vão
começar exatamente onde começava antes o último “pá”, entretanto, o
importante é sentir o ritmo para terminar onde o “pá” terminaria, para
isso, é necessário começar a falar a palavra antes ou de maneira mais rá-
pida. Ambas possibilidades têm valor artístico. Durante este exercício,
a divisão pode ser alterada. Ao invés de ser uma divisão de dois grupos,
pode-se criar um terceiro: um grupo deverá reproduzir o “boom”, outro
o “pá” e o terceiro, falar a palavra, já misturando palavra, ritmo, sonori-
dade e musicalidade. Nesse caso, no tempo (4), enquanto um grupo fala
“pá”, simultaneamente, outro grupo falará a palavra da vez. Para ajudar
ainda mais na incorporação do ritmo, o professor deve ritmar com pal-
mas, estralar de dedos ou apenas gesticular, para que todos saibam a
velocidade com que deverão executar a dinâmica.

6 Compasso Musical. Disponível em: <http://www.descomplicandoa-


musica.com/compasso-musical/>. Acesso em: 21 de março de 2015.
144 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Ao fim da atividade, os jovens podem já produzir uma es-


trofe7 escrita.
Experiência em sala de aula:
O professor Sidnei pediu aos alunos, que conforme eu fosse
me apresentando em forma de rimas, escrevessem na última folha
do caderno, qualquer palavra, para que eu pudesse utilizá-las como
matéria-prima para o rap que eu improvisaria para a classe.
Após introduzirmos uma noção prática de ritmo já discrimi-
nada anteriormente, iniciamos o processo criativo. Pedimos para que
eles escrevessem quatro palavras-chave que dessem direção ao pro-
cesso de criação de uma estrofe, que buscasse sintetizar a vida deles,
bem como seus sonhos, metas e visões para o futuro. No momen-
to seguinte, os alunos começaram a buscar vocábulos que rimassem
com as palavras-chave por eles escolhidas. Após acharem as rimas, a
próxima etapa foi produzir uma estrofe, ou seja, quatro versos. Cada
verso deve rimar a palavra-chave com um vocábulo escolhido por
eles. Durante a parte de produção, o professor Sidnei e eu auxiliamos
aqueles com mais dificuldade. Ao final da aula, os jovens que se senti-
ram à vontade puderam expor suas produções. Antes deles iniciarem
a produção, expusemos o que é estrofe e verso.

(Di)versificando histórias: transformando frases em versos,


textos em raps
Objetivo: Exercitar a escrita criativa
Como fazer
1) Relembre/revise com os alunos o que foi feito na docência
anterior.
2) Faça um bate-papo sobre as personagens da história que ti-
ver sendo trabalhada, enquanto isso, anote na lousa as características

7 O que é estrofe? Disponível em: <http://brasilescola.uol.com.br/o-


-que-e/portugues/o-que-estrofe.htm>. Acesso em: 21 de março de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 145

físicas e psicológicas delas, colando abaixo do nome de cada perso-


nagem seus atributos, por exemplo: Emília (inteligente e pequena),
Narizinho (nariz arrebitado, esperta)
3) Divida a classe pelo número de personagens e sorteie uma
personagem por grupo, cada grupo deverá escrever 4 versos a respeito
da sua personagem.
4) Os grupos, além de precisarem de um tempo e de auxílio
dos professores para criar seus textos, precisarão de pelo menos uma
aula para se organizar e ensaiar. Cabe aos docentes responsáveis,
orientar e oferecer possibilidades de apresentação da obra criada. Um
grupo de 4 pessoas, que já criou sua estrofe com 4 versos, tem como
possibilidade de apresentação:
a) cada aluno executa um verso;
b) dois alunos executam dois versos e dois fazem o beatbox8, per-
cussão corporal, execução de algum instrumento ou batucada na mesa;
c) um aluno executa a estrofe toda e os demais fazem a parte
musical;
d) dois ou três alunos executam os versos sendo que um canta
a estrofe e nos espaços que o cantor respira, os outros completam e
reforçam frases previamente combinadas, os demais podem compor
a parte musical.
Experiência em sala de aula:
Os sextos anos estavam, naquela ocasião, trabalhando biogra-
fia de uma maneira interdisciplinar. Desta forma, o professor Sidnei,
buscando uma maneira de preservar e valorizar a infância dos ado-
lescentes, optou por estudar junto com os alunos, a biografia de im-
portantes escritores da literatura infantil, começando por Monteiro
Lobato. O docente iniciou a aula fazendo a leitura do texto proposto
sobre a vida do autor, solicitando que cada um lesse um trecho em voz

8 Imitação sonora de sons percussivos e em geral eletrônicos, uma espécie


de “caixa de som humana”.
146 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

alta. Após a leitura, o professor foi colocando na lousa as palavras que


os discentes foram achando significativas. Dentro do quadro de pala-
vras, ainda junto com a turma, buscamos encontrar as que já rimavam
entre si, e aos poucos, criamos um “banco de rimas” para as outras
palavras relevantes do texto, que não rimavam entre si. Na sequência,
os alunos, individualmente, recriaram trechos do texto em forma de
versos. Sem impor limites à criatividade do aluno para compor a es-
trofe ou para criar a performance, eles puderam criar livremente. Na
folha ou cartaz que foi apresentado o texto finalizado, eles tiveram a
possibilidade de inserir enfeites, desenhos, recortes e colagens, etc.
(Figura 1)
A fim de promover algo lúdico, na aula seguinte, fizemos a
apresentação das produções em forma de batalha de MC`s, um jogo
de palavra tradicional na cultura hip hop. Neste sentido, um grupo se
posicionou ao lado do outro, decidindo no par ou ímpar quem co-
meçaria, cada grupo apresentou o seu trabalho e a classe “fez baru-
lho” para o grupo com quem simpatizava mais. Numa batalha de rap,
sempre há um vencedor, sendo a vitória determinada por aquele que
tem mais grito da plateia. No caso da apresentação na escola, não é
necessário definir vencedores e perdedores, apenas a votação, através
da vibração da classe para simularmos o que acontece num duelo de
rappers, é o suficiente para estimulá-los, dependendo da idade. Como
no nosso caso, as estrofes foram produzidas com base nas persona-
gens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a partir de figuras como a Cuca
e o Saci, surgiram temas relacionados a preconceitos de aparência,
padrão de beleza, racismo e deficiência física, fator que foi rico para o
Prof. Sidnei e eu discutirmos em sala de aula. (Figura 2)

Miscigenação no Brasil

Objetivo: Provocar um debate sobre o fenômeno da miscige-


nação a partir do folclore (Bumba meu boi) e da música de rap Serviço
de Preto.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 147

Nesta aula será contada a lenda do Bumba meu boi e na sequ-


ência a audição do videoclipe Serviço de Preto ou outra música que
traga uma reflexão crítica acerca da discussão étnico-racial, finalizan-
do com uma discussão entre professores e alunos, sobre as possíveis
relações estabelecidas entre as obras apresentadas e a história brasilei-
ra, bem como a respeito do momento atual da sociedade.
Bumba meu boi ou Boi-bumbá é uma dança do folclore popu-
lar brasileiro, com personagens humanos e animais fantásticos, que gira
em torno de uma lenda sobre a morte e ressurreição de um boi. A festa
tem ligações com diversas tradições africanas, indígenas e europeias,
inclusive com festas religiosas católicas, sendo associada fortemente ao
período de festas juninas.9 Já o videoclipe Serviço de Preto faz alusão ao
termo pejorativo utilizado para se referir às atividades e serviços mal
feitos ou de baixa qualidade. A personagem central do vídeo (re)per-
corre um tempo histórico, desde o tráfico de escravos, até a tentativa do
afrodescendente de inserção social através do mercado de trabalho. A
obra traz depoimentos reais de situações vividas por diversos profissio-
nais negros. O documentário Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá
conta como foi o processo de concepção da música.10
História da Lenda
No Nordeste, a história do Bumba meu boi foi inspirada na len-
da da Mãe Catirina e do Pai Francisco (Chico). Nessa versão, eles são
um casal de negros e trabalhadores de uma fazenda. Quando a esposa
fica grávida, ela tem desejo de comer a língua de um boi. Empenhado
em satisfazer a vontade de Catirina, Chico mata um dos bois do re-
banho, no entanto, este era um dos preferidos do fazendeiro. Ao sen-

9 Bumba meu boi. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/


Bumba_meu_boi>. Acesso em: 21 de março de 2018.
10 TEJERA, Daniel - Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá: a his-
tória de serviço de preto (2016). Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=1I-ms8lWBbE>. Acesso em: 21 de março de 2018.
148 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

tir falta do animal, o fazendeiro pede para que todos os empregados


saiam em busca dele. Eles encontram o boi quase morto, mas com a
ajuda de um curandeiro indígena ele se recupera. Noutras versões, o
boi já está morto e é ressuscitado por um pajé. A lenda, dessa maneira,
remete-nos ao conceito de milagre do catolicismo ao trazer de volta
o animal, e ao mesmo tempo, tem presença de elementos indígenas e
africanos assim como a cura pelo pajé ou o curandeiro e a reencarna-
ção, além de apresentar o casal Catirina e Francisco, exercendo uma
função servil imposta à população negra escravizada ou descendente
de escravizados.11 E, claro, à mercê do receio do castigo do senhor, do
qual procuram se defender por meio da magia da reencarnação.
Como fazer
1) Leve para sala de aula, algum audiovisual ou apenas áudio
que conte a lenda do Bumba meu boi12. Se preferir, conte você mesmo.
2) Exiba um videoclipe de rap ou outro estilo musical que ques-
tiona as relações étnico-raciais no Brasil, exemplo: Serviço de Preto
(Garnet & Peqnoh)13, Eu só peço a Deus (Inquérito)14, Boa Esperança
(Emicida)15

11 Bumba meu boi. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/


bumba-meu-boi/>. Acesso em: 21 de março de 2018.
12 A lenda do boi bumba. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=ROxsvbhnPUg>. Acesso em 21 março de 2018.
13 Daniel Garnet & Peqnoh. Serviço de Preto. Piracicaba: Pegada
de Gigante, 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=bkvjsqv-gHo>. Acesso em 21 março de 2018.
14 Inquérito. Eu só peço a Deus. Campinas, Groove Arts, 2015. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=GJpvK7CjIvo>. Acesso em 21
março de 2018.
15 Emicida. Boa Esperança. São Paulo, Lab Fantasma, 2015. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=AauVal4ODbE>. Acesso em
21 março de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 149

3) Promova uma discussão com os alunos, estabelecendo co-


nexões entre as duas obras e como ambas podem se relacionar com
aspectos históricos e atuais da sociedade brasileira.
Pode-se pedir para que os alunos produzam algum trabalho
final sobre a temática.
Experiência em sala de aula:
Sidnei começou a aula falando sobre a exploração dos ban-
deirantes em terras brasileiras, ele exemplificou como sendo um dos
bandeirantes, o próprio Raposo Tavares, que dá nome à rodovia que
fica ao lado da escola. Além dos bandeirantes, o professor falou dos
jesuítas e de um terceiro elemento muito importante para a povoação
do Brasil que não foi devidamente homenageado - os bovinos. O do-
cente explicou como as primeiras cabeças de gado veram da Europa
para o Brasil. Devido a seu pouco valor econômico na época, em vista
do interesse na produção de açúcar, o gado passou a se infiltrar nas re-
giões do interior brasileiro. Estes animais passaram então a fazer parte
da cultura e, consequentemente, fizeram parte do folclore nacional.
No norte (especificamente no Amazonas), no Festival Folclórico de
Parintins, a figura do boi garantido confronta o boi caprichoso. Sidnei
colocou no equipamento multimídia, um CD com uma narrativa des-
contraída da lenda. Enquanto a história foi se desenrolando, o docen-
te através dos seus desenhos, foi fazendo a ilustração. Ao término da
narrativa, o professor fez algumas perguntas sobre o enredo, utilizan-
do elementos da história brasileira para falar da miscigenação, tese
que muitas vezes é apresentada como se fosse o resultado da convi-
vência harmônica entre personagens de origem africana, europeia e
indígena. Durante a explicação, enfatizou o fato de a maioria dos bra-
sileiros serem mestiços, por mais que esteticamente possam não pa-
recer. Esta foi a brecha para eu apresentar aos alunos a música Serviço
de Preto, que apresenta as tensões em torno do tema “miscigenação”.
Após a audição da história do Bumba Meu Boi e da exibição do
clipe, estimulamos a discussão pela perspectiva do roteiro do clipe. O
150 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

professor ressaltou que o assunto em questão não tinha sua importância


vinculada a uma possível avaliação para se tirar nota, mas sim, para a
vida cotidiana da cada um. Neste sentido, pediu para que eu contasse
um pouco sobre a ideia de ressignificar o termo “serviço de preto”, utili-
zado para se referir a algum tipo de serviço mal feito, atribuindo a falta
de qualidade do serviço como algo inerente à cultura negra.
A título de ressignificação do termo através da música, referi-
mo-nos ao trabalho escravo que construiu boa parte da Nação, mas
que se depara com um mercado de trabalho ainda hoje racista, ma-
chista, classista e excludente. Aproveitei para falar sobre a diferença do
termo “escravo” e “escravizado”: o primeiro soa como se a escravidão
fosse algo naturalizado e inato, já o segundo, remete a escravidão a
algo imposto de um grupo de seres humanos a outros.
Ainda discutindo sobre o impacto do regime escravagista no
nosso país, Sidnei fez uma intervenção pontual, remetendo a história
do Bumba meu boi, cujos cuidados prestados ao gado vinham dos
escravizados, entretanto, quem podia se beneficiar dos animais eram
apenas os brancos. Após a intervenção, retomou-se a pauta do merca-
do de trabalho para os afrodescendentes, seguindo pelo viés do clipe,
que inicia com o depoimento de negros relatando situações de pre-
conceito sofridas nos espaços de trabalho e termina com cada um de-
les revelando suas profissões, raramente ocupadas por negros, como
médico, dentista, maestro, etc.
Terminada a análise da letra, falamos sobre as impressões mi-
diáticas que os grandes veículos de comunicação transmitem sobre o
“suposto” lugar do negro na sociedade. Dois alunos de sextas séries
diferentes fizeram uma observação muito interessante: eles disseram
que já viram policiais fazendo discriminação racial até na hora de al-
gemar, alegando que já observaram brancos serem algemados com os
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 151

braços na frente e negros serem algemados com o braço para trás. Foi
um momento oportuno para o docente comentar sobre um teste so-
cial feito em vídeo16, em que colocaram dois homens com os mesmos
trajes diante de uma mesma situação – como se eles tivessem esqueci-
do a chave do próprio carro dentro do veículo – e é notável a diferença
de tratamento do branco e do negro, quando as pessoas visualizam
cada um deles tentando recuperar a chave.
Perguntei para os alunos, se as características fenotípicas como
a cor/gênero podem influenciar a quantidade e a qualidade de acesso
a oportunidades. Para ajudá-los a entender, pedi para que eles visu-
alizassem quantas pessoas negras eles já viram trabalhando em su-
bempregos e quantos negros eles já viram trabalhando como médico,
muitos nunca haviam visto nenhum médio negro. Foi quando lhes
relatei um pouco sobre a história de vida do médico, da dentista e do
maestro que participaram do clipe, todos afrodescendentes. Reforcei
para eles, que assim como a tv tem o poder de reforçar ideias que
podem deturpar a imagem de um determinado grupo social ou fato
histórico e político, no videoclipe assistido, a intenção foi reforçar os
exemplos positivos de profissionais negros que não são apresentados
nos filmes e novelas.

Princesa Isabel e Zumbi dos Palmares: 13 de maio ou 20 de


novembro?

Objetivo: Elucidar as diferenças entre a comemoração


da abolição e a exaltação da consciência negra pela comunidade
afrodescendente
Como fazer?
Após uma introdução aos assuntos históricos e sociais relativos
à data, promova um debate com os alunos.

16 PEGADINHA Teste Social – RACISMO. Disponível em: https://www.


youtube.com/watch?v=AQZPrpfKOkQ. Acesso em: 21 de março de 2018.
152 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Se quiser, escolha uma música para complementar a temática.


Experiência em sala de aula:
O professor Sidnei iniciou a aula colocando na lousa, a história
de Zumbi dos Palmares e da princesa Isabel. Após os alunos termina-
rem de copiar, o professor explicou o que é quilombo17 e apresentou a
seguinte situação aos alunos:
- Se você fosse escravo, trabalhasse de graça, apanhasse e se
alimentasse mal, tentaria fugir e correr o risco de não ter onde comer
e dormir, ou continuaria submetido à escravidão para garantir aloja-
mento e refeição?
Quase que de maneira unânime, a maioria dos alunos respon-
deu que tentaria fugir. A partir da resposta, o professor iniciou uma
fala expositiva sobre a história de Palmares e a importância do dia 20
de novembro – dia do falecimento de Zumbi – como data comemo-
rativa da celebração do orgulho e da consciência negra. Na sequência,
foi contada a história da princesa Isabel e as circunstâncias em que ela
assinou a Lei Áurea, ressaltando, a falta de política de inserção dos ex-
-escravizados na sociedade, sem contar a pressão que a luta do negro
por sua libertação já estava exercendo socialmente.
A partir do rap A regra é clara, foi feito um paralelo com a te-
mática do dia 13 de maio – princesa Isabel e 20 de novembro – Zumbi
dos Palmares – para ampliar a discussão. Ao final da aula, com ajuda
dos alunos dando ritmo com a palma da mão, cantei a música.

A regra é clara: “A regra é clara pra quem tem a pele escura”18

17 No início, chamava-se quilombo todas as comunidades de resistência


formada por escravos fugidos das fazendas. Mesmo após a queda do re-
gime escravocrata, ainda existem nos dias de hoje as chamadas comu-
nidades quilombolas, que são habitadas por descendentes de negros
escravizados.
18 Daniel Garnet & Peqnoh. A regra é clara. Piracicaba: Pegada
de Gigante, 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=AHxaYJguENo>. Acesso em 21 março de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 153

Revendo o significado e o sentido da docência compartilhada


para os alunos
Objetivo: Averiguar como as aulas compartilhadas tem incidi-
do nos alunos(as)
O professor deverá entrevistar os alunos por grupos de 3 a 5
alunos por vez, considerando que essa quantidade estimula-os a falar
mais do que individualmente e a não ficar tão eufóricos como quando
estão com a classe inteira. É importante que outro profissional possa
ficar com a classe enquanto um grupo é entrevistado.
Experiência em sala de aula:
Na entrevista, buscamos conhecer a percepção deles sobre te-
mas como rap e a questão negra no Brasil antes e depois da docência
compartilhada.
O aluno “H” disse que, em sua opinião, o rap trazia cultura
para a sala de aula. Segundo ele, embora ele já conhecesse o gênero
musical, nunca tinha se imaginado autor de um rap, e que ele, após
as aulas, disse ter uma visão mais crítica sobre o estilo musical, princi-
palmente no que se refere ao modo de construir as letras. Para ele, en-
tre os temas possíveis a serem tratados em uma letra de rap, seria, por
exemplo, discutir, por meio de versos e rimas, como melhorar o am-
biente escolar. Antes da docência compartilhada, na opinião do aluno,
o rap era basicamente um relato do cotidiano, ele usou como exemplo
o grupo Racionais MC’s. “H” afirma entender o rap atualmente como
um estilo musical repleto de cultura e conteúdos diversos, construído
dentro de uma estrutura musical. O aluno concluiu afirmando que
o que mais aprendeu com o rap na escola foi “buscar a evolução e o
aprimoramento do conhecimento”.
Outro aluno que tomava os Racionais como referência foi o“G”,
que se declarou um admirador das músicas desse grupo de rappers,
conhecidos pelas crônicas contundentes sobre a vida do jovem negro
na periferia de São Paulo. Mesmo sendo muito fã do quarteto com-
posto por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e Kl Jay, o aluno afirmou
154 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

que embora seja muito bom ouvir um rap dos Racionais, era ainda
muito melhor fazer a sua própria rima. Quando lhe foi perguntado
qual a diferença entre ouvir um rap pronto e fazer o próprio, ele afir-
mou que ao construir a letra, era possível vivenciar a liberdade de um
modo mais pleno. Na sua visão, entre os temas mais relevantes para
se construir uma música autoral, seriam questões d egrande comoção
relacionadas à situação do continente africano, bem como a exaltação
da cultura negra. Na sua opinião, existem mais MC`s preocupados
com sua popularidade do que em trabalhar conteúdos importantes
para a sociedade, que resultam em um arsenal de rimas produzidas
de maneira vazia.
No caso de “H”, é possível notar o início de um processo de
construção de uma consciência emancipatória, quando ele relata que
antes enxergava a música como algo “pronto”, concebido por um “MC”
cuja função era a de fazer rap. Ao longo da docência, ele passou a ver
as rimas como um instrumento cujo processo de construção estava
ao seu alcance e de qualquer um que se dispusesse a criar uma letra
com base em suas vivências e conhecimentos. No caso de “G” não foi
diferente, quando afirmou que embora apreciasse os Racionais, prefe-
ria construir os próprios versos e desse modo, usufruir da liberdade
que isso lhe proporcionava. Foi interessante observar sua preocupa-
ção com o conteúdo dos raps, que em sua maioria estavam mais pre-
ocupados com uma construção estética do que abordar um assunto
relevante. O aluno não só apresentou uma visão crítica, como tam-
bém sugeriu temas a serem abordadas, sempre buscando “jogar luz”
em problemas que atingiam os grupos desfavorecidos historicamente.
“L” afirmou que antes da docência compartilhada, acreditava
que o rap era algo essencialmente masculino, entretanto, agora via o
estilo musical como algo mais democrático, que todas as pessoas, in-
dependente de gênero ou algo do tipo, podiam não só ouvir e apreciar,
como também, protagonizar, compondo, cantando.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 155

A incidência da questão de gênero nas relações sociais são,


muitas vezes, evidenciadas por meio das atividades que as pessoas
escolhem para participar quando estas não se encontram no âmbito
das obrigações. Neste sentido, o rap enquanto gênero musical do mo-
vimento hip hop, foi por muito tempo “dominado” por figuras mascu-
linas. As poucas mulheres que desempenhavam o papel de MC aca-
bavam reproduzindo características masculinas na voz e nos gestos
corporais, talvez como uma forma de buscar aceitação em um meio
tão masculinizado. Embora na atualidade estejam surgindo cada vez
mais meninas e mulheres MC`s que não sentem a necessidade de se
assemelhar à figura masculina, esta condição ainda é forte no ima-
ginário social. Poder desmitificar tal fenômeno através da presença
do rap na escola pode ser uma abertura para a ampliação de diversos
debates historicamente distorcidos, seja sobre o machismo, o racis-
mo, seja o preconceito de classe social ou qualquer outra modalidade.
Embora na maior parte do semestre um grande número de alunos
tenham parecido dispersos, a partir da entrevista foi possível identi-
ficar transformações, ainda que lentas, porém, significativas. Quando
o professor Sidnei relatou suas impressões sobre nossa experiência de
docência compartilhada, declarou que foi uma oportunidade que se
abriu aos alunos menos participativos de se engajarem e mostrarem
habilidades, nem sempre exploradas pelos métodos tradicionais de
ensino. Neste sentido, ele mencionou que foi uma oportunidade de
revisitar e questionar a metodologia, não como algo antiquado que
deve ser modificado, mas que ao menos, possa dividir espaço com
outras metodologias.

