Leadro Pasini - Subjetividade e Nação Na Poesia de Mário
Leadro Pasini - Subjetividade e Nação Na Poesia de Mário
Leadro Pasini - Subjetividade e Nação Na Poesia de Mário
A APREENSÃO DO DESCONCERTO:
SUBJETIVIDADE E NAÇÃO NA POESIA DE MÁRIO DE ANDRADE
LEANDRO PASINI
SÃO PAULO
2011
2
A APREENSÃO DO DESCONCERTO:
SUBJETIVIDADE E NAÇÃO NA POESIA DE MÁRIO DE ANDRADE
LEANDRO PASINI
SÃO PAULO
2011
3
Banca examinadora
_______________________________________________
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4
para Lili,
dont tout ce que l’on aime est digne d’être aimé
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar à minha família, e sobretudo ao meu pai, cujo apoio e exemplo me
acompanharam o tempo todo.
Ao meu grande amigo Fábio Borges, com quem discuti assuntos amazônicos.
Aos amigos de ideias, debates e leituras Gabriela Siqueira Bitencourt, Daniel Garroux,
César Takemoto, Maíra Marquez, Ton Lopes e Alice Ricci. Destes agradeço
especialmente à Gabriela, eterna colega de orientação, pela companhia sempre
inteligente e compreensiva, e que se tornou uma espécie de irmã mais nova.
Ao meu professor José Antônio Pasta, por sua atenção terna e paciente, por ser um
intelectual inconformista e irredutível, por ter me demonstrado o interesse e a
importância da literatura brasileira, e por ter se tornado para mim, para usar uma
expressão que lhe é cara, um indivíduo que leva em si uma totalidade.
Ao pequeno Léo, filho por afinidade eletiva, que me lembrou que a poesia é a
descoberta das coisas que eu nunca vi.
À minha namorada Eliane Paradela Arakaki, a quem esta tese é dedicada, que leu e
revisou cada versão deste texto, discutiu comigo cada linha, participando assim de todas
as suas etapas de elaboração, que compartilhou comigo cada momento bom e ruim que
a grande solidão de fazer uma tese traz consigo, e que, sem se dar conta disso, atenuou o
máximo que pôde a minha árida tendência abstrativa.
6
Esta pesquisa contou com o apoio de uma bolsa de estudos do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
7
RESUMO
ABSTRACT
The poetical works of Mario de Andrade, approached as a whole, present two constant
signs, true obsessions of the poet: Brazil and his own subjectivity. This work searches to
explain the way these two obsessions intertwine themselves, that is to say, the way the
lyrical subjectivity of Mario de Andrade constantly tries to be expressed by features of
nationality, taking into account that all his poetry develops by striving aesthetically –
and even extraesthetically – to solve this problem. To bear in mind that the disparities in
the relation between the I and Brazil cover all the stages of his poetry, with different
configurations, therefore this relation is a key to comprehend many of the themes of his
poetry, like love, religiousness, the popular culture, the engagement, among others. This
view also claims a new evaluation of the place and the meaning of Mario de Andrade‟s
lyrical poetry within the Brazilian Modernist Movement and in the context of the
international Modernism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 12
Fortuna Crítica................................................................................................................ 20
Modernismo, Formação, Lírica e Sociedade.................................................................. 38
Resumo dos Capítulos.................................................................................................... 41
INTRODUÇÃO
1945, ter procedido a algumas revisões de sua obra como um todo, e de sua obra poética
em particular, e apontado, a partir da perspectiva final de sua obra, um modo de ler
aquilo que veio antes. Ensaios como “A Elegia de Abril” (1941) e “O Movimento
Modernista” (1942), o livro inacabado de diálogos artístico-filosóficos O banquete
(1943-1945) e o poema “A Meditação sobre o Tietê” (1944-1945) oferecem uma
revisão radical da atuação estética e política de Mário e do sentido de sua obra como um
todo. Em relação à sua obra poética, “A Meditação sobre o Tietê” faz uma revisão
intrapoética do seu conjunto. Levando em conta, então, o modo como o próprio autor
preparou a leitura de sua obra, este trabalho propõe um estudo sobre a relação entre
subjetividade lírica e nação em sua poesia. Na elaboração de uma perspectiva de estudo,
depreende-se essa relação de seu último poema, “A Meditação sobre o Tietê”. A relação
é em seguida desenvolvida no estudo de temas centrais em sua poesia – a configuração
de uma subjetividade lírica, o amor, a religião, o posicionamento político – a partir de
cortes transversais em sua obra poética. Essa perspectiva se propõe a tomar a obra em
conjunto e a avaliá-la a partir de seu último momento. Não se trata de uma análise do
poema “A Meditação sobre o Tietê” como um todo,1 mas de um sentido de análise
crítica que começa pelo fim e pela reavaliação de conjunto presente na própria obra
mariodeandradiana. A crítica neste trabalho busca, assim, sintonizar a seu modo a
organização da perspectiva crítica, que tem sua própria forma e suas próprias demandas,
com a organização que Mário de Andrade faz de sua obra poética a partir de dentro.
Trata-se de organizar uma ordem de problemas e sua crítica a partir do conjunto da obra
poética, com vistas a estruturas profundas,2 mas não se trata, de modo algum, de tentar
exaurir as possibilidades de leitura e interpretação de sua poesia lírica. A aceitação da
obra poética de Mário como um “bloco” é percebida como conveniente e aconselhada já
em seus primórdios por seu interlocutor mais constante, Manuel Bandeira, em carta de
13 de setembro 1925: “A sua obra vai ser como as de Fagundes Varela e Castro Alves
uma coisa grandalhona de que a gente não pode gostar em bloco, mas tem que aceitar
1
Para uma recente análise do poema todo, ver MAJOR NETO, José Emílio. A Lira Paulistana de Mário
de Andrade: a insuficiência fatal do outro. 2007. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura
Comparada) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2007.
2
O estudo das estruturas profundas da literatura brasileira se baseia fundamentalmente no trabalho de
José Antônio Pasta Jr., cuja compreensão de conjunto da literatura, da história e da sociedade brasileira é
exposta extensamente em aulas, palestras e conferências, e hipercondensadamente em textos críticos de
circulação restrita, frequentemente escritos em francês e publicados na França, citados ao longo do
trabalho e nas referências. Toda a interpretação desse trabalho, no entanto, exposto nesta tese, é de minha
inteira responsabilidade.
14
3
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo:
Edusp/IEB, 2001. p. 237.
4
A própria obra de Mário de Andrade como um todo oferece material para entendimento, comentário e
interpretação de sua poesia. Suas entrevistas, correspondências, diários de viagem, crônicas, obras de
reflexão estética e social, historiografia e crítica literária, musical e de artes plásticas, estudos folclóricos,
peças (O café), contos e romances fornecem material abundante para entender a sua coerência, material
de que procuro dispor sempre que elucide a pesquisa.
15
moderno definido por práticas patriarcais e paternalistas. Como esses são os temas
fundamentais da sociologia brasileira,5 não me estendo na caracterização dos traços de
exceção que compõem o processo histórico da sociedade brasileira, os quais não deixam
de ser um momento específico e revelador da natureza conjunta e desigual da história
mundial moderna. O que há para destacar nessas linhas muito gerais que descrevem o
movimento (ou a falta de movimento) da história brasileira para as finalidades deste
estudo é a profunda heterogeneidade de aspectos que a definem e que estão disponíveis
como matéria histórica e material artístico6 para o poeta que queira, como quis Mário de
Andrade, dar-lhe coerência e sentido construtivo.
No plano social do indivíduo, Mário fez considerações importantes sobre a
diferença da subjetividade europeia e a sul-americana. Observando em sua viagem
amazônica a diferença de comportamento entre os tripulantes europeus de seu navio e
os brasileiros, Mário escreve: “Dizer então que me lembrei de uma amiga judia francesa
comunista que me crible de lettres sobre a infelicidade social dela, dos operários etc. Me
lembrei de escrever pra ela uma carta amazônica, contanto esta „dor‟ sulamericana do
indivíduo. Sim eles tem a dor teórica, social, mas ninguém não imagina o que é esta dor
miúda, de incapacidade realizadora do ser moral, que me deslumbre e afete”.7 E
prossegue o nosso autor escrevendo a carta imaginada à sua amiga, em que há essa
interessante passagem sobre “nos gentilles âmes imparfaites”: “N‟avez vous pas senti
nos peurs américaines, et nos impossibles? O que é Hitler, Deladier, a impotência, a
clarividência criminosa. Os vossos operários europeus? Eles não sofrem não, eles
teorizam sobre o sofrimento. A dor, a imensa dor do irreconciliável humano, sempre
imaginei que ela viajara na primeira vela de Colombo e vive aqui. Essa dor não é de ser
operário, que não é de intelectual, que independe de classes e de políticas, de
5
Para uma orientação sobre os temas centrais do pensamento sobre o Brasil e da sociologia brasileira, ver
RICUPERO, Bernardo. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2008 e
SCHWARZ, Roberto. Um seminário de Marx. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
6
Entendo aqui “matéria histórica” como a matéria ainda não pré-figurada artisticamente com que o poeta
trava contato e busca formalizar, consciente ou inconscientemente, e “material histórico” como o
conjunto dos elementos de composição disponíveis para o artista. O conceito de “material” na obra
Adorno pode ser lido com proveito em ALMEIDA, Jorge de. Crítica dialética em Theodor Adorno.
Música e verdade nos anos vinte (São Paulo: Ateliê, 2007), principalmente o capítulo de conclusão A
Dialética do “Material”. Para um exemplo tirado da poesia de Mário, o “seringueiro” de “Dois Poemas
Acreanos” é matéria histórica, a forma do “Coco”, composição musical nordestina utilizada pelo poeta, é
“material”.
7
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 149. Os trechos em francês
fazem parte do texto original.
17
8
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz, cit., 2002. p. 149. O texto dessa passagem data de 1927,
antes de Hitler e o nazismo rebaixarem a “dor” da individualidade europeia a níveis brasileiros. Sobre a
relação entre a ação do nazismo na Europa e das metrópoles europeias em suas colônias, é importante
relembrar essa passagem de Aimé Césaire: “O que o cristianíssimo burguês do século XX não perdoa a
Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime
contra o homem branco [...] é ter aplicado à Europa procedimentos colonialistas que, até então, só se
destinavam aos árabes, aos cules da Índia e aos negros da África” (apud FERRO, Marc. História das
colonizações. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 14). Original em francês: “au très distingué, très
humaniste, très chrétien bourgeois du XXe. siècle [...] ce qu‟il ne pardonne pas a Hitler, ce n‟est pas
l’humiliation de l’homme en soi, c‟est le crime contre l‟homme Blanc, c‟est l‟humiliation de l‟homme
Blanc, et d‟avoir appliqué à l‟Europe des procédés colonialistes dont ne relevaient jusqu‟ici que les
Arabes d‟Algérie, les coolies de l‟Inde et les nègres d‟Afrique” [grifo do original] (CÉSAIRE, Aimé.
Discours sur le colonialisme. Paris: Présence Africaine, 2004. p. 13-14).
9
BASTIDE, Roger. Brasil: terra de contrastes. São Paulo: Difel, 1973. p. 10.
18
Há de facto em nosso futurismo quebra da evolução brasileira. É que, coisa mil vezes dita,
durante quase século, com lustros de atraso, fomos uma sombra de França. Sombra doirada.
Sempre sombra. Nós, os modernistas, quebramos a natural evolução. Saltamos os lustros de
atraso. Apagámos a sombra. Mas somos hoje a voz brasileira do coro “1923”, em que entram
todas as nações. Poderia documentá-lo. E por isso a solução de continuidade na tradição artística
brasileira. Nem o grande Cruz e Sousa e um ou outro decadente simbolista, bastam para justificar
o nosso presente. Ha, confesso, uma quebra pela qual, aos vesgos, somos chocantes e
aparentemente exagerados. Como do academismo e impressionismo anafados evolucionar
para Anita Malfatti, num país onde não ecoaram as pesquizas de Seurat, van Gogh, Cezanne?
Como de Bernardelli evolver para Brecheret, sem Metzner, Milles, Mestrovic? Hiato. E a grita
aflita das araras. Será preciso noutros países buscar a nossa evolução. Mas nem por isso
deixamos de ser a voz brasileira no movimento que hoje se desenha universal 12 [grifo do
original].
10
CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura 1900-1945. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2008. p. 128.
11
RAMOS, Péricles. O Modernismo na Poesia. Apud COUTINHO, Afrânio (Org.). A literatura no
Brasil. São Paulo: Global, 2004. v. V − Era modernista, p. 50. O tema da operação realizada pelo
Modernismo, de tornar positiva uma herança colonial que até então era sentida como negativa, foi
recuperado recentemente em textos de Roberto Schwarz e Vinícius Dantas, que serão trazidos para a
discussão na revisão da fortuna crítica.
12
ANDRADE, Mário de. Convalescença. Revista do Brasil, n. 92, p. 339, ago. 1923. Reproduzi a
ortografia original do texto.
19
social brasileira, desenvolvendo as questões colocadas pelo texto que acabamos de citar.
A citação será longa, mas acredito que ela seja fundamental para entender o espírito
analítico e consciente de Mário de Andrade que preside à sua atuação modernista:
13
ANDRADE, Mário de. Osvaldo de Andrade. Revista do Brasil, ano IX, v. XXVII, p. 31-32, set./dez.
1924. Republicado em BATISTA, Marta Rossetti; LOPEZ, Telê Porto Ancona; LIMA, Yone Soares de.
Brasil: 1º tempo modernista – 1917/29. Documentação. São Paulo: IEB, 1972. p. 223-224. Segui a
ortografia do texto republicado.
20
Por essa longa citação se vê o quanto o nacionalismo modernista era oriundo das
necessidades internas da vanguarda artística no Brasil e o quanto a relação da
subjetividade lírica com a nação era um problema estrutural da poesia de Mário e do
Modernismo brasileiro de um modo em geral. Assim, as diferentes configurações dessa
subjetividade lírica e dessa simultaneidade de tempos históricos serão aqui estudadas no
que tange especificamente à poesia de Mário de Andrade, mas que não perde o
horizonte do sentido histórico que teve todo o Movimento Modernista na reavaliação da
cultura e da vida social brasileiras. Esse então o Brasil historicamente específico, que
entra em contato com um sujeito igualmente específico na obra poética de Mário de
Andrade, e cujo resultado estético, compreendido em suas diferentes realizações, é o
objetivo deste estudo.
Fortuna Crítica
14
ANDRADE, Oswald de. O meu poeta futurista. Jornal do Comércio. São Paulo, 27/05/1921. Apud
BRITO, Mario da Silva. História do modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
v. I – Antecedentes da Semana de Arte Moderna, p. 228.
15
BANDEIRA, Manuel. Mário de Andrade [1922]. Crônicas inéditas. São Paulo: Cosac e Naify, 2008. v.
1, p. 25. Sobre o sujeito lírico em Paulicéia desvairada, ver LAFETÁ, João Luiz. A representação do
sujeito lírico na Paulicéia desvairada. A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004.
16
BANDEIRA, Manuel. Mário de Andrade [1922]. Crônicas inéditas, cit., p. 26. Sobre essa primeira
teoria poética de Mário, muito comentada, leem-se com proveito os textos de Maria Helena Grembecki,
Roberto Schwarz, que comentarei mais adiante, e GÓES, Fernando. História da Paulicéia desvairada.
Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. Homenagem a Mário de Andrade. CVI, jan. 1946.
21
17
BANDEIRA, Manuel. Reservista poeta. Mário de Andrade: Losango Cáqui [1926]. Andorinha,
andorinha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. p. 181. Sobre as datas de composição e publicação, ver a
“Advertência” de Mário no próprio livro.
18
Sobre o diálogo dos três artistas, ver DANTAS, Vinícius. Entre “A Negra” e a Mata Virgem. Novos
estudos. São Paulo, n. 45, jul. 1996. Tratei no Capítulo IV desta tese do poema “Noturno de Belo
Horizonte” sob a ótica desse diálogo.
22
do Brasil”;19 Nestor Vitor, no que seja talvez a intuição mais brilhante sobre o
significado do livro, comenta sobre seu trabalho de linguagem: “Parece um „tour de
force‟ diametralmente antagônico ao que representam as Sextilhas de Frei Antão”.20
Com esse livro, Mário apresenta o aproveitamento poético de um folclorismo sério,
sensível à particularidade regional e à concretude do processo histórico em diversas
partes do território brasileiro. Talvez, de nossos modernistas, só a ele caiba, adaptado
para a poesia, o comentário de Adorno à música de Bartók, outro folclorista adulto, de
que: “o que é próprio da canção popular nunca se coloca como elemento estilístico
discretamente ressaltado, antes é em toda parte apreendido pelo processo compositivo
subjetivo, sendo perpassado por ele como apenas na realidade o Eu e a objetividade se
perpassam”.21 Aqui está uma possível perspectiva crítica da identificação entre eu e
Brasil na obra poética de Mário.
A recepção de Remate de Males (1930) é feita basicamente pelos mesmos
críticos que vinham acompanhando o trabalho do poeta. A renovação que se opera na
poesia daquele ano22 não teve desdobramento na atividade crítica. A única recepção que
acompanha essa radicalização é à direita, no texto do católico ortodoxo Tristão de
Ataíde, que condena a baixa espiritualidade do poeta nesse livro, e seu excesso de
cerebralismo. Mário agora seria complacente com o mundo exterior e os “amores
fáceis”. Conformista (!), enfim.23 Enquanto Tristão de Ataíde ia perdendo o fio da
meada, Manuel Bandeira compreendia o grande avanço poético do livro: os momentos
de repouso contemplativo de “Poemas da Negra” e “Poemas da Amiga” davam, em
termos de linguagem e observação, uma familiaridade profunda com a vida brasileira. O
que é exótico para os próprios brasileiros, exterioridade pura, recebe de Mário uma
intimidade poética, tornando-os objeto de poesia sem nacionalismo complacente.
Contudo, esse ponto de consolidação de conquistas poéticas marca uma virada
19
RIBEIRO, João. O Clã do Jaboti [1928]. Os modernos. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras,
1952. p. 85.
20
VITOR, Nestor. Mário de Andrade [1928]. Os de hoje. São Paulo, Cultura Moderna, 1938. p. 159.
Sobre a linguagem “brasileira” de Mário, ver PINTO, Edith Pimentel. A gramatiquinha da fala brasileira.
São Paulo: Duas Cidades, 1990.
21
ADORNO, Theodor W. Über einige Werke von Bela Bartók (1925). Gesammelte Schriften. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1984. v. 18. Apud ALMEIDA, Jorge de. Crítica dialética em Theodor Adorno.
Música e verdade nos anos vinte, cit., p. 234. Sobre o Mário folclorista, ver LOPEZ, Telê. Mário de
Andrade: ramais e caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972 e FERNANDES, Florestan. Mário
folclorista. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, cit.
22
ANDRADE, Mário de. Poesia em 1930 [1931]. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte:
Itatiaia, 2002.
23
ATHAYDE, Tristão de. Mais vozes de perto. Estudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933. 5a
Série, p. 133.
23
24
BANDEIRA, Manuel. Mário de Andrade [1931]. Crônicas da província do Brasil. São Paulo:
Cosacnaify, 2007.
25
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 98.
26
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz, cit., p. 98.
24
Agora estou organizando o Remate de Males pra imprimir. Este livro me assusta,
palavra. Tem de tudo e é a maior mixórdia de técnicas, tendências e concepções
díspares. Mas gosto disso bem. “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta” como digo
num dos poemas. Terá “Danças”, “Tempo de Maria” (alguns só), “Poemas da negra”,
“Poemas da amiga” e uma série de poesias soltas que ainda não denominei e estou
achando dificuldade pra batizar. Há no livro alexandrinos parnasianos, decassílabos
românticos, simultaneidade, surrealismo quase, coisas inteligibilíssimas e poemas
absolutamente incompreensíveis. Talvez uma abundância excessiva. Mas é que
pretendo me livrar da poesia pra todo o sempre27 [grifo meu].
Apesar da intenção de abandonar a poesia, Mário não foi capaz de evitar o que ele
mesmo chamou de “estado poético”, o que fez com que sua produção poética
continuasse e expressasse, ao longo da década de 1930,28 um grande dilaceramento
interior. Contudo, o poeta passa toda a década sem publicar poemas. Esses dez anos de
silêncio poético são encerrados com livro Poesias, de 1941, que reunia sua obra anterior
e acrescentava os livros A costela do Grã Cão e Livro azul. São poemas escritos ao
longo da década de 1920 e 1930. A relação entre sujeito lírico e Brasil, agora tencionada
pela consciência de uma história cujo curso é destrutivo, se fortalece, em lugar de
diminuir. O caso oferece uma imagem de seriedade intelectual em que é preciso se
deter. Pensemos nos modernistas de primeira ou segunda hora que, tomando
consciência do tamanho do problema que era o Brasil, abandonaram a relação entre eu
lírico e nação e foram voar em outras asas. Da postura “pau-brasil” para a sagração da
santíssima trindade foi um passo, assim como o caminho pareceu fácil do totemismo da
Anta ao Integralismo totalitário. Mário, sem abandonar sua posição de proa, foi
aprofundando as relações entre a constituição do eu e o processo histórico-social. A
questão é menos de fidelidade, que também havia, do que da estatura realmente elevada
do intelectual sério que, sem se comprometer com (ou se alienar de) um curso histórico
que repudia, não abandona sua capacidade de reflexão histórica e crítica, e formalização
poética de sua hora humana. Estamos navegando nas águas de um Goethe, se é que é
27
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
452.
28
Como diz, em outro contexto, em carta a Drummond de 23 de julho de 1944: “me voltou um estado
poético, essa coisa enfim de quando a gente fica em poesia por dentro, de dentro pra fora e faz, vira
poesia objetivada no papel, pouco importa se ruim ou boa” [grifo do original] (SANTIAGO, Silviano
(Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de
Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002. p. 513).
25
29
Mário usa o termo “olimpismo” em carta a Manuel Bandeira de 10 de agosto de 1934: “Eu desejei
mesmo um certo olimpismo, uma certa sobreelevação acima dos tumultos terrenos, desprezando o terra-a-
terra. Deu no tom azul dos „Poemas da negra‟ e da „Amiga‟, no tom mais doirado do „Girassol‟ e quase
branco do „Rito do irmão pequeno‟” (MORAES, Marcos Antônio (Org.). Correspondência de Mário de
Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 582-583). Sobre sua concepção de “torre de marfim”, ideal de
independência e compromisso elevado do intelectual, ver carta a Drummond de 11 de fevereiro de 1945
em SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 539.
30
ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins. Rio de Janeiro: José Olympio,
1983. p. 105. A evolução mais orgânica desse movimento foi a da crítica de rodapé de Antonio Candido
Mello e Souza e o curso de Letras da Universidade de São Paulo. No caso do Rio de Janeiro, o processo é
menos linear, pois quem funda os estudos universitários é Afrânio Coutinho.
31
MILLIET, Sérgio. O poeta Mário de Andrade. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, cit.
32
LINS, Álvaro. Jornal de crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. 2ª Série. Republicado em LINS,
Álvaro. Os mortos de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 41.
26
33
CANDIDO, Antonio. Mário de Andrade. Poesias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 36.
São Paulo: IEB, 1994. p. 136-137. (Publicado originalmente na revista Clima, n. 8. São Paulo, jan. 1942.)
34
SOUZA, Gilda de Mello e; SOUZA, Antonio Candido de Mello e. A lembrança que guardo de Mário.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 36, cit., p. 15.
35
Inicialmente, Antonio Candido orienta, entre 1963 e 1968, os primeiros trabalhos sobre a biblioteca de
Mário de Andrade com base em seu acervo que ainda pertencia à sua casa na Rua Lopes Chaves, 546. São
três trabalhos de mestrado: Mário de Andrade e L‟Esprit Nouveau, de Maria Helena Grembecki; Leituras
em francês de Mário de Andrade, de Nites Therezinha Feres; e O sequestro da dona ausente, de Telê
Ancona Lopez. Em seguida, no segundo semestre de 1968, por meio de um projeto de Antonio Candido,
o acervo de Mário de Andrade é adquirido para o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), sob os cuidados
de Telê Ancona Lopez. Desde então, inúmeros trabalhos sobre o Modernismo e, particularmente, sobre
Mário de Andrade, são feitos com base na riqueza documental de seu acervo e, no caso do escritor, na
divulgação de sua correspondência e estudo de sua marginália. Atualmente, Telê coordena um Projeto
FAPESP, Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua
biblioteca, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras. Desse projeto, tive acesso a
duas teses de doutorado, de rico material informativo: PAULA, Rosângela Asche de. O expressionismo
na biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação. 2007. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007; e
CARVALHO, Lilian Escorel. A revista francesa L‟Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas de
Mário de Andrade. 2 v. 2008. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Dentro ainda da área de atuação do
IEB, Marcos Antonio Moraes conduz um projeto de publicação da “correspondência reunida” de Mário
de Andrade, cujo catálogo já está disponível em edição eletrônica e no site do IEB:
<http://www.ieb.usp.br>. Como conjunto, esses esforços tornam certamente Mário de Andrade o artista e
27
intelectual cuja herança é mais bem cuidada, estudada e preservada na história da cultura brasileira. Um
trabalho raro e inestimável, principalmente se não bloquear as possibilidades de interpretação e reflexão
crítica sobre a sua obra.
36
BASTIDE, Roger. Mário de Andrade [1940]. Poetas do Brasil São Paulo: Edusp/Duas Cidades, 1997.
37
IVO, Ledo. Lição de Mário de Andrade [1952]. Poesia observada. São Paulo: Duas Cidades, 1978;
MACHADO FILHO, Aires da Mata. Crítica de estilos. Rio de Janeiro: Agir, 1956; RAMOS, Péricles
Eugênio da Silva. O Modernismo na Poesia. COUTINHO, Afrânio (Org.). A literatura no Brasil, v. 5,
cit.; RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Poesia moderna. São Paulo: Melhoramentos, 1967; ALMEIDA,
Fernando Mendes de. Mário de Andrade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1965. Exceções são
os textos que Manuel Bandeira continua publicando: BANDEIRA, Manuel. Mário de Andrade e a
questão da língua. De poetas e poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957; BANDEIRA, Manuel.
Meu Amigo Mário de Andrade [1943/1960]. Andorinha, andorinha, cit.
38
FÉLIX, Moacyr (Org.). Violão de rua. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. 3 v. (Cadernos do
povo brasileiro).
39
É o que lemos no depoimento de Armando Freitas Filho. Apud MASSI, Augusto (Org.). Artes e ofícios
da poesia. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1991. p. 77.
28
foi ler Mário quando a voga do formalismo acadêmico russo precisava de um objeto
brasileiro.40
A partir de 1960, como dizia, a crítica universitária se volta para a leitura da
poesia de Mário de Andrade. Como exposição didática, pode-se dividir essa leitura
acadêmica em duas correntes: uma que trabalha com a exegese da obra de Mário de
Andrade, buscando principalmente explicar suas conexões internas, mas por vezes
aberta, com bons e maus momentos, para as conexões entre a forma literária e o mundo
não literário; e outra que busca entender as intenções e o posicionamento histórico da
sua obra, atenta sobretudo às vinculações de classe do primeiro Modernismo, e que
veriam na forma literária as contradições de um processo histórico especificamente
brasileiro. A crítica de extração estruturalista de Luiz Costa Lima em Lira e antilira41
pouco pôde dizer sobre a poesia de Mário. Seguindo, na visão do crítico, uma tríade
ascendente, do pior para o melhor, os poetas Mário, Drummond e Cabral, é neste último
que se baseia para a leitura dos dois anteriores. Como se pode prever, da perspectiva do
rigor construtivo da forma cabralina, Luiz Costa Lima só enxergou em Mário
subjetivismo e falta de concisão. Já o trabalho de Maria Helena Grembecki, Mário de
Andrade e L‟Esprit nouveau42, segue os trilhos da disciplina “literatura comparada”,
particularmente sobre “fontes” e “influência”. Assim, ficamos sabendo em detalhes
como Mário elaborou sua primeira teoria poética com base no desenvolvimento da
vanguarda francesa que se reunia em torno daquela revista. Enquanto essas duas obras
contribuem apenas de modo secundário para este estudo, a obra seguinte, em termos
cronológicos, da crítica que chamei “exegética”, é fundamental. Falo do estudo de Telê
Porto Ancona Lopez, Mário de Andrade: ramais e caminho, de 1972. A autora procura
mostrar como Mário de Andrade buscava organizar seu pensamento, estético e
ideológico, que se desenvolve em momentos contraditórios da historia nacional e da
história moderna, de um modo geral. Como define a autora: “Este é um trabalho que usa
do enfoque histórico-ideológico mais do que o enfoque estético; deseja apresentar
Mário de Andrade ante as possibilidades que tinha de organizar seu pensamento num
todo harmonioso, capaz de conter uma teorização sobre a cultura brasileira”. 43 O
40
CAMPOS, Haroldo de. Morfologia de Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1973.
41
LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira (Mário, Drummond, Cabral) [1968]. Rio de Janeiro: Topbooks,
1995.
42
GREMBECKI, Maria Helena. Mário de Andrade e L‟Esprit Nouveau. São Paulo: IEB, 1969.
43
LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: ramais e caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972. p.
13. Igualmente importante em termos de organização da pesquisa e do pensamento de Mário, agora sobre
29
pesquisador e pensador do Brasil encontra linhas definidoras nesse estudo, que contribui
decisivamente para a avaliação das relações entre subjetividade lírica e nação, pois faz o
levantamento dos materiais de que dispunha o artista e expõe seu processo de reflexão
intelectual. O passo propriamente estético será dado por Gilda de Mello e Souza, em
seus vários estudos sobre Mário de Andrade. Especificamente sobre a poesia de Mário,
há um comentário breve e poderoso em seu estudo sobre Macunaíma, de 1979.44 Em
três páginas (53-54-55) Gilda lança as bases da crítica universitária posterior sobre o
poeta: “Nas grandes meditações que representam uma das partes mais importantes de
sua obra poética, o destino do Brasil se cruza e confunde com o destino pessoal do
escritor, e os temas se organizam quase sempre aos pares, opondo-se simetricamente
como as duas faces da mesma medalha”.45 Aprofundando o tema, Gilda avança
basicamente o programa de uma crítica dialética do poeta, ao enunciar a “fissura
profunda que fere todos os setores da reflexão de Mário de Andrade, e se manifesta na
poesia de maneira obsessiva pela oposição incessante das imagens”. 46 Em seu estudo
específico sobre a poesia de Mário, Gilda recupera a relação entre eu e nação como eixo
central de sua lírica:
De fato, uma das referências do seu código poético é o Brasil, que ele procura apreender
em vários níveis, nas variações semânticas e sintáticas da língua, nos processo tradicionais da
poética erudita e popular, nas imagens e metáforas que tira da realidade exterior: a cidade natal
onde viveu, o mundo muito mais amplo da geografia, da história, da cultura complexa do país. E
como a outra referência do código é o eu atormentado do artista, a poesia resulta numa realidade
ao mesmo tempo selvagem e requintada, primitiva a racional, coletiva e secreta, que não se furta
ao exame, mas está sempre disfarçada por trás da multiplicidade das máscaras. 47
a linguagem, é o estudo de PINTO, Edith Pimentel. A gramatiquinha de Mário de Andrade. São Paulo:
Duas Cidades, 1990, trabalho cuja relevância aumenta quando se trata do estudo da obra poética do autor.
44
SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde [1979]. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003.
45
SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde [1979], cit., p. 53.
46
SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde [1979], cit., p. 55.
47
SOUZA, Gilda de Mello e. A poesia de Mário de Andrade [1988]. A ideia e o figurado. São Paulo:
Duas Cidades/Editora 34, 2005. p. 31.
48
KNOLL, Victor. Paciente arlequinada. Esboço de uma hermenêutica do imaginário na obra poética de
Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec, 1983.
30
49
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade imagens na poesia de Mário de Andrade. São Paulo:
Martins Fontes, 1986. p. 15.
50
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000. Ver
também os textos “O Arlequim Estudioso” e “A Meditação sobre o Tietê” recolhidos em LAFETÁ, João
Luiz. A dimensão da noite, cit.
51
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo „como ele de fato foi‟. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao
materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao
sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição
como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu
instrumento. Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela.
Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom
de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que
também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de
31
vencer” (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 224-225).
52
CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998.
53
CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante, cit., p. 257.
54
SCHWARZ, Roberto. O psicologismo da poética de Mário de Andrade. A sereia e o desconfiado. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
32
55
SCHWARZ, Roberto. O psicologismo da poética de Mário de Andrade, cit., p. 15.
56
SCHWARZ, Roberto. O psicologismo da poética de Mário de Andrade, cit., p. 23. Esse texto foi
discutido de modo interessante por LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo, cit., p. 167-175.
57
ROSENFELD, Anatol. Mário e o cabotinismo. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969.
58
ROSENFELD, Anatol. Mário e o cabotinismo, cit., p. 188.
59
ROSENFELD, Anatol. Mário e o cabotinismo, cit., p. 190.
33
estruturação, a bem dizer – de uma sociedade de origem colonial é posta com força por
Rosenfeld. Em seu texto “Do cabonitismo”, segue o crítico, Mário encontraria a melhor
solução para o problema: tentando circunscrever tanto o genuíno quanto o artificial,
tanto a demanda de sinceridade do poeta quanto sua vontade de se afirmar como ser
social, o artista faz uma síntese em que o elemento cabotino é incorporado como
momento fundamental da verdade total: “Esta é constituída tanto pela face como pela
máscara”.60 Formulação teórica e abrangente, em sua poesia essas questões se colocam
com drama humano próprio, distante, como se verá, de uma possibilidade igualmente
bem-sucedida de síntese. Passando, dialeticamente, do esforço de formulação de Mário
de Andrade para o que de fora lhe fazia pressão, Rosenfeld é o primeiro a chamar pelo
nome a mediação brasileira fundamental: o paternalismo, da qual outras, igualmente
sinistras, derivam. Cacaso, em dois textos notáveis, dá continuidade a esse
desvelamento de mediações históricas.61 Em “Atualidade de Mário de Andrade”, em
que comenta a reedição de O banquete, que chama com acerto de “filosofia brasileira
das formas irregulares”,62 o nosso crítico, escolado na irreverência da poesia “marginal”
da década de 1970 e já desiludido das superações brasileiras, dada a vitória completa da
Ditadura Militar, finalmente chama as coisas pelo nome, em passagem notável:
Para entendermos e situarmos a postura modernista, um gênero de crítica que não larga
o osso, é preciso ter presente um traço permanente e umbilical de nossa tradição cultural e
literária: a sua propensão para o oficialismo, a literatura como apêndice da vida oficial. Nossa
vida intelectual nasce e se desenvolve no sovaco do poder, atolada no paternalismo, que a
reconhece e protege, além de ditar-lhe a duração e as regras do jogo. Durante tempos e tempos,
nosso meio social pouco diferenciado não permitia a constituição autônoma e particularizada da
atividade literária, que sobrevivia como parasita de outras mais prestigiadas socialmente, em
geral àquelas ligadas à superestrutura administrativa. Sendo a literatura parte das convenções
sociais, nem o seu público era específico, nem o escritor tinha papel definido 63 [grifo do
original].
60
ROSENFELD, Anatol. Mário e o cabotinismo, cit., p. 195.
61
CACASO (Antônio Carlos Brito). Atualidade de Mário de Andrade [1978] e Alegria da casa [1980].
Não quero prosa. São Paulo: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. Em sentido
parecido, há um estudo das posições e situações políticas e sociais de Mário de Andrade, de caráter mais
explicativo do que crítico, mas que se alinha, a meu ver, mais com a crítica histórica do que com a
exegética, embora tenha características dos dois lados. Falo de DASSIN, Joan. Política e poesia em
Mário de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
62
CACASO. Atualidade de Mário de Andrade, cit., p. 155.
63
CACASO. Atualidade de Mário de Andrade, cit., p. 157.
34
O paternalismo seria para Mário, pequeno burguês que tirava seu sustento de seu
trabalho intelectual, uma força de opressão, o que não lhe impede de buscar no
paternalismo de matriz familiar e doméstica uma virtude de informalidade e afeição.
Mais concretamente, essa condição do escritor punha em movimento as categorias
históricas do eu e do Brasil, em seus níveis literário e prático. A multiplicidade do
sujeito lírico, da matéria histórica e dos materiais brasileiros tinha a função prática de
conquistar liberdade para a vida mental e, por consequência, social: “Mário de Andrade
encarnará, como nenhum outro escritor de seu tempo, este fenômeno transformador: um
impulso de diferenciação, um combate para afirmar e assegurar a emancipação da
atividade literária e do seu meio, até então praticamente atolado no pântano
paternalista”.64 As diversas idas e vindas nesse propósito, em que entram elementos
heterogêneos, cujo aspecto avançado ou retrógrado é difícil de avaliar e precisa ser visto
caso a caso, são um tema central no presente estudo das relações entre sujeito lírico e
nação, e que serão abordadas, em diferentes faces, por meio da leitura de diferentes
poemas em cada capítulo. Seguindo cronologicamente, temos em Mário de Andrade:
exílio no Rio, de Moacir Werneck de Castro,65 o melhor perfil biográfico de Mário. O
autor não se apresenta como crítico materialista, mas fazia parte do grupo de jovens
comunistas cariocas que convivem pessoalmente com Mário de Andrade no Rio de
Janeiro (entre 1938 e 1941) e que publicam a Revista Acadêmica. E de fato, a franqueza
e a atenção para a contradição com que elabora o perfil do amigo, em uma biografia
concisa e penetrante, deixam clara a herança do pensamento de esquerda. Werneck de
Castro é o único comentador que desenvolve sem meias palavras os temas mais agudos
da vida de Mário de Andrade, que migram com força para sua obra poética. Os fortes
traços físicos de mulato, que Werneck de Castro elucida pela genealogia familiar, o
elemento homossexual de sua vida amorosa, que compõe o quadro complexo de sua
sexualidade ambivalente, a sua profunda indecisão política e ideológica em que a fé
católica e a simpatia comunista entravam em pungente contradição. Imaginemos por um
momento o sofrimento do homem mulato em uma sociedade cujo ideal era a brancura,
do sujeito bissexual em sociedade machista, do pequeno burguês mais inteligente do
que seus superiores numa sociedade dominada pelo favor. Contudo, esses sofrimentos
não levaram Mário a se tornar nenhum “herói da resistência”, pois nosso poeta usava pó
de arroz, zelava pelo decoro e respeitava a autoridade. Antes, são as “fissuras
64
CACASO. Alegria da casa, cit., p. 180.
65
CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
35
profundas” que ferem todos os setores de sua reflexão, como diz Gilda, que começam a
ganhar concretude histórica e biográfica, com proveito para a compreensão de seus
poemas.
Em comparação com a perspectiva histórica e materialista que vinha de
Rosenfeld, Cacaso e Werneck de Castro, que se caracteriza pela amplitude de vistas e a
disposição compreensiva, a crítica radical mais recente não deixa de marcar retrocesso,
embora avance pontualmente em alguns setores da reflexão. Nas novas interpretações
de Vinícius Dantas e Roberto Schwarz, sobressaem as limitações históricas, estéticas e
ideológicas das vinculações de classe do modernismo dos anos 1920. Em ensaios que
visam prioritariamente à revisão crítica de Oswald de Andrade, Vinícius Dantas procede
a uma revisão do modernismo paulista como um todo.66 Retomando uma interpretação
que está presente de modo difuso na obra crítica de Roberto Schwarz,67 e que
posteriormente aparecerá em Duas meninas, Mário é lido em comparação com Oswald,
e diante do individualismo sem recalques nem freios do autor de Pau-Brasil, o que
ficaria evidente em nosso poeta seria o seu apego a formações sociais do atraso
brasileiro: a família, o paternalismo, a responsabilidade, o sacrifício, sua tendência ao
reformismo e à subalternidade. O objetivo, a meu ver, é a pesquisa e delimitação do
“tamanho paulista” de Mário de Andrade, o que é uma perspectiva radical e crítica a seu
modo, mas incompreensiva em tantos outros, como pretendo expor ao longo do meu
trabalho. Veja-se, por exemplo, segundo o texto de Vinícius Dantas, como Mário, de
certo modo, poria freio a aspectos libertários da vanguarda: “... a psicologia é fruto dos
embates experimentais da vida, a se projetarem no passado, na subjetividade e na
biografia individual. Aí se vê o quanto o inequívoco modernismo de Mário se acha às
voltas com questões de cunho ético-psicológico, pois o inacabamento da formação
brasileira o obriga a conciliar o ritmo sem fronteiras da vida interior individual com o
paternalismo responsável”.68 Fica em relevo, neste e no trecho seguinte de Roberto
Schwarz – ao qual já chegaremos – um autor cuja inovação artística estaria
excessivamente compromissada com o atraso, fazendo concessões e conciliações com o
66
DANTAS, Vinícius. Entre “A Negra” e a Mata Virgem, cit., e DANTAS, Vinícius. Desmanchando o
naturalismo: capítulos obscuríssimos da crítica de Mário e Oswald. Novos estudos. São Paulo, n. 57, jul.
2000.
67
Aparece, por exemplo, em SCHWARZ, Roberto. O progresso antigamente [1981]. Que horas são? São
Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 108-109.
