255 - Lélia Gonzalez
255 - Lélia Gonzalez
255 - Lélia Gonzalez
coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Marcelo Semer
Wilson Gomes
inédito
livros
Era dia. No salão de um restaurante, ricos e poderosos comiam um brunch. Uns e outros me mediam da
cabeça aos pés, sem disfarçar o incômodo com a outsider. Então chega Luciano Huck, acompanhado de
alguns assessores, e começa a reunião.
Como jamais faço, pedi a palavra de início. E o que deveria ser uma intervenção rápida e objetiva
toma forma de discurso:
“Apesar da violência de estar hoje aqui, com vocês dirigindo a mim os olhares que sempre dirigem,
venho por um compromisso, por entender que é muito necessário.
Vocês são o elemento de fronteira entre nós, Coalizão Negra por Direitos, e aqueles que matam 63
jovens negros por dia no Brasil. Vocês têm nas mãos o poder de iniciar uma mudança de paradigma na
sociedade brasileira. Com vocês posso conversar, esperando resultados concretos, sobre reparação.
Até algum tempo atrás, eu toparia vir aqui pedir dinheiro para as ações que realizamos em diferentes
frentes. Hoje, não acredito mais nesse eterno enxugar de gelo que não muda nada estruturalmente. Os
milhares (em alguns casos milhões) que vocês nos entregam para realizar projetos nas favelas, periferias
e até no Congresso Nacional se parecem muito com as moedas que nossos antepassados mendigavam
nas ruas para não morrerem de fome, mas que nunca mexeram na estrutura. Ao contrário, nos permitiram
chegar a 2020 com a mesma estrutura social de 1888: negras e negros na base, nas cadeias, deixados
morrer à margem de direitos, executados em praça pública.
Não. Não venho mais pedir dinheiro. Venho aqui hoje falar em política de drogas e reparação.
Porque das mais de 726 mil pessoas presas, 64% são negras. E 28% foram condenadas por tráfico de
drogas. Incluindo Vinicius, meu irmão, cumprindo sete anos, depois de já ter cumprido cinco anos e
meio em uma condenação anterior.
Com a possibilidade de regulamentar ou legalizar o comércio de drogas, esses meninos, que foram
presos por realizar essas vendas, precisam ser os donos e os trabalhadores desse negócio.
Vocês não colocam a mão no bolso ao construírem esse passo efetivo de reparação conosco. Nem
para nos doar nada, nem para embolsar os lucros do novo nicho (compreendendo, lógico, que ninguém
aqui nunca lucrou com o tráfico; podemos seguir com a premissa de que só lidaram com drogas de forma
ilegal os meninos presos, os negros ou os vulneráveis nas favelas e periferias). Precisamos do
compromisso e da ação efetiva de vocês para esse processo de reparação.
Como vai funcionar na prática? Vocês têm mais experiência no planejamento que nós. Sem
enganação, submissão ou apropriação, conseguimos trabalhar nisso juntos? Com solidariedade,
generosidade, para tornar o Brasil mais justo racialmente, menos desigual social e racialmente? Podemos
trabalhar nisso juntos?”
E então acordei, chocada com meu inconsciente.
coluna
Começamos rindo do terraplanismo e acabamos com frio na barriga ao ouvir as palavras de Goebbels ao
som de Wagner. A comunidade universitária se indignou com a esdrúxula acusação de que seus campi
eram plantações de maconha; mas o susto veio ao ver o index de obras que deveriam ser recolhidas das
escolas públicas de Rondônia, entre elas autores como Rubem Alves e Machado de Assis, Franz Kafka e
Mário de Andrade.
Ao contrário da frase de Marx, parece ser a farsa que vai se repetir em tragédia. O que à primeira
vista aparenta ser descabido e folclórico, vai se tornando real e ameaçador: uma nova ordem que orbita
entre o tosco e o letal.
O ataque frontal à cultura, para “conter a depravação”; a Blitzkrieg contra a universidade pela
“desesquerdização”, a militarização da Educação Infantil em nome dos “valores da pátria”. A aposta na
formação indica um projeto de longo prazo no qual saudosistas do autoritarismo buscam recuperar o
espaço perdido, por meio do estandarte da nostalgia que o revisionismo protege.
Paranoia e conspiração arregimentam bodes expiatórios a cada esquina, sejam ambientalistas
“vendidos ao capital internacional”, indígenas que vivem sobre riquezas que não podem ser exploradas
ou doentes pelos quais a sociedade estaria se pauperizando para tratar. A lógica da maioria é o
sepultamento da democracia constitucional e dos direitos fundamentais – e, com eles, a função
garantidora do juiz que, a bem da verdade, foi, sem nunca ter sido.
Por mais alucinante, arcaica e reacionária que a política cultural possa parecer, da escola sem (o seu)
partido até a produção de filmes terrivelmente evangélicos, esse tem sido o preço pago pelos liberais
para que a janela de oportunidades da destruição dos direitos continue aberta.
Enquanto isso, saúdam os novos empregos, que trocam a carteira assinada pela bicicleta alugada; nas
costas, o trabalhador carrega os ônus, e não raro os pesos, dos empreendimentos que representam,
enquanto os patrões, com “liberdade econômica”, podem criar novas vagas a custo zero.
Em obra recentemente traduzida para o português (Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da
política antidemocrática no Ocidente, Editora Politeia), a cientista política Wendy Brown analisa como
os seguidos ataques do neoliberalismo ao Welfare State e, de cambulhada, ao próprio Estado, acabaram
por deslegitimar cânones da democracia, abrindo caminho para as “formações nacionalistas autoritárias”,
que chegaram ao poder em vários cantos.
Mergulhando em análises de Friedrich Hayek, Milton Friedman e dos ordoliberais, Brown
diagnostica a gênese do esfacelamento do ideal democrático nas ideias primevas de um pensamento que
evocava mercado e moral como “ordens espontaneamente evoluídas carregadas pela tradição”, o que
acabaria por aproximar neoliberais e ultraconservadores.
Se o sucesso da loucura nos parecer improvável ou se as alianças capitalistas se mostrarem
disruptivas, talvez seja o caso de ler A ordem do dia (Editora Planeta), livro com que Éric Vuillard
ganhou o prêmio Goncourt 2017, e que narra o firme apoio do grande empresariado alemão, sem dramas
de consciência ou hesitações morais, à vitoriosa campanha do partido nazista, em 1933. O que Hitler
disse que os convenceu?
“Era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e
permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa.”
coluna
Há pilhas de bibliografia sobre a antropologia do Carnaval, explicando a festa como ruptura da norma,
experiência de inversão, suspensão provisória da ordem. Folia é loucura, como se sabe. Semel in anno
licet insanire, diz uma célebre frase latina que aparece até em Santo Agostinho (De Civitate Dei, VI. 10):
“Uma vez por ano é lícito enlouquecer”. Sêneca (Aliquando et insanire iucundum est “De quando em
quando é bom meter o pé na jaca”) e Chico Buarque (“Deus permite a todo mundo/ Uma loucura”) têm
suas versões. A ideia é simples e define o Carnaval ocidental, mas também tantas outras experiências
culturais no mundo em que, em um período definido todo ano, todos estão autorizados a desrespeitar as
convenções religiosas e os cânones sociais e a comportar-se como se não fossem eles mesmos.
Mas os adeptos da política identitária são parte de uma geração que leu ou recebeu a influência de
alguma sociologia – marxista –, mas que não leu antropologia, psicanálise nem filosofia. O resultado é
uma leitura unidimensional das interações humanas que não deixa espaço para mais nada a não ser
determinação social e construção histórica. Não sabem o que fazer com as estruturas antropológicas do
imaginário nem deixam espaço à mesa para o desejo. Não sabem que Marx sem Freud (ou Nietzsche) é
“avião sem asa, fogueira sem brasa”. Sabem do homem colonizado e preconceituoso, mas não conhecem
o Homo ludens.
De um tempo pra cá, os identitários de esquerda estão em guerra com a fantasia. Resolveram que a
folia tem obrigações a prestar à norma e que a loucura precisa ser tratada como uma tese sobre a
realidade. Portanto, precisa ser corrigida, vigiada e punida. Daí à lista das fantasias interditadas foi um
passo. O site Catraca Livre incluiu sete delas no seu Index, argumentando que preconceito contra
minorias e apropriação cultural de “povos marginalizados” são estimulados por roupas. Homem não
pode se vestir de mulher, ninguém deve se vestir de negro, índio ou cigano, nem de enfermeira ou
empregada doméstica de forma sexy, tampouco de orixá ou muçulmano (sic). Nem adereços
relacionados a essas minorias podem ser usados. “Dá para se fantasiar sem cometer nenhum tipo de
preconceito”, diz o site. Carnaval, sim, mas com regras e modos no vestir-se.
Há registros de outras tentativas no mesmo sentido. Uma Secretaria de Belo Horizonte publicou mais
sete interdições em uma “Nota de Orientação” publicada no Diário Oficial do município. Estão proibidas
marchinhas machistas ou racistas, perucas, dreadlocks e outros “símbolos de resistência negra”, assim
como vestir-se de cigana ou até travestir-se. No Ceará, a Defensoria Pública lançou uma campanha
condenando quatro classes de fantasia: raciais, étnicas (indígenas e ciganos), de identidade (homens
vestidos de mulher) e religião (Iemanjá, padres, judeus e muçulmanos).
Neste ano, a direita também resolveu faturar em cima da interdição. Uma comissão da Câmara
Municipal de Salvador lançou uma campanha contra o assédio sexual a mulheres no Carnaval, depois
adotada nacionalmente pelo ministério de Damares por meio da secretaria de Tia Eron. O mote da
campanha é “Meu corpo não é sua fantasia”.
Enquanto a esquerda quer banir fantasias como vestimentas, a direita quer abolir a própria faculdade
da fantasia. Em vez de tentar coibir mãos que invadem, atos verbais indesejados ou o comportamento
desrespeitoso, proíbe-se o desejo: não terás fantasias com o corpo da mulher alheia.
especial Lélia Gonzalez
Uma intelectual ameafricana
FLAVIA RIOS
Intelectual, feminista e militante antirracista, Lélia Gonzalez é figura paradigmática na esfera pública no
contexto das lutas contra a ditadura militar e pela democratização do Brasil. Enredada numa teia
complexa de personagens, temas e mobilizações contra o regime autoritário instituído com o Golpe
militar de 1964, Gonzalez é personagem expressiva na história política do Brasil. Sua trajetória e seu
pensamento só podem ser entendidos se considerarmos as dimensões coletivas que perfazem os protestos
de rua, a imprensa alternativa, as organizações civis, as interações entre Estado e movimentos sociais e
os partidos políticos na transição democrática do país.
Não só o ambiente nacional, mas também as grandes transformações culturais e políticas no mundo
foram acompanhadas por Lélia Gonzalez, em particular aquelas ocorridas na América Latina, América
do Norte e nos países africanos, a exemplo das lutas indígenas, das organizações antirracistas, dos
movimentos de mulheres, das mobilizações pelos direitos civis, dos protestos dos Panteras Negras, além
das lutas pelas independências nacionais e pelo fim do apartheid na África do Sul. Nessa teia complexa
de ideias e redes transnacionais de ativismo, o pensamento de Lélia Gonzalez tem uma perspectiva
democrática e plural, com horizonte anticolonial, antipatriarcal e de crítica ao capitalismo.