Segundo ano de Projeto

Revisando o conteúdo do semestre anterior

Objetivo: Fazer uma revisão do conteúdo do semestre ante-


rior, criando um ponto de partida para os próximos conteúdos
156 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Ao retornar às aulas no 2º semestre letivo, é possível fazer uma


dinâmica de revisão do conteúdo.
Como fazer?
Peça para que os alunos, organizadamente, digam palavras-
-chave que remetam ao aprendizado na docência compartilhada.
Peça para que eles imaginem que cada palavra é um arquivo
e precisaremos de 2 a 4 pastas diferentes para armazenar os arquivos
por categoria.
A partir das categorias criadas, solicite aos alunos, individu-
almente ou em grupo, que produzam estrofes sobre a aula com base
nestas categorias.
Experiência em sala de aula:
Na primeira aula compartilhada da turma após a volta das férias,
realizamos uma revisão do conteúdo do ano anterior, com o objetivo
de revisitar o aprendizado com os jovens, bem como situar os alunos
novos em relação aos propósitos do projeto. Pedi para que cada um
dissesse aleatoriamente, porém, de maneira organizada, palavras-chave
relacionadas ao conteúdo trabalhado no ano anterior. Apresento, em
seguida, as palavras que surgiram: racismo, construção, escravidão,
preconceito, letra, batalha, discriminação, vídeo, coletividade, Sítio do
Pica-Pau Amarelo, batida, criatividade, ritmo e som.
Após concluirmos o quadro de palavras, eu disse a eles que
iríamos imaginar  que cada uma delas representaria um arquivo de
computador e que iríamos criar pastas para os arquivos de acordos
com os seus tipos, começando por inserir na frente de duas palavras
que tivessem relação,  a letra A, colocando A posteriormente em todas
as outras que também tivessem relação com as duas já selecionadas,
depois colocando B e C sucessivamente, de acordo com o número de
“pastas” ou categorias que fossem surgindo, respeitando o mínimo de
2 e o máximo de 5 categorias/pastas:

A: Letra, batalha, batida, construção, ritmo, som, criatividade, vídeo.


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 157

B: Escravidão, discriminação, racismo, preconceito.


C: Sítio do Pica-Pau Amarelo, mitologia
Após dividir as palavras em três grandes grupos, fizemos um
“brainstorm” com os alunos até chegarmos a um nome para cada
“pasta” de palavras, efetuando assim, o que conhecemos no mundo da
pesquisa como categorização.
Categorias surgidas através das palavras: A) Produção de rap
B) Preconceito C) Narrativa
Pormeio desta dinâmica, categorizamos de maneira lúdica, os
principais assuntos trabalhados no ano anterior:
Produção de rap: letra, batalha, batida, construção, ritmo,
som, criatividade, vídeo.
Preconceito: escravidão, discriminação, racismo, preconceito.
Narrativa: Sítio do Pica-Pau Amarelo, mitologia
A partir desta categorização, definimos a nossa meta para o
ano: trabalhar assuntos relacionados ao preconceito racial e através
da nossa narrativa, organizar nosso pensamento, conhecimento e opi-
nião por meio da produção de raps. Em relação à narrativa e à pro-
dução das letras, demos início ao estudo de ferramentas que nos aju-
daram a tornar a nossa construção poética e musical mais elaborada,
com o objetivo de ter como resultado final, músicas produzidas com
conteúdo e formato artístico, finalizando o projeto com alunos crian-
do rimas que utilizaram a disciplina de história como base, partindo
da história pessoal e, desse modo, realizando a autobiografia de cada
um. As técnicas que estudamos para implementar a produção do rap
estão presentes na obra How to rap, de Paul Edwards (2013).

Reconstruindo as raízes: raps sobre a negritude

Objetivo: Estimular os alunos a recriar raps que discorram so-


bre a questão racial.
Como fazer?
Em grupos de até 3 alunos, cada trio/dupla deve ao longo da
semana, ouvir as músicas disponíveis em uma matéria realizada no
158 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

blog Noticiário Periférico, portal de notícias do hip hop brasileiro de


muita relevância na cena nacional, um dos poucos que busca manter
em sua produção de conteúdo, discussões relativas à questão racial. A
matéria 20 raps que são hino à negritude19 traz sons dos anos 80 até a
década de 2010, com músicas, dos Racionais MC’s, MV Bill, Thaíde
e DJ Hum, Rappin Hood, Z´África Brasil, Inquérito, Public Enemy,
Daniel Garnet & Peqnoh, entre outros.
Após ouvir as músicas, cada grupo deve escolher uma música
e recriá-la, em pelo menos quatro versos, utilizando o aprendizado
adquirido ao longo do projeto, além de responder à seguinte pergunta
em relação à música escolhida: - Por que eu escolhi esta música?
Experiência em sala de aula:
Recriar uma das músicas do blog, como exemplo, ajudou os
alunos a ter uma visão das possibilidades de realização da atividade.
Uma das maneiras de reconstruir uma letra é separando as palavras-
-chave da música a ser modificada, bem como buscar sinônimos e
palavras relacionadas ao tema central da canção. Esta é uma ocasião
oportuna para relembrar algumas técnicas que foram utilizadas na
composição de alguns raps no ano anterior, bem como adicionar téc-
nicas novas. Poderíamos, por exemplo, relembrar o conceito de rima,
já que foi uma dificuldade recorrente na docência compartilhada nas
primeira semanas.
Após relembrar com eles o que é verso e estrofe, definimos o
conceito de rima, pois até então, havíamos trabalhado o aspecto es-
pecífico da rima de uma maneira mais espontânea e intuitiva, sem
se aprofundar em detalhes técnicos ou conceituais. Definindo então
a rima como repetição de sons parecidos ao final de dois versos ou
mais, foi estabelecido um bate-papo sobre a importância da sílaba

19 HEBREU, Anderson. 20 Raps que são hinos à negritude. Disponível


em: <http://www.noticiario-periferico.com/2013/11/20-rap-que-sao-
-hinos-negritude.html>. Acesso em: 21 de março de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 159

mais forte (tônica), bem como a importância da última e penúltima


sílaba a palavra como determinante do efeito da rima, abordando a
diferença entre rima consoante e rima assonante, conceito presente no
livro “How to rap”:
Classificação quanto à fonética
Rima perfeita ou consoante: em que há correspondência total
de sons, havendo repetição tanto dos sons vocálicos como dos sons
consonantais. Tanto as últimas vogais quanto as últimas consoantes
são idênticas.
falado/cantado | presente/ausente | particularidade/dificuldade
Rima imperfeita, toante ou assonante: Em que há apenas a repetição
dos sons vocálicos. Apenas as últimas vogais são idênticas, sendo as
consoantes diferentes.
boca/moça | pálida/lágrima | plátano/cálamo
Na aula seguinte, os adolescentes deverão trazer seus trabalhos
prontos, ou seja, as letras deles refeitas a partir de uma escolha no site
Noticiário Periférico. Cada professor(a) pode escolher a sua lista ou
mesmo, montá-la de acordo com os assuntos pautados no planeja-
mento da aula.

Reconstruindo as raízes (apresentação)

Objetivo: Estimular os alunos a expor suas criações de uma


maneira crítica e criativa
Nessa atividade, os alunos que tiverem feito a reconstrução do
rap, devem apresentar para a classe. Antes disso, eles podem fazer um
último ensaio. Caso haja alunos que não tenham feito a atividade pro-
posta, estes ao invés de reconstruir um rap da lista, podem construir
do zero a partir das palavras-chave elaboradas na primeira aula do se-
mestre. Enquanto isso, o(s) professor(res) deverão circular para tirar
as dúvidas dos alunos.
160 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Com a letra pronta, os alunos devem trabalhar durante o en-


saio questões como ritmo, métrica, melodia e conteúdo artístico, ou
seja, elementos estéticos relacionados à forma.
Experiência na sala de aula:
Mesmo os grupos mais preparados resistiram muito para co-
meçar. O professor Sidnei, sempre muito participativo, propôs-se a
apoiar todos os grupos durante a apresentação, apresentando junto.
A aluna “L”, que já havia dado um depoimento em vídeo no início do
semestre passado, relatando quão difícil era se expor e ao mesmo tem-
po, como era bom conseguir vencer os próprios medos ao se expor.
Naquele momento, parecia reviver o seu relato. Ao mesmo tempo que
demonstrava estar apreensiva, ficou claro que não se tratava de um
medo paralisante, pelo contrário, o medo de se expor publicamente a
movia para se lançar a fim de superar a própria dificuldade.
Após a apresentação dos grupos que vieram com o texto pronto
de casa, alguns alunos que produziram o rap naquele mesmo dia, mes-
mo sem estarem tão seguros e preparados, começaram a se apresentar.
Infelizmente, nem todos conseguiram terminar, entretanto, conversan-
do sobre a experiência do dia com o professor, ele relatou que muitos
daqueles alunos, além de ser praticamente a primeira vez que estavam
produzindo algo até o final, a questão de se expor para a turma foi um
avanço muito positivo e relevante, já que alguns deles tinham dificul-
dades até de se relacionar com os colegas de classe nos momentos mais
informais. Os alunos mais tímidos foram muito aplaudidos pelos com-
panheiros de classe, como uma forma da turma reconhecer o esforço
deles em ir lá na frente e superar a própria timidez.

Exposição do tema do documentário “Eva Mitocondrial”

Objetivo: Oferecer novos estímulos para que os alunos come-


cem a contar suas próprias histórias, relacionando-as ao conteúdo da
docência compartilhada
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 161

Como a proposta de escrever a autobiografia em forma de rap


mantém íntima relação com a origem de cada indivíduo, é interessan-
te falar sobre a origem da humanidade, e para tal é possível utilizar
o documentário “Eva Mitocondrial”20, filme que trabalha com base
na teoria de que a humanidade toda possivelmente descende de uma
única mulher nascida no continente africano. Estudos recentes reve-
laram a existência de uma possível “Eva”, ou seja, uma mulher afri-
cana que supostamente teria dado origem a toda a humanidade. Os
cientistas afirmam que a mitocôndria teria sido uma bactéria que se
tornou um parasita obrigatório de células eucarióticas, como as nos-
sas. Mas não é este o aspecto fundamental. Toda a teoria, na verdade,
baseia-se no fato de que o DNA mitocondrial é exclusividade mater-
na, transmitido sempre através das mães, que passam esse material
genético aos seus filhos e filhas – as quais, novamente transmitem-no
aos seus descendentes. E a partir daí é possível criar uma enorme “ár-
vore genealógica”. Estima-se que esta mulher deva ter vivido há cerca
de 200.000 anos. Deduz-se daí que todos os indivíduos poderiam ser
considerados descendentes de uma mãe comum africana, de acordo
com esse mito/realidade fundador.
Experiência em sala de aula:
Uma das questões apresentadas por um aluno durante esta do-
cência foi: como se pode ter certeza de que o primeiro ser humano do
mundo nasceu onde foi dito?
Respondemos a ele e à classe que a idade e a localidade do pri-
meiro ser humano foi estabelecida com base nos fósseis encontrados
e estudados, afirmando para eles que a história poderia ser reescrita
caso fosse encontrado um fóssil mais antigo em outro local do mundo.
Quando mencionamos o fóssil, alguns alunos disseram que
foi através deles que se evidenciou a existência dos dinossauros.

20 Eva Mitocondrial. Disponível em: <http://fecientifica.blogspot.com.


br/2010/05/eva-mitocondrial.html>. Acesso em: 21 de março de 2018.
162 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Concordamos e acrescentamos que estas criaturas existiram há mais


de 62 milhões de anos atrás. Neste momento, perguntaram como isso
poderia ser possível se tínhamos apenas 2017 anos. Ao que responde-
mos que esta marcação temporal referia-se ao nascimento de Cristo
segundo o Cristianismo.
Retomando a história contada no documentário em questão,
a teoria diz que o primeiro ser humano nasceu na África e ao longo
de centena de milhares de anos foi mudando aspectos de pele, olho
e cabelo de acordo com a região para a qual migrava. Esta ocupação
global ocorreu em diferentes épocas, conforme apontado na figura 3.
Para ficar mais claro a questão temporal, desenhamos uma li-
nha do tempo começando no período jurássico indo até os primeiros
humanos, a partir dos quais se delimitou a pré-história da história.
Um aluno perguntou onde Adão e Eva aparecem na linha do
tempo, outros alunos aproveitaram para perguntar quase que de uma
maneira afirmativa, se Adão e Eva foram os primeiros seres huma-
nos da Terra. Sidnei tomou à frente e explicou que existe uma versão
científica e uma versão religiosa, ele explicou ainda que na versão re-
ligiosa existem mitos (assim como os que estudamos no ano anterior)
misturados a acontecimentos históricos para explicar assuntos da fé
humana. Sidnei afirmou ser cristão e ao mesmo tempo ter sua visão
de professor historiador, dizendo que acredita no fenômeno religioso
e ao mesmo tempo entende que existam diversos simbolismos para
explicar fenômenos ocorridos ao longo da história. Ele ainda apontou
que é importante ter fé mas não podemos deixar de ter o senso crítico,
e que cada povo dentro da sua fé, tem uma crença sobre a origem do
mundo, entretanto, não devemos levar nada de uma maneira tão lite-
ral. Uma aluna demonstrou muita resistência ao conteúdo da docên-
cia, pelo fato de as teses apresentadas contrariarem o que ela entendia
por fé religiosa.
Ao fim deste assunto, encerramos deixando claro que no surgi-
mento do mundo, o pastor, o professor, os pais ou o pajé não estavam
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 163

presentes, daí a importância de se questionar a propósito das verdades


e das versões apresentadas pelas autoridades (inclusive nós), sempre
com respeito. Um outro aluno tomou a palavra neste momento e sin-
tetizou a aula do dia da seguinte maneira: diferentes culturas contam
diferentes histórias. Concordamos e complementamos dizendo que
até dentro da mesma cultura, duas pessoas podem contar a mesma
história com recortes diferentes, por isso temos que ser críticos em
relação a assuntos diversos e às figuras de autoridade que nos rodeiam
(pais, pastores, professores, patrões).

Trabalhando a questão indígena

Objetivo: Introduzir o debate indígena no semestre


Esta atividade foi pensada para incluir a questão indígena, que
foi trabalhada em todas as disciplinas durante aquele semestre. Neste
sentido, desenvolvemos uma atividade utilizando a letra do grupo Brô
MC’s, coletivo de rap originário da etnia Guarani Kaiowá. Os alunos
foram divididos e cada grupo ficou com uma cópia da letra da música
Eju Orendive21.  
Com base na letra, os alunos devem ler algumas vezes e iden-
tificar elementos da cultura europeia, africana e indígena presentes
na letra.
Experiência em sala de aula:
Durante a explicação, o professor e eu marcamos algumas pa-
lavras e, com base nelas, os alunos poderiam dar início à pesquisa,
como por exemplo: Guarani, Kaiowa e Eju Orendive. Depois de de-
signarmos a atividade, passamos a circular na sala de aula procurando
auxiliar os grupos com mais dificuldades. Em um dos grupos que não
conseguiam identificar muita coisa, pedi para que eles achassem ao
longo da letra, qual a parte que os indígenas falavam da luta deles.

21 Bro Mc`s. Eju Orendive. Dourados, 2010 Disponível em: https://www.


vagalume.com.br/bro-mcs/eju-orendive.html
164 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

“M” disse que a luta deles fica clara no trecho que eles afirmam que
índios e brancos são iguais. “M” quis apontar aqui, de certa forma, que
a busca da tribo por reconhecimento passava pela luta indígena por
igualdade, ou seja, que fossem reconhecidos enquanto seres humanos
capazes e dotados de direitos.
Perguntei ao grupo de alunos se eles identificavam alguma in-
fluência branca, eles disseram que não, então perguntei em que língua
estava a música, os alunos responderam que em português, pergun-
tei em qual lugar se fala tal língua originalmente e eles responderam
Portugal. A partir disso, falamos sobre a influência ocorrida n proces-
so de colonização do Brasil. Instigando o debate, pedi para eles busca-
rem alguma parte na letra que os indígenas se referiam à religiosidade:
“Está na mão do senhor, não estou para matar, sempre peço a
Deus/Que ilumine o seu caminho, e o meu caminho”
Nessa parte, discutimos sobre o fato dos jovens rappers da tri-
bo localizada em Dourados – MS, estarem adotando a religião cató-
lica como se fosse a sua própria religiosidade, também era fruto da
influência decorrente da colonização. Por último, perguntei da influ-
ência negra e logo os alunos responderam: o rap (o modo de cantar
falado) e a gíria, esta última que além de ser uma linguagem local
das periferias ao longo do mundo, envolve também uma forma de
comunicação entre escravizados da América colonial, como é o caso
do termo “signifying” designado para identificar palavras e sonorida-
des desenvolvidas pelos negros escravizados para se comunicar sem
serem notados, linguagem muito implícita em músicas e ditos origi-
nários do contexto escravagista.
Falamos também sobre o título do grupo – Bros MC`s – que é
uma nomenclatura negra e norte-americana de um movimento de re-
sistência de negros trazidos e nascidos nas Américas em decorrência
da diáspora forçada africana.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 165

Após compartilhar o debate com todos os grupos da classe,


pedi pra que eles fizessem mais buscas através do videoclipe, assim
como a tradução dos termos indígenas presentes na letra.