68
DANTAS, Vinícius. Entre “A Negra” e a Mata Virgem, cit., p. 106. Leia-se também a parte sobre
Mário de Andrade, em ARANTES, Otília; ARANTES, Paulo. Moda caipira. Sentido da formação. Três
estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
p. 94.
36
seu meio. O comentário final de Roberto Schwarz ao ensaio “Outra Capitu”,69 pegando
a trilha do “modo de ser” brasileiro captado por Antonio Candido em Memórias de um
sargento de milícias, chega à questão modernista das potencialidades críticas da
informalidade em relação à ordem artificial e artificiosa do país legal. Sua abordagem
de Mário de Andrade se faz pela prosa. Entretanto, a perspectiva é montada com foco
no uso que Mário faz da matéria e dos materiais brasileiros, de suas posições e intenções
em relação a eles. O modernismo, que traz como potencialidade libertária o informal, se
mete numa dialética problemática, pois reafirma de modo renovado “o molde familista,
formas de autoridade e intimidade inclusive, [que] como que se substituía à política, a
qual ficava no papel de uma superafetação dispensável”.70 Essa pista do intimismo
começa então uma viagem em favor da “imensa família virtual dos brasileiros”, cujo
trunfo é a positivação espiritualizada do paternalismo: “Os melhores sentimentos de que
seria capaz o paternalismo levado ao limite dele mesmo, desvinculado de seus interesses
materiais, mas cheio, ainda assim, dos cuidados correspondentes, ampliavam-se em
escala amazônica, até as fronteiras do território e além”.71 Esse bonapartismo do favor é
mediado, nos diz o crítico, pela experimentação artística de ponta com nosso substrato
pré-burguês, dando-lhe contraparte inconformista. Eis uma dialética difícil e confusa,
em que a imersão, sempre segundo Schwarz, em nossos elementos pré-modernos dava
força de atualização artística e abria horizontes práticos, ainda que questionáveis. A
relação que segue nosso crítico é a da transgressão com a edificação. A transgressão se
daria pelos motivos e gesticulações mais inesperados:
69
SCHWARZ, Roberto. Outra Capitu. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
p. 134-144.
70
SCHWARZ, Roberto. Outra Capitu, cit., p. 139.
71
SCHWARZ, Roberto. Outra Capitu, cit., p. 140.
72
SCHWARZ, Roberto. Outra Capitu, cit., p. 141.
37
73
SCHWARZ, Roberto. Outra Capitu, cit., p. 142.
38
capítulo final da obra de Mário, em que ela é legada a um outro, Drummond, no caso, é
o tema da conclusão desta tese.
Como acúmulo de problemas que podem ser compartilhados e cujas soluções
adquirem um valor coletivo, o caminho e o sentido da poesia de Mário de Andrade se
inserem numa questão central da crítica literária brasileira e do pensamento sobre o
Brasil: o conceito de formação. Esse conceito decisivo atua como uma busca de “linhas
evolutivas mais ou menos contínuas” em nosso quadro social e artístico, como uma
“aspiração coletiva de construção nacional” e/ou como um sistema literário constituído
por autor-obra-público, em que há um “processo cumulativo de articulação com a
sociedade e adensamento artístico”.74 Embora a formação, como conceito especulativo
ou plataforma literária, esteja presente em momentos decisivos em nossa história
literária, principalmente nos momentos equivalentes ao Romantismo no século XIX
(1836-1870) e ao Modernismo no século XX (1922-1945)75 e, nesse caso, o tema desta
tese esteja vinculado a um desses momentos decisivos, a perspectiva do crítico não pode
ignorar o estado atual do conceito. Procedendo a essa avaliação contemporânea do
conceito de formação, escreve Roberto Schwarz:
Ou seja, a formação continua a ser uma perspectiva válida, desde que se abandonem as
suas hipóteses superadoras e venham à tona os processos de sua desagregação. Salvo
engano, há uma analogia entre o estado atual do conceito de formação, que avalia
retrospectivamente o seu fracasso, embora não reduza a sua importância analítica, e o
74
As citações são do texto de ARANTES, Paulo Eduardo. Providências de um crítico literário na periferia
do capitalismo. In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori; ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido da formação.
Três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra,
1997. p. 11, 13 e 21, respectivamente [grifo do original].
75
CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura 1900-1945. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2008. p. 119.
76
SCHWARZ, Roberto. Os sete fôlegos de um livro. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999. p. 58.
40
modo como Mário de Andrade avalia em seus últimos anos de vida a sua obra literária,
encarando também ele a sua obra e atuação pela perspectiva do fracasso, embora
tampouco reduza a importância exemplar de sua derrota. Assim, ao ponto de vista que
procuro compor subjaz uma concepção de história da literatura brasileira específica: a
de que ela já cumpriu seu ciclo histórico projetado no Romantismo, em que a literatura
equivaleria no mundo do espírito ao que foi a Independência no plano político.77
Avaliar o que restou desse ciclo, cujas aspirações não se realizaram plenamente, mas
que legou uma literatura organizada, coerente e com momentos de primeira grandeza78
é, a meu ver, um programa da crítica radical, histórica, materialista e dialética, cuja
linhagem remonta ao momento de esclarecimento radical que foi o programa da
formação.79 O procedimento aqui levado a cabo, então, mimetiza a perspectiva de
análise: se o pensamento vai do fim para o começo, a cronologia da obra também pode
ser subvertida, e o início da análise pode partir de sua última expressão poética. A
própria obra poética de Mário de Andrade nos orienta nesse sentido, como estamos
vendo.
Essa questão formativa, por fim, traz a relação fundamental que subjaz a toda
esta tese – a da relação entre lírica e sociedade. O texto clássico sobre o tema, como se
sabe é “Palestra sobre Lírica e Sociedade”, de Adorno.80 Nesse texto, para expô-lo
resumidamente apenas na questão que mais nos interessa neste momento, o pressuposto
da forma da lírica é a individuação da sociedade moderna: “a própria solidão da palavra
lírica é pré-traçada pela sociedade individualista e, em última análise, atomística, assim
como, inversamente, sua capacidade de criar vínculos universais [allgemeine
Verbindlichkeit] vive de sua individuação”.81 Dado esse pressuposto histórico-social, o
processo reflexionante do sujeito individuado e a objetividade da sociedade objetivada
podem ser sublimados na linguagem da lírica: “em cada poema lírico devem ser
encontrados, no médium do espírito subjetivo que se volta sobre si mesmo, os
77
CANDIDO, Antonio. Uma literatura empenhada. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. v. I, p. 26.
78
Uma avaliação desse processo se lê com proveito em SIMON, Iumna Maria. Considerações sobre a
poesia brasileira em fim de século. Novos estudos. São Paulo, n. 55, p. 27-36, nov. 1995.
79
“No momento em que a formação nacional entra em crise, ela continua a existir como tradição,
sentimento da reciprocidade entre os diferentes grupos, como obrigação moral entre as partes, como uma
espécie de resumo da ideia de civilização. A ideia de nação pode se enfraquecer sem que a ideia de
formação perca a sua vigência civilizadora” (SCHWARZ, Roberto. Crítica de intervenção. Rodapé.
Crítica da literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Nankin, n. 3, p. 21, nov. 2004).
80
ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. Notas de literatura I. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2003. p. 65-89.
81
ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade, cit., p. 67.
41
82
ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade, cit., p. 72.
83
ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade, cit., p. 72.
84
SIMON, Iumna Maria. Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século, cit., p. 30.
85
A expressão “liberal-escravismo paternalista” está em SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas.
São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000. p. 112.
42
(LP)86. Analiso esse poema em alguns de seus momentos fundamentais para enfatizar
problemas, perspectivas e soluções que emergem de sua obra poética como conjunto e
tomam corpo em seu último poema.
O Capítulo II, “Verdade Psicológica ou os Limites do Sujeito Lírico”, configura
o problema da subjetividade na poesia de Mário de Andrade, operando com as
categorias de sujeito lírico – imanentemente literária – e de individuação social –
categoria extraliterária. A dialética entre sujeito lírico e individuação social é seguida
por meio de um corte transversal em sua obra poética, em que a escolha dos poemas se
refere a momentos definidores do sujeito lírico e a momentos-limite de seu processo
constitutivo, como a dança e a maleita. Assim, são analisados os poemas “Eu sou
Trezentos...” (RM), “Momento” (CGC), “Danças” (RM) e “Rito do Irmão Pequeno”
(LA).
O Capítulo III, “O Amor”, desenvolve a questão da subjetividade do poeta no
tema da lírica amorosa. Visei aqui o mapeamento da complexidade amorosa de Mário
de Andrade. De suas disposições de amor físico, eros, até os vários graus de seu amor-
amizade, filia, passando pela renúncia presente no amor platônico. Suas disposições
amorosas são, como veremos, modos de o poeta relacionar-se consigo e com o “outro”
e, nessas disposições e em sua linguagem poética, surge inesperadamente o Brasil com
suas determinações e seu destino. Os poemas analisados são “Carnaval Carioca” (CJ),
“Paisagem n.º 3” (PD), “Amar Sem Ser Amado, Ora Pinhões!” (RM), “Poemas da
Negra” (RM) e “Girassol da Madrugada” (LA).
No Capítulo IV, “Sentimento Religioso da Vida”, é estudado o modo como
Mário desenvolve em sua poesia a sua religiosidade. Inicialmente de um catolicismo
fervoroso, sua religiosidade se encaminha em sua obra poética cada vez mais para uma
comunhão com a vida, para uma entrega religiosa aos atos de uma vida humana e social
mais fraterna. Essa passagem das atitudes da devoção católica para as disposições de
uma fraternidade religiosa é seguida nos poemas “Religião” (PD), “Louvação Matinal”
(RM), “Louvação da Tarde” (RM) e “Noturno de Belo Horizonte” (CJ).
O Capítulo V, “O Engajamento Difícil”, último da tese, desenvolve o modo
como o poeta, em sua relação com o “outro” social, elabora possibilidades de
engajamento social. A disposição fraterna, estudada no capítulo anterior, se radicaliza e
86
Entre parêntesis coloco o título do livro de poemas: Paulicéia desvairada (PD), Losango cáqui (LC),
Clã do jabuti (CJ), Remate de Males (RM), O carro da miséria (CM), A costela do Grã Cão (CGC),
Livro azul (LA), Lira paulistana (LP).
43
o Tietê” não apenas é seu maior e mais importante poema mas é também uma revisão de
conjunto de sua poesia.
Pode-se então depreender o sentido e o significado do conjunto da obra poética
mariodeandradiana a partir dessa sua última configuração. É o modo como o próprio
poeta faz a apresentação crítica de sua poesia e desenha a sua própria imagem para a
posteridade. Houvesse nesse procedimento a conhecida autocomplacência medalhônica
dos homens velhos e consagrados, acompanhá-lo seria uma injustificável reafirmação
da vaidade literária do autor. Porém, a agudeza do poeta para consigo e com sua obra
em “A Meditação sobre o Tietê” é drasticamente antimedalhônica87 e exibe uma
radicalidade que raramente foi recuperada pela fortuna crítica.
Revisão da Obra
87
Sobre o tema do medalhão, é interessante notar a posição declarada de Mário a esse respeito. Quando
ele começa sua correspondência com Fernando Sabino, no começo de 1941, escreve: “Seria estúpido eu
não saber que sou „consagrado‟. Só os esforços, os esperneios, os papelões que faço pra não virar
medalhão duma vez, você nem imagina” (Carta de 25 de janeiro de 1941. SABINO, Fernando;
ANDRADE, Mário de. Cartas a um jovem escritor e suas respostas. Rio de Janeiro; São Paulo: Editora
Record, 2003. p. 20).
46
na “Meditação” é o livro Losango cáqui, a que o poema não se refere sequer uma vez.
Isso ocorre, certamente, porque ele deriva fundamentalmente dos aspectos alegres da
Paulicéia..., de anotações líricas de três meses de um “juvenil auriverde”, ou seja,
justamente desse aspecto que o poeta não consegue mais vislumbrar nas águas do seu
Tietê. De Clã do jabuti não aparecem referências explícitas, mas procedimentos
poéticos que surgem nesse seu terceiro livro modernista, o único programaticamente
nacionalista. Esses procedimentos são de matriz mais oratória: são as interpelações e a
“pregação”. O trecho da “Meditação” que começa: “A culpa é tua, Pai Tietê?...” e segue
por “Onde estão os amigos? Onde estão os inimigos?” (versos 92-106) retoma a forma
de interpelação de “Carnaval Carioca”: “Meus Deus.../Onde que jazem tuas atrações?”
(todo o trecho neste poema vai dos versos 170-204). A “pregação”, que em Clã do
jabuti é de caráter nacionalista e fraterno, e principalmente em “O Poeta Come
Amendoim” e no final de “Noturno de Belo Horizonte”,88 aparece na “Meditação” no
trecho que começa com “Tu és demagogia...” (versos 107-131), mas já não se trata de
uma pregação fraterna, antes será uma pregação negativa, uma “deprecação” contra a
natureza destrutiva e mesquinha da ambição das águas do rio, da Paulicéia, da
modernidade brasileira. Todos esses elementos são retomados em negativo, mas estão
presentes. Como exporei mais adiante, essa presença em negativo possui um caráter de
resistência poética, com função específica na estruturação de “A Meditação sobre o
Tietê”. Por ora, basta enfatizar que os três primeiros livros de poemas modernistas de
Mário, que visavam construir posivitivamente uma modernidade brasileira, são
retomados por um viés negativo, invertendo e rechaçando a adesão construtiva e
nacionalista de então.
A partir de Remate de Males, livro de feição mais negativa, assim como os que o
seguem, as recuperações não precisam ser invertidas, e obedecem a um procedimento de
transposição. De Remate de Males, vemos voltar a questão racial da “brancura”, a
questão cultural das tradições e do pertencimento nacional do poema “Improviso do Mal
da América”, no verso “Contágios, tradições, brancura e notícias” (v. 63), e o conhecido
poema “Eu sou trezentos...” é retomado no verso “desque me fiz poeta e fui trezentos...”
88
Ver Capítulo IV desta tese. Há pregação propriamente religiosa em “Carnaval Carioca” (versos 214-
230), mas ela participa de uma emoção religiosa contextualizada por uma irrupção momentânea da
sensação de pecado e ausência de Deus nos prazeres do carnaval. A pregação nacionalista e fraterna, ao
contrário, é um elemento fundamental do livro. Ela subsume a religião em um componente religioso-
sacrificial para a boa integração sociocultural brasileira e sua confraternização universal com as demais
nações do mundo.
47
(v. 269). Junto deste último verso, o poeta ainda evoca seu momento anterior ao
Modernismo:
São palavras que trazem à memória o livro Há uma gota de sangue em cada poema, de
1917, quando Mário seguia a linhagem do internacionalismo pacifista do “unanimismo
”, ideal de união fraterna de todos os homens pelo amor mútuo, cuja linhagem poética
tem origem em Victor Hugo, se assenta em Walt Whitman, tem seu fastígio com Jules
Romains, que lhe dá o nome, e Émile Verhaeren, e exerce influência notória em
Apollinaire.89 É o ideal político-social que perpassa toda a obra de Mário,
especificando-se cada vez mais no contato com a matéria brasileira, até se revelar
impossível, como tentarei mostrar no Capítulo V desta tese.
Prosseguindo a revisão: de “Carro da Miséria”, longo poema feito e refeito por
Mário, cujas redações fundamentais ocorrem no fim de 1930 e fim de 1932, com uma
última revisão no fim de 1943, há a recuperação da letra e do espírito. Da letra no verso:
“Me sinto o pai Tietê! oh força dos meus sovacos!” (v. 84), que recupera quase
literalmente os versos 13-14 da parte I de “O Carro da Miséria”, e a “cauda de pavão de
mil olhos de séculos” (v. 190) da “Meditação” é uma transposição integral do verso 22
da parte XV. E do espírito da postura autodestrutiva dos versos da “Meditação”:
89
Sobre a poesia pré-modernista de Mário, ver LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: ramais e
caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972. p. 21-36.
48
Eu já amei
Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido
Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.
90
Carta a Alphonsus de Guimarães Filho, citada em nota em MORAES, Marco Antônio (Org.).
Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/IEB, 2001. p. 658.
91
Na mesma carta a Alphonsus de Guimarães Filho, em MORAES, Marco Antônio (Org.).
Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 658.
92
Há análise deste poema, e deste trecho especificamente, no final do Capítulo III desta tese.
49
Por ora, não nos perguntemos quem são esses amantes e quais são essas formas de
amor, que procurarei desenvolver no Capítulo III, mas atentemos para a convergência
do conjunto da obra poética mariodeandradiana para o seu último poema. Mesmo de
Lira paulistana, obra final em que se insere “A Meditação sobre o Tietê”, o poeta
incorpora um verso do poema “Agora eu quero cantar...”. Mário recupera desse poema
o mote de esperança consoladora, mas em chave amargamente negativa. O poema
“Agora eu quero cantar...” narra o sofrimento e a irrelevância da vida de um operário, e
seu mote, que se modifica um pouco ao longo do poema, é assim em sua primeira
aparição, no final da 3ª estrofe:
Espero, neste momento, após tantas enumerações atomizadas, ter demonstrado que “A
Meditação sobre o Tietê” faz uma revisão praticamente completa da obra poética de seu
autor, que pode ser acompanhada explicitamente por meio de citações literais ou quase
literais de seus poemas, fazendo o próprio Mário uma apresentação crítica de sua poesia
na hora em que sentia que sua obra chegava ao seu momento conclusivo.
50
“A Meditação sobre o Tietê”, por ser uma revisão lírica de toda sua obra poética,
atuando em sua poesia de modo equivalente a “O Movimento Modernista” no plano da
crítica, revela aspectos fundamentais da lírica mariodeandradiana e se erige em suma. O
ritmo das águas do rio é eminentemente destrutivo, e, no entanto, há nos versos uma
indignação e uma amargura comovidas que parecem oferecer resistência a esse ritmo,
resistência tanto mais dramática quanto mais ela é vencida pelo curso do rio, cujo
destino é a corrupção da terra dos homens, o contágio da vida danificada. Um dos
elementos fundamentais da grandeza do poema é a falta de sentimentalismo, de
condescendência do poeta consigo, unida à visão de si mesmo como parte de uma
configuração histórica. Com o eu lírico, é todo o “Movimento Modernista” que passa
por um processo de expiação ao longo do poema.
A forma poética de “A Meditação sobre o Tietê” tem um alcance extraordinário.
O verso livre modernista se transforma em versículo solene, impregnado de uma
religiosidade laica. O sentimento religioso da vida93 imprime significação aos seus
momentos e aos momentos da vida do Modernismo, impedindo que o curso destrutivo
do rio, além de destruí-la, destrua também sua memória. E a memória dessa vida do
espírito do poeta Mário de Andrade e do Modernismo é principalmente um ato de
linguagem, compondo o poema com a mesma utilização da linguagem brasileira que foi
a da sua obra toda. Coloquialismos, idiossincrasias, brasileirismos e expressões da
cultura popular se fundem à solenidade dos versículos, como a vida do poeta se reverte
às águas do rio. Desse modo, embora o assunto do poema seja o destino do poeta
inserido no ritmo destrutivo da história brasileira, o seu acerto estético ainda é um
momento construtivo, de verificação esclarecida da própria experiência, mesmo que seja
em sua fase terminal.
Por um paradoxo imanente à configuração de “A Meditação sobre o Tietê”, a luz
que irradia do poema se deve à captação lírica de um processo de destruição. O poema
faz de si mesmo uma destruição iluminadora do processo histórico de que fazem parte a
obra poética de Mário e a sua atuação no Movimento Modernista. Uma destruição
iluminadora, um tipo de expiação, que se opõe a outra destruição presente no poema,
uma destruição predatória, cega e poderosa, que se apropria e acumula, e contagia de
93
Procurei desenvolver esse “sentimento religioso da vida” no Capítulo IV desta tese.
51
violência todas as coisas que toca. Essa violência de que se compõe o rio Tietê do
poema, sendo também uma apreensão do processo histórico modernizador brasileiro,
não é sentido somente como a força histórico-material de um processo político-social,
mas como uma força mais poderosa do que os homens, impessoal e cega. Uma força
mítica, primordial e indivisa, um mana.94 A história brasileira, principalmente a
natureza de sua modernização, é captada no teor de sua violência, tão brutal que o poeta
a formulou como uma regressão ao poder mais arcano e terrível que a humanidade
experimentou, o poder do mana. Se no poema a história brasileira tem a configuração
principalmente do mito, a que não faltam referências históricas, contudo, há na
conferência “O Movimento Modernista” um processo destrutivo análogo, mas
estrategicamente voltado contra a história política e social de então. Em 1942, ano dessa
conferência de Mário, pronunciada no Itamaraty, o Estado Novo passava por seu
momento de fastígio. Ele estava no auge do seu poder. O começo da virada antifascista
da Segunda Guerra começaria apenas no ano seguinte, e só então prefiguraria o fim
necessário do regime. E, como se sabe, a relação de Getúlio Vargas com o Modernismo
nunca foi abertamente de adesão, mas sempre foi de acolhimento e vaga simpatia.95 A
recíproca não é exatamente verdadeira, já que o grosso da intelectualidade modernista
aderiu a Getúlio, e praticamente todos foram, direta ou indiretamente, por muito ou
pouco tempo, funcionários de seu governo. A esse fenômeno se chamou de “cooptação”
dos intelectuais, e essa é a tese do conhecido livro de Sérgio Miceli, Os intelectuais e a
classe dirigente.96 Como um senso comum mal revisado, então, o Movimento
Modernista convergiria, “cooptado”, para a colaboração, construção ou justificação
ideológica do nacionalismo de Getúlio Vargas e do Estado Novo. Tendo aparência de
verdade, e sendo mesmo meia verdade, não se atentou para os problemas estético-
formais engendrados por essa configuração social nem para as tentativas de
94
Sigo em relação ao “mana” a interpretação materialista desenvolvida por ADORNO, Theodor W.;
HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985), especificamente
em Conceito de Esclarecimento, p. 28-31. José Antônio Pasta Jr., em sua tese de doutorado sobre Raul
Pompéia desenvolve uma interpretação específica do “mana” na história brasileira, como será exposto no
próximo tópico deste Capítulo, p. 11-17. Ver PASTA JR., José Antônio. Pompéia: a metafísica ruinosa
d‟O Ateneu. 1990. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, 1990. p. 179 e 191-193.
95
A simpatia e o apoio de Getúlio Vargas ao Modernismo datam de sua atuação como governador (cargo
que então era denominado “presidente”) do Rio Grande do Sul (1927-1929). Neste estado, ele apoiou
(sem aderir) o Modernismo local, representado pelo grupo da Livraria do Globo, e “praticamente criou” a
Revista do Globo, órgão desse Modernismo em seu momento final. Ver LEITE, Ligia Chiappini Moraes.
Modernismo no Rio Grande do Sul. Materiais para o seu estudo. São Paulo: IEB, 1972. p. 251, 261, 357-
358.
96
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1922-1945). São Paulo: Difel, 1979.
52
Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma
dedicação feliz a problemas do meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz
coisas, muita coisa! E no entanto me sobra agora a sentença de que fiz muito pouco, porque
todos os meus feitos derivaram duma ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo,
sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou
humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. 98
E prossegue: “E si agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida
trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela
97
ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista [1942]. Aspectos da literatura brasileira. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 267. Sobre o livro de Miceli, será necessário notar que, sendo uma obra
pioneira e, nesse sentido, um “clássico” das ciências sociais brasileiras, ele tem o defeito de ser cego,
surdo e mudo em relação à dinâmica, às astúcias e às sutilezas da forma literária. Portanto, é preciso lê-lo
com bastante cautela em estudos de crítica literária.
98
ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista [1942], cit., p. 277.
53
merece. Quando muito lhe fiz umas caretas de longe. Mas isto, a mim, não me
satisfaz”.99 E conclui: “Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é mais
meu companheiro. Eu desconfio do meu passado”.100 Não é estranho o “papa do
Modernismo” passar a usar uma “rhétorique de Satan”,101 para falar nos termos de
Baudelaire? A maioria esmagadora das pessoas entendeu essa autocrítica destruidora
como o resultado exagerado de um grave drama pessoal. Não se notou que, por maior
que seja o peso biográfico-confessional dessas afirmações, elas operam uma astuta
reconfiguração do significado e do sentido do Modernismo, tanto mais aguda e
poderosa quanto o poeta se põe como alvo principal. Enfatizando ao longo de todo o
texto que “o movimento modernista foi essencialmente destruidor”, afirmando que
“esse espírito destruidor” é “o seu sentido verdadeiramente específico”, o que Mário faz
nas afirmações sobre si e o Modernismo é revitalizar o potencial crítico do
Modernismo.102 Ao demolir o edifício do Modernismo, da própria obra e de sua própria
imagem, o que Mário faz é impedir que o Modernismo se consagre pela via
conservadora e autoritária. Retomando do Modernismo seu potencial destruidor, Mário
impede a apropriação do movimento pelo alto, às custas de si e do próprio movimento,
bem entendido. Sem dúvida, Mário expõe e analisa as conquistas do movimento: “O
direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e
103
a estabilização de uma consciência criadora nacional”; porém, o sentido que essas
conquistas adquirem em sua reflexão impede que elas se tornem uma linha de
99
ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista [1942], cit., p. 277-278.
100
ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista [1942], cit., p. 279.
101
Chales Baudelaire. “Épigraphe pour un livre condamné”, os versos da segunda estrofe são: “Si tu n‟as
fait ta rhétorique/Chez Satan, le rusé doyen,/Jette! Tu n‟y comprendrais rien,/Ou tu me croirais
hystérique”.
102
ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista [1942], cit., p. 263. Que Mário conscientemente
redefine o Modernismo pode ser comprovado pelo fato de, no momento imediatamente posterior à
Semana, a revista Klaxon e Mário declararem o momento construtivo do Modernismo. Klaxon abre seu
primeiro número com essas palavras: “A lucta começou de verdade em principios de 1921 pelas columnas
do „Jornal do Commercio‟ e do „Correio Paulistano‟. Primeiro resultado: „Semana de Arte Moderna‟ –
especie de Conselho Internacional de Versalhes. Como este, a Semana teve sua razão de ser. Como elle:
nem desastre, nem triumpho. Como elle: deu fructos verdes. Houve erros proclamados em voz alta.
Pregaram-se ideias inadmissiveis. É preciso reflectir. É preciso esclarecer. É preciso construir. D‟ahi,
KLAXON” [grifo meu] (A REDACÇÃO. In: BRITO, Mário da Silva (Org.). KLAXON. mensário de Arte
moderna. Edição fac-similar (1922-23). São Paulo: Livraria Martins, n. 1, p. 1, maio [de 1922] 1972). E
Mário, em A escrava que não é Isaura (1922, Posfácio de 1924) fala em: “hoje, período construtivo”.
ANDRADE, Mário de. Obra imatura. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 288. Há evidência de Mário de
Andrade ser o autor do editorial de Klaxon, como defende a tese de CARVALHO, Lilian Escorel. A
revista francesa L‟Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas de Mário de Andrade. 2 v. 2008.
Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 89.
103
ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista [1942], cit., p. 266.
54
Uma imagem presente em livro muito apreciado por Mário de Andrade e outros
modernistas, Rondônia, de Edgar Roquette-Pinto, define bem esses sentidos opostos da
obra do poeta:
Quem atravessa Mato Grosso nota que seus arroios orientados para o Norte,
contribuintes do Amazonas, e os que vão perder no Paraguai, nascem como irmãos gêmeos, lado
a lado; entre uns e outros, não há montanhas. Dir-se-ia que se afastam, cada qual para seu
destino, pela razão de uma vontade individual.
Quem bebe, pela manhã, águas que deveriam ir ter ao Atlântico meridional, à tarde pode
matar a sede nas que são destinadas ao equatorial.
A comitiva almoça à beira de um regato filiado no rio da Prata, e pode sestear à margem
de uma cabeceira da bacia do Amazonas. 105
Na obra poética de Mário de Andrade, esses dois rios, como símbolos, são
bastante reconhecíveis. O rio da história brasileira, do Brasil tal como está constituído, é
o Tietê, rio da descoberta da terra. O rio do Brasil por fazer, do Brasil a civilizar, é o
104
“Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje
espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de
praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais” (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de
história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1986. p. 225).
105
ROQUETTE-PINTO, Edgar. Rondônia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975 [1ª Edição de
1917]. p. 5.
55
Amazonas, rio da criação da terra nova, que respeita o ritmo de sua própria natureza.106
Em “A Meditação sobre o Tietê”, esse empenho civilizatório, cujo símbolo é o rio
Amazonas, é analisado da perspectiva do fracasso, nos versos:
106
Sobre a imagem e a simbologia desses rios na obra do poeta, ver KNOLL, Victor. Paciente
arlequinada. Esboço de uma hermenêutica do imaginário na obra poética de Mário de Andrade (São
Paulo: Hucitec, 1983), especificamente o Capítulo III – Dois Sinais e um Brasão.
56
mesmo um oráculo que fornecesse novas tábuas da lei. Ele é uma fonte gratuita, não
normativa e não autoritária. O que ela traz possui conotações mágico-míticas de um
sacerdote-leigo: o impossível, o segredo, o que está para cá do dinheiro e para além da
posse. Antes de desenvolver o processo pelo qual essa vida se realizaria, criando uma
formação brasileira por uma via mágico-revolucionária filtrada pela própria energia
vital do poeta, podemos notar o que se opõe a essa solução, que tipo de vida subjetiva e
social prosperou e venceu o seu empenho civilizatório. O retrato dos “donos da vida”
apresenta uma vida postiça, mostrada em sua faceta de pompa exterior: retrato a ólio,
béstias (bestialógico ou discurso despropositado) de operário e oficial imediatamente
inferior, palminhas, sorrisos de máscaras. Por aí notamos que se trata de uma pompa
exterior e governamental. Mário configura a vida postiça nesse trecho como uma
espécie de kitsch do poder, ostensivamente ridículo e, no entanto, profundamente
destrutivo. Esse caráter a um tempo ridículo e destrutivo dos donos da vida é retomado
nos versos seguintes como uma vida não só postiça como também infantil. A revolta do
poeta contra esse tipo de vida pode ser lida na astuciosa construção dos versos 250 e
251, na ambiguidade do sintagma: “os chefes e as fezes de mamadeira ficassem...”. A
inversão da frase, com a anteposição da locução adverbial ao verbo, uma vez desfeita,
ficaria: “os chefes e as fezes ficassem de mamadeira...”, em que “fezes” substituiria o
cortejo de subordinados do chefe. Contudo, “fezes de mamadeira” ressoa a locução
adjetiva “mamadeira de fezes”, fazendo o verso exalar o insulto indignado por essa
vida, que Mário considera, em uma expressão grosseira, uma vida de merda. A essa
falsa “felicidade deslumbrante”, o poeta opõe a verdadeira, descrita na bela imagem: “a
borboleta translúcida da humana vida”. Em que consiste essa humana vida? Como se
chegaria a ela? O ideal descrito nos versos é de uma vida natural e acolhedora, vivida
em comunhão com a terra, em alegria com a terra. Essa vida ativa e verdadeira, “de
camisa aberta ao peito”, não é uma retórica milagreira do poeta, embora seja alcançada
pelo sortilégio, mas o resultado de um sacrifício. Mário escreve: “eu lhes dava uma
felicidade deslumbrante/De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei”
(versos 248-249). O poeta opera o “impossível”, “o segredo”, pelo sacrifício de si
próprio. Ele agrega em seu corpo o corpo da nação, depura seus significados, sofre seus
terrores, expurga a malignidade da terra e, renunciando à própria vida nesse processo,
reelabora a nação, que se forma por meio do poeta. Ele opera em si o procedimento
mítico atribuído pela tradição greco-latina ao deus Dionísio: o princípio morte-
57
Com uma dança dramática, então, Mário compõe poeticamente essa coreografia
dionisíaca, realizando pela última vez “a constância coreográfico-dionisíaca que
atravessa toda a minha poesia, e pra qual o Roger Bastide já chamou a atenção”. 108 Essa
solução mítico-dionisíaca, entretanto, não projeta a “Meditação” para o “nada que é
tudo” da mitografia. Ao contrário, ela é uma solução orientada para a matéria cultural,
social e histórica nacional. É pelo apelo ao mito que Mário consegue recriar a
humanidade brasileira conforme a potencialidade que se encontra incrustada e sufocada
em sua própria realidade, de ser “verdadeiro”, “camisa aberta ao peito”. Trata-se de uma
via poética para o problema da formação. Em O banquete, Mário aborda teoricamente o
tema, quando o personagem Janjão do livro, músico de orientação libertária buscando
patrocínio dos “donos da vida” da cidade de Mentira, em que transcorrem os diálogos
do livro, reflete sobre sua obra e sua posição como artista. Diz o músico, ao argumentar
sobre a função coletiva da arte, que, embora o Amor participe das manifestações da
própria inteligência:
Eu não amo o povo, enquanto este é uma pessoa mais uma pessoa, mais uma pessoa.
Estas pessoas só podem desagradar ao meu refinamento pessoal, ao meu aristocratismo. Nem
quero ter comiseração delas, porque isto seria me aniquilar na balofa caridade esmoler dos
cristãos [...]. Eu apenas exijo uma Justiça mais superior, que não consegue negar a fatalidade das
classes enquanto classificação da validade individual dos homens em grupos coletivos [...] mas
justiça a que repugna e suja a predeterminação classista, mantida pelas classes dominantes. 109
Talvez seja horrível dizer: mas eu amo o povo porque ele é uma projeção de mim, amo
ele enquanto ele faz parte apenas dessa humanidade que eu não sou, mas que exijo, porque só
existo porque fiz ela existir. O artista é realmente o único profissional que cria a humanidade, e é
condicionado pela sua criatura. Os conquistadores de povos, quer por meio da guerra quer por
meio do capitalismo, não concebem a humanidade, nem eles! Porque são por natureza
internacionais. Só o artista inventa a humanidade. Porque sendo out-law, extra-econômico por
natureza, sem classe por natureza, sem povo por natureza, sem nação, o artista não deixa por
menos: o que ele exige é a humanidade. [...] A minha consciência moral e intelectual exige de
mim participar das lutas humanas. E eu participo. Solicito a verdade e pela síntese das obras de
arte, proponho uma vida melhor e combato por. Eu, repudiando os nacionalismos, pela minha
própria exigência de humanidade no entanto me esforço em ser nacional. 110
Portanto, como essa citação deixa suficientemente explícito, quer criar uma nova
humanidade, nacional em sua natureza de organização e modo de ser coletivos, mas
participando da humanidade como um todo. Este é o sentido brasileiro do dionisismo de
Mário de Andrade: recriar o Brasil, libertando suas potencialidades acolhedoras e
amorosas, gerando uma sinergia dos homens com a terra. Nos termos simbólicos da
poesia mariodeandradiana, pode-se afirmar que, quando o poeta escreve:
O impossível que ele está oferecendo pelo sacrifício dionisíaco é a transformação do rio
Tietê no rio Amazonas, seu outro sinal, símbolo do Brasil possível, do homem formado
em liberdade pelo ritmo da terra.
Mesmo em sua última expressão, ainda se observa a presença do empenho
civilizatório, mas como uma promessa fracassada. A força que faz com que esse
empenho fracasse não é composta apenas de “donos da vida” e “Demagogia”. Eles são
sujeitos ativos de uma força maior, eles como que atuam essa força maior, que está na
natureza das próprias águas da história brasileira:
110
ANDRADE, Mário de. O banquete, cit., p. 69.
60
do que sua realidade já conhecida”.111 Mário percebe a natureza do curso das águas do
Tietê como essa força mítica, um “espírito que move”,112 acima mesmo dos “donos da
vida”, que passam a ser suas marionetes, impulsionando a história brasileira para sua
finalidade destrutiva. Como algo de sobrenatural, o mana infunde nos homens o
terror.113 Esse terror do indiferenciado marcou, segundo Adorno & Horkheimer, o
momento de uma humanidade subjugada pela natureza, uma humanidade frágil e
inferior ao mundo em que habitava. O percurso do esclarecimento para vencer o terror
primário e o mito (e sua recaída no mito) é todo o livro Dialética do esclarecimento, e
não nos compete neste momento remontá-lo. O que é preciso enfatizar é a presença no
poema de Mário do mana como algo que persiste e convive com a aspiração brasileira
de modernidade (que pressupõe o esclarecimento). Quem atinou para o problema do
mana na literatura brasileira foi José Antônio Pasta Jr., em seu estudo sobre O Ateneu,
de Pompéia. Em determinado momento de seu estudo, ao comparar o romance de
Pompéia com Macunaíma, ele percebe a presença do indiferenciado como algo que
impede os personagens desses romances de “aceder ao sentido”, de saber o que eles são.
Sem a intenção de me aprofundar no argumento de seu estudo, quero chamar a atenção
para um comentário em que o indiferenciado, o mana, é identificado à barbárie
brasileira. Observando a tristeza enorme do final do romance Macunaíma, com a
essencialização do personagem no “brilho inútil das estrelas”, Pasta Jr. se pergunta:
“Quanto do que constitui o cerne horrível da barbárie brasileira – feito de brutalidade e
extermínio – não se refrata aí?”.114 Com a diferença de que nos versos em questão não
se trata mais de “refração”, pois “A Meditação sobre o Tietê” está propriamente imersa
na barbárie brasileira, e o poema formaliza o choque: o poder do mana exercendo seu
terror sobre a fragilidade do indivíduo. Seguindo a trilha da “barbárie brasileira”, Pasta
Jr. dá especificação brasileira ao terror mítico, a que chama “mana brasílico”. 115 O autor
vai desenvolvê-lo como presença do sobrenatural terrível, “mistério enigmático ou
enigma misterioso”, como impossibilidade de autoconstituição, impossibilidade de
identificação do sujeito consigo mesmo, dada a conjunção da demanda moderna de
111
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. p. 28-29. “O mundo totalmente dominado pelo mana, bem como o mundo do mito indiano e
grego, são, ao mesmo tempo, sem saída e eternamente iguais” (ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER,
Max. Dialética do esclarecimento, cit., p. 30).
112
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, cit., p. 29.
113
“O grito de terror com que é vivido o insólito [o sobrenatural, o mana] torna-se o seu nome”
(ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, cit., p. 29).
114
PASTA JR., José Antônio. Pompéia, cit., p. 149.
115
PASTA JR., José Antônio. Pompéia, cit., p. 179.
62
116
A transformação do próprio esclarecimento em mito é o tema do livro de Adorno e Horkheimer e foge
ao intuito da minha exposição no momento. É necessário dizer, no entanto, que, embora problemático
desde a origem, o esclarecimento europeu é um elemento de distinção e estabelecimento de fronteiras,
adquirindo um estatuto normativo e necessário, mesmo quando criticado ou antagonizado. A ausência de
esclarecimento, como estamos vendo, é menos uma festa de confraternizações e conciliações – como
querem certas teorias apologéticas da via brasileira – do que o mundo dos estados-limite, violentos e
destrutivos, pertencentes à esfera do indistinto, do mana.
117
Para maior desenvolvimento do assunto, abordando o romance de Raul Pompéia e a obra de Machado
de Assis, ver PASTA JR., José Antônio. Pompéia, cit. Como complemento sobre a simultaneidade do
tempo histórico e do tempo a-histórico, lê-se com proveito: PASTA JR., José Antônio; PENJON,
Jacqueline. Le rythme singulier d‟une formation historique. In PASTA JR., José Antônio; PENJON,
Jacqueline (Org.). Littérature et modernisation au Brésil. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2004.
118
Tão evidente que a fortuna crítica de Mário nem se preocupou em abordá-lo... É notório o quanto a
“barbárie brasileira” e suas consequências estão ausentes da crítica de poesia brasileira.
63
apaziguamento do mana custa sua obra poética toda e sua energia vital, que o rio
também prende e leva no seu “leito impassível de injustiça e impiedade”. O
aprofundamento de Mário na matéria brasileira não deixa de mostrar aqui um ponto de
fraqueza: identificado à matéria brasileira, o poeta e sua obra são vítimas da natureza
dessa matéria. O esforço de brasilidade tem desfecho trágico, o poeta é vítima do
próprio empenho. Mas fragilidade e força derivam de um mesmo princípio, e o poeta
formula poeticamente as consequências do empenho civilizatório e torna visível o
“mana brasílico”, que até então mal se vislumbrava em sua poesia e na poesia
modernista.
Contudo, Mário reorganiza todas as forças para tentar conter e suportar o rio da
história brasileira, o rio Tietê e seu mana. Vimos no começo deste Capítulo como toda a
sua obra converge para o poema. Tal reagrupamento da obra não é gratuito, faz parte de
um fio pouco visível, e no entanto constante, no poema: o empenho civilizatório
tentando resistir ao poder do mana, a presença simultânea em “A Meditação sobre o
Tietê” do rio Tietê e do rio Amazonas, como se eles corressem dentro do poema, em
sentido contrário, ao mesmo tempo, e sobrepostos.
Os Rios Sobrepostos
119
Logicamente, trata-se de uma imagem literária, de uma produção simbólica mágico-mítica, capaz de
subverter a ordem geográfica e a característica de seus fenômenos.
120
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 54.