Hoje, Lélia Gonzalez é referência para diversos coletivos antirracistas e organizações feministas no
Brasil, porém seu pensamento ainda é pouco conhecido na academia nacional. Para as novas gerações,
Gonzalez tornou-se ícone do feminismo negro brasileiro, sendo cada vez mais influente na América
Latina e nos Estados Unidos, e recém-descoberta pelo feminismo europeu, especialmente o francês.
Dessa produção renovada sobre seu pensamento, duas abordagens merecem destaque. A primeira delas
dá ênfase ao caráter descolonial de seu pensamento, em particular destacando a crítica ao viés
eurocêntrico das Ciências Sociais e do feminismo ocidental. Outra linha de pesquisa revisita os trabalhos
da autora mostrando sua perspectiva interseccional, envolvendo as dimensões da dominação sexual, de
classe e de raça articuladas nas formas de opressão e hierarquização racial, bem como na formação de
identidade de afirmação coletiva. Ambas as análises mostram-se bastante promissoras quanto à
atualidade e à contextualização da produção intelectual de Lélia Gonzalez no país, assim como a sua
interlocução nacional e internacional.
Sua produção escrita e também sua trajetória têm recebido mais atenção na última década. Nesse
sentido, dignas de destaque são as duas biografias sobre Lélia Gonzalez e dois filmes – o primeiro deles
com depoimentos de pesquisadores, familiares e ativistas que conviveram ou receberam influências
intelectuais e políticas dela e que já se encontra no YouTube, sob o título Lélia Gonzalez: o feminismo
negro no palco da história. Na mesma direção, a cineasta Beatriz Santos Vieira, formada pelo curso de
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), realizou o
documentário Em busca de Lélia, cujo título revela os anseios geracionais por maior conhecimento dessa
intelectual, anseios negligenciados pela academia brasileira.
Outros esforços têm sido feitos para dar visibilidade à pensadora. Um prédio da Organização das
Nações Unidas (ONU) em Brasília foi inaugurado em 2015 com o nome de Lélia Gonzalez, em sua
homenagem. Movimentos feministas e antirracistas também têm se empenhado na divulgação de sua
figura em várias partes do país, por meio de uma rica exposição fotográfica e documental do projeto
Lélia Gonzalez: o feminismo negro no palco da história, organizado por Schuma Schumaher e Antonia
Ceva, que circulou entre 2014 e 2016 e rendeu várias reportagens escritas e televisivas. A União dos
Coletivos Pan-africanistas organizou em 2018 a grande maioria da produção de Lélia Gonzalez em
ordem cronológica, sob o título Primavera para as Rosas Negras, o que foi fundamental para difundir o
pensamento da intelectual ameafricana.
No ano passado, um grande evento realizado no Auditório Ibirapuera levou milhares de pessoas para
assistir à intelectual marxista Angela Davis, que conheceu pessoalmente Lélia Gonzalez. Em discurso, a
ex-Pantera Negra disse que os brasileiros e as brasileiras deveriam conhecer mais suas pensadoras
negras, entre as quais Lélia Gonzalez, cujos escritos, aliás, têm muitas afinidades intelectuais com a
produção da feminista estadunidense, a exemplo da influência do marxismo e do feminismo para
entender a realidade das mulheres racializadas, em especial as negras. Em 2 de fevereiro de 2020,
quando Gonzalez completaria 85 anos, a empresa Google lhe rendeu uma homenagem com um Doodle,
uma mudança temporária em seu logotipo para homenagear personalidades e eventos especiais: grafou
no logotipo do Google a imagem estilizada de Gonzalez. Imagem essa que partiu da fotografia tirada da
autora num congresso da Associação dos Estudos Latino-americanos (Lasa) em abril de 1979, em
Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos.
Neste ano, em 2020, a própria Lasa, o maior encontro acadêmico do mundo voltado para a produção
científica sobre a América Latina, decidiu homenagear a intelectual brasileira nomeando seu evento de
Améfrica Ladina, termo que Lélia Gonzalez usava para se referir à formação do continente, marcando
suas influências indígenas e africanas, além da ibérica. Além de dar nome ao grande evento
internacional, Lélia Gonzalez também terá lugar em mesas especiais. Na esteira desse evento, um
número especial da revista Lasa Forum foi publicado para discutir as ideias de Gonzalez ao longo de sua
vida intelectual, dando destaque a suas reflexões sobre rupturas com o pensamento ocidental e aos novos
modos de olhar para as formas de vida e de resistência na região, rompendo com as fronteiras
linguísticas e nacionais.
Mas, afinal, quem é essa mulher que tem ganhado cada vez mais destaque na renovada cena política
latino-americana?
Nascida no ano de 1934 em Belo Horizonte, Minas Gerais, Lélia Gonzalez teve origem em uma
família pobre, sendo a mãe de ascendência indígena e o pai, negro. Na infância mudou-se com a família
para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. Estudiosa, Lélia Gonzalez foi aluna
brilhante de um dos colégios mais tradicionais e renomados do Brasil, o Pedro II. Do colégio direcionou-
se à universidade, onde obteve os títulos de bacharela em Filosofia, História e Geografia. Formada,
tornou-se professora de importantes estabelecimentos de ensino superior cariocas, como a Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e a Pontifícia Universidade Católica, a PUC, no Rio.
Como professora universitária, engajou-se na luta política pela redemocratização do Brasil. Gonzalez
notabilizou-se pelo visceral envolvimento com os movimentos sociais de oposição ao regime militar, por
isso foi vigiada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão de controle e repressão dos
agentes contrários ao regime instituído. Como ativista, integrou uma das mais influentes organizações
cariocas antirracistas, o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN); foi fundadora do Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) em 1978; organizou um dos primeiros coletivos
brasileiros de mulheres negras, o Nzinga; colaborou com a Escola de Samba Quilombo, importante
espaço de resistência cultural contra a mercantilização e a alienação da cultura negra, produzida pelas
grandes empresas de comunicação e de entretenimento. Além de numerosas contribuições para a
imprensa alternativa, grupos teatrais e blocos afros, Lélia Gonzalez assessorou o cineasta Cacá Diegues
em seu filme Quilombo, aclamado pela crítica internacional. Nas artes performáticas, foi decisiva na
produção dramatúrgica de Hilton Cobra. Em síntese, a interface entre cultura e política foi a forma de
atuação de Lélia Gonzalez. Afinal, para ela a linguagem cultural precisava ser subvertida, já que o
sexismo e o racismo eram as marcas profundas da cultura de dominação brasileira e latino-americana.
De sua produção intelectual, além de dezenas de artigos em revistas acadêmicas e em jornais da
imprensa alternativa, a autora nos legou a organização de três livros, todos já esgotados e sem reedição.
São eles: Lugar de negro, escrito em parceria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg, de 1982; O
lugar da mulher, organização que partilhou com várias autoras feministas; e Festas populares no Brasil,
um ensaio fotográfico com comentários críticos da autora, publicado em 1987.
Destaque-se ainda sua inserção em organizações partidárias. Embora tenha perdido as duas eleições
em que concorreu no Rio de Janeiro, Lélia Gonzalez, assim como uma parcela significativa das gerações
de ativistas de sua época, viu nos partidos políticos um meio de ter acesso ao Estado, para levar a
temática racial e de gênero ao âmbito da política institucional, seja na forma parlamentar, seja como
participação em conselhos. Foi pensando nisso que se tornou assessora de Benedita da Silva em seu
primeiro mandato legislativo no Rio de Janeiro e também colaborou com os deputados negros durante o
processo constituinte (1986-88); além disso, fez parte do primeiro quadro de integrantes do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher, criado em 1985. Assim, seu trânsito nos movimentos sociais e partidos
revelava-se não apenas um projeto pessoal, mas, sobretudo, um entendimento coletivo de que as
demandas e reivindicações sociais dos movimentos dos quais fazia parte deveriam estar no centro da
agenda do Estado brasileiro.
Nesse enredo político, que envolveu a passagem do regime autoritário para a democracia, Gonzalez
atuou vivamente em redes nacionais de ativismo político e refletiu de forma sistemática sobre as formas
de dominação colonial e patriarcal ainda vigentes e operantes na cultural e sociedade brasileiras.
Bastante conhecedora e crítica da tradição das Ciências Sociais no Brasil, Gonzalez fez parte daquela
camada de intelectuais brasileiros que construiu rotas e redes alternativas para pensar a realidade
nacional e da diáspora negra, especialmente na Améfrica Ladina.
Leiam Lélia Gonzalez
CARLA RODRIGUES
Em sua passagem mais recente pelo Brasil, em outubro de 2019, em todas as atividades públicas, a
filósofa estadunidense Angela Davis fez questão de nos lembrar da importância do pensamento e da
atuação de sua colega brasileira, Lélia Gonzalez. “Leiam Lélia Gonzalez”, convocava ela no Auditório
do Ibirapuera. Ou “vocês não precisam de mim, vocês têm Lélia”. Angela Davis estava se referindo à
proximidade entre as duas feministas negras, que vem de longa data. Conviveram nos Estados Unidos no
final dos anos 1970, quando Davis publicou Mulheres, raça e classe, agora traduzido no Brasil pela
Editora Boitempo, enquanto Gonzalez apresentava “A mulher negra na sociedade brasileira” na
Universidade da Califórnia em 1979. A esse artigo somam-se textos como “Racismo e sexismo na
cultura brasileira”, de 1984, “A categoria político-cultural de amefricanidade” e “Por um feminismo
afro-latino-americano”, ambos de 1988, ano marcante por ser o centenário do fim da escravidão.
Fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU), Lélia Gonzalez teve uma atuação decisiva contra
o racismo ao longo de sua trajetória política e intelectual. Por isso, abraçou o tema da desigualdade na
educação – sem a qual a professora sabia que não haveria emancipação possível –, questão que ocupa
parte de seus escritos. Lida hoje, a obra de Lélia parece pequena. São apenas dois livros completos, entre
os quais se destaca Lugar de negro, em coautoria com Carlos Hasenbalg, e um punhado de artigos. O
legado imaterial, no entanto, é imenso.
Sua atuação como intelectual mostra que foi uma feminista interseccional e uma feminista
descolonial avant la lettre. Ela foi precursora em acrescentar à condição da mulher brasileira o marcador
de raça, pouco tempo depois do campo feminista-marxista no Brasil ter começado a discutir como a
diferença de classe afetava as mulheres – debate que estava posto pelo menos desde 1967, quando a
socióloga Heleieth Saffioti defendeu a tese A mulher na sociedade de classe: mito e realidade. Lélia
Gonzalez tem inegável pioneirismo na crítica ao racismo estrutural na sociedade brasileira e na
articulação entre racismo e sexismo, o que fez dela uma aguda observadora da nossa situação colonial,
antes mesmo que termos como colonialidade, decolonial ou pensamento ameríndio ganhassem destaque
na pauta da intelectualidade branca, que aos poucos tem reconstruído outra concepção da dominação
europeia que nos fundou e da violência intrínseca na formação do Brasil como Estado-nação.