Fazendo o rap autobiográfico

Objetivo: Estabelecer uma relação entre o aprendizado na do-


cência compartilhada e a produção autobiográfica do aluno
Antes dos alunos começarem a produzir seus versos autobio-
gráficos, é interessante mostrar algumas estruturas possíveis de se
construir as rimas.
O formato mais comum de rap é com duas ou três partes de 4
estrofes, separadas por um refrão, geralmente caracterizado por uma
estrofe que se repete 2x. Exemplo:
Refrão (Geralmente 4 versos que repetem duas vezes = 8
versos)
Parte (4 ou 5 Estrofes = 16/20 versos)
Podendo organizar em: (a,b,a,b,a,b) ou (b, a, b, a, b, a) ou (b,
a, b, a, a, b), etc...
A estrutura de rap acima é comumente veiculada nas grandes
rádios. O processo se repete até chegarmos na parte 2 ou 3, se a mú-
sica começar pelo refrão, após a última parte não é necessário que ele
apareça novamente, lembrando que isso não é uma regra absoluta.
Algumas canções possuem uma estrofe que se repete sempre
anterior ou posterior ao refrão. Se essa estrofe que se repete for as 4
linhas anteriores, chamemos de pré-refrão, é a parte que costuma fa-
zer uma chamada preparativa. Não precisa ser necessariamente uma
estrofe inteira, podendo ser 2 versos, 1 verso ou as últimas palavras
por exemplo, na música Quando o pai se vai de Gog, o pré-refrão está
sempre nas últimas palavras dos últimos versos:
Penúltimo verso antes do refrão: Toda geração precisa de in-
centivo senão cai. Último verso antes do refrão: É triste ver, quando
o pai se vai...
166 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

O verso pós-refrão é um preparativo para as estrofes que vem


a seguir, costumando também, serem os primeiros versos da música.
Na música Depois da tempestade, de Rashid part. Alexandre Carlo, ele
inicia cada refrão com as mesmas 2 estrofes que ele iniciou a música,
ou seja, 8 versos no início. Após cada refrão é o mesmo, é como se a
cada início, ele ressaltasse pontos chave da sua narrativa, para depois
então, seguir cantando a parte inédita de cada trecho da música. Após
a demonstração de algumas possíveis estruturas, os alunos deverão
construir 3 estrofes autobiográficas. (Figura 4)
É interessante pedir para os alunos mais desinibidos coloca-
rem pelo menos a sua primeira estrofe na lousa, desta forma, a classe
toda pode ver como foi o processo criativo, além de permitir que se
esclareçam possíveis dúvidas, bem como relembrar os aprendizados
referentes à técnica de composição no universo do hip-hop.
Experiência em sala de aula:
Aproveitando que “G” colocou a sua estrofe na lousa para nos
mostrar e tirar dúvidas, fizemos a contagem de sílabas poéticas22 pre-
sentes na estrofe. Perguntei a eles como era possível que diferentes
números de sílabas caberem no mesmo verso/compasso. Um aluno
acertou a resposta dizendo que era determinado pelo ritmo, em suma,
a velocidade e a cadência dentro do compasso musical na execução de
cada sílaba poética. A junção destes fatores determinam o ritmo e a
métrica dentro da performance do MC, dando sonoridade e musicali-

22 Chamamos de sílabas métricas ou sílabas poéticas cada uma das sí-


labas que compõem os versos de um poema. As sílabas de um poema não
são contadas da mesma maneira que contamos as sílabas gramaticais. A
contagem delas ocorre auditivamente. Para saber mais pesquise: escan-
são de versos. Sílabas Poéticas ou Métricas. Disponível em: <https://
www.infoescola.com/literatura/silabas-poeticas-ou-metricas/>. Acesso
em: 21 de março de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 167

dade, é o que chamamos de flow ou levada23. Relembramos junto aos


alunos, que o rap e muitas músicas (principalmente as encontradas no
rádio) são divididas em compassos 4/4, ou seja, cada compasso tem 4
tempos simbolizados pela semínima dentro de 1 compasso, chamado
popularmente no rap de 4 batidas por compasso. É dentro deste com-
passo que cada verso escrito se encaixa. Usamos também o exemplo
de “G” para falar de rima interna e externa, sendo a primeira a rima
feita no interior do próprio verso e a segunda, nas terminações. As
palavras com a mesma cor demarcam as que rimam, os tons idênticos
demarcam as rimais perfeitas ou consoantes entre elas, quando o tom
é diferente, identifica que rima, porém de uma maneira imperfeita, ou
seja assonante.

Muito tempo sem meu pai, eu já não aguento mais


Dois anos é demais, mas agora tanto faz

A rima de “G” em apenas dois versos trouxe uma diversidade


de possibilidades na construção, o que nos levou a deixar os versos
dele na lousa e utilizá-los como exemplo nas aulas seguintes.
Sidnei assumiu a frente e começou uma estrofe do zero com au-
xílio da classe, comentando que às vezes o rap pode surgir espontane-
amente, e outras, temos que sistematizar a criação para que possamos
nos inspirar. O professor pediu para que eles falassem palavras-chave
relacionadas às suas histórias, e depois, para que eles pensassem em
diversas possibilidades de rimas para essas palavras. Com base nas
palavras escolhidas, foi criada uma história, sendo os versos trabalha-
dos conforme o sentido do que se pretendia expressar, garimpando
algumas terminações previamente anotadas no quadro. (Figura 5)

23 Forma com que o mc imprimi ritmo nas suas palavras cantadas, fazendo
com que esse fluxo de palavras interajo com o ritmo e os aspectos harmô-
nicos da batida.
168 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Considerando que esta aula visava a construção de uma narra-


tiva autobiográfica e que cada indivíduo tinha a sua própria história,
o texto inicial foi produzido individualmente. Posteriormente, os alu-
nos com histórias semelhantes se juntaram para unir as estrofes, cada
um contando sua história e compartilhando um refrão em comum
conforme a estrutura acima.
Assim como o aluno “G”, que relatou em sua letra a falta que o
pai lhe fazia, “D” expressou em sua letra o mesmo problema, chegan-
do a se emocionar ao executar sua criação. A letra deles me remeteu
ao filme “Nenhum sonho é grande demais”24, ficção baseada na his-
tória do rapper Notorious Big, que no filme aparece em idade similar
à dos alunos, expressando em uma letra a raiva que ele sentia pelo
fato do pai tê-lo abandonado. Semanas depois, refletindo, eu mesmo,
como alguém que faz parte da cultura hip hop como MC, comecei a
pensar o hip hop como uma instituição que representou no ambiente
onde surgiu, a figura paterna. Nos anos 60, quando as gangues domi-
navam Nova Iorque, participar de um grupo delinquente soava como
uma literal “afiliação” a um grupo que poderia oferecer proteção, aco-
lhimento e reconhecimento ao jovem que vivia um momento dolo-
roso de crescimento, momento em que um pai é fundamental para
dar o apoio necessário à elaboração dessas difíceis questões, mas que
muitas vezes não estava presente. Quando o hip hop emerge, ele me
parece oferecer a mesma sensação que as gangues, porém, com um
propósito pacificador, crítico, criativo e emancipatório, exercendo um
papel paterno que busca intermediar a diferença entre os irmãos (no
caso todos os jovens negros e periféricos conectados entre si pelas

24 Notorious Big: nenhum sonho é grande demais (2009). Disponível


em: <https://youtu.be/T4pn3fvS3Co?t=4m46s>. Acesso em: 21 de março
de 2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 169

“marginalidades conectivas25”), um pai que busca educar seus filhos


ensinando que eles precisam ser unidos para encarar a sociedade e
todos os seus problemas de preconceito, discriminação e injustiça. Tal
reflexão me fez pensar no número expressivo de questões relaciona-
das ao pai e à mãe que aparecem nos raps, bem como no relato presen-
te nos livros e documentários, de jovens perdidos que encontravam
nas gangues e nos grupos criminosos, uma fraternidade, substituída
depois, pelo movimento hip hop.

Apresentando o rap autobiográfico


Objetivo: Correlacionar o rap autobiográfico produzi-
do com o conteúdo trabalhado até o momento durante a docência
compartilhada
Esta é a aula que marca o encerramento da docência compar-
tilhada, portanto, cada aluno deve apresentar o seu rap autobiográfi-
co. No momento da apresentação, é possível fazê-la no estilo acapella
(sem nenhum acompanhamento instrumental, apenas declamando o
texto no ritmo do rap, Funk ou outra modalidade musical), acom-
panhado do beatbox ou pode-se reproduzir uma base eletrônica de
pré-programa, geralmente o Youtube tem esse tipo de conteúdo. É um
momento interessante para valorizar o protagonismo juvenil. Antes
ou após as apresentações, é interessante promover uma reflexão sobre
como o processo de criação se deu.

25 Chamamos de marginalidades conectivas fatores de opressão ao redor


do mundo que permitem a conexão entre praticantes do hip hop do
mundo inteiro, que se sentem unidos por enfrentarem as mesmas difi-
culdades independentemente do país em que vivem. Estão entre as prin-
cipais marginalidade que conectam jovens do mundo inteiro: juventude,
classe, opressão histórica, entre outras. Extraído em: “Marginalidades co-
nectivas do Hip hop na Diáspora Africana: os casos de Cuba e do Brasil”,
de Halifu Osumare (2015).
170 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Experiência em sala de aula:


Enquanto alguém apresentava seu rap autoral, um pequeno
grupo era entrevistado. O que possibilitou fazer desta maneira foi o
fato da docência ser compartilhada, ou seja, ter dois professores com
a turma, Sidnei e eu. Essa foi a segunda entrevista feita com os alunos
desde o início deste trabalho em 2016. Fazendo uma comparação en-
tre as duas entrevistas de “E” por exemplo, foi possível notar mudan-
ças na forma de se comunicar e principalmente,vencendo a resistência
que o mesmo apresentava no início.
Anteriormente, ele se negava a participar efetivamente do
processo criativo na docência compartilhada, porém, como sempre
foi um aluno preocupado com suas notas conforme o relato dos pro-
fessores, acabou cedendo com o tempo e se empenhando nas ações
propostas por mim e pelo professor. Na atividade de transformar as
histórias do Sítio de Pica- Pau Amarelo num rap, demostrou muito
envolvimento mostrando na primeira entrevista inclusive, as rimas
feitas por ele e os amigos. Ele que na entrevista realizada em agosto de
2016, não falou nada, apenas demonstrou timidamente os seus ver-
sos, desta vez demonstrou simpatia e mais facilidade com as palavras.
Sorridente e comunicativo, ria de si mesmo ao lembrar da época em
que achava rap coisa de “maloqueiro”. O menino afirma que não é seu
gênero favorito, mas gostou da experiência de produzir arte e saber
mais a respeito da história dos afrodescendentes.
Outro caso muito interessante foi o da “F”, que passou a maior
parte do semestre dispersa, a menina não produziu praticamente
nada o ano todo, mas neste dia ela resolveu escrever, talvez seja de-
vido ao caráter autobiográfico da atividade, pois foi digno de nota o
fato de ela ter recorrido em sua criação a frases que já havia elaborado
em seu diário. “F” disse que já escrevia há um certo tempo e aprovei-
tou essas memórias para fazer os raps. Surpreendeu-me a riqueza de
figuras de linguagem que ela usava, mesmo sem saber o que era por
não ter participado ativamente das aulas. “L” me contou já ter o hábito
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 171

de escrever seus versos, mas não imaginava que a aula de história e


rap poderiam se misturar no espaço escolar de maneira tão agradá-
vel e interessante. “B” finalizou a entrevista afirmando que ao estudar
a história através do hip hop e ainda produzir as próprias músicas,
principalmente com um caráter autobiográfico, é como se a história
que estudasse não parecesse tão distante da realidade dela e dos com-
panheiros de classe, é como se eles dessem continuidade à história
ampliando o curso da própria história.
172 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Imagens

Figura 01: alunos confeccionando o material para a batalha entre


personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo

Figura 02: alunos durante a aula assistindo a apresentação dos companheiros


e aguardando a sua vez na batalha de personagens

Figura 03: Mapa da ocupação humana ao redor do mundo.


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 173

Figura 04: letra de “G” que ficou na lousa como exemplo para as aulas
seguintes.

Figura 05: Palavras anotadas com ajuda dos alunos, para posteriormente se
transformar em versos metrificados.

Bibliografia

AMARAL, M. do. Amaral, M. do. Adolescentes sem limites ou


“funcionamentos-limite” diante de uma existência que exige a demis-
são do sujeito?. Revista Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 2001, 35
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________________ . M.G.T. do. O rap, o hip-hop e o funk: a
“eróptica” da arte juvenil invade a cena das escolas públicas nas me-
trópoles brasileiras. Revista Psicologia USP, São Paulo, 2011, 22(3):
593-620.
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ANDRADE, Elaine Nunes (org). Rap e educação, rap é educa-


ção. São Paulo: Selo Negro, 1999.
CARLOS, Toni. O hip-hop está morto!: a história do hip-hop no
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niques. Chicago, IL, Chicago Review Press, 2013.
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e as políticas de identidade. R.J., Ed. Vozes, 2014.
LEÃO,M.A. da S. e FERREIRA,J.de o.(King Nino Brown). Arte
e cidadania: hip-hop e educação. In: Amaral, M. do e Carril, L. O hip-
-hop e as diásporas africanas na modernidade: uma discussão con-
temporânea sobre cultura e educação. São Paulo: Alameda Editorial/
FAPESP, 2015,p. 111-131.
OSUMARÉ, Halifu. “Marginalidades conectivas” do Hip Hop
e a Diáspora Africana: os casos de Cuba e do Brasil. In: Amaral, M.
do e Carril,L. O hip-hop e as diásporas africanas na modernidade: uma
discussão contemporânea sobre cultura e educação. São Paulo, Alameda
Editorial/FAPESP, 2015, p.63-92.
SMITH, William E.O hip-hop e suas conexões com a diáspora
africana. In:
Amaral, M. do e Carril,L. O hip-hop e as diásporas africanas na
modernidade: uma discussão contemporânea sobre cultura e educa-
ção. São Paulo, Alameda Editorial/FAPESP, 2015, p.93-105.
Cap. 5. Entre o teatro negro
e a literatura: revelações
e valorização das culturas
afro-brasileiras no
currículo do ciclo autoral
176 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Apresentação
O teatro negro no Brasil foi apresentado aos alunos pela atriz
Dirce Thomaz como um gênero que surgiu de modo a exprimir de
maneira bastante completa as diversas formas de manifestação do
humano, envolvendo desde a mímica, a gestualidade, os movimentos
circulares, as cantigas de roda, o texto, a poesia e a própria represen-
tação. Portanto, a concepção de teatro apresentada, se de um lado, en-
volveu a história de personagens importantes do teatro negro, como
Abdias Nascimento e diversas companhias ligadas às lutas contra a
discriminação racial e pelo direito à educação tal como fora sustenta-
da pela Frente Negra, de outro, trouxe um debate mais contemporâ-
neo como o de Augusto Boal e Viola Spolin, que enfatizam o improvi-
so de cenas cotidianas como sendo o cerne do trabalho teatral.
Daí a importância de exercícios relacionados a cantigas, jogo
do espelho (gestual), vídeos sobre a África e a diáspora, o quilombo,
de maneira que permitissem ao(à) jovem relacionar o passado e o pre-
sente, assim como o rural e o urbano, as diferenças entre o centro e a
periferia, etc. Muitas vezes, utilizaram-se de uma linguagem aprecia-
da pelos jovens, como os clipes dos rappers, para fazer uma reflexão
sobre o aspecto teatral e cinematográfico ali presente.

Entre o teatro negro e a literatura: revelações e valorização das


culturas afro-brasileiras no currículo do ciclo autoral

Dirce Thomaz1

Introdução
A docência compartilhada inicialmente aconteceu entre a
profa. Elisabeth Maria Magalhães da disciplina de Língua Inglesa e
Literatura da sala de leitura, a atriz e pesquisadora Dirce Thomaz e o

1 Pesquisadora FEUSP e atriz.


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 177

pesquisador Roman2. O presente projeto foi desenvolvido na Escola


Municipal EMEF Saturnino Pereira, com estudantes do ciclo autoral
(7°C e 8°C), nos anos de 2015 a 2018.
Compartilhar saberes foi um exercício diário que transformou
a vida da professora e do ambiente escolar. A pesquisa foi construída
democraticamente a partir dos Componentes Curriculares da SME-
SP, baseando-se nos seguintes cadernos:

Direitos de Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e


Autoral da Língua Portuguesa de 2016, uma vez que propiciou, por
meio de estudos literários, um repertório crítico sobre as questões
étnico-raciais que priorizasse a construção de um olhar poético, con-
testador e descolonizado de nossa literatura, exaltando a contribuição
literária de autores negros tais como: Carolina Maria de Jesus, escri-
tora negra e favelada, reconhecida mundialmente por denunciar em
seus escritos a realidade da população negra.
Direitos de Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e
Autoral de Arte de 2016 - as propostas realizadas na pesquisa estive-
ram de acordo com as premissas - fazer, apreciar e contextualizar - por
meio dos seguintes componentes:
Experienciar - os exercícios de observação fizeram com que
surgissem várias brincadeiras de modo natural, por meio do improviso.

2 O pesquisador Roman participou no ano de 2015 do Projeto, mas não


deu continuidade nos anos posteriores.
178 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Perceber - o projeto contou com a presença da atriz e pesqui-


sadora negra Dirce Thomaz que foi percebendo ao longo do proces-
so o quanto o grupo evoluiu, principalmente as meninas. Ter uma
atriz negra conduzindo as atividades foi uma referência importante
para que as alunas, aos poucos, fossem assumindo e reconhecendo
sua identidade afrodescendente. Durante as atividades, muitos textos
e vídeos foram apresentados aos alunos como, por exemplo, a letra da
música da MC Sofia - uma adolescente que canta sobre a valorização
da menina negra. Histórias bem sucedidas, como o caso da jovem
negra Bruna, que passou em primeiro lugar no curso de medicina na
USP, também foram trazidas para o contexto da sala de aula. Esses es-
paços de discussão e novas referências estimularam, sobretudo, entre
as estudantes uma atitude como esta: “Sim! Nós Podemos!”.
Os resultados deste trabalho foram surpreendentes a ponto de
várias meninas mudarem o visual e aparecerem nas aulas com tran-

ças, orgulhosas de seu cabelo black e assumindo sua cultura negra.


Numa das aulas, uma garota foi comparada com o Bob Marley. Em
resposta ao comentário do colega, ela disse que se sentia honrada e
orgulhosa com tamanho elogio. Inesperadamente outros colegas tam-
bém partiram em defesa da garota, dizendo que admiravam e sabiam
sobre a vida do cantor e ativista jamaicano. As meninas passaram a se
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 179

arrumar mais, usar maquiagem e batom bem vermelho. Os meninos


também não ficaram atrás. A periferia foi se tornando chic e assumida!
Criar - por meio de jogos teatrais, os (as) alunos (as) passaram
a se entender através dos olhares e da movimentação do corpo que
possibilitava a troca de papeis e a criação de gestos e expressões que
propiciasse o reconhecimento mútuo.
(Inter)relacionar – O significado da palavra teatro em grego
é “lugar de onde se vê”. Quem vai ao teatro para assistir um espetá-
culo negro ou branco espera ver artistas trabalhando, independente-
mente da cor ou pele. Em conformidade com Mbembe (2014)3,para
o qual “ver não é a mesma coisa que olhar”, a invisibilidade do negro
no Brasil é cultural e institucional, porém, a resistência do teatro ne-
gro mostrou o seu protagonismo na arte brasileira desde o período
colonial, quando os negros nos momentos de descanso nas senzalas
interpretavam os seus senhores.
Após o período colonial, o teatro de revista ganhou força, pois
fazia a crítica social da época com De Chocolat e a Companhia Negra
de Revista (1920-1940). Abdias Nascimento criou com outros artistas
o TEN (Teatro Experimental do Negro) modificando a poética e a es-
tética com pinceladas pretas no eurocentrismo do teatro brasileiro. E,
com os avanços das pesquisas, outros grupos e companhias surgiram,
os quais estão trabalhando a temática negra até hoje.
Os Direitos de Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e
Autoral de Arte de 2016 dialoga com nossa pesquisa no sentido de
priorizar a construção de um currículo crítico e problematizador,
destacando as inúmeras matrizes culturais, étnicas e raciais do nos-
so país. Desse modo, respaldamo-nos na Lei 10639/2003 em con-
sonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnicorraciais de 2004, a fim de promovermos diversas

3 MBEMEBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora


Antígona, 2014.
180 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

e ricas reflexões que possibilitaram a construção de uma consciên-


cia negra por meio de diversos diálogos realizados no decorrer das
atividades. O projeto baseia-se no componente curricular da Cidade
“artes”, a partir do princípio 9 - Repertório Cultural, que salienta os
seguintes aspectos:

Saber: Desenvolver o repertório cultural e senso estético


para reconhecer, valorizar e fazer fluir as diversas identidades, ma-
nifestações artísticas e culturais, possibilitando práticas de produção
sociocultural.
Para: Ampliar e diversificar as possibilidades de acesso às pro-
duções culturais e suas experiências emocionais, corporais, sensoriais,
expressivas, cognitivas, sociais e relacionais, desenvolvendo seus conhe-
cimentos, sua imaginação, criatividade, percepção, intuição e emoção.
A dinâmica envolvendo a pergunta quem você gostaria de
ser? E por quê? Fez com que um aluno relatasse o interesse de ser
Chiquinha Gonzaga pela luta que ela travou até ser reconhecida como
uma compositora e maestrina no séc. XIX. O sorriso das meninas na
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 181

foto ao lado demonstra um momento da atividade em que uma das


garotas disse querer ser Bruna Marquezine, simplesmente pelo fato
de ela ter sido a namorada do Neymar. As outras riram, uma vez que,
de posse de um novo repertório de referências, desejavam algo dife-
rente da colega, tomando como modelo, personalidades negras e não
brancas. Por exemplo, na dinâmica escolha uma personalidade impor-
tante na história, uma menina escolheu Ruth de Souza, uma grande
atriz negra do teatro e da televisão brasileira. Houve um aluno que
escolheu ser o coordenador geral da ONU para auxiliar as pessoas na
guerra; outros, lembraram-se de Thais Araújo, MC Nego Blue e etc.
Essas dinâmicas e atividades lúdicas dialogam com a interdis-
ciplinaridade do Componente Curricular da Língua Portuguesa que
possibilita: Fomentar a investigação, leitura e problematização por
meio da arte, reinventando o plano de ensino com a participação
dos (as) alunos (as). A importância do diálogo entre os envolvidos
transformou o espaço da sala de aula em um ambiente de negociações
e troca de conhecimento, viabilizando o reconhecimento dos (as) alu-
nos (as) por meio da arte e da literatura.