64
começo da “Meditação”. Ainda sobre essa viagem ao Amazonas, Mário fala em carta a
Drummond, de 12 de agosto de 1944, de um “lindíssimo poema da „Meditação sobre o
Amazonas‟, cuja ideia primeira veio dessa viagem. Seria assim como um coroamento de
um dos meus caminhos, como o „Noturno de Belo Horizonte‟, como a „Louvação da
Tarde‟, como os „Poemas da Amiga‟ são também fins de caminhos. Mas nunca saiu...
Abandonei” [grifo do original].121 Também em carta a Drummond, de 15 de outubro de
1944, Mário escreve: “me bateu um bruto desejo de fazer uma poesia, uma espécie de
„Meditação sobre o Tietê‟ que ando premeditando pra Lira [paulistana] e que não tem
nada que ver com uma ambiciosa „Meditação sobre o Amazonas‟ que muito tempo
andei desejando escrever, nunca saiu”.122 E o poema “A Meditação sobre o Tietê” data
de 30 de novembro de 1944 – 12 de fevereiro de 1945.123 Não se trata, como se vê pela
última citação, da mudança de título de um mesmo poema ou mesmo de familiaridade
entre as duas concepções. Antes, penso em certa familiaridade intuitiva entre a presença
do Amazonas e a presença do Tietê, a presença simultânea de ambos no imaginário
poético de Mário. O Amazonas está fora da concepção de “A Meditação sobre o Tietê”,
mas está presente no espírito do poeta, como seu “outro sinal”, rondando sua poética,
como a estrela da civilização brasileira possível. No poema, em minha hipótese, o rio
Amazonas, como o rio purificador, é oposto ao rio Tietê. É ele que produz a resistência
do eu lírico, sua capacidade de perceber a enunciar a natureza do rio do contágio, o
Tietê. A resistência do rio purificador é progressivamente tomada pelo rio do contágio,
até condensar-se em uma “alga escusa”, ao fim do poema. Porém, a dignidade da
revolta do poema depende dessa força contrária ao rio Tietê, e é ela que confere
dramatismo ao poema. A presença desse outro rio sendo progressivamente vencido
pode ser visto ao longo do poema:
121
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002. p. 526.
122
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 532.
123
ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987. p. 497. Mário morreu 13 dias depois de terminar o poema.
65
Alguma coisa, nesse “eu” (verso 49), se quebra e se dispersa sob a força do rio Tietê,
alguma coisa foi “sujada”, e o que foi rompido “rosna” tomado de imundície, olhando
de longe os “mil futuros” que se afastam, se interrogando como acaba esse espetáculo
horrendo. A capacidade de sentir o baque das águas espessas de infâmia, de dar nome à
sua sujeira é o que eu chamo de um rio purificador que se opõe ao rio do contágio. Sem
essa reserva de águas purificadoras que vão sendo sujadas, não haveria no poema
critério de distinção, seria uma noite líquida e uma água noturna sem uma luz que desse
a dimensão de sua escureza. Por isso o poeta portador de águas puras se sente sujado e
os fragmentos dispersos das águas puras ainda rosnam sob o óleo contagioso e se
espantam dos “mil futuros” antes de se fundirem definitivamente ao rio do contágio.
Em outra passagem, há maior subjetivação desse processo:
A referência ao “pai Tietê” é menos uma identificação do eu lírico com o rio do que
com o “espírito do rio”, entidade indígena das forças da natureza. A entidade mítica
também é vitimada, faz parte do mesmo complexo purificador do rio Amazonas, do
ritmo natural da terra brasileira. O pai Tietê é diferente do rio Tietê, é mesmo
66
antagônico a ele. Em versos posteriores aos citados, também o pai Tietê é hostilizado
pelas águas do contágio, e ele “se vai num suspiro educado e sereno,/Porque és
demagogia e tudo é demagogia” (versos 130-131). O poeta se identifica com esse
espírito do rio: “Me sinto o pai Tietê”, e é nessa dimensão de portador de forças míticas
e purificadoras que opõe no poema o rio purificador ao rio do contágio. A natureza
oposta do sujeito lírico e do rio ocorre no modo como o sujeito lírico sente a invasão das
águas: elas invadem o peito do poeta em uma ascensão brutal de força, pois elas
primeiro esborrifam, depois vêm em ondas com um “ventarrão”, e o sujeito lírico,
tomado pela águas, se torna agitado, encrespado (“encapela”), fica “engruvinhado de
dor que não se suporta mais”. Esse choque de forças que contém traços marcadamente
míticos e telúricos é que sustenta, a meu ver, a hipótese de dois rios sobrepostos em
antagonismo. A presença implícita das águas do rio purificador tem a função de mapear
o rio do mana, de torná-lo conhecido por meio da demonstração de como age a sua
força destrutiva. O rio purificador age como uma matéria cristalina que, ao ser
lentamente destruída, revela a natureza daquilo que a destrói. Mas a função das águas
purificadoras tem ainda outra configuração, que deriva da mesma resistência
purificadora às águas destrutivas. A destruição das águas purificadoras pelas águas do
contágio traz progressivamente a proximidade da destruição final, da morte, e, na
vizinhança da morte, o poeta inicia uma dicção febril, pois os versos adquirem sentidos
antagônicos e contraditórios. O poeta, munido de forças míticas, se sente
“demagogicamente tão sozinho”, e se não bastasse essa alternância de sujeito mítico
(pai Tietê) e sujeito frágil (demagogicamente tão só), as próprias águas começam a
ganhar significados ambivalentes e antagônicos: elas se tornam um “incêndio de amor”,
transmutando o elemento em que o sujeito lírico está, pois ele incendeia-se com água e,
ainda, as águas infectas que o tomam pelo “ventarrão” se chocam com uma enchente
contrária, purificadora mas imaginária, “magnânima”, que inunda o poeta. Esses versos
difíceis mimetizam um verdadeiro transe, uma disposição eufórica e febril que antecede
um momento sacrificial. Nos versos finais do trecho citado, o poeta está só, destroçado
e alarmado. Essas palavras são ainda expressão do transe, pela própria simultaneidade
de sensações que transmitem: a solidão e o despedaçamento, a perda da lucidez e a
disposição alerta. Como numa febre, o sujeito lírico está ao mesmo tempo muito frio e
fervendo. É preciso, então, indagar sobre a natureza simbólica desse choque entre as
águas purificadoras e as do contágio, principalmente sobre as consequências no interior
67
124
ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit., p.
181-182. Mário escreve “é a constância coreográfico-dionisíaca que atravessa toda a minha poesia, e pra
qual o Roger Bastide já chamou a atenção. Em quase todos os grandes momentos extasiantes, na dor ou
na alegria, eu „me dissolvo em dança‟”; contudo, no texto de Bastide sobre a poesia de Mário, a passagem
a que o poeta se refere é um pouco diferente: “... na vida sentimental de Mário de Andrade, tanto seus
momentos dionisíacos como seus momentos tenebrosos, se tornam samba, coco, inventam novos passos,
e sua obra nos toma pelos músculos, pelas vísceras, para impor seu ritmo a nosso ser, para nos
transformar, por sua vez, em ballet brasileiro” (BASTIDE, Roger. Mário de Andrade [1940]. Poetas do
Brasil. São Paulo: Edusp/Duas Cidades, 1997). A preeminência que Mário dá à expressão “coreográfico-
dionisíaca”, que não se encontra no texto de Bastide, revela o modo como o próprio poeta sentia sua
poesia. O tema do “dionisismo” em Mário é pouco estudado e uma abordagem interessante sobre esse
tema na obra Café está em CARVALHO, Sérgio de. O drama impossível. O teatro modernista de Antônio
de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. 2002. Tese (Doutorado em Literatura
Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2002. p. 178-183.
68
A perda de forças, a invasão das águas do contágio nas águas da purificação chega a um
ponto de anestesia, em que nem mais a dor irrita, e as águas da energia vital,
purificadoras, são reduzidas a um “choro de agonia plácida”, de uma agonia já esfriada.
Pelo desaparecimento progressivo dessas águas, o poema perde seu poder de iluminação
e distinção (“não tem mais formas nessa noite”), e o Tietê “recolhe mais esta luz”,
vence mais uma etapa da eliminação da resistência, deixando o eu lírico na vizinhança
da morte, no transe, na incapacidade de sentir, de se revoltar. Entretanto, é ainda o
último reflexo das águas purificadoras chorando que ilumina essa passagem e torna
mais essa derrota uma agonia visível. E, mais adiante, acelerado o ritmo do poema em
um transe, como um tipo de postergação de uma morte definitiva, há o ciclo dionisíaco
que encerra a “Meditação”. Da vizinhança da morte em que o poema deixa o sujeito
lírico, segue um transe de indignação e começa o dionisismo quando o poeta diz: “Pois
que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva” (v. 256). E um delírio de amor se segue,
uma ebulição poética quando a última reserva das águas purificadoras está acabando.
Seguem-se os versos já citados:125
Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontes
Da água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.
Meu baile é solto como a dor que range, meu
Baile é tão vário que possui mil sambas insonhados!
Eu converteria o humano crime num baile mais denso
125
Ver p. 56.
69
O ciclo dionisíaco não se completa, não há sacrifício, mas aniquilação. Das águas
purificadoras, entretanto, fica um pouco, “uma lágrima”, uma “alga escusa”. Assim
como as “auroras represadas” – uma imagem muito bela – vão para o peito dos homens,
o rio também leva para o futuro um tipo de “dionisismo represado”, uma lágrima que é
também uma fagulha, como a fonte das águas também é um incêndio de amor, e cuja
promessa é uma destruição mais completa de tudo, um possível retorno de um
Amazonas mais forte, capaz de incendiar o Tietê. E mesmo a alga escusa, que é o corpo
morto do poeta, traria latente o renascimento de um Brasil purificado. Pela própria
natureza sacrificial do ciclo morte-ressurreição do dionisismo, o poema precisa, para
guardar essa lágrima-fagulha, levar a cabo a destruição total do poeta e sua obra. Tanto
o eu lírico mariodeandradiano quanto sua obra poética trazem a convivência da história
brasileira sedimentada – as águas do contágio do Tietê –, e o impulso de construção do
Brasil novo, pela estética moderna, pela liberdade de temas e ritmos, pela aceitação e
autodeterminação de si mesmo – as águas purificadoras do Amazonas –, que
70
Ando fazendo um poema chato, pesado, difícil de ler, longo demais, duro nos ritmos,
cadencial, bárdico, uma espécie de “Meditação sobre o Tietê ”. É o que me dá alento, que o resto,
trabalho, vida, ver os outros daqui, os da elite da esquerda politicando, carcomidos aos vinte anos
tanto como um perrepista sexagenário, a intriga, o meu cartaz, tudo me dá desalento. Só o poema
me salva e acredito nele, amo ele, me umedece os olhos. E cada palavra que consigo acertar
naquela dureza cadencial que não é verso livre mais, parece que achei a virgem, dá pra aguentar
dois dias mais sem estouro [grifo meu].126
A solução da poesia de Mário para a matéria histórica brasileira, tal como ela se
configurava em 1944, após todo o ciclo do Modernismo e da primeira modernização
maciça da sociedade brasileira, era uma expiação completa. Uma solução mítico-
dionisíaca, que, ao longo de sua obra, monta todo um complexo dionisíaco-sacrificial, e
que em seu último momento tem sua formulação mais radical. O complexo dionisíaco-
sacrificial é uma solução mítica, mas é também, como vimos, uma hermenêutica
histórica e, no limite, uma estranha práxis histórico-mítica. A destruição dionisíaca que
se dá no plano do mito acaba por ser também uma negação específica, em poesia
modernista e linguagem poética bem brasileira, de toda a história brasileira, uma espécie
de “Delenda Brasilia”,127 que não deixa de ser um engajamento radical da forma poética
126
SANTIAGO, Silviano. (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 539.
127
“O Brasil deve ser destruído”, paráfrase que imaginei a partir do “Delenda Carthago”, de Cícero.
Sobre o sentimento de Mário em relação ao Brasil na década de 1940, é de particular interesse esse trecho
de carta a Álvaro Lins de 4 de julho de 1942: “Pra esses moços [da década de 1940], como pra os
modernistas da minha geração o Macunaíma é „a projeção lírica do sentimento brasileiro, é a alma do
71
Brasil virgem e desconhecida‟, que virgem nada! que desconhecida nada! Virgem, meu Deus! será muito
mais um cão de nazista!” (ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Álvaro Lins. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1983. p. 66).
72
128
Sobre o tour de force, ver ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 165-
167. “As obras que são planeadas como tour de force, como acto equilibrista, revelam algo de superior a
toda a arte: a realização do impossível” (p. 165). Adorno está pensando na lógica e na integridade da
grande obra de arte em um mundo danificado e fragmentário. Para o contexto brasileiro, o tour de force
tem uma função específica: conciliar o que é inconciliável. Sobre o tour de force brasileiro, há essa
passagem iluminadora de Roberto Schwarz, quando, acompanhando a narrativa machadiana de Dom
Casmurro, se pergunta: “Como conciliar a dependência, que era inevitável, com a autonomia, que era de
rigor? Ou ainda, como ser moderno e civilizado dentro das condições geradas pelo escravismo?” e
conclui: “Veremos que as soluções imaginárias para essa verdadeira quadratura do círculo são
especialidades do sentimento-de-si nacional e da ficção machadiana” (Duas meninas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. p. 19). E José Antônio Pasta Jr., em texto sobre Macunaíma, desdobra o
significado do tour de force para o romance e para o significado geral da obra de Mário: “É a lógica dessa
ultrapassagem que não supera [modernizar os circuitos mercantis mantendo intactas as relações políticas e
sociais arcaicas] – impulso de transformação que elude justamente o momento da mediação – que o
Macunaíma isola e espectraliza, promovendo-a a princípio formal da obra. Macunaíma – e, de certo
modo, também seu Autor – é esse tour de force, por assim dizer, encarnado, o que lhe imprime a referida
qualidade dramática que só a assunção dos conflitos mais desatados, por uma entidade individual, pode
manifestar” (PASTA JR., José Antônio. Tristes estrelas da Ursa. Macunaíma. In: AVANCINI, José
Augusto; SILVA, Márcia Ivana de Lima e (Org.). Cadernos ponto & vírgula, n. 4. Porto Alegre:
Secretaria Municipal de Cultura, 1993. p. 31).
129
CANDIDO, Antonio. Uma literatura empenhada. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. v. I.
73
Os versos são fazem o elogio do sujeito lírico múltipo, mas, em vez disso, vislumbram a
possibilidade da identidade do sujeito consigo mesmo, identidade que, uma vez
alcançada, pode ser esquecida por um sujeito lírico em paz consigo. O sentido da
multiplicidade, então, é a unificação não violenta da disparidade e multiplicidade
nacionais, em uma subjetividade igualmente formada por uma experiência reflexiva em
contato com sua matéria histórica própria. O sujeito lírico se multiplica para se
encontrar e, quando finalmente se encontra, muito menos que um triunfo da
individualidade burguesa, ele desejará “servir de abrigo”, ser uma forma de paz interior
e de acolhimento. A subjetividade lírica deseja formar-se para poder se tornar fraterna.
No entanto, esse sentido formativo da poesia de Mário, em que sujeito e nação se
formariam de modo simultâneo e complementar, torna-se o seu problema axial, cujas
soluções exigidas levam o poeta a tomar o rumo contrário ao desejado. A dificuldade
desse percurso formativo pode ser observada nessa estrofe final de “Eu sou
Trezentos...”. O olhar atento para algumas palavras usadas por Mário nessa estrofe abre
o caminho para a análise da relação entre o movimento do sujeito lírico e o seu ideal
formativo. A primeira é o verbo “topar”. Evidentemente, o significado do verbo é o de
“encontrar”, o poeta quer dizer que um dia afinal encontrará a si mesmo. Mas o que
74
justifica essa escolha lexical? O verbo “topar”, além de sua inflexão oral e popular,
possui em seu campo semântico o aspecto do imprevisto, de “dar de cara com”, e sua
etimologia confirma essa ideia, pois ela explica que o verbo surgiu da onomatopeia de
choque brusco “top” mais a desinência verbal “-ar”.130 Esse caráter imprevisto, por
conseguinte, significa que o movimento da subjetividade e a sua formação não ocorrem
de forma lógica e orgânica, mas dependem de uma “topada”, de um fiat, melhor
dizendo, de um tour de force, enfim. Outra palavra que chama a atenção é “andorinha”.
A significação desse pássaro no folclore brasileiro foi aproveitada poeticamente pelo
próprio Mário em “Lenda do Céu” (de Clã do jabuti). A lenda indígena reza que um
menino abateu uma andorinha, a qual lhe prometeu que, se não a matasse, ela o levaria
ao céu. O menino aceitou, segurou-se às penas da andorinha e subiu. Chegando no céu,
o menino encontrou familiares e amigos, e resolveu ficar se divertindo no céu para
sempre.131 O poema de Mário recupera novamente a lenda indígena, mas desta vez as
andorinhas de seu verso são de voo curto, pela metonímia “andorinhas curtas”. Com
paciência, parecem dizer os versos, uma das andorinhas curtas (serão trezentas e
cinquenta?) conseguirá levar o poeta ao céu, mudar qualitativamente o seu mundo.
Tanto a escolha de “topar” como “andorinha” une a ideia de movimento com um
acontecimento inesperado, seja fortuito ou mágico, para alcançar sua completude. Essa
dificuldade de o movimento do sujeito lírico atingir o seu objetivo impele a
subjetividade na poesia de Mário a tocar os seus extremos. Mas antes de chegarmos aos
extremos dessa subjetividade lírica, podemos observar a natureza de seu
desenvolvimento.
Subjetividade Desdobrada
130
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 2.734.
131
Outra referência popular à andorinha, esta uma superstição paulista, diz respeito à obtenção de dentes
sadios: coloca-se o dente de leite da criança em cima do telhado e se diz: “andurinha, andurinha, levai
meu dente, trazei-me outro, fais nascê dente”. Tanto na narrativa folclórica quanto na superstição popular,
a andorinha substitui qualitativamente alguma coisa: leva do mundo ao céu, substitui o dente caído por
um dente sadio (CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. p.
77).
75
132
Note-se que são esses os dois elementos que entram na “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. O
tema do individualismo e do amor por totalidades abstratas como constâncias da vida mental brasileira é
desenvolvido por HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras,
1995), principalmente o Capítulo VI − Novos Tempos. O enfoque que sigo aqui é, porém, um pouco
diferente do exposto por Sérgio Buarque.
76
se tratar do gênero lírico dá maior relevo à presença do eu, por ser categoria
fundamental do gênero.133 Se isso por um lado facilita a questão, por outro a
problematiza, pois de modo algum a esfera da subjetividade brasileira, embora
hipertrofiada, se oferece como forma constituída, como síntese, para além dos
constrangimentos de sua má-formação histórica.134 Portanto, a fragilidade do eu e a
aspiração do todo orgânico são polaridades que se articulam em favor de uma
subjetividade lírica que se desdobra em busca de sentido. O eu e o Brasil, na poesia de
Mário de Andrade, criam uma complementaridade de formas incompletas.
Toda a obra poética de Mário se desenvolve na busca de resolver esteticamente –
e mesmo extraesteticamente – essa questão. O elemento extraestético, como vimos no
capítulo anterior, é frequentemente absorvido na forma, mostrando a flexibilidade com
que o movimento ocorre no seio do desconcerto, na tentativa de abarcar e formalizar
tudo que lhe possa conferir significação. Constantemente, a obra que se deu um destino
na formalização da sua matéria histórica se vê confrontada com outro destino,
imprevisto e hostil, mas a que o poeta não foge e, na formalização da dissolução, atinge
momentos fortes de desvelamento de suas forças poéticas, como em “A Meditação
sobre o Tietê”.
Se o desdobramento constante fragiliza a subjetividade lírica por lhe negar a
integridade a que ela tanto aspira, ele igualmente ganha em dinamismo de apreensão de
movimentos subjetivos imprevistos e complexos, penetrando na heterodoxia que
constitui a subjetividade do poeta e as formas de Brasil com que ela se depara e a que
busca dar forma. Essa atenção aos momentos verdadeiros por que a subjetividade lírica
passa nos poemas de Mário distingue o movimento da subjetividade desdobrada do
movimento da oscilação constante e disparatada da veleidade e da volubilidade,
constantes da vida subjetiva brasileira, e captada por Machado de Assis em muitas de
suas personagens, Brás Cubas à frente.135 Mais do que, como Brás Cubas, flanar por
todos os sentidos possíveis e disponíveis a um figurão que, sem precisar prestar contas,
133
Embora sua presença no poema não seja de modo algum obrigatória.
134
Sobre as subjetividades hipertrofiadas em nosso romance, por exemplo, Aurélia em Senhora, Brás
Cubas em Memórias póstumas de Brás Cubas, Macunaíma em Macunaíma, Riobaldo em Grande sertão:
veredas, ver PASTA JR., José Antônio. Changement et idée fixe (l‟autre dans le roman brésilien). Cahier.
Centre de Recherche sur les Pays Lusophones, Crepal, Paris, 2003. p. 159-171. Ver também SCHWARZ,
Roberto. Um mestre da periferia do capitalismo. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 1992.
135
CACASO. (Antônio Carlos Brito). Alegria da casa. Não quero prosa. São Paulo: Editora da Unicamp;
Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. p. 186 e 191. O estudo sobre a volubilidade de Brás Cubas que
aqui acompanho é de SCHWARZ, Roberto. Um mestre da periferia do capitalismo. São Paulo, Duas
Cidades/Editora 34, 1992.
77
usufrui do que lhe está a mercê: coisas, fatos e pessoas, transformando o privilégio em
desfaçatez, a subjetividade lírica de Mário de Andrade dispõe o privilégio como busca
de sua antítese, variação que busca significado, não que se faz significado ela própria. É
assim que os poemas de Mário podem abarcar a doçura e a agressão, a entrega e o
disfarce, intenso erotismo e pudor, vigor diante da corrente da vida e fragilidade
liquefeita. Nesse dínamo formal, os poemas podem mimetizar os constrangimentos do
individualismo na esfera do favor e do privilégio, levá-lo a tocar seus extremos e buscar
deter-lhes pelo seu poder de formalização poética. O desdobramento lírico da
subjetividade por momentos que querem revelar sua verdade neutraliza o que a
volubilidade do privilegiado tem de desfaçatez. Mário pode, desse modo, alcançar
perspectivas diferentes do mesmo fenômeno, justapô-las e lidar com os seus diferentes
aspectos. Essa variação do sujeito lírico, que deveria ser a trajetória da subjetividade em
busca de um significado que a cessasse – o eu e o Brasil se fundindo e se
complementando –, uma vez erigida em forma constitutiva, faz do desdobramento um
anátema, e suas consequências serão sentidas de modo cada vez mais agudo pelo poeta
Mário de Andrade.
Assim, o excesso de movimento da subjetividade lírica de Mário de Andrade,
seu desdobramento, tem como lei que cada um de seus momentos revele algo do eu ou
do mundo. Esse padrão de subjetividade poética foi inicialmente teorizado por Mário no
“Prefácio Interessantíssimo” (Paulicéia desvairada) e em A escrava que não é Isaura.
O sujeito lírico de então, para estar à altura do momento histórico, deveria se reger por
dois movimentos opostos e complementares: multiplicar-se para abarcar o avanço
tecnológico e a fragmentação das esferas da vida, e imergir em um campo desconhecido
da própria subjetividade – o “subconsciente”, lembrando que o modernismo
internacional é contemporâneo e estreitamente ligado às descobertas da psicanálise.
Esse duplo movimento da subjetividade corresponde a momentos distintos da
vanguarda europeia: a exploração do eu pelo expressionismo, e que será retomado
posteriormente pelo surrealismo; e a simultaneidade futurista e cubista, cujo último
capítulo foi o construtivismo abstrato. Mário de Andrade recebe, pelo conhecido atraso
periférico, os dois momentos de forma simultânea, e com dificuldade tenta entendê-los e
mapeá-los,136 embora sua teorização modernista seja clara, devido em parte ao seu
136
Sobre os momentos distintos da vanguarda: BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.
São Paulo: Cultrix, 1999. p. 336. Sobre a dificuldade de Mário, veja-se esse trecho de carta a Joaquim
Inojosa: “Pra nós brasileiros é uma dificuldade enorme saber exatamente quais as teorias modernistas da
78
Europa e dos Estados-Unidos, porque os livros que tratam delas, não são livros de exportação. É preciso
ter essa paciência enorme de mandar buscá-los, catando aqui e além no jardinzinho das capelas artísticas
o que há de mais importante e mais útil” (INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco.
Rio de Janeiro: Gráfica Tupi, [1968-1969]. p. 339). Devo essa citação à leitura de CARVALHO, Lilian
Escorel. A revista francesa L‟Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas de Mário de Andrade. 2 v.
2008. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) − Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. A citação está na p. 54 da tese. Ainda para o modo como
Mário dialogava com as vanguardas europeias, ver capítulo Arlequim e modernidade de LOPEZ, Telê
Porto Ancona. Mariodeandradiando. São Paulo: Hucitec, 1996.
137
A expressão é “síntese eclética de periferia”, de LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade:
ramais e caminho. São Paulo: Duas Cidades, 1972. p. 109. Para uma interpretação dos limites da teoria
poética de Mário de Andrade, ver SCHWARZ, Roberto. Sobre o psicologismo de Mário de Andrade. A
sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
138
“... nossos princípios são em última análise realísticos e estamos ligados à verdade psicológica” [grifo
meu] (ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura. Obra imatura. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
p. 286).
139
“Estou convencido que a simultaneidade será uma das maiores senão a maior conquista da poesia
modernizante. [...] Esforçamo-nos em busca duma forma que objective esta multiplicidade interior e
exterior cada vez mais acentuada pelo progresso material e sua representação máxima em nossos dias”
(ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura, cit., p. 273).
79
Excesso e Falta
Momento
140
O fato de o sujeito lírico não ser figurado explicitamente no poema de modo algum impede a
identificação entre o movimento das imagens de um poema e o movimento de um eu implícito nos versos.
A esse propósito, Mário comenta, em carta a Bandeira, a parte VIII do poema “Danças” como uma
figuração do seu “eu” e, no entanto, a parte comentada por Mário em nenhum momento explicita o eu, e
versa sobre as características e os movimentos de uma paisagem. Ver nota 184, p. 98 deste capítulo.
81
141
HEGEL, G. W. Friedrich. A poesia lírica. Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993. p. 607.
142
HEGEL, G. W. Friedrich. A poesia lírica, cit., p. 607.
82
Com efeito, o que dá à poesia lírica conteúdo e forma, não são nem a coletividade objetiva, nem
a ação individual, mas o próprio indivíduo enquanto indivíduo. Isto não quer todavia dizer que o
poeta, para se exprimir liricamente, deva romper com os interesses e modos de ver do povo; tal
decisão lhe daria apenas uma independência puramente formal e abstrata, e faria dele o joguete
de paixões acidentais particulares, de desejos impulsivos, de sentimentos bizarros e de caprichos
injustificados.144
143
HEGEL, G. W. Friedrich. A poesia lírica, cit., p. 612.
144
HEGEL, G. W. Friedrich. A poesia lírica, cit., p. 613.
145
ANDRADE, Mário de. Mestres do passado – III – Raimundo Correia. Apud BRITO, Mário da Silva.
História do modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. p. 266.
146
“A formação e a atividade de Mário, como também de seus companheiros de geração, dão-se num
meio dominado pelos expedientes da proteção oficialista, que ditavam as virtudes e regras do estilo, além
de definir as condições práticas de mobilidades da vida e da carreira literária, desde sempre propensa ao
tráfico de prestígio, à convivência e à conformidade social, ao compadrismo, e demais soluções afins”
(CACASO (Antônio Carlos Brito). Alegria da casa, cit.). Em outros termos, trata-se da reposição do
ambiente intelectual elaborado por nosso liberal-escravismo clientelista do século XIX, do qual surge
84
e das categorias literárias da literatura moderna, de que no entanto fazemos parte. 147 A
gênese histórica dessa subjetividade autônoma que não se forma converge e confunde-
se com a própria gênese histórica da nação brasileira autônoma (que também não se
forma). Essa gênese foi exposta por José Antônio Pasta Jr. a propósito de narradores e
personagens principais de nossos romances centrais e, como reflexão histórico-
filosófica sobre a literatura brasileira, ilumina diretamente o dilema da constituição da
subjetividade lírica na poesia brasileira. O trecho citado será longo, mas será preciso
citá-lo todo, pela raridade do tema e da reflexão – embora sobre uma questão central de
nossa literatura –, bem como pela clareza expositiva do texto:
Salvo engano, creio que é preciso postular uma verticalidade verdadeiramente radical da
conjunção de capitalismo e escravidão no Brasil, no sentido em que esta última modela, ao fim e
ao cabo, a constituição de toda subjetividade, e portanto, de todos os níveis sociais. Creio que,
assim fazendo, chegaremos talvez a compreender melhor as metamorfoses do conjunto de nossas
personagens, assim como algumas outras questões que restam inexplicadas e mesmo um tanto
misteriosas em nossa cultura.
Dizendo de forma um tanto brusca, o problema poderia ser colocado assim:
Posta a conjunção de capitalismo e escravidão, cujos efeitos se fazem sempre sentir,
cada indivíduo vê-se em face de dois regimes da concepção de si e da sua relação com o outro,
dois regimes contraditórios, que logicamente deveriam excluir um ao outro, mas que se
encontram um e outro bem presentes e bem atestados pela realidade da experiência. Por um lado,
um regime antes de tudo moderno que corresponde, grosso modo, às relações capitalistas de
produção, que prescreve a separação ou a diferença entre o mesmo e o outro; e, por outro lado,
um regime que não reconhece a diferença entre o mesmo e o outro, no qual essa diferença é
mesmo rigorosamente inconcebível, isto é, um regime que, por sua vez, corresponde aos laços do
patriarcalismo escravista, nos quais o indivíduo não se reconhece verdadeiramente como tal, ou
dito de outra forma, como algo realmente diferente de seu senhor, de seu grupo, de seu clã etc.
Em resumo, qual é a saída possível para uma subjetividade submetida simultaneamente
a essas duas exigências contraditórias, quer dizer, à exigência de que ela seja distinta do outro, e,
ao mesmo tempo, indistinta do outro? E, se se quiser, como estabelecer uma relação com o outro
onde a alteridade é negada e afirmada ao mesmo tempo? [grifo do original].148
nossa poesia propriamente nacional com Gonçalves Dias, com quem Mário de Andrade tem mais de um
ponto de afinidade.
147
Acompanho aqui a ideia central do ensaio “As ideias fora de lugar”. SCHWARZ, Roberto. Ao
vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.
148
PASTA JR., José Antônio. Volubilidade e ideia fixa (O outro no romance brasileiro). Tradução do
original francês e organização de Cláudio R. Duarte (Sinal de menos, ano 2, n. 4, 2010. Disponível em:
<http://www.sinaldemenos.org>. No original francês: PASTA JR., José Antônio. Changement et idée fixe
(L‟autre dans le roman brésilien), cit., p. 163-164. Não se devem subestimar os efeitos deletérios dessa
conjunção de capitalismo e escravismo. No plano jurídico, por exemplo, a escravidão impossibilitou um
85
Código Civil em todo o nosso século XIX, pois o principal jurisconsulto do tempo sobre o assunto,
Teixeira de Freitas, se recusa a legislar sobre escravos: “fique o estado de liberdade sem o seu correlativo
odioso”, dizia ele, só que o “correlativo odioso” era justamente a base da sociedade de então. Ver
DUTRA, Pedro. A literatura jurídica no Império. Rio de Janeiro: Padma, 2004. p. 118. A partir de 1916,
o Código Civil de Clóvis Beviláqua eleva todos os brasileiros, inclusive os pobres e descendentes de
escravos, a “civis” de jure, mas desde então, e até hoje, qualquer um sabe que eles nunca foram (nem são)
civis de facto.
149
Um dos raros estudos que desenvolvem extensamente o assunto, mas de forma “estrutural” e não
histórica, é DAMATTA, Roberto. Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre
indivíduo e pessoa no Brasil, capítulo do livro Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.
150
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo:
Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo/Fapesp/Editora 34, 2000. p. 186.
Desenvolvo essa mesma citação a propósito do poema “Acalanto do Seringueiro” no Capítulo V desta
tese, p. 20. Outros textos que iluminam a questão da subjetividade brasileira pós-escravista são:
SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. Duas meninas. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997, e os três capítulos finais de HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
86
apenas em seus poemas mas também no conjunto de sua obra de escritor e intelectual.
Por isso, uma imersão na categoria filosófica do sujeito, entendida em seu processo
constitutivo, se torna necessária para, na instabilidade de seus momentos anteriores à
autonomia, captar a forma brasileira de subjetividade.
A condição de uma subjetividade que se sabe existente, mas que não consegue
formar-se (reflexionar e adquirir consciência de si e do mundo), foi estudada também
por Hegel no Capítulo IV, “A Verdade da Consciência de Si Mesmo”, da
Fenomenologia do espírito.151 A uma subjetividade incompleta corresponde uma
consciência cindida. “Com a consciência de si entramos, pois, na terra pátria da
verdade”;152 ora, é justamente a indeterminação dessa consciência de si que forma o
núcleo do esforço combativo da poesia da Mário de Andrade: um esforço de combater a
indeterminação, sua inverdade, e alcançar uma consciência necessária de si e do outro.
Mas, antes, acompanhemos um pouco mais a inverdade dessa consciência cindida. A
consciência de si que não concebe a diferença entre ela mesma e outra consciência,
diferença esta que a limitaria e revelaria sua verdade, é apenas “consciência de si
consigo mesma”.153 A relação dessa consciência com a realidade objetiva é inorgânica:
“o mundo sensível é para ela um subsistir, mas que é apenas um fenômeno, ou diferença
que não tem em si nenhum ser”.154 Em outro contexto, mas com significação análoga,
Mário chamará a ausência de fundamento na realidade da vida mental brasileira de
“desrelacionamento funcional”.155 A consciência de si que não se define reflexivamente
na relação com um Outro foi denominada por Hegel “consciência infeliz”, uma
consciência cuja impossibilidade de constituir-se cria formas próprias à sua cisão. Seu
movimento é perene e não encontra finalidade: “Assim, essa consciência é um desvario
inconsciente que oscila para lá e para cá, de um extremo da consciência-de-si igual a si
mesma, ao outro extremo da consciência casual, confusa e desconcertante”.156 E
prossegue: “Não consegue rejuntar em si esses dois pensamentos de si mesma: ora
conhece sua liberdade como elevação sobre toda confusão e casualidade do ser-aí; ora
torna a conhecer-se como recaída na inessencialidade e como azáfama em torno
151
HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2000. v. 1.
152
HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do espírito, cit., p. 120.
153
HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do espírito, cit., p. 120.
154
HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do espírito, cit., p. 120.
155
ANDRADE, Mário de. Evolução Social da Música no Brasil. Aspectos da música brasileira. Rio de
Janeiro/Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 18 e 21.
156
HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do espírito, cit., p. 139.
87
157
HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do espírito, cit., p. 139.
158
HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do espírito, cit., p. 139-140. Reconhecido na literatura
brasileira como estruturante formal de nossos grandes romances, o par “volubilidade e ideia fixa” é
estudado por Pasta em PASTA Jr., José Antônio. Changement et idée fixe (l‟autre dans le roman
brésilien), cit.
159
Como referência substancial desse tipo de movimento subjetivo na poesia brasileira, penso ser, salvo
engano, esse procedimento o eixo estrutural da poesia de Murilo Mendes.
160
Ver p. 101 deste capítulo, nota 191.
161
Sobre a importância do instante mortal na configuração de obras capitais da literatura, do teatro e do
cinema brasileiros, ver PASTA JR., José Antônio. Le point de vue de la mort (une structure récurrente de
la culture brésilienne). PENJON, Jacqueline (Org.). Voies du paysage. Representations du monde
lusophone. Cahier 14 du Centre de Recherche sur les Pays Lusophones − CREPAL. Paris: Presses
Sorbonne Nouvelle, 2006.
88
dizer “eu”. O que a subjetividade lírica sempre deveu ao privilégio 162 ganha na poesia
brasileira feição escarninha e irresponsável, porque explicitamente exclui a alteridade.
Por consequência, na poesia de Mário de Andrade, a busca do “eu” é permanentemente
busca do “outro”, que lhe possa garantir uma subjetividade moderna, uma igualdade
fundamental.163
Dança e Maleita
I. Dança
162
“... a própria subjetividade lírica deve sua existência ao privilégio: somente a pouquíssimos homens,
devido às pressões da sobrevivência, foi dado apreender o universal no mergulho em si mesmos, ou foi
permitido que se desenvolvessem como sujeitos autônomos, capazes de se expressar livremente”
(ADORNO, Theodor W. Palestra sobre Lírica e Sociedade. Notas de literatura I. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2003. p. 76).
163
Sobre a importância do Outro na poesia de Mário de Andrade, ver MAJOR NETO, José Emílio. A Lira
Paulistana de Mário de Andrade: a insuficiência fatal do outro. 2007. Tese (Doutorado em Teoria
Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2007.
89
Nesse livro, Mário escreve: “Todas as leis proclamadas pela estética da nova poesia
derivam corolariamente da observação do moto lírico”.164 Essas leis tecnicamente são:
verso livre, rima livre, vitória do dicionário. Esteticamente são: substituição da ordem
intelectual pela ordem subsconsciente, rapidez e síntese, polifonismo.165 O uso do verso
livre e a busca de rapidez e síntese são as características que mais saltam aos olhos
nessa parte I. As outras leis técnicas e estéticas, que num primeiro momento podem ser
ofuscadas pela presença do ritmo do verso livre e da aceleração das imagens (rapidez e
síntese), também são encontradas nos versos. A rima livre pode ser lida não apenas nos
finais de versos: gritos/trilhos, dias santos/quotidiano, pança/dança, mas também como
rima de sílabas iniciais, como: praça/pressa/aperto, em que as consoantes “pr” rimam
perfeitamente nos primeiros dois versos e de forma mais vaga no seguinte. A vitória do
dicionário é construída por um processo de evolução interna nas técnicas poéticas
mariodeandradianas. O verso polifônico defendido no “Prefácio Interessantíssimo”
(“Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”) é verticalizado e transformado em
estrofe: “Vida/arame/crimes/quidam”, e o sentido construtivo do polifonismo horizontal
se transforma em “vitória do dicionário”, de palavras cujo poder poético não depende da
sintaxe do verso, mas do significado e das sugestões de seu significado dicionarizado.
As “leis estéticas” da poesia modernista segundo Mário são bastante próximas umas das
outras, pois a exploração das associações livres do subconsciente (“substituição da
ordem intelectual pela ordem subsconsciente”) gera uma simultaneidade de sensações
estéticas e modos expressivos (“polifonismo”)166 que, pela depuração técnica da
linguagem, se apresenta no poema como rapidez e síntese. Assim, como exemplo dessas
“leis estéticas”, poderíamos citar a parte I inteira ou qualquer par de versos escolhidos
ao sabor do leitor. Mas essas leis técnicas e estéticas “derivam corolariamente da
observação do moto lírico”, que, pela sua natureza, é particularmente difícil de sondar.
Nascido do “eu profundo”,167 o moto lírico só é de fato poesia depois da sua elaboração
técnica e formal, o que significa, dialeticamente, que na especificidade da forma poética
está presente uma conformação subjetiva, uma “verdade psicológica”. A multiplicidade
técnica e estética da poesia modernista, então, não são, na esteira da teorização
164
ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura, cit., p. 225.
165
Todos os termos são copiados de ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura, cit., p. 226.
166
“Polifonismo e simultaneidade são a mesma coisa” (ANDRADE, Mário de. A escrava que não é
Isaura, cit., p. 256).
167
“O movimento lírico nasce no eu profundo” (ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura, cit.,
p. 208).
91
BAILADO RUSSO
168
Uma discussão sobre o mesmo tema, que segue outro caminho, pode ser lida em SCHWARZ, Roberto.
O psicologismo na poética de Mário de Andrade, cit.
169
ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura, cit., p. 241-242.
92
A respeito desse poema, Mário escreve a frase: “Substituição da ordem intelectual pela
ordem subconsciente”.170 Guilherme de Almeida busca reproduzir no ritmo do poema a
sensação psicológica de um pião rodando, metaforizado pelo título, que alude a um
bailado russo. Para isso, quebra o ritmo semântico do verso a fim de acompanhar o
ritmo psicológico do giro, inserindo versos muito curtos nas estrofes, cuja sonoridade
das rimas se sobrepõe à lógica da sintaxe. Com Guilherme de Almeida, Mário parece
desenvolver a habilidade de substituir a subordinação do ritmo à sintaxe e semântica por
uma preeminência rítmica e psicológica na composição do poema. Entretanto, se a
170
ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura, cit., p. 242 [grifo do original].