É nesse contexto que Lélia Gonzalez propõe o conceito de amefricanidade, elaborado a partir de uma
proposição do psicanalista lacaniano MD Magno, que por sua vez está dando continuidade à formulação
de outra psicanalista, Betty Milan. Essa interlocução com a teoria psicanalítica, tão presente na obra de
Lélia Gonzalez, é uma das características importantes de suas proposições críticas ao poder colonial. Em
interlocução com o pensamento do psiquiatra martinicano Frantz Fanon – cuja obra sobre racismo e
colonização é definida por ele como “estudo clínico” –, Lélia percebe muito cedo a necessidade de
entrelaçar a desigualdade racial e social brasileira com as formações inconscientes, que ela observa
serem exclusivamente brancas e europeias, operando uma denegação das nossas origens indígenas,
latinas e africanas. É assim que ela identifica uma característica fundamental do “racismo à brasileira”:
voltar-se contra negros é denegar, no sentido freudiano, nossa amefricanidade.
Assim, além de uma militante pela democracia – como tão bem demonstra o artigo de Flavia Rios
nesta edição da Cult –, tema fundamental no momento em que o país tentava deixar para trás uma longa
ditadura militar, Lélia Gonzalez percebeu de forma muito acurada que era impossível combater o
racismo se as pessoas brancas não reconhecessem nossa condição colonial. Difícil tarefa, já que valorizar
a origem europeia é parte do processo de denegar a latinidade e de sustentar o racismo contra negros e
indígenas, a serem estigmatizados como “os outros”, “os bárbaros” ou, no vocabulário contemporâneo,
“os bandidos” e até “os invasores”, mesmo que o termo seja usado em referência ao povo nativo. Há
aqui um jogo de inversões do qual depende a opressão colonial: para afirmar-se no poder, os
colonizadores precisam dominar não apenas os corpos, mas sobretudo o imaginário de cada povo
dominado, atribuindo valor simbólico ao europeu branco, naturalizado como quem tem o direito de
ocupar o lugar de dominação, e destituindo de valor simbólico todo não branco que fica destinado à
subalternidade. Assim se constitui um duplo mecanismo, a afirmação da superioridade do colonizador e
a alienação do colonizado.
Denunciar esse esquema a partir de diálogos com autores e autoras que vinham elaborando a questão
exigiu da própria Lélia transformações radicais. Elaborar a ideia de “racismo por denegação da
amefricanidade”, militar no MNU e circular em campos acadêmicos nos Estados Unidos, onde Angela
Davis fazia sua pesquisa sobre os efeitos da escravidão na opressão das mulheres negras, tudo isso
produziu transformações pessoais na trajetória de Lélia Gonzalez. Flavia Rios e Alex Ratts, seus
biógrafos, contam como a mudança de Minas Gerais – onde nasceu, em 1935 – para o Rio de Janeiro,
onde cursou o colégio Pedro II, graduou-se em História e Filosofia e fez carreira docente na Pontifícia
Universidade Católica (PUC-Rio) e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), é primeiro
marcada por um processo de embranquecimento, como o alisamento do cabelo, um casamento inter-
racial e a circulação em extratos sociais que a grande maioria das pessoas negras não podia alcançar.
Mas vieram os anos 1970, Lélia viajou pelo mundo, politizou-se e enegreceu. Para as mulheres
negras, enegrecer significa, muitas vezes, em primeiro lugar abandonar o alisamento dos cabelos,
movimento estético-político de libertação. Pode-se observar Lélia antes e depois do “desbunde”: “Gosto
de fazer um trocadilho, afirmando que o português, o lusitano, não fala e nem diz bunda (do verbo
desbundar)”. A peculiaridade do diálogo com a psicanálise exerce influência também na forma de operar
os significantes: amefricanidade, ladino, pretoguês são algumas das intervenções, ao modo lacaniano,
que faz funcionar seu pensamento na mesma direção de seu ativismo, inventivo em forma e conteúdo.
Sua ligação com a psicanálise foi formalizada em 1975, quando participou da fundação do Colégio
Freudiano do Rio de Janeiro, e está presente, por exemplo, no uso que ela faz da categoria do infante,
que se constitui a partir da análise da formação psíquica da criança: “Ao ser falada pelos adultos na
terceira pessoa, a criança é excluída, ignorada”. Lélia Gonzalez propôs uma analogia entre a condição de
infante e a condição das mulheres e das pessoas não brancas, que são faladas por um sistema de
dominação que infantiliza, retira a humanidade e aniquila a condição de sujeito. Podemos localizar aí o
hoje disputado conceito de “lugar de fala”, a recusa dos discursos esclarecedores e das narrativas da
grande história colonial, encobridoras de um passado que pode “despertar centelhas da esperança”, como
escreveu o filósofo Walter Benjamin. De fato, a restauração de Zumbi como herói da liberdade
modificou a percepção sobre a história da escravidão no Brasil e acendeu centelhas de esperança de
emancipação ao povo negro.
A atuação intelectual e política de Lélia Gonzalez se expandiu em diferentes campos e a levou a ser
integrante da primeira formação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado ainda no
governo de José Sarney (1985). A Gonzalez se atribui a interpelação de uma feminista branca a quem ela
queria mostrar, na prática, o que estudamos nos livros: a oprimida reproduz as formas de opressão da
qual é alvo. Num momento caloroso de debate, Lélia teria dito: “Enquanto você mantiver essa pose de
sinhazinha, não tem conversa”.
Outro elemento de crítica ao sistema colonial em seu pensamento é o uso do termo ladino,
designação de escravos e índios que já tinham alguma instrução e que, por isso, podiam realizar tarefas
menos braçais. Mas ladino também é sinônimo de esperto, pilantra. Essa ambiguidade, somada à
aproximação sonora entre ladino e latino, torna-se para Lélia uma estratégia para apontar a necessidade
de recalque da latinidade e a correspondente ilusão de superioridade da elite branca intelectual, de quem
a ideologia do opressor depende para ser reproduzida. “O racismo desempenhará um papel fundamental
na internalização da ‘superioridade’ do colonizador pelos colonizados”, escreve ela, propondo a
expressão Améfrica Ladina.
Sua interpretação da opressão colonial também antecipava ideias que depois seriam formuladas pelo
sociólogo peruano Aníbal Quijano (ver dossiê Cult, edição 248), autor do conceito de colonialidade do
poder, e desenvolvia-se em termos muito próximos do trabalho de Fanon: tratava-se de desmontar o mito
da democracia racial brasileira sustentando que a criação de categorias raciais como indígena, negro e
branco é uma exigência do sistema de poder colonial. Para isso, era preciso também enfrentar a
construção histórica e naturalizada do negro passivo, obediente, submisso, subalternizado e lutar contra a
narrativa de que a libertação dos escravos foi um gesto de bondade da princesa Isabel.
Em 1988, Lélia Gonzalez publicou o provocador “Por um feminismo afro-latino-americano”, em que
interrogava: “Exatamente porque tanto o racismo como o feminismo partem de diferenças biológicas
para estabelecerem-se como ideologias de dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este
‘esquecimento’ por parte do feminismo?”. O questionamento tinha tanto a intenção de criticar o
feminismo branco como o objetivo de demonstrar que havia racismo ali mesmo onde se estava lutando
contra a discriminação, em favor de valores como liberdade e emancipação. Posição incômoda e difícil,
sem dúvida, mas por isso mesmo tão potente e atual: “O racismo latino-americano é suficientemente
sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das
classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento”.
Por fim, para seguir o conselho de Angela Davis – “leiam Lélia” –, vale a pena trazer alguns pontos
de aproximação entre as duas filósofas. Em “A mulher negra na sociedade brasileira”, Lélia Gonzalez
afirma: “Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os
estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais alto nível de opressão [...] Enquanto
empregada doméstica, sofre um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da
subordinação e da ‘inferioridade’ que lhe seriam peculiares. Tudo isso acrescido pelo problema da dupla
jornada, que ela, mais do que ninguém, tem que enfrentar”.
Também em 1980, Angela Davis publica Mulheres, raça e classe e escreve: “Assim como seus
companheiros, as mulheres negras trabalharam até não poder mais. Assim como seus companheiros, elas
assumiram a responsabilidade de provedoras da família [...] carregam o fardo duplo de trabalho para
sobreviver e de servir ao marido e a suas crianças, as mulheres negras há muito, muito tempo precisam
ser aliviadas dessa situação opressiva”. Tratava-se de combater não apenas a violência do racismo, mas
de reivindicar a especificidade do racismo contra as mulheres negras, carregado de um tipo de sexismo
que ainda afeta negras e brancas de modo diferente.
O legado intelectual deixado por Lélia Gonzalez dificilmente pode ser medido apenas por seus livros.
Para 2020, a Editora Boitempo anunciou a reedição de Festas populares no Brasil, livro de 1987,
iniciativa que se soma a diferentes formas de resgate do pensamento de Lélia Gonzalez, tão radical
quanto atual e original.
dossiê Orides Fontela
"O que o tempo transmite e subverte"
PATRÍCIA LAVELLE
Herança
Da avó materna:
uma toalha (de batismo).
Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.
Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.
Kant (relido)
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.
O coração (Pascal)
As ignotas
(des)razões
do
espanto.
Como os objetos listados, as citações se inscrevem na experiência do “eu lírico” através da fatura
poética que as deforma e recria. “Relidos” nos poemas, também os textos filosóficos transformam-se em
“herança”, tal como Orides a pensa em outro poema homônimo, incluído em Helianto:
Herança
O que o tempo descura
e que transfixa
o que o tempo transmite
e subverte
o que o tempo desmente
e mitifica.
Se o tempo descura e transfixa, transmite e subverte, desmente e mitifica, como receber as heranças
de Orides hoje, quando comemoramos oitenta anos de seu nascimento? Para compreender criticamente
sua poética atravessada por interrogações filosóficas e “releituras” de textos do passado, parece-me
indispensável repensar a relação entre vida e obra do ponto de vista da reconstrução do percurso
intelectual da autora. Para isso, o depoimento de Marilena Chaui, que foi professora de Orides na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e escreveu o prefácio de Teia, seu
último livro, constitui uma preciosa contribuição, indicando interesses teóricos e objetos de estudo
determinantes em seus anos de formação. O testemunho se completa pela reflexão sobre a presença da
filosofia nos poemas de Orides. Ivan Marques, também professor da FFLCH e estudioso de sua poética,
confronta a questão da relação entre vida e obra por outro viés, indicando o lugar de fala da poeta do
ponto de vista social. Voltando-se para a análise da obra, o comentário de Olgária Matos, que foi colega
de Orides na Faculdade de Filosofia, aponta passagens entre interesse filosófico e questionamentos
místicos e teológicos. Finalmente, dois poemas inéditos, até agora conservados nos arquivos de São João
da Boa Vista.