Na elaboração do planejamento, definiu-se que uma vez por mês


as atividades ocorreriam em um espaço aberto em que a classe pudesse
ficar mais livre para propor atividades a fim de transformar o grupo em
sujeito da ação e que as demais aulas aconteceriam na sala de leitura. Os
(as) alunos(as) foram estimulados a desenvolver um novo olhar sobre
si e seu entorno e, assim, melhorar sua integração junto à comunida-
182 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

de escolar e à comunidade local. Isso possibilitou uma reflexão acerca


das questões e problemas sociais que ocorriam no cotidiano, como, por
exemplo, as expressões de preconceito e de racismo.

Lições sobre O Papel e o Mar

A EMEF Saturnino Pereira já trabalhava com um projeto sobre


Carolina Maria de Jesus, intitulado: Quarto de Despejo: Carolina Maria
de Jesus e outras Carolinas na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Dentro deste projeto estava prevista a exibição do curta-metragem O
Papel e o Mar sob direção de Luiz Pilar, com a participação dos atores:
Zózimo Bulbul e Dirce Thomaz. O filme conta as experiências vividas
pelo almirante João Candido e pela catadora de papel Carolina Maria
de Jesus que sonhava e trabalhava com
as palavras escrevendo seu famoso diá-
rio “Quarto de Despejo”. Os alunos (as)
assistiram ao curta e, posteriormente,
foram surpreendidos pela performance
ao vivo da atriz, Dirce Thomaz, que eles
viram no filme. Sua aparição provocou
uma espécie de ilusão e interrogação
nos estudantes que indagavam: Seria
ela a Carolina do filme, que se encontra
ali em nossa frente? A apresentação da
atriz Dirce Thomaz despertou um encantamento muito grande nos
participantes e na discussão muitos estabeleceram diversas relações
entre o filme e a sua realidade social. A leitura dos textos literários e a
experiência de ter uma atriz negra como parte das atividades do EJA
despertou o interesse dos grupos pela leitura e pelos temas que foram
levantados sobre a história do negro no Brasil, tais como: o racismo, o
preconceito, a violência, a favela, o descaso dos governantes, o aban-
dono social. Assim, os estudos sobre João Candido e Carolina, foram
importantes para o engajamento do grupo que relacionou a compres-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 183

são sobre o problema vivido pelo negro do Brasil desde o período


colonial até os dias atuais, uma vez que as suas experiências muito se
assemelhavam com as da autora, visto que a maioria dos alunos era
negro, pobre e favelado.

Os (as) alunos (as) identificaram semelhanças entre Carolina e


Abdias do Nascimento, dois ativistas que nasceram no mesmo dia 14
de março de 1914 e que lutaram contra a desigualdade social e injus-
tiça que atingia os negros. Depois desta experiência, os alunos segui-
ram relatando suas histórias em versos que acabou virando um livro
chamado “Escrevendo a própria história”, de autoria coletiva, 2016.
184 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Segundo Oliveira (2014)4:

Qual é o eco das ações dessas duas personagens na sociedade


contemporânea neste cenário “futuro”, que aparece de forma
desconcertante como pano de fundo para João e Carolina?
Inegável que os espaços que conferem voz e poder na socie-
dade atual parecem já ter dono. E, como ressalta Carolina, ne-
gras e negros brasileiros são insistentemente retirados de cena
e jogados, como o lixo que ela cata, para os guetos da história
(OLIVEIRA, 2014, p.21).

O personagem de João Cândido, interpretado por Zózimo


Bulbul também contribuiu para o desenvolvimento dessas turmas,
pois representou um homem negro que foi banido da história oficial
brasileira, deixando de ser reconhecido como Almirante pelo gover-
no, mas que foi capaz de defender os marinheiros negros, lutando
contra a permanência das práticas escravistas nos porões dos navios,
situação que perdurou até 1910.

4 Ver em, http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/RevistaEixo/article/


view/133/112, OLIVEIRA, M.Z. (2014). O papel e o mar: sobre estórias
que não nos contam dos personagens negros da nossa história. Revista
EIXO, Brasília – DF, v.3 n-2, julho – dez, acesso em 12/02/2018.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 185

Produzindo saberes para jovens afro-brasileiros no ciclo autoral

As atividades, envolvendo, em sua maioria, exercícios e dinâ-


micas, eram realizadas em grupo, por meio de rodas de conversas.
Foram respeitados os saberes e particularidades dos alunos e
os temas eram selecionados por todos (as). Muitas sugestões viraram
cenas em alguns trabalhos apresentados durante o curso.

A imagem representa um
momento de fala importante de
uma aluna: - "O teatro é como a
nossa casa, temos que nos soltar,
não podemos ficar presos!"
186 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Pesquisadores/arte-educador e professores (as) que contribuíram


com a pesquisa

O pesquisador, Roman fala sobre teatro e cinema, procurando oferecer aos


(as) alunos elementos para uma compreensão das duas linguagens, assim
como para identificar suas semelhanças e diferenças.

‘A professora Julia auxiliou na preparação dos (as) alunos (as) para as


atividades externas. Esta imagem refere-se à preparação da classe para a
leitura do texto sobre a vida do Pedagogo Roberto C. Ramos, ex-interno da
Febem.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 187

O professor e pesquisador Jefferson anuncia aos (as) alunos (as) o clipe Guetto
do cantor de rap Viegas, da zona leste, gravado na Cohab Juscelino.

Professora Eloisa
Maria Magalhães

Pesquisador
e músico
C á s s i o
Martins,
compartilha
s u a s
experiências
em teatro e
música negra.
188 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Ensaio para a
apresentação
na Fábrica de
Cultura da Cidade
Tiradentes.

Os exercícios do
espelho eram
realizados na
quadra e os
movimentos
fluíam livremente
potencializando
o despertar da
criatividade.

O trabalho era
realizado de
forma individual,
Momentos reflexivos e ensaios quando o (a)
estudante
demonstrava
tímidez ou com
dificuldade de
interpretação
da leitura das
músicas, da
literatura e de
poesias.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 189

Havia momentos em que eles (as) ensaiavam suas falas, as músicas e as


performance.

O grupo se unia nas cantigas e ciranda embalados pelo ritmo. Esta


imagem reflete ao momento em que o grupo participava de uma
ciranda com a música de Caetano Veloso – Canto do povo de um
lugar.

Dialogo sobre o racismo

A pesquisadora, a professora e os alunos (as) envolveram-se


em discussões propiciadas pela exibição de vídeos e curta-metragens.
A imagem ao lado é referente à discussão sobre o racismo, após a
apresentação do filme O Xadrez da Cores, sob a direção de Marco
Schiavon. Houve uma discussão importante sobre os quilombos, a
190 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

partir de diferentes olhares. Novas leituras de mundo surgiam com os


filmes, as poesias e os clipes.
Comentários
sobre a
apresentação
do filme
O Xadrex
das Cores,
um curta
metragem
sobre o racismo
com Mirian
Pires e Zezéh
Barbosa.
Sugestão: Para levantar essas discussões sugerimos o se-
guinte material que pode ser utilizado em sala de aula: Os Sete
Novelos, de Angela Shelf Medearis, Na minha Pele, romance de
Lazaro Ramos, Poemas. A Cor da Ternura, de Geni Guimarães
(Prêmio Jabuti de Literatura), Memorial dos Meninos, de
Rudinei Borges (Filósofo e Dramaturgo), Batuque, de Carlos de
Assumpção. Com Lopes, Contadora de História, as fábulas A
menina do Leite , A lebre e a Tartaruga, A Galinha dos Ovos de
Ouro e vídeos sobre adolescentes e adultos. O curta O Papel e o
Mar,o Clip Gueto de Viegas, O Xadrex das Cores. MC Sofia, O
menino Gustavo, filme em que crianças africanas encantam o
mundo com música e dança

Cena de
processo
colaborativo
dos (as)
estudantes
sobre racismo
e violência
em que se
apropriam da
proclamação
da Lei Áurea
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 191

Identidade Negra e protagonismo


Essa imagem se
refere à cena da
promulgação
da Lei Áurea,
com a presença
de Zumbi do
Palmares relatando
que seus feitos
contribuíram para
a emancipação do
negro.

A apropriação dos textos teóricos e a realização das dinâmicas


foram se transformando em representações e cenas.

Em umas das discussões, uma aluna criou coragem e falou que


já tinha sofrido racismo. Contou que antes não gostava de ser negra
e que queria ser branca, esses assuntos foram se tornando recorrentes
e todos (as) perceberam que era importante dar voz aos alunos para
juntos (as) construírem soluções para enfrentar essa questão.
192 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Alunos (as)
1sabeli, e
I d a l i s o n
tocando violão

Leituras de fábula

A Lebre e a Tartaruga, A Menina do Leite e A galinha dos ovos de


Ouro
Foram realizadas dinâmicas inspiradas em Viola Spolin, em
seu livro Jogos teatrais e Augusto Boal, Teatro do Oprimido, além de
atividades com as palavras, em que dividíamos a classe em pequenos
grupos e cada participante escolhia uma palavra que fosse importante
para si. Depois, eles trocaram as palavras entre os grupos e cada gru-
po escreveu uma história com as palavras, finalizando a apresentação
dos trabalhos construídos.

A apresentação do clip Viegas, do grupo de rap da zona les-


te, despertou a curiosidade dos (as) alunos (as) por ser realizado no
bairro onde muitos deles moram, potencializando as discussões sobre
os problemas periféricos e também seus valores. Foi ressaltado que a
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 193

atriz Nádia Bitencourti, moradora da região, também participou do


clip com a atriz Dirce Thomaz.

Apresentação
do Clipe do
Viegas rap
da zona leste
gravado
na Cohab
Juscelino.

Último dia de aula com teatro, música, dança e poesia


194 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

O rap colocou a pesquisadora e a aluna em um único ritmo.


Seus corpos expressaram a ginga e o suingue de uma identidade negra
por meio do improviso e da dança. No refrão elas saudavam a profes-
sora Bethy.
Finalizamos o ano letivo com muita música, dança e teatro.
Os (as) alunos (as) pegaram o violão, cantaram e tocaram.

Meu corpo, porta-estandarte de mim mesmo


“Um corpo que como estandarte passa a invadir o imaginário
do outro, de modo que passa a tocá-lo em sua humanidade e
desarmá-lo em suas expectativas5”.

Os alunos (as) foram entrando em contato com a literatura


negra e alguns autores contemporâneos negros à medida que desco-
briam mais histórias sobre Carolina Maria de Jesus.

5 LIMA, Evani Tavares. Capoeira Angola como treinamento para o


ator. 2002, p. 107.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 195

Referências importantes do teatro negro brasileiro evidenciadas


pelos (as) estudantes
Benjamim de Oliveira,
que nasceu no Pará de Minas
em 11 de junho de 1870, foi uma
das mais importantes figuras do
mundo do circo, o primeiro pa-
lhaço negro do Brasil e, de acor-
do com o pesquisador Brício de
Abreu, o primeiro palhaço negro
do mundo.

A Companhia Negra de Revista


foi criada no Rio de Janeiro em 1926 e
foi um marco importante, pois permitiu
que os negros passassem a ser protago-
nistas nas artes cênicas, os sócios eram:
De Chocolat, cujo nome é João Cândido
Ferreira (Salvador, BA, 1887 - Rio de
Janeiro, RJ, 1956) e seu sócio Jaime Silva
(o único branco da companhia).
196 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Abdias Nascimento (1914-2011) é


originário de uma família negra e pobre
da cidade de Franca, interior do Estado de
São Paulo. Sua mãe se chamava Georgina,
conhecida como dona Josina, e o pai se
chamava José. Ambos eram católicos e ti-
nham sete filhos. A avó materna de Abdias,
dona Ismênia, havia sido escrava, e apesar
do neto ter nascido no contexto da pós-
-abolição, o racismo e as relações sociais
que marcaram o Brasil na época dela ainda
vigoravam com bastante força. O Teatro Experimental do Negro (TEN)
surge por iniciativa de Abdias no Rio de Janeiro em 1944, um espaço
para a valorização da população negra por meio da educação e da arte.

Grande Otelo, pseudônimo de


Sebastião Bernardes de Souza Prata ou
Sebastião Bernardo da Costa, nasceu
em Minas Gerais (1915-1993), foi ator,
comediante, cantor, produtor e com-
positor brasileiro; grande artista de
cassinos cariocas e do chamado teatro
de revista. 

Ruth de Souza - Ruth


Pinto de Souza, nasceu no Rio de
Janeiro em 1921. É uma atriz bra-
sileira, primeira dama negra do
teatro, do cinema e da televisão
brasileira.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 197

Léa Lucas  Garcia  de


Aguiar nasceu no Rio de
Janeiro em 1933, tornando-se
uma atriz da televisão brasilei-
ra, do teatro e do cinema.

Solano Trindade (1908-1974)


foi um poeta brasileiro, folclorista, pin-
tor, ator, teatrólogo, cineasta e militante
comunista. Filho do sapateiro Manuel
Abílio Trindade, foi operário, comerci-
ário e colaborou na imprensa. Criou o
Teatro Popular Solano Trindade.

Raquel Trindade,
que nasceu em Recife
no ano de 1936, foi
uma escritora, artista
plástica, coreógrafa e
folclorista brasileira.
Deu continuidade
aos estudos e pesqui-
sas de seu pai, Solano
Trindade. Hoje o Teatro, com o mesmo nome “Solano Trindade”, em
Embu das Artes, é administrado por Vitor da Trindade, neto de Solano.
198 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Esses artistas vêm referendar o teatro que fizemos na segunda


metade do século XX. Um exemplo marcante foi a montagem de Xica
da Silva pelo grupo de teatro Macunaíma, com direção de Antunes fi-
lho, no qual o famoso diretor encenou uma cena de teatro negro, com
os escravizados e mucamas apresentando uma corte negra no Castelo
de Xica da Silva para seus convivas. Segundo Leda Maria Martins,
Xica da Silva foi uma das responsáveis por diversas encenações de
teatro negro em sua residência. Hoje muitos grupos e companhias de
teatro negros em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte
continuam a realizar experimentações e pesquisa sobre teatro, dança
e outras linguagens relacionadas à cultura negra em pleno século XXI.

Um pouco da pesquisadora e artista Dirce Tomaz

Rubens Teixeira e Dirce Thomaz


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 199

A corte Negra na peça Xica da Silva de Luís Alberto Abreu. Dirce


Thomaz e o diretor Antônio Filho

Dicas de companhias e grupos de teatro negro no Brasil

Em São Paulo, há diversas companhias e grupos de teatro


negro tais como: Invasores Companhia Experimental de Teatro
Negro, Cia. Os Crespos, Grupo Clariou de Teatro, Capulanas Cia
de Arte Negra, Coletivo Negro, Kizumba. Em Belo Horizonte,
Teatro Negro e Atitude, Cia Será Quê?, Cia Baobá de Arte
Africana e Arte Brasileira, Nega - Núcleo experimental de arte
negra e tecnologia. No Distrito Federal, a Cia. Teatral Cabeça
Feita- Cia de Arte Negra. Na Bahia, a Cia de Teatro Nata, Balé
Folclórico da Bahia, Cia Teatral Abdias Nascimento, Bando de
Teatro Olodum. Em Goiás, a Cia. Teatral Zumbi dos Palmares.
No Paraná, o Grupo de Teatro Nuspartus. No Rio Janeiro,
Comuns, Amok Teatro, É Tudo Cena, Rubens Barbot Teatro de
Dança. No Rio Grande do Sul, o Grupo Caixa Preta, Cia de
Dança Afro Daniel Amaro, Grupo de Música e Dança Afro Sul,
entre outros, que podem servir como referência para estudar a
atuação artística da população negra na atualidade.
200 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Um pouco da história do Teatro Negro


Ancorado em nossa história, o avanço do teatro negro, na
primeira metade do século XX, fez parte dos movimentos pela luta
por melhorias para a população negra. Tivemos diversas inciativas
nesse sentido, como A Frente Negra Brasileira, os jornais o Clarim
da Alvorada e o Quilombo, organizados por Abdias Nascimento. Em
meados dos anos de 1970, os movimentos negros novamente eferves-
ciam no Brasil, inspirados nas ideias revolucionárias da Revolução do
Haiti, dos movimentos pelos Direitos Civis dos afroamericanos como,
The Black Panther, e da luta contra a prisão de diversos membros que
se tornaram símbolos da luta de resistência negra nos EUA, como foi
o caso de Ângela Davis, que comoveu o mundo por sua libertação.
Hoje ela é uma das personalidades negras mais conhecidas no mun-
do, sendo filósofa, antropóloga e ativista, que tivemos a honra de co-
nhecer quando esteve no Brasil pela primeira vez na Jornada Cultural
Lélia Gonzales, em São Luís Maranhão, em 1997. Todos esses fatores
influenciaram e fortaleceram os movimentos que lutavam contra o
racismo e o preconceito no mundo. Diversos grupos se organizaram
no Brasil: MNU - Movimento Negro Unificado, GRUCON – Grupo
União e Consciência Negra, as pastorais Negras, ligadas à Igreja
Católica. No fim da década de 1970, o filme Xica da Silva representada
por Zezé Motta, de Cacá Diegues estourou nos cinemas do Brasil e no
mundo. Nos anos de 1980, surgiram outras instituições como Geledés,
Fala Preta que foram os primeiros grupos organizados por mulheres
acadêmicas, ligadas à psicologia, à sociologia, à filosofia, à assistência
social e à saúde. Juntamente com esses coletivos surgiram também
as Companhias e grupos de teatro/dança para pesquisar, produzir e
criar diante de uma nova porta que se abria. Em São Paulo, o grupo
de Teatro Macunaíma montou a peça Xica da Silva, sob a direção de
Antunes filho, a TV lançou os seriados: Tenda dos Milagres, República
e Mãe de Santo. O grupo de Teatro Olodum surgiu na Bahia em 1990,
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 201

nascedouro de inúmeras produções e montagens negras no cinema e


na TV. A partir de 2001, surgiu um número expressivo de companhias
e grupos de teatro sobre a cultura negra. O CPT (Centro de Pesquisa
Teatral) é voltado para pesquisa referente ao teatro negro e às culturas
diaspóricas, algumas delas já concluídas ou em andamento, tal como
o trabalho da pesquisadora e socióloga Cristine Douxami que faz pes-
quisa de mestrado em Salvador sobre o teatro negro no Brasil. A ex-
pectativa é de que surjam novos olhares, novos profissionais e novos
estudantes para se construir formas renovadas de ensinar, de aprender
e de apreender cultura, em busca de novos estilos e de novas estéticas.
Somos uma população marcada pela diversidade étnica, cultural e re-
ligiosa, oriunda de diferentes povos ou etnias, o que exige respeito e
tolerância para com os povos historicamente prejudicados no Brasil,
sobretudo negros e indígenas.
Portanto, sustentamos ser importante construir novas situa-
ções didáticas e o teatro pode ser um caminho para dialogar com os
jovens afro-brasileiros respeitando suas identidades e culturas. Para
inspirá-los nesta busca deixamos como sugestão algumas cenas de
criação coletiva realizadas pelos (as) estudantes, tais como:

Grupo 1

Perguntas: em qual situação um adolescente ou jovem


se sente incluído ou rejeitado? O que podemos fazer diante
dessas situações?
Cena 1: dois irmãos estudam na mesma escola, um bran-
co era bonito, famoso e o negro era ignorado, o irmão branco
começa a ter vergonha dele na escola por ele ser zoado. Quando
terminam os estudos eles resolvem fazer a mesma faculdade de
medicina, com o tempo o branco ia para as baladas curtir com s
meninas e o negro ficava em casa estudando, por ser ignorado.
Taiara, Nauciney, Diego, Nickolas e Maycon. Tama
202 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Cena 2: Patrick nasceu em 27 de março de 1998, ele so-


freu abandono e foi para um abrigo na cidade de São Paulo. Lá
ele sofreu muito, pois ninguém queria ser seu amigo.
Natanael e Patrick

Grupo 2

Tema: Bullyng, morte, paixão, racismo, preconceito.