93
coerência rítmica e psicológica dos versos foi sugerida por um poeta virtuose como
Guilherme de Almeida, o padrão do movimento psicológico febril tem, certamente,
outra fonte nesses primeiros anos de Movimento Modernista. Falo do poeta Luís
Aranha. No aniversário de dez anos da Semana de Arte Moderna, em 1932, não houve
qualquer comemoração. Porém, Mário de Andrade registrou esse aniversário de modo
interessante, recuperando um poeta esquecido, Luís Aranha, no ensaio “Luís Aranha ou
a poesia preparatoriana”.171 Ensaio do maior interesse como fonte documental, como
história do Modernismo e como reflexão estética, não poderei segui-lo aqui em toda sua
riqueza, limitando-me à perspectiva da possível recuperação poética que Mário faz dos
procedimentos do amigo poeta. Mário de Andrade nota na poesia do amigo um tipo de
associacionismo de imagens cuja característica principal é a rapidez. Comenta ainda: “A
rapidez em Luís Aranha não é uma adoção da moda modernista. Tecnicamente, é uma
consequência fatal dos seus processos de poetar. E psicologicamente é uma sublimação
terapêutica surgida desde as primeiras manifestações da sua poesia e atravessando ela
inteira. O poeta ama as manifestações acalorantes, curativas da rapidez” [grifo
meu].172 A rapidez das associações de imagens, sendo técnica modernista, é reveladora
de uma conformação psíquica particular. Mário ainda conclui: “Quanto à velocidade
técnica não careço exemplificar. O Poema Giratório é um gasto voluptuário de
velocidade, e uma das mais notáveis criações dinâmicas que conheço. O leitor observe
como apressa gradativamente a leitura e se esbofa numa disparada formidável ao
findar”.173 Pois então observemos:
171
Publicado originalmente em PRADO, Paulo; ANDRADE, Mário de; MACHADO, Antônio Alcântara.
Revista nova. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 2, n. 7, 1932 e republicado em Aspectos da literatura
brasileira. Modernista original e de primeira hora, companheiro de discussões poéticas de Mário, Luís
Aranha compôs seus poemas entre 1921 e 1923, e publicou alguns deles na revista Klaxon. Depois disso,
“mandou a arte às favas e se fez burguês mansinho” (ANDRADE, Mário de. Luís Aranha ou a Poesia
Preparatoriana. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002). O conjunto de seus
poemas foi publicado em ARANHA, Luís. Cocktails. Organizado por Nelson Ascher e Rui Moreira Leite.
São Paulo: Brasiliense, 1989.
172
ANDRADE, Mário de. Luís Aranha ou a Poesia Preparatoriana, cit., p. 80.
173
ANDRADE, Mário de. Luís Aranha ou a Poesia Preparatoriana, cit., p. 80.
94
Incêndio no Krenlin
Granadas, bombas, tiros de canhão se cruzam como confetti numa noite de carnaval
Explosão em mina de petróleo
Corpos de bombeiros a toda velocidade apitando no pavor da noite
Torres se estortegam no espaço e se abatem sobre ruínas
Todos os trens incendiados em desfilada pela linha propagam fogo nas florestas
Os edifícios dançam como ondas na tormenta
Os mares crescendo inundam os continentes
Portos destruídos pela inundação
Chamas de incêndio esbofeteando o céu
Chuva de petróleo alimentando o fogaréu do mundo
O mar de álcool pega fogo devorando todos os navios
Cinzas de vulcões soterrando os continentes
Chimborazo!
Os Andes desabam sobre a América do Sul
Explosões incêndios cataclismos
Chuva de fogo
Vulcões
Terremoto
Maremoto
E o mundo eletrizado gira furiosamente em torno do seu eixo confundindo todos os
países...
“Bailado Russo”, poemas que Mário conhecia e admirava, bem como podem ter
influído consciente ou inconscientemente na elaboração da “impulsão lírica” que gerou
essas “Danças”.175 Assim, operando uma primeira síntese de tendências da poesia
modernista brasileira, podemos considerar “Danças” como um poema que realiza um
“moto lírico” vertiginoso que o poeta coordena e dá forma pelo movimento de uma
dança ou de várias danças, como sugere o título, e nessas danças o poeta dispõe de ritmo
livre e palavras em liberdade (vitória do dicionário), procede por rapidez e
simultaneidade, e, para concluir, consegue substituir a ordem intelectual por uma ordem
subconsciente. A ortodoxia modernista do poema concentrou e ainda concentra a
atenção da recepção para esse seu aspecto mais externo, como o fez o jovem
Drummond, considerando “Danças” “um exemplar de pura poesia moderna”.176
Contudo, essa ortodoxia modernista revela um traço estrutural da subjetividade lírica
mariodeandradiana, que, retomando agora o movimento específico de “Danças”, pode
ser observado em sua parte III:
175
Outra referência importante, embora menos concreta quanto ao espírito e à linguagem, mas que daria,
por assim dizer, o diapasão internacional do poema é o “Ma Danse”, de Blaise Cendrars, que Mário cita
como “exemplo magistral” da utilização do subconsciente na “aplicação poética do lirismo puro” em seu
texto sobre o poeta franco-suíço. Ver ANDRADE, Mário de. Blaise Cendrars [1924]. In: EULALIO.
Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme, depoimento, antologia,
desenhos, conferências, correspondência, traduções. 2. ed. rev. e ampl. por Carlos Augusto Calil. São
Paulo: Edusp/Fapesp, 2001. p. 388-389.
176
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002. p. 60-62.
96
Sucedem quadrilhas...
Gatunos!
Assassinos!
Ciganos!
Judeus!
Quebras formidáveis!
Riquezas fetos de cinco meses
Já velhas como Matusalém.
Baixistas calvos, rotundos, glabros,
Trusts de cana, trusts de arroz,
Açambarcadores de feijão-virado...
A Bolsa revira.
Reviram-se as bolsas.
As letras entram.
Os ouros saem...
Corrida
tombos
vitórias
delírios
banquetes
orquestras...
Os homens dançam...
Danço também
177
Carta de 15 de novembro de 1923. Mário escreve também: “Prego agora a filosofia do dar-de-
ombros”. MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo: Edusp/IEB, 2001. p. 104.
178
ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”. Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 36. São Paulo: IEB, 1994. Cronologicamente, a primeira
manifestação da dança como dissolução de um movimento subjetivo que chegou a um ponto extremo está
nessa estrofe do poema “Rua de São Bento”, de Paulicéia desvairada: “Não tenho navios de vela para
mais naufrágios!/Faltam-me as forças! Falta-me o ar!/Mas qual! Não há sequer um porto morto!/“Can
you dance the tarantella” – “Ach! ya”/São as califórnias duma vida milionária/ numa cidade arlequinal...”.
179
VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 36. No original francês:
Degas Danse Dessin. Oeuvres II. Paris: Gallimard, 1960 (“une sorte d‟ivresse qui va de la langueur au
delire, d‟une sorte d‟abandon hypnotique à une sorte de fureur. L‟état de danse est créé”, p. 1.171).
98
capaz dos momentos que na nossa são mais raros, inteiramente composta pelos valores-
limites de nossas faculdades”.180 O que é incompreensível, o que é inconciliável, o que
se afigura como impossível é transfigurado na dança em uma ordenação cuja lógica é o
movimento abandonado a si próprio, sem outra finalidade a não ser ele mesmo.181 Desse
modo, a dança de palavras é uma forma de a subjetividade lírica de Mário de Andrade
libertar-se de si mesma.
Ao longo das nove partes do poema, a “dança” permite ao sujeito abandonar-se a
um furor que o desloca para fora de si mesmo, na definição de Valéry. Em seu momento
de aceleração, então, o movimento subjetivo se volta sobre si próprio e revela sua lei de
movimento. O desdobramento como busca da verdade se enfraquece e se torna puro
movimento, que se realiza especificamente pela sua falta de sentido ou, dito de outro
modo, de um movimento cuja única finalidade é o seu contínuo mover-se. Aqui, a falta
vai mostrar-se como a verdade do excesso. O sujeito lírico, excedendo seu poder de
mobilidade, se reverte em seu outro: a ausência de subjetividade. Essa verdadeira
volatilização da subjetividade pode ser lida nos versos finais da parte II: “Tolos! A
poeira sobe no ar.../O fumo sobe e morre no ar.../Eu vivo no ar!/Dançarinar!...”, em que
o sujeito lírico mariodeandradiano realiza aquela proeza dionisíaca formulada por
Nietzsche: “Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma
comunidade superior: ele desaprendeu a andar e falar, e está a ponto de, dançando, sair
voando pelos ares”.182 Mas o que se configura como um superpoder da subjetividade
poética, seu tour de force, é o seu verdadeiro contrário dialético. No limite de suas
possibilidades, a subjetividade lírica se entrega àqueles, ainda segundo Nietzsche,
“transportes dionisíacos, por cuja intensificação o subjetivo se esvanece em completo
autoesquecimento”.183 Com isso, a subjetividade lírica de “Danças” está configurada
como uma forma-limite da subjetividade, em que o seu movimento subjetivo procura
ultrapassar sua própria condição de sujeito. O que se percebe é uma subjetividade em
180
VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho, cit., p. 37. Em francês: “Un état qui ne peut se prolonger, qui
nous met hors ou loin de nous-mêmes, et dans lequel l’instable pourtant nous soutient, tandis que le
stable n‟y figure que par accident, nous donne l‟idée d‟une autre existence toute capable des moments les
plus rare de la notre, toute composée des valeurs-limites de nos facultés”, p. 1.172 [grifo do original].
181
VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho, cit.: “Lá, na plenitude incompreensível da água que não
parece opor nenhuma resistência, essas criaturas dispõem do ideal da mobilidade, lá se distendem, lá
recolhem sua radiante simetria” (p. 38). Em francês, “Là, dans la plénitude incompressible de l‟eau qui
semble ne leur opposer aucune résistance, ces créatures disposent de l‟idéal de la mobilité, y détendent, y
ramassent leur rayonnante symétrie” (p. 1.173).
182
NIETSZCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 28.
183
NIETSZCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, cit., p. 27.
99
transe, o qual é criado pela aceleração dos movimentos subjetivos e pela dança de
palavras. Pelo transe da dança, o sujeito lírico vive uma existência no limite, avesso da
existência empírica, e consegue se desvincular das suas relações contingentes. O
significado mais íntimo desse sujeito lírico de “Danças” é o mesmo que Mário notou a
propósito de Luís Aranha: o poeta busca as manifestações acalorantes, curativas da
rapidez. O motivo dessa busca é exposto pelo próprio Mário em carta a Drummond
sobre a gênese de “Danças”:
184
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 67-68. Carta do ano de 1924, sem data. Ver também carta a Bandeira de 22 de
novembro de 1924 sobre o mesmo tema: “O Graça [Aranha] está tão obcecado que acha as minhas
„Danças‟ alegres (é o que me diz por carta recebida hoje. Ora basta saber ler pra perceber a profunda
amargura que há naquele cinismo exteriormente alegre. E o último verso? E toda aquela passagem do „Há
terras incultas além para longe‟, em que eu digo justamente que além do meu eu conhecido, cético, cínico,
eu de encomenda, pra usar na rua, existe o outro meu eu, o verdadeiro, interior, que é caótico, sofredor,
em perene formação como a terra amazônica?” (MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência
Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 154).
185
Trata-se do poema “Tu”, presente em Paulicéia desvairada. O artigo é “O meu poeta futurista”,
publicado no Jornal do Comércio (Edição de S. Paulo), no dia 27 de maio de 1921. Republicado por
SILVA, Mário da. História do modernismo brasileiro. I − Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 227-231.
186
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1962. p. 46. A
mesma agitação sem parada que faz a vivacidade da música popular leva, na cultura erudita, a uma
incapacidade de deter-se sobre a própria natureza, a uma inépcia de autoconhecimento, uma “indisciplina
mental”, enfim, como o mesmo Mário notou ao ler com atenção, em 1921, o poeta Raimundo Correia:
100
“Compreendo e me comove a ânsia terrível dos que procuram a verdade e explodem na filosofia
verdadeiramente lírica de um Farias Brito; admiro a ascensão ideal e sincera de um Bourget; sofro o
contraste entre a fraqueza da carne e a elevação de espírito de um Musset; mas esse borboletear
inconsciente por várias teorias religiosas ou apenas filosóficas, desde o mais negro pessimismo até o mais
calmo cristianismo com um ramal para o ceticismo incolor, outro para o Budismo etc... com uma
aparência muito frágil de sinceridade – isso não compreendo, nem me comove” (BRITO, Mário da Silva.
História do modernismo brasileiro, cit., p. 266).
187
ANDRADE, Mário de. Música de feitiçaria no Brasil. [1933]. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. p. 41.
“[samba rural paulista] Nele tudo é dinamismo, tudo convida a não parar, tudo obriga a continuar
indefinidamente. [...] Há mas é o convite às repetições intérminas, às repetições obsecantes que
embebedam, entontecem, extasiam, exaurem” [1941] (ANDRADE, Mário de. Aspectos da música
brasileira, cit., p. 181).
188
Ver CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. v. II.
Especialmente p. 36-44, sobre música e retórica na constituição da sensibilidade romântica, que se projeta
sobre a sensibilidade brasileira de um modo geral.
101
circunstancial e de exceção, que respondia aos ataques sofridos pelo poeta. Ocorre que
a publicação em revista de “Danças” é simultânea à ênfase nacionalista que Mário dará
a sua obra, presente em “Noturno de Belo Horizonte” e que dura toda a década de 1920.
Ao chegar ao ano de 1930, Mário afasta-se do que chamou de “nacionalismo
pragmático”, dada a vitória fácil e de consequências muito duvidosas do nacionalismo
em poesia,189 e está novamente numa posição de isolamento e sofrimento, tendo sofrido,
por um lado, os ataques da Revista de Antropofagia (2ª Dentição, 1929) e, por outro, as
incompreensões e inventivas do Modernismo carioca, seja pelo recém-convertido ao
catolicismo Tristão de Ataíde, que identificava todo o Modernismo paulista ao
primitivismo pau-brasil, seja pela desautorização de Mário como figura inaugural e
proeminente do Modernismo levada a cabo pela revista Festa. Ao publicar Remate de
Males, Mário supunha publicar seu último livro de poemas e pretendia mapear os
momentos de sua produção poética. Assim, “Danças” cumpre uma função dupla no
livro: registrar sua primeira produção modernista e reagir novamente a um sofrimento
profundo,190 que, dada a conjuntura literária de então, já não mais se afigurava um
momento de exceção. O sofrimento expresso num esgotamento subjetivo, num transe
poético que corresponde a um momento circunstancial de 1922-1923, passa agora a
figurar simbolicamente como sofrimento e esgotamento, operando no nível da
organização de sua obra poética – como um momento de esgotamento subjetivo que
corresponde a um momento da obra poética. O que se acompanha entre as duas
publicações de “Danças” é a passagem do instante de sofrimento e exaustão biográfica
ao momento da exaustão e sofrimento na organização de sua obra poética.
II. Maleita
189
Mário escreve em carta a Drummond de 28 de fevereiro de 1928: “Pois esse tal de brasileirismo está
me fatigando um bocado, de tão repetido e tão aparente. [...] Também publico o Macunaíma que já está
feito e não quero mais saber de brasileirismo de estandarte. [...] Confesso que quando me pus trabalhando
pró-brasilidade complexa e integral (coisa que não se resume como tantos imaginaram no trabalho da
linguagem) confesso que nunca supus a vitória tão fácil e o ritmo tão pegável. Pegou. Eu estava disposto
a dedicar minha vida pro trabalho. Bastaram uns poucos de anos” (SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos
& Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 321).
190
A solução poética contemporânea a esse momento de sofrimento é o isolamento elevado e amoroso
dos “Poemas da Negra” e “Poemas da Amiga”, como demonstrarei no Capítulo III desta tese, p. 140-149.
102
parecido à morte a euforia na qual o eu está suspenso, é uma das mais antigas
cerimônias sociais mediadoras entre a autoconservação e a autodestruição, uma
tentativa do eu de sobreviver a si mesmo”.191 Na poesia de Mário de Andrade, essa
embriaguez narcótica responde à subjetividade cindida, ao sujeito cuja reflexividade não
se completa, devido às conhecidas reposições do atraso nos avanços da modernidade
brasileira, cujas consequências atingem o cerne da constituição do sujeito moderno e
das mediações sociais necessárias do eu lírico e de sua linguagem. De um lado, como
acabamos de ver, a embriaguez narcótica é o ponto de chegada de um excesso de
movimento, formalizado pelo poema “Danças”; de outro lado, porém, a poesia de Mário
de Andrade também vai almejar um tipo de embriaguez narcótica que não ocorre pelo
excesso de movimento, mas pela negação do movimento. A ausência de movimento
buscada nesse outro polo da subjetividade mariodeandradiana é essencialmente um
cultivo da falta de subjetividade em sentido moderno. Tendo em vista esse outro
extremo, de que trata a sequência deste capítulo, observa-se, então, a estruturação
formal dos extremos da subjetividade lírica na poesia de Mário de Andrade, e cumpre
notar que as relações específicas entre a postulação de um sujeito moderno e sua
anulação, que ocorrem de forma simultânea e podem caminhar, em sua obra poética,
para uma aspiração à indiferença, que não deixa de ser um modo de embriaguez
narcótica.
A aspiração à indiferença recebeu de Mário de Andrade um símbolo e um
ambiente: a maleita e a Amazônia. Ambos estão presentes em “Rito do Irmão Pequeno”,
poema longo em dez partes, publicado em Livro azul, 1941, mas datado de 1931. O
mundo amazônico aí comparece por imagens e símbolos que lhe são próprios.
Inicialmente, porém, o poema não nos insere de imediato na ambientação amazônica, o
que ele faz é apresentar-nos o eu lírico e seu interlocutor, como se lê em sua parte I:
Gentes, não creiam não que em meu canto haja sequer um reflexo de vida!
191
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. p. 44.
103
São duas as subjetividades presentes nesses versos: a do sujeito lírico, que se enuncia
em primeira pessoa (“meu irmão”) e a do irmão pequeno, conhecido nessa primeira
parte pela sua qualidade, “tão bonito como o pássaro amarelo”, e pela sua gênese, “ele
acaba de nascer do escuro da noite vasta!”. As duas subjetividades, entretanto, parecem
compostas de naturezas antagônicas. Enquanto o irmão pequeno “bonito como o
pássaro amarelo” surge como um símbolo de vivacidade: colorido, bonito, ágil e que
pode cantar, o sujeito lírico é um eu que se retira do mundo e, nessa retirada, responde a
dois estatutos: ele é um “espírito sábio” e uma “alma humilhada”. A enunciação dos
versos pertence ao sujeito lírico, que imprime neles a sua cadência lenta e longa, reflexo
de sua queixa, de sua retirada do mundo, de certo ideal de repouso e silêncio, em que
pudesse transparecer “a essência duma intimidade incorruptível”. Se ao longo dessa
primeira parte percebe-se que habitam os versos duas subjetividades de naturezas
antagônicas, o ideal do sujeito lírico é que elas se identifiquem por meio da projeção
desse mesmo sujeito, que dará ao irmão pequeno o sabor de seu próprio destino. O
sujeito lírico do poema, enunciador dos versos segundo a natureza de sua própria
subjetividade – a um tempo sábia e humilhada – pode ser conhecido pela dicção do
poema e pelo quanto diz de si, mas quanto conhecemos do irmão pequeno? O que dele
pode nos dizer sua qualidade e sua gênese? Sua qualidade, já foi dito, evoca grande
vivacidade, mas sua gênese tem um poder evocador ainda maior: seu parentesco
literário é com aquele “filho do medo da noite”, Macunaíma. O irmão pequeno não é o
Macunaíma porque, se ambos são filhos da noite, o personagem do romance é “preto
retinto” e “uma criança feia”.192 O que familiariza os dois é a natureza noturna de sua
gênese, bem como o que isso implica na obra de Mário. Essas condições de qualidade e
192
Todas as citações são de ANDRADE, Mário de. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. São Paulo:
Martins, 1979. p. 9.
104
nascimento evocam dois símbolos da obra de Mário de Andrade, que atuam nesse
poema como complementares. O primeiro é a imagem da criança como momento de
vitalidade plena, dos movimentos livres, da curiosidade sem fim. Defrontar-se com sua
imagem infantil é o que faz o sujeito lírico em “Reconhecimento de Nêmesis” (A
costela do Grã Cão), comovente acerto de contas entre a vida do homem maduro e as
exigências da alma infantil. Igualmente criança, e este para sempre, é Macunaíma,
personificação do movimento incessante. Esse mesmo Macunaíma faz a ponte entre os
dois símbolos em questão, pois ele é a criança perpétua e nasce de uma noite vasta. A
“noite” se constitui na obra de Mário como a hora da libertação dos instintos humanos e
sua força. Além de Macunaíma, temos a “Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos”,
que inicia a explosão de ideias e sentimentos no “Noturno de Belo Horizonte”, e
também a “emaranhada forma humana corrupta da vida” que brilha na água noturna, na
noite líquida do Tietê, na “Meditação sobre o Tietê”.193 O significado que Mário atribui
à noite ou aos seres que em sua obra surgem da noite converge com o que o pensamento
poético de Goethe denominou daimon, atualizando para o sujeito lírico moderno esse
termo da filosofia socrática.194 Assim, o irmão pequeno, de acordo com minha análise, é
o daimon do poeta, seu “gênio” no sentido socrático, personificação do seu excesso de
forças vitais. O poeta separa, na enunciação do poema, seu poder de serenidade e
repouso, que constituem o eu lírico, e as forças vitais de movimento e inquietação, que
constituem o irmão pequeno. Nesse sentido, o irmão pequeno é o duplo daimônico do
eu lírico, que nasce “do escuro da noite vasta” (parte I, verso 2).195
Essa parte I apresenta as subjetividades do poema e o padrão de relação entre
elas projetado pelo sujeito lírico. As nove partes seguintes expõem essa relação como
um processo. Dos poemas longos divididos em partes na obra poética de Mário de
Andrade, este é o único em que há uma progressão lógica de uma parte a outra, em que
há um ponto de partida e um ponto de chegada, com uma evolução dialética entre os
193
Sobre o símbolo da “noite” na poesia de Mário, ver CANDIDO, Antonio. O poeta Itinerante. O
discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 268. Ver também Capítulo IV desta tese, p.180-
195.
194
Em seu poema sobre as “palavras primordiais”, as “Urworte”, o daimon é a primeira a ser designada.
195
Roger Bastide argumenta que dois traços principais e fundamentais caracterizam a poesia de Mário de
Andrade: a dança e o diálogo. O primeiro traço, que calou fundo no próprio Mário, é constantemente
utilizado nesta tese como elemento fundamental de sua poesia. Porém, nesse momento de entendimento
inicial de “Rito do Irmão Pequeno”, é necessário ressaltar o segundo traço, do diálogo: “Em segundo
lugar [em primeiro vem a dança], seu lirismo é um diálogo. Enquanto para Carlos Drummond de
Andrade, um mais um é igual a um, a dualidade conduz à unidade, para Mário de Andrade, ao contrário,
um é igual a dois” (BASTIDE, Roger. Mário de Andrade [1940]. Poetas do Brasil São Paulo:
Edusp/Duas Cidades, 1997. p. 79).
105
dois. Os outros poemas de Mário que possuem essa forma, tais como “Danças”,
“Poemas da Negra”, “Poemas da Amiga”, “Girassol da Madrugada”, “Grifo da Morte”,
são elaborados por um procedimento de variação expressiva entre as partes, mas não
progressiva. Adiantando um pouco as conclusões da análise, para explicar a sua
estrutura, afirmo que a finalidade do sujeito lírico é pacificar o seu daimon. É o
ensinamento da indiferença maleitosa ao seu daimon que o poema expõe como um
processo. Resumindo brevemente os passos do poema todo, de que recuperaremos
posteriormente para análise das partes que mais interessam a este estudo: após o
nascimento do irmão pequeno na parte I, o eu lírico o leva para caçar cotia na parte II,
para que o cansaço bom o ensine o repouso indiferente. O desenvolvimento desse
ensino é ritual, começando com a aprendizagem física da preguiça por meio do cansaço,
passando pelo abandono da confiança no progresso (parte III), pela absorção do peso do
passado e do ritmo lento da natureza (parte IV), culminando em um ritual propriamente
dito, em que “bois pesados” são sacrificados para deixar “da gente o mundo tão
longínquo” (parte V). A esse ápice ritual segue-se o “momento da dor”, expiação
necessária para se chegar à “coincidência vegetal” (parte VI). As três partes seguintes
são expressões de um deleite maleitoso, exercício da preguiça “com vagar”. A preguiça
domina a parte VII; a ausência de curiosidade, a parte VIII; a satisfação da “alma, à
vontade”, a parte IX. A parte X, que finaliza o poema, narra o dilúvio que toma o
mundo da subjetividade, o período mítico intermediário, em que só os dois e as
entidades míticas habitam o mundo, e o possível surgimento de um novo mundo.
Nesse processo ritual, o elemento mais necessário para a sua consecução pode
ser lido na parte III:
O calor vai subindo, vai subindo. O céu está branco e reflete numa água totalmente
branca, um branco feroz, desesperante, luminosíssimo, absurdo, que penetra pelos
olhos, pelas narinas, poros, não se resiste, sinto que vou morrer, misericórdia! O melhor
é ficar imóvel, nem falar. E a gente vai vivendo uma outra vida, uma vida metálica,
dura, sem entranhas. Não existo.196
... espécie de indiferença extasiada por tudo, que é o mais permanente característico do
maleitoso. Uma calma incomparável, uma espécie de preguiça maravilhosa de ser, em que o
próprio ar parecia com pouca vontade de ser ar, de ser imponderável, estava cheinho de
partículas roseadas roçando pela mão da gente, pela boca, sem volúpia mas com uma doçura
feminil. Ninguém que não provou tarde do Norte, tarde equatorial, não pode imaginar o que é
serenidade [...]. Viver numa lentidão danada, naquele fim de mundo, atrasado do mundo pelo
menos um mês em tudo, sem jornais, sem telefone, sem médico, pensando no que! Não
pensando, numa preguiça organizada... [...] Por isso eu sonho com a maleita, que há-de acabar
minha curiosidade e acalmará minha desgraçada vaidade de precisar ser alguém nesta
concorrência aqui no Sul.197
196
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 162. João Luiz Lafetá, em
boa análise de “Rito do Irmão Pequeno”, a que voltarei em momento posterior, dá pouca importância à
experiência amazônica de Mário e enfatiza os arquétipos psicanalíticos das imagens. No entanto, chama
com grande acerto a esse “enorme sol branco” de “luz de inexistência”, que é um dos temas abordados
nas etapas seguintes desta análise (LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade. São Paulo: Martins
Fontes, 1986. p. 212).
197
ANDRADE, Mário de. Maleita II. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.
p. 363-365.
108
198
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, cit., p. 45.
199
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, cit., p. 67.
200
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, cit., p. 67.
109
infelicidade”.201 A maleita, como o idílio dos lotófagos, nega, sem antagonizar o curso
da história, a própria História;202 nega, também, sem antagonizar, a dor e a
racionalidade autoconservadora na formação do sujeito; nega toda e qualquer existência
racional, humana, por fim. No entanto, regressiva como é, o encanto dessa existência
sem violência não pode ser sonegado. Os homens, sob o peso da incorporação social,
“não conseguem imaginar nenhuma felicidade que não se nutra da imagem dessa proto-
história: „assim prosseguimos a viagem, com o coração amargurado‟”.203 A última fala é
de Ulisses, ressentindo a renúncia à lotofagia. A nostalgia de estados anteriores de vida
ocorre com mais pungência quando o peso da nova socialização é recente e tem os
estágios anteriores como reminiscência. E mais, a lembrança do estágio anterior é
sempre um parâmetro para medir o preço de violência e automutilação que a civilização
exige dos homens que a compõem. O que está fora do sofrimento do tempo vivido
sempre acena com uma promessa de felicidade, uma redenção simbólica e utópica. A
utopia de uma humanidade livre da necessidade orientou a sociedade totalmente
modernizada para a utopia civilizada, para o potencial libertador que continha a
violência da racionalização, da socialização, da autonomia do sujeito. Nesse sentido, o
pensamento de esquerda na Europa esclarecida pôde dialetizar o preço da racionalidade
real com a promessa da racionalidade emancipada. No entanto, quando a racionalidade
real se impõe sobre uma sociedade sem seus aspectos civilizados – formação do sujeito,
dominação social mediada, universalidade de direitos e deveres –, ou seja, quando
dificilmente se distingue a racionalidade do seu contrário dialético, a dominação e a
barbárie, as promessas de felicidade regressivas, que se realizam a despeito do
progresso, acenam com um poder de sedução revigorado. Assim, a maleita na poesia de
Mário de Andrade é uma resposta poética a um tipo de progresso que mal se distingue
da pura barbárie. Antes, de um progresso que se impõe pela via paradoxal da renovação
ainda mais forte da barbárie. Dessa perspectiva, a preguiça maleiteira não reflete a
poesia de uma sociedade que desconhece o progresso; ao contrário, é a expressão de um
sujeito lírico e de uma linguagem que só conhecem o progresso, a cada passo de seu
201
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, cit., p. 67. Sobre o
“narcótico das classes oprimidas”, mas em chave mais desoladora, é instigante notar como o símbolo da
maleita na poesia de Mário parece idêntico ao que foi o banzo africano na nossa história da escravidão.
Banzo que foi para os escravos a última forma de suportar o insuportável.
202
“Ela remete à proto-história” (ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do
esclarecimento, cit., p. 68).
203
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, cit. O trecho entre aspas
simples é uma citação da Odisséia.
110
avanço, pela sua face bárbara. Nas paragens estagnadas da Amazônia, o que no fundo
Mário expressa é o curso da história universal por uma sensibilidade de poeta brasileiro.
A articulação consciente de um processo poético que trabalha com elementos
“antiprogressistas” supera seu aspecto fundamental de apego à “proto-história” e se
configura também como uma forma de crítica histórica pela via da poesia,
principalmente pelo ato de levar ao extremo a configuração regressiva da subjetividade
que não se forma. Assim, o predomínio do verso livre extenso mantém, ao longo do
poema, a disposição preguiçosa da subjetividade, mas a maleita não é o ponto de
chegada do poema, pois o rito tem ainda outros passos para cumprir sua função.
poeta desenvolveu plenamente as sugestões que essa convicção, dúbia no plano político,
podia render em termos literários. Explorada em sua dimensão vegetal, coerente em si
própria e cuja lógica reproduzia em um plano mais elevado aquilo que a civilização
humana apenas esboçava, a Amazônia cumpria para Mário, com cem anos de atraso, o
que a natureza cumpriu, como crítica da civilização industrial, no Romantismo inglês de
Wordsworth. Contudo, essa natureza organizada é disposta poeticamente para abrigar a
falta, a subjetividade que paradoxalmente cultiva sua inexistência, seu processo de não-
vir-a-ser. Ao contrário de Wordsworth, a subjetividade lírica de “Rito do Irmão
Pequeno” em contato com a natureza amazônica não é uma subjetividade mais completa
e reflexiva, cuja meditação faz o balanço da vida em uma emotion recollected in
tranquility,204 mas uma subjetividade que se desfaz no seio da terra, operando um
verdadeiro regressus ad uterum. Esse tema do regressus ad uterum foi notado por
Lafetá a propósito do processo ritual do poema: “Em resumo: o poema narra uma
experiência involutiva, as etapas progressivas da desmaterialização da realidade até o
ponto em que se encontra um universo indiferenciado, primordial, de onde os seres
renascerão”.205 O regressus ad uterum é uma aproximação do limiar entre vida e morte,
entre existência e inexistência. No processo poético de “Rito do Irmão Pequeno”, ele é
uma etapa no caminho de não-vir-a-ser. Esse ideal de inexistência, na poesia
modernista, não começa com esse poema de Mário, mas tem um antecessor
injustamente esquecido, Augusto Meyer, que em “Oração ao Negrinho do Pastoreio”,
em um sofisticado processo de subjetivação do folclore brasileiro, solta a súplica:
“Negrinho santo, Negrinho,/quero aprender a não ser!”.206 Aprender a não ser é o
significado íntimo de “Rito do Irmão Pequeno”, significado do qual Mário de Andrade
desenvolve as possibilidades radicais. Como o poema apresenta o aprendizado do não
ser, a subjetividade lírica em seu processo involutivo precisa se desfazer daquilo que a
constituiu. Para Mário, era preciso abandonar o engajamento pelo Brasil, destruir a
brasilidade de que se tinha nutrido: para isso, é necessário “sacrificar os bois pesados”.
O “boi” é na obra de Mário símbolo do povo brasileiro, principalmente em sua forma
204
WORDSWORTH, William. Preface to the second edition of several of the foregoing poems,
published, with an additional volume, under the title of “Lyrical Ballads”. The complete works of William
Wordsworth. London: Macmillan and Co., 1905. p. 859.
205
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade, cit., p. 203. Contudo, não acompanho a análise de
Lafetá em sua conclusão sobre o significado do regresssus, quando diz: “O horizonte do texto é o Nirvana
– princípio e fim da vida, encontro e reunião sem dor de sujeito e objeto, descoberta da Divindade” (p.
203).
206
MEYER, Augusto. Poesias 1922-1955. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957. p. 127.
112
207
KNOLL, Victor. Paciente arlequinada. Esboço de uma hermenêutica do imaginário na obra poética de
Mário de Andrade. São Paulo: Hucitec/Secretaria de Estado da Cultura, 1983. Sobre as imagens do povo
brasileiro: “De um lado, o jaboti como imagem do brasileiro exprime a sua diversificação e dilaceração –
o seu caráter arlequinal; de outro lado, o boi representa a totalidade dessa diversidade” (p. 150); sobre o
Boi Paciência: “Podemos então dizer que o boi Paciência é a imagem do Pathos do povo brasileiro em
seu modo de ser como sofrimento e paixão – e isto através de sua presença” (p. 153) [grifo do original].
208
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade, cit., p. 216.
113
Trepados na castanheira
Viveremos sossegados
Enquanto a terra for mar;
Pauí-Pódole virá
Nas horas de Deus trazer
A estrela, a umidade, o aipim.
quebra o ritmo do poema até então. É o próprio Mário que anota no seu “exemplar de
trabalho” de seu livro Poesias (1941) a propósito dessa última parte do poema:
Depois de todo o lirismo sensível, caricioso, acariciante, quente e misterioso dos outros
poemas [as partes do poema], uma ideia nítida dita com nitidez, implacável. A paixão, o
lirismo desapareceram. O poema soa como um enunciado de verdade, uma fórmula
matemática, em que não estou mais em mim. O poema é independente de mim. E é de fato
feito por um outro. Tudo se modificou: ritmo, o próprio estilo da 1ª e última quadra. Durante
todo o poema eu sou um espírito que sabe. No último X sou um espírito mandado. Por
quem?209
209
ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987. p. 44. Esse curto escrito de Mário sobre o “Rito do Irmão Pequeno” é
um dos poucos momentos em que Mário não é o melhor guia para a compreensão de sua própria poesia.
Se o trecho citado ainda mantém a clarividência do poeta, há outros que se desviam do poema
propriamente dito, quando, por exemplo, identifica brancos com fortes e prepotentes, e pretos com fracos
e escravos; ou quando diz que a parte X possui psicanaliticamente “a autopunição do burguês que se
reconhece culpado” (p. 43). Não consigo chegar a nenhuma dessas conclusões ao ler analiticamente o
poema. Com razão afirma o poeta “O poema é independente de mim”.
210
Ver p. 97 deste capítulo.
211
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 76 [grifo do original].
115
O que explica Mircea Eliade, como estudioso do mito, foi dito, com palavras de poeta,
pelo próprio Mário de Andrade a Manuel Bandeira, em carta de 28 de março de 1931, a
respeito de “Rito do Irmão Pequeno”:
***
212
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
496. Os colchetes da citação estão no texto original.
116
e essa matéria, refluindo sobre si próprios, mostravam sua verdade histórica e suas
possibilidades mítico-históricas. O resultado poético é poderoso, fazendo com que
elementos supostamente regressivos sejam levados ao seu limite e revertam no seu
contrário. A estagnação amazônica e a dança narcótica, fora da forma artística, têm um
valor diferente para a interpretação histórica, como índices do atraso e da perpetuação
da via colonial. Incorporadas à elaboração poética, pelo movimento subjetivo extremado
e paradoxal que as preside, ambas passam a operar em outro registro, reflexivo e
autônomo, próprio da independência inconformista que demanda toda obra de arte
autêntica. A função desses elementos, dança e maleita, na composição da paisagem
social e cultural brasileira e na composição da poesia de Mário de Andrade é
radicalmente diferente em cada um deles, embora a relação entre essas diferentes
funções seja o seu nexo fundamental, que ativa a hermenêutica interpretativa e crítica.
Não se trata, então, de adesão poética ao Brasil real, mas de um processo de destruição
desse Brasil real e de recriação brasileira de um Brasil possível, em que atuam os
extremos da subjetividade lírica, com o seu dionisismo fundamental. Esse processo
destrutivo do Brasil decorre de uma demanda de libertação da própria subjetividade
lírica, que só a alcança negando-se e recriando-se pelo mito, em que ressurge, em
potência, libertada junto com a matéria e os materiais brasileiros de que se constitui.
117
213
“Sou muito afetivo e por isso dedico um verdadeiro amor humano às coisas que me cercam”
(ANDRADE, Mário de. Resposta ao Inquérito sobre mim pra Macaulay [1933]. Entrevistas e
depoimentos. Organizado por Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: T.A. Queiroz, 1983. p. 39).
214
Ágape é o amor-fé, Filia o amor-amizade e Eros o amor erótico. O conceito de filia está no diálogo
Lisis, de Platão, que se complementa com os diálogos sobre o amor O banquete e Fedro.
215
E não apenas na obra poética. Para Mário, o amor tem uma função hermenêutica, pois é a forma
fundamental e mais elevada do conhecimento humano. Em seu curso sobre Estética Musical no fim da
década de 1920, publicado postumamente, o amor-amizade preside a intenção artística, a obra de arte e o
entendimento dela. Ver ANDRADE, Mário de. Introdução à estética musical. Organizado por Flávia
Camargo Toni. São Paulo: Hucitec, 1995.
118
216
Outras expressões da obra literária de Mário de Andrade se referem a essa disposição com clareza:
“Há como que uma sem vontade do momento de gozo. Uma preguiça. Ora! Está-se tão bem assim sem
gozar, gozando o sem gozar...” [1925] (ANDRADE, Mário de. Primeiro andar. Obra Imatura. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 121); “A satisfação, como a felicidade, é um empobrecimento” [1941]
(ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 216). Ver
também FREUD, Sigmund: “É o destino do amor sensual extinguir-se quando se satisfaz; para que possa
durar, desde o início tem de estar mesclado com componentes puramente afetuosos – isto é, que se acham
inibidos em seus objetivos – ou deve, ele próprio, sofrer uma transformação desse tipo” (Psicologia de
grupo e análise do Ego. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. XVIII, p. 146).
217
Sobre o “pansexualismo” do poeta, ver o capítulo “O sublime inferno” de CASTRO, Moacir Werneck
de. Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Esse livro foi muito produtivo na
orientação do estudo do amor sexual na obra do poeta. Ver também p. 149-159 deste capítulo.
218
Tento aqui desenvolver o tema freudiano da bissexualidade, em sua manifestação na poesia de Mário
de Andrade, tendo como ponto de partida o que Antonio Candido denomina “impulso sexual irregular”
(CANDIDO, Antonio. Pomo do Mal. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993). Em seu
estudo sobre “Louvação da Tarde”, Antonio Candido refere-se ao símbolo da noite na poesia de Mário
como correspondente, entre outras coisas, “à vida recalcada, aos desejos irregulares, ao inconsciente que
assusta e a tudo que a sociedade oprime” (CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante. O discurso e a cidade.
São Paulo: Duas Cidades, 1998. p. 268). Como impulsos ou desejos reprimidos, eles são um momento
anterior à ascensão da bissexualidade à consciência. Uma vez percebida pela consciência, a
bissexualidade pode dirigir-se para seus objetos próprios, em uma expressão poética refletida, e não
imersa no subconsciente. Sobre a “disposição bissexual geral dos animais superiores”, ver FREUD,
Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.
VII. “Desde que me familiarizei com a noção de bissexualidade, considerei-a o fator decisivo, e, sem
levar em conta a bissexualidade, creio que dificilmente seria possível chegar a uma compreensão das
manifestações sexuais que podem efetivamente ser observadas em homens e mulheres” (p. 226). A
expressão “impulsos sexuais irregulares”, usada por Antonio Candido, consta nesse texto de Freud (p.
180).
119
cada uma delas. Antes, podemos depreender, ainda no campo expositivo, algumas
consequências dessa natureza pan-erótica – que se relaciona eroticamente com todos os
objetos do mundo – e, ao mesmo tempo, sexualmente múltipla e reprimida. A renúncia
pode implicar aspectos subjetivos diversos, dependendo da disposição do sujeito em
relação ao mundo. Em sua vertente elevada, a renúncia conduz à sublimação, à retenção
e à manutenção do objeto amoroso em uma atmosfera elevada e intangível, aspirando à
completude do amor platônico. Contudo, a poesia amorosa de Mário de Andrade está
sempre transitando entre os níveis de elevada espiritualidade e de uma vivência mais
carnal e mundana. Nesta ponta, a renúncia não se sustém e busca uma compensação
violenta, as “raivas de gozar” – do poema “Carnaval Carioca”. Como a renúncia pode
ser incompleta, o poeta leva a ambivalência ao extremo: se em relação a alguns objetos
a renúncia é mantida, em relação a outros ela é suprimida e resulta na realização do
desejo erótico.
Carnaval...