Aristocrata selvagem
IVAN MARQUES
Estrela e pássaro estão entre os vocábulos mais recorrentes da obra poética de Orides Fontela. Embora
façam eco à tradição simbolista e espiritualista, tais símbolos não constituem, porém, a cifra de um
programa estético. Em contraste com a imagem da poeta atraída pelas altas esferas, nela também chama
inevitavelmente a atenção o fato de o indivíduo – a mulher Orides por trás do eu lírico interessado no
movimento dos astros – ter passado a vida tropeçando em pedras, esfolando-se, caindo em buracos.
Ao longo de sua vida, doenças, depressões e problemas financeiros se acumularam. Nos últimos
anos, sem dinheiro para pagar o aluguel do apartamento onde vivia, Orides tinha morado de favor na
Casa do Estudante, um velho prédio na avenida São João, uma das áreas mais degradadas do Centro
paulistano. Dizia na época que estava virando homeless ou “omelete”. Na verdade, sempre viveu como
se morasse debaixo da ponte, em posse de apenas dois ou três talheres e improvisando panelas, cercada
de gatos.
Algo que causava impacto era a maneira como lia em voz alta seus poemas. Se no papel os versos
pareciam suaves, a voz estridente e o ritmo vigoroso da declamação faziam com que soassem ásperos,
violentos. Era uma leitura feita com pulso e autoridade, em contraste também com a fragilidade corporal
da autora. Mas estava de acordo com seu modo de reverenciar a poesia como melodia arcaica, “canto
essencial da língua”. Sintonizada com o viés oracular de muitos de seus versos, a voz impostada (espécie
de impostura) também ecoava a obra poética em seu impulso básico de elevação.
No convívio social, a voz áspera ganhava uma conotação ainda mais grave, colando-se à índole
ríspida e ao mau gênio figurados na expressão “bile malsã”, usada por Donizete Galvão no poema-
homenagem “Fontela”, incluído no livro Ruminações: “inúteis/ o gorro de lã/ em azul absurdo/ a
bengala/ a aspereza da fala/ a bile malsã/ [...] o silêncio chegou/ curva-te/ o nada/ é um estado/ de graça”.
Muitos leitores de Orides se confessam impressionados por sua capacidade alquímica de
transmutação do dado bruto, de transformar “em beleza o que a ela se mostrou quase sempre como
ruínas”, como exprimiu Álvaro Alves de Faria. Traço essencial de sua biografia, a união de opostos
inconciliáveis foi fixada com precisão na orelha de Rosácea, de 1986, por Nogueira Moutinho, que a
chamou de “aristocrata selvagem”.
De um lado, a marginalidade, que a poeta atribuía ao duplo infortúnio de ser mulher e pobre. Do
outro, o pertencimento enviesado a certa “aristocracia do espírito”, a produção poética reconhecida no
meio literário e acadêmico – o que não a impediu de ter a coragem de afirmar sua diferença e manter a
postura “selvagem” de quem pertencia a outro estrato social.
A respeito da poesia de Orides Fontela, tornou-se recorrente o postulado da total dissociação entre
vida e obra. Como ela própria afirmava, “o poema reflete o temperamento, a personalidade do poeta,
mas não sua biografia”. Em sua resenha de Teia, José Maria Cançado chamou de “eutanásia da
biografia” essa total exclusão dos incidentes da realidade, considerando-a quase como um preço a pagar
pelo ingresso na lírica espiritual. Num ensaio de fôlego, Alcides Villaça também ressaltou “a recusa em
admitir o ‘drama pessoal’, a nenhuma ilusão quanto à ordem do empírico”. Embora se considerasse um
agudo “problema social”, a poeta teria horror de ver sua poesia contaminada pela mesquinharia do
cotidiano. Para Vinicius Dantas, um livro como Alba propunha “um conceito de poema sublime,
amaneirado, elegantemente afastado de qualquer marca desagregadora do real ou da subjetividade”.
O exagero na dissociação entre poesia e vida traz um risco: o de nos impedir de conhecer em toda a
profundidade traços essenciais da poética oridiana, como a dramaticidade, o senso do concreto, a ironia,
o pessimismo e a crueldade. Como exprimiu Antonio Candido, nos versos de Orides “a pureza
incontaminada de ‘espelho’ pode virar signo de drama e tormento”. Essa mescla, tão discreta, representa
tudo na poesia de Orides.
A violência, a destrutividade — a “aspereza da fala” — não é só um dado da realidade, mas uma das
principais marcas dessa poesia que é menos harmoniosa ou estabilizada do que parece. Davi Arrigucci
Jr. observa que “a poesia de Orides está ligada à biografia de uma forma forte e, embora sua escrita
poética seja de um grau de abstração que aparentemente isole os conteúdos de vivência imediata, tem
uma profunda experiência incorporada, mas transfigurada em termos abstratos, numa meditação sobre
grandes temas: o branco, o meio-dia”.
De acordo com Orides Fontela, o primeiro ciclo, o dos poemas “sublimes demais”, fechou-se no livro
Alba. A poética trabalhada a partir dos anos 1980 substitui a “ingenuidade” das três primeiras coletâneas
— situadas “a um passo do pássaro” — pela expressão mais solta, rebaixada e irônica dos dois livros
finais. Em Rosácea, definido na epígrafe como um universo mesclado, surge a identificação civil da
autora. O livro é dedicado à memória dos pais e também lembra outros familiares (a avó, a irmã nascida
morta).
Poema-chave dessa reviravolta, “Herança” é um atestado de pobreza. Nesse poema de Rosácea, as
duas faces problemáticas da biografia, a origem proletária e a condição feminina, são assumidas e
estampadas. A impossibilidade de escapar da realidade reaparece no poema “Fatos”, espécie de epígrafe
deslocada para o miolo do livro Teia. Nele a poeta se apropria de um fragmento do romance A hora da
estrela, de Clarice Lispector:
... fatos
são pedras duras.
Não há como fugir.
Fatos são palavras
ditas pelo mundo.
Não se engane o leitor: a aristocrata é selvagem. Tal como Macabéa, que vivia “numa cidade toda
feita contra ela”, Orides pode ser vista como uma flor agreste e improvável. Na aparente quietude da
poesia, contrariando a sua decantada limpeza, aninha-se a violência da miséria e da ausência de lugar
social.
O breviário do Ser
OLGÁRIA MATOS
Da metafísica
(ou da metalinguagem)
O que é
o que
é?
Nesse poema está o mito fundador da filosofia, que é também charada e questão irrespondível: “Não
há perguntas. Selvagem/ o silêncio cresce, difícil” (“Esfinge”). Eis em Orides o enigma do Ser, do início
e do fim, o mutismo incompreensível do mundo: “Lavro a figura/ não na pedra (inda plástica) mas no
inumano vazio/ do silêncio” (“Odes, Ode IV”).
O thaumazein originário é thauma e trauma, maravilhamento e ferida, pois o real não pode ser dito
conceitualmente pela linguagem. Não por acaso, o poema-epígrafe do livro Transposição diz:
A um passo de meu próprio espírito
A um passo impossível de Deus.
Atenta ao real: aqui
Aqui aconteço.
Essa proximidade, que é distância imensurável de “Deus”, constitui sua ausência, e o pressentimento
de que o Absoluto excede o sentido, irradiando-se por todas as coisas. Na poesia de Orides, Deus é
contraditório, mesmo na criação de seus anjos. Antes da modernidade, anjos e pássaros habitavam na
proximidade do divino. Eram anjos da delicadeza, como o de Tobias, anjos protetores que,
desencarnados, desconheciam os conflitos dos seres mortais neste mundo passageiro. Além disso, há os
anjos efêmeros da Cabala, criados para cantar por um instante e desaparecer no nada.
Oposição
Na oposição se completam
os arcanjos contrários
sendo a mesma existência
em dois sentidos.
(Um, severo e nítido
na negação pura
de seu ser. O outro
em adoração firmado.)
Não se contemplam e se sabem
um mesmo enigma cindido
combatem-se, mas abraçando-se
na unidade da essência.
Interfecundam-se no mesmo
bloco de ser e de silêncio
coluna viva em que a memória
cindiu-se em dois horizontes.
(Sim e não no mesmo
abismo do espírito).
Assim, é a palavra poética que, à maneira de Hegel, significa que o começo é sem pressupostos, sem
mediatizações. Como fundamento do próprio fundamento, também na poesia de Orides a questão do Ser
é filosoficamente primeira e mais importante que a do Outro, porque Deus é o ontológico como
alteridade máxima, o grande e desconhecido ausente. Por isso, no poema “Oposição”, citado na página
ao lado, há dois planos: o da tensão angélica ascensional e o da interioridade subjetiva que, íntima e
confidencial, é o momento da reflexão, do “entre parênteses”. Esse momento do silêncio é também o das
Ideias, do Devir e do Destino, destacados em “Exemplos”:
Platão
fixando as formas
Heráclito
cultuando o fogo
Sócrates
fiel ao seu Daimon.
Se Platão se refugia no inteligível, Heráclito no fogo regenerador e Sócrates no oráculo délfico, é
porque, no mundo sublunar, tudo é transformação, e assim condenado ao desaparecimento.
Thanatoi, os mortais, ou Homo viator, os peregrinos. Nos poemas de Orides, homens dependem de
um Deus que, numa certa tradição teológica, é um nome, é potência errante que do mundo só teria
realizado um esboço, renunciado a sua missão demiúrgica, preferindo os estudos, a aprendizagem, a
instrução, antes de criar os animais na terra, os peixes no mar, os pássaros no céu. Esse Deus sem rosto
deseja só o movente, não está à procura dos revoltados, mas daqueles que veem, como uma criança, tudo
como pela “primeira vez”:
Alba
[...]
Abrir os olhos.
Abri-los
como da primeira vez
– e a primeira vez
é sempre.
[...]
Se se trata sempre da primeira vez, que é sempre única, a primeira é sempre a última. Daí a cantiga-
epígrafe de Helianto: “Menina, minha menina/ Faz favor de entrar na roda/ Cante um verso bem bonito/
Diga adeus e vá-se embora” (Cantiga de roda). Esse universo da infância é um retorno “rousseauísta” a
uma experiência primeira, capaz de tornar-se palavra poética, pensamento, conhecimento. Hoje, porém,
o humano está só:
Revelação
A porta está aberta
como se hoje fosse infância
e as coisas não guardassem pensamentos
formas de nós nelas inscritas.
A porta está aberta. Que sentido
tem o que é original e puro?
Para além do que é humano o ser se integra
e a porta fica aberta. Inutilmente.
A poesia de Orides procura o alento de palavras que possam reaver a unidade perdida do mundo,
mundo desertado de valores, do qual “os deuses já partiram ou ao qual ainda não chegaram”, universo
sem homens e sem deuses, o do mais completo desamparo:
Notícia
Não mais sabemos do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão.
Governada por uma mathesis universalis, a modernidade foi devastada pela abstração formalizadora
e pela utilidade, às quais a poeta substitui uma geometria cósmica: “a geometria em mosaico/ cria o texto
labirinto/ intrincadíssimos caminhos/ complexidades nítidas/ o caos domado em plenitude/ a primavera”.