Cena:
Luana protagonista - sofre na vida, ganha bolsa de estu-
do com muito sofrimento.
Kauan protagonista - namorado ou amigo da Luana
vem ajuda nos momentos mais difíceis
Isabele - Assedia moralmente os protagonistas
Maria Luiza Assedia os protagonistas
Yasmim e Ícaro psicólogos que ajuda os protagonistas

Grupo 3

Tema: preconceito e amizade


Cena: dois meninos que brigaram na escola, um ale-
mão, o Dudu e o outro africano o Marcos, xingavam um ao
outro de frases racistas e preconceituosas, um deles resolveu
fazer um boletim de ocorrência e quando as mães cegaram a
delegacia eram amigas de infância, conversaram com os meni-
nos que a partir de então se tornaram amigos.

Grupo 4

Tema: Racismo.
Cena: a mãe teve dois filhos - um nasceu negro e se
chama Gustavo e a outra nasceu branca e se chama Hellen.
Gustavo todo dia sofria violência na escola quando voltava pe-
dia ajuda para Hellen, mas ela não o ajudava, ele sofreu muito
por não ter apoio da própria irmã. Eles cresceram, passou o
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 203

tempo, um certo dia Hellen estava no ônibus e usava um tur-


bante, uns três meninos que estava lá no fundão, tacando co-
mida e falando merda para ela e para um moço que não falava
a nossa língua parecia que falava inglês. Hellen não gostou foi
reclamar, e sofreu violência, racismo e bulling. Ela saiu do ôni-
bus e foi direto para a casa do irmão pedir desculpas para ele de
tudo o que ela fez, acreditamos que só assim as pessoas mudam
de pouco a pouco.

Referências bibliográficas

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tória, prática e vivências. 2a edição. Campinas: Editora Alínea, 2004.
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204 Mônica do Amaral • Rute Reis
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10/12/2017.
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http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/44685.
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http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Curriculo-da-Cidade,
acesso em 12/02/2018.
Cap. 6. O samba e a cultura
afro-brasileira na escola
206 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Apresentação
A proposta da docência envolvendo o samba e a cultura afro-
-brasileira foi feita pelo Prof. Jefferson, também músico e hoje mem-
bro de nossa equipe de pesquisadores, em parceria com a Profa Maria
Inez de Souza, de língua portuguesa. Iniciaram as atividades com
os(as) alunos(as) da EJA(6ª série/7ºano), com poemas e canções de
samba relacionados à temática da moradia, acompanhados de canto e
batuque, tendo o Prof. Jeffersson à frente tocando cavaquinho. Como
o objetivo era trabalhar o letramento, procuraram fazê-lo tornando
o aprendizado mais dinâmico e significativo. Conseguiram, a partir
das músicas, trabalhar o uso de estrofes e rimas, o sentido conotati-
vo das expressões poéticas, além de suscitar uma atitude social ativa,
permitindo que o(a) aluno(a) enfrentasse de outro modo a condição
de vulnerabilidade social a que estavam sujeitos, sobretudo quando as
possibilidades de empregabilidade são menores.
A temática moradia constitui um eixo presente nas orientações
curriculares desta etapa do ensino e a ideia foi trabalhar este tema no
letramento dos(as) alunos(as) por meio de diversas canções de samba,
cujas problemáticas sociais abordadas remetiam invariavelmente às
questões sociais do presente, sobretudo no que diz respeito às precá-
rias condições de vida nas periferias. O eixo moradia foi uma questão
que pode ser problematizada e relacionada às questões de pertenci-
mento étnico-racial, às desapropriações e ações violentas do Estado
por reintegração de posse e outras formas de violência que se perpetu-
am até hoje na periferia atingindo particularmente a juventude negra.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 207

O samba e a cultura afro-brasileira nas escolas1

Jefferson Barbosa2

Este trabalho foi realizado no ano de 2017 com uma turma da


EJA- (Educação de Jovens e Adultos), formada por pessoas de diferen-
tes idades, em sua grande maioria com idade acima de quarenta anos.
Observe-se que a temática moradia constitui um eixo presente nas
orientações curriculares desta etapa do ensino e a ideia foi trabalhar
este tema no letramento dos alunos por meio de diversas canções de
samba, cujas problemáticas sociais abordadas remetiam invariavel-
mente às questões sociais do presente, sobretudo no que diz respeito
às precárias condições de vida de um modo geral nas periferias. O
eixo moradia foi uma questão que pode ser problematizada e relacio-
nada às questões de pertencimento étnico-racial, às desapropriações
e ações violentas do Estado por reintegração de posse e outras formas
de abuso de poder que se perpetuam até hoje na periferia atingindo
particularmente o jovem negro. O trabalho foi feito sempre com mú-
sica, canto e batuque, acompanhado do cavaquinho do Prof. Jefferson.
Por meio da parceria com a Profa. Inez, foram feitas diversas ativida-
des, como: interpretação das músicas, leitura e escrita, sempre envol-
vendo questões vivenciadas pelos alunos em seu dia-a-dia.
Nas aulas de EJA, deparamo-nos com pais e mães de família
que traziam consigo um vasto conhecimento adquirido pelos anos de
vida, um conhecimento não formal valiosíssimo que foi fundamen-
tal para o enriquecimento das aulas. O trabalho foi desenvolvido na
EMEF Saturnino Pereira, com o objetivo de contribuir para a alfabe-
tização e valorizar o letramento dos alunos. As atividades realizadas
foram voltadas para a melhoria da leitura e escrita dos estudantes. Em

1 Trabalho desenvolvido em docência compartilhada com a profa. Maria


Inez de Souza, junto aos alunos do EJA, 3º TB, na EMEF Saturnino Pereira.
2 Professor de ciências, músico e pesquisador.
208 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

nossos diálogos sobre as letras das músicas, os alunos puderam ter


acesso às memórias de suas experiências individuais e coletivas.
A partir do tema moradia, selecionamos as seguintes mú-
sicas para o diálogo com os alunos: Moro onde não Mora ninguém
(Agepê), Muros e Grades (Engenheiros do Havai), Nomes de Favela
(Paulo Cesar Pinheiro), Travessia (Milton Nascimento), Moradia
(Tião Carreiro e Pardinho). Com exceção das músicas Muros e
Grades e Travessia, para as quais utilizamos um rádio para ouvi-las,
todas as outras músicas foram cantadas e tocadas em sala de aula ao
vivo: entregávamos a fotocópia das letras e os estudantes iam cantan-
do junto conosco. Um dos alunos, em algumas aulas, acompanhou as
músicas tocando pandeiro e em outros momentos, tocando tambo-
rim. Eles enriqueceram as aulas com diferentes saberes provenientes
de suas experiências de vida, principalmente durante as reflexões da
música Travessia, de Milton Nascimento. A música fala sobre alguém
que perdeu a pessoa amada, o que fez com que os alunos relatassem
também suas experiências de terem perdido alguém, etc. Durante a
aula com os instrumentos de percussão, na qual a intenção era traba-
lhar a coordenação e o ritmo dos alunos, um deles comentou sobre a
impossibilidade de se afinar instrumentos de percussão em uma nota
específica, pontuamos, entretanto, que alguns instrumentos de per-
cussão era possível sim e mencionamos que o xilofone era um deles,
o pandeiro de nylon era outro exemplo, também. Assim, chegamos à
conclusão de que não há saberes mais ou menos importantes e sim,
saberes diferentes. Respeitando a oralidade do conhecimento não for-
mal, que os alunos aprenderam fora da escola e que surgia em vários
momentos durante as aulas, principalmente nos momentos de inter-
pretações das músicas, pudemos articular a experiência de vida ao co-
nhecimento formal valorizando e potencializando assim as diferentes
vivências de cada estudante.
A participação dos alunos foi intensa, seja lendo, seja cantando
ou desenvolvendo outras atividades. Todo o trabalho propiciou uma
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 209

importante aproximação entre os integrantes da comunidade escolar,


melhorando também a relação entre professor/aluno. Em uma das
atividades desenvolvidas, os estudantes receberam uma fotocópia de
uma das músicas com duas lacunas em alguns dos versos: na primeira
lacuna, deveriam completar o verso com a palavra que estava faltando
e na segunda, deveriam colocar outra palavra que rimasse com aquele
verso. Foi uma atividade desenvolvida pela professora Inez e os estu-
dantes realizaram-na em grupos, para depois cantar, ler e pensar jun-
tos sobre qual seria uma outra palavra que rimaria com aquele verso.
Alguns estudantes já conheciam alguns sambas que cantamos em sala
de aula, como por exemplo: Moro onde não mora ninguém (Agepê),
Conselho (Almir Guineto) e Sorriso negro (Dona Ivone Lara). Alguns
sabiam tocar instrumentos de percussão, como: pandeiro, tamborim e
surdo, por isso, foram estimulados a trazer esses conhecimentos para
a aula auxiliando na leitura e escrita, contribuindo também para a
socialização e interação entre os envolvidos.
O samba em sala de aula foi, de fato, um facilitador para a al-
fabetização e letramento dos alunos, uma vez contribuiu significati-
vamente para a aprendizagem e interação entre eles. O projeto envol-
veu todos os alunos, permitindo que trabalhássemos com diferentes
idades e culturas. Aqueles que costumavam ser pouco participativos,
passaram a adotar uma postura diferente na medida em que respeita-
mos os ritmos de aprendizagem de cada um e fomos valorizando as
contribuições que estes traziam da própria experiência.
O samba e as atividades desenvolvidas também trouxeram a
valorização da cultura afro-brasileira, demonstrando como o povo
negro contribuiu para a economia e a formação cultural do país. Por
meio da história do samba e do estudo das trajetórias de principais
sambistas, pudemos trabalhar os processos de violência urbana que
envolvem as relações raciais. Trabalhamos ainda imagens e vídeos de
um quilombo ilustrando mais um tipo diferente de moradia e modo
de viver entre os afrodescendentes.
210 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Para demonstrar um recorte deste processo, segue a letra


“Moro onde não mora ninguém”.

Moro onde não mora ninguém


Onde não passa ninguém
Onde não vive ninguém
É lá onde moro
que eu me sinto bem
Não tem bloco na rua
Não tem carnaval
Mas não saio de lá
Meu passarinho me canta a mais linda
Cantiga que há
Coisa linda vem do lado de lá
Coisa linda vem do lado de lá
Moro onde moro
Uma casinha branca
No alto da serra
Um coqueiro do lado
Um cachorro magro amarrado
Um fogão de lenha, todo enfumaçado
É lá onde moro
Aonde não passa ninguém
É lá que eu vivo sem guerra
É lá que eu me sinto bem

O compositor Antônio Gilson Porfírio, mais conhecido como


Agepê, foi um dos componentes da ala de compositores da Escola de
Samba Portela, gravou diversos discos que incluía outros ritmos brasi-
leiros como: ijexá, baião e agerê. O objetivo da aula era trabalhar, com
o auxílio da música Moro onde não mora ninguém, as rimas, estrofes
e versos que compõem a letra da música, além de treinar a leitura,
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 211

escrita e a interpretação das estrofes. Foram entregues as folhas com


a música e cantamos juntos algumas vezes para que os alunos relem-
brassem a letra. O aluno Eduardo participou da aula tocando pandei-
ro e cantando.
A música Moro onde não mora ninguém, foi um grande suces-
so na vida de Agepê, canção que compôs em parceria com Canário,
seu principal parceiro nas composições. Com essa música, Agepê fez
um grande sucesso e estourou no ano de 1975 tornando-se conhecido
pelo grande público brasileiro, principalmente pelas músicas român-
ticas e um tanto eróticas. Alguns alunos já o conheciam porque Agepê
foi sucesso na época de juventude deles. Algumas outras músicas de
grande repercussão foram: Deixa eu te amar, A lenda da estrela do
mar, Ilê-aiyê etc.
Depois de conhecer mais sobre a história de vida do compositor,
os alunos tiveram uma identificação maior com a música escolhendo-a,
inclusive, para uma apresentação no final do projeto com toda a tur-
ma cantando. Como durante várias aulas os alunos leram e cantaram a
música, a formação do coral se deu de modo dinâmico e espontâneo.
Apresentamos no pátio da escola, onde estavam presentes professores,
alunos (as), gestores e funcionários. O Prof. Jefferson tocou cavaquinho
e o aluno Eduardo (aluno de outra turma) tocou violão.
Antes de iniciarmos o coral, uma das alunas pegou o micro-
fone e leu um texto falando sobre o projeto, disse que as aulas foram
muito divertidas, animadas, e que contribuiu para o aprendizado da
turma. Depois, outros alunos também leram frases sobre suas impres-
sões a respeito do projeto relatando coisas positivas sobre as aulas.
212 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Imagens do momento
da apresentação,
primeiro semestre
2017

Ensaiando a
música moro onde
não mora ninguém
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 213

Outra música que utilizamos foi Travessia (Milton Nascimento).


Segue a letra adiante:

Quando você foi embora fez-se noite em meu viver


Forte eu sou, mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho pra falar
Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedra, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar
Vou seguindo pela vida me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte, tenho muito o que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver
Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedra, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar
Vou seguindo pela vida me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte, tenho muito o que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver.

Esta música foi utilizada para trabalhar a oralidade e a inter-


pretação dos alunos. Discutimos bastante sobre esta canção e sobre
quem seria a pessoa que o autor havia perdido - o pai, a mãe, a es-
posa ou uma outra pessoa não menos importante. A grande maioria
dos estudantes achou que se tratava de uma mulher que poderia ser a
esposa ou namorada, mas, ao mesmo tempo, eles iam relatando ques-
tões das suas próprias vidas, as experiências de terem perdido alguém
214 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

importante em suas vidas. Esta canção fez um dos alunos Emerson da


perda de seus pais enquanto viviam no Rio de Janeiro, outros também
relataram situações de perda na família e uma aluna em particular
destacou que algumas pessoas que se foram em sua vida, não deixa-
ram saudades. No final, chegamos à conclusão que perder uma pes-
soa amada exige encontrar forças para seguir adiante e é disso que a
música trata.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 215

A música Moradia (Tião Carreiro e Pardinho) foi outra canção


utilizada no projeto. Acompanhem a letra:

Eu moro lá num recanto onde ninguém me amola


Numa casa ao pé da serra mora eu e a viola
O Sapo mora no brejo, o sabiá na gaiola
Minha voz mora no peito e meus versos na cachola
Tatu mora no buraco, aranha mora na teia
O anel mora no dedo, o brinco mora na oreia
Coração mora no peito o sangue mora na veia
Gente boa mora em casa criminoso na cadeia
Porco mora no chiqueiro o boi mora na invernada
Pescador mora no rancho boiadeiro na estrada
Boêmio mora na rua sereno na madrugada
A lua mora no céu e o vento não tem morada
A perdiz mora no campo o bentevi no sertão
Baleia mora no mar lambari no ribeirão
Rato mora no paiól o morcego no porão
Eu moro nos braços dela e ela em meu coração
Palhaço mora no circo a rima na poesia
O Uirapuru lá na mata na festa mora a alegria
O rico mora no centro pobre na periferia
Num casebre em Nazareth morou a Virgem Maria

Esta canção era de autoria de Tião Carreiro, Vanerão de Nhô


Chico, Craveiro. A letra se refere a um contexto de moradia de interior,
de fazenda, de rancho e outras nomenclaturas que remetem a um lugar
de pertencimento. Sensibilizados com a música, os alunos começaram
a trazer experiências que expressavam a sua relação com o ambiente.
Falaram dos banhos de rio que já tomaram, das frutas tiradas do pé das
árvores, dos encontros com os animais silvestres e até mesmo da relação
com os bichos criados pela própria família. Cantamos a música e os
216 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

alunos foram acompanhando a letra, estrofe por estrofe. Em seguida,


formamos alguns grupos e entregamos umas filipetas contendo a letra
da música separada em versos. Conforme os alunos iam organizando as
filipetas em uma folha, a letra da música ia adquirindo novos sentidos
em meio aos relatos trazidos pelas pessoas do grupo.

Desenvolvendo atividades na sala

Para auxiliá-los, cantamos a primeira estrofe e conforme eles


iam terminando, íamos cantando as demais. Alguns tiveram mais di-
ficuldade e outros terminaram rapidamente.
Os alunos desenvolveram a leitura e exploraram outros aspec-
tos que são encontrados em uma canção, como a rima, o verso, a es-
trofe. Sobre a organização estrutural da letra, a professora Maria Inez
já vinha trabalhando este assunto em sala e reforçamos esta questão
utilizando a música para auxiliar no aprendizado dos alunos.

Cantando com os alunos: atividade


em sala desenvolvida em grupo
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 217

Levamos alguns instrumentos musicais de percussão para a


sala de aula - como agogôs, tamborins e surdos - a fim de trabalhar
o ritmo e a linguagem dos alunos. Falamos sobre cada instrumento e
fizemos uma demonstração de como se tocava cada um. Retomamos
as canções que foram utilizadas nas aulas anteriores e relembramos
as atividades que fizeram anteriormente. A professora Inez trouxe as
folhas com as músicas e os alunos novos puderam acompanhar o pro-
cesso do grupo e aprender as canções. Os educandos aprenderam a
fazer a marcação do tempo de cada verso e estrofe com os instrumen-
tos sem perder o ritmo da música. Todos participaram, seja cantando,
tocando ou batendo palmas. Esta atividade exigiu paciência e coorde-
nação dos alunos.
218 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Instrumentos feito com materiais reciclados

Demonstrando como se toca o tamborim


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 219

Alunos treinando o
ritmo e coordenação
com os tamborins,
agogôs e palmas.

Além dos Agogôs e tamborins, a professora Inez confeccionou


alguns instrumentos utilizando materiais recicláveis diversos. O agogô
é um instrumento que se originou na África Ocidental e foi incorpo-
rado à nossa cultura, principalmente, pelas rodas e escolas de samba.
220 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

O Quilombo de Bombas
Nesta aula, o objetivo foi mostrar e discutir sobre um tipo de
moradia bem diferente da qual estávamos acostumados nas grandes
cidades. Para isso, exibimos um vídeo sobre o Quilombo de Bombas,
mostrando a forma de vida dos quilombolas e sua cultura de subsis-
tência. O quilombo fica localizado na cidade de Iporanga no interior
de São Paulo e o vídeo foi apresentado em uma matéria do programa
Rota do Sol da TV Tribuna. Esse vídeo teve uma importância muito
grande, porque através dele foi possível discutir como determinados
costumes tradicionais dos antigos negros escravizados foram repro-
duzidos e reapropriados pelos quilombolas, resultando em um modo
de vida rural, porém, marcado por uma forma coletiva de produção
da vida social e econômica. O vídeo exemplificou a dificuldade da
equipe de reportagem para chegar até o quilombo dando margem
para uma discussão sobre os motivos pelos quais o Quilombo de
Bombas se encontrava tão afastado do mundo urbano. As condições
de isolamento mantidas por esta comunidade remetiam a uma con-
textualização histórica sobre a necessidade de se manter longe dos
olhares dos senhores e do Estado.
Na atualidade, refletimos sobre o que significava morar lon-
ge da cidade, que também trazia algumas implicações em relação
ao acesso a alguns equipamentos públicos. O atendimento médico,
por exemplo, era uma das principais dificuldades desta comunidade.
Em contrapartida, os alunos observaram que, provavelmente, eles fi-
cavam menos doentes, pois moravam cercados pela Mata Atlântica,
plantavam seus alimentos livres de agrotóxicos e respiravam um ar
mais puro que o da cidade. Assim, ainda que morar longe trouxesse
algumas limitações, os quilombolas de diferentes idades que foram
entrevistados diziam não ter interesse em ir morar no contexto ur-
bano. Preferiam o lugar onde moravam, mesmo sendo simples, sem
energia e com poucos recursos materiais. O vídeo teve a duração de
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 221

aproximadamente quarenta minutos e depois passamos um outro ví-


deo da Cidade Tiradentes SP de três minutos para mostrar a diferença
nos tipos de moradia. A professora Inez mostrou, ainda, uma imagem
aérea da favela Paraisópolis - SP e, ao lado, um condomínio de luxo
localizado nas proximidades, abordando os contrastes sociais na ci-
dade. Os alunos reconheceram as regiões da cidade de São Paulo que
o vídeo mostrava. No final da aula, um aluno ponderou sobre a im-
portância daqueles conhecimentos, mostrando modelos de moradia
distintos da vida agitada que se levava nas cidades. Ao mesmo tempo,
ficou claro que algo do passado não mudou – os negros sendo obriga-
dos, seja no quilombo, seja nas grandes cidades, a morar distante dos
equipamentos públicos.
222 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Professora Inez
mostrando
a imagem
aérea da favela
Paraisópolis na
cidade de São
Paulo.