Minha frieza de paulista,
Policiamentos interiores,
219
Mais de uma vez Mário postulou o amor como forma de conhecimento ou como elemento fundamental
dele: “Não pode haver crítica clarividente sem amor” (ANDRADE, Mário de. Álvares de Azevedo – I
[1931]. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005. p. 285); e “a inteligência
artística, que há-de sempre funcionar impulsionada por um grande amor. [...] O amor é uma faculdade
principalíssima da inteligência” [1945] (ANDRADE, Mário de. O banquete. Belo Horizonte: Itatiaia,
2004. p. 62).
120
Temores de exceção...
E o excesso do goitacá pardo selvagem!
(versos 8-13)
220
A relação do toque pode também ser um desdobramento da relação de pertencimento, parte
fundamental, segundo Mário, para o conhecimento: “é humanamente impossível se penetrar o sentido
total do que não nos pertence” (ANDRADE, Mário de. Uma Suave Rudeza [1939]. O empalhador de
passarinho. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 69).
121
nos beiços, o eu lírico nota uma “ruga longínqua”, traço que abruptamente espiritualiza
o caixeiro/baiana, vestindo-o de uma “angústia indistinta ignorante...” (v. 57). Essa
espiritualidade quase espontânea completa a imagem de um homem que o eu lírico do
poema recobre de afeto e coroa com erotismo, pois o poeta declara que só ele pôde
gozar essa ruga longínqua e evoca, logo em seguida: “E talvez a cama de ferro curta por
demais...” (v. 59). Importante notar como o conhecimento social e psicológico de um
homem no carnaval se complementa de um conhecimento corporal que pode ser levado
às últimas consequências.
Há um feixe de características heteróclitas que convergem e se aglutinam e se
misturam no carnaval do poema, que o poeta mimetiza com uma linguagem alegre e
viva, conduzindo por ela a animação da festa. A diversidade de elementos nativos e
estrangeiros, a leniência dos olhares da ordem (policial, marido) sobre as liberalidades
do carnaval formam um quadro muito vivo no poema. No entanto, como não se tem
aqui a intenção de esgotá-lo, mas somente descrever a natureza das relações entre
conhecimento e afetividade sensual na subjetividade lírica de Mário de Andrade, não
me deterei nesses aspectos da relação estrangeiro/brasileiro, ordem/desordem no poema.
Voltando, então, ao tema, essa mistura de conhecimento intelectual e dos sentidos se
repõe no poema depois de uma rodada de observação do ambiente, quando o poeta
primeiro declara suas intenções intelectuais, regidas pela distância civilizada do olhar:
221
A nota sensorial faria parte, talvez, de um traço decisivo de nosso modo de ser, de explícitas
conotações de amor doméstico e familiar: “precisão de carinhar, tão brasileira” (ANDRADE, Mário de.
Terminologia Musical [1933]. Música, doce música. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006. p. 54), cujo conteúdo
meio regressivo de transpor para a vida social aspectos da vida familiar é, ao contrário, sentido pelo poeta
como uma compensação: “a doçura, apesar de tudo, desta nossa vida brasileira” (ANDRADE, Mário de.
Conversa à Beira do Cais [1938]. Os filhos de Candinha. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006. p. 28).
123
Sobre essa dança da moça entregue a si como em um ritual, Mário escreve em carta a
Drummond de 10 de novembro de 1924:
... um fato a que assisti em plena avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia
uma negra moça que dançava melhor do que os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma
habilidade, mesma sensualidade mas ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um
pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela,
não. Dançava com religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este é
um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é
exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade. Bom! Não é preciso ninar
a vida pra ser feliz dentro dela.222
Renúncia
Chove?
Sorri uma garoa cor de cinza,
Muito triste, como um tristemente longo...
A casa Kosmos não tem impermeáveis em liquidação...
Mas neste largo do Arouche
Posso abrir meu guarda-chuva paradoxal,
Este lírico plátano de rendas mar...
224
Para um comentário breve, mas pertinente, da urbanidade do sujeito lírico nesse poema e do equilíbrio
estético de imagens e linguagem, ver LAFETÁ, João Luiz. A representação do sujeito lírico na Paulicéia
desvairada. A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004. p. 370-371.
128
as mãos com pudor e mesmo a posição de voyeur é desfeita pelo alumbramento do “raio
de Sol”, com maiúscula, que desfaz a chuva e a máscara. Aquilo que é realmente
importante para o sujeito lírico é o que o emudece. Quando o poeta percebe “raio de
Sol”, o poema acaba. O leitor apenas entrevê o amor do poeta, pois este interrompe o
fluxo lírico justamente no momento em que saberíamos o que o poeta realmente quer na
paisagem que descreve. Trata-se de uma renúncia do poeta diante da expressão
amorosa, que se deixa ver somente por breves e pequenas frinchas. O elemento de
renúncia é, portanto, muito indiscreto, vinculado como está a um recalque mais frívolo,
ligado à urbanidade e disponibilidade de um arlequim na Paulicéia. Em momento mais
maduro e reflexivo de sua obra poética, a renúncia vai conformar uma situação amorosa
mais densa, com um objeto amoroso bem definido e um sujeito lírico que utiliza menos
disfarces e expõe com mais precisão e delicadeza as vicissitudes de um amor frustrado
ou irrealizável.
Esse amor irrealizável, o amor por uma “rica senhora”, é o tema do ciclo de
poemas “Tempo de Maria”, do livro Remate de Males. A “Maria” em questão é, da
perspectiva biográfica, o objeto amoroso mais reconhecível da poesia de Mário de
Andrade: trata-se de dona Maria Carolina, filha de dona Olívia Guedes Penteado,
casada, e por quem Mário se apaixona já sabendo da impossibilidade de sua realização e
da não correspondência de sua amada. Os aspectos externos e biográficos desse amor,
que podem ser acompanhados em suas cartas, são menos relevantes e auxiliam pouco,
ou quase nada, na compreensão dos poemas do ciclo. Suas referências internas, como o
fato de tratar-se de uma mulher comprometida, rica e prestigiada socialmente, são
suficientes para compor o quadro de renúncia e amor platônico, com frequentes pulsões
incontroladas de agressão e transferência que perpassam os poemas. Essa necessidade
de contenção do sujeito amoroso se expressa, também, na escolha das formas poéticas.
O poeta dispõe de material poético prefigurado pela tradição, seja pela tradição da
formas fixas e da linguagem do cancioneiro popular brasileiro: “Moda do Corajoso”,
“Lenda das Mulheres de Peito Chato”, seja pelas referências às formas herdadas da
poesia europeia, como a cantiga de amigo: “Cantiga do Ai”, ou os decassílabos brancos
cuja fonte é o Romantismo inglês (e também o brasileiro): “Louvação da Tarde”. Além
desses, há também a continuação da experiência modernista da associação livre em
129
“Amar Sem Ser Amado, Ora Pinhões”.225 Nos seus demais ciclos de poemas amorosos:
“Poemas da Negra”, “Poemas da Amiga” e “Girassol da Madrugada” não há uso de
formas fixas, pois neles a presença do objeto amoroso e a sua relação com o eu lírico é
que estruturam a forma (como veremos posteriormente).
Os poemas que compõem o ciclo “Tempo de Maria” versam principalmente
sobre o sofrimento de um amor irrealizável, sobre a força de um amor que arrebata o
sujeito lírico e a dor pungente no peito do amante que tem de refreá-la; além disso, os
poemas do ciclo são extensas experimentações com os modos de sentir e se expressar
do sujeito poético brasileiro. Assim, um trabalho de sensibilidade brasileira e linguagem
brasileira se misturam à necessidade de expressão amorosa. O primeiro poema, a “Moda
do Corajoso” recupera a tradição mais popular da modinha, mas a insufla com a nobreza
do amor elevado. A mescla é notável e interessante, e resulta numa mistura peculiar de
Petrarca e Domingos Caldas Barbosa, unidos na linguagem popular brasileira. Desse
modo, vem o amor platônico: “O meu corpo encasquetou/De não gostar senão de
uma.../Pois, pra não fazer feiúra,/Meu espírito sublima/O fogo devorador” (versos 22-
26), e o arremate modinheiro: “Faz da paixão uma prima/Faz do desejo um bordão,/E
encabulado ponteia/A malvadeza do amor” (versos 27-30). Esses versos finais lembram
o masoquismo dengoso de nosso principal autor de modinhas, Domingos Caldas
Barbosa, como se pode ler nestes versos: “Eu sei, cruel, que tu gostas,/Sim gostas de me
matar;/Morro e por dar-te mais gosto,/Vou morrendo devagar”, do poema “Vou
Morrendo Devagar”. Mário, então, acrescenta ao trabalho de linguagem a recuperação
de um traço psicológico, trazendo para seu poema essa fonte árcade mais popular que
definiu “de modo explícito os traços afetivos correntemente associados ao brasileiro na
psicologia popular: dengue, negaceio, quebranto, derretimento”.226 O segundo poema do
ciclo, “Amar Sem Ser Amado, Ora Pinhões”, está estruturado na associação livre
modernista e em detalhadas variações rítmicas e rímicas, como veremos mais adiante. O
terceiro poema, “Cantiga do Ai”, recupera a tradição da chamada lírica trovadoresca,
compondo uma “cantiga de amigo”, com versos paralelísticos rimados e sentimento de
ausência. A diferença em relação à tópica tradicional é que nesta a voz lírica feminina
lamenta o amante que partiu, e no poema de Mário é a voz lírica masculina do amante
225
Os poemas do ciclo Tempo de Maria são: I. Moda do Corajoso; II. Amar Sem Ser Amado, Ora
Pinhões; III. Cantiga do Ai; IV. Lenda das Mulheres de Peito Chato; V. Eco e o Descorajado; VI.
Louvação da Tarde; VII. Maria.
226
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1959. v. I, p. 149.
130
que parte de uma amada de “olhar frio”. A apropriação pessoal da forma tradicional se
repete na “lenda” em redondilhas maiores do quarto poema do ciclo, “Lenda das
Mulheres de Peito Chato”. Aqui, Macunaíma gostou de uma moça bonita e casada,
Maria, mas a recusa da moça foi vingada pela mutilação de seus peitos, substituídos por
dois cachos de bananeira. Pela lógica da lenda, é essa narrativa que explica por que as
amadas são hoje assim, duras e de peito chato. A compensação violenta transfigurada
nessa lenda cede o passo ao humor amargo da brincadeira responsorial do quinto
poema, “Eco e o Descorajado”, em que, feito um oráculo apalhaçado, o eco responde a
perguntas fundamentais da vida do poeta com um eco rímico. Esse eco, nas duas
primeiras estrofes, rima com o segundo verso da estrofe, e na última estrofe, a mais
carregada de humor amargo, rima com o verso imediatamente anterior.227 A essas
transposições e desvios do amor frustrado por meio de disfarces formais se segue um
poema da maior seriedade, de relacionamento muito vago com o ciclo como um todo,
“Louvação da Tarde”. Esse poema, axial na obra poética de Mário de Andrade e que
será analisado em mais detalhe no Capítulo IV desta tese, trata da questão amorosa um
tanto de passagem nos versos 69-91, num poema de 165 versos, e seu tratamento
corresponde a uma parte do poema, cujo horizonte é mais amplo e contém uma das
grandes meditações que constitui o eixo de sínteses da obra poética de Mário.228 Por
fim, o sétimo poema do ciclo, “Maria” é uma curiosa expressão platônico-realista desse
amor frustrado, tingida de fina ironia quanto às prerrogativas sociais e o cotidiano
familiar e social da amada.
Essa extensa e variada gama de referenciais, que inclui componentes poéticos,
verbais e realísticos, pode ser agrupada e estudada em conjunto da perspectiva da
renúncia amorosa, figurada em amor platônico, no contexto da estruturação social
brasileira em 1920. Contudo, para que a especificação esteja presente e ancore a
reflexão crítica, é aconselhável partir da leitura de um poema e iluminar a partir dele,
com as pontes possíveis com outros poemas, as questões conceituais concernentes à
renúncia amorosa na poesia de Mário de Andrade e a especificidade brasileira de sua
227
Para dar mais visibilidade à descrição do poema, cito a sua primeira estrofe: “Neste lugar
solitário/Onde nem canta o sem-fim,/Choro. E um eco me responde/Ao choro que choro em vão./Eco,
responda bem certo,/Meu amigos me amarão?.../E o eco me responde: – Sim”.
228
Sobre esse eixo de meditações poéticas, Mário escreve em carta a Drummond, de 24 de agosto de
1944, ao falar de uma imaginada “Meditação sobre o Amazonas”: “Seria assim um coroamento de meus
caminhos, como o „Noturno de Belo Horizonte‟, como a „Louvação da tarde‟, como os „Poemas da
amiga‟ são também fins de caminho” (SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência
de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 526).
131
229
BRITO, Mário da Silva (Org.). KLAXON − mensário de arte moderna. Edição fac-similar (1922-
1923). São Paulo: Livraria Martins, n. 8/9, p. 13-15, dez./jan., 1972. Há ainda algumas passagens desse
“Poema Abúlico” em “Amar Sem Ser Amado, Ora Pinhões”, como essas passagens do poema de Klaxon:
“Mário, paga os 200 réis!” (verso 5), recuperado quase inteiro no verso 5 de “Amar Sem Ser Amado...”, e
“As maretas das calçadas vêm brincar a meus pés” (verso 6) imagem modificada em “E vem lavar minha
retina/Maretas de poeira fina” (versos 27-28 de “Amar Sem Ser Amado...”).
230
Sobre Luís Aranha, ver ANDRADE, Mário de. Luís Aranha ou a Poesia Preparatoriana. Aspectos da
literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. Ver também Capítulo II desta tese, p. 92-94.
132
“Só penso nela!...”. Não parecia, pois entre as multiplicações do poeta, está um amor-
paixão repentino pela moça que senta à frente dele no bonde, e a conclusão: “Porque
enfim é amante de poeta/Toda e qualquer mulher que passe” (versos 70-71). Como
explicar a relação da sensualidade incontida do poeta modernista com a unificação do
amor em torno de uma mulher só, única e inatingível? A causa psicológica não será
difícil de imaginar, pois, recusando-se inicialmente a enfrentar o amor frustrado por
Maria, o poeta recorre àqueles desvios, substituições e transferências, tanto mais
acelerados e fugazes quanto maior é a presença latente da inesquecível Maria. Assim, o
borboletear por sensações efêmeras não é um procedimento autossuficiente no poema,
mas, sim, uma consequência do sentimento tão pouco modernista àquela altura, exposto
na estrofe citada. Mas se a causa psicológica não é difícil de adivinhar, como o poeta
lida com essa dualidade de posturas – modernista e platônica – na estruturação de um
poema que, de saída, se coloca como radicalmente modernista? Uma primeira resposta a
essa pergunta reside na estruturação sonora do poema. Se no plano das imagens e
sensações reina uma associação livre acelerada, a estruturação rítmica e rímica é
finamente disciplinada.231 O poema é construído em versos octossílabos dispostos em
estrofes de seis versos.232 O ritmo do octossílabo usado pelo poema é extremamente
variado, mantendo algumas constantes rítmicas ao longo do poema, como os acentos 3-
5-8, 2-4-8, 1-4-8, 3-6-8, 2-5-8 e 2-6-8, mais uma dezena de fórmulas rítmicas que
aparecem uma ou duas vezes.233 E a mesma fórmula rítmica não se repete por mais de
dois versos em sequência. Dentro dessa enorme variabilidade rítmica, ressalta-se a
231
As “leis proclamadas pela estética da nova poesia”, que Mário expõe em A Escrava que não é Isaura
[1922], podem ser sintetizadas em dois procedimentos básicos: 1. Palavra em liberdade (verso livre, rima
livre, vitória do dicionário); e 2. Associação livre (substituição da ordem intelectual pela ordem
subconsciente, rapidez e síntese, polifonismo, simultaneidade). O poeta opera radicalmente com o
segundo item, bem como disciplina radicalmente o primeiro (ANDRADE, Mário de A escrava que não é
Isaura. Obra imatura. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 225-226).
232
Com as seguintes exceções: a estrofe 16 tem 7 versos, e os versos 46, 67 e 113 são eneassílabos.
233
Sigo as principais sílabas tônicas “fortes”, deixando de lado as que Said Ali chama de “semiforte”
(ALI, Manoel Said. Versificação portuguesa. São Paulo: Edusp, 1999. p. 35).
133
234
Uma descrição em prosa que já mistura disposições elevadas e traços humorísticos na descrição do
amor platônico lemos em “O mal não é a gente amar... O mal é a gente vestir a pessoa amada com um
despropósito de atributos divinos, que chegam a triplicar às vezes o volume do amor, o que se dá? Uma
pessoa natural é fácil a gente substituir por outra natural também, a questão de sair uma e entrar outras...
134
Porém, a que sai do nosso peito é amor que sofre de gigantismo idealista, e não se acha outra de tanta
gordura pra botar logo no lugar. Por isso fica um vazio doendo, doendo...” (ANDRADE, Mário de. Jaburu
Malandro [1924]. Contos de Belazarte. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. p. 36).
235
ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987. p. 509.
236
Sobre o Dante e Petrarca na história da literatura europeia, ver CARPEAUX, Otto Maria. O Trecento e
Renascença Internacional. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1961. v.
I-A.
135
“Trago o coração tão cheio de alegria, que tudo se me transfigura”. Assim começa uma
canção do trovador provençal Bernatz de Ventadorn,237 em que os efeitos do amor sobre
o eu transforma a realidade apreendida pelo sujeito, que, por sua vez, é capaz de
remontar o mundo todo pela mediação subjetiva de seu amor. Pelo poder
espiritualizante do amor platônico, o eu pode descobrir sua interioridade, conhecer-se e
mesmo transcender-se, como pode igualmente ver o mundo com olhos próprios, pois,
diferenciado dele, é capaz de remontar o mundo pelo ponto de vista do eu.
A mulher amada também transcende a contingência de sua existência terrena e,
por seus encantos morais e pela espiritualização de sua beleza física, é elevada ao
estatuto de nume tutelar ou de guia do poeta para elevar-se às mais altas esferas, como
foi realizado por Dante em relação a Beatriz. Contudo, a Maria dos poemas de Mário de
Andrade tem um excesso de presença contingente. As atitudes da amada de “perfil
duro” e de “olhar frio” não levam o poeta ao percurso reflexivo do amor platônico, ativo
mesmo quando se trata de manifestações de recusa da amada. As atitudes da mulher
amada provocam no poeta atitudes igualmente imediatas: substituições e desvios
psicológicos, declaração de respeito, impulsos violentos (em “Lenda das Mulheres de
Peito Chato”) e mesmo uma fina ironização no poema VII, denominado “Maria”. Aqui
sobrepõe um idealizado verso platônico a um verso realista:
Esse segundo verso aponta para o outro elemento que vem se entroncar no amor
platônico para constituir a forma híbrida dos poemas em questão: o realismo do desejo
erótico modernista. Mário já notara essa passagem do amor em desejo de gozar em sua
poética modernista A escrava que não é Isaura: “Aliás confessemos: a capacidade de
amar dos poetas modernistas enfraqueceu singularmente” e mais adiante, “A
capacidade de gosar aumentou todavia”.238 Na disposição amorosa modernista, antípoda
e antagônica do amor platônico, o desejo não reconhece barreiras entre si e sua
realização, e todas as mediações podem ser transgredidas em nome da confiança do eu
em seu agir sobre a realidade contingente que o circunda e mesmo em seu poder de
237
SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo: Edusp, 1996. p. 140 e 142.
238
ANDRANDE, Mário de. A escrava que não é Isaura, cit., p. 213 e 214. Mantive a ortografia do texto
original.
136
239
Esse comentário de Roberto Schwarz em nota vem a propósito do envolvimento amoroso de Helena e
Estácio, no romance Helena, de Machado de Assis, sobre o qual diz o crítico: “Assim, a ideologia decente
e familiar, amiga de sacrifícios e estrangeira a todo romantismo, corre paralela a uma nostalgia
subterrânea de satisfação individual completa, para além de quaisquer limitações, isto sem que os
absolutos do romantismo sejam evocados explicitamente. Embora não seja desmentido nem posto em
questão, o decoro paternalista nesta companhia adquire uma componente sensível de renúncia. À ideia
cristamente positiva de sacrifício se acrescentam conotações negativas, de sufocamento e frustração da
pessoa, em que está presente o individualismo romântico, mas refundido e dando expressão ao conflito
local” (SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000. p.
149). O leitor dirá se forço a nota ao trocar os termos “romantismo” por “modernismo”, com sua
consequente intensificação da demanda de liberdade individual, e ver a permanência desse mesmo
conflito na poesia amorosa de Mário de Andrade em “Tempo de Maria”. Há na série de poemas
137
pude descobrir, de valor poético muito inferior, foi o de Tobias Barreto. A posição desse
poeta sergipano na Faculdade de Direito do Recife na segunda metade do século XIX
tem muita semelhança com a posição de Mário na São Paulo da década de 1920.
Pequeno burguês, mestiço, de talento extraordinário e temperamento arrebatado, foi
estudante de brilho e, como professor daquela faculdade, se engajou pela modernização
do pensamento brasileiro, destacando-se pelo seu talento e temperamento combativo.
Empenhou-se na difusão do Cientificismo e da língua alemã no Brasil, combateu o
Poder Moderador no plano político e o acanhamento da inteligência brasileira no plano
intelectual. Discípulos entusiasmados pelo mestre foram Sílvio Romero, Gilberto
Amado e Graça Aranha. O que vem ao caso, nessa exposição, é que esse homem
arrebatado e combativo, mas de condição social inferior, viveu um romance com dona
Leocádia Siqueira de Albuquerque, oriunda da fina flor da aristocracia pernambucana.
O resultado foi a repetição, com cerca de 35 anos de distância, do caso de Gonçalves
Dias com dona Ana Amélia Ferreira do Vale, de boa cepa maranhense, cuja família
negou ao poeta a mão da moça em casamento, embora se tratasse de um amor
correspondido. Da rememoração madura desse acontecimento à vista da amada em
Lisboa decorre o poema “Ainda uma vez – Adeus!”. Os detalhes do romance de Tobias
Barreto e os poemas que o pontuam podem ser acompanhados na História da literatura
brasileira de Sílvio Romero.240 Sem que nenhum poema esteja acima do medíocre, é
notável o movimento subjetivo que os conforma, principalmente os poemas finais desse
ciclo amoroso: “A nota capital nas [suas] últimas poesias [...] é a do amor que faz
sacrifício de si mesmo, procurando ocultar-se, chegando até, em certos passos, a
protestar a sua inexistência. É singular este misto de orgulho e humilhação, esta rara
dedicados a Maria, alguns que o poeta não publicou. Em um deles, chamado “Burradas n. 1”, há um
desenvolvimento desse tema. Repetindo um verso de “Amar Sem Ser Amado, Ora Pinhões”, o poeta
prossegue descrevendo o efeito que esse amor realizado teria sobre o destino dos amorosos. Cito do longo
poema apenas as quatro primeiras estrofes, a título de exemplo: “Porém nunca eu aceitaria/Arranjos como
o de Musset...//Eu pisaria sobre minha mãe e minha irmã desonradas,/Como ela passaria junto dos
filhos/Sem mesmo se rir pra esses desconhecidos chorando...//Olharíamos conscientes a raiva dos
homens,/O desprezo invejoso dos homens não nos atingiria mais,/E vivendo junto de tudo, na solidão
mais formidável,/Com cinismo guaçu, como cinismo de heroísmo,/Nós realizaríamos o amor//Nos
insultariam com todos os aviltamentos menos um,/Ninguém nos chamaria de covardes,/Porque seríamos
os seres mais desinfelizes que a vida criou,/Porém nós realizaríamos o amor” − enviado a Manuel
Bandeira em carta de 2 de maio de 1931 (MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de
Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/IEB, 2001. p. 503) e recolhido por Oneyda Alvarenga na
seção Poemas “Malditos” (ALVARENGA, Oneyda. Mário de Andrade, um pouco. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1974. p. 127-128).
240
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. t. IV, p.
1223-1.241.
138
241
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira, cit., p. 1.235.
139
Os primeiros três versos compensam a recusa amorosa com uma blague, rebaixando a
amada a participar de um “harém”. Afinal, ser uma mulher única e especial em um
harém não é o ideal mais genuíno de um amor platônico, antes seria distinção atribuída
por um sultão ou imperador chinês. No entanto, da blague saímos para entrar em
imagens de genuína ternura, com a contemplação cheia de doçura do “pijama dos
olhos”, o sonho acolhedor e inofensivo. A estrofe seguinte desenvolve o mesmo
assunto:
Eu velarei a corajosa
Dormindo sobre a dinamite...
Fumos... Assombrações... Não te
Largo mais, Iara do Tietê!...
Ao menos até que fareje
Alguma paixonite nova...
(versos 128-133)
Continuando a estrofe anterior, o poeta ainda está velando o sono da amada. Como se
avançássemos noite adentro, o mundo externo se acalmou, e a amada dorme
profundamente e satisfeita. O poeta, entretanto, não renova o contraponto ternura-
blague, que poderia ser infinito, mas encaminha uma síntese de peculiar originalidade.
O poema termina com o sofrimento do eu lírico e a indiferença da amada sintetizados
em um acalanto pareci. Mário transpõe o verso de acalanto em suas palavras originais:
“Uirô, mococê ce-macá...”, o que confere ao verso um redobro de sua função rítmico-
melódica, de sua estrutura fônica. Não precisamos saber o significado das palavras do
verso para sentir seu ritmo balouçante e pendular da oitava de acentuação 2-3-3,
marcado por três vogais diferentes em palavras oxítonas “ô”, “ê” e “á”, com o apoio
sonoro de transição “ce” entre as duas últimas vogais. A perfeita adequação rítmica
desse verso pareci aos versos octossílabos do poema faz pensar se este último verso foi
um achado perfeito para encerrar o poema ou se ele foi uma sugestão inicial de que todo
o ritmo do poema se desdobra. Em todo caso, o importante é a natureza dessa síntese
final do poema. A impossibilidade de conciliação de amor platônico com amor
modernista acaba por encontrar uma solução em um verso que é, para o leitor comum,
ininteligível, gerando um tipo de acalanto de sonoridade pura, que a força de ser
repetido em sua incompreensibilidade e estranheza, tem por finalidade gerar uma
semiconsciência dormente, espécie de transe hipnótico. Nesse sentido, Mário termina
seu poema com um acalanto anestésico, em que se unem um máximo de elevado
sofrimento e devoção amorosa e uma indiferença por anestesia, acrescido de
irreverência estética modernista. Novamente, Mário de Andrade ativa seu dionisismo,
resolvendo um conflito que atingira um ponto extremo pela embriaguez musical, uma
modalidade de transe hipnótico feito da “dança de palavras”. Essa solução poética
dionisíaca, nascida da disposição profunda da psicologia de Mário e da impossibilidade
de realização formal da poesia de amor frustrado e elevado no Brasil de então, surge de
uma proposta inicialmente contrária a si. Esse verso final é fruto das pesquisas
brasileiras de Mário, especificamente da leitura de Rondônia, de Edgar Roquette-Pinto,
141
obra na qual se encontra o acalanto pareci, que significa “Menina, dorme na rede”.242
Com isso, Mário dispunha as mais detalhadas pesquisas sobre folclore local de modo a
atuar com potencial imprevisto na composição da mais elevada expressão da lírica
amorosa que a poesia ocidental conhece, dando feição nova e original a uma tensão
estrutural e de longa duração na história da poesia brasileira.
Nesse sentido, o destino das formas literárias na poesia brasileira se relaciona
profundamente com o processo social brasileiro. O conflito entre o sujeito moderno e a
estrutura semicolonial paternalista encontra um ponto privilegiado nas relações
amorosas entre homens de condição social inferior e mulheres de origem aristocrática, a
que se pode somar o agravante racial, de notável relevância na vida amorosa de nossas
classes mais elevadas. Assim, o ciclo de poemas “Tempo de Maria” atualiza de modo
original uma questão social e literária de longa data na história brasileira, o que baliza o
alcance da expressão poética de Mário nesse campo, ao mesmo tempo em que expõe
seus limites. Os outros ciclos de poemas amorosos de Mário expressam diferenças que,
em sua poesia, podem ser superadas pela disposição amorosa, e, ao contrário dos
poemas do “Tempo de Maria”, inovam radicalmente na natureza das disposições
amorosas e nas possibilidades do sujeito lírico.
Amor Realizado
242
ROQUETTE-PINTO, Edgar. Rondônia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975. [1ª Edição de
1917]. p. 92.
243
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil.
Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 425.
142
244
Manuel Bandeira não se cansou de elogiar os “Poemas da Negra” e os “Poemas da Amiga” como
pontos altos da poesia de Mário de Andrade. Ver BANDEIRA, Manuel. Mário de Andrade [1931].
Crônicas da província do Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2007; BANDEIRA, Manuel. Mário de
Andrade e a questão da língua. De poetas e poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957; BANDEIRA,
Manuel. Meu Amigo Mário de Andrade [1943/1960]. Andorinha, andorinha. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1983.
245
Em carta de 11 de maio de 1929, Mário escreve a Bandeira: “Vão aqui por exemplo os „Poemas da
Negra‟, feitos recentíssimamente, amostra de minha poesia atual” (MORAES, Marco Antônio (Org.).
Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 416).
246
O texto em questão é: ATHAYDE, Tristão de. Tendências. Estudos. 1ª Série. Rio de Janeiro: A
Ordem, 1927 [2ª edição de 1929]. Mário recusa essa identificação em carta a Tristão de Ataíde de 23 de
dezembro de 1927. FERNANDES, Lygia. 71 Cartas de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Livraria São
José, s/d. p. 21.
143
O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da
existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal
do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da
realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na
consciência, ela é sentida com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto
de tais estados [grifo inicial do original, último meu]. 251
247
BANDEIRA, Manuel. Mário de Andrade [1931], cit., p. 136.
248
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
427-8.
249
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
482-483.
250
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
483.
251
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 52-53.
144
A expressão poética corresponde com exatidão ao trecho da carta de Mário acima citado
em que ele diz “falar por imagens”, “falar vago”, o que seria uma consequência do seu
novo “pudor” poético, de sua aspiração a uma “invisibilidade”. Depois dos dois versos
iniciais, que introduzem belamente o contexto de “impossíveis” do poema, essa parte I
se desenvolve toda por imagens e suas sugestões vagas: a lua sobre os mangues e o
145
mata, o barro mole. A terra é envolvida por ventos mornos, águas, lábios. A vegetação
vem com o gosto e cheiro da manga, os coqueiros e as flores amarelas do pau-d‟arco
secular. Junto dessas imagens, a paisagem contribui com os seus sons: além da
gravidade do silêncio, ela é por vezes composta de sons estridentes que parecem indicar
a ansiedade do desejo: são os grilos e os tetéus. Na última parte do poema, parte XII, o
poeta colhe nas lembranças a imagem da cidade: o calor, as igrejas e as casas, os
homens, o cais e a beira do rio. Ternura e desejo comungam com as formas escolhidas
da paisagem por um olhar atento, acostumado ao escrutínio de formas espirituais e
materiais, à especulação e ao detalhe dos objetos. Nesse movimento, Mário faz com
mão admirável o poema dos quadros de Cícero Dias. Porém, o movimento não pára na
contaminação entre psicologia e paisagem, mas igualmente, e aqui ultrapassando a
inspiração, dá vida à mulher desenhada, o que marca a reciprocidade da realização
amorosa exposta nos poemas.
A poeticidade da pele negra, as ricas conotações poéticas de sua comparação
com a noite, a escuridão e a mistura de silêncio, entrega e percurso de
autoconhecimento são explorados nesse poema de um modo que só tornaremos a ver na
alta poesia dos poetas da negritude, Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor. Além do
reconhecimento sem condescendência de uma beleza negra, o poeta é objeto de uma
subjetividade autônoma, de uma mulher com vontade própria. Ela pode dissolver-se em
amor, mas pode igualmente ensinar a “volta ao bem”, impedir o poeta de beber água,
sumir, adivinhá-lo. E algo mais agudo do que tudo, essa mulher sabe a diferença entre
eles e não quer ser escrava. O poder democrático desse lirismo é imenso e notável. O
processo histórico é detido e encontrado no mais íntimo envolvimento amoroso, e, mais
do que reconhecido, ele é compartilhado e superado sem violência. A opressão
historicamente sedimentada é subvertida a partir de dentro e sem reproduzir a
agressividade que lhe é própria. Essa mulher negra tem poder de palavra e poder de
silêncio, força de vontade e força de dissolução, intuição iluminadora e espontaneidade
(“Teu beijo é tão beijo,/Tua inocência é dura,/Feita de camélias” − parte IV). As taras
sexuais do regime escravocrata passam ao que, na esteira da poesia baudelairiana, seria
o amor terno, de reconhecimento do outro e acolhimento, o amor antiburguês.253
253
“Não há escravidão sem depravação sexual” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução
à história da sociedade patriarcal no Brasil, cit., p. 372). Baudelaire, em sua ousadia provocativa,
identifica amor heterossexual e amor burguês, concebendo como rebeldia afetiva os encantos do amor
lésbico. Ver OEHLER, Dolf. Quadros parisienses. São Paulo: Companhia das Letras, 1997: “Somente
Lesbos [...] faz desabrochar os sonhos de profunda delicadeza e paixão que não sobrevivem a uma noite
147
Por fim, o próprio eu lírico tem uma atitude profunda e complexa diante do
objeto amoroso. O primeiro movimento do eu lírico vai da comoção à inconsciência
(“Meus olhos vadiam nas lágrimas” − parte I; “Não sei se estou vivo.../Estou morto” −
parte II). Em seguida, ele se dissolve em vento morno e se mostra pleno de porosidade
ao outro (parte III). Essa porosidade, por sua vez, não vem isenta de medo (parte IV),
que, no entanto, se desfaz sobre o corpo da mulher em seu ato de “desgalhar-se” (parte
V). O que se segue são finas carícias, a mão se alastrando sobre o corpo dela (parte VI),
e o retorno do desejo, agora forte e estridente (parte VII). Novamente, após o desejo
consumado, retornam as figuras de paz: olhar e pensamentos vagantes, a exalação de
fluidos leves, sensação de eternidade, virtuosidade (parte VIII). Esse padrão de
movimento, de atração, realização, paz amorosa e recomeço se mantém no poema até a
parte XI. Nesse ponto surge, de relance, um sentimento caro ao poeta Mário de
Andrade, o aspecto destrutivo do amor sexual (quando diz “Meus lábios são que nem
destroços”), que não consegue dissipar completamente a sombra do pecado cristão, no
plano religioso, e vê, no plano afetivo, a ruptura do seu ideal de “amizade amorosa”,
trazendo-a em seu bojo o fim, ainda que momentâneo, da idealização amorosa, e um
pouco do que Freud chama de “reminiscência animal” no ato sexual humano.254
Contudo, a comunhão em que se dá esse enlace amoroso, com os elementos já citados
de reconhecimento e entrega, supera o aspecto destrutivo, e logo no verso seguinte já “o
mar acalanta em sossego” esses lábios, a “luz do candieiro” aprova a mulher amada, e a
“lembrança boa”, já na parte XII, o leva a esconder-se no momento suave, que o faz
sentir-se “suavíssimo”.
A composição desses movimentos psicológicos e imagéticos na realização
erótica dos amantes abre uma esfera de privacidade protegida, em que os amorosos,
Lembrança boa,
Carrego comigo tua mão.
O calor exausto
Oprime estas ruas
Que nem a tua boca pesada.
As igrejas oscilam
Por cima dos homens de branco,
E as sombras despencam inúteis
Das botinas, passo a passo.
O que me esconde
É o momento suave
Com que as casas velhas
149
O tom elevado da expressão permite até uma mesóclise no começo da última estrofe,
que, além de enobrecer a dicção – logo naturalizada no “me sinto” –, quebra uma
possível aliteração d/r/dr (se diria/madressilva) e dá ênfase maior aos “s” e “i”, ecoando
o “suavíssimo” que define o eu lírico ao fim do poema. O desaparecimento do poeta na
essencialização da mulher amada e da paisagem, bem como na natureza translúcida das
coisas que se diriam espectrais, revela mais da carga histórico-social sofrida pelos
sujeitos que habitam os “Poemas da Negra” do que uma exteriorização forte e eloquente
dos conflitos, já que se trata aqui de subjetividades muito fragilizadas. O que o poema
deixa entrever pela sua própria natureza silenciosa e invisível é mais facilmente
percebido pelo diálogo poético de Mário de Andrade e Manuel Bandeira a propósito
desses “Poemas da Negra”. Inicialmente, Manuel Bandeira recebeu esses poemas com
reticência. Em carta de 21 de dezembro de 1930, Bandeira escreve “Ainda não sei
gostar dos „Poemas da Negra‟, embora nada haja ali que me desgoste”.255 Ao que Mário
responde, polidamente, mas tocando em um ponto essencial, que talvez a questão racial
impedisse a aceitação completa do erotismo desses poemas: “talvez haja no poema,
sobretudo pela falta de exotismo com que valorizei, humanizei uma negra fazendo-a sair
das facilidades de concepção baudelairiana, talvez haja uma naturalidade nova que
você, irredutível pessoal, inda não concedeu aos poemas”.256 Ao publicar as cartas
recebidas por Mário, Bandeira, em nota, refaz seu juízo, dando razão ao amigo na
questão da naturalidade, mas evitando a polêmica racial: “A esperança de Mário cedo se
realizou. „Os poemas da negra‟ acabaram insinuando-se no meu espírito e no meu
coração, e eu mesmo não podia compreender, no fim de algum tempo, como não havia
gostado à primeira vista! Hoje considero-os mesmo, com os „Poemas da amiga‟, das
255
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
475.
256
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
476.
150
***
achar e documentar na realidade as pessoas empíricas amadas pelo poeta, temos – o que
é o bastante – a equivalência entre os “amores eternos” e os objetos amorosos
específicos, elaborados liricamente. O último amor eterno é envolto em segredo e seu
poema é “Girassol da Madrugada”. Antes de determo-nos no poema, cumpre esclarecer
algo sobre a mistura de insinuações alcoviteiras e a opacidade sistemática em torno da
sexualidade de Mário de Andrade.258 Do ponto de vista empírico, do homem Mário de
Andrade, essa discussão tem interesse menor e ao longo do tempo se prendeu a
intenções, ou de difamação, ou da proteção da respeitabilidade de um grande nome,
sempre lidando com a pesada carga de preconceitos machistas de nossa vida prática e
intelectual. Como disposição do eu lírico, no entanto, do ponto de vista prioritariamente
literário, o que se tem é uma sexualidade complexa, polimorfa ou, mais propriamente,
tendendo à homossexualidade. Esse esclarecimento inicial tem como objetivo preparar a
inquirição da atmosfera de segredo que paira nos versos das sete partes de “Girassol da
Madrugada” e em relação à pessoa que os inspirou, que atende abaixo do título do
poema pelas iniciais “R. G.”.259 Tentar reconhecer quem seria o destinatário desse
poema é menos importante do que reconhecer a sua natureza secreta, no interior de uma
obra poética pródiga de informações sobre a vida íntima e social do poeta. Os versos da
parte I desenvolvem a natureza da relação amorosa elaborada pelo poema:
258
Grata exceção é o já citado livro de Moacir Werneck de Castro, que dedica a este tema em seu perfil
biográfico de Mário o capítulo V − “O sublime inferno”, capítulo medido, cuidadoso e cheio de respeito,
sem nada ocultar da vida amorosa de nosso poeta (CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de Andrade:
exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989).
259
Há dois comentários em cartas de Mário de Andrade sobre o poema e a dedicatória, reproduzidos em
ANDRADE, Mário de. Poesias completas, cit., p. 525.
152
260
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
495-496.
261
Mário expõe as “cores” de seus poemas “olímpicos” em carta a Bandeira de 10 de agosto de 1934: “Eu
desejei mesmo um certo olimpismo, uma certa sobre-elevação acima dos tumultos terrenos, desprezando
o terra-a-terra... Deu no tom azul dos „Poemas da negra‟ e da „Amiga‟, no tom mais doirado do „Girassol‟
e quase branco do „Rito do irmão pequeno‟. E acabou dando este cinza claro do „Grifo da morte‟”
(MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 582-
583).
153
II
Diga ao menos que nem você quer mais desses gestos traiçoeiros
Em que o amor se compõe feito uma luta;
Isso trará mais paz, porquanto o caminho foi longo,
Abrindo o nosso passo através dos espelhos maduros.
262
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, cit., p. 145.
263
“Silêncio” é o primeiro título da parte V do poema. Assim Mário o chama em carta de 2 de maio de
1931 a Manuel Bandeira, concebendo-o, então, como um poema separado. Ver MORAES, Marco
Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 502. A ambivalência
dos pronomes tu/você alternados nas diferentes partes do poema não são, como poderia parecer, evidência
154
IV
de ambivalência sexual, pois a mesma alternância pronominal ocorre em “Poemas da Negra” e “Poemas
da Amiga”.