Suavizado pela primavera e não pela ciência moderna, que trata o mundo como um conjunto de objetos
disponíveis e manipuláveis, o caos anseia reanimar o originário ocultado pela res extensa que se tornou
ruína e desolação.
Contrapondo-se à modernidade tecnológica, Orides lembra Kant – o que fundamenta a ciência
moderna no espaço e no tempo controláveis, e o sujeito moral nos postulados formais da razão –, mas
invertendo o sublime, o que provoca temor, prazer e dor. Se, na Crítica da razão prática, Kant refere-se
à admiração e ao respeito que enchem sua alma, o firmamento constelado acima e a máxima moral
dentro do peito, na glosa de Orides ao filósofo, o firmamento transcendental, fora do espaço e do tempo,
se alojará não no silêncio dos espaços infinitos, e sim na interioridade da alma.
Se, no racionalismo filosófico, admirar-se é desconhecer a “ordem das razões” e, com ela, desmitizar
a existência de tudo – como em Descartes, que, no final de seus Meteoros, escrevia que, com a análise do
raio luminoso segundo uma fisiologia do olho e uma física da luz, seus leitores não encontrariam mais
nenhuma matéria de admiração no céu –, a poesia de Orides fixará a luz das estrelas na intimidade de si,
na qual o grandioso encontra abrigo. Assim, se em “Brejo” de “Poemetos (II)”, o repatriamento da alma
da poeta, de sua errância e deriva astral é apenas um anseio – “Água parada água parada água pa/ rando/
sob a cintilação dos lírios.// O azul/ O exílio.” –, em “A estrela próxima” a distância metafísica se
atenua, mas é ainda impreenchível: “Próxima: mas ainda/ estrela/ – muito mais estrela/ que próxima”.
“Indomesticável destino”, porém, o tempo é distância, impermanência e signo premonitório que faz
do que é um agora inclemente: “no verde chão/ da irrealidade/ a violência:/ o sangue contido/ (ainda).
[...]// – tão brutalmente/ VIDA/ que a tememos.” (“Touro”). Tudo é heteronomia, mudança incessante e
inquietação: “O movimento das águas/ é caminho inconsciente/ mutação contínua/ nunca terminada.”
(“Fluxo”).
A contingência e a finitude não constituem, no entanto, um obstáculo ao eterno e ao instante
atemporal, porque se reanima uma palavra de ruptura, aquela que, poética, não engana. Essa palavra é
“Deus”, liberada da sobrecarga de suas significações: “Cubo/ de metal opaco: ‘Deus’” (“Impressões”).
Eis por que Orides cita San Juan de La Cruz: “Que bien sé yo la fonte/ que mana y corre,/ aunque es de
noche” (Epígrafe a Alba). O divino é como uma chuva inesperada, acontecimento aleatório, inscrito no
fragmento de Heráclito escolhido como epígrafe aos poemas de Rosácea: “coisas varridas e/ ao acaso/
mescladas – o mais belo universo”.
Porque o mundo é mescla de acaso e de eternidade, nos poemas de Orides, ele é experiência decisiva
do instante em que se inscreve a plenitude, Deus liberado da Necessidade, desaprisionado da Forma
imutável. Esse Deus quer, ao contrário, a imperfeição do movimento: “Eis a carta dos céus: tudo/
indeterminado e imprevisto/ cria um amor fluente/ e sempre vivo./ Eis a carta dos céus: tudo se move”.
O Deus geômetra de Galileu e o Deus délfico de Heráclito, portanto.
O mundo, em sua agitação aparente, manifesta, contudo, a quietude da presença divina e o
apaziguamento. Em seus poemas, Orides se volta para o dom outorgado a quem acolhe os sinais do Deus
e não se arroga interpretá-los, recusando o relicário das conceptualizações da linguagem instrumental
para um agora pleno. Por isso, escreveu:
Rota
Há um rumo intacto, uma
absoluta aridez
na ave que repousa. Nela
o repouso é a rota: não há mais
necessidade de voo.
Orides e a filosofia
MARILENA CHAUI
A ALUNA DE FILOSOFIA
Orides foi minha aluna no curso de Filosofia no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, portanto, no
período mais duro do terror de Estado, sob o Ato Institucional n. 5. O Departamento de Filosofia estava
sem seus principais professores – alguns cassados, outros exilados, os professores franceses regressados
à França. Por isso, sob a direção de Dona Gilda Rocha de Mello e Souza, éramos um punhado de jovens
professores, alguns apenas com mestrado e outros sem até essa titulação.
Entre 1969 e 1972, por prudência, nossos cursos evitavam o tratamento direto de questões políticas,
que eram abordadas indireta e veladamente por meio de outros temas, em particular o da linguagem.
Luiz Roberto Salinas Fortes dava cursos sobre Rousseau (a origem das línguas) e Diderot (o paradoxo do
ator); Victor Knoll falava sobre a poética de Mário de Andrade; eu oferecia cursos sobre o mistério da
linguagem em Merleau-Ponty; Maria Sylvia de Carvalho Franco dava aulas sobre Guimarães Rosa; Léon
Kossovitch, sobre a linguagem em Nietzsche; Rubens Rodrigues Torres Filho, poeta, deu cursos sobre
Kant e Fichte. Um pouco mais tarde, Oswaldo Porchat (recém-chegado dos Estados Unidos) falava sobre
lógica e filosofia analítica. Faço essas referências porque, de maneira por vezes irregular, Orides fez
esses cursos, e penso que ela se interessava por eles, por lhe permitirem uma expansão do que ela
buscava em e com sua poesia.
Menciono especialmente Merleau-Ponty porque ele fala em prodígio da linguagem: a linguagem
exprime perfeitamente sob a condição de não exprimir completamente, toda sua força está nessa maneira
paradoxal de acercar-se das significações, aludi-las sem jamais possuí-las. Não apenas prodígio, a
linguagem é também mistério: usa o corpo dos sons e dos sinais para nos dar um sentido incorpóreo só
alcançado pela virtude da corporeidade sonora e gráfica. Transgredindo a materialidade dos vocábulos,
acasala-se com o invisível. O momento da expressão é aquele em que o poeta, tendo imprimido uma
torção inusitada no léxico disponível, o faz “secretar uma significação nova”, deixando-a à disposição do
leitor não prevenido de quem se apodera. O poeta não convida quem o lê a reencontrar o que já sabia,
mas toca nas significações existentes para torná-las destoantes e para conquistar, por virtude dessa
estranheza, uma nova harmonia que se aposse do leitor. A poesia é essa astúcia que priva a linguagem
instituída de centro e de equilíbrio, reordena os signos e o sentido e ensina tanto ao escritor como ao
leitor o que sem ela não poderiam dizer nem pensar, pois a palavra não sucede nem antecede o
pensamento porque é sua contemporânea.
Para notarmos essa estranheza que priva a linguagem instituída de centro, lembremos, em Teia:
comer o
vinho
beber o
pão
nesta luz (natural?) da
desrazão
Sobre a forte presença do mistério da linguagem, podemos citar “Fala”: “Tudo/ será difícil de dizer:/
a palavra real/ nunca é suave. [...]// Não há piedade nos signos/ e nem no amor: o ser/ é excessivamente
lúcido/ e a palavra é densa e nos fere.// (Toda palavra é crueldade.)”. Ou “Partilha”: “Partilharemos
somente/ esta maior intensidade:/ absoluta palavra/ que nos pertence integralmente”. Ou ainda:
Ode I
O real? A palavra
coisa humana
humanidade
penetrou no universo e eis que me entrega
tão-somente uma rosa.
A partir de 1972, alguns professores franceses de esquerda decidiram vir ao nosso Departamento de
Filosofia como gesto político de solidariedade e apoio. O primeiro a vir foi Jean-Pierre Vernant, que deu
um curso sobre a tragédia grega e o nascimento da política e outro sobre a passagem do mito à filosofia.
Em seguida, vieram Foucault – que deu aulas obre o que viria a ser seu livro Vigiar e punir – e Claude
Lefort – que falou sobre a gênese moderna da ideologia e o totalitarismo. Também faço essas referências
porque penso que esses cursos deixaram marcas em Orides, sobretudo os de Vernant, cuja presença pode
ser notada em “Mito”, “Centauros”, “Eros”, “Penélope”, “Kairós”, “Ananke”, “As deusas” e, em
especial, num de seus poemas mais belos (e premonitoriamente feminista): “As sereias”.
As sereias
Atraídas e traídas
atraímos e traímos
Nossa tarefa: fecundar
atraindo
nossa tarefa: ultrapassar
traindo
o acontecer puro
que nos vive.
Nosso crime: a palavra.
Nossa função: seduzir mundos.
Deixando a água original
cantamos
sufocando o espelho
do silêncio.
Orides não era uma aluna comum. Além de ser mais velha do que os colegas (e até mais velha que
alguns professores, como era o meu caso), sua aparência destoava dos jovens de classe média e da
burguesia que, até então, predominavam nos cursos de Filosofia: olhos aumentados pelas grossas lentes
dos óculos, pescoço curto, cabeça grande, braços finos e longos, pernas curtas e semitortas, sinais de
raquitismo de quem foi criança pobre e malnutrida. Só muitos anos depois ela me contou sobre sua
origem familiar e a dureza dos caminhos que trilhara e trilhava, e pude compreender, na espantosa
precisão e economia das palavras, a melancolia de “Herança” (com as flautas e o lenço).
Sua frequência à aulas era irregular e seu comportamento, irreverente: às vezes, ruidosamente,
tomava notas do que ouvia (ria, chorava, resmungava, escrevia com letras enormes em folhas e mais
folhas de cadernos ou com letras tão pequenas que pareciam ilegíveis); outras vezes, quando não
concordava com o professor ou com o filósofo, saía da sala de aula e vociferava pelos corredores,
gritando críticas e palavrões. Em contrapartida, quando concordava e se sentia próxima do que escutava,
também deixava a sala e podíamos ouvi-la murmurando pelos corredores – sem nos darmos conta de que
estávamos a ouvir a criação de um poema. Raramente entregava trabalhos de fim do curso, mas quando o
fazia eram verdadeiros tratados filosóficos, e não mera repetição das aulas ou da bibliografia. Disso,
certamente, as melhores provas são seu ensaio sobre ética e a portentosa transposição de uma filosofia no
seu contrário, realizada em “Kant (relido)”.
A PRESENÇA DA FILOSOFIA NOS POEMAS
Não me refiro à presença explícita da filosofia – “Maiêutica”, “Da Metafísica (ou da metalinguagem)”,
“Kant (relido)”, “Newton”, “O coração (Pascal)” –, mas ao filosofar como poesia ou, em transposição, à
poesia como um filosofar. Penso que em “Poema”, Orides oferece uma chave filosófica para
compreendermos sua própria obra:
Poema
Saber de cor o silêncio
diamante e/ou espelho
o silêncio além
do branco.
Saber seu peso
seu signo
– habitar sua estrela
impiedosa.
Saber seu centro: vazio
esplendor além
da vida
e vida além
da memória.
Saber de cor o silêncio.
– e profaná-lo, dissolvê-lo
em palavras.