Interpretando
o filme com os
alunos
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 223

Bibliografia:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/popu-
lacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas
COSTA E SILVA. Alberto. “Um Brasil, muitas Áfricas; Iorubás
e ambundos foram importantes na formação do Brasil, mas apenas uma
parte de um grande coro, composto de gente de quase toda a África sub-
saariana”. Revista de História da Biblioteca Nacional, 2012. Disponível
em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/dossie-imigracao-ita-
liana/um-brasil-muitas-africas. Acesso em fevereiro de 2017.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz A. Dicionário da História Social do
Samba. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
NETO, Lira. Uma História do Samba: as origens. 1. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 11-42.
REIS, João José. Ameaça negra - Escravos fugidos assombravam
a Colônia e inspiraram lendas que a História não confirma João José
Reis. Revista de História. 14/06/2008. Acesso em08/09/2017:http://
www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/wp-content/uploa-
ds/2017/02/Amea%C3%A7a-negra-Revista-de-Hist%C3%B3ria.pdf.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2016: homicídios por ar-
mas de fogo. Brasília: Ministério da Justiça e Cidadania, Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR);
Secretaria de Governo da Presidência da República, Secretaria
Nacional de Juventude (SNJ); Flacso Brasil, 2016.
Cap. 7. Griot Digital:
ressignificando a
ancestralidade afro-
brasileira na educação
226 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Apresentação
O trabalho desenvolvido pela orientanda de Doutorado Elaine
Cristina Moraes Santos, com a Profa. Vilma Nardes, com formação
em história e responsável pela sala de informática, buscou explorar o
uso das TCI´s (Tecnologias da Comunicação e Informação) na escola
do ponto de vista da formação étnico-racial. Neste sentido, os disposi-
tivos digitais foram pensados para promover uma intervenção voltada
a uma proposta psicodinâmica que estimulasse o protagonismo so-
cial, de modo que os (as) alunos(as) pudessem assumir uma postura
ativa, criativa e engajada frente aos aparelhos. O termo Griot digital,
neste caso, sugere um aparente paradoxo conceitual que sustenta a
possibilidade da articulação entre a oralidade e a imagem, o passado
e o presente, o esquecimento e a memória, cuja apropriação se deu a
partir de uma experiência educativa tecnológica que procurou criar
uma nova narrativa para a (re) construção da identidade étnico-racial.
Considerando que esses aparatos digitais exercem um inten-
so poder de atração entre os(as) jovens, o objetivo deste trabalho foi
explorar as possibilidades de uso a partir da veiculação de um conhe-
cimento crítico que se vinculasse às experiências individuais e cole-
tivas de alunos(as) e professores(as). Posteriormente, este desafio se
entrelaçou com a proposta de desenvolvimento dos TCA´s (Trabalho
Colaborativo Autoral), com vistas a uma intervenção social. A discus-
são racial foi inserida de maneira transversal, a partir dos temas que
os alunos escolheram para pesquisar, como: drogas, lixo, internet e
crime. Todas as atividades foram pensadas no intuito de atribuir um
sentido para a pesquisa, de forma que os alunos se sentissem instiga-
dos a atuar nas problemáticas sociais identificadas no ambiente onde
moravam e estudavam. A colaboração da pesquisadora e mestranda
Lorena Souza foi fundamental nesse processo, uma vez que sua ex-
periência com o teatro permitiu que os(as) alunos explorassem seus
temas de investigação através do corpo e da vivencia teatral. Deste
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 227

modo, os adolescentes foram recompondo suas memórias individu-


ais, coletivas e ancestrais, por meio das potencialidades polissêmicas
e semânticas da palavra, da imagem e da experiência corporal, cons-
truindo novas referências de si e de seu espaço de pertencimento.

Griot Digital: ressignificando a ancestralidade afro-


brasileira na educação1

Elaine Cristina Moraes Santos2

O que significa Griot?


Em alguns países africanos, Griots eram os responsá-
veis por guardar e transmitir a sabedoria, a tradição e a his-
tória de seu povo, sendo também conhecidos como bibliote-
cas vivas e guardiões da cultura. Com maior predominância
na África Ocidental, os Griots são identificados como artistas
populares, como poetas, músicos, conselheiros, contadores de
histórias ou feiticeiros. Estes mestres, muito mais antigos que
a própria escola, nos ensinam o poder de formação presente
na arte da transmissão oral sedimentada nas tradições e cos-
tumes populares. De acordo com Niane (1982), os impérios
sudaneses, conhecidos como Império de Mali3 ou Mandinga,

1 Em Docência Compartilhada com a Profa Vilma Nardes da EMEF


Roberto Mange.
2 Pesquisadora e doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da FEUSP, sob orientação da Profa. Dra. Mônica do Amaral.
3 No auge do Império do Mali (séc. 14) que ocupava a zona do Chad
e Níger até ao Mali de hoje e Senegal. O império foi fundado por
SundiataKeita. No épico de Sundiata, o rei NareMaghannKonaté ofe-
receu a seu filho Sundiata, um griot, BallaFasséké, para assessorá-lo em
seu reinado. BallaFasséké é considerado o fundador da linha Kouyaté de
griots. (NIANE,1982). In: NIANE, D.T. Sundjata ou A epopeia Mandinga:
romance. São Paulo: Ed. Ática, 1982.
228 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

podem ser considerados o berço dos Griots, sendo o local em


que se perpetuaram as tradições ancestrais. Na tradição africa-
na, a palavra falada é a expressão viva da memória coletiva de
um grupo, sendo que a oralidade não implica na ausência de
capacidades relacionadas ao universo da escrita, mas apenas
o pertencimento a um mundo distinto, no qual predomina a
força da transmissão oral enquanto forma de preservação e de
enraizamento das narrativas e conhecimentos passados de ge-
ração em geração.

O termo Griot digital surgiu permeado por um aparente para-


doxo conceitual, uma vez que os recursos contemporâneos de repro-
dução da imagem – como a fotografia, vídeos e internet – são empre-
gados a favor da transmissão e preservação da cultura afrodescendente
na escola. Este trabalho sustenta a possibilidade de uma articulação
conceitual oriunda do encontro entre a oralidade e a imagem, o passa-
do e o presente, o esquecimento e a memória, cuja apropriação se dá a
partir de uma experiência educativa que busca criar uma nova narra-
tiva e identidade étnico racial. Mesmo que nestes dispositivos estejam
subjacentes mecanismos ideológicos de controle social, a proposta se
baseia em explorar esses recursos a partir de seu potencial emancipa-
tório de modo a permitir a livre circulação de ideias. Considerando
que esses aparatos digitais exercem um intenso poder de atração entre
os (as) jovens, o objetivo deste trabalho é explorar as possibilidades
de reversão dialética do uso destes aparelhos a partir da vinculação de
um conhecimento crítico que se relacione às experiências individuais
e coletivas de alunos (as) e professores. Assim, embora a sociedade
em rede caminhe em direção a uma cultura globalizada, neoliberal e
homogeneizante, em que o passado tende a ser esquecido, a subversão
desta lógica torna-se possível por meio da reelaboração da experiên-
cia e de um saber ancestral - representado simbolicamente pela figura
do Griot - que podem ser viabilizados pela exploração das potenciali-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 229

dades contemporâneas digitais. Para tanto, apresentamos uma abor-


dagem metodológica baseada em uma experiência empírica, realizada
durante dois anos na disciplina de informática, com alunos (as) de
8º/9° anos do ensino fundamental. Este trabalho teve três momentos
que se complementam e se distinguem de modo dialético:

1. O reconhecimento da identidade individual e


coletiva
2. A conexão entre o ancestral e as culturas juvenis
contemporâneas
3. Ressignificação da imagem e do espaço de
pertencimento

Cada momento será descrito de maneira detalhada, contudo,


tomamos o cuidado para que este livro não vire apenas mais uma
cartilha a ser entregue ao professor. Entendemos que as tecnologias
digitais trazem uma fonte inesgotável de informação que surge a todo
instante, por isso nas sugestões de atividades estamos apenas indican-
do um caminho de pesquisa para que cada educador possa encontrar
o conteúdo que se adeque a sua experiência na sala de aula. Assim,
algumas lacunas em termos de referências que utilizamos na pesqui-
sa podem ser encaradas como propositais, no intuito de fazer com
que este material não propicie uma mera reprodução de conteúdo,
mas que represente um caminho aberto para que o educador busque
outras fontes que fará sentido para o seu grupo, diante da troca esta-
belecida com cada um.

O reconhecimento da identidade individual e coletiva


Objetivos:
- Atividades que permitam o compartilhamento da his-
tória de vida de cada aluno (a) e que promovam o reconheci-
mento de uma identidade coletiva.
230 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

- Estimular a troca de experiências que remetam a situ-


ações do passado e do presente.
- Relacionar as narrativas pessoais às questões sócio his-
tóricas que permeiam a questão étnico-racial.

Sugestão de atividade

Você já ouviu falar na árvore do esquecimento?


O Baobá é considerado uma árvore sagrada da
África, possuindo um dos troncos mais grossos do mundo.
Dependendo do seu tamanho, é preciso mais de 100 pessoas
adultas de mãos dadas para poder abraçá-la. Ela é considerada
uma das árvores mais antigas da terra e seus galhos parecem
raízes de cabeça para baixo. Sua beleza parece demonstrar a
importância do enraizamento como um dos mais antigos en-
sinamentos da natureza. A união das raízes sustentadas pela
terra com os galhos que mais parecem raízes que se susten-
tam no ar é intermediada por um tronco largo e oco, no qual
a planta acumula água. Este tronco é capaz de matar a sede
de muitos africanos que no período de estiagem, abrem um
buraco no caule para beber água. A lenda conta que antes dos
africanos embarcarem no navio negreiro, para serem escravi-
zados no Brasil, eles realizavam um ritual que simbolizava a
experiência daquela travessia pelas águas do Atlântico, aprisio-
nados no navio negreiro. A cada volta ao redor da árvore, eles
receberam uma palavra de ordem para que deixassem naquele
lugar e continente, todas as pessoas que fizeram parte de seu
passado, enterrando no Baobá todos os planos, sentimentos
e experiências que os impedisse de viver o árduo futuro que
os aguardava. Assim, o Baobá passou a ser chamado de árvo-
re do esquecimento, pois os escravizados teriam deixando ali
toda sua memória. Aqui no Brasil, estes escravizados assumi-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 231

ram outros nomes e uma identidade muito diferente daquela


deixada aos pés do Baobá. O nome que identificava a vida e
trajetória singular de cada um, foi trocado por outro, que iden-
tificava a crueldade de torná-los objetos em série na mão de
senhores incapazes de reconhecer o valor de suas histórias.
Os frutos colhidos de tantas histórias enterradas, se multipli-
cam entre a vida de muitos Joãos, Marias, Santos, Silva, Souza,
Ferreira, Batista e diversos outros nomes e sobrenomes, que
formam uma nação entrelaçada com a história desta árvore. O
ensinamento que fica dos Baobás, como um dos elementos da
natureza mais antigos do mundo, mostra que, alguém muito
curioso em investigar sua própria história, não temendo dar
diversas voltas em torno da trajetória de dor que formam suas
raízes, certamente encontrará muitas histórias não contadas,
mal contadas ou que merecem ser recontadas.
232 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Como fazer?
Primeira etapa: Solicitar aos alunos (as) que investiguem a his-
tória do primeiro nome, bem como seu significado, e, posteriormente,
realizar uma pesquisa na internet sobre a origem de cada sobrenome.
Segunda etapa: Compartilhamento das experiências e algu-
mas questões que podem ser suscitadas:
O nome que nos foi atribuído e pelo qual somos chamados
carrega uma história individual e uma história coletiva. Que história
individual e coletiva é essa? Com base na história do Baobá, que tipo
de identidade coletiva fomos obrigados a esquecer? E por que será que
quiseram que ela fosse esquecida? Trazer à tona este conhecimento
que foi esquecido e negado influenciaria de alguma maneira nossa
história individual? Saber sobre um passado que foi convenientemen-
te apagado poderá de alguma forma ressignificar o nosso nome, nossa
identidade ou nossa história?

Relato da experiência vivenciada na sala de aula:


“Quando contamos a história do Baobá, ainda estávamos
em um processo de aproximação entre pesquisador, profes-
sor e aluno (a). No começo, não foi nada fácil, muitos ado-
lescentes ficavam inquietos e faziam brincadeiras durante
as aulas. Mas apesar das resistências apresentadas no início,
um dia fomos surpreendidos (as) com o retorno que os (as)
alunos (as) deram em relação a esta atividade. No início do
segundo semestre, após as férias do mês de julho fizemos
uma retrospectiva de tudo que havíamos aprendido até en-
tão. Surpreendentemente, os (as) alunos (as) se lembraram de
cada atividade. Quando perguntei sobre a primeira atividade
que realizamos, um aluno prontamente respondeu – “foi so-
bre a árvore” e, logo, foi dizendo as diversas características
relativas ao Baobá. Acredito que, o fato de os (as) alunos (as)
se lembrarem de uma atividade realizada há tempos atrás,
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 233

pode ser um sinal de que, de algum modo, a história produziu


algum efeito. ”
Elaine Santos – Pesquisadora

CONEXÃO ENTRE O ANCESTRAL E AS CULTURAS JUVENIS


CONTEMPORÂNEAS

Objetivos:
- Trabalhar com clipes, músicas e vídeos que despertem
o potencial crítico dos (as) adolescentes sobre o processo de
escravidão, as lutas abolicionistas e de resistência do negro, o
papel da República na institucionalização do racismo e as re-
presentações do negro no Brasil.
- Buscar referências de músicos e artistas que repre-
sentem a juventude negra e periférica que têm se utilizado da
tecnologia para se reinventar e criar seu próprio repertório cul-
tural, enquanto espaço de afirmação étnica, social e política.
- Explorar os limites e possibilidades que a internet pro-
porciona estimulando os (as) alunos (as) a assumir uma pos-
tura crítica, ativa, criativa e engajada frente a estes aparelhos.

Sugestão de atividade:
Letra: Serviço de Preto / Música de Daniel Garnet e Peqnoh

Imagine que você vive em harmonia


É livre tem pai e mãe, tem filho e filha
Num clique, numa armadilha, alguém te oprime
Regime que te humilha e te suprime
Reprime te aprisionando com gargantilhas
Presilhas, correntes não são bijuterias
Desiste, no porão negreiro o sol não brilha
Evite olhar pra trás no mar não ficam trilhas
É triste ser separado da sua família
234 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Progride a viajem em direção a ilha


Decide, calar-se ou apanhar por milhas
Não grite, aqui ninguém fala a sua língua
Seu tempo já não é dos astros e do universo
E sim a pressa do opressor que presa o progresso
Despreza o seu credo menospreza o seu costume
O clero impõe a crença e quer que você se acostume
A ser um bom escravo, e ao fim da vida ir pro paraíso
A gente já vivia nele antes disso
O que nos resta agora: trabalhar sem dia, sem hora
Sem escala, cem horas por semana, sem grana
Sem nada, sem pausa, com náusea, sem causa,
Com trauma são pretos ditos sem alma
Em jaulas chamas senzalas
Sem ganho, sem banho, o cheiro de morte exala
“éramos guerreiros príncipes e camponeses,
Agora nos denominam vagabundos, viajamos
Nos navios negreiros por meses, nosso mundo
Novo, agora é o novo mundo”
(Refrão) Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá e nunca vou
deixar de lutar...

Pesquisadora Elaine Santos


apresentando o álbum de
Daniel Garnet e PeQnoh
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 235

Como fazer?
Primeira etapa: Pedir aos adolescentes que escolham trechos
que mais chamam a atenção nas músicas de rap e estabelecer um di-
álogo entre o que diz a letra, as experiências dos (as) alunos (as) e os
fatos históricos.

Segunda etapa: Selecionar os trechos escolhidos pelos (as)


alunos (as) e para cada trecho elaborar perguntas que tragam referên-
cias históricas que se vinculem com a experiência individual dos (as)
adolescentes. Nesta parte da atividade, os (as) jovens vão ter a oportu-
nidade de se aprofundar no conteúdo proposto pela letra da música,
além de ampliar suas percepções históricas coletivas e individuais. As
respostas às perguntas poderão ser pesquisadas pelos (as) alunos (as)
na internet.

Exemplo: Trecho 1: Imagine que você vive em harmonia. É livre


tem pai e mãe, tem filho e filha. Num clique, numa armadilha, alguém
te oprime. Regime que te humilha e te suprime

Questão: No Brasil, a escravidão teve início com a produção


de açúcar na primeira metade do século XVI. Os portugueses traziam
os negros africanos de suas colônias na África para utilizá-los como
mão-de-obra escrava nos engenhos de açúcar do Nordeste. Os co-
merciantes de escravizados portugueses vendiam os africanos como
se fossem mercadorias. Os mais saudáveis chegavam a valer o dobro
daqueles mais fracos ou mais velhos. O transporte era feito da África
para o Brasil nos porões dos navios negreiros. Amontoados, em con-
dições desumanas, muitos morriam antes de chegar ao Brasil, sendo
que seus corpos eram lançados ao mar.

A partir do texto acima, quais outras situações de violência,


castigos e humilhações os escravizados sofreram?
236 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

E hoje, que tipo de humilhação e violência o negro sofre?


E você? Já sofreu alguma situação de humilhação ou violência?
Conhece alguém que já sofreu?

Trecho 2: Não grite, aqui ninguém fala a sua língua

Questão: Os negros que se estabeleceram no Brasil no período


colonial vieram de vários pontos da África. Os colonizadores os divi-
diam em grupos diferentes, para que eles tivessem mais dificuldades
de se comunicar entre si e deste modo, não conseguissem se rebelar.
Cerca de 300 línguas africanas foram trazidas para o Brasil, sendo que
já existiam mais de 1000 tipos de línguas indígenas. Mesmo obrigados
a falar a língua de seus dominadores, os africanos conseguiram rein-
ventar o português, influenciando diversas palavras de nosso vocabu-
lário. Só na Bahia, registram-se 5000 vocábulos de origem africana.

Cite 5 palavras que possuem origem africana?


Algumas palavras adquiriram tom pejorativo simplesmente
porquê eram de origem africana. Cite pelo menos 3 delas.
Assim como “Serviço de Preto”, outros termos, frases e citações
populares que se referem ao preto ou negro também carregam uma co-
notação preconceituosa. Muitas delas estão impregnadas no nosso vo-
cabulário e em nossa língua portuguesa. Você sabe dizer algumas delas?
Você alguma vez já foi se sentiu ofendido com algum apelido
ou palavra que falaram para você?

Trecho 3: Eu vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá: e nunca vou
deixar de lutar.
Questão: Quais são as principais desafios enfrentados hoje,
pelo jovem, negro, morador da periferia de São Paulo?
Qual o seu sonho? O que pretende fazer para vencer e chegar lá?
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 237

Trecho 4: Demonizaram as crenças, padronizaram a cultura


Inventaram doenças, democratizaram a escravatura
Questão: Que crenças são essas? Como as crenças da cultura
afro são vistas pela maioria das pessoas? Por que?
O que a música quer dizer com padronizaram a cultura?
Como você vê as religiões de matrizes africanas? Por quê? Você
já frequentou algum terreiro? O que você sabe destas religiões e quem
te falou sobre elas?

Trecho 5: Fomos escravos de ganho: mas, pro ganho de quem?


Trabalhamos para os senhores sem ganhar um vintém. Fomos agri-
cultores, construtores, estrategistas. Somos produtores, professores,
cientistas...
Questão: Quais os principais heróis negros de nossa história?
E por que eles foram importantes? Quais as pessoas da internet ou da
televisão que você admira? Por que?
Observação: Esta atividade poderá ser realizada com outras
letras de músicas do movimento hip-hop4. Para a elaboração das
perguntas é importante levar em consideração a história individual
e coletiva do afrodescendente para que este possa, cada vez mais, ir
relacionando suas experiências a partir de uma perspectiva histórica
e social.