155
Nesse sentido, além dos “monstruosos pés” da divindade, a imagem das “alvas uiaras”
do primeiro verso da parte I é paradigmática. As uiaras, imagem indígena que
corresponde à sereia grega, cantam e atraem os marinheiros à morte. A promessa das
sereias é tornar presente o que já passou, prender o sujeito em seu passado.264 Talvez
seja aqui possível a aproximação entre o passado do tempo cronológico de uma vida −
que as sereias evocam − e o tempo psicológico da maturidade. Seguindo a linha de
Freud, com que o modernismo de um modo geral e particularmente Mário de Andrade
estavam em contato, a constituição do eu e a constituição da sexualidade são um mesmo
processo. Assim, o desligamento da subjetividade de uma identificação com o todo e
seu decorrente sentimento de onipotência, ou seja, o reconhecimento do sujeito como
“indivíduo”, o que está separado, e que se distingue do todo e com ele interage,
corresponde, ou melhor, pressupõe a superação da sexualidade “polimorfa e perversa”
da infância. Em seu momento de imaturidade, sempre nos termos de Freud, a
sexualidade não concentrou sua satisfação no órgão sexual e não condicionou a
especificidade do objeto amoroso. Um bonito tratamento dessa labilidade sexual no
período anterior à conformação individual do sujeito está no conto de Mário de Andrade
chamado “Frederico Paciência”.265 Há diversas afinidades entre o poema “Girassol da
Madrugada” e esse conto. Inicialmente, a apresentação de Frederico Paciência pelo
narrador do conto lembra o objeto amoroso de nosso poema: “Frederico Paciência era
aquela solaridade escandalosa”.266 Em seguida, o sentimento do narrador é de
indiferenciação amorosa: “Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor”.267
Como síntese de solaridade e indiferenciação amorosa, o narrador do conto diz: “Como
que havia entre nós dois um sol que não permitia mais nos vermos mutuamente”.268 Em
relação ao silêncio, há essa passagem: “Vivíamos por vezes meia hora sem uma palavra,
mas em que nossos espíritos, nossas almas entreconhecidas se entendiam e se
irmanavam com silêncio vegetal”.269 Por fim, para nos atermos apenas às simetrias mais
264
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. p. 43. Na primeira versão do poema enviada a Manuel Bandeira, o primeiro verso é: “De
uma cantante alegria onde riem-se as alvas sereias” (MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência
Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 495).
265
“O interesse do escritor [Mário de Andrade] pelo fenômeno da fluidez das fronteiras da sexualidade se
manifesta com nitidez no conto „Frederico Paciência‟” (CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de
Andrade: exílio no Rio, cit., p. 95).
266
ANDRADE, Mário de. Frederico Paciência [1924-1942]. Contos novos. São Paulo: OESP Gráfica,
1997. p. 96.
267
ANDRADE, Mário de. Frederico Paciência [1924-1942], cit., p. 96.
268
ANDRADE, Mário de. Frederico Paciência [1924-1942], cit., p. 101.
269
ANDRADE, Mário de. Frederico Paciência [1924-1942], cit., p. 108.
156
evidentes, há essa descrição do olhar amoroso, cuja atenção é centrada nos olhos e na
boca, no conto: “Percebi o mutismo dele, entendi por que era, mas não podia, custei a
retirar os olhos daquela boca tão linda. E quando nossos olhos se encontraram, quase
assustei porque Frederico Paciência me olhava, também como eu estava, com olhos de
desespero, inteiramente confessado”,270 e no poema, no início da parte III: “Si o teu
perfil é puríssimo, si os teus lábios/São crianças que se esvaecem no leite,/Si é pueril o
teu olhar que não reflete por detrás”. Há, ainda, muitas outras descrições do desejo
homoerótico como algo sublimado e belo, o qual resiste, a duras penas, à reprovação
social objetiva e à reprovação subjetiva introjetada. O que está mais explícito em
“Frederico Paciência” é o momento pré-maduro em que se apresenta essa sexualidade
polimorfa. Em “Girassol da Madrugada”, porém, a puerilidade da sexualidade polimorfa
é superada por um momento de maturidade plena. O poeta caminha por esferas pós-
freudianas e originais, pois não concebe a maturidade como renúncia à bissexualidade,
mas como realização equilibrada, racional e consciente dos impulsos sexuais presentes
no homem maduro. Aqui saímos da esfera psicanalítica das motivações inconscientes e
dos efeitos dessas motivações na consciência e entramos na esfera da realização lúcida e
reflexão consciente de uma sexualidade polimorfa que persiste na maturidade. O termo
que o próprio Mário de Andrade usou para definir a si próprio foi “pansexualismo”,
como escreve em carta a Oneyda Alvarenga:
Há também ainda [...] um outro elemento, delicado de tratar, mas que tem importância
decisória em minha formação: a minha assombrosa, quase absurda, o Paulo Prado já chamou de
“monstruosa” sensualidade. O importante é verificar que não se trata absolutamente dessa
sensualidade mesquinhamente fixada na realização de atos de amor sexual, mas de uma
faculdade que, embora sexual sempre e duma intensidade extraordinária, é vaga, incapaz de se
fixar uma determinada ordem de prazeres que nem mesmo são de ordem física. Uma espécie de
pansexualismo, muito mais elevada e afinal de contas, casta, do que se poderia imaginar. 271
270
ANDRADE, Mário de. Frederico Paciência [1924-1942], cit., p. 111.
271
Carta de 14 de setembro de 1940. Apud CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de Andrade: exílio no
Rio, cit., p. 90.
157
realiza na expressão amorosa o seu poema mais elevado. A falta de uma individuação
sexual se desenvolve em um excesso de cuidado e controle, subjetivo e linguístico, da
expressão literária.
Mário de Andrade faz, nos versos de “Girassol da Madrugada”, a naturalização
do homoerotismo, que é formulado como um amor destituído de taras, reprovações,
sentimento de anormalidade etc. O poeta, além de naturalizá-lo em sua linguagem, eleva
magistralmente o que se costumava considerar “desvios da norma”. Antonio Candido,
ao estudar um dos primeiros baudelairianos brasileiros, Fontoura Xavier, e dos mais
interessantes, notou uma recorrência em nossos poetas: “Na poesia brasileira (penso no
que dizem os versos, não no comportamento dos poetas), é visível a vertente dos
desvios da norma: sadismo em Bernardo Guimarães, masoquismo em Casimiro de
Abreu, erotismo solitário em Álvares de Azevedo, voyeurismo em Bilac, necrofilia em
Alberto de Oliveira, senso da decomposição em Augusto dos Anjos, angústia do
impulso sexual irregular em Mário de Andrade, autocastração punitiva em
Drummond”.272 É a superação desse “impulso sexual irregular” que pode ser vista no
poema em questão. Em “Girassol da Madrugada”, o que é normalmente sentido como
opressão de desejos escusos, o que é vítima na interioridade da repressão social objetiva
e da repressão subjetiva, do superego, e que normalmente se resolve pela violência
praticada, ou contra si, ou contra o objeto sexual, isto é, os impulsos homossexuais
como fatores de uma sexualidade sadomasoquista, é aqui aceito e transformado em uma
relação amorosa feita de abandono de si e entrega ao outro. Essa comunhão amorosa
tem de lidar constantemente ao longo do poema com suas consequências perigosas. Na
parte I, além das uiaras, há o perigo do pudor. Na parte II, é preciso abandonar “gestos
traiçoeiros/em que o amor se compõe feito uma luta”. Essa recorrência da purificação
do ato de entrega e superação amorosa de perigos, esse “desvio triunfal da verdade”,
inclui na solenidade sublime do amor realizado a presença superada de todas as suas
dificuldades. Toda a linguagem do poema é uma depuração levada a cabo com maestria,
em que o ritmo e a melodia evocam um andamento musical vago, “andante”, e visam a
um desarmamento não violento das forças repressivas pela linguagem, que flui em
direção à entrega. Outra imagem de completamento amoroso que se vê no poema é a de
Narciso, presente na parte VI:
272
CANDIDO, Antonio. Pomo do Mal, cit., p. 256.
158
VI
VII
O tempo segue um rumo que hostiliza, traz o som dos maracás em que tropeça, assusta
animais e flores, desfaz a alegria noturna do arlequim com a aproximação da manhã.
Porém, o poeta rejeita a noite que se esvai, trazendo a luz do dia, seus sons e, por
consequência, a sociabilidade, os olhares, a força da repressão. O poema desarma a ação
do tempo, estendendo a noite que nasce da carícia dos corpos sobre a manhã que chega.
Por um paradoxo próprio do processo dionisíaco, há uma fulguração simultânea de
elementos opostos: é pela extensão da noite que emerge a luz da flor, a graça dourada. O
poeta reverte a noite perpétua das carícias, mais compacta que a morte, em
luminosidade sublime do mundo dos amorosos. Essa aniquilação sem violência das
determinações concretas, ou melhor, essa dissolução das determinações objetivas na
noite luminosa dos amorosos cria o tempo próprio do amor homossexual elevado, o
tempo fora do tempo. A própria palavra, carregada como é dos sedimentos da vida
humana, da vida social mais propriamente, precisa esvair-se. Por isso, o poema tem, no
seu significado íntimo, uma intenção silenciante. O poema busca, a todo custo e com
sucesso, exprimir com palavras o que se alcança pelo silêncio. Todo som é longínquo e
traz uma ameaça. A pureza ambicionada pelo poema exige um esforço tamanho, que
mal esconde a carga pesada das opressões contra o que ela luta, que qualquer
concretude, ainda a mais vaga palavra articulada, pode pesar sobre esse véu incorpóreo
da poesia luminosa e evocar outros pesos, entre eles, o do pecado, trocando a “graça
dourada” por duros castigos punitivos.
160
Construção imagética das mais ousadas, que uma educação poética tradicional julgaria
absurda, nela Narciso não é a imagem da morte pela paixão por si próprio, maldição
mítica, mas encontro de si mesmo no outro, operado por comunhão e carinho, sem a
violência da posse e o ricocheteio de autodestruição. O percurso que normalmente é de
destruição273 – duplo, espelho, ausência de si no outro, reconhecimento do outro em si –
é nesse poema operado como percurso de realização amorosa plena e sublime, um
Absoluto amoroso. Eis o ponto de chegada desse dionisismo amoroso original de Mário,
para o qual ele precisa eliminar as determinações concretas e criar um mundo luminoso
de amor. Dessa forma, o poeta resolve o problema essencial do poema: como tornar
dizível aquilo que pela própria denominação religiosa é o indizível, o “pecado nefando”.
Como tornar traço essencial do sujeito aquilo que socialmente o torna um sujeito
inaceitável. Como conquistar a expressão verbal da elevação amorosa àquilo que, pela
sua própria enunciação verbal, pesa como uma condenação no mundo dos homens e no
reino de Deus. O resultado é o poema mais cuidadoso de Mário de Andrade, aquele em
que a honestidade do poeta consigo mesmo percorria um campo minado, em que sua
mais íntima e frágil sensibilidade era alvo fácil da agressão mais bruta e gratuita. Essa
última expressão amorosa, a mais difícil e a maior de todas, ilumina uma sexualidade
ambivalente, um “pansexualismo”, que não recuou diante de sua complexidade e que
273
Na tradição da lírica amorosa ocidental, há a esse respeito uma esclarecedora passagem sobre a
imagem de Narciso na canção “Can vei la lauzeta mover” do provençal Bernartz de Ventadorn: “Miralhs,
pus me mirei en te,/m‟en mort li sospir de preon,/c‟aissi.m perdei com perdet se/lo bels Narcisus en la
fon” (“Ó espelho, depois que me mirei em ti, comecei a morrer à força de suspiros; pois perdi-me do
mesmo modo por que se perdeu na fonte o formoso Narciso”). Original e tradução em SPINA,
Segismundo. A lírica trovadoresca, cit., p. 150.
161
não atuou com violência sobre os seus supostos inaceitáveis. Como resultado dessas
sutis e rigorosas operações poéticas, o poeta se eleva das determinações sociais e
ideológicas da vida brasileira, que, no entanto, são as suas referências fundamentais, e
pode dizer, sem carregar consigo o peso de qualquer culpa ou opressão:
274
“... uma religião privada, uma religio poetae irreconciliável com as exigências do mundo público”
(HAMBURGUER, Michael. A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde Baudelaire. São
Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 138).
164
Andrade vai opor-se frontalmente. Seu apostolado poético também veiculava aspectos
morais e éticos, sem dúvida, mas estes procuravam agir de modo integrado e
progressista na vida humana dos homens que se fariam homens melhores neste mundo,
sem recompensa em outro e sem a sombra do pecado. Para Mário, em suma, tratava-se
de um sentimento religioso da vida.
Ao contrário, então, de “Religião”, diversos poemas de assunto profano recebem
uma inflexão religiosa. O poeta elabora um tipo de religiosidade que se entrega à vida
das pessoas que o rodeiam e procura dar-lhes um sentido mais elevado.275 Seu escopo é
universal, mas sua atuação específica é sobre a realidade brasileira, a realidade dos
homens que o poeta sente como seus iguais, no modo de sentir e se comportar, como
expõe em “O Poeta Come Amendoim”, poema que abre o livro Clã do jabuti:
Essa religiosidade da vida ao mesmo tempo se entrega à vida brasileira e comunga com
o Brasil presente no próprio sujeito lírico, o Brasil que ele traz em si, por autoanálise ou
por incorporação voluntária. Mário de Andrade, em momento de grande efervescência
poética, entre 1924-1925, escreveu, certamente sem premeditação, alguns poemas em
que o entusiasmo pela vida brasileira correspondia ao ânimo e ao significado das
diferentes partes do dia. Assim, às atividades da manhã ele escreveu a “Louvação
Matinal” (1925), ao devaneio vespertino ele elaborou a “Louvação da Tarde” (1925) e
aos poderes noturnos ele compôs o “Noturno de Belo Horizonte” (1924). Em cada um
deles, o sujeito lírico e as características do Brasil se relacionam e se direcionam para
uma fusão. Se observados em conjunto, tendo ou não o poeta os concebido como
conjunto, não importa, esses três poemas configuram uma disciplina devota de um poeta
275
Como diz Antonio Candido sobre Mário: “Tinha o culto da solidariedade humana e só se entenderá a
sua obra levando isto em conta” (CANDIDO, Antonio. Lembrança de Mário de Andrade. O observador
no escritório. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008. p. 92).
165
O poema de Mário que inicia esse dia aberto à religião da vida é “Louvação
Matinal”, poema de 1925, recolhido no livro Remate de Males. É o poema do corpo que
acorda e desperta os sentidos para o dia que começa, e é no corpo do sujeito lírico do
poema que essa manhã desponta. O sujeito lírico é totalmente poroso à manhã que
louva, e expressa nos versos um ideal matinal de vida. A cada parte do dia que o poeta
louva, manhã, tarde ou noite, ele vai entregar-se plenamente ao momento especificado,
e a nenhuma parte desse dia religiosamente vivido caberá a primazia na sensibilidade do
poeta. O projeto matinal de “Louvação Matinal”, o devaneio de “Louvação da Tarde” e
a festa de “Noturno de Belo Horizonte” só desenham a imagem integral do poeta se
colocados em conjunto. Se em dado momento de sua obra poética a manhã ou a noite
forem particularmente privilegiadas, por exemplo, em “Manhã”, do livro Remate de
Males, ou em “A Meditação sobre o Tietê”, respectivamente, isso ocorrerá em razão da
posição da sensibilidade e do pensamento do poeta naquele momento de sua obra, e não
de uma disposição essencial da sua subjetividade. Assim, nesse momento matinal, o
despertar do eu lírico apreende a aurora como símbolo e se faz permeável ao dia que
começa, dirigindo sua fé para esse dia que, ao nascer, promete um mundo novo a ser
construído:
seu final. Sendo essencialmente subjetividade, esse sujeito lírico também é uma força
anímica. Um corpo que absorve a manhã, tornando-se mais corpo, mas igualmente um
corpo que se desintegra em luminosidade, participando da vida dos homens como uma
força ativa e boa, ainda que imperceptível, contudo. Percebe-se, então, que o sentimento
religioso da vida oferece inicialmente uma espécie de mediação móvel e instável entre a
subjetividade lírica e o Brasil, em que o sujeito é cada vez mais e com mais força um
sujeito poético reconhecível, quanto mais ele se identifica com uma vasta coletividade.
A possibilidade dessa mediação móvel é fundamentalmente uma função do tipo
de verso livre utilizado. “Louvação Matinal” encontra-se na seção “Marco da Viração”
do livro Remate de Males. A referência é importante, pois é nessa seção que Mário, pela
primeira vez, desenvolve sistematicamente esse verso livre largo e reflexivo, capaz de
abarcar a vida e o mundo em uma respiração meditativa, em que cabem entusiasmos e
avaliações, confissões e reflexão, amargura e ternura. Iniciado em “Marco da Viração”,
esse será o verso livre transformado em versículo de “A Meditação sobre o Tietê”.
Entretanto, esse é um momento de experimentação, e o verso livre de “Louvação
Matinal” ainda se mostra imperfeito em relação ao que será “O Rito do Irmão Pequeno”
e “A Meditação sobre o Tietê”. Significativo, nesse sentido, é o fato de os dois
principais interlocutores poéticos de Mário, Manuel Bandeira e Drummond, não terem
gostado do poema, e por motivos semelhantes.
Bandeira escreve em carta de 04 de fevereiro de 1928:
Sobre os poemas direi, pra lhe satisfazer a vontade, que como poema só não me satisfez
a “Louvação matinal”, neste sentido que não me parece poesia nem verso. É uma meditação
filosófica em prosa. Muito bonita, aliás. É uma linda perspectiva de pensamento num alto e
tranquilo movimento rítmico de prosa. Não tem o elemento lírico da poesia; não tem o elemento
musical do verso. Mas repito que é linda e que é uma boa ação: quem gosta de ler todos os dias
um capítulo da Imitação (de Cristo), no dia em que ler a sua “Louvação” não precisará fazê-lo.276
276
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São
Paulo: Edusp/IEB, 2001. p. 379.
167
exemplo. Você me parece ceder por vezes à ânsia de comunicar coisas urgentes que estão
passando no seu íntimo e que não são propriamente poesia. Coisas que dariam provavelmente
um discurso... Em suma, você é muito universal demais para ser apenas poeta e há porções
respeitáveis do seu ser que reagem contra a poesia no instante mesmo em que ela está se
elaborando. Eu considero a poesia uma limitação, boa ou má não vem ao caso, e a linguagem em
que é menos fácil aos homens se comunicarem, porque é a linguagem que poucos falam e
mesmo esses não a possuem permanentemente. E você, alma apostólica (perdoe o adjetivo pois
não acho outro), coração numerosíssimo e transbordante de humana ternura, tem tanto que
comunicar aos outros! É natural que sua linguagem seja às vezes um pouco turva e inquieta. 277
277
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002. p. 401.
168
278
Das palavras do poema, há algumas que não constam no Dicionário Houaiss (HOUAISS, Antônio;
VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007), e de duas delas não pude verificar o significado em lugar
algum. São elas: “itacás” e “nombrada”. “Coxilha” é um tipo de terra com pequenas e grandes elevações,
em que se desenvolve atividade pastoril; “carijo” é um tipo de armação em que se secam ramos da erva-
mate; “congonha” é um tipo de árvore; “canhada” é um vale estreito entre montanhas; “Cabuji” se refere,
provavelmente, ao Pico do Cabuji, localizado no Rio Grande do Norte; “gaiola” é um tipo de embarcação.
169
... minha afetação. Você tem razão. Mas não posso escapar dela por enquanto porque
essa afetação é psicológica. A minha naturalidade agora é a afetação porque o problema está me
preocupando a todo instante e por isso me desvirtua o modo natural. Estou em época de
transição. Estou criando um novo modo natural.280
279
As sílabas tônicas dos versos estão em itálico. Sigo as principais sílabas tônicas “fortes”, deixando de
lado as que Said Ali chama de “semiforte” (ALI, Manoel Said. Versificação portuguesa. São Paulo:
Edusp, 1999. p. 35).
280
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
183.
170
que ia adquirindo, e, do modo como isso vem expresso, essa sinceridade tem uma
essência religiosa, de demonstração dos passos de uma missão.
Houvesse um símbolo coletivo explícito a que conduzisse essa missão, fosse a
anta verde-amarela, o sigma integralista, o Cristo de lastro católico-oficial ou a bandeira
vermelha do estalinismo, o caminho de Mário de Andrade estaria limitado pela
estreiteza rebarbativa de uma posição doutrinária. No entanto, o humanitarismo vago
(embora ardente) em que se empenha esse sentimento religioso da vida impede essa
decaída, embora não seja uma posição isenta de perigo. A necessidade de libertar a
linguagem brasileira falada do jugo da gramática lusitana corresponde a um projeto
implicitamente político de uma vida mais autêntica, mais livre. Sendo uma proposta
estética e política de relevância evidente, ela, entretanto, padece da sua condição de
invenção individual e de falta de correspondência coletiva. É nesse sentido que a
mediação do poema não se fixa e acaba por se dissolver, pois o sujeito que demanda a
coletividade fora de si – mediação entre o mesmo e o outro – acaba por reproduzir a
coletividade dentro em si, fazendo a mediação desaparecer no interior da subjetividade.
Na falta de uma mediação mais efetiva entre a missão humanitária brasileira a que
Mário religiosamente se entrega e a coletividade correspondente, o poeta passa a
interiorizar os elementos coletivos que acabam por a agir na interioridade do modo
como o poeta gostaria que eles agissem na vida empírica. O seu resultado é uma
incorporação da manhã brasileira, em uma espécie de “união mágica” do “corpo da
nação” e do “corpo do poeta”, que passam a existir em sintonia, e o que acontece à
nação acontece ao poeta, e vice-versa. O sujeito lírico passa, então, a se sentir ilimitado,
pela ausência de mediação, e a virtude da exemplaridade, a alegria matinal e a felicidade
do projeto pessoal e coletivo vão encontrar formas-limite de se formalizar poeticamente.
Mas essas formas-limite são um resultado do poema, e não um a priori, pois a
introjeção da manhã brasileira na subjetividade lírica do poema se apresenta como um
processo.
Na terceira estrofe, esse processo assume no poema uma dimensão de projeto de
vida, em que a autodeterminação do sujeito e o projeto de casa possuem a forma do
sonho, da “glória de ser, fazendo o que será”. É um momento de doçura, próximo da
forma do devaneio da “Louvação da Tarde”, mas ainda enfático, com ardor matinal, na
certeza de que a casa do indivíduo, a consciência de si e a comunidade da manhã
brasileira se afirmarão como a felicidade do homem e da vida comum. Contudo, o
171
281
“... a constância coreográfico-dionisíaca que atravessa toda a minha poesia, e pra qual o Roger Bastide
já chamou a atenção” (ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro
da Miséria”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 36. São Paulo: IEB, 1994. p. 181-182).
172
virtuosa cuja euforia chega ao paroxismo do delírio, podem ser também analisadas em
seus pressupostos, que podem não ser imediatamente visíveis no poema, mas que fazem
parte da função da crítica no pensamento estético.282 A felicidade defendida por Mário
de Andrade em sua obra não nasce da propaganda de uma vida pacífica e risonha,
naturalmente feliz. Ao contrário, sua felicidade é fundamentalmente uma solução de
problemas muito graves da subjetividade empírica do homem e poética do poeta. Sua
felicidade, pode-se dizer, é uma dolorosa e eufórica entrega a um ideal de felicidade
comum para todos os homens, nascido de uma vida pessoal profundamente infeliz. Sua
felicidade é uma resposta do seu valor humano a uma vida danificada. Os danos que sua
vida acumulou são tanto de origem pessoal quanto social. De foro mais íntimo, citem-se
o sofrimento por ser mulato no mundo dos brancos, bem como de reconhecida feiúra
quando criança e jovem, e o sofrimento pela sua tendência à homossexualidade e, por
consequência, pela impossibilidade do seu reconhecimento público. São sofrimentos
íntimos, mas que não impediram o moço de boa família de se colocar bem na sociedade,
tornando-se professor vitalício do Conservatório Musical. A aceitação de uma vida
convencional na mediocridade burguesa certamente afastaria esses sofrimentos no
torpor das alegrias rotineiras de uma vida de amigos, dinheiro e família. Aos
sofrimentos pessoais deve-se somar a morte do irmão mais novo, Renato, de profundas
repercussões em sua vida íntima, causando-lhe tremor nas mãos e impedindo sua
aspiração a virtuose de piano.283 Uma subjetividade fragilizada, mas de vibrante energia
intelectual, que começa a se interessar pela atualidade das artes da Europa. Aqui
começam as agruras mais sociais do poeta. Sua família o toma por esquisito pelas suas
opiniões modernas, e Oswald de Andrade o lança no olho do furacão ao publicar em
jornal alguns de seus poemas modernistas (chamados de “futuristas”, então), que
tornarão o poeta motivo de chacota generalizada. Devem-se lembrar as dimensões
provincianas da vida social da São Paulo de então, cidade à época mais próxima do
sabe-se-de-tudo das cidades do interior do que do anonimato e das possibilidades de
independência pessoal de uma metrópole moderna (embora São Paulo aspirasse cada
vez mais se transformar, por vias contraditórias, em metrópole moderna...). É conhecido
o transe de sofrimento acumulado que gerou os poemas Paulicéia desvairada, causado
282
Ver ADORNO, Theodor W. Necessidade da Estética. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008.
283
CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 57.
173
284
Ao adquirir a “Cabeça de Cristo”, que Brecheret o concedera passar em bronze, Mário chega em casa
com seu “Cristo de trancinha”, muito feliz. No entanto, a família se escandaliza e começa a ralhar
violentamente com o poeta. O resultado pode ser acompanhado nas palavras do próprio poeta: “Fiquei
alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por dentro, num estado inimaginável de
estraçalho. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um
bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu
largo. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como
que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que
jamais pensara, „Paulicéia Desvairada‟. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias
interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava
jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes maior do que isso que o trabalho de arte deu num livro”
(ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista [1942]. Aspectos da literatura brasileira. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 256).
285
“... a insuficiência da vontade diante de um alvo desvirtuado, eis aí uma configuração muito nacional,
com fundamento histórico profundo” (SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São
Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2001. p. 204).
174
danificada, agora da vida coletiva, que levavam sua obra ao excesso de ênfase e às
situações-limite da subjetividade.
“Louvação Matinal” é o documento auroral dessa solução, em que os
sofrimentos estão de certa forma exorcizados pela luminosidade do dia e pela manhã
coletiva que se levanta. A incorrespondência da vida coletiva é apenas pressentida, e o
poema-oração supõe, pela sua própria força religiosa, poder criar, colocando-se na
situação-limite da virtude que inebria, uma felicidade que é uma fusão de subjetividade
lírica e coletividade brasileira no interior do eu lírico e da linguagem do poema. Os
trabalhos que começam de manhã são colhidos ao fim do dia, e à tarde o poeta retoma
seu livro das horas.
286
CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998. p.
268.
175
Como se pode ler nesses versos, a tarde de matriz romântica instaura um espaço
sagrado, e nesse espaço a subjetividade poética pode entregar-se à visão das coisas que
287
Em carta a Bandeira de 12 de dezembro de 1925, Mário fala sobre a construção e as influências de
“Louvação da Tarde”: “O poema poesia construído com o pensamento condicionando o lirismo que tem
de ser enorme (senão não transparece) o mais formidável que puder porém duma ardência como que
escondida porque inteiramente interior. Enfim: o poema inglês. Shelley, Keats, Wordsworth, Swinburne,
Yeats, dessa gente” (MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel
Bandeira, cit., p. 262). Sobre a preponderância da influência de Wordsworth em relação aos outros poetas
ingleses, deve-se acrescentar, além da proximidade natural entre o tom meditativo específico de
Wordsworth e o desse poema, os comentários de Antonio Candido, que o destaca como influência entre
os românticos ingleses (CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante, cit., p. 261-262), e ainda o comentário
de Gilda de Mello e Souza sobre “Louvação da Tarde”: “Lendo esses admiráveis decassílabos brancos,
pensamos quase insensivelmente em alguns dos nossos poetas do passado e nos poetas ingleses „dos
lagos‟, sobretudo Wordsworth, aos quais Mário se refere implicitamente na simples adoção desse tipo de
poema” [grifo meu] (SOUZA, Gilda de Mello e. A poesia de Mário de Andrade. O tupi e o alaúde (1979).
São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003. p. 30).
288
Grifo do original.
176
podem ser. Pois a tarde também tem outra função, a de separar o sujeito de sua vida
imediata, para abrir o espaço ao devaneio e ao sonho, pressupostos dessa visão de uma
vida mais plena e de um mundo mais justo. Nessa função, o que observamos é um
distanciamento do eu lírico em relação às determinações e necessidades da vida e do
mundo:
duma ardência como que escondida porque inteiramente interior”.289 A adoção da forma
consagrada obedece a necessidades profundas do momento expressivo e da evolução da
subjetividade poética de Mário de Andrade. Trata-se de disciplinar o lirismo em um
momento de refluxo do combate literário, de um novo momento de elevação e
maturidade. Sua escolha se pauta por necessidades internas de expressão de sua obra
poética e das premissas mariodeandradianas de sinceridade e destino, de que decorre a
lógica estrita da organização de sua obra poética.
Desse modo, a tarde que abre os versos de “Louvação da Tarde” é o correlato
poético da primeira tarde realmente sentida pelo poeta em sua atividade poética. E do
distanciamento que a tarde gera, desse ardente lirismo interior, disciplinado pelo
pensamento, decorre a adequação da escolha, a forma romântica. A prova disso é a
naturalidade contínua da dicção, a ausência da sensação de artifício, que agradou
mesmo um Manuel Bandeira pouco simpático ao decassílabo branco romântico.290
Para expressar a disciplina do pensamento, Mário lançou mão de um expediente
novo, ao que tudo indica uma invenção sua na história da poesia moderna: 291 o passeio
meditativo feito de carro. Um “forde” passeia entre a natureza e os decassílabos
brancos. Contudo, sem qualquer elogio futurista à máquina, ela, a “maquininha”, é
harmonizada com a natureza:
289
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
262.
290
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
226.
291
CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante, cit., p. 265-267, que acompanho de perto nesse momento da
exposição.
178
292
CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante, cit., p. 266-267.
293
Joaquim Bentinho: “personagem caipira de Cornélio Pires, o mentiroso monumental do livro
Estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o queima campo (1925)” (CANDIDO, Antonio. O poeta
itinerante, cit., p. 271).
179
294
NIETZCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007. p. 141.
295
NIETZCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, cit., p. 59.
296
Questão estudada no Capítulo III, no tópico “Renúncia”.
297
CANDIDO, Antonio. O poeta itinerante, cit., p. 274.
180
298
Pium é sinônimo de borrachudo; Isidora é outro nome para a Coluna Prestes, baseada no nome de um
dos seus líderes, o general Isidoro Dias; quiriri é palavra tupi que significa silêncio.
181
299
Como ele expõe in loco: “Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida
destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castroalves. E esta pré-noção invencível,
mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as,
enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores,
vocabulários, quitutes... E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça,
alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o
único grande (grande?) país civilizado tropical... Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos
pensar, sentir, como indianos, chins, gente de Benin, de Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e
civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza” (ANDRADE, Mário de. O turista
aprendiz. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 60).
182
“mentirada gentil do que me falta” neste poema não é um fim em si mesmo, mas um
caminho. Com a mentirada gentil propiciada pela tarde, e sua condescendência
puxapuxa, o poeta escoa o excesso de vitalidade. Esse escoamento do excesso na tarde
gera uma revitalização do espírito. Em termos religiosos, o que se opera é um “segundo
nascimento”. Novamente e pela última vez, é o poema já citado de Wordsworth que
deixa mais explícito o que no poema de Mário está mais ou menos implícito:
300
Publicado anteriormente na revista Estética n. 3 (1925). Os três volumes dessa revista foram
republicados em edição fac-similar: Estética 1924/1925. Rio de Janeiro: Gernasa, 1974.
183
O primeiro verso é uma explosão de sonoridades, de “r” e “lh” que se repetem, criando
um clima de festa. Não se sabe se os brilhos são das luzes da cidade, do céu estrelado ou
de alguma propriedade sobrenatural da noite, produtora de “maravilhas”. Porém, em vez
de sabermos de onde vêm tantas luzes, o verso seguinte nos puxa para a calma e a
sensação de silêncio de uma noite vasta e vazia. É quase um verso triste de poema
melancólico... Contudo, o poema será construído na mais necessária interdependência
dessas duas situações poéticas: os milhares de brilhos e a solidão mais isolada do sujeito
lírico. É nesse contexto que a noite, separada de acontecimentos empíricos, de
circunstâncias humanas, pode dar seu rendimento mais genuíno. A noite aqui não é
cenário onde coisas acontecem, ela é o próprio acontecimento, pois a noite, tal como
sedimentada na memória popular e na mitologia clássica, é o espaço que faz a
intersecção do nosso mundo com o universo de “seres estranhos e poderosos”.
Novamente, como em “Louvação da Tarde”, o tempo é mudado em espaço, o que evoca
a presença do sagrado. Segundo o Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara
Cascudo, a noite:
301
CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. p. 615.
184
302
Cabinda: “Dizem cambinda no Brasil, região ao norte de Angola, entre o rio Zaire [...] e o Atlântico. É
de vastíssimo prestígio o vocábulo no Nordeste brasileiro. Cabinda, sambinda, talqualmente Congo e
Guiné, foi sinônimo do escravo africano. Cambindas eram também denominados os grupos dançantes de
negros que folgavam pelo Recife em préstito, até a porta da Matriz, depois convergindo, funcionalmente,
para o Carnaval, no ritmo solene dos desfiles fascinantes dos maracatus” (CASCUDO, Câmara.
Dicionário do folclore brasileiro, cit., p. 209).
303
Debate que é exposto, comentado e interpretado em seus resultados por DANTAS, Vinícius. Entre “A
Negra” e a Mata Virgem. Novos estudos. São Paulo, n. 45, jul.1996.
304
Carta de 13 de outubro de 1923 (AMARAL, Aracy (Org.). Correspondência Mário de Andrade &
Tarsila do Amaral. São Paulo: Edusp/IEB, 2001. p. 79).
186
305
DANTAS, Vinícius. Entre “A Negra” e a Mata Virgem, cit., p. 102. Há, nas p. 103-108, um
desenvolvimento do que pode ser “mata virgem”, de acordo com uma série de textos teóricos de Mário
sobre arte brasileira.
306
DANTAS, Vinícius. Oswald de Andrade e a Poesia. Novos estudos. São Paulo, n. 30, p. 196, jul. 1991.
187
307
AMARAL, Aracy (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral, cit., p. 87 e 89.
Mário escreveu uma resenha par a o livro Pau-Brasil, de Oswald, em setembro de 1925, que não chegou a
publicar. Esse texto foi publicado em BATISTA, Marta Rossetti; LOPEZ, Telê Porto Ancona; LIMA,
Yone Soares de. Brasil: 1º tempo modernista − 1917/29. Documentação. São Paulo: IEB, 1972. Nele,
Mário escreve: “Pau-brasil é rótulo condescendente e vago significando para nós iluminadamente a
precisão de nacionalidade” (p. 231).
308
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 80.
309
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 80.
310
Trecho do artigo de Drummond reproduzido em: SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário.
Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 166.
311
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
130.
188
coisas da terra que você diz tão amendoim-torradamente [...], eu sufocava de dizer. Não
sabia como, Você achou como”.312 E lembre-se de que neste momento poético de
Bandeira estão em gestação os poemas de Libertinagem.313 Quando recebe o livro Pau-
Brasil, Bandeira tem uma apreciação mais justa do que Drummond, mas mantém sua
posição em relação ao “Noturno de Belo Horizonte” e demais poemas brasileiros de
Mário, como afirma em carta de 13 de setembro de 1925: “Oswald mandou-me o Pau-
Brasil. [...] O que está dentro é bom, empregando a técnica Kodak de Cendrars. [...] O
livro tem coisas deliciosas, do realista Oswald observador irônico. É o que eu chamo o
melhor Oswald. Ele sente e critica deliciosamente o Brasil, mas no fundo é pouco
Brasil. Pau-Brasil é a tradução de Bois du Brésil. Acho você mais Ibirapitanga”.314 Na
carta seguinte, de 19 de setembro de 1925, Bandeira retorna ao assunto com mais
ênfase, reiterando a influência de Cendrars sobre Oswald, que de fato “não tem
importância, pois a técnica é admirável, tem caráter clássico e serviu maravilhosamente
às necessidades de expressão do Oswald”, mas abordando a questão da brasilidade e da
originalidade, assim se manifesta:
Se falei nisso [...] foi porque me aporrinha essa coisa de bancar o inovador em cima da
gente. As únicas coisas que não se parecem com os poemas europeus na poesia brasileira de
agora são o “Noturno (de Belo Horizonte)”, “Tarde, te quero bem” e outras coisas suas, ainda
que precisa-se dizer que você não faria nunca se não fossem os europeus. Você é profundamente
original, pessoal, brasileiro e barra-fúndico, mas a tudo isso chegou por uma seriíssima,
atormentadíssima, dolorosíssima e sublimemíssima cultura europeia modernista. [...]
Por isso, Mário, tenho essa confiança em você. Do ponto de vista brasileiro só você me
satisfaz. Eu disse ao Oswald: “Você sente e critica deliciosamente o Brasil mas não é o Brasil;
quem é Brasil é o Mário. Você observa, Mário vive isso que você observa. O poeta é ele”. 315
312
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
195. “Amendoim-torradamente” refere-se ao poema de abertura do Clã do jabuti, “O Poeta come
Amendoim”.
313
Ver poemas de Bandeira “O Cacto”, “Mulheres”, “Não Sei Dançar” e “Pensão Familiar”, publicados
na revista Estética n. 3, edição em que sai o “Noturno de Belo Horizonte”, e essa passagem do mesmo
Bandeira em carta de 26 de junho de 1925: “Acho mesmo que convém que nos imitemos, que nos
plagiemos, que nos influenciemos para firmar cada vez mais essa característica racial que já é patente e
bem definida” (MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel
Bandeira, cit., p. 219).
314
Ibirapitanga é a palavra tupi para “pau-brasil” (MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência
Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 238).
315
MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p.
241. “Tarde, te quero bem” é como Bandeira chamava “Louvação da Tarde”.
189
316
Ver Capítulo I, nota 124.
191
ritual. A primeira força conjurada é a força da história, que segue aos últimos versos
citados: as estrelas do céu passam a iluminar a história colonial de Minas, um “bulício
de multidões matizadas”, em que aparecem nobres, emboabas, carijós, espanhóis,
baianos, negros, e para enfatizar a atmosfera alucinatória da visão, comparecem a “Via-
Látea” e “os planetas em pessoa”. O poder desse foco de alucinação-sonho-festa é
reforçado em outra marcação forte do poema, como a reiterar o poder do dionisismo de
reconfigurar mundos no espaço mítico da noite:
Com esse cenário, meio irreverente, meio mítico, os rios vão trazer todo o espaço de
Minas para dentro do poema: Rio das Mortes, Paraopeba, Paraibuna, Araçuí e São
192
O vento que vai entrar nesse silêncio trará a lembrança de mais uma história mineira,
dos “despenhadeiros assombrados do Rola-Moça”, e o poeta conta em um belo poema
em redondilha maior, que lembrou a Manuel Bandeira o lied de Goethe ou Uhland,317 a
história do casal que foi casar do outro lado da serra do Rola-Moça e, na volta, ao cair
da noite, em alegria nupcial, o passo em falso do cavalo joga noiva e cavalo
despenhadeiro abaixo, no que é prontamente seguida pelo noivo (versos 246-292). Essa
história e a do menino que pede esmolas são completadas por uma terceira, em prosa
corrida – no meio do poema – sobre o coronel Antônio de Oliveira Leitão, “de
orgulhosa nobreza vicentina”, que esfaqueou a filha, porque ela flertava,
hipoteticamente, com algum plebeu. O coronel foi julgado e decapitado na Bahia, e a
mulher reuniu a riqueza da família e mandou construir uma igreja para as almas do
marido e da filha (entre os versos 323 e 324). São histórias intercaladas no interior do
poema, mas que participam da sua concepção e estruturação. A diversidade das formas
chama a atenção à versatilidade do poeta. A primeira história é narrada em versos livres
prosaicos, a segunda em forma de lied, e a terceira em prosa corrida, sem quebrar o
ritmo e a atitude do espírito que animam o poema. Outra característica dessas histórias é
a ausência de caráter edificante. A história do menino, mais próxima da edificação, é
mais poética do que edificante, e as duas outras histórias de edificante nada têm, bem
como se aproximam do “causo” popular, de experiências extraordinárias que ficam
317
“Balada da „Serra do Rola-Moça‟ só encontra parelha em Goethe ou Uhland” (MORAES, Marco
Antônio (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 134).
193
gravadas na memória do povo. É essa sedimentação que o poema aproveita para seus
propósitos. O objetivo dessas histórias inseridas é operar uma terceira e última
conjuração: a do povo brasileiro. Esse objetivo é apontado pelo verso 331:
Mas não há nada como histórias pra reunir numa mesma casa...