O silêncio além do branco: a ausência de som é mais funda e profunda do que a ausência de cor. É
isto saber de cor o silêncio: está além da ausência de cor.
O signo do silêncio: estrela impiedosa. O poeta tem uma sina e esta não é benévola.
O silêncio é um centro vazio além da vida e da memória. É o nada. Por isso é mais do que ausência
de algo (como a ausência de cor no branco).
Mas o que é saber de cor o silêncio? É ter o poder de profaná-lo e dissolvê-lo em palavras.
Saber de cor o silêncio é criar o poema. A poesia nasce de uma profanação, e por isso seu nascimento
se dá no mundo do sagrado como violência que traz o ser onde só havia o nada. Ora, a filosofia nasceu
da pergunta: por que há o ser em vez do nada? O embate entre Parmênides e Heráclito, que selou o
destino da filosofia, colocou para sempre a busca de uma resposta para a relação entre o Ser e o Não-Ser.
É isso saber de cor o silêncio e ter a força para profaná-lo.
Mas podemos encontrar outros momentos em que é inegável a presença da filosofia como poesia e da
poesia como filosofia.
Poderia ser mais evidente a presença da filosofia do que na afirmação, em Teia, de “nesta luz
(natural) da/ desrazão”, que descentra e desconstrói aquilo que a filosofia chama de luz natural, isto é, a
razão?
Ou, a reflexão de sua obra com o tempo, no poema “Do Eclesiastes”, em que o tempo certo para tudo
culmina na derrocada do próprio tempo: “há um tempo para/ desviver/ o tempo”. Reflexão que
prossegue em “Kairós” – a ocasião oportuna: “quando amadurece/ a hora” – e que culmina em
“Advento”. Ou a expressão do tempo múltiplo como a unidade múltipla da onda e que se encerra com a
pergunta: “e que luz haverá além/ do tempo?”.
Penso que o percurso de Orides se inicia e se completa com uma figura nuclear, a da transposição.
Isso aparece não só no tema explícito da primeira obra, mas se realiza em todos os poemas e se completa
com o que chamo de “grande transposição”, em Teia.
No correr da obra, há uma mudança curiosa em vários temas, como o do pássaro, que, nas primeiras
obras, é cantado e celebrado de mil maneiras, mas que nas últimas obras surge numa transposição
impiedosa, como em “Voo”: “Ter/ asas/ é não ter/ cérebro.// ter/ cérebro/ é não ter/ asas”, e em “O
antipássaro”: que “pesa/ e caça/ entre lixo/ e tédio.// Um pássaro/resiste aos/ céus. E perdura./ Apesar”.
Penso que a “grande transposição” define Teia, que retoma o tema da tecelagem e o da estrela, mas
noutra dimensão: a obra se abre com o trabalho fecundo e atento da aranha silenciosa no centro da teia e
termina com a infecunda estrela da tarde, altíssima em seu silêncio. Dois silêncios – um fecundo e outro,
estéril – que a poesia de Orides profana. Comer o vinho e beber o pão.
inédito
Estes dois poemas, até agora inéditos, foram conservados nos arquivos de Orides Fontela em São
João da Boa Vista (SP). Logo depois da morte da poeta, Ana Maria Salomão, sua prima e amiga de
infância, tomou a iniciativa de recolher os papéis e manuscritos que ficaram em seu último alojamento,
na Casa do Estudante em São Paulo, e os doou à Academia de Letras de São João da Boa Vista, no que
foi auxiliada pela atriz Suia Legaspe, que testemunhou sobre o material encontrado.
A caligrafia no manuscrito que contém os dois poemas não é de Orides Fontela. Entretanto, ao que tudo
indica, os dois poemas, cuja temática e escolhas formais são inegavelmente oridianas, devem ter sido
“passados a limpo” por uma pessoa amiga.
Ampliação
Sobre
viver:
(viver
demais?)
Acrescentar mais nada
ao nada
mais
Enigma
Noite:
abismo
Noite:
ausência
Noite:
silêncio
No infinito
impenetrável
estrelas conspiram
entrevista Carlos de Assumpção
O grito como herança
ALBERTO PUCHEU
Há uma direção nítida em Carlos de Assumpção, poeta que veio para combater: “Vocês [que] se
apoderam das terras/ Dos rios e dos mares/ Dos campos e das cidades/ Dos costumes e das leis/ Da vida
e da morte/ Do céu e do inferno/ De Deus e do Diabo”, “Vocês [que] se julgam senhores exclusivos de
tudo”.
Poesia em nome de um “nós” violentado de todos os modos, da colonização ao neoliberalismo: pela
diáspora, pela escravização, pela tortura, pelo aniquilamento das línguas, pelo estupro, pela interdição à
sacralidade, pela perseguição cultural, pelas condições de moradia, pelo negrocídio, pelo tráfico, pelo
subemprego, pelo desemprego, pela miséria, enfim, pelo Estado que “vai mirar na cabecinha e... fogo”.
Há nessa poesia um grito que, provindo do passado, envia-se a um futuro, lançando-se contra o
racismo que denuncia, deixando ao país sua mais que necessária pedagogia do grito como herança. O
poeta nos oferece uma história do Brasil escovada a contrapelo pelo testemunho de um povo que
sobrevive lutando pela justiça que vem.
Esta entrevista é simultânea ao lançamento de Não pararei de gritar: poemas reunidos, que supre
uma triste lacuna de nossa história recente, de nossa crítica, de nosso jornalismo e de nosso meio
editorial hegemônicos, por não terem percebido esse poeta imenso, sua força no movimento negro, nem
o que de sua poesia indicaram professores e pesquisadores que participam de um aparato afrodiaspórico
a se ocupar de poesia de autoria negra.
Seu Carlos, como o senhor gostaria de se apresentar?
Eu sou de Tietê (SP), fiz o primário em Tietê. No terceiro ano, uma professora fez, na lousa, um
quadrinho de honra e me colocou como o primeiro aluno. Havia filho de promotor, do prefeito, pessoas
de ascendência forte. Mas ela escolheu a mim. Eu não esperava que ela fosse me escolher. Acho que eu
tinha uns treze anos, estava no terceiro ano. Ela precisou se afastar, veio uma substituta para terminar o
ano letivo. A substituta olhava para mim com um olhar frio, parecia punhal. Acho que ela não gostou da
minha cara preta. Um dia, ela disse que eu não merecia estar no quadro de honra, pegou o apagador e
tirou meu nome. Foi um choque tremendo para mim, uma experiência terrível.
No quarto ano, tinha uma professora chamada Albertina Albi, fabulosa. Com ela é que aprendi a
lecionar. Como eu gostava de ler, eu imitava quem eu lia. Então, parecia que eu sabia muita coisa. Fazia
redações muito bonitas, inusitadas, inesperadas. Ela me perguntou se eu não queria estudar o ginásio. Eu
bem que gostaria, mas de que forma? Na minha casa, o negócio era difícil, muito difícil. Naquele tempo,
tinha um curso de admissão ao ginásio. Era uma barreira que se punha na vida do estudante, acho que
para colocar de lado os mais pobres, inclusive os negros. Eu sempre fui o único aluno negro na sala. Isso
me estranhou muito. Eu ficava intrigado, porque era só eu negro estudando, porque os outros negros não
estudavam. A condição econômica do negro é terrível, impede que ele faça muita coisa.
Eu cheguei em casa e falei com a minha mãe – eu estava entusiasmado, mas sabendo que não daria.
Minha mãe me falou: “Mas como, Carlos? Bem que eu gostaria, mas tem esse curso de admissão, é caro,
se não fizer não entra”. Minha mãe conversou com meu pai, que queria me levar para a roça. Eu tinha
horror, eu já tinha trabalhado um pouco na roça. Minha mãe conseguiu convencer meu pai de que eu ia
estudar. Eu consegui fazer o curso de admissão, entrei no ginásio. No quarto ano, tinha a formatura, que
era solene, com as pessoas importantes da cidade. Minha mãe fez um terninho branco de saco de açúcar,
alvejou o pano, ficou bonito.
O senhor trabalhava enquanto estudava?
Trabalho era só na roça, e na roça eu não queria. Eu tentei trabalhar numa hidroelétrica. Tinha que
carregar cimento. Esse ombro ficou em carne viva. Só aguentei uma semana. Quando fui receber, era
uma miséria. Eu pensei: “Ah, não sou escravo, não vou mais não”. A gente tinha de se defender, mas é
muito difícil para quem não está acostumado.
E a poesia, seu Carlos, quando começou?
Eu comecei a fazer poesia com 14 anos. Publicava no jornalzinho de Tietê. Trabalhei na rádio local de
Tietê também. O dono era pai de um colega meu. O pai delegava tudo para o filho, que me chamou para
fazer o que eu quisesse. Fiz um programa de poesia: “Momentos para sonhar”.
O senhor falava seus poemas no “Momentos para sonhar”?
Não. Para aquela época, para Tietê, minha poesia era contundente demais. Já era política. Tem uma
[“Questão de sorte”] que eu falo assim: O negro era inteligente/ O branco não/ O negro era culto/ O
branco não/ O negro era educado/ O branco não/ O negro era capaz/ O branco não// Foram juntos pedir
emprego/ A uma mesma repartição/ Umas três vagas havia/ Fizeram sua inscrição// Decisão/ O branco
foi contratado/ O negro não. Essa poesia me deu trabalho. Já fui muito vaiado por causa dela [risos]. Por
causa do racismo. As pessoas não estão acostumadas com esse começo: “O negro era inteligente/ O
branco não”. Choca. Eu fiz para agredir mesmo. Estava denunciando a injustiça.
“Questão de sorte” é dessa época então?
É. Essa poesia é mais antiga que o “Protesto” [seu poema mais conhecido, referência entre o movimento
negro]. Eu tinha um certo nome por causa dela. É simples, muito simples. Mais ou menos na época em
que escrevi essa poesia, eu estava fazendo o curso Normal. Minha mãe falou para eu fazer o Normal e,
com o dinheiro que eu ganhasse dando aula para o primário, eu estudaria mais. Achei muito razoável que
pudesse dar certo, como deu.
Acabei tentando dar aula, primeiro, em Rinópolis (SP). Escrevi uma carta ao diretor da escola,
perguntando se tinha vagas na escola. Ele disse que tinha um monte de vagas. Quando cheguei lá, sem
nenhum dinheiro, o diretor viu que eu era negro e disse que não tinha vaga. Eu não tinha como voltar.
Fiquei andando pela rua, sem dinheiro. A barriga estava funda. Um amigo me chamou e perguntou o que
eu fazia ali. Olha só que sorte! Contei a história para ele, que me ajudou. Acabei trabalhando em Tupã,
como professor substituto, na escola Bartira. Depois de um longo tempo, arranjei um emprego fixo numa
escola na zona rural.
Aí, casei. Eu queria ir para São Paulo. Eu era meio esquisito. Achava que meu lugar era lá, meus
amigos estavam lá. Fui para São Paulo e não foi fácil. Fui ajudante de caminhão, faxineiro no jornal
Estadão, servente de escola particular, empregado numa loja de joias, fiz uma porção de coisas que não
tinha nada a ver com estudo.