4 Os livros com diversas abordagens metodológicas do Grupo de Pesquisa


O ancestral e o contemporâneo nas escolas: reconhecimento e afirmação de
histórias e culturas afro-brasileira que se referem as práticas educativas
por meio do hip-hop, trazem diversas referências de letras e atividades
que podem ser realizadas na sala de aula. In: TEJERA, D. B. O. Conversas
com versos: o Rap na disciplina de história como meio de estudo autobio-
gráfico, 2018. DIAS. C; LODUCA T. Hiphopnagô: letramentos rítmicos e
sonoros, 2018. JUNIOR, K.G.S. O Rap como estratégia didática em escolas
públicas de São Paulo, 2018.
238 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Terceira etapa: A partir dos trechos escolhidos por eles na pri-


meira etapa, estimule-os a recriar uma rima de rap de própria autoria
pautados na história individual e nos conhecimentos adquiridos ao
longo do processo.

Composição dos (as) alunos (as):


“Felipe5 é nome de príncipe
Mas você não vai encontrar isso no índice
Você pode procurar
Mas tenho certeza que você não vai achar
Sou louco mesmo,
Mas agora vamos ver
Se vai o primeiro guerreiro a vir enfrentar
E bater peito a peito
Perfeito, agora sou o eleito.”

“Éramos pretos buscando a liberdade


Eram pessoas que buscavam a libertação
Eram escravos que lutavam pela felicidade
É o negreiro buscando ser campeão.”

Relato da experiência vivenciada na sala de aula:


“Trabalhamos a música Serviço de Preto durante algumas ati-
vidades e, neste processo, tivemos a oportunidade de explorar
os limites e possibilidades que a internet nos proporciona em
termos de experiência para que pudéssemos, junto a questão
étnico-racial, estimular o pensamento crítico quanto ao uso
dos aparelhos. Em parceria com o rapper compositor da música

5 O aluno Felipe teve uma participação muito ativa e engajada em nosso


Projeto. Quando o adolescente soube da publicação deste material, ele fez
questão de enviar um depoimento sobre a relevância desta experiência
em sua vida.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 239

“Serviço de Preto”, os (as) adolescentes tiveram a oportunida-


de de estabelecer uma comunicação virtual e presencial com o
cantor. Primeiramente, o rapper, foi estabelecendo um diálogo
com os (as) adolescentes por meio de um vídeo, contando a his-
tória da música e do processo de criação da letra, e no final
do módulo, chamamos o rapper para dar uma aula presencial
aos alunos (as). Na medida do possível, tentamos explorar os
sentimentos despertados em cada experiência, buscando fazer
com que os (as) adolescentes discernissem que o vídeo gravado
especialmente para eles e a presença real do rapper na sala de
aula eram meios de se estabelecer uma comunicação entre eles,
mas que não eram a mesma coisa e não produziam o mesmo
efeito. Sabemos que nem sempre será possível recriar novas ex-
periências como essa, mas foi muito bacana tudo que vivencia-
mos e por isso, recomendamos todo o processo. Os (as) alunos
(as) ficaram encantados ao terem em sua frente um músico que
eles tinham aprendido a admirar e, por outro lado, puderam
perceber que as possibilidades virtuais permitiam que nos apro-
ximássemos de pessoas e conteúdos diversos.”
Elaine Santos – Pesquisadora
240 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

“Outro momento de mudez foi ver se materializar na sala o


Rapper Daniel Garnet, um dos autores da música “Serviço de
Preto” que eles (as) haviam estudado, autor do vídeo persona-
lizado com mensagens especialmente para eles e que naquele
momento estava ali, adentrando a sala para participar da aula
com os (as) alunos (as).”
Professora Vilma Nardes

Vídeo que o
rapper Daniel
Garnet fez para
os alunos

Momento que o
músico esteve na
sala de aula

RESSIGNIFICAÇÃO DA IMAGEM E DO ESPAÇO DE


PERTENCIMENTO

Objetivo:
- Realizar aulas de fotografia a partir de uma dimensão
crítica da imagem,
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 241

- Desenvolver um olhar objetivo, subjetivo e histórico


da imagem,
- Explorar o potencial das imagens estimulando os (as)
alunos (as) a assumir uma postura ética, ativa e criativa frente
a este recurso.

Sugestão de atividade:

Como fazer:
Primeira etapa: Trabalhar com conceitos básicos sobre foto-
grafia, como: enquadramento, posição da câmera (de baixo para cima
/ de cima para baixo / na altura dos olhos) e luz. Caso o professor não
tenha domínio destes conceitos ele poderá escolher um vídeo aula no
youtube sobre o assunto para assistir com os (as) alunos (as).
Segunda etapa: Discussão sobre o uso da imagem como uma
expressão da nossa experiência a partir da frase: “Nós não fotografa-
mos apenas com os olhos ou com uma câmera. Em nossas fotografias
estão os livros que lemos, os filmes que vimos, as músicas que ouvimos,
as pessoas que amamos” Ansel Adams
Terceira etapa:
Trazer imagens de cam-
panhas publicitárias, fo-
tógrafos ou referências
próximas a realidade
deles que suscitem uma
discussão sobre a ques-
tão racial. Em seguida
peça aos alunos (as) que
procure uma imagem na
internet que trate do assunto. Posteriormente, os (as) alunos (as) po-
dem tentar reproduzir no ambiente escolar uma fotografia que repre-
sente a imagem que eles escolheram na internet. Por fim, o professor
242 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

pode estimular os (as) alunos (as) e falar ou escrever o que buscaram


expressar através das imagens.

Relato da experiência vivenciada na sala de aula:


“Nosso Projeto contava com uma cinegrafista que era responsá-
vel por registrar, filmar e editar a experiência na sala de aula.
Por vezes, ela teve a função de orientar os (as) alunos (as) nos
conhecimentos voltados ao repertório técnico e audiovisual.
Por isso, neste primeiro momento contamos bastante com o seu
apoio para introduzir conceitos básicos sobre a fotografia. Como
os (as) alunos (as) gostam bastante de tirar fotos e fazer selfs,
eles se interessavam muito pelo conteúdo das aulas. Saber o me-
lhor ângulo para fazer boas imagens prendia a atenção deles.
Depois apresentamos algumas fotografias de campanhas publi-
citarias feitas pelo fotógrafo italiano Oliviero Toscani para uma
campanha da Benetton que ficaram mundialmente conhecidas
nos anos 1990. Todas as imagens traziam a questão racial e os
alunos foram estimulados a dizer quais eram suas impressões
sobre as imagens. Em seguida, propusemos que os (as) alunos
(as) encontrassem na internet alguma fotografia que chamasse
a atenção deles e que tivesse relação com as questões e concei-
tos básicos trabalhados. Quando os (as) alunos (as) saíram da
sala de aula com as câmeras na mão e buscaram reproduzir no
ambiente escolar as imagens que eles haviam selecionado na
internet foi uma experiência muito gostosa. Eles (as) saíram pe-
los corredores envolvendo as faxineiras na atividade, as crian-
ças. As imagens ficaram muito criativas e um adolescente que
constantemente revelava uma apatia muito grande em todas
as aulas, demonstrou esforço e empenho neste dia. Ele selecio-
nou uma bela foto de dois homens (um branco e um negro) e,
inspirando-se nela, escreveu sobre o amor que viu representado
naquela imagem. Conforme fomos nos aprofundando no tema
das imagens, os (as) alunos (as) foram ficando cada vez mais
envolvidos. Fomos explorando este universo a partir de uma
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 243

perspectiva crítica, ética, até chegar no uso da imagem como


expressão de denúncia e protesto contra o racismo e a opressão
da população negra. Lembro-me que no começo do projeto os
alunos não queriam ser filmados pela cinegrafista e, após algu-
mas aulas sobre o uso da imagem, eles não apenas deixaram de
apresentar uma resistência em relação à câmera, como passa-
ram a tomar a iniciativa de filmar as aulas, auxiliando volun-

Imagem da campanha
trabalhada em sala de aula

Fotógrafo:
Oliviero
Toscani

tariamente a cinegrafista nesta função.”


244 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Algumas produções dos (as) alunos (as):

Título: Mulheres negras e


guerreiras
Samantha Cristina Trindade
Silva e Bruna Cristiane
Amaral
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 245

Título: 100 Preconceito


Caio Patrick N. Cabral

Lívia Silva

Felipe Antunes
246 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Felipe Antunes

Flavio C. C.
Silva, Bruno A.
Anastácio, Adrian
C. de Macedo e
Pedro Henrique
Couto
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 247

Quarta etapa: A partir da frase: Uma imagem vale mais do


que mil palavras? os (as) alunos (as) devem ser instigados a pensar de
maneira crítica e criativa compreendendo que a fotografia é apenas
um recorte (ou versão) da realidade, podendo conter diversas inter-
pretações e significados. Divididos em grupos diferentes, os alunos
podem ser orientados a fazer registros de fotos conforme a orientação
do professor, sem que os outros grupos vejam ou saibam que imagem
eles estão criando. As orientações podem ser das mais simples e obje-
tivas, como também podem ser mais complexas e subjetivas, confor-
me mostraremos no exemplo abaixo. O espaço e os recursos materiais
disponíveis devem ser considerados para pensar nestas orientações
que serão dadas aos (as) alunos (as). O ideal é que cada grupo crie
uma imagem a partir da orientação do professor e, posteriormente,
todos os grupos tentem identificar o que os outros quiseram mostrar
através delas. Muitas interpretações vão surgir de uma única imagem
e elas devem ser registradas pelo professor, para que no final os (as)
alunos (as) possam visualizar todas as interpretações que foram dadas
para as imagens que eles criaram.

Quinta etapa: Para explorar a dimensão ética da fotografia, o


professor poderá trazer exemplos de casos em que o uso da imagem
foi empregado para falsear uma realidade e manipular a opinião pú-
blica. Fotografias manipuladas de grande repercussão que circularam
nas redes sociais podem ser facilmente encontradas na internet para
trabalhar esta questão.

Exemplo:
Orientação: Crie uma imagem com o seu grupo que retrate o
que significa ser negro na nossa sociedade.
Interpretações dadas à imagem pelos outros grupos:
“Parece uma peça de teatro!”; “Está limpando o pé!”; “Engraxando
o sapato!”; “Uma escrava!”; “Uma manicure!”; “Uma branca mandan-
248 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

do um negro limpar os pés!”; “Racismo!”; “Uma rainha!”; “Parece que


a moça está colocando um sapato na outra!” “Cinderela!”; “Sapato de
cristal!”; “Romeu e Julieta!”; “Pintando a unha da princesa!”; “Uma bo-
neca largada na cadeira!”; “Está limpando o tênis. Uma está com roupa
de bruxa e outra com roupa de cinderela.”; “É como se uma fosse mais
rica e nobre e a outra mais pobre e limpando o tênis.”

Sexta etapa: Ainda nesta perspectiva crítica da imagem, esta


atividade trata principalmente da história por trás da foto. Depois de
selecionadas diversas imagens de fotógrafos que tratam da questão
étnico-racial os (as) alunos (as) deverão escolher uma delas para rea-
lizar a seguinte analise:

Primeiro momento: Análise material da fotografia –


Tudo que é possível ver na imagem, livre de interpretação ou
julgamento.
Caráter objetivo da imagem: Aquilo que é concreto.

Perguntas norteadoras: Quais são os elementos ou obje-


tos da foto? Existem pessoas? Que roupas vestem? Quais suas
expressões? Qual o ângulo da foto? Como está o foco? E a luz?
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 249

A cor? Quais elementos (se houver) aparecem em segundo


plano?

Segundo momento: Análise imaterial e interpretativa


da fotografia
Caráter subjetivo da imagem: Baseado na interpretação do
sujeito

Perguntas norteadoras: Qual o contexto da foto? Qual


mensagem que a fotografia transmite? Por que você acha que
esta imagem foi feita? O que você acha que o fotógrafo queria
mostrar?

Terceiro momento: Pesquisa sobre o fotógrafo e sua


fotografia
Caráter histórico da imagem

Perguntas norteadoras: Quem fez? Por que fez? Qual


a data e localização da foto? Possui algum título ou legenda?
Qual?

Abaixo, algumas imagens e fotógrafos que podem ser inspi-


radores para esta atividade:

Moisés Patrício
250 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Pierre Verger

José Christiano Junior

Sebastião Salgado
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 251
252 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Marta Azevedo

Elliott Erwitt
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 253

Joana Choumali

Rosana Paulino
254 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Sétima etapa: Por fim, é possível provocar uma vivência dos


processos individuais e coletivos trabalhados na sala de aula, com a
elaboração de projetos que visem uma atuação ou intervenção na cul-
tura e no território da comunidade. Fazendo uso de recursos conven-
cionais e das novas tecnologias da informação e da comunicação, os
(as) alunos (as) podem ser estimulados a pensar nas problemáticas do
bairro e como as mesmas se articulam com a questão étnico-racial.
Em consonância com o Trabalho Colaborativo Autoral (TCA), pre-
visto no currículo das escolas municipais de São Paulo, que visa a sis-
tematização de pesquisas que estimulem os (as) alunos (as) a pensar
nas soluções de problemas locais, a fotografia pode ser um recurso
utilizado a favor da denúncia e da ressignificação do olhar sobre a
comunidade. O uso da imagem para a formação da identidade social
poderá repercutir em diferentes propostas políticas, estéticas, éticas
e afetivas por meio das quais os (as) alunos (as) tenham condições
de se sentir protagonistas, responsáveis e estimulados para atuar na
transformação de sua realidade local.

Relato desta experiência:


“Uma das atividades que realizamos foi um passeio pelo bairro
onde os (as) adolescentes fizeram diversos registros fotográficos da co-
munidade. Depois de uma apropriação crítica e criativa destes dispositi-
vos na sala de aula, um simples passeio pelo bairro pode se transformar
em um poderoso protesto contra as práticas de racismo e preconceito
que são engendradas na experiência cotidiana e cuja repercussão se ex-
pande para além dos muros da escola. Os (as) alunos (as), com as câme-
ras na mão capturaram muitas imagens das pessoas do bairro, a quem
eles pediam para fotografar. Buscando ressignificar a música “Serviço de
Preto”, que havíamos aprendido no início do semestre, cada aluno (a)
com uma frase da música na mão buscou trazer em imagens a realidade
daquele bairro conectada à letra de rap que haviam aprendido. Uma
nova imagem para a música “Serviço de Preto” surgia através do entre-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 255

laçamento entre o passado e o presente de nossas aulas que se expressa-


va no olhar atento e sensível dos (as) alunos (as) a cada detalhe daquele
território. A palavra liberdade foi associada à leveza do balanço de uma
criança negra brincando no parque. Já a imagem dos catadores de lixo
do bairro representou uma parte da música que dizia: “O que nos resta
agora: trabalhar sem dia, sem hora, sem escala, cem horas por semana,
sem grana, sem nada, sem pausa, com náusea, sem causa. Com trauma
são pretos ditos sem alma.”. Quanto ao refrão da música, que diz “Eu
vou viver, eu vou vencer, vou chegar lá”, os (as) adolescentes tiraram
uma foto de um homem negro e forte, fazendo exercícios de barra pró-
ximo à escola. Percebemos que eles conseguiram extrair da realidade
detalhes que antes passavam desapercebidos pelo olhar apressado e “na-
turalizado” do cotidiano. A denúncia de cada fragmento da realidade
daqueles jovens pode ser capturada pelas câmeras que eternizaram, por
meio das imagens, a desigualdade do contexto que eles vivenciavam.
O simbolismo presente na palavra “revolução” fotografada no muro ou
ainda, a imagem do morador de rua descansando no banco da praça ao
lado de um cachorro representava uma bela e dolorida expressão artísti-
ca e estética conectada à experiência de cada adolescente que se dispôs a
captar aquelas imagens. O fascinante encontro de narrativas presentes
naquelas fotografias provocou um elo significativo entre o passado e pre-
sente representado na música e na realidade vivenciada naquele espaço.
Foi um passeio muito vivo e repleto de sentidos entre o que pudemos
aprender juntos em sala de aula conectado ao lugar de pertencimento
de cada adolescente que participou desta experiência.
256 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 257

Encerramento do Projeto Griot Digital:


Após dois anos do Projeto Griot Digital (2016/2017), finaliza-
mos nossas atividades com uma descontraída comemoração na Skate
Park Cavepool6. Neste ambiente diferenciado, os (as) adolescentes
compartilharam seus aprendizados, cantaram, jogaram capoeira, fize-
ram registros fotográficos, brincaram com os professores na pista de
skate, e se despediram do 9° ano levando na bagagem outras versões
do passado e novas possibilidades para o futuro.

6 A Cavepool fica localizada na região do Butantã, próximo a escola.


Agradecemos ao Ramon Zayas, proprietário do espaço, pela parceria e
por acreditar neste trabalho.
258 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Depoimentos sobre a experiência no Projeto Griot Digital:


Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 259

“Percebo hoje alunos (as) mais fortalecidos, mais empodera-


dos, aos poucos elevando a auto estima com a discussão de nos-
sa ancestralidade africana e a valorização de seus saberes. Foi
lindo ver a felicidade de cada um nas oficinas de fotografia...”
(Professora Vilma Nardes )

“No Projeto percebi que entrar em contato com as histórias


difíceis de serem contadas, não significava simplesmente
lembrar-se de algo ruim, representa trazer à tona outras ver-
sões muito mais potentes de nós mesmos. Os recursos digitais
utilizados a favor deste passado doloroso, mas poderoso, tra-
zem um encantamento capaz de unir experiências individuais
e coletivas, nos oferecendo novas possibilidades de conexões
que até pouco tempo atrás, eram impossíveis.”
(Pesquisadora Elaine na finalização do Projeto)
Cap. 8. Grupo de estudos
junto à coordenação
pedagógica para pensar a
questão étnico-racial
262 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Apresentação
Patrícia Hetti1 desenvolveu um trabalho de formação das
coordenadoras pedagógicas da EMEF Saturnino Pereira, Elisangela
Leal e Odete Carvalho, com o objetivo de proporcionar momentos de
leitura e reflexões a partir de determinados teóricos que trataram da
questão do negro no Brasil desde o século XIX até o momento atual,
envolvendo temáticas relativas a questões étnico-raciais, o processo da
diáspora negra, para que relacionassem estes temas ao debate sobre o
preconceito e o racismo na sociedade brasileira e na escola em parti-
cular. A questão para as coordenadoras era como enfrentar o racismo
presente nas práticas cotidianas na escola. Para este enfrentamento,
sentiam necessidade de uma discussão aprofundada das dimensões
histórico-sociais do racismo brasileiro.
Trabalharam incialmente com autores brasileiros, como
Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Kabengelê Munanga, no cam-
po sociológico e para explorar a dimensão psicológica, estudaram o
livro Psicologia Social do Racismo, organizado pelas Professoras Iray
Carone e Maria Aparecida Silva Bento.
Neste trabalho realizado com as coordenadoras pedagógicas
da EMEF Saturnino Pereira pode amadurecer toda uma discussão so-
bre a questão do racismo institucional, que se encontrava presente na
cultura escolar, assim como no ritual e práticas pedagógicas, o que, de
algum modo, dificultava o avanço de propostas inovadoras como a
que nos propunhamos a realizar.
Daí a importância do trabalho da psicóloga Ohara que
discutiu o papel das docências compartilhadas com o conjun-
to dos(as) professores(as) e de nosso trabalho em sala de aula com
os(as) professores(as) parceiros(as), conjuntamente com artistas e
pesquisadores(as).