Anterior a esse verso que expõe o objetivo das histórias, há uma convocação
enumerativa de todos os brasileiros, identificados por estado e costumes. Esta última
conjuração: “Vem, gente, vem ver o noturno de Belo Horizonte” (verso 307), já faz a
transição das conjurações de tempo, espaço e povo para o momento maior do ritual do
poema. O poema começa a perder a medida, a organização poética começa a ceder a
impulsos discursivos, que saem do poema para a atuação direta na vida. Sujeito lírico e
linguagem começam a entrar em transe. Esse transe inicial é ainda atenuado pela
história do coronel Leitão e pelo término da terceira conjuração. Mas do último verso
citado em diante, o edifício poético desmorona em favor da pregação do amor e da
fraternidade na pátria e no universo. Essa etapa não deve enganar o leitor, que pode
estar imaginando que o poeta perdeu a mão, que Mário não resistiu a seu verbalismo
característico ou que enxertou uma pregação na marra a despeito do poema. Ao
contrário, esse trecho final é a culminação da organização do foco de alucinação-sonho-
festa, da organização da embriaguez dionisíaca: feitas as conjurações, sujeito lírico e
poema entram em transe sacrificial. O sacrifício aparece aqui como característica
formal. O sacrifício em favor de uma fraternidade brasileira e universal – mas
principalmente brasileira – é um sacrifício simbólico do sujeito lírico que se configura
formalmente como sacrifício da linguagem do poema, que deixa de ser poema para se
transformar em pregação. Como manifestação material do sacrifício simbólico, é o
poema que é sacrificado em sua linguagem em favor da fraternidade brasileira. O fato
de o “poet‟s poet” de nosso primeiro Modernismo se transformar em pregador não
passou desapercebido. Drummond comenta que gostou “ampla, vastamente” do poema,
considerando poesia da melhor qualidade. Mas continua: “Só não é poesia (pelo menos
assim o creio) o trecho em que você prega o nacionalismo universalista, e que podia
figurar num discurso de 15 ou 19 de novembro. Mas o resto, quero dizer, quase todo o
194
Nesse momento específico do poema, o que age é o amor cristão, o modelo é Cristo.
Mas o significado mítico que engloba o poema todo é dionisíaco, é o ciclo morte-
ressurreição. No fim do poema já há um indício dessa ressurreição, pois a cidade dorme,
318
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 80.
319
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 51. Mário de Andrade faz uma resenha da revista Estética n. 3, em que o
poema foi publicado pela primeira vez, para outra revista, a mineira A Revista, em seu n. 3, de 1926. Aí,
Mário comenta o próprio poema “Noturno de Belo Horizonte”, e assim se manifesta quanto ao final do
poema: “Ao ler o Noturno a gente tem o prazer de um vegetal que sentisse as próprias raízes. O final do
poema não tem a mesma força poética do resto. Me parece que se deu ahi, um resfriamento intelectual. As
ideas são muito puras e muito frias. A atmosfera é outra. O ar é rarefeito. Respira-se mal. Mas não será
preciso dizer que a visão cíclica de Mário exige aquele final que não quebra a unidade da sua poesia”
(ANDRADE, Mário de. Estética, 3º Número. Rio 1925. In: ANDRADE, Carlos Drummond de; MOURA,
Emílio; ALMEIDA, Martins de; CANEDO, Gregoriano. A Revista. Belo Horizonte, 1925/1926. Edição
fac-similar. São Paulo: Metal Leve, 1978). Não sei determinar o que Mário quer dizer especificamente
com “visão cíclica” em sua obra nesses anos 1924-1925; contudo, a própria expressão se coloca
automaticamente no campo de significações do mito e, se lembrarmos da contemporaneidade entre a
expressão e a defesa do sacrifício nas cartas a Drummond, podemos aproximá-lo do ciclo morte-
ressurreição operado pelo sacrifício.
195
320
GIRARD, René. La violence et le sacré. Paris: Hachette, 1972. p. 27.
321
“Há, portanto, um denominador comum da eficácia sacrificial, tão mais visível e preponderante quanto
mais a instituição ainda está viva. Esse denominador é a violência intestina; são as dissensões, as
rivalidades, os ciúmes, as querelas entre próximos que o sacrifício pretende eliminar em primeiro lugar, é
a harmonia da comunidade que ele restaura” [tradução livre] (GIRARD, René. La violence et le sacré,
cit., p. 19).
196
agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é
grandioso, é sublime. E nos dá felicidade. Eu me sacrifiquei inteiramente”.322 E o Brasil
“não viveu” pela ausência de uma finalidade comum compartilhada, por um tipo de
igualdade fundamental que ordenasse e desse sentido aos problemas e conflitos da
nação. Nesse quadro ideal, a “alma” do Brasil, a constituição do sujeito social bem
individuado e a integridade reflexionante de sujeito lírico e linguagem literária se
formariam em homologia. Ou seja, trata-se do ideal de uma modernidade que cumprisse
suas promessas no ambiente brasileiro sem violentar as características locais. Por isso, o
sacrifício de Mário em sua poesia, possuindo a ambiguidade de toda solução mítica, não
é regressivo em relação à realidade brasileira que pretende solucionar. Para comprovar
esse argumento, basta um golpe de vista no estado de coisas a que o poema se opunha
em seu momento histórico específico, e que se consolidou como traço estrutural da vida
brasileira. É conhecida a ausência do elemento fraterno na sociabilidade brasileira, uma
sociedade que conhece em minúcias a noção de verticalidade social, sem ter a de
horizontalidade. Esse “insolidarismo social”323 é uma herança visível da história política
brasileira. Se pensarmos que a solidariedade em contexto europeu é principalmente um
fruto de pequenas organizações religiosas mais democráticas ou de uma educação
política coletiva, com possibilidade de participação social, veremos que a sociedade
brasileira simplesmente desconhece esses mecanismos. A primeira organização
ideológica da história brasileira é a Contrarreforma, que cobre quase toda a história
colonial inconteste; nossa independência se deu sob égide do Absolutismo monárquico
de base escravista; e nossa República é baseada em Comte, o primeiro intelectual
definitivamente reacionário na França depois da Revolução. Em outras palavras, o
Brasil sempre esteve antenado com a última palavra em autoritarismo da história
europeia. Isso do ponto de vista da história política. Do ponto de vista da história social,
por sua vez, destaca-se a instituição mais duradoura da história brasileira, a escravidão,
que, abolida depois de quase quatro séculos, já havia formado o padrão da sociabilidade
brasileira e vive até hoje como herança no modo de pensar e agir do corpo social
brasileiro. Com isso, temos, nas palavras de Evaristo Morais Filho, ao historiar o tema,
322
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 51.
323
MORAIS FILHO, Evaristo. O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos.
São Paulo: Alfa-Omega, 1978. p. 315. Na conclusão desse livro há um histórico da percepção da falta de
solidariedade na vida brasileira por viajantes, filósofos, historiadores e sociólogos – de que minha
exposição se aproveita.
197
“uma verdadeira constante, que não se cansam os autores de mostrar no caráter do povo
brasileiro: a falta de sentimento de cooperação de solidariedade social, de aproximação
durável e profunda em associações voluntárias”.324 É num engajamento fraterno e
nacionalista, de inflexão religiosa, que Mário de Andrade se opõe a esse estado de
coisas, a esse legado da história brasileira, e tenta solucioná-lo pela imersão da forma
poética modernista tão profundamente na realidade brasileira a ponto de poder sacrificar
a forma poética pela nação. Igualmente do ponto vista da subjetividade lírica, ela se abre
para a absorção de todas as características da nação e, principalmente, do ideal fraterno,
para que ele seja sacralizado no processo sacrificial.
***
325
Materno tal qual idealizado por Mário, e não a matriarca real, que pode ser, no mais das vezes, apenas
o patriarca de sexo trocado e acrescido de sutilezas, como a dona Glória do romance Dom Casmurro, de
Machado de Assis. Uma aproximação possível é a da extrapolação amorosa do maternalismo de Mário
com a “realidade sem complexos” do matriarcado de Pindorama, presente no Manifesto Antropófago
(1928), de Oswald de Andrade.
199
desentravar uma matéria sufocada, para romper as barreiras da vida postiça e cega na
arte e na vida social brasileira. Uma vez cumprida sua função, o mito deixa de existir,
ele é um instrumento, um mal necessário para criar uma vida mais livre e mais justa.
Esse foi o ideal principal da poesia e da obra de Mário na década de 1920.
Mesmo à época, já coexistia, ao lado desse empenho civilizatório – da ideia do Brasil
possível –, as possibilidades regressivas, presentes em seus poemas como manifestações
raras, mas pungentes, de profunda melancolia, o outro rio, o futuro rio Tietê de “A
Meditação sobre o Tietê”.326 Nas décadas de 1930 e 1940, a falência da disposição
sacrificial faz o dionisismo do poeta ganhar configurações diferentes, mais amargas,
mais sofridas. O que ocorre, então, é a impossibilidade do sacrifício positivo, e uma
crescente sensação de inutilidade começa a se apossar do poeta. O resultado é o
surgimento de disposições destrutivas, que se encaminham para o desejo de um
engajamento social mais político.
326
Assim, para citar alguns exemplos, a parte final de “Minha Loucura”, ao final de “As Enfibraturas do
Ipiranga”, de Paulicéia desvairada, a “Toada sem Álcool”, de Losango cáqui, e o “Acalanto do
Seringueiro”, de Clã do jabuti. Remate de Males, fechando a década, já está dividido entre as disposições
de 1920 e as novas disposições desiludidas de 1930/1940. Pode-se, ainda, acrescentar a esse quadro o
“brilho inútil das estrelas”, em que Macunaíma decide habitar, dando a um livro tão alegre um fecho de
infinita tristeza.
200
327
“No decurso da Primeira Guerra e antes de Estaline, as opiniões política e esteticamente avançadas
conjugavam-se; a quem, na altura, começava a despertar, a arte parecia-lhe a priori ser o que de nenhum
modo era historicamente: a priori politicamente de esquerda” (ADORNO, Theodor W. Teoria estética.
Lisboa: Edições 70, 2008. p. 381). No Modernismo brasileiro, esse “a priori” durou de 1922 a 1926,
quando o Modernismo começa a virar à direita com a “revolução da Anta” e o “Verde-amarelismo” em
São Paulo e com a revista Festa, no Rio. A consolidação de um Modernismo à direita tem seu último
capítulo na virada católica de Murilo Mendes, com a publicação com Jorge de Lima, em 1935, de Tempo
e eternidade. Desde então, a poesia radical-reacionária de Murilo é um dos fatos mais curiosos da poesia
brasileira moderna.
328
ADORNO, Theodor W. Expressionismus und künstlerische Wahrhaftigkeit. Apud ALMEIDA. Jorge
de Almeida. Crítica dialética e verdade em Theodor Adorno. Música e verdade nos anos vinte. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2007. p. 27.
201
fortes, em que os resultados sociais da cultura burguesa são lançados à face do leitor.
Mário explora uma versificação vibrátil, livre e gritada, inserindo diálogos irônicos, e
obedecendo ao ritmo psicológico do Eu. Porém, a característica mais específica do
poema nesse quadro geral é a sua função descritiva. Ao contrário da adesão do
expressionismo alemão ao que não é burguês, incluindo o aristocrático, extirpando a
burguesia da poesia, a “Ode ao Burguês” sente a necessidade de passar o “burguês-
aristocrata” paulista em revista, como se, para poder negá-lo completamente, fosse antes
necessário identificá-lo. Antes de a ciência social brasileira surgir e se deparar com a
definição problemática de uma burguesia brasileira, o poema de Mário enfrenta a
mesma questão.329 A colocação do problema entrelaça uma questão que é ao mesmo
tempo estética e social: a quem a vanguarda expressionista se opõe quando chega a São
Paulo? Quem é o burguês brasileiro? O que o poema entrevê é a identificação do
burguês com o aristocrata. Essa identificação gera dois tipos sociais solidários e
complementares: o nouveau riche aristocratizado e o aristocrata decadente. A mesma
questão será desenvolvida em maiores detalhes por Oswald de Andrade na peça O rei
da vela, um pouco mais de dez anos depois. Em “Ode ao Burguês”, a identificação não
é desenvolvida e permanece em germe, porque o objetivo do poema é a expressão da
subjetividade lírica hipertrofiada e revoltada, a “poesia do grito” expressionista. O ódio,
ecoado no título “ode”, é o verdadeiro tema do poema, e o que chama a atenção é o fato
de um tema expressionista gerar uma descrição de um tipo social. Ressalte-se
igualmente a necessidade de a poesia de vanguarda gerar uma hermenêutica da matéria
social pressuposta. O ataque ao comportamento burguês vai alvejar características que
fazem parte da moral burguesa clássica: o cálculo do “burguês-níquel”, de “relógios
musculares”, que “algarismam as manhãs”, o decoro dos “temperamentos regulares” de
religiosidade hipócrita; e alvos que fazem parte de uma conspicuous consumption de
classe decadente: o francês e o piano, a necessidade de joias quando se “morre de
fome”. Contra esse “burguês-aristocrata”, o ódio tira sua energia de um ideal não
burguês de vida, principalmente de um contato livre com a natureza, com a “vida dos
nossos setembros”, quando “O êxtase fará sempre Sol!”. A função destrutiva desse ódio,
que paradoxalmente gera uma hermenêutica social, vai ter seu ponto de chegada em
uma vida livre, mas de implicações vagas, em um tipo de primitivismo da vida natural.
329
Como apresentação do problema e revisão da categoria “burguês” na história brasileira, ver
FERNANDES, Florestan. Questões preliminares de importância interpretativa. A revolução burguesa no
Brasil. São Paulo: Globo, 2006.
202
330
Conhecida também é o termo de sua versão italiana, o “creposcularismo”.
331
GOLDSTEIN, Norma. Do Penumbrismo ao Modernismo: o primeiro Bandeira e outros poetas
significativos. São Paulo: Ática, 1983.
203
– ... a escorrer,
Um fio de lágrimas sem nome!
(versos 15-31)
Para uma leitura do lugar social do sujeito lírico nesse diálogo, será necessário
aceitar provisoriamente o interesse do pieguismo que escorre por essas linhas e cujo
resultado propriamente poético é fraco. A forma se enfraquece ao dispor de lugares-
comuns exteriores e convencionais, que caricaturizam as posições sociais: rico frívolo e
pobre sofredor. O seu interesse maior é a documentação do modo como o sujeito lírico
mariodeandradiano se relaciona com os sujeitos sociais da matéria local paulista. Em
“Colloque Sentimental”, o contato do eu lírico já não é com um “burguês” odiado e
repelido, mas com um tipo aristocrático de Higienópolis com quem o eu lírico aceita
dialogar cordialmente, e seu meio de comunicação não é o ataque, mas o diálogo. O
205
Estranhamento Cordial
Cedo Mário de Andrade vai mudar seu interlocutor, ou diversificá-lo, pela sua
imersão progressiva na esfera da cultura popular, principalmente na música e na
linguagem. Para esse novo desenvolvimento de linguagens e interlocutores poéticos,
foram fundamentais sua imersão em estudos de cultura popular e a descoberta da
diversidade geográfico-cultural do Brasil. Desse esforço se desdobram as “viagens de
descobrimento”, que vão de 1923 ao fim de 1927: Rio de Janeiro, Minas Gerais,
Amazônia, Nordeste. O resultado é uma mudança de interlocução, que tira os olhos da
metrópole paulista e percorre o carnaval carioca, Minas colonial, a nova Belo
Horizonte, o rio Amazonas e a paisagem geográfico-cultural do Nordeste. Fruto desse
esforço é o livro Clã do jabuti. Sua produção não decorre diretamente de todas as
viagens – Amazônia e Nordeste foram visitados depois do livro escrito –, mas viagens e
poemas do Clã compõem o mesmo esforço de criar uma totalização do Brasil por meio
da recuperação e elaboração de sua cultura popular filtrada por um espírito artístico e
moderno (mas não necessariamente erudito). Esse populismo de linguagem, temas e
formas não nasce de uma projeção de anseios de intelectual sobre um povo idealizado,
mas se desenvolve em contato com os materiais artísticos da cultura popular: toada,
moda, acalanto, samba, lenda, coco. Além dessa recuperação criteriosa de formas
333
“... o divórcio em países de capitalismo tardio e periférico entre classes dominantes e subalternas, dá,
muitas vezes, origem a outro divórcio no interior do primeiro grupo. Esse divórcio é entre as classes
dominantes e aqueles que deveriam ser seus ideólogos, os „homens cultos‟, que não se sentem
inteiramente à vontade em tal papel. Cria-se, assim, um grupo, ou melhor, a impressão da existência de
um grupo, na maior parte dos casos proveniente das classes dominantes, mas que se sente deslocado
delas, algo como a intelligentsia russa” (RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do
marxismo no Brasil. São Paulo: Departamento de Ciência Política da Universidade de São
Paulo/Fapesp/Editora 34, 2000. p. 52).
207
334
Populismo nacional e popular do folclorismo da poesia modernista da década de 1920, e não
populismo nacional-popular como se deu no Brasil na cultura geral da década de 1950 e início dos anos
1960.
335
O desenvolvimento dessa forma não é pleno e pacífico. “Carnaval Carioca” precisa ultrapassar o
poema e ser um convite à sensorialidade biográfica e amorosa, como expus no Capítulo III desta tese;
“Noturno de Belo Horizonte” lança mão do rito e do sacrifício para alcançar uma totalização, como expus
no Capítulo IV. Note-se, porém, a estrutura lógica, de intenção artística e criteriosa do poema longo
nacionalista de Mário, que se distingue dos poemas longos mais frouxos, que fazem apenas a mimese da
vida popular ou da história colonial em poesia. Forma frouxa e tediosa que proliferou sob os mais
diversos matizes artísticos e ideológicos na poesia nacionalista entre 1925 e 1929. Principalmente,
distingue-se o poema longo nacionalista de Mário das grandes apologias da história colonial presentes em
Guilherme de Almeida, Raça (1925); Ronald de Carvalho, Toda a América (1926); Cassiano Ricardo,
Martim Cererê (1928); e Jorge de Lima, Poemas (1927) e Novos poemas (1929).
208
versos livres que mesclam o prosaico e o poético. Há também uma fina utilização da
linguagem popular como expressão dos movimentos da espontaneidade psicológica em
expressões, adjetivação e sintaxe. Assim a função poética da expressão “de sopetão”,
fazendo vibrar os versos prosaicos anteriores e abrindo a poeticidade do terceiro verso,
com seu “sopetão” rítmico; o “livro palerma”, cujo adjetivo devolve ao prosaico a
expressão que começava a se sentimentalizar; as elipses sintáticas de fala conversada no
primeiro verso da segunda estrofe; e o comparativo popular “que nem” na chave de ouro
modernista que fecha o poema, ironizando a chave de ouro, de certo modo inovando-a,
e fechando o susto, que é o assunto do poema. Um susto da igualdade entre homens tão
diferentes.
O segundo dos poemas acreanos, o “Acalanto do Seringueiro”, aproveita um fato
circunstancial do primeiro poema, “a noite ativa que caiu”, para tentar elaborar um
acalanto para o seringueiro. Antes de prosseguir à análise desse poema, é útil ter em
mente que o seringueiro não era um assunto poético novo na década de 1920. As
décadas anteriores tiveram uma corrente de nacionalismo ufanista em forma parnasiana,
cujo ilustre antecessor era “O Caçador de Esmeraldas”, de Olavo Bilac. Os temas
nacionais proliferaram, gerando verdadeiros mapas poético-cívicos de geografia e
história do Brasil. Exemplos selecionados um pouco ao acaso iluminam o panorama:
Batista Cepelos em Os bandeirantes (1906, obra refundida e modificada para a 3ª
edição de 1911), prefaciado por Olavo Bilac, segue os bandeirantes e todos os temas
possíveis de orgulho nacional; Humberto de Campos, em sua obra poética que se inicia
em 1904 e entra pela década de 1930, desenvolve um extenso temário nacional, da
geografia do Norte e da história pátria; a musa cívica aparece em Vicente de Carvalho,
em poemas como “Fugindo ao Cativeiro” e “A Partida da Monção”, ambos de Poemas e
canções (1912); mesmo o militante anarquista José Oiticica tem um grupo de poemas
sobre o trabalho no Brasil em forma de sonetos parnasianos em Sonetos, 2ª Série
(1918);336 o nacionalismo ufanista mais cafeeiro desponta em Juca mulato (1917), de
Menotti del Picchia; e no mesmo ano de 1922, um Ricardo Gonçalves lança Ipês, de
temário regionalista caipira, publicado e prefaciado por Monteiro Lobato.337 O problema
336
São eles “Os Portos”, “Os Seringais”, “Os Canaviais” e “As Minas” (OITICICA, José. Sonetos. 2ª
Série (1911-1918). Maceió: Linotypia da Casa Ramalho, 1919. p. 164-167).
337
A melhor antologia de poesia “pré-modernista”, em que se encontram esses poetas citados, entre
muitas outras vertentes poéticas do período, é a de Fernando Góes (Panorama da poesia brasileira. O
Pré-modernismo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1960. v. V). Mais um exemplo de
nacionalismo cívico e ufanista de então é o fato de o Tratado de versificação de Bilac e Guimarães Passos
209
de toda essa produção, em maior ou menor grau presente em todos os poemas, é que ela
enfatiza os defeitos do Parnasianismo no Brasil: o tema poético como pretexto para o
preciosismo verbal e uma sentimentalidade piegas e domingueira, gerando uma espécie
de poemário cívico para a educação das crianças e deleite da família brasileira. Foi, no
entanto, essa modalidade arquiprovinciana da vida mental brasileira que garantiu a
vitória rápida do Modernismo nacionalista – uma vez vencida a resistência às formas da
vanguarda – e que esgotou seu potencial crítico em pouco mais de cinco anos e
favoreceu as vertentes ideológicas e conservadoras do Modernismo nacionalista.338 Do
ponto de vista, então, da relação entre forma literária e história das ideias, seria de
grande relevância um estudo das continuidades entre o ufanismo parnasiano e o
nacionalismo modernista, para se avaliar também o teor e o alcance dos momentos em
que há ruptura ideológica, e quais são suas consequências formais. O que importa aqui
para este trabalho é, sem perder de vista esse quadro mais amplo, especificamente o
prisma de soluções formais e ideológicas em torno da figura do seringueiro. Anteriores
ao poema de Mário há, ao menos, dois poemas sobre o seringueiro que mereceram
participar da antologia citada de Fernando Góes: “O Seringueiro”, de Humberto de
Campos, e “Os Seringais”, de José Oiticica. As soluções parnasiano-acadêmica e
parnasiano-anarquista vão auxiliar na apreciação da solução modernista-hermenêutica
de Mário de Andrade.
No poema de Humberto de Campos, o seringueiro é um continuador da empresa
“civilizatória” colonial que remonta a Anchieta:
(1910) só trazer exemplos poéticos da história da poesia brasileira, ver BILAC, Olavo; PASSOS,
Guimarães. Tratado de versificação. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1944.
338
Penso no período entre o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” e a Pau-Brasil (1924-1925), de Oswald, e
no ensaio “A poesia em 1930”, de Mário, período abertamente nacionalista, em um espírito programático
de temas e posição da sensibilidade. O Modernismo nacionalista conservador começou cedo, com o
Verde-amarelismo, a Anta, seguidos pelo Integralismo e pelo renouveau catholique nacional, culminando
no nacionalismo autoritário do Estado Novo. A vitória rápida do Modernismo nacionalista surpreendeu
Mário: “Confesso que quando me pus trabalhando pró-brasilidade complexa e integral (coisa que não se
resume como tantos imaginaram no trabalho da linguagem) confesso que nunca supus a vitória tão fácil e
o ritmo tão pegável. Pegou. Eu estava disposto a dedicar minha vida pro trabalho. Bastaram uns poucos
de anos” (Carta a Drummond de 28 de fevereiro de 1928 em SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos &
Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-
Vi, 2002. p. 321).
210
O Seringueiro
A conclusão racional, que a forma tradicional do soneto tradicional pede, faz o poeta
trair-se e desideologizar-se involuntariamente: evangelho e rifle fazem a mesma
metáfora sempre que alguma população indígena obstrui nosso caminho mercantil. É de
um cômico interessante esse vislumbre da verdade histórica pela necessidade de uma
chave de ouro. Contudo, à parte esse final, a intenção do poema é laudatória, dentro da
esfera parnasiana de preciosismo formal e adesão ao discurso oficial. O seringueiro é
transformado em uma mistura de bandeirante e jesuíta, permitindo que o poeta espalhe o
vocabulário histórico-religioso pelo poema, e ao mesmo tempo obedeça à epígrafe de
Euclides da Cunha, que parece presidir à concepção do poema. A necessidade da
elaboração pomposa da forma parnasiana se casa com um sentido heroico da história
211
Os Seringais
Uma das infelicidades do poema é a escolha do verso alexandrino, o que o torna ainda
mais solene do que os decassílabos de Humberto de Campos. Mas é em suas
infelicidades estéticas que reside o interesse do soneto. Esse anarquista de vida inteira,
militante ativo, tenta inserir um conteúdo social em sua poesia. O resultado, contudo, é
um mau conteúdo social e uma forma parnasiana pífia. A solução canhestra pode ser
observada na rima “Hileia/epopeia”, que fariam o eco do heroísmo do seringueiro. Mas
os dois termos, o científico “hileia” e o clássico “epopeia”, são antípodas do significado
dos tercetos, em que a “raça de heróis” dos quartetos se transforma em trabalhador
entregue ao próprio destino, “desamparado, oprimido e infeliz”. Em outras palavras, é
um poema feito de desencontros formais e ideológicos, de grandes incoerências, mas
cuja leitura interessa. Tentando obedecer à coerência formal parnasiana e à coerência
social da militância, o poema acaba por adquirir uma incoerência formal e uma
212
339
Há sobre a relação entre o verso livre e o verso metrificado essa interessante reflexão de Mário: “O
verso-livre adquiriu hoje definitivamente direitos de existência. É a terceira métrica; levou meio-século
para implantar-se. Mas não creio se fique nele. Sendo o mais primitivo dos meios de versejar, é ao mesmo
tempo o mais erudito. Requer a rica educação das elites. Não se popularizará. O povo, a grande maioria
dos ledores (sempre povo) pede aquela rítmica fácil, em que a volta das mesmas medidas e a regular
coincidência dos acentos ajudam a compreensão, despertam a memória e embalam sensualmente”
(ANDRADE, Mário de. Blaise Cendrars [1924]. In: EULALIO. Alexandre. A aventura brasileira de
Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme, depoimento, antologia, desenhos, conferências,
correspondência, traduções. 2. ed. rev. e ampl. por Carlos Augusto Calil. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2001.
p. 392).
213
Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Ponteando o amor eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
340
“A sombra não tem nenhum poder sobre a imagem da vida que retorna a si mesma, mas somente ela
confere ao sonho, como última lembrança de sua deformação, a pesada profundidade sob a canção sem
peso” (ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. Notas de literatura I. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2003. p. 71).
215
Nosso poeta não sabe e não sente a “palavra brasileira” porque ele não conhece o
Brasil. Não se pode unificar no sentimento ou no conceito algo que não se sabe o que é.
Se essa consideração, que deveria ser óbvia, já tem efeito inquietante em contexto
brasileiro, nosso poeta quer ir além, pois sua experiência intelectual tem de ser
complementada pela experiência sensorial. Só o estudo não lhe basta:
341
Em carta a Oneyda Alvarenga de 14 de setembro de 1940. Apud CASTRO, Moacir Werneck de.
Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 90. Ver análise de “Girassol da
Madrugada” no Capítulo III desta tese.
216
Seringueiro, seringueiro,
Queria enxergar você...
Apalpar você dormindo,
Mansamente, não se assuste,
Afastando esse cabelo
Que escorreu na sua testa.
trabalha, embora seja “poeta do sul”, cria um traço de união inédito na poesia
brasileira. O sujeito lírico da poesia brasileira, concebido de maneira geral, não se
identifica com o trabalhador pelo trabalho comum. E, além desse traço de união
inédito, note-se a ausência de pieguismo na concepção de trabalho. Poeta e
seringueiro trabalham coletivamente, assumem dívidas coletivamente, para gerar uma
riqueza apropriada particularmente. A observação despojada da realidade e que busca
traços de fraternidade chega a poetizar involuntariamente a crítica da economia
marxista (!). É desses vislumbres simples e pertinentes que a canção se compõe,
gerando o fascínio que a tornou uma espécie de unanimidade da crítica.342 No entanto,
o poeta ainda sente que mesmo a fraternidade do trabalho não gera os vínculos
desejados:
O modo popular da dupla negação adquire uma solenidade inaudita, como se tentasse
manter a lucidez na sensação dolorida de uma fraternidade que mal é pressentida e já
se evola. A possibilidade de uma intelligentsia, em germe no poema “Colloque
Sentimental”, mostra-se aqui impossível, pois o poeta não sente uma possibilidade
efetiva de comunicação e adesão à esfera popular, embora a desejasse ardentemente.
Se o reformismo da classe dominante foi descartado pela atitude de mudança do
interlocutor, também este não é acessível. Entre uma classe dominante incorrigível e
uma base popular inalcançável, o poeta desespera e sua solução é autocrítica, como se
lê na estrofe que segue:
342
Um crítico bastante frio em relação ao Modernismo como Nestor Victor, escreve: “o „Acalanto do
Seringueiro‟ [...] parece-me que é o mais capaz de ser compreendido e admirado pelo geral dos leitores”
(VICTOR, Nestor. Mário de Andrade [1928]. Os de hoje. São Paulo: Cultura Moderna, 1938. p. 357). Na
outra ponta, o poema despertou entusiasmo particular de Drummond: “Eu aperto a mão que compôs o
„Acalanto do seringueiro‟ – notável” (SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de
Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 307).
218
343
ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade, cit., p. 66.
219
Seringueiro, dorme!
344
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, cit., p. 143.
345
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil, cit., p. 186. E
ainda: “O principal efeito dos resíduos escravistas é impedir a integração da maior parte da população
brasileira à vida nacional” (p. 186).
346
“Uma corrente subterrânea coletiva é o fundamento de toda lírica individual” (ADORNO, Theodor W.
Palestra sobre lírica e sociedade, cit., p. 77).
220
Brasileiro, dorme.
Brasileiro... dorme...
Brasileiro... dorme...
Culpa e Autodestruição
347
. LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000. p.
209 e PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 36.
São Paulo: IEB, 1994.
348
Ambos reproduzidos em PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit.
349
ANDRADE, Mário de. Projeto de ensaio de interpretação. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da
Miséria”, cit., p. 177.
222
350
A alteridade será talvez possível no plano amoroso, como vimos nos “Poemas da Negra”, mas ainda
assim, essa transitividade é perpassada por um sentimento de consolação – que já é uma desistência de
transitividade social – e de uma existência espectral dos amantes, de uma essencialidade incorpórea.
351
Por exemplo, em relação ao conflito social: há soluções amorosas (parte I), soluções utópicas (parte
XV), momentos de revolta (parte XII), momentos de desistência (parte VIII), momentos de autocrítica
(parte XIII). Há disposições da sensibilidade: confessionais (parte I), distanciamento e autocrítica (parte
VIII), autoironização (parte V). As perspectivas formais também mudam, usando formas do verso livre
confessional ou corrosivo na maior parte do poema, formas populares como o coco (parte II) e o cordel
(parte III), formas da canção (parte XIV).
352
No curto comentário sobre o poema de LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo, cit., p.
209, ele fala de “destruição sistemática da linguagem”. Nesse comentário, a linguagem problemática do
poema é apontada com acerto, mas a rapidez com que o crítico conclui que o poeta faz uma síntese bem-
sucedida de projeto estético e projeto ideológico afasta o centro problemático do poema em favor do
argumento de seu livro.
223
E esse assunto do poema, que agora vai esclarecer o sentido dele todo e de numerosos
versos e mesmo partes inteiras dele, é a luta do burguês gostosão, satisfeito das suas regalias,
filho-da-putamente encastoado nas prerrogativas da sua classe, a luta do burguês pra abandonar
todos os seus preconceitos e prazeres em proveito de um ideal mais perfeito. Ideal a que a
inteligência dele já tinha chegado por dedução, lógica e estudo, e que a noção moral aprovava e
consentia, mas a que tudo o mais nele não consentia, não queria saber. Simplesmente porque
estava gostoso.353
353
ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit., p.
181.
354
Sobre a diferença de “assunto” e “tema” em poesia, ver ANDRADE, Mário de. Castro Alves [1939].
Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. “O assunto, em poesia, tem de ser o que
é a melodia infinita em música, um elemento geral e genérico, dentro do qual os movimentos do ser
vagueiam entre descaminhos, encruzilhadas, quedas em abismos, vagabundagens de sentimentos, ideias,
juízos. Ao passo que o tema em poesia é a restrição do assunto a um ponto só da sua caminhada, da
mesma forma que em música é um elemento curto retirado da melodia” (p. 140).
355
ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit., “Eu
sofrera muito do lado „família‟ com a revolução” (p. 179).
224
de 32, que literalmente invadiu a vida pessoal do poeta, ele faz uma observação sobre o
engajamento das classes sociais nela, em carta a Drummond, que vale a pena
transcrever:
Não esqueço que o voluntariado podia ser maior, que a classe proletária, tanto rural
como urbana, deu pouca contribuição militarista. Dos quase duzentos mil operários de fábrica
paulistas, muitos trabalhados pelo comunismo, a contribuição de voluntários pra guerrear não foi
mínima, foi nula. Mas toda a gente aceitava fabricar engenhos de guerra. Os comunistas
partidários que querem fazer da guerra paulista um movimento exclusivamente burguês mentem
por pragmatismo, no seu já famoso pragmatismo que no Brasil se transformou notoriamente em
licença pra todas as safadezas. A pequena burguesia, assimilável ao proletariado, com a única
diferença de ganhar por mês o pão que o proletariado ganha por dia, a pequena burguesia, que
tem seus ideais pouco acima de pão e dormida, entrou com violência sentida na guerra.356
356
Carta de 6 de novembro de 1932. SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de
Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 425. Não encontrei documentação sobre a
interpretação proletária da Revolução de 32. A mais ampla documentação dos interesses das classes nesse
período de 1930-1937 está em CARONE, Edgard. A segunda República (1930-1937). São Paulo: Difel,
1974.
225
357
Chamo de “componentes sociais” as organizações de grupos e de classes bem definidas que
participassem de um conflito e de um processo histórico-social inteligíveis. São “componentes sociais”
que estavam claras, em outro contexto, para o Lukács de História e consciência de classe, cuja primeira
edição é de 1922.
358
Adapto para meus propósitos uma expressão que está em ADORNO, Theodor W. O Artista como
Representante. Notas de literatura I, cit., p. 164. Nesse texto do filósofo sobre Valéry, ela significa o
“homem completo e indiviso”, o “sujeito completo” no qual “a sina da cega individuação fosse
cancelada”.
359
“Como criação, como formação e existência eu sou burguês „da pior burguesaria‟” (ANDRADE,
Mário de. Projeto de ensaio de interpretação. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit., p.
178).
226
Há uma dualidade estrutural que atravessa essa primeira parte, que já contém em si
parte substancial do “assunto” do poema. Algumas referências poéticas são palpáveis e
227
360
“Está claro que certas palavras, certos vocativos, por mais que eu me psicanalise, não consigo
descobrir donde me vieram, „viúvas‟, „a mulher da Bolívia‟, por exemplo. Mas vibram como palavras, são
expressões-palavras que me parecem sugestivas e por isso deixei elas assim mesmo” [grifo meu]
(ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit., p.
182).
361
“Charanga” é a antiga banda militar formada por instrumentos de sopro; “papagalo”, ao que parece, é a
forma latinizada-deformada de “papagaio”.
362
Termo usado por CAMILO, Vagner. Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001. p. 86.
363
ANDRADE, Mário de. A Poesia em 1930 [1931]. Aspectos da literatura brasileira, cit., p. 42
364
Carta de 21 de janeiro de 1933. In: MORAES, Marco Antônio (Org.). Correspondência Mário de
Andrade & Manuel Bandeira, cit., p. 549. Mário mais de uma vez repete o elogio recebido quando diz
228
que, segundo Manuel Bandeira, “„O Carro da Miséria‟ contém alguns dos versos mais bonitos que já
inventei” (ANDRADE, Mário de. Projeto de ensaio de interpretação. In: PAES, José Paulo. Sobre “O
Carro da Miséria”, cit., p. 177).
365
Expressão de José Paulo Paes. (Sobre “O Carro da Miséria”, cit., p. 176).
366
ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit., p.
181. “Zabumba” pode significar bumbo, ou cuíca. Na continuação do texto, Mário escreve que “acerta a
mão” dessa “ideia-refrão básica” só “na XVa parte: „Estes zabumbas eu quero!‟” (p. 181).
229
VIII
367
ANDRADE, Mário de. A Carlos Lacerda. In: PAES, José Paulo. Sobre “O Carro da Miséria”, cit., p.
181-182.
368
“Unanimismo” é um termo criado por Jules Romains, que seguiria uma linhagem poética de
democracia universal e amor fraterno entre os homens. Ligada ao surgimento do verso livre, sua história
acompanha o fio Victor Hugo-Whitman-Jules Romains-Émile Verhaeren e exerce influência significativa
na poesia modernista de Apollinaire, ver Capítulo I desta tese, p. 47.
230
Mergulho no ão do vendaval.
... toda essa multidão de caminhos malditos
Por onde puxo o Carro da Miséria feito boi
Eu boi? Eu cobra! não! que eu sou gaúcho
Cuera na dignidade e na zangueza!
mesmo”, trazido para a lírica moderna por Baudelaire.369 Em vez do “eu em pedaços” e
da “pororoca prodigiosa”, encontramos o “mamote safado” e o “safadíssimo chupim”,
que o poeta declara ser. O refluxo do espírito de “vou-me embora” encontra um poeta
que adquire consciência de si e se odeia, que se percebe e se rejeita. O desenvolvimento
desse aspecto na última estrofe é o sarcasmo, que desenvolve a lógica de mutilação do
poema, em que mesmo a autoagressão não se completa porque é mutilada pelo
sarcasmo. A formulação dolorosa de autoagressão e sarcasmo reaparece na parte XIII:
XIII
369
Ver poema “Le Héautontimouroménos”, de Baudelaire. Sobre a configuração dessa questão em
Drummond, ver CAMILO, Vagner. Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas, cit., especificamente o
item 6 da Parte III: Drummond Héautontimorouménos: Culpa Social.
232
370
Para se ter em mente o peso desse problema, podemos notar que algo dessa mesma ordem ocorre,
segundo Rodrigo Naves, em um momento decisivo da obra de Volpi. Analisando o quadro Bandeirinhas
“primavera”, de meados da década de 1960, o crítico escreve: “Por fim, se estabelece um presente na
obra de Volpi. Ele se mostra de relance e sua intensidade tem a marca da extinção. O presente carece de
organicidade e apenas desmonta em manifestações contingentes, fadadas a uma vida breve” (NAVES,
Rodrigo. Anonimato e singularidade em Volpi. A forma difícil. Ensaios sobre arte brasileira. São Paulo:
Editora Ática, 2001. p. 194).
371
Ver Capítulo I desta tese.
234
Esses versos descrevem o fracasso do poeta que quis se “purificar no barro dos
sofrimentos dos homens” (v. 39). Há um percurso não linear de autodescrição desse
trecho. O poeta nasceu das águas do rio, ele foi gerado nas águas do contágio, nas águas
da história brasileira. No entanto, passou por um processo de autocriação reflexiva, a se
reconstituir na dor dos homens. Dessa reconstituição, cujo sinal na obra de Mário é o
Amazonas, o rio da história brasileira a ser construída, nasce o poeta do Modernismo,
principalmente o do Modernismo nacionalista, que deseja sacrificar-se pela renovação
da poesia, da literatura, da cultura e da história brasileiras. Contudo, nesse sacrifício, o
poeta exercia duas funções: a vítima sacrificial e o sacrificador. Ele era ao mesmo
tempo vítima e agente da história brasileira por vir. Esse é o ciclo de sua poesia da
década de 1920. De 1930 em diante, o poeta começa a se ver destituído da condição de
agente do sacrifício e passa a se perceber como parte de uma história a que ele não tem
controle nem acesso. Desse sentimento, surge o conflito de consciência que explode em
“O Carro da Miséria”, e o “algoz de si mesmo” ainda é uma última tentativa de o poeta
direcionar o próprio sacrifício, agora em negativo, passando do dionisismo alegre de
1920 ao dionisismo expiatório de 1930-1940. Essa autorrejeição expiatória ecoa forte
ainda nos versos da “Meditação”, em que o poema se nega o privilégio da lamentação e
da autocondescendência. O que muda em “A Meditação sobre o Tietê” é que o poeta
235
não é mais o sacrificador, ele não é mais agente, mas somente a vítima sacrificial.
Porém, não a vítima sacrificial do Brasil por vir, mas a vítima sacrificial da
modernização conservadora, da renovação que repõe o Brasil de sempre, numa
paradoxal conservação de um ritmo destrutivo e cego. A astúcia de Mário nessa grande
meditação é transformar seu sacrifício em um rito cuja enunciação pertence à vítima, o
que impede o sacrificador de negligenciá-la. A esse rito responde a solenidade do verso
livre-versículo do poema, construído com o próprio potencial renovador da matéria
brasileira que está sacrificando. Nessa autodescrição não linear, então, o poeta nasce da
história brasileira, purifica-se buscando purificá-la, percebe-se como parte da sujeira a
ser purificada e se rejeita, até se declarar vencido, definitivamente sujado pelas águas do
rio. No entanto, todo esse processo de uma grande derrota é documentado pela pesquisa
da matéria e das formas brasileiras, criando uma espécie de recolhimento e compactação
da experiência brasileira como um todo, podendo dispô-la e dispor a si mesmo segundo
sua potencialidade latente de renovação. Assim, o complexo dionisíaco-sacrificial é uma
solução mítica que responde à potencialidade da própria matéria brasileira, cujas
desconexões, desajustes e desconcertos – com suas implicações de dominação histórica
e de classe – como que clamam por uma redenção, uma maneira de se socorrer no mito
para livrar-se de um mundo calamitoso.
***
poeta Mário de Andrade com o apelo à magia. Roger Bastide, que elaborou algumas das
mais finas observações sobre sua poesia, conclui seu texto sobre Mário com as palavras:
“Compreende-se então por que Mário de Andrade é poeta. É que ele foi condenado à
poesia. Cercado de ausências, viu-se forçado ao sortilégio e à magia de transformar
todas essas obscuras ausências em presenças luminosas”.372 Diferentemente dos anseios
de plenitude do sujeito poético da poesia europeia moderna, que busca dissolver a
individuação não emancipada373 integrando-se no orfismo mallarmeano ou no vitalismo
rimbaudiano (para falar somente em duas vias da moderna poesia europeia), o que o
sujeito poético mariodeandradiano deseja é reconhecer-se e, reconhecendo-se, buscar a
fraternidade. Desse modo, não se trata em sua poesia dos constrangimentos e superações
do sujeito que existe de facto, individuado pela sociedade moderna, mas da inquietude
de quem busca ser um sujeito de jure, uma busca de poder exercer as prerrogativas de
um sujeito moderno. Essa não individuação do sujeito brasileiro é a sua ausência
fundamental, geradora de muitas outras ausências. Ausência que serviu de base, na
poesia modernista e fora dela, a muita adesão a mitos de direita, que supriam a ausência
com um totem-restaurador: o Integralismo (que não se perca pelo nome), a poesia em
Cristo (que era uma “restauração”, com o lema “restaurar a poesia em Cristo”), e, no
plano social, o Estado forte, supridor de ausências fundamentais, simultaneamente
autoritário e paterno. Em Mário, sua magia e seu sortilégio visaram ser uma solução
fraterna da ausência, guardando sempre uma posição mais à esquerda, que se acirrava e
se tornava explícita no último período de sua obra. A principal formulação “à esquerda”
de Mário é o seu dionisismo sacrificial: o seu doar-se plenamente para a liberdade de
outrem, ou, em sua versão posterior, a destruição purificadora de todos os pressupostos
oprimentes da existência, destruição necessária para um renascimento “libertado” das
coisas, dando inflexão materialista ao ciclo morte-ressurreição do dionisismo. Essa
versão destruidora da história brasileira tal qual configurada até então, essa necessidade
de purificação e libertação da matéria sufocada, esse ódio ao que é oprimente e
deprimente vai ter continuidade em uma flor que nasce do ódio, rompe o asfalto e dá a
372
BASTIDE, Roger. Mário de Andrade [1940]. Poetas do Brasil. São Paulo: Edusp/Duas Cidades, 1997.
p. 80.
373
Lembrando que o processo de individuação e subjetivação na história europeia moderna ocorreu de
modo contraditório, pois as potencialidades de emancipação do sujeito foram freadas e progressivamente
tolhidas em favor da autoconsevação do indivíduo para as finalidades da sociedade industrial. Esse
percurso dialético da subjetividade é descrito em ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max.
Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. Principalmente no Excurso I: Ulisses ou
Mito e Esclarecimento.
238
poucos uma esperança mínima. Estou falando da recuperação dos dilemas da poesia
mariodeandradiana por Drummond em A rosa do povo. Evidente na década de 1920, o
laço entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade nos quinze anos
posteriores é menos observado pela crítica de poesia brasileira.374 Parte do problema se
deve à publicação recente das cartas de Drummond a Mário, ocorrida somente em
2002,375 parte se deve à constituição formalista e universalizante (mais generalizante do
que universalizante, a bem dizer) da crítica de poesia brasileira. Na formação do nosso
cânone de poesia moderna, esquematicamente falando, Drummond figura como central,
capaz de abarcar os grandes dilemas do homem moderno, enquanto a poesia de Mário
de Andrade (e Mário costuma ser lembrado somente como autor de Paulicéia
desvairada) faria parte da história documental da modernidade brasileira, sem maiores
ressonâncias. As ausências brasileiras, sentidas também pela crítica de poesia, são
supridas por esta por um formalismo de aspiração universalizante, quase sempre à
reboque de alguma teoria europeia ou norte-americana, que lhe daria lastro de
atualidade mundial e relevância local.376 O que se perde nessa história da crítica da
poesia brasileira em litígio com a própria poesia brasileira é a ruptura dos laços internos,
por vezes muito frágeis, que a constituem. Contrariamente a isso, podemos ver que a
relação de Drummond e Mário, nos últimos anos de vida deste, e principalmente em
1944, retoma o vigor da década de 1920, mas agora em outro plano.377 Do nível da
estética modernista passou-se à reflexão estético-política sobre a poesia. Mas, ainda
aqui, Drummond se vê espelhado e, de certa forma, amparado por Mário: “Eu me sinto
justificado nas suas obras completas; me sinto também explicado e realizado. Acho que
você foi grande por si mesmo, pela força própria e pelo suor do seu trabalho, mas um
374
Tampouco a relação entre a poesia dos dois é muito estudada nesse momento inicial de nosso
Modernismo, um dos raros estudos é “Drummond e Mário de Andrade”, em GLEDSON, John.
Influências e impasses. Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Proponho nesse argumento uma descrição panorâmica de uma questão central da constituição da nossa
crítica, panorama em que não figuram, logicamente, as gratas exceções que formam o pequeno grupo de
nossas melhores obras de crítica literária.
375
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.
376
Sobre isso, SCHWARZ, Roberto. Nacional por Subtração. Que horas são? São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
377
Esse diálogo, pela evidência do poema “Mário de Andrade desce aos Infernos”, de A rosa do povo, é
comentado panoramicamente por todos os que se debruçam pelo conjunto do livro de Drummond de
1945. A pertinência desse diálogo, contudo, é raramente notada. Ela está mais presente, entretanto, em
SIMON, Iumna Maria. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática, 1978. p. 109-114. Também
Vagner Camilo retoma esse diálogo, pensando nas posturas de Drummond no pós-guerra, ver CAMILO,
Vagner. Drummond: da rosa do povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 58-62.
239
pouco dessa grandeza se espalha por todos nós e nos engrandece também”.378 E
especificando melhor a admiração por Mário naquele exato momento da vida intelectual
e política brasileira, Drummond conclui: “Ah! Mário, cada vez admiro mais a sua
inconformidade e o seu nojo feroz dessa felicidade barata... A sua conferência sobre o
modernismo e o prefácio ao Otávio de Freitas Lima são duas metralhadoras”. 379 Essas
são palavras sobre o significado histórico e ideológico da obra de Mário de Andrade
dentro do Movimento Modernista como um todo. Sobre a relação propriamente poética
que Drummond estabelece com Mário a essa altura, há carta de 18 de julho de 1944:
“sua poesia é para mim um ponto de partida para novas procuras e novos achados”, e
conclui:
Peço-lhe ardentemente que continue a mandar-me os versos que for fazendo, pois se me
interessa muitíssimo tudo que você faz, os versos mais do que qualquer coisa, pela solidão da
poesia entre nós, pela necessidade que eu sinto de ver uma grande força como você resolvendo
os problemas de nós todos. Não se esqueça deste seu amigo também insatisfeito e perplexo (já
não são mais aqueles sentimentos infelizes de vinte anos atrás, liquidados por sua crítica
arrasadora e por um largo trabalho de análise da minha parte) são outros, o que você pode bem
avaliar; chego a me convencer que eles me honram um pouco, pelo que têm de empenho. 380
Mário exerce, então, uma dupla influência em Drummond: como um poeta que se
coloca problemas estéticos e busca resolvê-los, ou seja, como um poeta-técnico, e como
um amigo-formador, capaz de agir sobre a própria constituição humana do amigo,
ambos capazes de se autoavaliar e, ao mesmo tempo, compartilhar uma humanidade
comum e gratuita. Desse modo, é letra e espírito de Drummond que se sentem
vinculados a Mário de Andrade, e que em dado momento visam a uma sintonia poética
em que se harmonizam o empenho de Drummond e o legado poético e humano de
Mário.
378
Carta de 9 de dezembro de 1944. SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de
Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 536.
379
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 537. Os textos citados por Drummond são “O Movimento Modernista” e
“Segundo Momento Pernambucano”, ambos publicados em ANDRADE, Mário de. Aspectos da
literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. Sobre esse último texto, Drummond se enganou na
escrita do nome do autor do livro prefaciado, que é Otávio de Freitas Júnior. Sobre o significado de “O
Movimento Modernista”, ver a interpretação dada nesta tese no Capítulo I.
380
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 507-508.
240
... a emoção que foi para mim a leitura de suas Poesias [1941]. [...] me assombrou a
importância da sua poesia, assim reunida em livro único, que mostra bem a sua força lírica, às
vezes um pouco esquecida diante da variedade da sua obra de ensaísta. Acho que sua obra
poética está guardada para uma aceitação futura integral, tanto mais quanto nela é mínima a
porção capaz de obter agrado fácil e imediato. Descobri que você esta só no meio de vários
poetas, só pelas suas preocupações especiais, pela sua realização própria, pela complexidade de
sua pena poética. Nenhum índice mais impressionante da fragilidade da crítica brasileira de
poesia do que o comportamento dela diante de você poeta. Parece que você permanecerá intato
e puríssimo para o gosto e a compreensão amadurecida da gente que há de vir... 381 [grifo meu].
381
SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 474-475. Sobre a importância de Mário na formação de Drummond há também
a crônica Suas Cartas [1944], recolhida em ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas
[1944]. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
241
cujas realizações trazem de modo pouco explícito, mas com importância decisiva, a
marca do diálogo. Drummond incorpora o sentido da poesia mariodeandradiana
porque passa a compartilhar desse sentido por meio de uma avaliação autônoma e
reflexiva de si mesmo, da poesia de Mário, da história brasileira e de suas
potencialidades de significação. A conotação subalterna do par influenciador-
influenciado é aqui totalmente eliminada. Drummond, por questões de idade e de
posição dentro do Modernismo, herda os problemas e soluções legados por Mário, o que
não só aumenta a importância do poeta paulista em relação ao mineiro como, pelo
reverso dialético, aumenta a importância de Drummond em relação à obra de Mário,
que passa a avaliá-la rigorosamente na medida mesma em que a toma para si. Desfeita
uma possível confusão entre influência e diálogo crítico, é necessário expor de que
maneira o sentido da poesia de Mário converge para A rosa do povo. O quadro geral
desse sentido poético pode ser apreendido no fato de que, no livro de Drummond de
1945, uma humanidade verdadeira só é possível se ela surgir de uma destruição
purificadora: as palavras precisam extinguir suas afinidades sedimentadas (como “sono”
e “outono”, de “Consideração do Poema”) ou sua referencialidade elementar em
“Procura da Poesia”; a flor de “A Flor e a Náusea” nasce não somente do asfalto mas
também do ódio e do ímpeto incendiário do sujeito lírico (“Pôr fogo em tudo, inclusive
em mim”, “meu ódio é o melhor de mim”), e mesmo a famosa orquídea antieuclidiana
de “Áporo” só se forma, desatando o seu labirinto, após um movimento descendente de
cavar a terra e adquirir ciência do “enlace de noite, raiz e minério” do “país bloqueado”.
Em “Nosso Tempo”, a solução quanto a um mundo de “absoluta corrupção”382 é assim
expressa pelo poeta: “com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/promete
ajudar/a destruí-lo” [grifo meu]; um mundo parecido, feito de temor e violência, em
“Morte do Leiteiro”, é redimido pela morte de um inocente e o reconhecimento de culpa
do assassino, em que a aurora surge da mistura do leite e do sangue; e, ainda na
circunscrição temática da violência do tempo presente, o poeta deposita suas
esperanças, no cenário da Segunda Guerra Mundial, na “cidade destruída” Stalingrado,
como dizem os versos: “pois que entre as ruínas/outros homens surgem, a face negra de
pó e de pólvora,/e o hálito selvagem da liberdade”. No plano da consciência subjetiva,
após a imersão noturna da consciência em “Passagem da Noite”, em que o processo
noite-amanhecer do tempo é análogo ao processo expiação-ressurgimento da vida, há
382
Expressão de John Gledson (Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas
Cidades, 1981. p. 167).
242
em “Uma hora em mais outra” a definição mesma do procedimento nos versos finais:
“pois a hora mais bela/surge da mais triste”; da consciência subjetiva à consciência da
alteridade, o poeta figura o surgimento do mundo dos homens iguais – ou equânimes –
pela sua própria mutilação e morte nas mãos do “irmão vingador” em “Movimento da
Espada”; e passando da consciência da alteridade para a consciência do poeta como
indivíduo, sujeito participante do espaço público, é ainda da eliminação do indivíduo
público historicamente determinado, do regresso a uma irredutível solidão, que surge a
possibilidade do conhecimento do outro e da fraternidade, como escreve o poeta em
“América”. Na esfera amorosa, a paixão alimentada pelo mundo mercantil em “O Mito”
só é desfeita quando o poeta desarma o “mito” de fulana “de burguês sorriso/e de tão
burro esplendor” e se aventura na composição – hipotética – de um amor que também
seja fraternidade. Já no plano da família, especificamente da figura do pai, é ainda na
noite, na noite do tempo e da consciência, o lugar por excelência da expiação em A rosa
do povo,383 que é possível o entendimento por meio do diálogo com o pai: “Guardavas
talvez o amor/em tripla cerca de espinhos//Já não precisas guardá-lo./No escuro em que
fazes anos,/no escuro,/é permitido sorrir”. Ainda o tema da morte passa pelo crivo
expiação-ressurgimento, pois a morte do poeta em “Os Últimos Dias” pode ser encarada
de modo mais sereno a partir da conclusão: “vida aos outros legada”, e da morte de
outro poeta, Mário de Andrade, surge em “Mário de Andrade desce aos Infernos”, a
“rosa do povo”, título do livro de poemas de Drummond, que o poeta Mário de Andrade
“nas trevas, anunciou” [grifo meu]. Todo esse complexo temático – linguagem, tempo
presente, consciência subjetiva, consciência social, amor, família e morte – é exposto
nos poemas citados como ciclo dionisíaco completo: morte-ressurreição ou expiação-
ressurgimento. Em outro grupo de poemas, esse ciclo dionisíaco não se completa, ou
porque é travado e padece as consequências do bloqueio – o fardo do país bloqueado –,
ou porque as suas possibilidades de realização são muito frágeis, e Drummond
configura uma espécie de dionisismo fragilizado ou dionisismo em potência. Poemas
que desenvolvem uma condição em que há um bloqueio da possibilidade do ciclo
dionisíaco são: “O Medo”, que tematiza um dos próprios elementos principais que
travam o aspecto superador do dionisismo; “Vida Menor”, que idealiza uma vida
383
Chaplin, por exemplo, em “Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin” traz a esperança porque,
vestido de negro (“A noite banha a sua roupa”), ele traz a face branca (“E a lua pousa/em teu rosto”), e da
radicalização desse contraste da noite mais densa e do branco mais claro surgem os olhos e a boca
(“sorrir, aurora, para todos”).
243
involutiva, reduzida ao mínimo essencial;384 “Resíduo”, cuja senda poética é a vida feita
do contágio de elementos heterogêneos e da manutenção do que deveria ser superado:
“Oh, abre os vidros de loção/e abafa/o insuportável cheiro da memória”; a desolação de
“Consolo na Praia”, em que a ideia de insolubilidade dos problemas se resolve em
suicídio imaginado, nudez e acalanto; a prefiguração do “enterrado vivo” em
“Indicações”; e a persistência do passado, do rio da história brasileira sedimentada em
“Onde há pouco falávamos”, na imagem de um antigo piano. A latência do dionisismo
se apresenta em “Anoitecer”, em que o poeta imerge na hora mais triste sem vislumbrar
a hora mais bela, mas configurando as condições de seu surgimento; em “Rola Mundo”,
em que o aspecto destrutivo sobrepuja qualquer outro, sem que da destruição surja o
elemento libertador e construtivo; em “Economia dos Mares Terrestres”, cuja
comunicação subterrânea se mantém latente, mas não se completa; em “Anúncio da
Rosa”, cujo sentido é a impossibilidade de transação comercial da rosa, que tem em
potência o surgimento de uma rosa não vendável, mas que o poema não desenvolve; em
“Caso do Vestido”, que narra da perspectiva do materno as consequências desastrosas
das veleidades sexuais do patriarca, abrindo outra perspectiva sobre os modos de
dominação e suas consequências no Brasil;385 e, por fim, em “O Elefante”, um de seus
exemplos mais belos, em que a dificuldade de agir solidariamente e a exposição da
fragilidade das possibilidades do eu já contêm em latência a necessidade do mito (do
mito dionisíaco) para criar o mundo da solidariedade efetiva. A enumeração de poemas
das últimas três páginas, apesar de longa, não pretende ser exaustiva. Sua intenção é
apenas o mapeamento das linhas gerais de uma dialética interna à obra. Não há espaço
para estudar detidamente as questões fundamentais que se desdobram dessa descrição
de linhas gerais que se espalham pelos poemas, quais sejam, a presença simultânea no
livro de Drummond de 1945 do ciclo dionisíaco completo e do ciclo incompleto, bem
como suas consequências. Porém, cabe aqui a tentativa de acompanhar como
Drummond concebe o anunciador da “rosa do povo”, concepção esta presente no
próprio livro, em “Mário de Andrade desce aos Infernos”, e que pode servir de
384
Lafetá notou a proximidade de sentimento interior entre “Vida Menor”, de Drummond, e “Rito do
Irmão Pequeno”, de Mário de Andrade (LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade. São Paulo:
Martins Fontes, 1986. p. 206-207).
385
Note-se a proximidade da adesão à perspectiva do materno em “Caso do Vestido” e da fraternidade
antipatriarcal de Mário, que tentei estudar nas linhas finais do Capítulo IV desta tese. Uma perspectiva do
masculino sobre a mesma questão de “Caso do Vestido” pode ser lida em “A Partida”, de Vinícius de
Moraes, publicado em Poemas, sonetos e baladas (1946).
244
São versos antes amorosos do que analíticos. O poema ideal de Drummond é pautado
por aquele amor-amizade que era o mais alto ideal humano de Mário: a filia.386 A
reunião de forças necessárias dispõe o poema como projeto futuro, nesses verbos no
futuro do indicativo que marcam cada verso. A estrofe em versos livres é organizada
fundamentalmente pelos verbos no futuro e pelas imagens de uma natureza sobrepujada.
O suspiro mais que humano, realizado no poema, desorientará a natureza, porque seu
princípio ordenador será superior, de uma beleza mais rara do que a das flores, e uma
doçura mais sedutora que a do mel. Das hipérboles dessas imagens que descrevem a
ação do poema futuro pode-se depreender certa analogia entre a natureza do poema e a
natureza de seu inspirador. O poema sobrepuja a natureza porque Mário de Andrade
significa um princípio ordenador mais elevado. O poeta paulista não somente pode
encantar e reordenar a natureza (conforme veremos adiante) como é portador do ideal
386
Ver Capítulo III desta tese.
245
mais elevado: a formação humana levada a cabo com rigor e carinho, em uma alquimia
rara de Bildung goethiana387 e filia. Contudo, as urgências do momento, sejam as
demandas participativas da época, seja a necessidade de externar a dor da perda, fazem
com que o canto realize-se no agora, carregando as marcas da sua imediatidade:
387
“Eis o conceito goethiano de „Bildung‟, de „formação‟: a transformação do caos de experiências e
conhecimentos em uma estrutura orgânica” (CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental.
Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1961. v. IV, p. 1.619).
246
A lucidez desses versos não é consequência de uma diminuição da dor da perda, que
não há, mas da observação que Drummond faz de si mesmo, do processo analítico
interno ao próprio dilaceramento subjetivo. O verso livre se torna mais longo e mais
pausado, sua natureza é mais descritiva, como se o poeta buscasse mapear seu próprio
sofrimento. O primeiro verso é modelar nesse sentido: “No chão me deito à maneira dos
desesperados”. Seu significado é extremamente doloroso, mas sua dicção é mais sóbria.
Como se o poeta ardesse em chama fria, ele consegue perscrutar-se, e tenta fazer seu
trabalho de luto, de reconhecimento da perda e necessidade de comunicar-se. Na
segunda estrofe, essa parte II faz uma espécie de dionisismo em miniatura, pois o poeta
retoma a lucidez depois de fazer a constatação mais terrível: “Estou rigorosamente
noturno, estou vazio”. O que pode compor e comunicar quem está rigorosamente
noturno e vazio? Ainda aqui, em um tipo de “realismo psicológico”,388 Drummond vai
compor a documentação de seu próprio processo de retomada de consciência, de
consciência da própria existência e condição de poeta, da necessidade de comunicação.
Todo o restante da segunda estrofe é um documento psicológico do trabalho de luto, de
sentimento de perda, perda da própria capacidade poética (“minhas medidas partiram-
388
Ver Capítulo II desta tese.
247
O metro se uniformiza na redondilha maior, verso popular por excelência, com algumas
quebras de metro por questões de ênfase, como o segundo verso aumentado (a não ser
que se faça a redução fonética “extrordinário”), a redondilha quebrada “dos Sete Saltos”
e o verso “fantásticos”. A escolha do metro certamente evoca o projeto de Mário de
Andrade de imersão na pesquisa da cultura popular, da música popular e do folclore.
Possui também o ritmo da redondilha uma naturalidade maior para o ouvido, o que
talvez tenha a intenção de reverberar a musicalidade do amigo, seus “coletes de
música”. O que habita o ritmo fluente da redondilha são características de Mário,
características que logo nos dois versos iniciais já se apresentam como prodígios: “O
meu amigo era tão/de tal modo extraordinário”. “Extraordinário” em si já veicula um
conteúdo de algo a mais: extra-ordinário. Esse “algo a mais” tem um intensificador
inicial “tão”, que já monta uma hipérbole: “tão extraordinário”. Mas Drummond, para
não deixar dúvida sobre os prodígios do amigo, agrega mais um intensificador: “tão de
tal modo extraordinário”, transformando a redundância gramatical em caracterização de
um tour de force.389 As propriedades desse tour de force, dessa capacidade de prodígios,
compõem a enumeração dos versos seguintes até o fim dessa parte. Mais importante do
que a soma das características é o padrão de movimento que elas descrevem. Entre o
verso 3 “cabia numa só carta” e o verso 13 “nos mais diversos brasis”, o que
Drummond descreve é o movimento da subjetividade desdobrada.390 O amigo presente
na correspondência, o visitante de Belo Horizonte, o viajante pelo Brasil, o pesquisador
de música e poeta musical são características que compõem uma capacidade de
movimento, um poder de mobilidade que se afigura sobre-humano, por isso as imagens
ganham tonalidades surrealistas como os “coletes de música” e o pairar “na renda
fina/dos Sete Saltos”.391 Os elementos do projeto poético de Mário estão igualmente
descritos: a pedagogia modernista, a subjetividade desdobrada, a música, as viagens
pelo Brasil. O leitor provavelmente está sentindo falta da dança (a não ser pela sutil
evocação do nome “Sete Saltos”), mas é justamente ela que, não enunciada nos versos,
os está presidindo de modo mais profundo. O movimento dançante da subjetividade
389
Ver Capítulo II desta tese.
390
Ver Capítulo II desta tese.
391
“Sete Saltos” provavelmente se refere ao rio Sete Saltos, localizado no planalto paranaense. Essa
imagem certamente evoca o trecho final de “Noturno de Belo Horizonte”: “Ar arejado batido nas pedras
dos morros,/Varado através da água trançada das cachoeiras” (versos 403-404), que Drummond elogia em
carta de 30 de dezembro de 1924: “Encontro, por exemplo, no fim [do poema], uma „água trançada das
cachoeiras‟ que tem vida própria” (SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de
Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 80). Sobre o diálogo Mário-Drummond a
respeito de “Noturno de Belo Horizonte”, ver Capítulo IV desta tese.
249
392
A união de imaginação e ação como plataforma da poesia moderna já se encontra, pela via da ironia
crítica, em Baudelaire, nos versos de “Le Reniement de Saint Pierre‟: “– Certes, je sortirai, quant à moi,
satisfait/D‟un monde où l‟action n‟est pas la soeur du rêve”.
393
Parente do “Homem Zangado, o herói de coração múltiplo,/O justiçador moreno, o esmurrador com
mil punhos [...] Ele tem uma estrela de verdade bem na testa/Ele tem um corisco no sapato/E um coração
humano no lugar do coração”, herói revolucionário da obra de Mário O Café, de que Drummond
provavelmente não tinha conhecimento (Os versos citados estão em ANDRADE, Mário de. Poesias
completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987. p.
442).
394
Aliás, a composição de “Cidade Prevista” é das que mais explícita e significativamente dialoga com a
obra de Mário. Dos versos citados, é interessante notar o que vem antes, quando Drummond exorta outros
poetas a recolherem suas palavras: “Cantai esse verso puro,/que se ouvirá no Amazonas,/na choça do
sertanejo/e no subúrbio carioca,/no mato, na vila X,/no colégio, na oficina,/território de homens livres/que
será nosso país/e será pátria de todos” (versos 15-23).
250
uma humanidade livre, e adequados a ela.395 Desse modo, o diálogo poético de Mário e
Drummond gerou uma “acumulação poética” de temas, formas, procedimentos, mas
igualmente de reflexão e entendimento poético do mundo – do mundo brasileiro
especificamente, mas não só –, e essa acumulação de formas e reflexões implicava a
consecução de uma humanidade livre – sobretudo de um Brasil libertado, mas não só –,
bem como alinhava a poesia modernista à esquerda do processo histórico. Essas
posições, por sua vez, davam um sentido estético e político ao Modernismo: a
necessidade de destruição do Brasil real para a construção do Brasil libertado, “terra de
João invencível”. Entendo que é esse percurso que aflora no último verso da parte III: “a
rosa do povo aberta...”. O símbolo exposto nesse verso é um símbolo poético de luta
social, não há dúvida, mas, igualmente, há um significado mais interno à história da
poesia modernista, em que “a rosa do povo aberta” é a obra poética de Mário de
Andrade germinando o livro de Drummond de 1945, A rosa do povo. O dionisismo que
rege como estrutura profunda a obra poética de Mário de Andrade se projeta em outro
plano e reaparece na história da poesia modernista, em que a obra de Mário de Andrade
morre e renasce em A rosa do povo.
Assim, a parte III faz a absorção completa do projeto poético e do sentido da
obra poética de Mário. Já a parte IV desenvolve mais extensamente a qualidade e a
natureza desse projeto poético e do sentido dessa obra poética que foram absorvidos.
Essa última parte é a mais longa do poema. Nela, a importância, a posição, o valor e os
resultados da poesia e da figura de Mário de Andrade são pesados e avaliados por um
sujeito lírico que já retornou a si mesmo e apaziguou, pelo ciclo dionisíaco interno ao
poema, a perda do amigo. A inquirição inicial dessa parte já repõe a lucidez
drummondiana e parte de seu ceticismo:
395
Esse o sentido presente em “Carta a Stalingrado”: “Os telegramas cantam um mundo novo/que nós, na
escuridão, ignorávamos./Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,/na paz de tuas ruas mortas mas não
conformadas,/no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,/na tua fria vontade de resistir”
(versos 11-16), complementado por esses versos iniciais de “Telegrama de Moscou”: “Pedra por pedra
reconstruiremos a cidade./Casa e mais casa se cobrirá o chão./Rua e mais rua o trânsito ressurgirá”
(versos 1-3).
251
O poema retoma nessa parte o verso livre fluente de “Nosso Tempo”, composto do
ritmo livre da subjetividade que observa o mundo e a si mesma, dispondo de ritmos
curtos, médios, largos e muito largos. Nessa rítmica, a dor dilacerante está de certa
forma mitigada, suspensa na flor que foi anunciada e se abriu. O surgimento dessa rosa,
contudo, não se investe das certezas mandatórias de muita poesia engajada anterior e
posterior ao livro de Drummond. Ao contrário do posterior engajamento nacional-
populista e do engajamento marxista ortodoxo, Drummond não confiava que a
revolução viria porque adquiriu um tipo de certeza ético-teórica, como se, ao descobrir
que a luta de classes existe, que o proletariado é uma classe universal e que a injustiça é
a base do sistema capitalista, dessa descoberta nasceria logicamente e sem dificuldade o
mesmo mundo justo acessado pela reflexão. Contrário, igualmente, ao curioso
engajamento posterior da vanguarda concretista, que confiava que a libertação
tautológica da linguagem pela linguagem por si só inaugurava o mundo completamente
libertado, como se a liberdade fosse somente um ato de linguagem (embora também o
seja). Sem, então, incorrer na confiança desses movimentos da década de 1950 e 1960,
Drummond julgava o elemento revolucionário como uma esperança muito frágil, que só
poderia ser acessada pela reflexão rigorosa e que só se realizaria por um igualmente
frágil equilíbrio entre sentimento, pensamento e ação, que, de sua parte, seria um
equilíbrio frágil mas realmente figurado em sua poesia de A rosa do povo. Essa
introdução histórica e contextual do problema visa entender por que, encerrada a parte
III de “Mário de Andrade desce aos Infernos”, quando a rosa do povo se abre, ela inicia
a parte IV do poema sendo indagada sobre sua qualidade, seu teor, seu poder de
comunicação e permanência. Os dois primeiros versos como que perguntam: a rosa
mariodeandradiana está pronta a florescer ou já perdeu sua validade? Não tenho como
saber se Drummond chegou a ler o poema “A Meditação sobre o Tietê”, em que uma
“flor” surge da mais funda dor de Mário na superfície das águas imundas do Tietê.396 De
396
Mário morreu em fevereiro de 1945, Drummond publicou A rosa do povo em dezembro do mesmo
ano. Nesse meio tempo, o poema esteve na posse de Antonio Candido, que o publicou em 1945 em Lira
paulista seguida de O carro da miséria (São Paulo: Livraria Martins, 1945). Consultei Antonio Candido
por telefone do dia 22/02/2011 sobre a possibilidade (ou não) de Drummond ter lido o poema. Antonio
Candido afirmou não saber nada a respeito. Disse que não havia enviado o poema a Drummond nem o
livro depois de publicado, e que não lembrava o mês de publicação. A passagem da “flor” de “A
252
Dos objetos e forças anímicas, Drummond passa a sua experiência pessoal dessa casa:
Mediação sobre o Tietê” ao livro de Drummond é intuída por José Emílio Major Neto quanto ao poema
“Áporo” (MAJOR NETO, José Emílio. A Lira Paulistana de Mário de Andrade: a insuficiência fatal do
outro. 2007. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 55-56, nota 65).
253
Minas.397 Mas a recomposição da casa de Mário, com seus prodígios e sua fraternidade
acolhedora e crítica, não são observados apenas na relação Mário-Drummond, e sim no
alto ideal de filia que fez Mário de Andrade ocupar uma posição central e germinadora
no Modernismo brasileiro:
397
Copio aqui, escolhidas como amostras, e não demonstração exaustiva, algumas observações de
Drummond sobre a importância de Mário em sua vida e obra. Sobre o nacionalismo literário e a aceitação
da vida, em carta de 6 de fevereiro de 1925: “Você, com duas ou três cartas valentes acabou o milagre.
Converteu-me à terra. Creio agora que, sendo o mesmo, sou outro pela visão menos escura e mais
amorosa das coisas que me rodeiam. Respiro com força. Berro um pouco. Disparo. Creio que sou feliz!”
(SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e
Mário de Andrade, cit., p. 95); sobre o casamento e a vida pessoal, em carta e 19 de julho de 1925:
“Nenhuma palavra me comoveu tanto ao longo da minha aventura (porque foi uma aventura, e
complicadíssima) como aquela de sua carta: „Antes de ser artista, seja homem‟” (Idem, p. 131),
complementada por essas palavras de 6 de outubro de 1925: “Pode acreditar que associei o nome de você
à ideia da minha felicidade doméstica, e que se não sou de todo uma peste de marido, em grande parte
devo a você. [...] Você é para mim aquilo que o diabo da retórica já estragou: o anjo do lar. Sem o
passadismo das duas asas brancas, acho que a imagem é boa e explica bem o papel realmente paternal que
você desempenha na minha intimidade” (Idem, p. 145); como referência humana e literária, em carta de
18 de maio de 1930: “sempre procurei e encontrei em você o amigo mais forte, o disciplinador e o
encorajador” (Idem, p. 375); além da orientação sobre o modo de relacionar o engajamento político e a
posição e artista, como escreve Drummond em seu diário no dia 16 de fevereiro de 1945: “Carta de Mário
de Andrade, infeliz com o que viu e ouviu no Congresso de Escritores em São Paulo. Concluiu que o
destino do escritor há de ser a torre de marfim dentro da qual trabalhe – o que não quer dizer não-me-
importismo nem artepurismo. Guardar e meditar suas palavras: „O intelectual, o artista, pela sua natureza,
pela sua definição mesma de não conformista, não pode perder a sua profissão, se duplicando na profissão
de político. Ele pensa, meu Deus! e a sua verdade é irrecusável para ele. Qualquer concessão interessada
pra ele, pra sua posição política, o desmoraliza, e qualquer combinação, qualquer concessão o infama. É
da sua torre de marfim que ele deve combater, jogar desde o cuspe até o raio de Júpiter, incendiando
cidades. Mas da sua torre. Ele pode sair da torre e ir botar uma bomba no Vaticano, na Casa Branca, no
Catete, em Meca. Mas sua torre não poderá ter nunca pontes nem subterrâneos.‟//No meio de tantas
paixões fáceis e tanta intelectualidade abdicante, Mário preserva o seu individualismo consciente, que lhe
dá mais força para exercer uma ação social que os intelectuais-políticos praticam de mau jeito e sem
resultado” (ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Prosa seleta. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2003. p. 973).
254
Com uma imagem surrealista, Drummond faz a casa de Mário despegar-se do chão e
alçar voo no ar como um barco aéreo: “navio de São Paulo no céu nacional”. O
processo metamórfico tem uma intenção totalizante, pois une o mundo das águas
(“navio”), o mundo da terra (“casa”) e o mundo do ar (“céu”). E esse complexo de
imagens prodigiosas, de matriz surrealista, deriva de uma consequência da morte do
poeta: “as brisas da saudade”. O fim da vida de Mário ativa no poema de Drummond
novamente o ciclo dionisíaco morte-ressurreição, pois é da morte do poeta que surgem
as brisas da saudade que alçam sua casa ao ar e definem a posição do poeta no
Modernismo brasileiro.398 Seguindo o percurso surrealista, a casa colhe os amigos
através do Brasil: todo o processo metonímico exprime uma conotação de acolhimento:
“casa” por “o homem dentro da casa”, “colher” como ato natural de aproveitar o que
está maduro, verbo que se contrapõe, implicitamente, a outros que conotariam alguma
violência, como “ceifar” ou “arrebatar”, e “amigos” por intelectuais, pintores, poetas,
romancistas ou qualquer pessoa que se interessasse pela vida mental do momento
presente. Por ser, então, Mário de Andrade um homem cujos prodígios comportam, por
um lado, o alto ideal fraterno da filia e, por outro, a mais coerente organização
intelectual do Modernismo brasileiro, ele exerce uma precedência isenta de violência:
“todas as confidências a casa recolhe,/embala, pastoreia”. E a calma da casa acolhedora
é descrita em seus corredores, escadas, vidros, em sua qualidade de “lento pássaro”,
carta (“notícia postal”), “nuvem pejada”, que passa saudando as casas “ancoradas”.
Num parêntese, que muda ligeiramente o tom da estrofe, sem cortar a sua fluência,
Drummond muda o foco das metamorfoses surrealistas para a descrição de um processo
subjetivo de Mário: sua capacidade simultânea de doação e autopertencimento, de
enraizar-se em uma casa e estar espalhado por seus companheiros esparsos.
398
“Em sua dissolução, tudo o que é humano torna-se manifestação visível, e o que é mítico remanesce
apenas como essência” (BENJAMIN, Walter. As Afinidades eletivas de Goethe. Ensaios reunidos:
escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2009. p. 22).
255
O poder mítico do ciclo dionisíaco é aqui descrito literalmente: ao descer o rio da morte,
as palavras que permanecem revivem o poeta: “superamos a morte, a palma triunfa”. O
fato de ficarem as palavras dá a medida de que é essencialmente o poeta que
Drummond está revivendo, poeta que é também um correspondente e um homem de
pensamento, cuja essência final é a palavra em seu estado mais precioso: a poesia. O
verso final, com suas “palavras-carbúnculo e carinhosos diamantes”, merece particular
atenção. A palavra “carbúnculo”, em “estado de dicionário”, significa: 1. Pedra de cor
avermelhada, abrasiva; 2. Doença: infecção extensa profunda da pele e dos tecidos
subjacentes; e etimologicamente: carvãozinho, pedra preciosa, areia vermelha,
enfermidade.399 A pluralidade de significações, principalmente de acordo com sua
etimologia, consegue apreender com muita perspicácia a própria multiplicidade da obra
poética de Mário de Andrade. Deve-se notar que cada um dos significados de
“carbúnculo” traz em si uma face da poesia mariodeandradiana: carvãozinho, pedra
preciosa e areia vermelha são significados que se ligam ao modo como Mário concebe a
natureza sacrificial de sua obra, o “incêndio puro do amor”, como diz em “A Meditação
sobre o Tietê”: “Porque os meus gestos e os meus ritmos nascem/Do incêndio puro do
amor...” (versos 288-289).400 São faces do processo incendiário: a areia vermelha, a
pedra preciosa avermelhada, abrasiva, e a consequência do processo, os carvõezinhos. A
essa face sacrificial, “carbúnculo” contém outro aspecto fundamental: a infecção, o
contágio. Não somente as águas do Tietê são as águas imundas do contágio mas
também a vítima sacrificial precisa sujar-se com as doenças da comunidade, para
eliminar dela a violência, o que unifica as posições de vítima sacrificial e bode
399
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário
Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 621.
400
“Só existe uma virtude, com que a Fé se confunde, é Charitas, vermelha, incendiada de amor”
(ANDRADE, Mário de. O banquete. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004. p. 63).
257
401
“Todos os rancores espalhados por mil indivíduos diferentes, todos os ódios divergentes, vão daí por
diante convergir para um indivíduo único, a vítima emissária” [grifo do original] (GIRARD, René. La
violence et le sacré. Paris: Hachette, 1972. p. 122). O capítulo de Girard fala especificamente sobre Édipo
(“Édipo e a vítima emissária”) e seu papel sacrificial. A expressão “bode expiatório” é usada algumas
páginas antes da citação feita acima: “Seu papel [de Édipo] é o de um verdadeiro bode expiatório
humano” [tradução livre] (p. 119).
402
Como diz Drummond em carta de 1º de janeiro de 1931: “Você me parece ceder por vezes à ânsia de
comunicar coisas urgentes que estão passando no seu íntimo e que não são propriamente poesia. Coisas
que dariam provavelmente um discurso... Em suma, você é muito universal demais para ser apenas poeta
e há porções respeitáveis do seu ser que reagem contra a poesia no instante mesmo em que ela está se
elaborando. Eu considero a poesia uma limitação, boa ou má não vem ao caso, e a linguagem em que é
menos fácil aos homens se comunicarem, porque é a linguagem que poucos falam e mesmo esses não a
possuem permanentemente. E você, alma apostólica (perdoe o adjetivo pois não acho outro), coração
numerosíssimo e transbordante de humana ternura, tem tanto que comunicar aos outros! É natural que sua
linguagem seja às vezes um pouco turva e inquieta” (SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mário.
Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, cit., p. 401). Ver no Capítulo IV
o contexto dessa passagem.
403
É interessante lembrar que Mário chamava a poesia de Drummond e Bandeira de “puro, sem mistura”.
Ver resenhas de Alguma poesia, de Drummond, e Libertinagem, de Bandeira: ANDRADE, Mário de.
Puro, sem mistura. Diário Nacional. São Paulo, 22 de junho de 1930. Reproduzido em ANDRADE,
Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005. p. 179-180.
404
Sobre esse verso, interessante notar a única coisa que Manuel Bandeira comentou sobre o poema: “A
propósito do seu poema sobre o Mário (de Andrade)... A barba do cadáver cresce” (ANDRADE, Carlos
Drummond de. O observador no escritório, cit., p. 979). Bandeira escreveu sobre a morte de Mário: “A
Mário de Andrade, Ausente”, publicado em Belo belo (1948). Nessa passagem do poema de Drummond
está a única diferença considerável entre a primeira versão do poema e a última (consulta na edição da
Nova Aguilar de 2002): na primeira versão: “Telefones/retinem. Silêncio da barba. Silêncio/em Lopes
Chaves”. A parte grifada por mim foi excluída da última versão.
258
***
405
Essa distinção pode ser aproximada ao que Walter Benjamin chama de “teor factual” e “teor de
verdade” nas obras literárias (BENJAMIN, Walter. As Afinidades eletivas de Goethe, cit., p. 12-15).
259
assim, a nova geração redimida poderia ler o canto suspirado que deslumbraria a própria
natureza. Mas, como se sabe, o rio da história brasileira não mudou o seu curso, e o rio
Tietê, transformado em rio de asfalto, leva, em suas novas ondas de piche, mais essa
flor nas auroras represadas para o peito dos sofrimentos dos homens.406
406
“Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança./Eu me acho tão cansado em meu
furor./As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista/Que sobe e se espraia, levando as
auroras represadas,/Para o peito dos sofrimentos dos homens” (“A Meditação sobre o Tietê”, versos 322-
326).
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