Tinha um programa na Rádio Cultura, que ficava na avenida São João, que mostrava as injustiças
sociais. Nele, apareciam essas pessoas derrotadas na vida. Derrotado era eu mesmo, era comigo mesmo
[risos]. Eu fui e disse que escrevia poesia, fiz um carnaval no meu nome. Ele ficou impressionado
comigo. Muita gente ligou para lá me oferecendo oportunidade. Aí, fui trabalhar num laboratório
farmacêutico.
Saí de São Paulo de repente porque minha vida estava muito ruim e eu estava indo para um caminho
que não devia. Muita boemia. Minha mulher – a antes da Lourdes – falou que, se eu não mudasse, ela
iria embora. Mudei rápido. Queria sair de São Paulo de qualquer jeito, porque eu estava naufragando.
São Paulo nunca foi com a minha cara. Lá, sempre deu errado. Eu cheguei na Comissão de Remoção e
perguntei onde tinha um lugar o mais longe possível de São Paulo. Fui com minha mulher para Rifaina
(SP), dar aula no primário.
Quando eu estava lá, fundaram o primeiro ginásio da cidade, e não tinha quem desse aula de francês.
Eu arranhava um pouco no francês. Comecei a dar aula de francês. Uma professora, Adonira, me sugeriu
fazer o curso de Letras, com formação em francês. Acabei fazendo o curso, primeiro em Passos (MG),
depois me transferi para Franca, para a Unesp (Universidade Estadual Paulista), onde acabei por concluir
o curso no começo dos anos 1970.
O senhor já tinha escrito pelo menos “Questão de sorte”, “Protesto” e “Meus avós”. Quando fez a
faculdade, mudou algo em sua escrita?
Na faculdade ninguém sabia que eu escrevia poesia. Não falei nada para ninguém. Eles só estavam lendo
aqueles escritores herméticos... A minha poesia é cascuda, não tem firula. Nunca falei para ninguém que
escrevia. Eu dava aula e fazia faculdade, era uma vida corridíssima. Eu tinha de dar 44 horas de aula
para ganhar uma miséria.
E o curso de Direito, que o senhor também fez?
Depois de terminada a Faculdade de Letras, eu fiz a de Direito. Queria ser delegado. Para ser delegado,
tem de fazer Direito. Mas tiraram da minha cabeça... Tinha de prender os outros! Formado, eu advoguei
na área penal por certo tempo. Foi bom para ver a injustiça que existe. Eu vi muita injustiça.
Vamos voltar um pouco para a época de São Paulo, para a Associação Cultural do Negro (ACN).
Dela, saiu um grupo muito bom de poetas, o senhor, o Oswaldo de Camargo, o Eduardo de
Oliveira, a Hirata, a Marta Botelho... Com relação muito forte entre poesia e política.
Muitos refugiados políticos, muitos poetas e intelectuais passavam por ali. O meu encontro com o
Nicolás Guillén eu acredito que tenha sido na Associação Cultural do Negro. Eu nunca o ouvi falar um
poema. Mas gostei muito dele. Depois, adquiri um livro dele, gostei muito do West Indies e, por isso,
decorei parte desse poema. Ele era formidável. O Léon Damas, grande poeta, da Guiana Francesa,
frequentou a ACN, mas a gente sempre se desencontrava, nunca deu certo conversar com ele. Uma outra
que frequentava a Associação era a Ruth de Souza, que faleceu este ano. Ela vem do Teatro
Experimental do Negro (TEN), ela, a Jacyra Sampaio... Muita gente queria declamar o “Protesto”, mas é
muito difícil, porque ele não segue uma linha. Passa de um assunto para outro, vai, vem, volta, fica
difícil. Muita gente tinha medo de declamar o “Protesto”. Quando eu estava lá, perto de mim, ninguém
declamava, porque achavam que era uma usurpação. A Nair Araújo, uma das atrizes do Teatro
Experimental do Negro, foi a melhor declamadora do poema “Protesto”.
O primeiro número do Niger, jornal do Sindicato dos Trabalhadores em Construção Civil, de
1960, tem uma matéria que menciona o senhor, o Oswaldo de Camargo, o Eduardo de Oliveira e o
Marcílio Fernandes. Há esse vínculo entre poesia e os operários.
Eu quase entrei pelo cano por causa disso. Como eu declamava na Associação e, às vezes, eles falavam
“Carlos, vai para tal lugar”, eu ia declamar em vários lugares, em várias cidades vizinhas, Sorocaba,
Piracicaba, eu estava sempre saindo para declamar. Quase todos eram de esquerda. Tinha um professor
de inglês chamado Israel, que era comunista. O comunista é muito social, não vai com pessoas racistas.
Racismo e comunismo não se misturam. Então, ele falava para mim: “Carlos, nós vamos ter uma
reunião...”. Naquele tempo, as reuniões eram sempre entre quatro paredes, com janelas fechadas, porta
bem fechada, tudo bem fechado. Aquela coisa esquisita. Eram reuniões, assim, secretas. Eu ia. Eu estava
fazendo não sei o quê lá, porque nunca fui comunista, nem sabia o que era comunismo. Mas correu um
boato que eu era poeta do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
A que o senhor atribui essa efervescência de poetas na Associação Cultural do Negro na virada dos
anos 1950 para os anos 1960?
É o anseio por libertação. Naquele tempo, foi muito forte mesmo. E tinha público para isso. O povo se
sentia bem ouvindo o “Protesto”, o “Banzo” [do Eduardo de Oliveira], o poema do Oswaldo [de
Camargo], que era um poeta forte lá. Nós saíamos declamando. Eu declamava muito o poema
“Protesto”. Até na rua. Alguns associados me levavam para a casa deles para declamar poesia para a
mulher, para os filhos... Eu ia. Nossa, fui a muitas casas.
O “Protesto” foi o poema do senhor que ficou mais conhecido. E o “Meus avós”, de 1960, é um
poema tão grandioso quanto o “Protesto”...
Aquele que fez a orelha do meu primeiro livro [Henrique L. Alves] costumava falar que eu era um
“poeta de um poema só”, que era o “Protesto”. Eu tinha mais poemas, mas o que dava destaque, o que
dava ibope, era esse mesmo. Por isso, não trabalhei em outros poemas. Eu mesmo acabei me esquecendo
dos outros... Fui na onda...
Outro momento importante é o dos Cadernos negros, dos quais o senhor participou em três
números.
Nessa época, eu não morava mais em São Paulo. Mas tinha muito contato com eles, tinha o [Paulo]
Colina, o Cuti, o Márcio [Barbosa], o Oswaldo [de Camargo], uma turma boa. Eram todos meus amigos.
O maior deles para mim é o Cuti. E fizemos juntos o CD Quilombo de palavras. Ele é um grande
intelectual, escreve poesia, conto, ensaio, teatro... Para mim, é o maior literato negro atual. O Adão
Ventura, eu o procurei lá em Passos, onde ele foi promotor, mas ele tinha se mudado. Depois, fiquei
sabendo que ele faleceu, cedo, cedo.
Quais são as maiores referências para o senhor?
Eu gosto do Langston Hughes. Ele tem uma maneira de falar naquele eu coletivo, aquele eu que significa
nós, que dá uma força muito grande. A gente mistura o eu real com o eu coletivo. Gosto do Drummond
de Andrade. Gosto do García Lorca. Gosto do Guillén, como já disse. Mas acho que quem mais me
influenciou foram os cururueiros de Tietê. E, também, com uma quadrinha só, o Valério Correia, que só
tinha uma quadrinha, que é o que restou da poesia dele. Era um poeta repentista, que andava pela cidade.
De vez em quando era preso, porque fazia crítica ao poder. Prendiam-no então por vadiagem.
Antigamente, quando queriam prender, eles prendiam por vadiagem. Quando eu conheci Solano
Trindade, eu já tinha escrito o “Protesto”, já tinha escrito muita coisa. Mas eu gosto demais dele. O Luiz
Gama defendeu muitos negros que mataram seus senhores e ganhou as causas como legítima defesa. O
Luiz Gama foi um grande homem. Ele morava no Brás. Foi enterrado no Cemitério da Saudade, que fica
lá na Consolação, bem distante da casa dele. O transcurso do caixão foi feito no ombro do povo. Um
trocava com outro. Tinha 3.500 pessoas no transcurso, que foram até onde ele foi enterrado. Eu fui no
túmulo dele. Todo ano nós fazíamos uma homenagem ao Luiz Gama. Ele foi o precursor da poesia de
combate, um dos precursores da poesia negra, de contundência social. Sempre gostei do Gonçalves Dias,
que também sofreu preconceito. Fiz um poema, chamado “Prece”, para o Castro Alves. Eu gosto muito
do Machado de Assis. Machado de Assis é um milagre. Nasceu no morro, sofreu, era gago, epiléptico,
negro e venceu. Tem uma poeta que mora em Brasília, que se chama Cristiane Sobral, que eu gosto
demais dela. Ela é formidável. A Miriam Alves, que esteve aqui em casa, eu também gosto dela. O
melhor para mim é o Cuti. E o [Akins] Kinte.
Como o senhor pensa a questão da relação entre a poesia de autoria negra e a poesia de autoria
branca?
Eu só faço poemas com tema negro. Só. Não me aventuro a outras coisas, porque já tem outras pessoas
para fazer isso. Eu quero impor minha poesia negra também junto com os brancos. Mas sem
descaracterizá-la. É o que eu acho que tem de ser. Tem muitos brancos que gostam, que também se
sentem injustiçados. Independentemente de ser uma poesia engajada na literatura negra, consegue atingir
também os brancos. O meu objetivo é atingir todo mundo.
Porque é a história do Brasil...
É, lógico. E dá para atingir, sim. É muito difícil, não é fácil, porque às vezes a pessoa coloca o problema
de uma forma que parece que ela quer se excluir. Eu quero conviver com todo mundo. Minha poesia
quer isso também. Igualdade racial, igualdade política, igualdade em tudo. É só isso. Eu não sei, eu acho
que consegui, eu acho que consegui...
livros
Marisa Letícia, uma filha do Brasil
AMANDA MASSUELA
Na cozinha de uma casa no Jardim Lavínia, em São Bernardo do Campo, um grupo de mulheres trabalha
sobre tecidos, tintas e telas. São vizinhas, irmãs e companheiras de partido de Marisa Letícia, que lidera
a produção de camisetas para a campanha do marido ao governo do Estado de São Paulo, em 1982. Dali
saem 200 peças por dia, em modelos variados. Na mais famosa, a palavra “optei” aparece em vermelho e
preto, as letras “P” e “T” na cor do recém-fundado Partido dos Trabalhadores.
Não era a primeira e nem seria a última vez que a dona de casa se engajaria nas empreitadas políticas
do companheiro. Da eleição de Lula à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do
Campo, em 1975, até a chegada ao Palácio do Planalto, em 2002, Marisa acumularia diversas funções,
além de mãe de quatro filhos e chefe da casa dos Lula da Silva.