1 Doutora em Educação pela FEUSP e Profa do Instituto Federal de


Educação Tecnológica de São Paulo.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 263

O trabalho realizado pela psicóloga Ohara de Souza Coca foi


essencial para a difusão das ideias de nosso projeto no interior da es-
cola, dando continuidade ao trabalho desenvolvido pelo pesquisador
pós-doc Álvaro Camargo.
Ohara, depois de ter criado um ambiente de confiança com
os(as) professores(as), introduziu a temática das docências comparti-
lhadas, convidando, inicialmente, os(as) professores(as) engajados(as)
nas parcerias de nosso projeto a expor suas experiências com os arte-
-educadores(as) e pesquisadores(as) em sala de aula, para depois fa-
zer com que os(as) mesmos(as) repensassem, em duplas, estratégias
didáticas alternativas.
Com isso, ampliou o universo de trocas de experiências em
sala de aula entre os(as) professores(as), contribuindo, assim, para
uma reflexão aprofundada sobre o papel do professor em sala de aula.
Embora muitos se queixassem das coisas que não funcionavam na
escola (como os aparelhos que falhavam na hora da aula), o que os
frustrava bastante, foi possível fazê-los(as) pensar sobre a importância
das formas lúdicas de ensinar, da relevância das culturas populares, do
conhecimento dos modos de vida e de pensar dos povos indígenas e
afro-brasileiros desde os tempos coloniais, com ênfase nas conquistas
e não apenas nas derrotas e humilhações sofridas por esses povos.
Portanto, mesmo que Ohara tenha observado que nas propos-
tas de aula alternativas, a temática étnicorracial pouco surgiu, uma
transformação estava sendo produzida naquele ambiente de profes-
sores. Ao perceber que esta temática não estava sendo tratada devida-
mente, Ohara ainda propôs uma discussão sobre o mapa da violência,
o que necessariamente traria à tona a questão racial, uma vez que nele
ficava estampado o genocídio a que a juventude negra, moradores da
periferia, encontravam-se submetidos.
Também desenvolveu discussões sobre a adolescência do pon-
to de vista psicanalítico e social, procurando desenvolver neles um
olhar atento, tanto para a realidade do(a) jovem negro(a) morador(a)
264 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

da periferia, quanto para a comunidade da qual faziam parte os(as)


alunos(as) daquela escola.
Ohara ainda conseguiu por meio de jogos e dinâmicas de gru-
po fazer com que os(as) professores(as) rompessem estereótipos, ou
no mínimo repensassem suas ideias pré-formadas que os(as) levavam
a ter atitudes preconceituosas. Foi importante esta discussão para
que pudessem inclusive repensar suas relações com os(as) alunos(as)
considerados(as) difíceis e a prática de suspensão do(a) aluno(a) pode
ser discutida mais aprofundadamente.

A formação da coordenação pedagógica e a questão


étnicorracial na escola

Maria Patrícia Cândido Hetti2

Ao entrarmos em contato com as coordenadoras pedagógicas3


da escola e com o grupo de professores, percebemos quão essencial
era o trabalho exercido por elas junto aos professores e o papel fun-
damental que poderiam exercer para o encaminhamento do proje-
to na escola. Tanto foi assim que, ao longo de toda a pesquisa, as
coordenadoras viabilizaram parcerias, organizaram os horários das
docências compartilhadas dos professores, artistas e pesquisadores,
enfim, viabilizaram o processo de formação docente, além de estarem
à frente da organização de eventos coletivos que davam visibilidade
aos trabalhos realizados em sala de aula.
Diante de tantas demandas, as coordenadoras pedagógicas
que, desde o início do projeto, entenderam a necessidade e a impor-
tância da atuação dos pesquisadores no contexto escolar, sentiram a
necessidade de um momento para refletir, planejar e organizar suas

2 Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Educação da FEUSP e


Profa do Instituto Federal de Educação Tecnológica de São Paulo.
3 Este trabalho foi realizado junto às coordenadoras pedagógicas, Elisângela
Silva do Amaral e Odete Silva Carvalho, da EMEF Saturnino Pereira.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 265

ações dentro da escola. Momento em que foi solicitada realização de


um grupo de estudos somente com as coordenadoras, que teria como
objetivo proporcionar um espaço para reflexão sobre suas ações na
escola e no projeto, bem como para realizar leituras e pesquisas sobre
a questão étnicorracial na sociedade brasileira.
Nos encontros, foram realizados debates e análises referentes à
discussão da história do Brasil do ponto de vista da história e cultura
negadas dos afrodescendentes, principalmente no sentido de com-
preender a nossa formação, tendo a escravidão negra como elemento
importante para entender as bases das relações sociais e étnicorraciais
brasileiras, as instituições sociais e o racismo institucional. E, de ma-
neira mais precisa, como tudo isso interferia na instituição escolar,
bem como na história individual e coletiva.
As coordenadoras buscaram fundamentos teóricos que permi-
tissem compreender o racismo e o preconceito na sociedade brasilei-
ra e a necessidade de uma educação que valorizasse as culturas das
populações historicamente excluídas. Consideraram importante uma
educação que desvelasse o racismo e o preconceito, mas se ressentiam
da falta de fundamentos consistentes para demonstrar aos docentes a
necessidade e a importância de uma educação emancipatória e crítica
do ponto de vista étnicoracial.
Os primeiros temas abordados nas reuniões foram as teorias ra-
ciais europeias do final do século XIX e como estas teorias foram imple-
mentadas no contexto pós-abolicionista no Brasil. Após entendermos
que algumas narrativas atuais sobre o negro remontavam àquele perío-
do, começamos a articulá-las aos discursos correntes no espaço escolar.
Tais debates foram significativos, pois desde o início, perceberam que
as novas leituras conferiam outra perspectiva e um novo olhar às ações
e ao trabalho realizado junto aos professores na escola.
A busca de um fundamento teórico foi se consolidando cada
vez mais, uma vez que permitiu que as coordenadoras se tornassem
mais seguras nas atitudes e discursos adotados perante a comunida-
266 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

de escolar. As discussões foram trazendo à tona outros aspectos da


temática étnicorracial. Analisamos textos de autores, como Gilberto
Freyre, Florestan Fernandes e Kabengele Munanga, para nos aprofun-
darmos sobre a narrativa da mestiçagem e a questão da integração do
negro na sociedade após a abolição da escravidão.
Além dessas análises, percebemos a necessidade de analisar-
mos questões que tocavam diretamente na relação entre a escola,
como instituição, e os alunos: a questão do corpo negro. Ponderamos
sobre a complexidade de ser negro na sociedade brasileira, como os
brancos se comportavam diante do homem negro e da mulher negra
e como poderíamos começar a compreender a construção da subjeti-
vidade negra.
Um autor importante para iniciarmos tal debate, foi Frantz
Fanon. Em Pele negra, máscaras brancas (2008), buscamos anali-
sar, principalmente, como o autor expõe o problema da constituição
do sujeito negro no interior do universo narcísico branco, uma vez
que o negro, ao ser assimilado à ideologia do branco, não encontra
no trabalho a condição de sua libertação como preconizara Hegel
(1807, 1974), mas ao contrário, vê-se aprisionado ao ideal do senhor.
Sustenta que, para reverter esse destino dado ao sujeito negro, seria
preciso promover uma ruptura com toda a racionalidade branca oci-
dental e com esse outro de si (branco) que nele se inocula, para ir ao
encontro de seu corpo negro, do ritmo e da consciência negra em
sua “densidade absoluta”. A força do texto de Fanon permitiu-nos
compreender os mecanismos sociais, econômicos e psicológicos do
processo de embranquecimento a que deram lugar, tanto as políticas
adotadas no Brasil Colonial e Pós-Colonial, como todo o processo de
colonização da África que perdurou até o final do século XX.
Ainda seguindo a discussão sobre o corpo negro, outro aspecto
importante nas discussões foi a temática da beleza negra. Utilizamos
vários textos para abordar este aspecto, pois no cotidiano escolar a
questão da cor, do corpo e do cabelo eram constantemente lembra-
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 267

dos das mais variadas formas nas relações entre os membros da co-
munidade escolar. A negação do sujeito negro presente nas falas, nos
comportamentos e nos silêncios das pessoas na escola foram focos
importantes para o debate com as coordenadoras.
Para finalizar nossas discussões, analisamos a teoria crítica com
a apresentação dos seus principais autores e com especial atenção para
a teoria do reconhecimento de Axel Honneth em sua obra Luta por
reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003).
Buscamos estabelecer um diálogo entre “a gramática moral dos con-
flitos” proposta pela teoria do reconhecimento do autor, com base na
formação do indivíduo a partir de relações intersubjetivas e em uma
prática pedagógica que atentasse para a compreensão do processo de
negação dos valores e dos direitos da população negra no Brasil, bem
como das lutas pelo reconhecimento desse grupo excluído.
Adotamos, ao longo do percurso, um processo de formação
pautado em uma abordagem crítica sobre como a questão étnicorra-
cial é vivida nas escolas, despertando um novo olhar sobre as relações
raciais nesse ambiente e sobre como o processo histórico brasileiro
pode levar os negros à negação de sua própria natureza e cultura, re-
sultando, muitas vezes, em uma baixa autoestima, que os faz buscar
no embranquecimento um lugar de pertencimento na sociedade.
Ao examinarmos a complexidade das relações sociais existen-
tes em nosso país, deparamo-nos com a necessidade de desenvolver
discussões fundamentadas em uma compreensão dialética da forma-
ção do eu e do outro a partir de relações intersubjetivas, mediadas por
conflitos e tensões interrraciais e de classe, muitas vezes, não explici-
tadas. O processo de reconhecimento do outro, do reconhecimento
de direitos e de valores de uma cultura indicam a possibilidade de
enriquecimento social, no sentido de entender que na relação com
o outro emergem conflitos e possibilidades de superação que podem
fazer com que a sociedade rompa com mecanismos retificadores.
268 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

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270 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

O Grupo Operativo como estratégia de reflexão:


a experiência da Docência Compartilhada

Ohara de Souza Coca1

A proposta deste trabalho surgiu a partir da percepção dos


arte-educadores/pesquisadores do projeto sobre a necessidade de um
espaço de escuta para que os professores pudessem expor suas dú-
vidas e refletir sobre os desafios relacionados à prática da docência
compartilhada2. Também foi objeto desta pesquisa perceber como o
conjunto dos professores, com base nesta experiência, poderia repen-
sar os conteúdos de suas disciplinas relacionando-os com a história da
África e cultura afro-brasileira para a efetivação da Lei 10.639/2003
em sala de aula. Desta forma, visando contemplar a maior parte do
corpo docente da escola, foram formados dois grupos operativos
na EMEF Saturnino Pereira durante o horário da JEIFE (Jornada
Especial Integral de Formação), coordenados pela psicóloga, Ohara
de Souza Coca.
Como objetivo principal, buscou-se oferecer um espaço conti-
nente para os docentes, sendo-lhes possível expressar suas angústias,
ansiedades, sentimentos e desafios coletivos relacionados à prática da
docência compartilhada no cotidiano da escola. A técnica do grupo
operativo, centrada em uma atividade, permitiu trabalhar as deman-
das de acordo com as necessidades apresentadas pelos professores,
envolvendo um processo dinâmico de grupo. A partir da problemati-
zação da realidade e vivência grupal, foi possível promover um espaço

1 Psicóloga e Bolsista Técnica pela FAPESP (TTIII).


2 Proposta que busca compartilhar docências entre diferentes disciplinas.
No projeto de políticas públicas “O ancestral e o contemporâneo nas esco-
las: reconhecimento e afirmação de histórias e culturas afro-brasileiras”, a
docência compartilhada ocorreu entre professores, pesquisadores e arte-
educadores, tendo por objetivo a interlocução do que é ensinado em sala
de sala e as culturas afro-brasileiras.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 271

de reflexão e uma possível mudança dos envolvidos no que diz respei-


to aos desafios da docência. Simultaneamente, também foram traba-
lhadas questões relacionadas ao grupo, como melhoria dos vínculos,
sentimentos de afiliação e pertença3, cooperação4 e pertinência5. Os
membros puderam ser escutados e acolhidos, e por meio das trocas
e reflexões buscou-se oferecer a possibilidade de ressignificar temas
relacionados ao contexto escolar.
As atividades do 1º semestre tiveram um caráter mais pessoal,
permitindo que os professores falassem sobre suas vivências, reto-
mando e ressignificando a escolha da profissão, e também comparti-
lhando uma experiência significativa referente à pratica da docência.
A partir de uma atividade em que não era necessário se identificar, o
grupo pode expor e discutir sobre os principais desafios encontrados
na docência, como: a dificuldade de comunicação com os colegas de
trabalho e estudantes; indisciplina em sala de aula; dificuldades para
compreender e lidar com os alunos, entre outras situações. Na medi-
da em que foram se sentindo mais à vontade, o grupo de professores
trouxe demandas advindas do trabalho com os adolescentes, que fo-
ram acolhidas e trabalhadas, envolvendo temáticas, como: suicídio,
automutilação, luto, frustrações e expectativas em sala de aula.
No segundo semestre, tomando em consideração o vínculo es-
tabelecido entre os envolvidos no presente projeto, o ritmo dos grupos
e as reflexões suscitadas, adentramos de fato na temática da docência
compartilhada e questões ligadas ao projeto, como o preconceito ra-
cial e a possibilidade de implementar novas estratégias didáticas. Os

3 PICHON - RIVIÈRE (1991) estruturou uma avaliação do processo gru-


pal por meio de 6 vetores: Afiliação e Pertença, cooperação, pertinência,
comunicação, aprendizagem e tele. A afiliação e pertença indicam o grau
de envolvimento do indivíduo com o grupo e a tarefa.
4 Cooperação: Capacidade que cada indivíduo tem para colaborar com os
demais membros e com a coordenadora do grupo.
5 Pertinência: proposta de centrar o grupo na tarefa proposta, rompendo
estereótipos, ansiedades e vencendo a resistência à mudança.
272 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

encontros foram mais dinâmicos, com discussão de filmes, apresenta-


ções das docências compartilhadas envolvendo slides, músicas e tre-
chos das filmagens e vídeos produzidos pelo projeto “O ancestral e o
contemporâneo nas escolas: reconhecimento e afirmação de histórias e
culturas afro-brasileiras” (Fapesp:2015/50120-8).
Além das apresentações das docências compartilhadas de-
senvolvidas no projeto, houve uma atividade específica em que os
professores deveriam criar e apresentar, em duplas, uma proposta
semelhante. No decorrer da atividade, foi possível discutir sobre dife-
rentes estratégias didáticas possíveis, além de propiciar uma reflexão
sobre as dificuldades e benefícios da implementação de tais propostas.
Chamou a atenção como, mesmo após este mergulho propiciado pelo
compartilhamento de experiências envolvendo temáticas étnicorra-
ciais, prevaleceu uma dificuldade de pensar em aulas falando direta-
mente de temáticas afro-indígenas e cultura popular, destacando-se a
necessidade e a importância de se atuar de forma coletiva, para que
se rompa com preconceitos e estereótipos e para que se promova a
valorização destas culturas.
O artigo de OLIVEIRA & FULGÊNCIO (2010), “Contribuições
para o estudo da adolescência sob a ótica de Winnicott para a Educação”,
possibilitou uma ampla discussão sobre a adolescência, uma vez que
o texto propiciou uma identificação dos grupos com algumas situ-
ações apontadas no texto e o aprofundamento de reflexões sobre a
relação professor-aluno e a importância de desenvolver o vínculo afe-
tivo. A partir deste artigo, foi possível expor um pouco mais sobre
as características da adolescência e principalmente o papel da escola
e do professor. Neste contexto, os autores enfatizaram a importância
do (a) professor(a) conseguir reconhecer a necessidade dos alunos e
de se adaptar da melhor maneira às necessidades dos alunos, criando
condições para desenvolver a capacidade criativa dos jovens, além de
propiciar um espaço de troca de experiências, comunicação e con-
vivência. De acordo com uma perspectiva winnicottiana, o papel da
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 273

escola, como “ambiente suficientemente bom”, deveria ser o de apoiar


o adolescente em seu amadurecimento, propiciando-lhe os cuidados
e também os limites, mas, sempre de forma dialógica e compreensiva.
Considerando a escola como um ambiente que sofre impac-
to de tudo o que acontece na sociedade, percebe-se a necessidade de
preparar os professores não apenas teoricamente, mas principalmente
do ponto de vista psicológico e emocional, tornando possível lidar
com as demandas dos alunos e da escola de modo salutar. O grupo
operativo permitiu desenvolver um olhar dinâmico sobre o grupo,
bem como a possibilidade de, por meio de tarefas, trabalhar também
a dimensão inconsciente do grupo, atuando sobre as fantasias, medos
e ansiedades do professor em determinadas situações em sala de aula.
Percebeu-se como sendo fundamental a realização de trabalhos junto
aos alunos que despertem neles o senso crítico, permitindo aos envol-
vidos refletir, aprender, assim como a possibilidade de solucionar os
conflitos de forma criativa, enxergando além do que lhe é habitual.
O grupo operativo como estratégia de reflexão demonstrou-se
efetivo, mas foi apenas o início de um processo de trabalho em grupo,
por meio do qual se procurou propiciar aos professores uma autorre-
flexão a partir de uma experiência didática renovadora.

Bibliografia
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janei-
ro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que esta-
belece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currí-
culo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm
OLIVEIRA, D. M. de & FULGÊNCIO, L. P. Contribuições para
o estudo da adolescência sob a ótica de Winnicott para a Educação.
Psicologia em Revista. São Paulo, 2010, 16(1): 67-80.
PICHON - RIVIÈRE, R. O processo grupal. (4a ed.). São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
Considerações finais

O conceito de Epistemologia do Sul, de Boaventura de Souza


Santos, foi essencial para alinhavar um novo paradigma teórico para
tratar das questões relativas ao conhecimento que acreditávamos ser
essencial para romper com o eurocentrismo reinante nas escolas de
nosso país, seja do ponto de vista do conhecimento ali reproduzido,
seja do ponto de vista dos rituais da escola.
A própria forma com que estruturamos a pesquisa, envolven-
do culturas populares, ancestrais e contemporâneas, em diálogo com
as disciplinas de história, português, leitura, literatura, educação físi-
ca, matemática, etc, por meio da docência compartilhada em sala de
aula, significou também uma ruptura com o chamado conhecimento
cientifico neutro e universal, na verdade, eurocêntrico e com a ideia
que sempre o acompanhou de uma separação rígida entre sujeito e
objeto da pesquisa. Esse passo implicou um forte empenho dos(as)
pesquisadores(as) e professores(as) em busca de um conhecimento
culturalmente relevante, sempre em diálogo, ainda que tenso, entre o
conhecimento oficial e os saberes oriundos de práticas populares com
as quais os(as) alunos(as) estavam familiarizados(as), permitindo que
estes(as) se reconhecessem no conhecimento construído em sala de
aula, passando a ver nele algo significativo para suas vidas.
De outro lado, dentro de uma perspectiva afrocêntrica, pro-
curou-se trazer as práticas circulares de matriz africana presentes nas
culturas ancestrais, como na capoeira e no maculelê, no teatro negro,
ou mesmo nas contemporâneas, como nas artes do hip-hop, envol-
vendo o rap, o breaking e o graffiti, de modo a romper com toda e
qualquer linearidade entre o passado e o presente numa perspectiva
evolucionista.
276 Mônica do Amaral • Rute Reis
Elaine Santos • Cristiane Dias (orgs.)

Outra questão importante foi o trabalho realizado em todas


as docências compartilhadas no sentido de desnaturalizar as diferen-
ças, procurando encaminhar as reflexões em sala de aula em direção a
uma concepção de diferença como valor, sem que isso implicasse em
justificativa para ocultar as desigualdades étnicorraciais e de classe.
Uma preocupação que sempre esteve presente de maneira a oferecer
subsídios para que alunos(as), professores(as) e coordenação pudes-
sem enfrentar teoricamente a questão do racismo.
Nosso projeto visou a construção de uma educação emancipa-
tória e da necessidade de reconhecimento das culturas e identidades
de nossas populações historicamente prejudicadas, conforme aponta-
do por Axel Honneth (2003)1 - no caso os afrodescendentes e indíge-
nas – que procurasse pensar na formação do aluno, na mesma direção
apontada pelo filósofo Theodor Adorno (1995)2, que se preocupou
com o desenvolvimento do sentido de humanidade, voltado para o
encontro com o outro, não idêntico.
E, por fim, uma preocupação que ganhou novos contornos
quando tivemos contato com o livro A crítica da Razão Negra, de
Mbembe (2017)3, que defende a descolonização do modo de pensar
eurocêntrico, baseado no respeito ao outro, mas que necessariamente
deve ser acompanhado, não apenas do reconhecimento dos direitos
de identidade, mas de um outra concepção de justiça e de respon-
sabilidade social, capaz de reparar os danos infligidos aos povos que
foram efetivamente prejudicados pelo racismo sofrido. Estas refle-
xões nos fizeram pensar inclusive no racismo institucional que está

1 Honneth, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos


sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
2 Adorno, T.W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
3 MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa:
Antígona, 2017.
Culturas ancestrais e contemporâneas na escola 277

impregnado nas práticas escolares e que há muito tempo vêm sendo


naturalizadas.
Acreditamos, por fim, que este livro possa oferecer às escolas
um conjunto de sugestões de atividades e literatura, necessárias ao
desenvolvimento pleno de uma didática e de um currículo descolo-
nizados, desenvolvendo as habilidades e competências essenciais para
que possamos dialogar com o mundo global a respeito de novas pers-
pectivas para uma educação equitativa e de qualidade para todos (as).
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Esta obra foi impressa em São Paulo no


outono de 2018. No texto foi utilizada a fonte
Minion Pro em corpo 10,3 e entrelinha de
15,3 pontos.

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