“Era muito disciplinada. Perguntava: ‘o que precisa ser feito? Broche, camiseta, bandeira, levantar
recurso para construir a sede do PT? Então vamos fazer’”, afirma Camilo Vannuchi, autor da biografia
Marisa Letícia Lula da Silva, lançada em fevereiro pela Alameda Editorial.
Entre o final de 1970 e início de 1980, Marisa foi às ruas em busca de assinaturas para a fundação do
PT. Ouviu demandas de possíveis eleitores e planejou bingos para arrecadar fundos para o partido. No
dia 8 de maio de 1980, puxou uma grande marcha de mulheres no centro de São Bernardo do Campo
pela libertação dos sindicalistas presos na greve dos metalúrgicos daquele ano, cujo líder era seu marido.
Mas a política não fluía naturalmente para a mulher nascida na zona rural de São Bernardo, e não foi
sem resistência que Marisa permitiu que aquela se tornasse a vida de sua família. Filha de benzedeira,
sabia desde cedo como era ter a casa cheia de estranhos, e temia pelo fim de sua privacidade. Sentia-se
sobrecarregada com as tarefas domésticas, preocupava-se com a segurança familiar e com a
possibilidade de os filhos crescerem sem um pai presente.
“Após a prisão de Lula em 1980 e o curso na Pastoral Operária, ela percebe que a opção do marido
era um caminho sem volta”, conta o frade dominicano Frei Betto, que no mesmo ano de 1980 propôs
uma série de encontros voltados à politização das mulheres dos operários. Era preciso que elas
compreendessem e sobretudo apoiassem a militância sindical dos maridos naquele período de greves no
ABC paulista.
Semanalmente, no salão paroquial da Igreja da Matriz, Frei Betto falava a elas sobre conjuntura
econômica, inflação, relações trabalhistas e apresentava temas como direitos humanos, reforma agrária e
ditadura militar. À medida que Marisa comparecia às reuniões, mais mulheres se animavam a participar.
“Outras eram até mais engajadas, mas Marisa se torna referência porque é mulher do principal líder”,
afirma seu biógrafo. Os encontros tiveram muita influência na formação política de Marisa, que ainda
menina aprendera com o pai a evitar esse tipo de discussão. O agricultor não gostava nem que os filhos
comentassem o tema dentro de casa.
Décima entre onze irmãos, Marisa nasceu em 1950 em uma casa de taipa sem energia elétrica, onde
os pais plantavam batata, cenoura, abóbora; criavam porcos, galinhas e patos. Foi babá dos 9 aos 13 e
operária em uma fábrica de bombons antes dos 14 – idade em que abandonou os estudos. Quando
completou 20 anos, pediu demissão para se casar com seu primeiro namorado. Pouco tempo depois,
recebeu a notícia de que ele tinha sido assassinado. Estava grávida de quatro meses.
Já era viúva havia três anos quando pisou no Sindicato dos Metalúrgicos pela primeira vez e foi ali
que conheceu Lula, então primeiro-secretário. Era verão de 1973 e ela precisava de um documento para
um dos irmãos, que não podia mais trabalhar devido ao vício em álcool. Lula também era viúvo e, desde
o momento em que colocou os olhos na “galega”, não passou um dia sequer sem insistir naquele
relacionamento. O casamento aconteceu no ano seguinte.
Dali em diante, a política seria parte inevitável da vida de Marisa. Ela ainda tentou dissuadir o marido
da ideia de se candidatar à presidência do sindicato em 1975 e depois em 1978 – afinal, agora ele era pai,
e precisava passar mais tempo em casa. Não teve sucesso. Lula passava doze horas por dia no sindicato.
Marisa esbravejava e tentava impor limites ao marido.
Fábio nasceu um mês antes da primeira eleição sindical do pai, e o irmão, Sandro, após a segunda.
Lula não estava na maternidade em nenhum dos dois nascimentos, e nem esteve no do terceiro filho do
casal, Luís Cláudio, em 1985. Naquele ano, ele rodava o país para formar diretórios do PT e apoiar
candidaturas locais. Após a derrota nas urnas em 1982, quando foi candidato a governador, elegeu-se
deputado federal pelo PT em 1986.
Durante a campanha, Marisa ajudava a fazer a agenda do marido, organizava a entrega de materiais
de divulgação, recebia pessoas, cuidava da casa e dos quatro filhos, o mais novo de um ano e meio. Na
biografia, Camilo Vannuchi conta que, em quatro meses, “15 mil camisetas foram impressas nas
pranchas de Marisa”. “Era muito inteligente e curiosa. Falava pouco, mas estava sempre ligada. Dava
muitas sugestões ao Lula, tinha esse papel de conselheira extraoficial.”
Era comum que Lula saísse de uma reunião com uma decisão e voltasse na manhã seguinte com outra
– fosse como líder sindical, deputado ou presidente da República. “As falas de Marisa eram sempre
nessa linha: ‘o que o trabalhador vai achar disso? Você falou com catadores, com alguém da indústria de
plástico?’”, conta Vannuchi. Perspicaz, ela foi uma das primeiras pessoas a dizer ao marido sobre a
necessidade de abrir diálogo com os evangélicos.
Quando Lula perdeu as eleições para Fernando Collor em 1989 e pensou em desistir da carreira
política, ela o convenceu a continuar determinado, ainda que aquilo significasse ver sua família no centro
da máquina de difamação que voltava a funcionar a cada campanha eleitoral, desde 1982.
Naquele ano circularam boatos de que Lula morava em uma mansão no Morumbi. Na disputa contra
Collor, diziam que o metalúrgico tinha decepado o próprio dedo para se aposentar por invalidez e que, se
chegasse ao poder, fecharia igrejas e tomaria bens da população. A equipe de Collor pagou uma ex-
namorada de Lula e ela gravou um depoimento afirmando que o candidato oferecera dinheiro para que
ela tirasse a filha que tiveram juntos, Lurian.
Em meio a tudo isso, Marisa evitava dar entrevistas e manifestar-se publicamente. Tinha medo de
falar besteira e atrapalhar o marido. Repetia que era apenas uma dona de casa, e não uma pessoa pública,
muito menos candidata a nada. O receio dos holofotes permaneceu durante seu período no Palácio da
Alvorada, de 2002 a 2010, e Marisa preferiu não assumir nenhum cargo oficial.
A Constituição não especifica as funções da mulher do presidente, mas é comum que elas adotem
uma causa. Ruth Cardoso coordenou um programa de alfabetização de jovens de 12 a 18 anos, por
exemplo, e Sarah Kubitschek fundou uma iniciativa social voltada para crianças, mães e mulheres
grávidas.
“Marisa temia a obrigação de, ao estar à frente de uma atividade, ter que fazer discursos, dar
entrevista. Nunca se sentiu segura para dar esse passo”, conta Frei Betto. As mulheres do partido se
frustravam com a opção da primeira-dama. Nos bastidores, Marisa permanecia ativa, sempre inteirada
das decisões do marido, aconselhando-o e manifestando suas opiniões.
Como primeira-dama, lidou ainda com comentários preconceituosos sobre sua origem: diziam que,
uma vez instalada no Palácio da Alvorada, ela não daria conta de limpar tantas janelas. Marisa não se
sentia confortável em Brasília. Trocaria qualquer agenda oficial por um fim de semana com os filhos e
netos, de preferência à beira de uma lagoa, entre plantas e bichos.
Em 2005, ela decidiu comprar uma cota de participação do condomínio Mar Cantábrico, da
Cooperativa Habitacional do Sindicato dos Bancários de São Paulo, de olho em uma casa na praia.
Também aceitou, em 2010, compartilhar com Jacó Bittar, conselheiro do fundo de pensão da Petrobras,
um sítio que ele compraria em Atibaia com a intenção de juntar as duas famílias nos fins de semana.
Eram amigos fazia mais de 30 anos e Marisa se animou com a ideia. Opinou sobre os rumos da reforma
a fim de surpreender Lula no fim do mandato.
Em setembro de 2016, ambos tornaram-se réus nas investigações da Lava Jato. A suspeita era de que
Lula recebera vantagens indevidas de empreiteiras como OAS e Odebrecht em troca de favorecimentos
em contratos com a Petrobras. As obras no sítio em Atibaia e a reforma em um apartamento no Guarujá
estariam entre elas. No caso do triplex, Marisa é acusada de lavagem de dinheiro.
“A ideia de que atitudes dela pudessem causar perseguição aos filhos e uma possível prisão do
marido passa a ser aterrorizante”, afirma Vannuchi. De volta a São Bernardo, Marisa dobra a quantidade
de cigarros e de bebida, passa os dias aflita e isolada em casa. Para se distrair, borda, faz sabão e troca
mensagens pelo WhatsApp.
Em 24 de janeiro de 2017, é vítima de um AVC hemorrágico, decorrente do rompimento de um
aneurisma diagnosticado no primeiro governo Lula. Morre nove dias depois, aos 66 anos, antes de ver o
marido ser carregado por uma multidão para fora do sindicato dos metalúrgicos, no dia de sua prisão.
Para Vannuchi, a presença de Marisa em centenas de viagens de campanha e em cima de palanques
do PT permitiu que mulheres se identificassem com o partido, hoje o maior da esquerda latino-
americana. “A eleitora passa a confiar no PT porque a Marisa está ali.” Ele diz que, no lançamento do
livro em São Bernardo, muitas mulheres o abordavam para falar de Marisa. “Elas percebiam que ela era
essa pessoa que dialogava com outras mulheres, sem achar que elas não eram importantes.”
Neta de imigrantes, filha de agricultores, dona de casa advinda da classe trabalhadora, Marisa teve
uma história de vida semelhante à de tantas de sua geração: “Se Lula é considerado um ‘filho do Brasil’,
Marisa também é”.
colaboraram nesta edição
Alberto Pucheu é poeta, ensaísta e professor da UFRJ;
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda em Ciência da Informação pela USP,
autora de Quando me descobri negra (SESI-SP);
Carla Rodrigues é doutora em Filosofia pela PUC-Rio e professora da UFRJ;
Flavia Rios é doutora em Ciências Sociais pela USP e professora adjunta da UFF;
Fritz Nagib é advogado, fotógrafo e engenheiro agrônomo;
Hélio Campos Mello é editor e fotógrafo. Cobriu a invasão do Panamá em 1989 e a Guerra do Golfo em
1991;
Ivan Marques é doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da mesma instituição;
Januário Garcia é fotógrafo, presidente do Instituto Januário Garcia: documentos e fotografias de
matrizes africanas ;
Marcelo Semer é juiz de Direito e escritor. Doutor em Criminologia pela USP, é membro e ex-
presidente da Associação Juízes para a Democracia;
Marcia Tiburi é escritora, professora e doutora em Filosofia pela UFRGS, autora de Delírio do poder
(Record);
Marilena Chaui é doutora em Filosofia pela USP e professora emérita da mesma instituição;
Olgária Matos é doutora em Filosofia pela USP, professora titular aposentada da mesma instituição e
professora titular da Unifesp;
Patrícia Lavelle é doutora em Filosofia e Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences
Sociales de Paris e professora assistente da PUC-Rio;
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor
de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP).