Meirieu - Aprender ... Sim, Mas Como - Introdução Até o Cap 03

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Introdução

Quando a escola, apesar de várias dificuldades,


aparece em sua função específica, e o professor,
apesar de várias hesitações, com uma identidade
profissional

“Eu penso que é a melhor profissão do inundo; pois que sefaça bem ou
que sefaça mal, somos pagos da mesma forma. (...) Um sapateiro, fa­
zendo seus sapatos, não podería perder um pedaço de couro sem que
tivesse que pagar por isso, mas aqui se pode perder um homem sem que
isso custe..."
Molière,
Le Médecin malgré lui.

Todos sabem que se pode aprender sempre e em todo lugar e que esta
atividade curiosa não se deixa limitar aos locais que lhe são atribuídos. Os
professores bem sabem que ela tem ainda cada vez mais tendência a fugir
da sala de aula ... É certo que os “bons alunos” ainda manifestam por ela
um respeito merecido, mas, certamente, nem por isso deixam de pensar
que “o essencial está em outro lugar”, nas obras de vulgarização e nas
revistas especializadas, em sua televisão ou em seu minitel *, junto a um
vizinho, o qual, provavelmente, tem menos diplomas que seu professor,
mas que tem tempo para ouvi-los e responde precisamente a suas pergun­
tas. Os outros, “os menos bons”, já haviam anunciado, há algum tempo, aos
seus professores, às vezes ruidosamente, às vezes com a discrição daqueles
que não se sentem em seu lugar e que se eclipsam esforçando-se para não
incomodar, que as lições e os exercícios escolares não lhes interessavam
mais e que preferiam “ver em outro lugar”, no cinema, no campo, ou no
porão de um amigo que desmonta sua motocicleta.

' N. de T.: Terminal de consulta de bancos de dados comercializado por P.T.T. (Postes, Télégraphe,
Téléphone), empresa francesa de correios e telefonia.
16 Pbilippe Meiricu

Não restaria, então, ao corpo docente senão a leve certeza de fornecer


alguns fragmentos, que alguns recuperariam ao sabor de sua história pesso­
al, porque eles prolongariam uma experiência, remeteríam a uma velha
questão, viriam preencher um espaço vazio num quebra-cabeça iniciado
em outro lugar e por outros ...
O quadro é, sem dúvida, sombrio demais e prolongá-lo seria levar o
excesso ao descrédito: não é na escola que se efetuam as aprendizagens
fundamentais, as que condicionam todas as outras, a leitura, a escrita, o
cálculo? Não é nela que se fornecem os referentes culturais indispensáveis
que permitem o enraizar-se em uma história e, ao mesmo tempo, a abertura
a outras culturas e outras civilizações? Não é nela que são adquiridos os
métodos de trabalho, o hábito do rigor, uma memória mais capacitada?... E
é verdade que não se deve cair na caricatura, nem se unir tão depressa ao
F'- clã dos inquisidores, temendo encontrar-se em péssima companhia. Mas
também é verdade que o tempo passado na escola, a energia e o dinheiro
gastos com todas as atividades pedagógicas são desproporcionais aos re­
sultados que tudo isso permitiría esperar. Seria necessário avaliar, por exem­
plo, o que custa para a agricultura francesa o fracasso maciço da Escola em
fazer com que se aprenda e domine a noção de proporcionalidade: as
despesas suplementares com adubos e a necessidade de reparar os danos
ecológicos provocados representam somas que se podería utilmente inves­
tir em outro lugar ... na escola, por exemplo! Basta que cada um examine
apenas sua história pessoal e se questione sobre as situações de aprendiza­
gem que foram de fato determinantes para si ... Basta ouvir os educadores
que trabalham com adolescentes postos para escanteio após dez ou doze
anos de escola ... Basta prestar atenção nas declarações dos empregadores
ou simplesmente ter o trabalho de ler os anúncios de jornais para que se
observem tantos indícios que testemunham a extrema precariedade das
aprendizagens escolares1. Isso não significa, evidentemente, que os diplo­
mas escolares não continuem a ser o objeto de cobiças consideráveis e
serem considerados como instrumentos de emancipação social, mas tudo
ocorre como se, tentando adquirir os diplomas, estivéssemos completa­
mente resignados à realidade daquilo que avaliam: a capacidade para ad­
quirir diplomas e nada mais. Aprenderiamos então na escola que algumas
habilidades escolares têm relação direta com as exigências sociais, e os
alunos que não chegassem nem mesmo a adquirir essas habilidades seriam
enviados, sem outra forma de processo, às estruturas periféricas que supos­
tamente, por sua vez, conseguem em alguns meses o que a Escola não
conseguiu durante anos. Quando você não é bem-sucedido na escola, é
enviado - sabe-se bem - “para aprender”, e quando se é bem-sucedido
resta ainda a ser feito - todos reconhecem - o essencial da aprendizagem.
Mas, dir-se-á, a descrição é desonesta, pois resulta em amálgamas ina­
ceitáveis; não se confundem, na verdade, as aprendizagem de caráter geral,
que são da competência da Escola, e as aprendizagens profissionais, as
Aprender... Sim, Mas Como? 17
quais, pode-se pensar legitimamente, seria melhor que a Escola deixasse a
cargo dos mais competentes que ela2? É claro que ninguém nada tem a
ganhar com a confusão das tarefas; mas os alunos também têm tudo a
perder com uma simples distinção transformada em isolamento... pois uma
aprendizagem profissional eficaz só pode se realizar se, por um lado, o
sujeito dispuser dos materiais e dos instrumentos necessários (o domínio da
língua escrita e oral, o conhecimento de conceitos aos quais recorrerá ne­
cessariamente e, cada vez mais, as “informações mínimas” sobre o meio
cultural no qual a aprendizagem profissional se operará) e se, por outro
lado, souber realizar operações mentais indispensáveis (deduzir, antecipar,
analisar, efetuar uma síntese, etc.). A Escola tem assim a dupla responsabi­
lidade de fornecer a todos um núcleo rígido de conhecimentos essenciais
reorganizados em torno de noções-chave3, e de formar para comportamen­
tos intelectuais estabilizados que o sujeito possa aplicar em qualquer ação
de formação que poderá empreender a seguir. As noções-chaves serão, por
exemplo, a proporcionalidade na matemática, a respiração na biologia, os
princípios do esquema narrativo no francês etc.; os comportamentos inte­
lectuais serão, dentre outros, o fato de saber descentrar-se em relação a
suas próprias produções, criticá-las antecipando o julgamento de outrem e.
consequentemente modificá-las, ou o fato de não recusar um elemento
aparentemente heterogêneo a um sistema de explicação, mas, ao contrário,
saber integrá-lo, podendo modificar esse sistema de explicação.
Esses dois tipos de objetivos - que chamamos, por simples comodida­
de, objetivos de competências e objetivos de capacidades* — são evidente­
mente inseparáveis em seu tratamento (os primeiros não podem existir sem
os segundos e vice-versa), o que não quer dizer que cada um não possa ser
o objeto de trabalhos de pesquisa e de elaboração específicos. Esses dois
tipos de objetivos constituem, propriamente falando, a especificidade da
Escola, não que não possam ser atingidos acidentalmente em outro lugar,
mas porque é precisamente de forma acidental que o serão em outro lugar.
A Escola tem aí uma missão insubstituível; garantir que um certo número de
saberes e de savoir-faire sejam adquiridos por todos de maneira sistemática
e organizada. Tem uma função social específica que é a de gerir estas apren­
dizagens.
Ora, um dos paradoxos dos discursos na Escola e sobre a Escola é
que, precisamente, essa especifidade não parece ser muito levada em con­
ta: na mídia, quase não se fala sobre a aprendizagem e, quando um médico
australiano obtém um espaço no telejornal por ter acabado de descobrir
um remédio contra a rinite alérgica eficaz em cerca de cinquenta por cento
dos casos, não se imagina que um professor primário da cidade de Clermont
possa ter a mesma publicidade por ter acabado de criar um instrumento
pedagógico que permite a mais da metade de sua turma compreender e
utilizar a proporcionalidade... Quando se fala sobre a Escola, é mais para
evocar alguns velhos debates ideológicos, citar algumas estatísticas sobre

k
18 Philippe Meiríeu

os efetivos das turmas ou exortar os alunos e seus professores ao trabalho,


à disciplina, à honestidade. A especificidade profissional da Escola, a apren­
dizagem e suas verdadeiras condições de eficiência sào sempre esquivadas5...
Como se bastasse, para que os alunos aprendessem, reunir algumas condi­
ções ligadas ao calendário escolar, à quantidade de horas de aulas em uma
disciplina e aos níveis de remuneração dos professores. Não que essas
questões sejam menores, são essenciais... mas quem ousaria insinuar que
nos hospitais, a mudança dos horários de refeições, a diminuição do núme­
ro de pacientes por quarto e o prolongamento da internação - medidas que
podem ser todas desejáveis - bastam para curar os pacientes e dispensam
qualquer tratamento? Centrar a Escola no aprender não é esvaziar todas as
outras funções que ela pode assumir (a “creche”, o controle sanitário, a
socialização da criança), tampouco negar a importância das atividades para-
escolares, dos clubes e dos lares ou pedir que se suspenda toda afetividade
na sala de aula, mas é definir o professor como um profissional da aprendi­
zagem e ajudá-lo a construir, neste domínio, uma verdadeira identidade.
De fato, não é certo que os professores já se considerem como tais.
Sua identidade profissional — ainda que estejam conscientes de ter uma —
está mais ligada ao seu posicionamento político ou sindical ou, então, ao
domínio da disciplina que ensinam, raramente, à compreensão e ao desen­
volvimento dos processos de aprendizagem que permitiríam a apropriação
dessa disciplina. Alguns forjaram uma identidade de “animador”, mas é
preciso reconhecer que as inovações feitas neste sentido foram, às vezes,
reduzidas a formas um tanto caricaturais: “A renovação, confiava-me há
alguns dias um aluno de um collège’ ‘onde se inova’, é a aula magistral, mas
com o lanche a mais”. Terrível lucidez que nos convida a assumirmos enfim
a difícil questão da aprendizagem, a deixarmos de lado as soluções
miraculosas que viriam de fora para ocuparmo-nos seriamente com o que
se passa dentro da sala de aula, no ato de aprender, quando o professor
instrui e o aluno se instrui.
Parece ainda mais estar em tempo de operar essa recentragem; pois os
dois modelos de transformação do sistema educativo que prevaleceram até
hoje se exaurem. O centralismo autoritário, impondo fórmulas experimen­
tadas em algumas escolas secundárias ou imaginadas nos ministérios, pro­
varam sua ineficiência; os professores, mal preparados, impacientam-se di­
ante das fórmulas pouco adaptadas à sua situação... seu contraponto, o
voluntarismo carismático, se esgota em muitos casos, quando não produz
retrações ou até mesmo retrocessos, nos estabelecimentos onde se manifes­
ta. Não se mudará a Escola por decreto6, pela imposição de fórmulas ou
instrumentos sem a preocupação de saber, em primeiro lugar, em nível
local, que problemas devem ser resolvidos, que meios devem ser aplica-

• Na França, o ensino secundário é dividido em primeiro ciclo - “collège" - e segundo ciclo - “lycée".
Aprender... Sim, Mas Como? 19

elos, como avaliar o alcance das soluções propostas e regular a sua aplica­
ção. Também não se mudará a escola confiando a inovação a alguns indi­
víduos cuja influência pessoal, muitas vezes incontestável, vem acompa­
nhada de um modo de ação também pessoal e muito mais contestável no
qual são diariamente desprezados os valores de respeito por outrem, de
tolerância e de abertura que, por outro lado, invocam7. Em compensação,
mudar-se-á talvez a Escola se os problemas forem colocados em termos de
competência profissional dos professores, de qualidade do serviço presta­
do, de eficácia da gestão das aprendizagens. E não é para obedecer ao mito
da empresa que se utiliza aqui o termo “gestão”, nem é para santificar tudo
o que vem do Japão que se evocam os “controles de qualidade”. Há muito
tempo que professores primários e secundários questionam os problemas
de gestão da classe, não para buscar os meios de nela trabalharem tranqüi-
los, mas para descobrir que instrumentos podem ser eficazes, como regular
o seu uso e trabalhar, juntamente com os alunos, para gerir esse sistema
complexo de limitações e de recursos que juntos constituem8. Há muito
tempo que professores primários e secundários se reúnem, não para fazer o
inventário detalhado daquilo sobre o que não têm nenhum poder, mas
para buscar, na análise de suas práticas, aquilo que é possível melhorar. É
claro que mantêm ainda alguns complexos e não ousariam se proclamar
“controles de qualidade”... e no entanto, não há nenhuma razão para pen­
sarem que a gestão do aprender seja um ofício menos respeitável do que a
gestão da energia ou a das finanças; é, em todo o caso, uma tarefa igual­
mente essencial ao futuro de uma nação.
Avalio tudo o que esse discurso pode ter de provocador para os edu­
cadores; sei que estes não gostam muito de serem assim comparados a
profissões que, embora mais valorizadas socialmente, parecem-lhes menos
“nobres” por não trabalharem, como a deles, com pessoas; aceito que,
quando alguém se dedica legitimamente à tarefa de educar, fique chocado
com o que possa parecer uma redução tecnicista de sua missão... Mas não
seria demais lembrar que, no que diz respeito à Escola, não há “boa educa­
ção” sem uma boa aprendizagem: como se poderia pensar que a Escola
poderia dar um algo mais de maneira credível se realiza mal aquilo para o
que é feita antes de mais nada? Além disso, parece evidente que toda apren­
dizagem bem sucedida, realizada de maneira lúcida, tendo encontrado os
meios de identificar suas aquisições e de regular seus métodos é autentica­
mente educativa9. Os professores, aliás, concebem isso muito bem. E no
entanto, resistem... Todos nós resistimos à idéia de que o educador possa
ser definido como um profissional administrador da aprendizagem; e até
mesmo, como diria o outro, “há resistência” de todos os lados.
- Primeiro, há resistência da parte de nossas representações da apren­
dizagem e das possibilidades do aluno que aprende; é por isso que consa­
graremos a primeira parte desta obra ao exame de algumas velhas questões

20 Philippe Meirieu

que, apesar cie seu caráter cie aparente abstração, atravancam diariamente
os debates sobre a educação: Podemos aprender? Quem pode aprender o
quê? Basta ensinar mais para que se aprenda melhor?
- Há resistência também da parte de nossas esperanças cientificistas.
Na verdade, fingimos muitas vezes acreditar que todos os problemas de
nossa profissão, todas as imperfeições que enfrentamos, poderíam, um dia,
ser apagados pelo estabelecimento de leis, pela elaboração de instrumen­
tos cujos desempenhos seriam indiscutíveis. Há algum tempo apenas, era a
“pedagogia experimental”, o ensino programado, a pedagogia por objeti­
vos... Hoje é o computador, o software educativo que nos fazem pensar
que, sendo capazes de antecipar todas as reações dos alunos, permitiríam a
todos atingir todos os objetivos. Ora, como observam D. Hameline e DJ.
v-' • Piveteau, “em pedagogia, se fosse possível estabelecer verdades de “ciência
exata”, a coisa, apesar de tudo, seria evidente (...). A pedagogia está longe
de ser a ciência da educação. É uma prática da decisão concernente a esta
última. A incerteza é, portanto, a sua sorte”10... como também é a sorte de
toda “gestão”: o administrador informa-se, mas sabe interromper suas in­
vestigações para passar à ação e fazer repercutir a aproximação inevitável
na análise crítica dos resultados; o administrador identifica as variáveis
decisionais e sabe que toda decisão tomada repercute sobre essas variáveis;
o administrador pensa necessariamente em termos de “sistema”... Portanto,
é em termos de “sistema” que falaremos sobre a aprendizagem em nossa
segunda parte, tentando mostrar as múltiplas interações entre todos os ele­
mentos em jogo: a relação pedagógica, a divisão taxonômica em objetivos,
as estratégias de aprendizagem dos sujeitos.
- Há resistência ainda quando nos falam em gestão das aprendiza­
gens, porque nos falta um método para gerir a complexidade, para situar-
nos na sala de aula e no estabelecimento, mas não como “fornecedores” de
informações. É por isso que precisamos explicar como, muito concreta­
mente, podemos ir além da montagem diária, e proporemos alguns exem­
plos de ferramentas utilizáveis. Estas virão ilustrar cada um de nossos capí­
tulos e concretizar nossas propostas. Evidentemente, são apenas suportes
para a reflexão e a ação pedagógicas, oportunidades para animar a pesqui­
sa e melhorar a prática. Sua modificação pelo professor, ou até mesmo seu
desvio, seria um sinal de sua legitimidade.
— Há resistência enfim, porque vemos apontar no horizonte o
consumismo escolar11 e tememos, quando o evocamos, ver a Escola entre­
gue à lógica liberal. De fato, pode-se temer o pior de uma livre concorrên­
cia escolar, apoiada pela pulDlicação dos resultados dos exames de cada
estabelecimento, os quais não mostram nem o nível de seleção (as repetências
e as evicções que os italianos denominam “mortalidade escolar” e cujo
índice deveria figurar bem naturalmente ao lado dos resultados)12, nem o
Aprender... Sim, Mas Como? 21
projeto pedagógico do estabelecimento. Pode-se esperar o pior de uma
privatização larvada que, através da dessetorização, constituiría terríveis
guetos sociológicos. Mas não é possível ignorar, contudo, que um fenôme­
no súbito chega ã Escola, que não está particularmente associado a uma
ideologia ou a uma escolha política identificadas e que modifica radicalmente
a atitude dos pais em relação à Escola. Estes, com efeito, se colocam cada
vez mais em situação não de controle da atividade dos professores — como
o temem os últimos — mas de apreciação de seus resultados; bem o sabem
os professores que não agem de outra forma quando se trata de seus pró­
prios filhos... É porque as coisas são complexas e o maniqueísmo não é
mais aceito. Sem dúvida, progrediriamos sensivelmente se refletíssemos
sobre os problemas que apresenta a avaliação dos estabelecimentos e de
sua gestão das aprendizagens para prepararmos eficazmente os educadores
nesse domínio: que participem da elaboração dos critérios de avaliação,
que busquem indicadores pertinentes, enfim, que não abandonem um ter­
reno do qual se sentiríam naturalmente excluídos depois...
Em outras palavras, que se comportem como verdadeiros atores so­
ciais.

Notas

1. P.-B. Marquet não hesita em chegar a intitular uma de suas obras: L’enseignement ne sert
à rien, ESF, Paris, 1978. (O ensino não serve para nada)
2. É a tese que desenvolve com muita coerência A. Boutin em: L’Écolemaladedelaformation
professionnelle, Casterman, Paris, 1977.
3. É o que J.-P. Astolfi denomina “conceitos" e mostra que um trabalho rigoroso sobre eles
permitiría reorganizar os programas em torno do essencial, sem, contudo, cair em um
“nivelamento por baixo” (“Deux sortes de Savoirs”, in Cahiers pédagogiques, n. 244-245,
maio-junho 1986, p. 34 e 35). L. Legrand desenvolve notavelmente, por outro lado, essa
noção falando em “programas-núcleos”. Não podemos deixar de remeter à sua análise La
différenciation pédagogique, Scarabée, Cemea, Paris, 1986, p. 97 a 113.
4. Explicaremos mais adiante as noções de competência e capacidade (cf. 2a parte, cap. 3).
Mas observemos, desde já, que chamamos capacidade uma operação mental estabilizada e
reprodutível em diversos campos de conhecimento e competência, um saber identificado
colocando em jogo uma ou mais capacidades em um campo determinado e dominando os
materiais de que se serve.
5. Tomo a liberdade de remeter ao prefácio de D. Hameline em minha obra anterior: L'École
mode d'emploi, ESF, Paris, 1985, p. 18.
6. Tomo emprestada esta fórmula dos princípios orientadores do CRAP - Cahiers pédagogiques
(cf. Cahiers pédagogiques, n. 226, setembro de 1984, p. IV).
7. É tudo o que descreve com muita exatidão M. Tozzi em sua obra Militer autrement,
Chronique sociale, Lyon, 1985.
22 Pbilippe Meirieii

8. Penso, em particular, nos trabalhos inspirados por C. Freinet e, mais especificamente, na


corrente da “pedagogia institucional” discutida por F. Oury.
9. Cf. L’École inode demploi, op. cit., em particular p. 97 a 99.
10. Prefácio da obra de Neil Postman, Enseigner c’est résister, Le Centurion, Paris, 1981, p. 6.
11. Cf. R. Ballion, Les consommateurs d’Écolet Stock, Paris, 1982, em particular p. 180, 216,
293 a 295.
12. A expressão é citada por A. Canevaro, “Apprendre des péríphéries pédagogiques", in
Perspectives, 14(3), 1983, p. 335 a 351.
Primeira Parte
Pensar a Aprendizagem
Introdução
Quando o herói desaparece antes
mesmo de entrar em cena

"Onde estauam os meus conhecimentos eporque, quando mefalaram


deles, eu os reconhecí e declarei: “Perfeitamente, isto é uerdade"? Ne­
nhuma outra razão além desta: eles já estauam em minha memória,
mas tão longe e escondidos em tão secretas profundezas que sem as
lições que os tiraram de lá, taluez, não os pudesse ter concebido.”
Saint Augustin, Les Confessions,
Livre X, chap.x.

Por mais curioso que isto nos possa parecer hoje, nào foi tão fácil para os
homens admitir que pudessem aprender... Sócrates, lembramo-nos bem,
interrogando um pequeno escravo sobre uma questão de geometria, de­
monstrava a seu contraditor que não ensinava nada a este homem, mas
permitia-lhe apenas, “graças a simples perguntas, descobrir sozinho e por si
mesmo a ciência”*.
É evidente que a demonstração, para quem tem o trabalho de lê-la
atentamente hoje, não é tão convincente: o pequeno escravo só se expressa
aí por monossílabos e Sócrates realiza a totalidade da demonstração sob
seus olhos. Talvez ainda, Menon, o interlocutor de Sócrates, pudesse ter
observado que esta redescoberta — esta reminiscência, no vocabulário de
Platão - parecia-se muito mais com uma manipulação e que mais emprega­
va procedimentos retóricos para ganhar a adesão do que era um verdadeiro
“parto”... O pequeno escravo age tentando, sem dúvida, mais decodificar as
expectativas de Sócrates do que encontrar em si mesmo as respostas às
suas questões; a conversa é minuciosamente controlada pelo mestre a fim
de que o aluno remeta a ele, como um espelho remete uma imagem, uma
demonstração da qual, finalmente, participa pouco. A conclusão da conver­
sa refrata então muito bem todo o procedimento:
“Sócrates - É a diagonal que para você, escravo Menon, cria o espaço
duplo?
O escravo - É exatamente isso, Sócrates2.”
26 Philippe Meirieu

Achamos engraçado, é claro. Como Sócrates é ingênuo! Que crédito


dar a uma demonstração que revela assim, em sua queda, as artimanhas
que utiliza e mesmo a relação de poder sobre a qual está construída? Acha­
mos engraçado ainda quando Sócrates conta a Menon sua convicção de
que todos os nossos conhecimentos foram adquiridos em uma vida anteri­
or3; achamos engraçado, como na leitura da história inverossímel de Er le
Pamphylien que conclui A República'', e onde Platão conta como no reino
de Hades, antes de nossa chegada ã terra, escolhemos nossa vida terrestre
e decidimos previamente nossas riquezas intelectuais e materiais. Achamos
engraçado... e no entanto! No entanto, não é certo que possamos nos livrar
tão depressa da teoria da reminiscência; nem mesmo é certo que não este­
jamos ainda muito próximos do velho Sócrates, inconscientemente e com
mais frequência do que pensamos...
Se pensarmos, por exemplo, na emoção que, ãs vezes, sentimos diante
de um trecho de música, de um quadro ou, talvez mais facilmente, de um
texto literário... esta impressão, na leitura de um poema, de tê-lo sempre
tido conosco, esta convicção de que ele apenas nos revela a nós mesmos:
a força do “é isso, é exatamente isso” não nos leva muitas vezes ao já
estava aí”? Fixamo-nos então em algumas palavras, porque em um relâmpa­
go nos dizem a verdade de nós mesmos, nos remetem a uma experiência,
uma dor, uma alegria, um sofrimento ou uma harmonia que vivemos e que,
no entanto, não nos pertenciam de fato até serem assim formalizados. Mas
a formalização supõe que o material já está presente e, se reconhecemos o
texto como nosso, não será porque já o conhecíamos? Se temos a certeza
de que realmente diz respeito a nós, de que estamos mesmo aí, nessas
pequenas frases, nesses pedaços de cor ou nessas notas de música, não será
porque já estavam em nós? Não nos trazem nada além de nós mesmos, são nós
mesmos melhor que nós mesmos... como poderiam vir de fora?
Bem sei que, mesmo que tenhamos sentido isso, mesmo que tenha­
mos esboçado um dia, diante de uma obra de arte, a hipótese da reminiscên­
cia, tudo em nós se volta contra ela; o bom senso nos persegue: quem pode
insinuar que eu conhecia Rimbaud antes de ter lido Rimbaud, mesmo se,
ao lê-lo, tive o sentimento de que falava sobre mim, em mim, e que até era
eu quem falava? Não seria apenas porque Rimbaud fala, com uma inteligên­
cia e uma exatidão fabulosas, da revolta e da nostalgia, da ternura e do
medo, e que tais sentimentos todos os homens, cm um momento ou outro
de sua existência, podem experimentar? Mas, atenção... o bom senso, se
você o seguir por este caminho, ele vai conduzi-lo precisamente aonde
você não queria chegar: ao postulado da existência de um fundamento
comum de humanidade, de uma espécie de tesouro dividido entre todos e
cuja existência alguns estímulos artísticos viriam nos revelar... Você estaria
prestes a admitir isso? Mas o que você não pode aceitar, por outro lado, é o
fato de que essa demonstração se aplique ao conhecimento, aos conceitos
e às noções que aprendemos e que nos permitem compreender o mundo.
Aprender... Sim, Mas Como? 27
Aí, evidentemente, tratando-se de instrumentos construídos pelos homens
ao longo de sua história, não pode se tratar de reminiscência!
E no entanto... no entanto, todos nós vivemos esta experiência ao
longo da qual um aporte conceituai esclarece, de repente, realidades ou
problemas, de forma que, ainda assim, sofremos a tentação de dizer: “Então
é isso; eu o havia sentido, mas não conseguia formulá-lo.” Quem trabalha
com o ensino filosófico ou simplesmente tem uma prática de formação
sabe que, de uma certa maneira, só se ensina bem a alguém aquilo que ele
já sabe, que um discurso teórico eficaz “prega sempre, de alguma forma, a
convictos”. Na verdade, um “bom conceito” é precisamente aquele que
esclarece minha experiência, que me permite organizá- la, compreendê-la,
dominá-la, e não aquele que me impõe de fora renunciar a ela ou que
complica artificialmente os meus problemas. Um “bom conceito” não se
substitui a um saber anterior, mesmo que desordene minhas representa­
ções: dá forma a minha experiência, torna a realidade mais assimilável e
permite agir sobre ela. Um “bom conceito” nunca aparece como “uma coisa a
mais que pesaria no meu pensamento e que se acrescentaria aos meus siste­
mas de representação: ao contrário, ele “me alivia”, me libera do inextricável e
parece me remeter, quando o descubro, a uma anterioridade radical. O com­
plexo substitui-se ao complicado e ilumina-me... na dupla acepção da palavra,
que diz muito sobre a vitalidade de Sócrates: o rigor e a luz. Então, o professor
não é senào aquele que ilumina... que ilumina o que já existe.
Suponho que, a esta altura, a irritação do leitor começa a comprometer
a eficácia de sua leitura: como é possível substituir assim a metáfora pela
demonstração? E além disso, os conceitos não são tudo; há uma quantidade
de informações e de conhecimentos dispersos para os quais não podemos,
de forma alguma, manter tais princípios: quando me informo sobre o horá­
rio de partida de um trem ou quando tomo conhecimento, pelo jornal, de
um casamento importante, dos resultados de uma eleição ou de uma catás­
trofe natural, não se pode afirmar assim que eu já sabia de tudo isso antes!
É preciso então recorrer a Descartes e à dúvida metódica, onde ele recusa­
va qualquer certeza antes de atingir o único núcleo estável que lhe parecia
livre de qualquer dúvida: o fato de que duvida e pensa? É preciso mostrar
que Descartes só foge do solipsismo5 porque descobre em si, à beira da
morte, a idéia de Deus e porque, não podendo ser dela o autor, ele um ser
imperfeito, deduz daí a existência de um ser perfeito que, como tal, não
pode enganá-lo e fundamenta então a autenticidade de suas percepções...
É preciso observar que o próprio Kant mostrou que “a razão só percebe o
que ela produz segundo suas próprias leis”6 e que, certamente, através de
nossos conhecimentos, é antes de tudo o nosso espírito que conhecemos...
e o filósofo precisou de uma considerável ingeniosidade para fazer ressur­
gir a exterioridade e devolver à experiência a sua função no conhecimento:
sua argumentação se articula em torno da necessidade de uma ancoragem
de nossas representações sucessivas em “alguma coisa” que tenha um cará-
28 Pbilippe Meirieu

ter “durável e permanente”7, uma referência, de certa forma, sem a qual nos
perderiamos no tempo como em areias movediças... É preciso, enfim, re­
correr ao bispo irlandês Berkeley e seu idealismo radical, totalmente irre­
futável e, no entanto, totalmente absurdo: “As coisas que percebemos são
idéias que existem apenas na inteligência”8?
Tudo isso, estou certo, parece um pouco poeirento e, enfim, corre o
risco de ser recusado como argúcias de uma outra época ou como passatem­
pos de intelectuais ociosos. Diante de Zenão, que pretendia mostrar a ine­
xistência do movimento, Diógenes havia afirmado que o movimento é prova­
do ao caminhar e deixou a aula para comprovar suas afirmações. A esta
altura do desenvolvimento, sem dúvida estaríamos inclinados a agir como
Diógenes e a proclamar que aprendizagem existe, porque eu aprendi, há
alguns anos, a andar de bicicleta e que antes de aprender não sabia fazê-
lo... mas não há saída: como é que podemos aprender a fazer algo que não
sabemos fazer a não ser fazendo? E, se o fizemos, é porque já sabemos
fazê-lo! A demonstração é cômica. E no entanto, sentimos que estamos
longe de alguma coisa essencial, de um paradoxo sem dúvida inerente à
questão da aprendizagem e que nos faz oscilar incessantemente da afirma­
ção do “já existente” a da “tábula rasa”... como se fôssemos obrigados a
escolher entre a metáfora da semente que já traz consigo todas as potencia­
lidades da flor e que, para desenvolver-se, requer apenas um meio favorá­
vel, e a metáfora da cera mole que recebe de fora uma forma que a modela.
Podemos fugir dessa alternativa? O leitor, sem dúvida, espera que sim e supõe
que eu tirarei de meu chapéu uma terceira solução, no momento exato. Mas,
antes de tentar esse empreendimento, observemos mais atentamente o quanto
aquilo que pode parecer algumas velharias filosóficas ocupa ainda, chegando
muitas vezes a saturá-lo completamente, o discurso educativo.

Notas
1. Platão, Afénon(85 d).
2. Platão, Ménon (84 b).
3. Platão, ibid. (85 a e 86 a).
4. Platão, ibid. (616 d a 621 d).
5. Doutrina filosófica segundo a qual o eu individual do qual se tem consciência é a única
realidade... os outros sujeitos e todos os objetos não têm assim mais existência que os
sujeitos ou objetos dos sonhos.
6. Kant, Critique de la raisonpure, PUF, Paris, 1950, p. 17
7. Ibid, p. 207. Cf. também p. 238 e 239.
8. Berkeley, Trois dialogues entre Hylas et Philonoüs, Aubier, Paris, 1970, p. 174. O fato de
que vários homens vêem a mesma coisa ao mesmo tempo não é por Berkeley atribuído à
existência desta coisa, mas à Providência divina (Jbid., p. 163 e seguintes).
Capítulo 1

Pode-se Aprender?
Quando se vê como a prática nos permite sair
das contradições onde a teoria nos aprisiona

“O que descobrimos neste livro? Sem dúvida, menos verdades do que


problemas e contradições. Eu diria mais precisamente: antinomias.
Antinomia entre a cultura liberal e a especialização, entre as pressões
e a liberdade, entre a civilização e a natureza, entre a sociedade como
fim e a criança como o todo, entre a pedagogia ideal e a realidade da
educação, entre a necessidade de uma educação moral e a sua impos­
sibilidade defato, entre a criança considerada comofuturo adulto e a
criança respeitada como criança."
O. Reboul,
La pbilosopbie de 1'Éducation
PUF, Paris, 1981, p. 129

Quando se entra sem dificuldade, através de um exercício


curioso mas significativo, no dilema pedagógico

A educação, mais do que qualquer outro domínio, é o objeto de uma


prática intelectual curiosa na qual se condena quem tiver a menor intenção
de escolher entre contrários e de “se posicionar”, como hoje se diz, em um
campo precisamente identificado, tanto por suas opções quanto pelas
excomunhões maiores que é levado a praticar. Sugerimos ao leitor que
ainda não estiver totalmente convencido disso a realização do joguinho
que propomos abaixo.
Aí estão, na verdade, vinte afirmações relativas à educação em geral e
ã aprendizagem em particular; nenhuma delas brilha por sua originalidade,
e é provável que aquele que tiver navegado pelos meios educativos tenha
ouvido pronunciar todas e, sem dúvida, as tenha utilizado pessoalmente

30 Pbilippe Meirieu

por diversas vezes. É provável também que a maioria remeterá o leitor a um


autor que ele terá talvez dificuldade para identificar, mas do qual se lembra­
rá ter um dia lido um texto. Se quiser aproveitar para fazer uma pequena
avaliação de sua cultura geral pedagógica, deve reportar-se à nota que se
encontra no final destas vinte afirmações... Mas, enquanto isso, deve simples­
mente tomar conhecimento destas fórmulas sem prejulgar o uso que delas
poderá ser levado a fazer ou procurando apenas opô-las duas a duas.

1. Nada se faz sem desejo. Impor o que quer que seja ao sujeito, se disso
não manifestar desejo, é expor-se à recusa ou provocar a rejeição.

2. Na maioria das vezes, os indivíduos buscam apenas comprazerem- se


na facilidade e no consumo passivo. É preciso “pressioná-los’ para
P impor-lhes objetos culturais que sempre exigem um esforço.

3. Para ajudar alguém, basta ouvi-lo e comunicar-lhe, através da confian­


ça que nele depositamos, a determinação necessária para que encontre
em si mesmo os recursos para solucionar seus problemas. Ninguém
jamais pôde resolver o problema de um outro alguém.

4. O exercício da autoridade é sempre perverso, pois vem sistematica­


mente acompanhado pela ameaça — implícita ou explícita — de uma
sanção; mantém, portanto, os sujeitos na dependência e na alienação.

5. Um sujeito só é agressivo quando é agredido; a educação consiste,


portanto, em criar um meio favorável que torne a violência inútil, ou
mesmo impossível.

6. Não se pode desejar o que se ignora; não se pode gostar daquilo que
não se conhece. Esperar a emergência do desejo é levar à desigualdade.

7. Não se aprende nada que não se tenha redescoberto e reconstruído


por si mesmo. As únicas aprendizagens que contam são as que o sujei­
to efetua ativamente, de acordo com o seu próprio projeto, confrontan­
do-se com as dificuldades que encontra para superá-las.

8. O que é preciso antes de mais nada conhecer, para lidar com a educa­
ção, é a psicologia. Pelo seu método — centrado no sujeito - como
também pelos conhecimentos que elaborou, ela nos dá o essencial do
que devemos levar em conta.

9. Educar alguém é integrá-lo em uma sociedade; portanto, é ensiná-lo a


submeter-se às regras que esta sociedade lhe impõe para ler êxito. A
verdadeira liberdade é a do homem que vive na Urbesubmetendo-se à
lei comum.
Aprender... Sim, Mas Como? 31

10. A autoridade permite que o indivíduo estruture sua personalidade. Sem


ela, iria em busca de limites e perder-se-ia na violência.

11. O essencial, a ser buscado em todas as circunstâncias, é o desabrochar


das pessoas, a descoberta e a valorização da riqueza de cada sujeito. As
aprendizagens devem estar integradas nessa dinâmica.

12. Para ajudar alguém, é preciso fornecer-lhe informações e instrumentos


intelectuais que lhe permitam compreender-se e compreender a situa­
ção na qual se encontra. Economizar um aporte externo e remeter o
sujeito apenas a ele mesmo é alimentá-lo com ilusões narcisistas e
isolá-lo em suas dificuldades.

13. O educador deve colocar-se a serviço da solicitação expressa pelos


sujeitos; o respeito desta solicitação é indiscutível. Não levá-la em con­
ta é desprezar os sujeitos, afastar-se deles e, portanto, renunciar, mais
cedo ou mais tarde, a um mínimo de eficácia.

14. Toda aprendizagem verdadeira exige uma ruptura com antigas repre­
sentações ou preconceitos anteriores. Requer, portanto, uma interven­
ção externa ou uma situação específica que obrigue o sujeito a modifi­
car o seu sistema de pensamento.

15. Sendo acima de tudo, quer se queira ou não, um agente social, o


educador deve dispor das informações que lhe permitam compreender
o seu papel; como a sociedade pede que amplie as competências dos
sujeitos, ele deve dominar perfeitamente essas competências. Então,
deve recorrer aos recursos da sociologia e da epistemologia.

16. Cada sujeito tem uma personalidade insubstituível e constitui em si


mesmo uma riqueza irredutível ao conjunto das influências que recebe
como funções sociais que é levado a assumir.

17. Para um educador, o essencial é fazer com que o sujeito adquira as


competências técnicas que serão mais úteis à sociedade na qual se
encontra. Isso o leva, muitas vezes, a fazer com que o sujeito efetue
aprendizagens sem relação com o seu projeto pessoal.

18. Educar alguém é ensiná-lo a pensar por si mesmo e a realizar apenas as


ações que terá livremente decidido.

19. O sujeito sempre busca o seu prazer em detrimento de outrem e a


agressividade é um componente fundamental da “natureza humana".
A educação consiste em substituir, no sujeito, o princípio de prazer
pelo princípio de realidade.
32 Pbilippe Meiríeu

20. O sujeito não é senão o produto de sua educação e esta educação não
é senão a soma das determinações (fisiológicas, sociais etc.) às quais é
submetido.’

Esta leitura o deixa perplexo, e é bem compreensível. O que fazer com


todas essas banalidades? Como se encontrar em toda essa confusão ideoló­
gica onde se diz tudo e ao mesmo tempo o seu contrário?
Para começar a esclarecer as coisas, propòe-se que você situe essas
vinte afirmações no quadro abaixo.
Indique apenas os números correspondentes a cada casa procurando
obter uma certa homogeneidade em cada uma das duas colunas. Se o tra­
balho com números for difícil para você, retome cada afirmação resumin­
do-a e inscreva-a no lugar que convier.

A B
Que representação se pode ter do
sujeito e daquilo que o constitui?
O que pode significar “educar para
a liberdade”?
É possível livrar-se da agressividade?''
A autoridade é necessária na educação?
Que finalidade se pode
conferir às aprendizagens?
Quando e como um sujeito efetua uma
aprendizagem realmente eficaz?
Que lugar é preciso atribuir ao desejo
na aprendizagem?

A B
Como responder a uma questão cultural
formulada por um ou mais sujeitos?
Que atitude é preciso ter quando um
sujeito parece precisar de um auxílio
particular para fazer frente a urna
dificuldade?
?
Aprender... Sim, Mas Como? 33

Em que ciência(s) humana(s) é preciso


buscar os aportes essenciais para
abordar a educação?

Você conseguiu preencher o quadro? Você acha o exercício ridículo?


Sentiu-se desencorajado no caminho?... Espera o gabarito com as respostas!
E no entanto, não haverá: o exercício é simples demais e as expectativas de
seu autor fáceis demais de decodificar; você já sabe o que deve encontrar,
sabe que há dois campos e que a cada uma das questões podem-se dar
duas respostas contraditórias; sabe que, de um lado, as respostas remetem
ao sujeito, à confiança depositada em seus recursos, ao respeito de seu
desejo e de seu projeto, à atenção aos seus processos de aprendizagem e
que, do outro lado, as respostas remetem à autoridade do agente social, à
exterioridade da lei, do saber, das exigências econômicas; sabe que, de um
lado, a educação e a aprendizagem são concebidas como a promoção do
endógeno e, do outro, como a organização do exógeno; sabe que os partidá­
rios da primeira rejeitam radicalmente os partidários da segunda, sustentan­
do que nada se faz em um sujeito que o sujeito não faça, e que os partidá­
rios da segunda recusam esta argumentação observando que o sujeito, redu­
zido a ele mesmo, é pobre e “que não há exemplo de que um ser humano
possa ter atingido o estatuto de adulto sem que tenham intervindo, em sua
vida, outros seres humanos, por sua vez adultos”2. Você sabe de tudo isso
e, como todo mundo, se recusa a situar-se nesta alternativa, manifesta até
um certo mau humor por estar assim diante de uma escolha impossível;
uma e outra está certa e errada, pensa você, e é entre as duas que deve
buscar a verdade... como O. Reboul, que mostra que todo o esforço da
filosofia da educação consiste em encontrar “se não a solução concreta
para essas antinomias, pelo menos um método para resolvê-las”3... como L.
Not, que rejeita tanto as teses que afirmam a auto-estru tu ração do sujeito e
de seus conhecimentos quanto as que reivindicam sua heteroestru tu ração e
propõe a interestruturação do sujeito pelo conhecimento e do conhecimento
pelo sujeito4... Você se debate para não ter que escolher e eu me debatería com
você se, ao examinar cada uma das duas teses, não encontrasse razão para
abandonar uma ou outra e não descobrisse, ao contrário, em cada uma delas,
todas as razões para adotar uma e outra em sua própria radicalidade5.

Quando se vê que não é fácil escolher entre os dois


termos de uma alternativa

Com Platão, viu-se que o professor é “parteiro” e a confiança que deposita


em si para tirar o sujeito do mundo das ilusões é incessantemente tempera-
34 Pbilippc Meiríeu

da pela certeza de que ele não é, jamais é, o “genitor”. Sócrates assiste o


indivíduo ao dar a luz a seus conhecimentos, mas afirma a sua inocência
quanto à origem dos mesmos; ajuda-os a vir ao mundo, mas certamente
não foi ele quem engravidou o sujeito. Há, sem dúvida, nesta modéstia,
algo particularmente sadio: os psicanalistas gostam de dizer que apenas o
louco reivindica a paternidade; apenas ele, em todo caso, pode considerá-
la sem nenhum espanto, com a plácida certeza de ser o autor de sua
progenitura, com a convicção de que ela é de fato sua e de que sempre
será. A dúvida, a inquietação, o sentimento de que ocorreu algo da ordem
de um milagre dão à paternidade a fragilidade que a torna suportável pela
criança, mas também pelo pai. Sem isso, a primeira não pode encontrar o
menor interstício onde instaurar sua diferença e o segundo vê sua responsa­
bilidade excessivamente inflada chegando a persegui-lo dia e noite incansa­
velmente, culpando-o pelo menor instante de ausência em que seu olhar e
suas preocupações teriam desviado para outra direção.
O mesmo ocorre, sem dúvida, com o professor que procura ensinar: é
importante que ele seja movido por esse sentimento de despojamento, que
faz com que recuse incansavelmente a posição de genitor; convém que, em
muitos sentidos, ele se diga apenas “iluminador” e suponha que, se as
coisas nascem através dele, não nascem dele. Convém que, tentando ensi­
nar, faça descobrir e que assim perca a força da transmissão. Na verdade, a
transmissão - se considerarmos sua definição mecânica - quase não dá aos
parceiros a possibilidade de investir ou de tirar sua energia de outro lugar,
de existir paralelamente, por si mesmos e para alguém mais. Uma aprendiza­
gem vivida como uma simples “transmissão”, que atribuísse ao professor a
paternidade mesmo indireta dos conhecimentos do aluno, aniquilaria o
aluno e ao mesmo tempo o professor: o primeiro se apagaria, o segundo
desmoronaria com o peso de uma responsabilidade ilimitada. Em compensa­
ção, se o professor vê o seu poder limitado ao de um acompanhante, sem
dúvida, a aprendizagem, se não for mais eficaz, será menos patogênica.
Mas isso não é tudo: com efeito, nas “pedagogias do sujeito”, no cen­
tro de sua doutrina, há esta verdade evidente: a “caixa preta” nos escapa.
Podemos criar reflexos condicionados, obstinar-nos com o par estímulo-
resposta, fazer com que nossos alunos levantem, sentem, caminhem, cor­
ram, recitem, identifiquem, cortem, aplaudam; nunca podemos saber com
certeza o que se passa na caixa preta no exato momento em que acredita­
mos controlar - em que controlamos - perfeitamente o seu comportamen­
to. Nunca sabemos também o que as palavras que utilizam realmente signi­
ficam para eles e que pensamentos se escondem atrás de sua servilidade
aparente. Talvez tenhamos um poder sobre a caixa preta, mas nunca sabe­
mos que de fato o temos, e nenhum indício pode aí ter valor de prova. Há
uma opacidade indiscutível da consciência de outrem que marca um ponto
limite de todas as nossas tentações totalitárias e que, naquele que não pode
a isso se resignar, gera a violência e a destruição da pessoa. É pelo fato de
Aprender... Sim, Mas Como? 35

que a consciência do outro inevitavelmente me escapa que meu desejo de


controle e minha vontade de poder tentam aniquilar o seu corpo ou, de
maneira mais simples, mais trivial, mantê-lo fora de meu campo de visão. O
professor bem sabe que, com um simples gesto, põe para fora o aluno que,
sendo incompreensível para o primeiro, tornou-se para ele insuportável...
livra-se de um corpo quando não pode mais controlar seu espírito. Ora, é
exatamente aí que as “pedagogias do sujeito”, em sua própria radicalidade,
nos salvam do adestramento e do delírio: é preciso que o sujeito se salve e
que eu reconheça à “caixa preta" o direito absoluto à existência. De fato,
sabe-se muito bem o que poderia aí significar a menor reserva: conceder-se
a possibilidade da exceção, em nome de uma “razão superior”, é abrir a
porta ao arbitrário e a todos os abusos. A fórmula de Protágoras segundo a
qual “o homem é a medida de todas as coisas” expressa aqui, mais do que
uma teoria do conhecimento, um princípio ético fundamental que coloca o
sujeito como referente último; violá-lo seria colocar sua própria existência
em perigo e, portanto, a possibilidade de sua enunciação. Kant não diz
outra coisa quando fala em imperativo categórico e define como moral
“toda ação cuja máxima eu possa querer que se torne uma lei universal”6.
Enfim, é preciso creditar às pedagogias do “endógeno” a evidência
incontestável de que só há saber pelo caminho que leva a ele e de que só
há conhecimento na apropriação de que dele faz o sujeito. Posso fazer com
que o outro faça algumas economias de tempo e de meios, mas jamais
posso aprender em seu lugar: isso é válido para a natação ou para a condu­
ção de um automóvel, também é válido para a leitura e para a matemática.
Por outro lado, o que quer que pensemos sobre toda a sua obra, só nos
resta concordar com a fórmula de C. Rogers quando este diz que “a única
aprendizagem que realmente influencia o comportamento de um indivíduo
é aquela que ele descobre por ele mesmo e da qual se apropria”7. Só nos
resta concordar, pois trata-se, na realidade, simplesmente de uma lapalissada.
Assim, não nos livramos tão facilmente de toda uma tradição filosófica
e pedagógica que coloca o sujeito no centro da dinâmica da educação e da
aprendizagem; também não a abandonamos tão facilmente quando avalia­
mos os perigos dos quais nos preserva. É claro que, quando impõe a abs­
tenção educativa em nome do respeito da liberdade do sujeito, quando
extravasa palavras para melhor definir-se como uma pedagogia do silêncio,
quando fala tanto sobre a escuta que nos questionamos sobre o tempo que
resta para sua prática, essa pedagogia irrita... mostra, porém, verdades com
as quais não transigimos8. Velhas verdades certamente, mas verdades mes­
mo assim e que, paradoxalmente, parecem ainda “progressistas”, enquanto
que as teses contrárias cuja difusão é, no entanto, nitidamente mais recente,
têm um cheiro bem mais “tradicionalista”... O que dizem elas essencialmen­
te? Segundo as célebres fórmulas de Durkheim, “a educação é a ação exercida
pelas gerações adultas sobre as que ainda não estão amadurecidas para a
vida social. Tem como função suscitar e desenvolver, na criança, um certo

L
36 Philippe Meirieu

número de estados físicos, intelectuais e morais que tanto a sociedade polí­


tica em seu todo quanto o meio social ao qual está particularmente destina­
da exigem dela9”. O quadro está completo: o fato de que o sujeito recebe
de fora sua identidade; de que é a inserção em uma comunidade humana,
sua cultura e seu modo de funcionamento que conferem a ele sua existên­
cia real, concreta; de que o papel do educador é “suscitar e desenvolver”
competências identificadas em função de sua utilidade social; de que a
educação não é então a admiração beata das aptidões que despertam, mas
o fato de fornecer instrumentos precisos que permitem que os indivíduos
se integrem em um grupo social determinado, que nele encontrem um
lugar, o seu lugar.
E alguém tem o direito de insinuar o contrário? Talvez, mas em nenhu­
ma hipótese o professor primário ou secundário, instalados naquilo que
continua sendo, o que quer que se pense, uma posição social e que não
podem decidir privar outrem daquilo com o que se beneficiaram. Na verda­
de, “é a sociedade que gera a educação, perpetuando assim o seu desfile
conforme, atribuindo lugares, regendo as maneiras de fazer, de dizer, de
ser10.” E o que seria o sujeito sem isso, sem essa intendência que, pelo
menos, dá forma a seus projetos? O que seria o sujeito sem a parte de
adestramento que libera sua reflexão de várias tarefas fastidiosas permitin­
do que as efetue automaticamente? O que seria o sujeito se não houvesse o
autômato? Um indivíduo envolvido com uma quantidade de intenções que
não conseguiría nem mesmo formular... talvez ainda, um indivíduo sem
intenção, já que sem meio de nomeá-las e, consequentemente, sem meio
de identifícá- las... nada, na verdade, uma abstração, apenas uma idéia. O
indivíduo é irremediavelmente um ser social e, como tudo o que faz e diz
é englobado, estruturado, expresso pelo social, é apenas um ser social. A
sociedade nada pode dele obter que ela mesma não tenha, de uma certa
forma, nele introduzido. Por mais que tentasse se emancipar, só poderia ao
preço de uma difícil metamorfose exigindo novas inculcações. Por mais
que se encontre privado de seus quadros sócias, ele tenta reconstituí-los
minuciosamente e deve, como Robinson Crusoé, ritualizá-los o suficiente
para não os perder completamente, para não se perder completamente.
Essa natureza intrinsecamente social do sujeito quebra toda liberdade?
Spinoza já havia apontado o paradoxo: “O homem que é dirigido pela
Razão, dizia ele, é mais livre na Urbe, onde vive segundo o decreto comum,
do que na solidão, onde só obedece a si mesmo”11. Com efeito, de que
liberdade disporia um sujeito que tudo ignorasse das expectativas sociais?
A de um animal acossado, “conduzido pelo medo”12, submetido a impulsos
que seria obrigado a por à prova dos fatos, com o risco quase certo de
enganar-se e de perder-se mais cedo ou mais tarde. A Razão, ao contrário,
determina que ele ceda à regra comum, já que esta regra garantirá, em
troca, sua existência e servirá de ponto de apoio aos atos que poderá reali­
zar. O que ocorre com a realidade social é o mesmo que ocorre com a
Aprender... Sim, Mas Como?

realidade física: negar a gravidade jamais permitiu voar, foi apoiando-se


nela, obedecendo à sua lei, que o homem pôde construir aviões.
E se a liberdade, minha liberdade, só é possível com referência à exte-
rioridade, a fortioria aprendizagem só pode advir se, de fora, um ser, uma
instituição, um instrumento vierem me trazer os elementos sem os quais eu
seria definitivamente surdo, cego e mudo. Na verdade, aprender é compreen­
der, ou seja, trazer comigo parcelas do mundo exterior, integrá-las em meu
universo e assim construir sistemas de representação cada vez mais aprimora­
dos, isto é, que me ofereçam cada vez mais possibilidades de ação sobre
esse mundo. Refugiando-me incessantemente em mim mesmo, não encontra­
rei nem mesmo os meios para compreender-me, pois sou do mundo tanto
quanto de mim mesmo e não posso resolver meus problemas se não me
compreender dentro do mundo. O “conhece-te a ti mesmo”, quando supõe
que disponho sozinho de todos os recursos necessários para fazer frente a
uma dificuldade, é sempre uma impostura: jamais sou, sozinho, a solução...
porque não estou só. E não podemos nos livrar tão facilmente de uma tal
evidência, que é a única defesa contra nossas veleidades narcisistas e nos­
sas tentações egocêntricas: impõe que levemos em conta a exterioridade
em sua própria radicalidade e, neste sentido, é indiscutível. E quem não
teve vontade de lembrar isso diante de tantos discursos vãos sobre a escuta
ou naquelas intervenções de educadores que incessantemente exortam “os
educandos” a “expressarem-se”, a “confiarem-lhes seus problemas”, mas
que se recusam a fornecer a eles instrumentos para resolvê-los... sob pretexto
de não lhes faltar com o respeito! Como se devessem expiar seu estatuto e,
quando tiverem algo a dizer, praticar uma ginástica sábia para insinuar que
o estão dizendo, mas que não o dizem realmente e que, na realidade,
reformulam o que disse o grupo etc. A negação de paternidade, com tudo
o que nos mostrou ter de positivo, transforma-se aí, na maioria das vezes,
em um ridículo disfarce: anuncia-se respeitar a liberdade de outrem, mas
priva-se-a, na verdade, dos meios de se exercer; proclama-se dar o poder
aos interessados, ao passo que a ignorância os mantém na dependência. E
por isso que o professor deve assumir sua função e transmitir os instrumen­
tos fabricados ao longo da história dos homens, afastando-se progressivamen­
te das suas ilusões primeiras. É por isso que essa transmissão não pode
mais se situar no prolongamento direto do que sou e do que penso; ela
impõe uma ruptura que, sozinho, não serei capaz de realizar, não tão depressa
em todo caso... tanto é verdade, como não deixou de observar G. Bachelard,
que “conhecemos sobre este conhecimento exterior, destruindo conhecimen­
tos mal feitos, vencendo aquilo que, no próprio espírito, constitui um obs­
táculo à espiritualização”13. Não podemos fugir da transmissão; bem mais
do que isso, é o próprio ato de transmissão, tanto quanto a coisa transmiti­
da, que é fundador de socialidade recíproca, isto é, de humanidade.
Portanto, não nos livramos tão facilmente das pedagogias do exógeno,
de todas as teorias educativas que pregam a importância primeira da inter-
38 Philippe Meiríeu

venção e cia transmissão, a radicalidade da exterioridade: “Sou ensinado,


isso significa que a verdade me vem de fora, mesmo que eu seja capaz ou
suscetível a ela: o ensino significa todo o infinito da exterioridade”1'1. Tam­
bém não as relativizamos tão facilmente, temperando-as com um pouco de
inferioridade... pois o infinito menos alguma coisa é ainda o infinito! É claro
que, quando elas sugerem que a criança é uma “cera mole” que o educador
deve modelar à sua maneira, quando insinuam que a exortação e a sanção
bastam ã transmissão, quando confundem ensino e aprendizagem, essas
pedagogias irritam e nos causam incômodo... e no entanto, quem pode
querer refutá-las ou ignorá-las?
Diante de duas opções que nos parecem assim igualmente fundamen­
tadas, e fundamentadas precisamente em sua radicaliclade recíproca, que
opção escolher? O “meio termo” não teria nenhum sentido, já que esvazia­
ria cada uma de sua força e, relativizanclo-as, faria com que perdessem todo
interesse. Estamos condenados a escolher ou a nada fazer e, assim, entre­
gues ao arbitrário ou ao imobilismo?

Quando se tenta mostrar que, se é inútil esperar uma


síntese teórica, o concreto das práticas nos convida
a assumir a tensão e a vivê-la na história

Quem não conheceu situações de bloqueio em que o aluno parece totalmente


estranho e refratário ao saber que o professor quer fazer com que ele adquira?
Quem não teve então a tentação de resolver o problema pela terrível simplici­
dade do “faça como você quiser” ou do “faça como eu quero”? Quem não
sabe perfeitamente argumentar cada uma cias duas atitudes e justificar tanto
o “faça como você quiser”, invocando o caráter absolutamente pessoal e
voluntário de toda aprendizagem, quanto o “faça como eu quero”, invocan­
do o interesse do aluno, não “aquilo que o interessa”, mas sim “aquilo que
é do seu interesse” e que o professor sabe melhor do que ele? E cada uma
das duas posições está certamente correta, talvez ainda, tanto uma quanto
a outra sejam a única correta...e no entanto, elas são contraditórias!
São contraditórias, mas talvez porque a vida seja uma contradição. São
insustentáveis e incontornáveis, mas talvez porque a prática pedagógica
seja uma tensão... é, sobretudo, porque a prática é história e a história é a
fugacidade, a passagem, o percurso, a transição, o conflito. A dificuldade
maior das teorias da aprendizagem, aquela que as leva à aporia, é assumir
a historicidade do aprender e o fato de que uma história não é, jamais é, um
desenvolvimento linear, mas sim uma dialética. Os filósofos sempre estive­
ram diante desta questão: “Como é que se pode passar do não saber ao
saber? Como é que ele pode advir da mudança?” E sempre estiveram inclina­
t dos a privar a aprendizagem da história, a cair no princípio do já existente
Aprender... Sim, Mas Como? 39

ou a afirmar a total maleabilidade do sujeito às intervenções externas. Ao


passo que a aprendizagem é uma história que coloca diante de um “já
existente” uma intervenção externa; uma história onde sujeitos se confron­
tam e onde trabalham e se articulam, nunca com muita facilidade,
interioridade e exterioridade, aluno e professor, estruturas cognitivas exis­
tentes e novos aportes.
E isso é verdadeiro no que diz respeito à análise da relação pedagógi­
ca em que duas pessoas, num confronto sempre aleatório, estào em tensão:
ao desejo legítimo de inculcação e de instrumentação social de uma opõe-
se, assim, a resistência da outra, mobilizada em interesses mais imediatos,
desejando incontrolavelmente muito ou muito pouco, jamais “na medida
que deveria”. Ensinar não é, então, sacrificar uma das duas partes, abdicar
de suas exigências ou ignorar a pessoa de quem aprende; ensinar é levar
totalmente em conta uma e outra e montar a história neste espaço: mas a
história nunca é escrita previamente e, para ela, nunca temos receita; a
história não se repete, e não podemos ter a certeza de sair dela totalmente
ilesos. Na história, “há pressão e resistência”; na história, encontramos, às
vezes, algumas frágeis mediações nas quais o desejo do aluno se articula,
em algum momento, a uma proposta do professor... não há dúvida de que
poss i haver aí “transmissão”, mas essa transmissão é construída e, portanto,
precária; não tem nada de mecânico, ela é, antes, da ordem de uma coincidên­
cia. Sabemos muito bem disso, nós, professores primários, secundários e
educadores, que nos empenhamos em despertar para a literatura o interes­
se de pessoas que só se interessam pela música rock, como Fourier, que
procurava uma maneira de despertar para a matemática o interesse da me­
nina que gostava de alho!
O que observamos aqui na relação pedagógica podemos observar tam­
bém em ação no processo de aprendizagem, tal como é descrito por J.
Piaget: este recusa tanto a qualidade inata das estruturas cognitivas, quanto
a sua emergência contingente; recusa a idéia de que nossa inteligência seja
inata, tanto quanto a de que ela nos seria totalmente imposta do exterior;
não nega, entretanto, nem a existência de um “já existente”, nem a de um
“adquirido”, ele mostra que é no diálogo permanente entre o inato e o
adquirido onde se opera o conhecimento. Graças ao que sou e pelo que
sou, posso adquirir, assimilar novos fenômenos, enriquecer e modificar
assim o que sou; novas estruturas são então instauradas e esse equilíbrio,
por sua vez, permite que eu tenha acesso a uma nova aquisição15.
Pensar a aprendizagem é, portanto, pensar história; mas a história é,
sob muitos aspectos, impensável. Assim, é preferível “agir a aprendiza­
gem”, ou seja, não renunciar a um dos dois termos da alternativa, mas
colocá-los em tensão para colocar-se sob tensão. E quanto mais profunda­
mente estivermos empenhados em não sacrificar nenhum dos dois pólos,
maior e mais fecunda será essa tensão. Não se pode dizer que isso seja fácil:
não há nada aí que pareça uma reconciliação tranqüilizadora e o caminho
40 Pbilippe Meiríeu

aberto não é o de uma harmonia perfeita; a tranquilidade não será aí nosso


prêmio diário... O que é tranquilo, como bem sabemos, nos dias de cansa­
ço, é voltar ao conforto do “faça como você quiser” ou do “faça como eu
quero”. O que é fecundo, por outro lado, é buscar incansavelmente aquilo
que poderiamos querer juntos.

Quando se conclui, como arquimedes, que com um


ponto de apoio pode-se fazer muitas coisas

“O que poderiamos querer juntos”... não será uma proposta demagógica?


Não será a obrigação do professor rever e diminuir suas exigências, nivelar
por baixo, alinhar-se ao menor denominador comum? Poder-se-ia admitir
isso, se essa proposta expressasse simplesmente um desejo; mas, na reali­
dade, ela designa um fato: pois só há “transmissão” quando um projeto de
ensino encontra um projeto de aprendizagem, quando se forma um elo,
por mais frágil que seja, entre um sujeito que pode aprender e um sujeito
que quer ensinar. É por isso que o ofício de ensinar requer esta dupla e
incansável prospecção, por um lado, no que diz respeito aos sujeitos, às
sua aquisições, suas capacidades, seus recursos, seus interesses, seus dese­
jos, e, por outro lado, no que diz respeito aos saberes que devem ser
incessantemente percorridos, inventariados para neles descobrir novas abor­
dagens, novas riquezas, novas maneiras de apresentação. Essa busca é a
própria condição do ofício, na medida em que só ela permite essas corres­
pondências onde se dá a aprendizagem; sem ela, algumas correspondênci­
as poderão, sem dúvida, ser estabelecidas ao acaso de um encontro fortui­
to, de um desejo momentaneamente convergente, de uma cumplicidade
cultural. Com ela, em contrapartida, essas correspondências poderão ser
progressivamente construídas, desde que não se espere, entretanto, uma
adequação total entre o projeto do aluno e o do professor: uma tal adequa­
ção, em que corresponderíam, termo a termo, os desejos, capacidades e
interesses do aluno aos projetos, exigências e conteúdos do professor... é
evidentemente impossível e sua busca, paralisante.
O que se pode esperar, o que se deve procurar é, em primeiro lugar,
um ponto de apoio no sujeito, mesmo o mais sutil, um ponto ao qual
articular um aporte, onde instalar um mecanismo para ajudar o sujeito a
crescer... Isso poderá ser, às vezes, um desejo de saber e de compreender
nascido de uma situação totalmente estranha à escola: não se imaginam os
desafios formidáveis que podem representar para uma criança, em sua fa­
mília ou em seu meio, a possibilidade de poder ler a programação da
televisão ou de calcular a porcentagem de suco de frutas que ela bebeu na
semana em relação a de seus irmãos! Poderão ser, também, capacidades
adquiridas ao longo de sua história pessoal e escolar: capacidade para utili-
Aprender... Sim, Mas Como? 41
zar este ou aquele instrumento, para manipular este ou aquele objeto, para
efetuar esta ou aquela operação intelectual, múltiplas capacidades para fa­
zer ou dizer, muitas vezes não identificadas na instituição escolar e nas
quais seria preciso apoiar-se. Poderão ser, ainda, competências específicas
sobre as questões mais inverossímeis, competências que o próprio profes­
sor nem sempre tem, que hesita em fazer emergir por medo de parecer
ignorante, e às quais se poderia, entretanto, articular muitas coisas. Poderá
ser, enfim, um interesse, estranho ou compartilhado por determinada ques­
tão, determinado domínio, através do qual se poderá propor saberes escola­
res: como fazer, perguntava-me recentemente um professor de inglês, para
atrair para a minha disciplina alunos que passam o seu tempo escutando
músicas... inglesas?
“Dê-me um ponto de apoio e eu erguerei o mundo”... Dê- me um
ponto de apoio no sujeito e ajudá-lo-ei a aprender, a apropriar-se da novi­
dade, a compreender um pouco mais o mundo e a si mesmo. Um ponto de
apoio e não todos os pontos de apoio; um ponto de "apoio ao qual ele e eu
possamos nos articular para fazê- lo evoluir. E tomemos os pontos de apoio
que tivermos, não esperemos que nasçam, miraculosamente, aqueles que
estabelecemos como indispensáveis; não esperemos que ele saiba dizer
isto ou fazer aquilo... Talvez aprenderá a dizer isto ou a fazer aquilo porque
saberá outra coisa ou quererá, a qualquer preço, atingir uma outra que nem
imaginamos. Busquemos os recursos de que ele dispõe, sem conjeturar
antecipadamente os que vamos encontrar ou os que deveriamos encontrar.
Na verdade, nada diz que o que encontraremos de fato não nos permitirá
articular uma aprendizagem que, por sua vez, permitirá instaurar novas
estruturas cognitivas e adquirir capacidades cuja emergência espontânea
poderiamos esperar em vão. “Construir supõe um construtor; aprender su­
põe um apriori\ adquirir supõe um inato”, diz E. Morin16. E ele acrescenta:
“Assim pode instaurar-se a dialógica entre o aparelho conhecedor, que traz
o já conhecido (os esquemas inatos, as aquisições memorizadas) e o “meio
conhecível”, repleto de desconhecidos”17. Nunca acabamos de inventariar o
já conhecido e nunca devemos perder a esperança de nele encontrar o
meio para aí articular o “conhecível.”
Mas, para isso, é preciso ainda, por outro lado, que o professor domi­
ne o “conhecível”, que explore, em todos os sentidos, os conhecimentos
que deve fazer com que sejam adquiridos, que compreenda suas gêneses e
suas lógicas, que examine todos os recursos que elas oferecem e que bus­
que, sobretudo, todas as abordagens, todos os caminhos que lhe permitam
ter êxito. Essa tarefa não é simples, pois impõe um distanciamento de seu
próprio itinerário de aprendizagem, um questionamento permanente dos
saberes sob o ângulo, não dos produtos que constituem, mas dos métodos
que os constituem. Essa tarefa é difícil, porque os saberes não mostram isso
logo à primeira vista e não podem poupar o professor da imaginação e da
inventividade didática: o conhecimento, o perfeito domínio, por si só, das
42 Pbilippe Meirieu

regras de concordância do particípio passado nada dizem quanto a todos


os meios possíveis de chegar a elas; tampouco quanto à forma de sensibi­
lização que se poderá utilizar - uma estória, um exercício escrito ou oral,
etc.? ao tipo de textos ou de exemplos onde é preciso estudá-las, ao
método a ser utilizado - mais lógico, mais lúdico? - à estrutura da atividade
que deve ser proposta ao aluno - oposição, discriminação, classificação,
indução? - às imagens e metáforas que vão possibilitar a compreensão, às
relações sociais que serão facilitadoras, ao tipo de motivação que vai ser
determinante: será que é o desejo de fazer bonito quando se escreve a sua
namorada ou o de respeitar um compromisso com o professor, ou ainda, o
de desafiar-se a si mesmo que vai fornecer a energia necessária para desenca­
dear a aprendizagem? E, supondo que se tenha feito aí todo o inventário
sobre o caso específico da concordância do particípio passado, restaria
ainda o questionamento sobre as outras noções, regras, aprendizagens às
quais tal regra poderia se articular. Trabalho de titã, evidentemente, c que
ninguém pode, de fato, realizar...
Essa exploração dos conhecimentos, como a busca dos pontos de
apoio no sujeito, só é possível porque uma e outra se regulam reciprocamen­
te. Nenhuma das duas, por si só, dispõe de algum referente, de algum
limite, e ambas se perderíam em uma busca infinita e desanimadora: é
preciso que o questionamento sobre os conhecimentos seja ao mesmo tempo
alimentado e limitado por aquilo que se sabe sobre o sujeito, da mesma
forma, é preciso que nossa preocupação com o sujeito seja estimulada e
informada por aquilo que sabemos sobre os conhecimentos afazê-lo adqui­
rir. Sem essa reciprocidade, a primeira se extenuaria em um inventário que
só o seu caráter lúdico poderia nos salvar do desânimo. Sem este vai-e-
vem, a segunda tomaria formas perigosamente inquisitórias... A coisa lhe
parece complicada? Ela é simples e, em muitos sentidos, natural, mas de
forma alguma, tranquilidade; consiste em ter, ao mesmo tempo e em interação
permanente, duas preocupações: a de melhor conhecer os recursos do
aluno e a de descobrir incessantemente novos itinerários para nossos sabe-
res... a fim de operar, sem ilusão mecanicista e com a consciência da preca­
riedade do método, as correspondências possíveis. É dessa maneira que,
respeitando a integridade do sujeito e sem renunciar ao nosso projeto de
instruí-lo, em tensão permanente entre o “faça como você quiser” e o “faça
como eu quero”, pode esboçar-se um querer comum, um querer aprender.

APRENDER
FERRAMENTA Ne 1 - ESBOÇO

Esta ferramenta não é, por si só, diretamente operacional para a prática


da classe; ela não possibilita fabricar dispositivos didáticos, tampouco avali­
ar os que são utilizados. Pode, por outro lado, ter duas funções preciosas:
Aprender... Sim, Mas Como? 43

- estimular a atenção do professor para que explore incansavelmente


pontos de apoio em seus alunos e novas abordagens para saberes que deve
transmitir-lhes;
- abrir caminhos que lhe permitam encontrar conexões possíveis que,
sem dúvida, não serão todas exploradas, mas dentre as quais descobrirá,
talvez, as que poderão desencadear sua inventividade didática.
Em que pontos de apoio, De que entradas para
no sujeito, posso os saberes posso dispor?
articular meu aporte?
- Quem é o aluno? - Que forma de sensibiliza­
- Qual idade ele tem? ção posso utilizar para intro­
- Quais são suas referên­ duzir a aprendizagem?
situação geral cias culturais? - Em que diferentes
do aluno e ambiente - Quais foram os aconte­ níveis de complexidade
da aprendizagem cimentos marcantes de sua posso propor o saber a ser
história pessoal? adquirido?
- Que acontecimentos ocor­ - Com que vocabulário,
reram em torno dele recente­ que exemplos, que auxilia­
mente? Dentro e também res pedagógicos posso
fora da sala de aula? apresentá-lo?
— Quais são as capacidades - Que tipos de suportes
perceptivas do aluno, qual é posso utilizar nas diferentes
o seu grau de sensibilidade fases da aprendizagem?
domínio aos estímulos sonoros, - De que modos de expres­
sensório-motor visuais, táteis, olfativos...? são e de restituição posso
— Quais são suas capaci­ recorrer, isolados ou a tí­
dades de expressão verbal tulo de acompanhamento?
ou não-verbal (gestos, mí­ - Que manipulações podem
micas...)? ser efetuadas a fim de
— Quais são suas habilida­ organizar ou de facilitar
des manipuladores? a aprendizagem?
— Que relações ele estabele­ - Como posso modular a
ce entre o tempo e a aprendi­ aprendizagem no tempo?
zagem (eficácia em tempos Em que unidades posso
curtos e numerosos ou em desmembrá-la? Segundo
sequências mais longas...)? que critérios?
- De que competências - Sobre quais conheci­
(conhecimentos) o aluno já mentos anteriores posso
dispõe (competências esco­ construir a aprendizagem
lares, mas também sociais que eu viso?
ou mais pessoais)? - Em que domínios posso en­
contrar (ou mesmo utilizar) as
competências que eu solicito
domínio ou procuro fazer com que se­
cognitivo jam adquiridas? Que materiais
ou exemplos posso, portanto,
utilizar que permitam aplicar
Philippe Meirieu

— De que capacidades o essas competências?


aluno já dispõe (capacida­ - Em que atividades se re­
des escolares, mas também corre às capacidades que eu
sociais ou mais pessoais)? solicito ou procuro fazer com
que sejam adquiridas? Que si­
tuações e que ferramentas
posso, então, utilizar que
permitam aplicar essas
capacidades?
- Que interesses, que pai­ - Em que projetos pessoais
xões, que curiosidades, que poder-se-ia inscrever a apren­
engajamento o aluno mani­ dizagem que procuro fazer
festa? com que seja efetuada?
- Que desafios existem ou - A que metas posso vincular
domínio poderíam existir para ele nu­ os objetivos visados (obtenção
afetivo ma aprendizagem (desejo de um desempenho em rela­
de impor-se, de produzir ção a uma média anterior,
para valorizar-se, de arris­ produção de um objeto so­
car-se, de lançar-se um cialmente valorizado, propos­
desafio a si mesmo, de iden- ta de uma situação lúdica,
ficar-se, de opor-se, etc.)? etc.?

Notas
1. A maioria destas afirmações foram reformuladas, mas podemos encontrar frases muito
próximas em vários autores: Assim, poderemos, por exemplo, ter reconhecido A.S. Neill na
afirmação 1, C. Rogers na 3 e 7, G. Mendel na 4, W. Reich na 5, P. Bourdieu na 6, Spinoza na
9, G. Snyders na 12, G. Bachelard na 14, Durkheim na 17, Freud na 19, Marx na 20...
As outras afirmações fazem parte de um fundamento comum ideológico refratado por tantos
autores que hesitaríamos em atribuí-las mais precisamente a um deles (é o caso principal­
mente das fórmulas 2, 13, 16, 18). Evidentemente, estas fórmulas estão aqui isoladas, ao
passo que, nos autores que as utilizam, apresentam nuances e, às vezes até, sua antítese...
teremos a oportunidade de voltar a isso.
2. D. Hameline, Maitres et élèues, Classiques Hachette, Paris, 1973, p. 3.
3. La philosopbie de 1’éducatiori, PUF, Paris, 1981, p. 129.
4. L. Not, Lespédagogies de la connaissance, Privat, Toulouse, 1979.
5. O exercício-jogo que acaba de ser proposto pode ser utilizado de maneira eficaz cm
formação pedagógica. Procede-se então da seguinte maneira: cada afirmação é distribuída a
um membro do grupo (se o grupo tiver mais de vinte membros, algumas afirmações podem
ser dadas a duas pessoas, se tiver menos, retiram-se pares para obter tantas afirmações
quantos forem os participantes); procede-se então em quatro fases:
— Cada participante tenta apropriar-se da afirmação que lhe foi confiada redigindo pessoal­
mente uma curta argumentação.
- Cada participante procura a afirmação contrária à sua e procede então a um confronto de
seus argumentos com o seu parceiro.
1

Aprender... Sim, Mas Como? 45

- Os participantes são convidados a dividirem-se em dois grupos baseando-se em uma


homogeneidade relativa de suas afirmações e cada um dos dois grupos realiza o exame de
todas as propostas para descobrir um ponto comum entre elas.
- Pode-se distribuir então o quadro com as questões que é preenchido individualmente.
6. Cf. Fondements de la métaphysique des moeurs, Delagrave, Paris, 1968, p. 103.
7. Liberte pour apprendrél Dunod, Paris, 1973, p. 152.
8. No ponto em que D. Hameline e M.-J. Dardelin concluem La liberte d'apprendre- situation
II, observando que “mesmo que isso implique que a “escolha essencial” que subtende o
método “não diretivo” permita que o endógeno preceda o exógeno no processo de
personalização, o risco é tão grande que seria preciso ainda muitas demonstrações para
convencer-nos a mudar de doutrina” (Éditions Ouvrières, Paris, 1977, p. 327).
9. E. Durkheim, Éducation et sociologie, PUF, Paris, 1980, p. 51.
10. D. Hameline, Maitres et élèues, Classiques Hachette, Paris, 1973, p. 4.
11. Spinoza, Éthique, IV-73. (Ética)
12. Ibid.
13. G. Bachelard, La formation de 1’esprit scientifique, Vrin, Paris, 1972, p. 14.
14. J. Lacroix, Spinoza et leproblèmedusalnt. Citado por O. Reboul, Pbilosophiede 1’éducation,
PUF, Paris, 1981, p. 131.
15. Cf. J. Piaget, em particular Le stmcturalisme, PUF, Paris, 1970, p. 52 a 62. (O estruturalis-
mo).
16. E. Morin, La méthode 3, la connaissance de la connaissance, Le Seuil, Paris, 1986, p. 60.
17. Ibid.
Capítulo 2

O Que É Aprender?
Quando se vê o quanto o ofício de ensinar
requer um esforço permanente de elucidação
e de retificação de nossas representações da
aprendizagem

“Em educação, a noção de obstáculo pedagógico é ignorada. Muitas


vezes, fiquei chocado com ofato de que osprofessores de ciências, muito
mais do que os outros, se isso épossível, não compreendem que alguém
não compreenda (...). Os professores imaginam que o espírito começa
como uma lição, que se pode sempre refazer uma cultura negligente
reprovando uma turma, que se pode fazer com que uma demonstra­
ção seja compreendida repetindo-a ponto por ponto."
G. Bachelard,
La formation de 1’esprit scientijique
Vrin, Paris, 1971, p.18.

Quando se discernem, em uma situação tão banal quanto


reveladora, as representações dominantes da aprendizagem

As reuniões de pais sempre têm algo de estranho: a encenação é, na maio­


ria das vezes, preparada, no último minuto, por um professor menos atrasa­
do do que seus colegas e que dispõe algumas cadeiras apressadamente; os
personagens, ainda que dominem o seu texto bastante bem, não sabem
exatamente quando devem entrar em cena e recorrem a jogos de olhares
complexos para revezarem-se; os espectadores presentes são, em geral,
profissionais neste tipo de cerimônia, aqueles que, na maioria das vezes, já
dispõem da informação que lhes vai ser dada, porque a escola sempre foi
para eles, em resumo, um lugar bastante favorável e cujos códigos conhe-

1 -
48 Philippe Meirieu

cem... os outros, infelizmente, só vêm em caso de força maior. Após o


discurso de costume, os debates se desenrolam, às vezes penosamente,
com longos momentos de silêncio, ou explodem repentinamente com algu­
mas apóstrofes agressivas contidas durante muito tempo. Pais e professores
iniciam então algumas discussões sobre o terceiro excluído - o aluno - com
alguns jogos de aliança muitas vezes surpreendentes: os pais se encontram,
na verdade, alternada ou simultaneamente, em posição de alunos, porta-
voz do que sabem ou supõem ser o interesse de seu filho; em posição de
adultos, solidários com os professores, ou em posição de rivais cuja influência
educativa pode ser concorrente daquela da escola. A isso se acrescentam
sentimentos curiosos em relação ao corpo docente, a quem um poder so­
bre o futuro escolar dos filhos e uma competência na matéria ensinada os
pais são forçados a reconhecer, mas a quem negam, na maioria das vezes,
o conhecimento das realidades sócio-econômicas... Em todo o caso, a cerimô­
nia funciona geralmente sem choque e mostra, se não a realidade das práti­
cas de ensino, pelo menos a das representações da aprendizagem.
Assim, em uma noite de novembro, por exemplo, inicia-se um diálogo
entre alguns pais de alunos do terceiro ano do primeiro ciclo do ensino
secundário e um professor de história e geografia... a conversa não é muito
original, e pais e professores concordarão de bom grado que ela se situe
em uma “média honesta”1.
Um pai-. Você nos apresentou o programa que ia ser tratado neste ano.
Disse-nos também que ele era muito extenso: acredita poder terminá-lo?
O professor. Será difícil, mas conto com os alunos para me ajudarem, por
um kdo, com sua atenção em aula, por outro, com seu trabalho pessoal.
Umpai\ Quando diz “trabalho pessoal”, você se refere ao trabalho em
casa?
O professor. É exato. É preciso que os alunos compreendam, sobretu­
do nesta série (último ano do primeiro ciclo secundário), que seu destino
está em suas mãos. Na idade deles, pode-se esperar uma certa autonomia
no trabalho.
Um pai'. Quanto tempo julga ser necessário para o trabalho em casa,
em sua disciplina, por semana?
O professor. É difícil dar um número exato, pois alguns são mais lentos
do que outros e há semanas de revisão mais pesadas. Em média, pode-se
falar em três horas.
Um pai-. Você dá a eles indicações sobre o que devem exatamente
fazer durante essas três horas?
O professor. Já disse que, pelo que me parece, os alunos, nesta série,
devem começar a saber organizarem-se. Em primeiro lugar, devem colocar
em dia suas anotações de aula, completar seu caderno. Em seguida, o que
peço a eles é para estudarem sua lição, conhecerem as noções que desen-
Aprender... Sim, Mas Como? 49

volvi, os fatos, as datas e os números mais importantes. Posso, também,


pedir um pequeno exercício.
Um pai: Meu filho sempre me explica que nào tem nada para fazer.
Digo a ele para ler a lição. Ele me responde que já o fez. Na verdade, não
se pode controlar nada.
O professor. Pedi aos alunos com dificuldades para terem um esquema
para a geografia e um outro para a história: devem colocar aí todas as
definições de geografia, algumas linhas para cada acontecimento histórico.
Podem também fazer resumos. Aí cabe a cada um se organizar.
Um pai: Em relação a definições, parece-me que há uma certa hesita­
ção, é o mínimo que se pode dizer. Mesmo a “Revolução Francesa”, tenho
certeza de que a maioria não sabe o que é uma “revolução”.
O professor. Sem dúvida, e aí não há milagre: basta escutar em aula e
aprender. E ainda, há o livro e os dicionários.
Um pai: Não compreendo por que não se começa por aí. Eles devem
aprender noções complexas sem que tenham as bases necessárias. Devem
compreender o capitalismo, mas não sabem quem é Colbert.
Um pai: É verdade que há um sério problema de bases pelo qual você
não é responsável.
O professor. É certo que, pela lógica, seria necessário recomeçar tudo
do zero e, aliás, não apenas em história, mas também em ortografia e no
plano do vocabulário de base. Pulamos as etapas continuamente, mas como
fazer de outra forma?
Um pai: Justamente, não se pode resignar-se a isso... ou, então, não se
deveria passar os alunos para a série seguinte!
O professor. Não... a questão, como vê, é que não dispomos de tempo
suficiente: Precisaríamos de uma hora a mais por semana e, como não
temos, é necessário que os alunos compensem com um trabalho maior em
casa.
Assim, desenrolam-se diariamente, na instituição escolar, centenas de
discursos desse tipo, muito convencionais, saturados de boa vontade e de
exortações indulgentes, chegando, muitas vezes, a estabelecer alguns con­
sensos em torno de “evidências” aceitas e reconhecidas pela maioria dos
envolvidos... Evitamos aqui a tentação de fazer a menor acusação contra a
intenção; sabe-se bem que essas reuniões são difíceis, que os professores
se sentem às vezes injustamente agredidos que não sabem muito bem em
que nível de linguagem devem situar-se, que lógicas contraditórias aí se
confrontam sem poderem efetivamente revelar-se, que, também, não é fácil
ter aí um objeto comum para investir e onde desenvolver uma linguagem
construtiva... É por isso que se cai precisamente nas banalidades; mas essas
banalidades são sempre significativas de um fundamento comum de represen-
50 Philippe Meirieu

tações da aprendizagem que bloqueia, de maneira tão forte, a inventividade


didática. Releia o diálogo e pergunte-se, para cada afirmação, que imagem
aflora e com que concepção da aprendizagem ela está relacionada2: você
encontrará aí, muito próximas, a metáfora do recipiente que a “atenção”
possibilitaria abrir para que saberes fossem despejados metodicamente, ou
ainda, a metáfora da pirâmide, bem regular, onde, hora após hora, lição
após lição, viriam se instalar os conhecimentos adquiridos e que permitirí­
am erguer-se até a série superior... Você encontrará aí, sobretudo, a afirma­
ção implícita, mas incessantemente retomada, de que os conhecimentos são
coisas e de que, como todas as coisas, são adquiridos e possuídos, são
acumulados e deles é feito o inventário, são abandonados quando são
quebrados, inúteis ou perigosos para serem substituídos por outros inteira­
mente novos e perfeitamente adaptados; são empilhados a partir dos maio­
res, dos mais sólidos e, por cima destes, aos poucos, os mais finos e os mais
complexos...como as coisas, os conhecimentos são aqui bens que o traba­
lho permite obter e que é preciso merecer; pois, como para as coisas, e
como é justo, se você não tem os conhecimentos, só deve se queixar a si
mesmo, já que as oportunidades lhe foram certamente oferecidas e você as
deixou escapar3.

Quando se questiona sobre a origem e a função


das representações dominantes da aprendizagem

Tais concepções não surgem assim por acaso. Dispõem, sobretudo, de uma
força que lhes permite parecer como a própria natureza das coisas, além ou
aquém de qualquer contestação racional, em contradição muitas vezes com
concepções, por outro lado, abertamente declaradas e que não parecem
atingí-las. Tudo acontece, na verdade, como se elas argumentassem dentro
de uma ordem específica, a do “bom senso” ou a do “senso comum”, às
quais se estaria, de uma certa forma, condenado a partir do momento em
que se quisesse falar sobre aprendizagem. Não haveria aí apenas uma questão
de “facilidade”, mas, talvez mais profundamente, uma questão de “possibi­
lidade”: o que se pode dizer sobre o aprender que foge às imagens? Como
é que se pode falar sobre um tal processo fugaz e inteiramente “passageiro”
de outra forma que não seja trazendo-o para o que a linguagem sabe fazer,
isto é, designar suas manifestações externas e identificar seus produtos?
Não que a verdadeira aprendizagem seja “indizível”, no sentido em que
pertencería ao domínio da emoção, esta sempre traída por aquilo que tenta
expressá-la, ou ao da ontologia, quando só se pode designar um ser por
seus atributos e, portanto, por aquilo que não lhe é verdadeiramente essen­
cial4, mas porque a linguagem, quando quer falar em história e na transfor­
mação de um sujeito, só pode falar em aquisição e nomear suas diferentes

I
Aprender... Sim, Mas Como.'' 51

etapas. É por isso que não é perfeitamente possível, sem dúvida, livrar-se
por completo de todas as metáforas coisificantes; é por isso que é ilusório
pensar que se poderia, de uma vez por todas, delas “expungir” os indivídu­
os e livrá-los totalmente das tentações simplificadoras; é por isso que - pela
própria coerência com essa afirmação - só se pode esperar que tentem
liberar incessantemente o “processo-aprender” daquilo que permite
representá-lo para eles e que, portanto, o paralisa de maneira inevitável.
Tarefa jamais concluída de fato, jamais totalmente possível e, no entanto,
particularmente necessária para inscrever sua atividade didática na dinâmi­
ca real dos sujeitos. Tarefa que é provavelmente mais fácil a partir do mo­
mento em que se compreende um pouco a natureza e a força das aderên-
cias com as quais se mantêm, em nós e em torno de nós, nossas represen­
tações da aprendizagem.
Elucidando as condições de elaboração de uma representação, S.
Moscovici mostra que o sujeito constrói um “esquema figurativo” que, ao
contrário da “teoria” que se reconhece como um modelo abstrato da
inteligibilidade do real, assume ser a própria realidade. A teoria se diz distan­
ciada; a representação se assume como “tradução imediata do real”5. Assim,
quando dizemos que aprender significa estar atento, ler e escutar, receber
conhecimentos, acreditamos estar descrevendo a realidade e, em muitos
sentidos, nós a estamos descrevendo: é verdade que a aprendizagem se
manifesta, muitas vezes, por tais sinais; mas ela apenas “se manifesta”, não
se efetua. Da mesma forma, quando dizemos que aprendemos por repeti­
ção ou por imitação, estamos apenas descrevendo comportamentos, nada
estamos dizendo sobre as operações mentais que são efetuadas, sobre a
maneira precisa como um elemento novo é integrado em uma estrutura
antiga modificando-a: sabemos que existem coisas que podemos repetir
mecanica e infinitamente sem que isso seja suficiente para garantir a apren­
dizagem, sem que isso seja suficiente também para assegurar o estabeleci­
mento de reflexos condicionados: Thorndike observou longamente a im­
portância da motivação e mostrou que uma aprendizagem que não se ins­
creve dentro de um projeto e da qual o sujeito não percebe os efeitos
positivos em seu desenvolvimento não está estabilizada. O próprio Pavlov
nunca afirmou que a repetição bastava para estabelecer o reflexo; é preciso
associar a ela, mostra ele, um conjunto experimental complexo que permita
transferir progressivamente os efeitos de um estímulo finalizado (que dá
um prazer ou uma satisfação) para um estímulo neutro... É essa transferên­
cia — aliás muito problemática no caso das aprendizagens complexas — e
não apenas a repetição de uma atividade, que torna possível a aquisição.
Enfim, Skinner, ainda que conhecido por seu gosto pelas “máquinas de
ensinar”, jamais considerou que a simples execução mecânica de tarefas
podia permitir a aquisição de todos os saberes e competências: “Como um
bom professor, afirma ele, a máquina só apresenta a matéria que o aluno
está preparado para abordar (...) Há, na verdade, uma troca contínua entre
52 Philippe Meirieu

o programa e o aluno (...). E enfim, a máquina, ainda como o professor


particular, reforça o aluno para cada resposta correta”6. Há aí, como se
observa, um conjunto de condições que não autoriza de forma alguma a
confusão entre a aprendizagem e um certo número de indicadores compor-
tamentais, que podem ser considerados necessários, mas jamais confundi­
dos com as operações mentais complexas. Ora, pelo fato de que esta ativi­
dade não é diretamente observável, o pensamento preguiçoso associa sim­
plesmente os sinais externos, ou melhor, as condições de sua manifestação,
aos seus resultados e acredita que basta garantir a existência dos primeiros
para haver a emergência dos segundos; a colocação sob tutela dos corpos,
exortados ou forçados a ocupar um espaço durante um tempo determina­
do, a colocarem-se em posição de conformidade receptiva, substitui, de
certa forma, a atenção às operações mentais solicitadas e a suas condições
de possibilidade. Há nisto uma esquivança em relação à história, próxima
daquilo que R. Barthes descreve quando estuda nossas mitologias: “O mito
priva de qualquer história o objeto do qual fala. Nele a história evapora-se;
é uma espécie de criado ideal: ele apronta, traz e serve; o patrão chega, o
outro desaparece silenciosamente: resta servir-se sem perguntar de onde
vem esse belo objeto”7. Assim acreditamos nas aquisições sem história,
postulamos incessantemente a existência de máquinas de aprender, oculta­
mos eternamente o processo em benefício do produto. Esquecemos, até
mesmo, a gênese de nossos próprios conhecimentos e, não lembrando
mais tê-los construído, acreditamos poder transmiti-los8.
Eis, portanto, onde se enraiza, em nós, essa representação tão tenaz da
aprendizagem; mas uma representação não pode manifestar-se duravelmente,
nem ser o objeto de um tal consenso, se não estiver coerente com um
conjunto de práticas sociais ou, pelo menos, se não estiver inserida em toda
uma rede de representações amplamente difundida no tecido social... A
afirmação de que os conhecimentos são coisas refrata então a convicção de
que os saberes representam bens sociais e “se traduzem” em posses mate­
riais identificadas (“eu sei isto... portanto, devo ter aquilo”). Ora, uma tal
ideologia silencia quanto ao que se poderia chamar - por analogia com o
que F. Saussure diz sobre o signo — “o arbitrário da divisão dos bens soci­
ais”: não que esta não obedeça a nenhuma lógica, mas essa lógica não é a
dos saberes, e são antes os saberes que são envolvidos em uma mais-valia
ou em uma menos-valia, segundo as práticas sociais a que são reservados.
Aí mais uma vez, há uma negação da história que é a única que poderia
explicar as condições de produção e de apropriação dos conhecimentos. Já
que estes são “coisas” e que existem como tais, como objetos que se po­
dem adquirir com o empenho dos esforços necessários, basta, de uma certa
forma, colocá-los no mercado: cada um, segundo seus méritos, poderá
possuí-los. Esquecemos então que a apropriação desses conhecimentos
requer todo um processo, capacidades precisas, o que denominaremos mais
Aprender. . Sim, Mas Como? SÒ

adiante estratégias de aprendizagem e que estamos todos longe de possuí-


las.
Enraizadas em nós mesmos pelo esquecimento de nossa própria histó­
ria intelectual, substituídas socialmente pela ilusão da distribuição igualitá­
ria dos saberes na escola republicana, as representações dominantes da
aprendizagem são particularmente sólidas, porque permitem também legiti­
mar práticas de ensino ou, mais exatamente, limitar as últimas a práticas da
informação. Em sua perspectiva, a sala de aula pode, na verdade, ser conce­
bida como o meio onde conhecimentos são dispensados... Basta ouví-los,
revê-los, aplicá-los com atenção, coragem e ardor, incansavelmente, até a
apropriação... Ora, esta concepção, se ela é bastante fácil de ser aplicada,
choca-se com duas realidades inevitáveis: por um lado, a tomada de informa­
ção não é uma operação de simples recepção, é, ainda e novamente, uma
história complexa em que o sujeito assimila o desconhecido de maneira
ativa e raramente espontânea; por outro lado, a apropriação não pode estar
associada a simples repetição, ainda que intensiva e repetida, da tomada de
informação: ela requer operações mentais diferentes segundo a natureza
do objetivo visado, operações mentais que são também raramente espon­
tâneas. Ignorando-se isso, as aquisições ficam reservadas, evidentemente,- aos
que tiveram a sorte de adquirir processos mentais eficazes e podem, portanto,
obter, graças a eles, resultados. Os outros, a quem se diz constantemente que
os conhecimentos são acessíveis através de um pequeno esforço, não compreen­
dem porque essas coisas estão eternamente fora do seu alcance...

Quando se tenta mostrar que os conhecimentos não são


coisas e que a memória não é um sistema de arquivos

Acredita-se muitas vezes, talvez porque isto esteja ligado a uma aparente
racionalidade, que os diferentes níveis da aprendizagem se encaixam como
“As bonecas russas”*: havería, em primeiro lugar, uma fase de identificação
ao longo da qual o sujeito realizaria atividades perceptivas apoiadas em
capacidades sensoriais, seguida de uma fase centrada na significação na
qual o sujeito integraria a novidade percebendo o seu interesse, o uso que
dela pode fazer ou o sentido que pode dar a ela e, em seguida, uma fase de
utilização em que o sujeito reinvestiría o conhecimento, o utilizaria para
fins pessoais, enfim, dominaria seu uso e o possuiría realmente. Os conheci­
mentos encaixar-se-iam então da seguinte forma: Primeiro, devo saber que
o martelo está na oficina, em seguida, devo saber para o que serve o marte­
lo para poder, enfim, utilizar essa ferramenta.

N.R.T. “Bonecas Russas" sào bonecas encaixadas uma dentro da outra. Muito usado em decoração de
ambiente.

1.
54 Pbilippe Meirieu

É claro que uma tal concepção pode ter um valor regulador para per­
mitir a organização de uma aula; ela está, aliás, refletida de maneira muito
ampla na maioria dos manuais escolares: identifica-se primeiro, compreen­
de-se em seguida, fazem-se os exercícios enfim. Mas, na realidade, essa
concepção ignora a realidade dos processos mentais; ignora, sobretudo,
que uma simples identificação perceptiva não existe, que uma informação
só é identificada se já estiver, de uma certa forma, assimilada em um projeto
de utilização, integrada na dinâmica do sujeito e que é este processo de
interação entre a identificação e a utilização que é gerador de significação,
isto é, de compreensão. Observemos um adolescente que desce as encos­
tas de uma montanha: ele corre e salta controlando ao mesmo tempo sua
velocidade em função de seus recursos físicos e da apreciação permanente
do contexto. A cada instante, domina a paisagem, tanto na sua configura­
ção geral, quanto nas menores rugosidades sobre as quais poderá colocar
corretamente seu pé, adquirir apoio para acelerar ou, ao contrário, freiar
sua corrida. Percebe, identifica uma variedade de elementos, mas esses
elementos, ele os seleciona instantaneamente, de forma que a operação de
percepção e a de seleção são absolutamente confundidas e que aquilo que
as associa é aquilo que as finaliza, ou seja, um projeto e recursos pessoais,
epfim, um sujeito. Formalizando um pouco mais essa experiência — que é,
sem dúvida, muito próxima daquilo que fazemos quando tomamos indícios
de um texto para construir seu sentido, isto é, lê-lo — pode-se dizer que
uma aprendizagem se realiza quando um indivíduo toma informação em
seu meio em função de um projeto pessoal. Nesta interação entre as informa­
ções e o projeto, as primeiras só são desvendadas graças ao segundo c o
segundo só se tornou possível graças às primeiras; a aprendizagem, a com­
preensão verdadeira, só ocorrem então através dessa interação, não são
senão essa interação, ou seja, são criação de sentido.
Além disso, a importância da fórmula identificação significação de­
utilização
ve-se ao fato de que ela permite compreender por que a ação didática
consiste em organizar a interação entre um conjunto de documentos ou de
objetos e uma tarefa a cumprir. Haverá, na verdade, situação de aprendiza­
gem efetiva quando o sujeito colocar em ação os dois elementos, um sobre
o outro, de maneira ativa e finalizada. Observa-se então que o trabalho do
professor ou do educador é preparar essa interação de forma que ela seja
acessível e geradora de sentido para o sujeito: pois os materiais podem ser
complexos ou numerosos demais para uma tarefa pequena demais que
então não parecerá capaz de organizá-los, nem mesmo de finalizá-los. Si­
metricamente, uma tarefa pode ser, às vezes, impossível ou muito difícil,
porque os materiais fornecidos são insuficientes, não permitem todos os
confrontos necessários, não fornecem as “rugosidades” positivas ou negati­
vas que permitem que o sujeito avance ou, às vezes, simplesmente, que ele
se “sinta seguro”. O professor sabe disso quando prepara uma sequência e
Aprender... Sim, Mas Como? 55

tenta reunir os objetos capazes de fazer emergir, se forem selecionados em


função de uma tarefa a cumprir, uma noção ou um conceito; experimenta,
a cada vez, toda a importância da “dosagem” entre os documentos e as
instruções: assim, por exemplo, o professor de história que quiser introdu­
zir o aluno no conceito de “colonização” deverá selecionar relatos, teste­
munhos e análises, passar, em seguida, a um trabalho cuja realização impo-
rá o tratamento dos materiais e tornará possível, por aproximações e verifica­
ções sucessivas, a emergência do conceito9; a instrução aqui, como se ob­
serva, não pode ser uma simples exortação para extrair o conceito (algo
conío “você terá o conceito de colonização a partir do estudo ordenado dos
documentos a seguir”), pois, nesse caso, apenas o aluno que tiver adquiri­
do e perfeitamente integrado o método indutivo conseguirá... Ele terá rece­
bido muita ajuda, já que lhe terão sido fornecidos materiais “pré-limitados”
de uma certa forma; mas, para ajudar também aquele que ainda não domi­
na perfeitamente bem a indução, é preciso propor-lhe uma tarefa e um
modo de funcionamento que exijam dele a indução como procedimento e
que o levem assim ã aquisição visada: isso poderá assumir formas diversas
e, aqui, poder-se-ia sugerir tanto um questionário muito diretivo, levando o
aluno a identificar os pontos comuns, a discriminar, a opor, para isolar o
conceito, quanto dramatizações sucessivas onde seriam “teatralizadas”, sendo
encarnadas alternadamente por cãda aluno, as lógicas que se operam em
um determinado acontecimento, ou aindli, a busca de correspondências
gráficas ou a formação de “grupo de aprendizagem”10, distribuindo um
documento a cada participante e pedindo ao grupo para criar, por exem­
plo, um painel que apresente a síntese de tudo, etc. Todo o problema está
em criar, para cada aluno, uma interação identificação/utilização onde se
esteja seguro, ao mesmo tempo, de que os materiais podem ser integrados
— o que remete a um níyel de competência anterior e ao problema dos pré-
requisitos — e de que a tarefa é bem mobilizadora — o que remete ao conhe­
cimento das motivações ou, pelo menos, ã identificação das inibições. Essa
interação identificação/utilização, tratada no plano didático, torna-se en­
tão, para o pedagogo que concebe a situação, a interação materiais/instra­
ções e, para o aluno em luta com a tarefa, a interação informações/projeto.
O fenômeno que acabamos de descrever terá parecido, talvez, bastan­
te complexo e bem pouco operacional para os professores: ora, por um
lado, mesmo se ignoramos isso, é dessa forma que agimos e que temos
êxito, como nossos alunos, em nossas aprendizagens... simplesmente, es­
ses sucessos são, na maioria das vezes, o fruto de felizes conjunturas e o
conhecimento de sua gênese pode nos permitir criar dispositivos que não
os reservem aos que assim trabalham “naturalmente”, porque aprenderam
ao sabor de sua história pessoal. Por outro lado, é evidente que a interação
identificação/utilização pode ser geradora de significação em níveis de
aprofundamento muito diferentes: isso é o que chamamos, às vezes, o
56 Pbilippe Meirieu

“nível de formulação” de um conceito11. Assim, o conceito de respiração


pode ser apreendido a partir de uma observação grosseira do aparelho
pulmonar dos vertebrados, pode ser concebido como uma troca gasosa
pela observação de outros aparelhos respiratórios e da constatação de sua
função comum, pode ser estudado em nível tecidual, em nível celular e, até
mesmo, em nível dos mecanismos de óxido-redução... a cada etapa, os
materiais a serem utilizados e as instruções a serem propostas serão mais
complexos, mas, a cada etapa, o conceito será construído a partir da interação
entre informações e um projeto.
Por isso, é preciso substituir uma concepção linear simples demais, em
que os conhecimentos formalizados seriam revelados progressivamente a
um sujeito cuja qualidade essencial seria a de ser passivamente “receptivo”,
“atento”, “disposto a escutar”, por uma concepção mais dinâmica onde
r esses conhecimentos seriam integrados no projeto do sujeito e, de uma
certa maneira, só viveríam nele e através dele. Pois, como mostra A. de La
Garanderie, “estar atento é ter o projeto de transformar em imagens mentais
aquilo que se está percebendo”12; ou ainda, em nossa linguagem, estar
atento é ter um projeto de utilização daquilo que se está recebendo e fazer
disso representações finalizadas. E o que é válido para a “atenção” também
é válido para a memória: é por isso que esta é condicionada pelo fato de
“colocar o que se quer conservar em um futuro esboçado mentalmente”13,
de situá-lo em um projeto, de aprender colocando-se em situação de utiliza­
ção ou, pelo menos, de restituição. Muitas aprendizagens são assim esté­
reis, porque falta a elas essa colocação em situação; e a repetição a que são
submetidas não é quase eficaz se esta não estiver sustentada por um proje­
to. No dia do controle ou da avaliação, que se observe um aluno, por
exemplo, cujos erros de ortografia são corrigidos obstinadamente e que ele
identifica, aliás, perfeitamente, quando lhe são mostrados, mas que ele
insiste em cometer, insiste em escrever sem preocupação com a ortografia,
deixando a reflexão ortográfica para mais tarde, para uma miraculosa releitura,
para o momento de recopiar: “Não faz mal, diz ele ao mestre que lhe
mostra um erro em sua escrita, vou reler depois...”. Alguns segundos de
reflexão com ele permitem facilmente fazer uma constatação muito sim­
ples: o aluno pode, na verdade, perfeitamente admitir que um cantor que
ensaiasse errando notas e argumentando que “diante do público prestará
atenção” não teria muita chance de progredir. O aluno pode então compreen­
der que só aprendera a ortografia iniciando logo o “projeto de escrever”,
colocando-se em situação de comunicar com um leitor cujas exigências são
conhecidas. É preciso ainda, entretanto, que o estatuto da escrita na sala de
aula permita que ele formule um tal projeto; é necessário ainda, em outras
palavras, que a escrita seja aí instrumento de comunicação consigo e com
os outros, e não apenas ocasião de avaliação, de sanção e de seleção. Mas
isso é uma outra história!
1

Aprender... Sim, Mas Como? 57


Observemos, enfim, que o processo que acabamos de descrever ocor­
re em todas as operações intelectuais da aprendizagem... Poder-se-á, e nós
mesmos o faremos, tentar apresentá-las e ordená-las para que o educador
possa delas se apropriar mais facilmente, melhor definir seus objetivos e
organizar suas progressões; mas será preciso ter em mente o fato de que,
no mais baixo nível taxonômico (aquele que B.S. Bloom chama de simples
“aquisição” ou L. d’Hainaut de “repetição”), há aprendizagem, ou seja,
construção de conhecimentos, apenas porque já há interação entre infor­
mações e um projeto, exatamente como nos mais altos níveis taxonômicos,
os da síntese ou os da resolução de problemas complexos14. Na verdade,
essa interação, que não é senão uma nova maneira de descrever o que se
passa na história de um sujeito, entre ele e o mundo, é a própria dinâmica
de toda aprendizagem.

Quando se procura estabelecer que não se passa


simplesmente da ignorância ao saber sem obstáculo, nem
conflito

Platão havia ressaltado insistentemente que o falso saber era um obstáculo


maior para o saber do que o não-saber... Certamente, a lição quase não teve
efeito e continuamos a ensinar com a certeza tranquila de que, segundo a
bela fórmula de G. Bachelard, “o espírito começa como uma lição”15. Faze­
mos como se trabalhássemos em terreno virgem, como se nada fosse adqui­
rido fora da escola, como se a inteligência não estivesse repleta de múlti­
plas “representações”: pois, “antes de qualquer aprendizagem, observa A.
Giordan, a criança já dispõe de um modo de explicação (...) que orienta a
maneira como organiza os dados da percepção, compreende as informa­
ções e orienta sua ação”16. O que A. Giordan chama aqui de “modo de
explicação” podería também ser descrito, para retomar uma expressão que
já utilizamos, como um “nível de formulação” de um conhecimento ou de
um conceito; a representação designaria, assim, essa mesma realidade com
referência, de certo modo inicial, ao sujeito, enquanto que o “nível de
formulação” a designaria, de preferência no final, com referência a um
estado determinado do saber erudito elaborado. Assim, o sistema de
Ptolomeu, da mesma forma que o de Copérnico, podem ser descritos como
representações, observando sua gênese e a maneira como se desprendem
do antropomorfismo inicial e, ao mesmo tempo, como “níveis de formula­
ção” ou “de compreensão” no plano do saber físico... Ora, o que A. Giordan
observa é que, mesmo antes da intervenção didática, o sujeito já dispõe de
um tal sistema de explicação; antes mesmo de o professor começara apresen­
tação de uma questão, o aluno “já tem dela uma idéia”. E isso é indispensá­
vel, pois, sem esta “apreensão primeira”, o mundo lhe seria totalmente
a

58 Pbilippe Meirieu

impenetrável, os objetos apresentados absolutamente opacos. É preciso


saber, na verdade, que não há aí urna falta de conhecimento, uma espécie
de erro de tática que poderia ser corrigido convidando o sujeito a "libertar-
se” de todas as suas idéias falsas; existe aí um fato irredutível, porque
absolutamente necessário: só entro em contato com as coisas, porque crio
vínculo com elas e esse vínculo é precisamente constituído pela idéia que
delas tenho, pelo projeto e pelas informações que já tinha sobre elas. É por
isso que, quando o professor apresenta documentos, exemplos, objetos,
nào pode esperar estar fazendo a organização de um conjunto de representa­
ções disparates que os alunos vão imediatamente calcar sobre eles, não
pode esperar estar encaminhando um processo de aprendizagem que ignora­
ria toda anterioridade.
Em outras palavras, a interação entre as informações e o projeto não se
inicia na escola, nem nas situações de aprendizagem formalizadas; ela exis­
te desde muito cedo e faz com que a criança, ao chegar à sala de aula,
como o adulto em nível de formação, disponha de toda uma série de co­
nhecimentos: “sabe” como funciona um automóvel, o que é um raio laser,
porque existe vento e como as plantas se reproduzem... Sabe o que são a
“natureza” e a “função” de uma palavra, o que o “infinito” representa, da
mesma forma que sabe por que um problema lhe é colocado e o que se
espera dele quando um exercício lhe é proposto... É claro que se pode
sempre ignorar esse “saber” e iniciar uma aprendizagem como se nada
existisse; têm-se, então, todas as chances de simplesmente sobrepor a esse
“saber” anterior um “saber escolar”, verniz superficial que descascará no
momento em que desaparecer a situação escolar que o gerou. Você pode
explicar às crianças que o que faz nascer uma semente é a água e verificar
esta aquisição, sem nem mesmo tocar na representação segundo a qual o
que faz nascer a semente é a terra: alguns dias após a aula, a criança se terá
“libertado” de seu saber erudito e terá voltado à confusão terrivelmente
impregnada do lugar com a causa... Questionando, recentemente alunos de
segundo ano do segundo ciclo do ensino secundário francês sobre a Revolu­
ção de 1789, pude constatar que estes, ainda que tenham estudado, pelo
menos quatro vezes durante sua escolaridade esse acontecimento histórico,
acreditam e afirmam sempre que, em 1789, o rei foi guilhotinado e a República
foi instaurada!
Não se tem, portanto, nenhuma chance de fazer com que um sujeito
progrida se não se partir de suas representações, se elas não emergirem, se
não forem “trabalhadas”, como um oleiro que trabalha o barro, ou seja, não
para substituí-lo por outra coisa, mas para transformá-lo. De fato, seria
muita ilusão acreditar que, quando a representação tiver sido identificada
por um diálogo, uma encenação ou um desenho, basta exorcizá-la para
expulsá-la da mente do aluno e substituí-la pela verdade científica. Um
sujeito não passa assim da ignorância ao saber, ele vai de uma representa­
ção a outra mais elaborada, que dispõe de um poder explicativo maior e
Aprender... Sim, Mas Como? 59

que lhe permite elaborar um projeto mais ambicioso que, por sua vez,
contribui para estruturá-la. E cada representação é, ao mesmo tempo, um
progresso e um obstáculo; será um obstáculo ainda maior quando tiver
constituído um progresso decisivo e que, em função disso, o sujeito estará
ainda mais ligado a ela. O professor quase não leva em conta que cada
sucesso obtido deverá, um dia, ser ultrapassado, retrabalhado, reorganiza­
do. Acredita poder instalar de uma só vez o sujeito em aquisições rigorosas
e definitivas: mas não é nada disso, e é preciso que ele aceite que o que
pode ser absolutamente necessário para o progresso de um aluno é, muitas
vezes, de uma extrema precariedade. Confundem-se, com muita frequên­
cia, o necessário e o definitivo, o inútil e o precário: ora, talvez seja útil
ensinar aos alunos do curso elementar (segundo e terceiro anos do ensino
primário na França) que o sujeito faz a ação na frase, mas essa representa­
ção cria obstáculo para a compreensão da voz passiva, será necessário
então derrubá-la e substituí-la por uma outra mais adaptada... E esse pro­
cesso evidentemente nunca termina, constitui a própria trama do progresso
intelectual. É isso que G. Bachelard explica perfeitamente quando diz: “É
no próprio ato de conhecer, intimamente, que surgem, por uma espécie de
necessidade funcional, lentidões e distúrbios (...). Na verdade, conhece-se
sobre um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal feitos, ven­
cendo aquilo que, no próprio espírito, constitui obstáculo à espiritualizacão”17.
Mas como ocorre esse processo? Como um sujeito pode reorganizar
seu sistema de representações?}. Piaget mostrou a importância, nesse domí­
nio, da “ desce n tragem”18 e seus trabalhos foram continuados por W. Doise
e A. N. Perret-Clermont, que salientam o aspecto decisivo do “conflito de
centragens”19: um sujeito faz progresso quando nele se estabelece um conflito
entre duas representações, sob pressão do qual é levado a reorganizar a
antiga para integrar os elementos trazidos pela nova. É claro que esse conflito
se manifesta, na maioria das vezes, exteriormente: trata-se então de uma
discordância com um colega, com o professor ou com o manual escolar...
mas esse conflito só é desencadeador de progresso se a socialidade for de
alguma forma interiorizada, se o sujeito fizer sua a contradição para vencê-
la. Não basta, portanto, dizer a um aluno que ele está errado, também não
basta, como se acredita muito frequentemente, mostrar-lhe isso com obstina­
ção, é preciso que ele interiorize essa constatação, é preciso colocá-lo em
situação de experimentá-la pessoalmente. Para compreender como pode se
operar essa colocação em situação, retomemos um pouco o que foi visto:
um conhecimento, como dissemos, conesponde a um certo nível de interação
entre informações e um projeto; esse conhecimento é estabilizado sob for­
ma de uma representação que remete a um certo “registro de formulação”
de um conceito. Se quero que a representação evolua, devo então provocar
um desequilíbrio que torne sua reelaboracão necessária: para isso, posso
ora apostar nas informações e fornecer materiais que não podem entrar em
interação com a representação sem impor o exame de sua pertinência, ora
60 Pbilippe Meirieu

apostar no projeto, aplicá-lo, utilizá-lo como meio de exploração, instrumento


de previsão e, quando as previsões que ele terá permitido realizar não
forem confirmadas pela realidade, exigir, aí também, uma revisão20. Nos
dois casos, ocorre uma ruptura que leva a estabilizar a representação em
um nível superior.
E pode-se observar esse fenômeno em objetivos muito simples: imagine­
mos que se queira trabalhar com um aluno do segundo ano do primeiro
ciclo do ensino secundário, em francês, sobre a função da descrição dentro
da narração. O aluno dispõe, na maioria das vezes, sobre esse ponto, de
uma representação sumária segundo a qual a descrição “é o contrário da
narração”, “torna lenta a narração”, “aborrece o leitor” etc. Podem-se iden­
tificar algumas das origens dessa representação: algumas estão ligadas à
prática linguística de narração; outras se devem provavelmente a um meio
social dominado pela televisão e pelo cinema, que tendem a ocultar a parte
descritiva organizando precisamente sua promoção: a descrição é tão visí­
vel apenas na presença da imagem que ela se torna quase ilegível, reduzida
a um simples “acessório do acontecimento” (o aluno não vê que as ima­
gens de um filme “descrevem”, pensa simplesmente que elas “contam”);
outras origens podem ser verificadas no próprio desenvolvimento cognitivo
da criança e nas suas dificuldades para articular um encadeamento de acon­
tecimentos com um certo número de invariâncias, outras ainda, em sua
maturidade afetiva e seu grau de impulsividade, outras, enfim, nas aprendi­
zagens anteriores e, em particular, naquelas que, fazendo compreender o
esquema narrativo, devem ter exagerado nos traços e apresentado a narra­
tiva como se ela ordenasse apenas ações... Pouco importa, aliás, o inventá­
rio completo das origens dessa representação, o qual o professor jamais
pode realizar totalmente; o que importa para ele, por outro lado, é poder
ajudar o aluno a liberar-se dela para que este possa melhor compreender a
função da descrição em uma narrativa. Isso poderá, inclusive, ser feito em
“níveis de formulação” diferentes: primeiro, essa função poderá ser com­
preendida isolando-se os elementos descritivos e os elementos narrativos,
raciocinando-se apenas em termos de quantidade (“o que ocorre quando
as descrições desaparecem ou são numerosas demais?”); em seguida, con­
tinuando-se a isolar elementos descritivos específicos, serão estudados os
seus efeitos sobre os elementos narrativos e as modificações que causam;
além disso, descobrir-se-á que o isolamento dos dois tipos de elementos
traz problema e que o sentido emana do fato de que cada unidade semân­
tica desempenha, ao mesmo tempo, os dois papéis, e poder-se- á chegar a
identificar o que precisamente estrutura um discurso literário... Observa-se
aqui que cada um dos níveis é um meio de passar ao nível superior, mas
pode ser também, ao mesmo tempo, um obstáculo se o professor não
introduzir situações que imponham a reelaboração. Observa-se também
que essas situações podem ser de duas naturezas: posso, por exemplo,
para passar ao primeiro nível (identificar que as descrições são necessárias
1

Aprender... Sim, Mas Como? 61


em uma narração), tanto apostar nas informações e fornecer narrativas sem
descrição, pedir uma reformulação oral ou uma tradução visual delas, quanto
apostar no projeto e pedir para construir narrativas, exigindo a exclusão de
todas as descrições até que qualquer compreensão se torne impossível...
Desculpem-nos pela extensão e pela especialização desse exemplo21, mas era
necessário concretizar nosso procedimento e verificar, em um caso concreto,
que a aprendizagem éprodução de sentido por interação de informações e de
um projeto, estabilização de representação, e introdução de uma situação de
disfunção em que a inadequação do projeto ãs informações, ou das informa­
ções ao projeto, obriga a passar a um grau superior de compreensão.

Quando se mostra o aspecto desconcertante, às vezes


irritante, quase sempre irredutível à lógica cumulativa, da
aprendizagem

Sabe-se, a partir de Descartes, que, desde que “eu conduza ordenadamente


meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
serem conhecidos, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o
conhecimento dos mais elaborados (...), não pode haver algum que esteja
tão distante, ao qual não se chegue enfim, nem algum tão escondido que
não se descubra”22. Sem dúvida, o método cartesiano tem um precioso
valor regulador, mas, sem dúvida também, descreve mais uma lógica de
exposição do que uma lógica de aprendizagem ou, em outras palavras, é
mais útil para saber que se sabe do que para aprender. Pois, como diz aindã
G. Bachelard: “Um ensino recebido é psicologicamente um empirismo; um
ensino dispensado é psicologicamente um racionalismo (...). Mesmo se
dissermos a mesma coisa, o que você diz é sempre um pouco irracional; o
que eu digo é sempre um pouco racional”23. O que digo é racional, porque,
expondo-o, eu o construo; o que ouço é sempre um pouco irracional,
porque isso deve entrar em interação comigo e com o que já sei e porque,
como acabamos de ver, isso só me faz avançar se precisamente desorgani­
zar minha racionalidade. Aliás, é por isso que a maneira como procedo
também é sempre, para aquele que me ensina, um pouco irracional, já que
é o reflexo daquilo que sou e que, em geral, ele ignora. É por isso também
que aquilo que parecer ser mais simples para ele não o é necessariamente
para mim, na medida em que o “suporte” que ele supõe não é exatamente
o mesmo de que disponho; em contrapartida, coisas que lhe parecerão
mais complicadas serão para mim às vezes acessíveis, ao contrário do que
se pode esperar, porque tenho ao mesmo tempo os materiais e um projeto
que me permitem integrá-las,
Muitos professores observaram, mesmo que essa observação seja mui­
tas vezes censurada, que um aluno pode compreender e reter o mais compli-

À
62 Pbilippe Meirieu

cado antes de ter compreendido e retido o mais simples. Todo o mundo lhe
dirá, por exemplo, que, para saber fazer uma divisão, é preciso saber primeiro
fazer uma multiplicação. Ora, ao dialogar com crianças do curso elementar
(segundo e terceiro anos do ensino primário francês), descobre-se que
algumas conseguem fazer divisões por um caminho muito complexo onde
aparecem subtrações e adições sucessivas... Dizem até mesmo “compreen­
der” como se faz uma divisão e explicam, com muita serenidade, que é
mais fácil, para elas, dividir um bolo em quatro partes do que saber quantas
notas precisam para distribuir três para seis alunos! Evitemos qualquer mal­
entendido: isso não significa que é possível dominar perfeitamente a divi­
são sem dominar primeiro a multiplicação; isso significa, por outro lado,
que é possível, sem dúvida, “virar-se” na divisão, fazer dela uma representação
aproximativa, mas que permitirá em seguida, e só em seguida, voltar à
multiplicação; será neste momento que o domínio da divisão poderá ser
completo. Nota-se que o processo é complexo, faz vaivéns múltiplos, que a
racionalidade nocional não desaparece, mas que também não se confunde
com o processo de aprendizagem: ela é construída pelo sujeito de maneira
muitas vezes inesperada, está no fim e não no início do processo.
Os próprios professores sabem que, quando compram um eletrodo­
méstico, podem não estudar o manual de instruções de maneira detalhada
antes de experimentar o aparelho; podem até mesmo começar pela opera­
ção mais complexa, tanto é verdade que o complexo dá imediatamente o
sentido do objeto, enquanto que sua análise faz perdê-lo. E os professores
são aqui como a maioria dos alunos que, como observa Tolstoi, “só acham
fáceis as questões complicadas e vivas”24 e se aborrecem ou se vêem em
dificuldade diante daquelas belas questões simples nas quais só são manipu­
ladas leis gerais, definições abstratas e grandes categorias intelectuais muito
distanciadas de qualquer experiência. Sabem muito bem que a experiência,
em sua complexidade interdisciplinar, mobiliza um sujeito, porque precisa­
mente nela se encontram com muita facilidade um projeto e materiais, en­
quanto que o tratamento de elementos abstratos requer um projeto já muito
elaborado. Podem observar como se opera uma verdadeira compreensão,
quando se vai do concreto ao abstrato, o que equivale, na maioria das
vezes, a ir do complexo ao simples. Evidentemente, não pode ser qualquer
“complexidade”, deve ser uma complexidade mobilizadora, ou seja, uma
complexidade que se articule aos recursos e aos projetos do sujeito que os
integre em uma situação finalizada, tendo uma significação escolar e/ou
social capaz de desencadear todo um processo no qual o sujeito deverá
recorrer às suas representações e verificar, graças às solicitações do profes­
sor, a pertinência das mesmas. Essa situação de complexidade regulada,
sugerida ou organizada pode ser chamada de “situaçào-problema”; será,
por exemplo, uma situação de comunicação (como as que C. Freinet se
empenhou em promover através da correspondência escolar e do jornal),
urna situação de resolução (assim, explica A. Bouvier, é melhor “pedir, no
Aprender Sim, Mas Como? 63

primeiro ano do segundo ciclo do secundário, para que procurem o núme­


ro de soluções para a equação: 200 sen x - x = 0, antes do estudo sistemáti­
co das funções trigonométricas”), uma situação de utilização (quando o
educando quer utilizar um instrumento, como um microscópio, ou um con­
junto de documentos, quando quer tocar música ou consertar um motor),
etc. Essa situação-problema não é toda a aprendizagem e é preciso evitar
um certo espontaneísmo que suporia que os conhecimentos vão, de certa
forma, dela emergir naturalmente. A situação-problema, simplesmente, põe
o sujeito em ação, coloca-o em uma interação ativa entre a realidade e seus
projetos, interação que desestabiliza e reestabiliza, graças às variações
introduzidas pelo educador, suas representações sucessivas; e é nessa
interação que se constrói, muitas vezes irracionalmente, a racionalidade.
Sabemos de tudo isso inclusive, pois nós mesmos o sentimos diariamente
em nossas atividades mais insignificantes e, no entanto, nós, educadores,
insistimos em acreditar, em nossa prática profissional, nas virtudes do reco­
meço pelas “bases”, da progressão rigorosa e linear, da repetição incansá­
vel, cm caso de insucesso, das mesma operações.
Atingimos aí, certamente, o núcleo mais rígido das representações domi­
nantes da aprendizagem e, em particular, aquela representação tão tenaz e
compartilhada segundo a qual basta fazer mais para fazer melhor. Certa­
mente, é possível que seja assim e que um aluno precise de fato de “um
pouco mais de trabalho”, é possível que uma dificuldade escolar se deva a
uma falta de tempo, de prática, de assimilação... É exatamente isso que
caracteriza de forma precisa a noção de dificuldade: é “difícil” quando te­
nho que ir mais devagar ou refazer várias vezes, quando me faltam explica­
ções. Mas, quando posso dizer “é difícil”, é porque, de uma certa maneira,
já sei fazer ou imagino a solução. Em compensação, há casos em que as
coisas são de uma outra ordem, em que não estou apenas “com dificulda­
de”, mas também “com bloqueio”: aumentar, multiplicar aquilo que me
levou a esse bloqueio não me ajuda a superá-lo, mas, às vezes, acrescenta
a ele infelizmente um caráter dramático. Ora, esse é o caminho “natural” da
instituição escolar: quando algo não funciona, retomam-se as explicações
mais longamente, de maneira insistente, quase sempre em grupos menores,
aumentando-se o “trabalho pessoal”, enfim, amplia-se desmedidamente um
dispositivo que, no entanto, provou sua ineficácia. Faz-se “mais da mesma
coisa”25, enquanto que outra coisa deveria ser feita; fixa-se no quanto para
evitar o questionamento sobre o como.
Nota-se bem que uma tal concepção desconsidera aquilo que apresenta­
mos como central na aprendizagem. Ela ignora que, na elaboração didática
que inverte naturalmente o processo que acabamos de apresentar, já que se
preocupa com as condições necessárias e com os desencadeadores oportu­
nos, é de uma “situação-problema” que é preciso partir para identificar as
representações que o indivíduo elabora, agir sobre elas, introduzindo a
variação necessária entre os materiais e o projeto, a fim de que uma nova
64 Pbilippe Meirieu

representação se elabore, se estruture, se identifique corno um momento


de acesso à racionalidade, possa enfim - última etapa da aprendizagem
mais do que primeira etapa do ensino - traduzir-se em termos de lógica
expositiva. E poder-se-ia dizer, nesse sentido, que a situação é a mesma
tanto para a aprendizagem da matemática ou da história, quanto para a da
bicicleta, ou mais exatamente, que o professor de matemática ou de histó­
ria deve elabora?' um conjunto de dispositivos didáticos para que o sujeito
possa de certaforma progredir naturalmente na disciplina, da mesma manei­
ra que quando ele aprende a andar de bicicleta: a situação-problema deve
vir em primeiro lugar, e a aprendizagem realizar-se-á quando uma repre­
sentação inadequada for derrubada, quando o sujeito, por exemplo, tiver
verificado que, para manter-se em equilíbrio, parado, não é eficaz fazer o
jogo dos pés e das mãos e quando, de repente, em ruptura e não no
prolongamento dessa experiência anterior, tiver avançado. É claro que essa
aquisição não se realiza sem que o sujeito esteja consciente, por uma ilumi­
nação repentina que lhe seria imposta, como poderíam insinuar os partidá­
rios do gestaltismo; o sujeito é indiscutivelmente o autor dessa aquisição,
pelo seu esforço de assimilação ativa para encontrar, como mostrou Piaget,
o ponto de equilíbrio entre seu projeto e seu meio. Cabe a cie também, em
seguida, assegurar-se analisando, decompondo e recompondo a tarefa,
agindo, sem dúvida, para isso, por “tentativas e erros”, segundo a fórmula
de Thorndike... Mas tudo isso não modifica em nada o caráter de súbita
ruptura, irredutível apenas à maturação linear ou ao acúmulo quantitativo,
de toda aprendizagem. Isso exige, da parte de quem se propõe a ensinar,
que a exortação simplista do “sempre mais” seja substituída pela busca
determinada e confiante de novas mediações entre o sujeito e o mundo, ou
seja, que cada vez mais sejam criados artifícios didáticos para que se reali­
zem cada vez melhor aprendizagens “espontâneas”.

APRENDER
FERRAMENTA Ne 2 - FORMALIZAÇÃO

Esta ferramenta é, antes de mais nada, uma “ferramenta de formação”;


pode permitir ao professor, só ou em equipe, iniciar um trabalho de reflexão
sobre suas representações da aprendizagem, analisar suas práticas e elaborar
dispositivos didáticos. Em relação a esta última função, se a ferramenta é
capaz de fornecer quadros gerais, deve ser completada por um trabalho espe­
cífico sobre os conteúdos disciplinares e seu estatuto epistemológico.
O quadro pode ser lido de cima para baixo: parte-se então do núcleo da
aprendizagem e do dispositivo didático mais fechado (exercício) para chegar à
noção de progressão e à “situação-problema” que mobiliza o aluno. Pode tam­
bém ser lido de baixo para cima: parte-se então daquilo que pode mobilizar o
aluno para chegar à maneira de conceber os “exercícios” de aquisição.
Aprender... Sim, Mas Como? 65

Porque a Para facilitar sua realização,


aprendizagem é... eu devo...

1. Porque os conhecimentos Para que o sujeito possa se apropriar


não são coisas que se acu­ de unia noção ou de um conceito, devo me
mulam, mas sistemas de sig­ perguntar:
nificações através dos quais
o sujeito se apropria do • Que materiais (textos, • Que instrução ou
mundo... documentos, objetos, ex­ instruções devo dar?
Porque a ínemória não c periências) devo forne­ - que o sujeito possa
uma seleção de arquivos, cer? aplicar com as capa­
mas a integração de - que o sujeito possa cidades (competência)
informações em um futuro dominar com as expe­ de que dispõe;
possível para o qual nos riências as competências - que seja(m) sus-
projetamos... (saberes, conhecimentos cetível/suscetíveis de
anteriores) de que colocá-lo em situação
dispõe; de projeto.
- cujo nível de comple­
xidade corresponda ao
“nível de formulação”
desejado.

... devo conceber os materiais


e as instruções de tal forma que
sua interação permita construir
o conhecimento visado.

2. Porque os conhecimentos Para que o sujeito possa passar a um nível supe­


não se constrocm sobre a rior de formulação de suas representações, eu devo:
ignorância, mas sim pela — fazer as representações já existentes emergirem,
reelaboração de represen­ — colocar o sujeito em condições de reelaborar
tações anteriores sob a suas representações, introduzindo uma variação
pressão de um conflito entre seu “projeto" (a maneira como compreende
cognitivo... as coisas e orienta sua ação) e os “materiais” que
lhe são propostos; isso é possível de duas maneiras:

• ora apostando nos ma­ • ora apostando no


teriais, introduzindo um projeto para explorar
grau de complexidade o real e descobrir os
suplementar, limites da pertinência
do projeto.

... nos dois casos, convém criar um novo


equilíbrio entre os materiais e o projeto, a fim
de estabilizar, através disso, a representação
em um nível superior.
66 Pbilippe Meirteu

3. Porque o sujeito só mobi­ Para que o sujeito inicie uma aprendizagem, devo
liza suas representações e colocá-lo em uma “situação-problema", rica e
só faz sua rcolaboração cm atrativa capaz de mobilizá-lo; esta pode ser de três
“situações-problcmas”; por­ ordens:
que a racionalidade nocio- — situação-problema de comunicação,
nal aparece apenas no fim — situação-problema de resolução,
do processo como uma — situação-problema de utilização.
elucidação do resultado e
não como o procedimento Além disso, devo ajudá-lo, ao longo da situação, a
de sua elaboração... construir o simples a partir do complexo:
- identificando precisamente com ele, sempre que
possível, suas aquisições e seus problemas;
- recensiando regularmente suas aquisições;
- articulando-as aposteriori para esclarecer
progressivamente as “caixas pretas” e, assim,
restaurar a coerência nocional;
- permitindo a formalização dessa coerência para
transformar a situação-problema em situação-
recurso.

E enfim, porque a aprendi­ Eu devo distinguir:


zagem nunca c redutível a — um aluno com dificuldade, com o qual convém
simples lógica cumulativa... intensificar a pressão do dispositivo;
- um aluno bloqueado, com o qual é necesário
fazer outra coisa, ou seja, encontrar novos pontos
de apoio e tentar novas abordagens para os saberes
(ver a ferramenta nu 1).

APRENDER
FERRAMENTA N9 3 — IDENTIFICAÇÃO

Esta ferramenta pode permitir distinguir os alunos "bloqueados”, que requerem


imperativamente uma alternativa pedagógica, dos alunos “com dificuldade", para os
quais um treinamento complementar pode ser suficiente.
Ela deve ser manipulada com precaução, pois os dois aspectos podem estar
confundidos, sobretudo nos casos de aprendizagens complexas em que, muito
freqüentemente, alguns elementos revelam mais o bloqueio e outros mais a dificul­
dade. É por isso que sempre será preferível fazer a observação em aprendizagens
precisamente identificadas, para que se possa estar cm condições de fornecer recur­
sos dirigidos e adaptados.
Para isto, propomos abaixo uma série de indicadores que poderá evidentemente
ser completada. Em alguns casos, a identificação de um único indicador poderá ser
determinante; em outros, só a conjunção de vários permitirá a determinação.
Salientemos, enfim, que se um aluno “com dificuldade” pode tirar proveito de
uma mudança de método, um aluno “bloqueado” jamais pode lucrar com a persis­
tência em um método que é precisamente a origem - ou pelo menos um fator
determinante — de seu bloqueio.
Aprender.. Sim, Mas Como? 67

Por ocasião de uma


aprendizagem determinada...

...trata-se de ...trata-se de
“dificuldade” se: “bloqueio” se:

Os trabalhos do aluno são incompletos Os trabalhos do aluno são descentrados


(inacabados, insatisfatórios ou “rápidos (fora do assunto, incoerentes ou muito
demais”), mas o procedimento geral é fragmentários), não respondem de forma
satisfatório. alguma às expectativas do professor.

O aluno manifesta preocupações e soli­ O aluno expressa sua angústia ou seu


cita ajuda durante a elaboração de um desânimo antes mesmo de começar um
trabalho; consegue formular perguntas trabalho; raramente solicita ajuda, pois
precisas sobre um determinado ponto. ele não percebe para que poderia lhe
servir.

O aluno se queixa frequentemente de fal­ O aluno não utiliza todo o tempo que
ta de tempo. lhe é proposto.

Após a leitura das anotações sobre uma O aluno não integra as observações que
cópia ou a correção de um dever em sala lhe são feitas; um trabalho refeito após
de aula, o aluno pode refazer seu traba­ a correção não apresenta melhora deci­
lho melhorando sensivelmente seu de­ siva.
sempenho.

O aluno reconhece seus erros como tais O aluno sabe que está errando mesmo
quando estes lhe são mostrados; conse­ antes que isto lhe seja mostrado; vive
gue, pouco a pouco, retificá-los. essa situação como inevitável.

O aluno não sabe enunciar uma regra, Quando é interrogado sobre uma regra,
uma lei ou um conceito; pode, porém, uma lei ou um conceito, o aluno não
ainda que inabilmente, evocar um exem­ pode dar nem definição, nem exemplo;
plo onde se possa observar a aplicação evoca, às vezes, uma regra, uma lei ou
da regra, a manifestação da lei ou a pre­ um conceito diferentes, mas que lhe
sença do conceito. parecem equivalentes.

O aluno pede para ir mais devagar com O aluno manifesta o desejo - até mesmo
uma explicação; interrompe o professor a vontade - de ver as explicações resu­
ou pára uma leitura para fazer perguntas midas; seu comportamento leva o
ou pedir explicações. professor a acelerar o ritmo ao invés de
diminuí-lo.

L
68 Pbilippe Meirieu

O aluno precisa ter aquilo que foi expos­ O aluno intervém mudando sistemati­
to melhor representado; manifesta suas camente de registro; manifesta suas ob-
objeçòes evocando situações ou exem­ jeções recorrendo a experiências sem
plos um pouco diferentes ou deslocados, relação aparente com o domínio consi­
para melhor apreender a especificidade derado.
do que se está falando.

Para vencer uma dificuldade, é possível Para vencer um bloqueio, é indispensá­


prosseguir e aprofundar o método vel propor uma alternativa buscando
utilizado. novos pontos de apoio (ver a ferramenta
nü 1) ou elaborando novos métodos (ver
as ferramentas n“ 7 e 8).

Notas
1. Este diálogo foi gravado com o acordo dos participantes.
2. Pode-se também utilizar este texto na formação de professores; após a leitura individual,
pedir-se-á a cada participante para anotarem as imagens que lhes vêm à mente e que
poderíam figurar as concepções da aprendizagem que são aqui trabalhadas. Em pequenos
grupos, tentam então encontrar uma imagem-força. Em intergrupos (grupos transversais),
tentam então encontrar a concepção dominante da aprendizagem que serve de referência
implícita a toda a discussão.
3. J.-P. Astolfi formalizou muito bem essas representações; cf. “Apprendre, ce n’est pas....
c’est plutôt...” in Cahiers Pédagogiques, n° 239, dezembro de 1985, p. 15.
4. Não foi Parmênides que dizia que não podemos falar do Ser, nem mesmo apenas dizer
que é Um, porque sendo Ser e Um ao mesmo tempo, já seria dois?
5. S. Moscovici, La psychanalyse, son image et son public, PUF, Paris, 1961, p. 314.
6. B.F. Skinner, La réuolution scientifique de Venseignement, Dessart, Bruxelas, 1968, p. 112
e 113.
7. R. Barthes, Mythologies, Le Seuil, Paris, 1957, p. 260.
8. Assim, diz Piaget, “o sujeito se conhece mal a si mesmo, pois, para explicar suas próprias
operações mentais e até para perceber a existência das estruturas que elas comportam, teria
que reconstituir todo um passado do qual jamais tomou consciência no momento em que
estava vivendo cada etapa" (Logiqueel connaissance scientifique, Encyclopédie de Ia Pléiade,
Gallimard, Paris, 1967, p. 120).
9. Cf. J.-P. Astolfi, “Deux sortes de savoirs”, in Cahierspédagogiques n" 244-245, maio-junho
de 1986, p. 34 e 35-
10. Cf. P. Meirieu, Outils pour apprendre en groupe. Apprendre en groupe? 2, Chronique
sociale, Lyon, 1984.
Aprender... Sim, Mas Como? 69
11. Apóio-me aqui, em particular, nos trabalhos do grupo ASTER (equipe de didática das
ciências experimentais do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica — INRP. O exemplo da
respiração é tomado precisamente de um documento elaborado por M. Develay.
12. A. de la Garanderie, Le dialogue pédagogique avec 1’élèue, Le Centurion, Paris, 1984, p.
109.
13. A. de la Garanderie, Pédagogie des moyens d’apprendre, Le Centurion, Paris, 1982, p. 91.
14. R.M. Gagne é um dos raros "taxionomistas" a mostrar o fenômeno colocando, em sua
classificação das fases de aprendizagem, a “motivação expectativa” logo antes da “percepção
seletiva” e todas as outras operações intelectuais que estas tornam possível. Ele aponta o
fenômeno, mas isola ainda demais, a meu ver, motivação e percepção que não estão presentes
apenas “no início", mas ao longo de cada fase da aprendizagem (cf. Lespríncipesfondamentaux
de Tapprentissage, H.R.W., Montreal, 1976, em particular p. 42).
15. G. Bachelard, La formation de 1‘esprít scientifique, Vrin, Paris, 1971, p. 18.
16. A. Giordan, Une pédagogie pour les Sciences expérimentales, Le Centurion, Paris, 1978, p.
190.
17. G. Bachelard, La formation de 1’esprít scientifique, op. cit., p. 13-14.
18. Cf. em particular, J. Piaget e B. Inhelder, La psycbologie de 1’enfant, PDF, Paris, 1978, p.
101 e seguintes.
19. Cf. A.N. Perret-Clermont, La construction de 1'intelligence dans íinteraction sociale, Peter
Lang, Berna, 1979.
20. Estes dois modelos estão perfeitamente formalizados pela equipe ASTER, em seu relató­
rio de pesquisa: Procédures cTapprentissage en Sciences expérimentales, INRP, Paris, 1985, p.
21 e 23.
21. A. Bouvier dá excelentes exemplos deste processo na matemática (“Sur les styles
pédagogiques” in Apprentissage et didactique, documento IREM de Lyon, nu 51, maio de
1985, p. 13 a 28).
22. Descartes, Discou rs de la méthode, II.
23. G. Bachelard, La formation de 1’esprít scientifique, op. cit., p. 246.
24. Citado por Charles Baudoin, in Tolstoi éducateur, Delachaux et Niestlé, Neuchâtel e
Paris, 1921, p. 106.
25. Cf. P. Watzlawick et al., Cbangements, Le Seuil, coleção “Points”, 1981.
Final da
Primeira Parte
Quando se descobre que o que é
fundador no ofício de aprender
é da ordem da ética

‘‘Não se pode instruir sem supor toda a


inteligênciapossíuel em uma criança".
Alain
Propos II, La Pléíade
Paris, 1970, p. 874

Sem dúvida, é a partir de experiências-limites que a filosofia da educação


revela seus verdadeiros desafios. Empenha-se aí, muitas vezes de maneira
balbuciante, tanto por seus silêncios quanto por suas afirmações, em algu­
mas tentativas fugazes para sair dos dilemas aos quais, quase sempre, prefe­
rimos nos entregar: a criança ou o saber, o respeito da pessoa ou as imposi­
ções da sociedade, a maturação natural da inteligência ou a instalação de
dispositivos didáticos sofisticados... É nesse momento em que se vê emer­
gir, de forma sempre precária, mas às vezes o suficiente para despertar-nos
de nosso torpor polêmico, algo surpreendente que foge a todas as simplifica­
ções e em que pressentimos o essencial. Foi o que ocorreu, como foi visto,
no curioso episódio de Menon de Platão em que Sócrates, ao mesmo tem­
po em que exerce sobre o escravo uma série de ações intelectuais, psicológi­
cas e sociais, no momento em que o outro está inteiramente entre suas
mãos, nega o poder que exerce e foge de certa maneira da tentação demiúr-
gica, recusando sua posição de transmissor. O jogo é muito evidente, na
verdade, para que Platão pudesse ter acreditado - e, a fortiori, para que
tenha nos convencido disso - que o escravo inventava realmente “a pro­
porcionalidade”; se quisesse que tivesse sido assim, teria sem dúvida colo­
cado algumas frases na boca do escravo e não se teria contentado com
simples fórmulas de assentimento. Platão bem sabe que Sócrates “transmi­
te”, mas faz questão de salientar, por um lado, e essa é a função do mito da
*

72 Pbilippe Meirieu

reminiscência, que essa transmissão só é possível se for simultaneamente


reconstruída pelo sujeito e, por outro lado, que ela só escapa à reprodução
fatal se seu autor não a reivindicar... Livre de seu invólucro metafísico, o
episódio só pode ser compreendido como uma metáfora da educacão e da
aprendizagem: mostra a imperiosa necessidade de levar em conta a interio-
ridade do sujeito no exato momento em que se age do exterior sobre ele.
Ora, curiosamente, há um episódio, na história das doutrinas e práti­
cas pedagógicas, muito semelhante a essa passagem de Menon e que, po­
rém, ambos raramente são relacionados: trata-se da aventura do doutor
Itard e de Victor de 1’Aveyron. A história levada ao cinema por F. Truffaut
em “L’enfant sauvage” é conhecida; sabe-se pouco sobre a importância
decisiva de Itard para o pensamento pedagógico europeu1; ignora-se, na
maioria das vezes, o caráter fundador dessa experiência e a extraordinária
riqueza dos escritos de Itard2. Relembremos brevemente os fatos: em 1797,
uma criança “selvagem” é percebida nos bosques por camponeses da re­
gião de Aveyron; ele anda nu, alimenta-se de glandes, castanhas e raízes;
em 1799, é capturado por caçadores, mas consegue escapar... No dia 8 de
janeiro de 1800, às sete horas da manhã, entra em uma loja da pequena
cidade de Saint-Sernin, onde é recapturado, lavado, tratado e nutrido antes
de ser levado para Paris, onde foi internado no instituto para surdos-mu-
dos. Lá o professor Pinei faz uma primeira avaliação sobre ele e conclui, a
partir de comparações entre o selvagem e crianças débeis internadas em
hospício que este “deve ser definitivamente colocado entre as crianças víti­
mas de idiotia e de demência e que não há nenhuma esperança fundada de
obter sucessos de uma instituição metódica”. Se a crianca foi abandonada,
disseram então, foi porque seus pais haviam descoberto nela uma deficiên­
cia congênita irreversível. Ora, Itard não pode aceitar isso: o jovem médico,
discípulo de Locke e de Condillac3, acredita, como eles, que todos os nos­
sos conhecimentos vêm de nossas sensações e está convencido, como
Helvetius, de que “a educação pode tudo... até mesmo fazer o urso dan­
çar”4 e de que o homem é apenas o produto de todas as influências mate­
riais, psicológicas e sociais que ele recebe. Itard não crê na reminiscência,
recusa totalmente a determinação pelo inato e, como observa L. Malson,
“constata a idiotia, mas reserva-se o direito de ver nela não um fato de
deficiência biológica, mas um fato de insuficiência cultural”5. O que Itard
quer então é provar o poder da educação, trazendo aquele a quem dará o
nome de Victor para junto dos civilizados, ou seja, essencialmente, permitindo
que tenha acesso à linguagem formalizada. Ele é, neste sentido, uma espé­
cie de anti-Sócrates, já que afirma a onipotência da intervenção externa e
supõe que esta é suficiente para garantir o acesso à inteligência. Nega o
inato para fundamentar a possibilidade de construir o homem e, portanto,
a necessidade do educador como transmissor.
Chegado o momento de iniciar seu trabalho, Itard formula cinco “no­
ções”, cinco princípios que vão orientar sua ação e permitir inventar uma
Aprender... Sim, Mas Como? 73

variedade de dispositivos pedagógicos. Ora, estes princípios são curiosos


quando relidos com atenção, curiosos porque os quatro primeiros são contra­
ditórios dois a dois, curiosos porque o quinto tenta uma síntese que vai,
finalmente, fazer Itard deslocar-se da posição polêmica do “tudo externo”
para uma posição mais empenhada, mais dialética, uma posição que assu­
me a historicidade educativa, o lento e longo trabalho de negociação entre
a interioridade e a exterioridade. Observemos essas noções mais de perto:
o que diz a primeira? Que é preciso “ligar Victor à vida social tornando-a
mais doce para ele do que a que levava até então e, sobretudo, mais próxi­
ma da vida que acabava de deixar”. E o que diz a segunda? Que é preciso
“despertar sua sensibilidade nervosa através dos estímulos mais enérgicos
e, às vezes, através das vivas emoções da alma”6. Não há aí a expressão
sucessiva de dois princípios contraditórios? O princípio de continuidade,
segundo o qual um progresso só se realiza através de uma experiência que
prolonga uma experiência anterior, enraizando-se assim no que era a pes­
soa anteriormente, e o princípio de ruptura, segundo o qual o educador
deve introduzir estímulos específicos em função de seus próprios projetos,
fazendo com que o sujeito ande bem mais rápido em seu processo... Seria
preciso observar atentamente como Itard manipula continuidade e ruptura
ao longo dos oito anos de convívio diário com Victor, esforçando-se para
respeitar seus hábitos e seus gostos, ao mesmo tempo, aproveitando as
atividades assim desenvolvidas para introduzir estímulos novos e fazer com
que adquira, por estabilizações sucessivas, novos reflexos. É nessa articula­
ção, toda vez que pode ser instaurada, que Victor faz progresso... E o
mesmo ocorre com as “noções” terceira e quarta: elas enunciam, de fato,
duas exigências contraditórias e que, no entanto, a educação deve unir: o
princípio de solicitação, que determina situar o sujeito em situações diver­
sas e complexas, suscetíveis de solicitar sua atenção e de mobilizar seu
interesse, e o princípio de emergência, segundo o qual o educador deve
fazer com que se manifestem, quando essas situações se apresentam, os
saberes e as competências que quer fazer com que sejam adquiridos, “pela
lei imperiosa da necessidade7”, como instrumentos que permitam resolver
os problemas diante dos quais nos encontramos. Sua tarefa é a de organizar
e multiplicar as solicitações para possibilitar, de acordo com as necessida­
des próprias às situações assim criadas, a emergência das habilidades e dos
conhecimentos que terão sido escolhidos.
Respeitar o “natural”para nele introduzir o artifício, criar o artifício
para nele promover o “natural”: tal é o movimento que pode ser, sem dúvi­
da, situado no centro da aprendizagem; tal é o processo que ilumina as
posições e os aportes da psicologia da aprendizagem (que estuda o “natu­
ral”) e da didática da aprendizagem (que inventa “artifícios”). Uma e outra
se incentivam e se regulam na ação, segundo um processo,sem dúvida, um
pouco mais complexo do que o descrito por Itard em sua “quinta noção”8,
mas que decorre exatamente do princípio de interação que ele formula aí e
74 Philippe Meirieu

que não deixou de tentar pôr em prática durante todo o seu trabalho com
Victor9.
Assim Itard, apesar de sua falta de habilidade, apesar de seu insucesso
— Victor morreu com quarenta anos sem ter falado, apesar de seus referen­
tes teóricos contestáveis, nos introduz no centro da dinâmica educativa.
Sem dúvida, porque diante de uma situação-limite que o obriga a abando­
nar o terreno fácil demais da ideologia, compromete-se com a aprendiza­
gem e torna difícil a experiência de sua historicidade. Convencido de que
tudo era construído, ele chega a afirmar que nada se constrói se não se
partir do inato. Militante do “adquirido” e combatente do “inato”, demons­
tra que nada se adquire sem que se implante no já existente. Será uma
renegaçào? Não, pois na realidade, ele não muda de “campo” — ao final de
seus trabalhos, continua ainda a invocar Condillac - mas sim de registro.
Não passa da tese “ambientalista” que legitima a onipotência educativa, à
tese do “inatismo” que limitaria a educação à admiração das aptidões que
despertam “naturalmente”... mas assume uma posição teórica de outra or­
dem, uma espécie de “opção” que ele observa como sendo a única a poder
inspirar verdadeiramente uma prática educativa eficaz. E, quando adere a
essa “opção”, não renuncia a seu projeto de socialização de Victor, não
renuncia a seu projeto de instruir, busca simplesmente uma forma de coloca
lo em prática e descobre que só é possível fazê-lo apoiando-se no inato,
não um “inato definitivo”, mas um “inato ponto de partida” que vai ser
enriquecido por aquilo que permitirá atingir e, assim, novas potencialidades
serão construídas. Itard vai, portanto, completamente além da disputa entre
o inato e o adquirido, e da única forma possível de sair desse debate medí­
ocre: através da educacão. Com efeito, só se pode trabalhar sobre o inato e
seria absurdo, hoje, negar a existência de um programa genético específico
do homem; é esse programa, escreve F. Jacob, que “dá o poder de apren­
der, de compreender, de falar qualquer língua”10; e esse programa dá a cada
um potencialidades combinatórias consideráveis11 graças às quais, por “es­
tabilizações seletivas”12, constrói suas aprendizagens. Mas se é absurdo ne­
gar o inato, seria igualmente um absurdo considerá-lo como uma coisa-em-
si de onde emergiríam naturalmente as aprendizagens; estas são construídas
nas e pelas atividades que esse inato torna possível, as quais o educador
deve suscitar, organizar, administrar e cujas aquisições deve ajudar a identi­
ficar.
A “opção” educativa é isto: “confiança no imediato, escreve G. Snyders,
confiança no elaborado e, o que é o ponto crucial, confiança na possibilidade
de passar de um ao outro”13. O ponto crucial, de fato, o que torna possível
e estimula o trabalho de Itard, da mesma forma que o de Sócrates e o de
qualquer educador: a convicção de que um elo pode ser formado entre “o
que ele é” e “o que eu gostaria que ele fosse”, ... um elo que devo inventar
incessantemente, alimentado pela certeza de que “é realizável”. No fundo,
esta é a grande lição de Itard: ele mostra que o outro só pode crescer, só
Aprender... Sim, Mas Como? IS

pode haver aprendizagem, se eu apostar permanentemente em sua educa­


bilidade14, se eu estiver convencido de que ele vai chegar lá e se eu concretizar
essa convicção por uma expectativa positiva e, ao mesmo tempo, por uma
inventividade didática sempre renovada. Itard, neste sentido, é sem dúvida
uma das maiores figuras da educação, uma das que melhor compreendeu
que a deficiência de um sujeito se define menos por um constatado e
insuperável desvio à normalidade do que pelo limite interior que o educa­
dor estabelece ao princípio de educabilidade. Itard mostra que a deficiên­
cia, o bloqueio, estão, antes de mais nada, no educador e que são as fronteiras
que o educador traça em si e além das quais se recusa a agir... Mas a lição
de Itard vai ainda mais longe, cm função de suas próprias dificuldades: ele
salienta que a grandeza do pedagogo depende da sua capacidade para
integrar a negatividade da educabilidade, ou seja, para não renunciar a seu
princípio, mesmo aceitando que este seja constantemente desmentido pe­
los fatos. Diante disso, é verdade que, em uma dimensão menor, cada
educador realiza a experiência de Itard e nunca alcança efetivamente seus
fins; sem dúvida, é melhor assim, já que o alerta socrático mostrou-nos que
era necessário manter o demiurgo à distância; mas isso poderia, isso deve­
ria desencorajar-nos se não fôssemos atormentados pela ética e sua exigên­
cia última: fazer advir a humanidade no homem.
No centro da aprendizagem, o que importa é, portanto, a ética; pois só
a ética permite ir além das alternativas estéreis do inato e do adquirido, do
racionalismo e do empirismo, do ensino e da aprendizagem. Só a ética
permite que se instituam, de vez em quando e sempre sustentados pela
determinação dos homens, enclaves educativos cm que se foge das simplifi­
cações do “faça como você quiser” e do “faça como eu quero”. Assim,
poder-se-ia ler, inclusive, a história das instituições educativas tentando
identificar aquelas onde se expressa e se explicita a elaboração de um
querer comum ou, melhor ainda, de um espaço contratual: a pedagogia
institucional surge aí como um avanço mais decisivo que Summerhill, a
laboriosa criação do “centro de recursos” para os jovens com dificuldade,
mais importante que espetaculares “experiências pedagógicas”... É claro
que tudo isso é precário e frágil e o educador ocupa aí, em muitos sentidos,
uma posição insustentável - isto é, uma posição em que quase não é possí­
vel manter-se instalado - mas esta é, em todos os sentidos, a única posição
possível para quem quiser fazer com que o outro aprenda.

Notas
1. M. Montessori presta a ele uma vibrante homenagem e enfatiza tudo o que o pensamento
europeu lhe deve (Pédagogie seientifique, Paris, 1926). Uma recente obra publicada na Itália
por Andréa Canevaro {Handicap e identità, Cappelli Editore, Bolonha, 1986) devolve a Itard
o lugar eminente que ocupou na história da educação.
76 Pbilippe Meirieu

2. As duas memórias de Itard consagradas a Victor foram publicadas por L. Malson em Les
enfants sauvages, Gallimard, col. “10-18”, Paris, 1964, p. 125 a 246.
3. Cf. p. 127, 167, 168, 185, 186 e 193 das Memórias de Itard (op. c/7.).
4. Cf. De IHomrne, Oeuvres complètes, t. III, Londres, 1777, p. 523.
5. Qp. cit., p. 91
6. Mémoire d’Itard de 1801, op. cit., p. 137 e 138.
7. Mémoire d’Itard de 1801, op. cit., p. 138.
8. Mémoire d’Itard de 1801, op. cit., p. 138.
9. Pode-se inclusive analisar as dificuldades de Itard mostrando que foi quando desviou
desse que se viu fracassado. H. Lane faz esta análise de uma maneira particularmente inte­
ressante observando o fato de que Itard deixa de explorar muitos talentos de Vicror e de
articular novas habilidades àquelas que já tinha (inclusive no domínio da linguagem); ler-se-
á com interesse o seu trabalho. I I. Lane, L’enfant sauvage de 1’Aueyron, Payot, Paris, 1979-
10. F. Jacob, La logique du uiuant, Gallimard, col. “Tel quel”. Paris, 1970, p. 338.
11. Temos cada um aproximadamente trinta bilhões de neurônios; podemos efetuar de 10
000 a 100 000 conexões por segundo e por neurônio, com uma velocidade de transmissão
que chega a 120 metros por segundo.
12. Cf. J.-P. Changeux, L’homme neuronal, Fayard, col. “Pluriel", Paris, 1983, p 337.
13- G. Snyders, La joie à 1’école, PUF, Paris, 1986, p. 107.
14. Sobre o conceito de educabilidade, cf. P. Meirieu, Itinéraire des pédagogies de groupe,
Chronique sociale, Lyon, 1984, p. 139 a 164.
Segunda Parte
Gerir a Aprendizagem
I

Introdução
Quando se tenta delimitar um
espaço onde possa ser exercida
a atividade pedagógica

Instaurar um equilíbrio nem estável, nem instável, mas "meta estável"


entre os três componentes do triângulo pedagógico, o educando, o edu­
cador, o objeto a ser aprendido e a ser ensinado... O insucesso de mui­
tas práticas pedagógicas anteriores deve-se ao fato de que elas deram
prioridade a dois desses componentes (...) em detrimento do terceiro
que, assumindo o papel do "louco", retorna infalivelmente para pertur­
bar o jogo do qualfora excluído de maneira imprudente."
D. Hameline
Enciclopédia Universalis,
Corpus 13,Paris, 1985, p. 114.

Assim a aprendizagem põe frente a frente, em uma interação que nunca é


uma simples circulação de informações, um sujeito e o mundo, um apren­
diz que já sabe sempre alguma coisa e um saber que só existe porque é
reconstruído. Não há mais o sujeito-em-si, página virgem ou cera mole,
totalmente disponível às solicitações externas, assim como também não há
saber-em-si, entidade perfeitamente arquitetada que deveria estar fora do
alcance das malversações pedagógicas; e, se a mais jovem das crianças só
aprende integrando o novo ao antigo e através dele que dessa forma é
transformado, cada velho que morre é então uma biblioteca que queima...
Mas, nesta aventura, os dois parceiros nunca estão realmente sós e suas
relações são sempre mediadas pela realidade que é o meio adulto, pelo
desejo daquele que ama, pela competência daquele que sabe, pelo poder
daquele que organiza: há sempre dissimulado, por trás dos “objetos para
aprender” - como o livro, o filme ou o programa de informática - bem como
por trás dos objetos mais banais e mais cotidianos - a casa, o vestuário, a
televisão... -, um “formador”, ou seja, alguém que, deliberada ou inconsciente­
mente, cria estímulos, propõe experiências que o sujeito poderá tratar, inte­
grar ou, ao contrário, às quais ficará estranho.
80 Pbilippe Meirieu

Ora, a função da Escola é precisamente a de livrar essa operação, na


medida do possível, do acaso de encontros fugazes ou de mediadores im­
provisados; cabe a ela introduzir um pouco de rigor naquilo que se passa
entre os três parceiros da aprendizagem para que o aprender advenha com
um pouco mais de justiça e de eficácia compartilhada. É por isso que pre­
cisamos agora tentar compreender mais precisamente como se estrutura o
“triângulo pedagógico”: educando - saber - educador1, para aprendermos
a criar situações de aprendizagem e ajustar seu desenvolvimento conside­
rando seus efeitos.
Já tive a oportunidade de observar o quanto podia ser perigoso, na
reflexão e na elaboração pedagógicas, deixar-se atrair por um dos três pó­
los do triângulo, reduzindo assim a aprendizagem à simples atenção indulgen­
te a uma interioridade que desabrocha ou, então, ao fascínio sem limites
pela exposição de programas cuja apropriação seria garantida apenas por
sua difusão ou ainda, enfim, à suposição de uma tal força do educador que
a exortação bastaria para encobrir as insuficiências da sedução2. Mas pode-
se também analisar o “triângulo pedagógico” considerando seus lados ao
invés de seus ângulos e observando até que ponto cada um representa um
eixo essencial, mas ao mesmo tempo perfeitamente redutor da situação de
aprendizagem: é o que ocorre na relação pedagógica entre o educador e o
educando, bem como no caminho didático que o educador elabora cons­
truindo aquelas “longas cadeias de raciocínio”, como dizia Descartes, aque­
las edificações taxonômicas, como se diz hoje, e que supostamente, tradu­
zindo o programa em uma série de objetivos, torna o saber transparente e
acessível; é o que ocorre também com a consideração das estratégias de
aprendizagem através das quais cada indivíduo tem acesso ao saber de
uma maneira que lhe é própria, construída em sua história pessoal e, portanto,
em vários sentidos, insuperável... Cada uma destas dimensões deve certamen­
te ser levada em conta, mas é preciso ter o cuidado, a cada vez, para nelas
introduzir a terceira realidade, o pólo oposto e excluído que é o único a
poder abrir um espaço para a iniciativa, um terreno para a decisão pedagógica.
Na verdade, a recusa ou a ignorância tática de um dos três pólos, ainda
que não tenham o poder de proclamar sua abolição por decreto, comprome­
tem o equilíbrio precário da aprendizagem e deixam-na desviar para outros
tipos de relações humanas e de lógicas de funcionamento que, mesmo
sendo legítimas em outras situações, não deixam de ser perigosas quando
pretendem se proclamar “pedagogias”.

• Quem pode querer ignorar a relação pedagógica, este encontro en­


tre pessoas vivas e cheias de desejos, este conjunto de fenômenos afetivos,
de transferências e contra-transferências, que estão sempre presentes na
sala de aula? Não se pode escolher, por simples comodidade, a suspensão
da afetividade: primeiro, porque essa decisão, é claro, seria ela própria uma
escolha afetiva, alimentada, na maioria das vezes, pela preocupação consi-

i
Aprender... Sim, Mas Como? 81
go, pelo medo do outro ou pelo desejo estranho de melhor exercer seu
poder camuflando a natureza do mesmo; depois, porque uma atividade
cognitiva, ainda que perfeitamente teorizada, não pode ficar sem a energia
do desejo que lhe dá vida e força; enfim, porque seria estúpido negar o
aspecto determinante, na aprendizagem, dos fenômenos de identificação e
de sedução. Sabe-se, de fato, que a vontade de seduzir anima qualquer
educador, mesmo que ele quase não o confesse, mesmo que anuncie o
contrário, fingindo ignorar que a recusa de seduzir pode vir reforçar a
sedução... o problema, aliás, não está aí: não há nada de grave no fato de
que um aluno saia da sala de aula tendo sido seduzido e estando contente
de tê-lo sido, e é preciso desfazer-se aqui daqueles vestígios de puritanismo
que nos fazem recusar o prazer na aprendizagem, porque o confundimos
com a facilidade ou, até mesmo, com a demagogia. Pode-se encontrar pra­
zer na dificuldade, no trabalho com a complexidade cujas chaves são lenta­
mente descobertas. E é justamente o aluno capaz desse prazer que terá
êxito na escola.
De fato, o importante, na aprendizagem, não é escapar à sedução, mas
escapar-se da sedução: o importante não é sair da aula podendo afirmar
“não fui seduzido, eu juro”, mas sair reconhecendo: “Eu fui seduzido, mas
isso me permitiu compreender isto ou aprender aquilo e o que sei posso
identificar, reutilizar fora do contexto de sua aprendizagem; agora sou disso
o mestre e, mesmo se isso traz ainda durante algum tempo a marca daquele
ou daqueles que me fizeram alcançá-lo, sou capaz de confrontá-lo com
novas situações...” Todo problema está, como se vê, em reinjetar, na rela­
ção pedagógica, a terceira realidade, o conhecimento identificado, reco­
nhecido como tal, transferido e, portanto, desligado das condições de sua
aquisição. Não se trata aqui de suspender a relação pedagógica, mas de
mediá-la o bastante para que não se considere a si própria como objeto e
para que os fenômenos de fascínio-repulsa não totalizem a situação peda­
gógica; trata-se de restaurar incessantemente o triângulo para não se deixar
absorver por relações duais de captação, mas para permitir um acesso, que
será sem dúvida lento e caótico, a uma verdadeira autonomia. Programa
vasto para o qual precisamos dar algumas dicas.

• Todos os professores que tiveram uma formação sobre o método


pelos objetiuos' reconhecem facilmente o alcance de uma tal metodologia:
esforçando-se para sair das tradicionais formulações em termos de conteú­
dos de programa para elaborar objetivos unívocos e explícitos, construindo
progressões rigorosas com a identificação dos pré-requisitos e o encaixe
dos objetivos uns sobre os outros, certamente, obtêm-se os meios de livrar
a ação pedagógica da improvisação sistemática e da seleção pelo implícito
que, nem por ser a menos evidente, deixa de ser a mais praticada. Sendo
assim, é particularmente útil que os professores façam a análise, em termos
de objetivos, dos saberes que têm a função de ensinar e que construam
82 Philippe Meirieu

caminhos didáticos rigorosos: além da fecundidade do exercício para a


formação pessoal daquele que o executa, isso oferece, na verdade, um
instrumento de ajuste muito precioso para a prática educativa; sobretudo,
quando se dispõe de um referencial suficientemente preciso, quando se
sabe exatamente o que se quer obter e quando se pode discriminar regular­
mente os alunos para os quais uma determinada aprendizagem está finalizada
e aqueles para os quais uma retomada é necessária, pode-se então organi­
zar a aula de maneira rigorosa e dinâmica ao mesmo tempo, evitar grandes
perdas de tempo, finalizar o período escolar e elucidar o contrato didático.
Por outro lado, a linguagem dos objetivos, permitindo a formulação de
capacidades transdisciplinares, fornece aos práticos uma “língua-instrumen-
to”1 que lhes permite comunicarem-se entre si e estabelecerem uma coerência
entre suas atividades.
Por que, então, a preocupação diante desse acúmulo de objetivos cuja
perfeição formal deveria, no entanto, convencer-nos? Sem dúvida, pelo fato
de que, se a abordagem por objetivos pode, de um modo muito eficaz, regu­
lar uma prática, é, por outro lado, incapaz de inspirá-la-, ou, mais exata­
mente, pelo fato de que só é capaz de gerar-se a si própria como prática,
multiplicando indefinida e vertiginosamente o par objetivo-avaliação. En­
quanto instrumento para introduzir mais rigor na gestão das aprendizagens,
ela é muito apreciável, sem dúvida indispensável; fornece um bom mapa
ou um bom “painel de comando” que permite preparar uma progressão
que acende o pisca-pisca quando é preciso, lembrando, no momento exa­
to, este ou aquele obstáculo, forçando a ir mais devagar ou acelerar em
função dos efeitos produzidos... mas ela não pode substituir nem o com­
bustível, nem o motor! Pois um objetivo jamais diz algo sobre o método
que permite atingi-lo e, se quisermos fazê-lo falar a todo o custo, só será
capaz de repetir: “pré-requisito, sub-objetivo, objetivo intermediário, avali­
ação...” O programa torna-se pedagogia: alguns falam então, justamente,
em “ensino programado”, sem dúvida, para salientar que não se trata ape­
nas de ensinar o programa, mas de ensinar também pelo programa. Quan­
do os objetivos se tornam métodos, a aprendizagem torna-se adestramento
e o sujeito felizmente foge dela, na maioria das vezes, pela violência, pela
indiferença ou por um simples desvio.
O que é necessário então para fugir desse caminho tecnicista? O profes­
sor bem o sabe, ele quem vê, diariamente, seus caminhos didáticos corta­
dos por estranhos atalhos ou tornados mais longos por curiosos desvios;
ele sabe que o que muda tudo é o levar em conta o aluno, surpreendente,
inesperado, irracional, que vai muitas vezes aprender mesmo assim, de
outro modo ou outra coisa, nunca exatamente como se previu. Mas, para
isso, a abordagem por objetivos deve livrar-se das reduções behavioristas
que a ameaçam: o objetivo operacional em termos de comportamento ob­
servável, aquele que só gera o par objetivo/avaliação, deve perder seu
estatuto mítico ao final da corrente que conduz o educador das finalidades
Aprender .. Sim, Mas Como? 83

até as práticas. Sem dúvida, continua sendo útil traduzir as finalidades em


termos de fins e objetivos gerais, mas, sem dúvida, é melhor, para gerar
práticas fecundas, suspender a decomposição no momento em que esta
permite descrever atividades mentais que podem ser tratadas em termos de
dispositivo pedagógico, isto é, quando se pode propor ao educando uma
situação-problema que ele poderá negociar com sua própria estratégia. É
dessa forma, e apenas dessa forma, que se poderá restaurar o triângulo
pedagógico, afastando o par objetivo/avaliação — ou melhor, objetivo/indica-
dor comportamental — e integrando o educando que é o ator mental para
criar um espaço aberto à iniciativa pedagógica.

• Ainda que finalmente bastante recente, a pesquisa sobre as estratégi­


as individuais de aprendizagem, os perfis pedagógicos, os estilos cognitivos,
parece hoje desenvolver-se de maneira vigorosa e contar com uma grande
audiência. E preciso, é claro, mostrar-se satisfeito com isto, pois ela completa,
de uma forma muito oportuna, trabalhos mais antigos que procuravam
mais destacar as invariâncias da aprendizagem e que, apresentando apenas
um sujeito formal, ignoradas as especificidades individuais, propunham
teorias atraentes, mas pouco compreensíveis para o prático. Pois este tem
diante de si sujeitos particulares que dispõem de uma inteligência cuja
estrutura final talvez seja a mesma, mas cujas modalidades de ação são
diferentes. É claro que, há muito tempo, já se reconhecia a existência de
diferenças, mas havia uma tendência para tratá-las em termos lineares e
exclusivamente quantitativos, como se bastasse apenas posicionar cada um
em uma escala graduada. Ora, hoje sabemos que a um mesmo estágio de
desenvolvimento cognitivo e, portanto, a capacidades estruturais idênticas
podem corresponder estratégias de aprendizagem muito heterogêneas; da
mesma forma, compreendemos que um atraso nesse desenvolvimento
cognitivo pode ser explicado por uma defasagem entre a estratégia utiliza­
da preferencialmente pelo sujeito e as estratégias de ensino aplicadas em
seu meio... Assim, os indivíduos são mais visuais, auditivos ou motores,
funcionam mais por globalização, oposição ou análise de um elemento,
são mais ou menos sensíveis à diretividade de uma situação, às interações
entre pares, organizam o tempo ora em pequenas unidades intensivas, ora
em períodos mais longos... Um ensino que ignorasse essa realidade teria
todas as chances de só ser eficaz de maneira totalmente fortuita; e é por
isso que a pedagogia diferenciada não é um novo sistema pedagógico cuja
moda poderia ser apenas totalmente passageira: toda pedagogia que teve
sucesso foi diferenciada, ou seja, adaptada aos indivíduos aos quais foi
proposta.
Mas a diferenciação também é perigosa: de tanto respeitarmos as estra­
tégias individuais, não corrremos o risco do fechamento, do empobreci­
mento metodológico do indivíduo, de uma intolerância inquietante a qual­
quer proposta levemente desviada e que poderia ser sistematicamente rejei-
84 Philippe Meirieu

tada? É por isso que as estratégias de aprendizagem não devem ser levadas
em conta de maneira mecânica, mas tentando sempre respeitá-las e, ao
mesmo tempo, permitir sua superação. Tarefa difícil, que supõe o reconheci­
mento da distância entre os itinerários e os resultados, distância que o
educador poderá então explorar, apoiando-se nos segundos para tornar
possível a exploração sistemática de novas estratégias... Novamente, é restau­
rando o triângulo pedagógico, isto é, introduzindo nele o pólo formador e
sua preocupação de promover o desenvolvimento mais completo da pes­
soa, que se obtém um espaço para a ação, que se parte para a elaboração
de verdadeiras situações de aprendizagem.
Como construir essas situações, ocupar esse espaço? Apresentamos as
fronteiras disso — uma relação interpessoal, objetivos rigorosamente formu­
lados, estratégias pessoais de aprendizagem escrupulosamente levadas em
conta -, sugerimos como permanecer presente no centro desse espaço man­
tendo a preocupação com o terceiro excluído — o saber mediador, a opera­
ção mental do educando, a vontade de ampliar suas capacidades estratégi­
cas... Resta-nos explicar cada uma dessas três dimensões antes de esboçar­
mos um método para gerir um tal sistema.

Notas
1. Cf. J. Houssaye, Le triangle pédagogique, tese, Paris X, 1982. Fala-se também em “triângulo
didático”: cf. M. Develay, “Didactique et pédagogie” in Apprentissage et didactique, IREM de
Lyon, n° 51, maio de 1985, p. 29 a 42. Cf. também, dentre muitas outras referências, F.
Galligani, Préparation etsuiui d’uneaction deformation, Éditions d’Organisation, Paris, 1980,
p. 94-95. Pode-se também ver no “triângulo da aprendizagem” um exemplo da definição de
um objeto através dos seus três pólos, segundo a proposta de J.-L. Le Moigne: O pólo
ontológico (o do saber), o pólo funcional (o do educador) e o pólo genético (o do educan­
do) (La tbéorie du système général, PUF, Paris, 1977, p. 38-39).
2. Cf. L‘École, mode d’emploi, op. cit., p. 106-107.
3. Para aqueles que não tiveram essa formação, sempre é possível ler a obra de D. Hameline,
Les objectifspédagogiques, ESF, Paris, 5a ed. 1986.
4. Cf. P. Gillet, “Utilisation des objectifs en formation”, Éducation permanente, n" 85, 1986,
p. 17 a 28, em particular p. 26-27.
Capítulo 3

A Relação
Pedagógica
Quando se vê como o desejo vive
do enigma, o enigma da relação,
e a relação da mediação

"Sob pena defalhar na suafunção essencial, a Escola nãopode se desin­


teressar daforça que leva a mensagem até a criança epelas motivações
que levam esta a acolher aquela”.
J. Guillaumin
“Aspects de la relation maítre-élève"
Bulletin Binet-Simon, n° 472, 1962, p. 4

Quando se está diante de uma realidade incômoda e,


em muitos sentidos, escandalosa

Todos sabem disto e passaram por isto ao longo de sua história pessoal; cada
professor o vive diariamente; qualquer pai o observa com seus filhos... o
que faz realmente diferença na atividade pedagógica parece fugir a qual­
quer definição e não pode ser descrito em termos de dispositivo ou de
tecnologia. É claro que não se discute quanto ã importância desses instru­
mentos, quanto ao fato de que eles facilitam muitas coisas e amenizam, às
vezes, certas dificuldades, mas só vivem e têm valor através das pessoas
que os habitam e que conseguem dar sentido a eles. Não há um professor
ou um educador que não tenha passado por esta experiência: a seqüência
já está pronta, perfeitamente estruturada, experimentada por ele mesmo ou
por outros, utilizada muitas vezes com sucesso; a imaginação apresentada
1

86 Pbilippc Meirieu

na sua elaboração atesta a motivação dos alunos; o rigor de sua construção


garante sua eficácia...e no entanto, isso não funciona... O que devia ser
dinâmico torna-se enfadonho, o que devia suscitar o desejo secreta o té­
dio... O que ocorre então? Certamente, falta aquilo que V. Jankélévitch
chama de um “quase nada” ou um “não sei o quê”, mas que faz toda a
diferença: “O quase nada é o elemento invisível, inexistente, ambíguo, que
diferencia entre si duas totalidades morfologicamente indiscerníveis (...). O
quase nada é aquilo que falta quando, pelo menos aparentemente, não
falta nada: é a inexplicável, irritante, irônica insuficiência de uma totalidade
completa contra a qual nada se pode dizer e que nos deixa curiosamente
insatisfeitos e perplexos (...). Quando nada está faltando, falta algo que não
é nada; falta, portanto, quase nada. Na verdade, falta apenas o essencial!”1.
E o essencial, é preciso confessar, é circular um pouco de desejo. A palavra,
é certo, pode incomodar de tanto veicular imagens, de tanto ser utilizada
por toda a parte e por todos sem discernimento; a realidade, por sua vez, é
incontornável. O que mobiliza um aluno, o que o introduz em uma apren­
dizagem, o que lhe permite assumir as dificuldades da mesma, ou até mes­
mo as provas, é o desejo de saber e a vontade de conhecer. Sem esse desejo
nele, só a mecânica pode responder; sem esse desejo em você, você já
teria, há muito tempo, abandonado este livro.
E compreensível que o pedagogo hesite em reconhecer o fenômeno; é
compreensível que incomode o professor e revolte o administrador escolar:
tantos esforços, tanto dinheiro seriam investidos em um empreendimento
que poderia, a todo momento, ser reduzido a nada por cada um dos indi­
víduos aos quais se destina, simplesmente, porque não desejariam o que é
preciso desejarem um momento certo! A máquina seria deixada ã irrelevância,
minada pelo aleatório, condenada a vãs gesticulações... Pior ainda, aquele
que acreditasse nela exercer o poder absoluto estaria ã mercê de pequenas
tiranias das quais não se poderia exigir explicações. Restaria então, para
não cair na insignificância, apenas a exortação na qual os mestres brilham
tanto e cujo caráter patogênico W. Gombrowicz observa tão bem cm seu
romance Ferdydurke:
Queiram tomar nota deste assunto para um dever de casa: “Por que as
poesias de Jules Slowacki, este grande poeta, contém uma beleza imortal
que desperta o entusiasmo?"
Neste momento da aula, um dos alunos movimenta-se nervosamente e
lamenta-se:
Mas, quanto a mim, eu não me entusiamo mesmo! Eu não estou nem
um pouco entusiasmado! Isto não me interessa! Não posso ler mais de
duas estrofes, e nem isso; isto não me interessa (...).
Como é que isto pode não entusiasmar vocês, já que eu expliquei a
vocês mil vezes que isto os entusiasmava?
Aprender... Sim, Mas Como? 87

- Mas a mim, isto não entusiasma.


- Isto só diz respeito a você, Galkiewicz. Parece que falta a você inteli­
gência. Os outros estão entusiasmados.
- Palavra de honra, ninguém se entusiasma. Como é que isto seria possí­
vel, já que ninguém lê isso, exceto nós, na escola, e assim mesmo
porque nos obrigam (...).
- Galkiewicz, tenho uma esposa e um filho! Tenha pelo menos pena do
meu filho!”2.
Entre a indiferença e a loucura, a renúncia de ter o menor domínio
sobre o desejo de outrem e a vontade de controla- lo, será que resta ainda
um lugar para uma “gestão pedagógica do desejo”, e como é que ela pode
fugir dos graves desvios que a ameaçam? Antes de esboçar uma hipótese,
gostaríamos de descrever brevemente as diferentes concepções, formula­
das ou implícitas que, sobre essa questão, estão presentes no pensamento
e nas práticas pedagógicos.

Quando se examinam as diferentes articulações do desejo e


da aprendizagem

• O mais simples é, certamente, ignorar o desejo. O professor ensina, não


tem que se preocupar com aquilo que o aluno quer, procura ou pensa.
Cada um pode receber, em virtude de uma liberdade interior que não é
questionável, o saber dispensado. O sujeito pode decidir se está disponível
a ele, em nome de um claro interesse maior que o faz renunciar aos seus
caprichos do momento... Mas, na realidade, essa posição, envolta em uma
respeitabilidade totalmente cartesiana, por decretar de maneira abstrata a
suspensão do desejo, promove o seu mais amplo exercício; por ignorá-lo,
ela o deixa agir com toda a força. Na verdade, só atingirão o saber aqueles
que precisamente o vêem como desejável, a ponto de sacrificar por ele
interesses mais imediatos. Não escolhem assim a razão em troca do desejo,
mas exercem sua razão para comparar dois desejos e escolhem aquele que
lhes parece o mais promissor. Neste sentido, mesmo que essa escolha seja
racional, escolhe-se sempre um desejo em troca de um outro, um desejo
cuja satisfação será, sem dúvida, mais tardia, mas também mais durável... e
aqueles que recusam adiar o prazer do momento “assumem, como se diz,
suas responsabilidades”! Mas poderíam fazer de outra forma? Teoricamente
sim. Nada impede que se prefira o latim à estória em quadrinhos, a mate­
mática à telenovela. Mas o que exigem essas preferências senão a promessa
de satisfações futuras desde já entrevistas? E como podem ser entrevistas
quando ninguém, no seu meio, as possuir, quando lhe foram designadas,
durante muito tempo, como inacessíveis ou quando a ausência de perspecti­
vas econômicas e sociais não pode deixar de fazer com que elas lhe pare-

L
88 Pbilippe Meirieit

çam um logro? O erro aqui é confundir um discurso normativo, sem dúvida


útil, do qual o educador nào pode mais fugir e através do qual estimula o
aluno a direcionar suas escolhas para objetos culturais, com a descrição de
uma realidade: convidar ao exercício da razão não deve impedir a observa­
ção de que as condições para esse exercício nem sempre estão reunidas e
que, neste plano, os alunos são particularmente desiguais. “O gosto pela
matemática (...) não se distribui de uma forma qualquer no campo social”,
observa D. Hameline3. Ignorar esse fato é resignar-se a ele.
• Portanto, os partidários da racionalidade, escandalizados com o fato
de que se possa apenas fazer alusão ã existência ou ã ausência do desejo
de aprender, encontram, na outra extremidade, aqueles que pretendem
respeitar totalmente esse desejo em nome do velho ditado segundo o qual
“gostos e cores não se discutem”. Como é evidente, dizem eles, que nada se
faz sem desejo, mas que o desejo é uma questão de personalidade e não
deve ser manipulado, a tarefa do educador é a de aguardar a emergência
do desejo, para então colocar-se a seu serviço. Tal é, com algumas diferen­
ças, a posição que A.S. Neill tentou pôr em prática em Summerhill'; tal é,
implícita ou declarada, a posição de todos aqueles que temem acima de
tudo entravar a espontaneidade ou contrariar o “natural” da criança... Aliás,
sabe-se que essa posição é insustentável e que nunca foi verdadeiramente
mantida: colocá-la em aplicação significaria renunciar ao próprio projeto de
educar ou - o que é a mesma coisa - postular que a educação é um proces­
so natural no qual o educador deve simplesmente fornecer os objetos cul­
turais quando estes constituem uma solicitação explícita. Tem-se a consci­
ência de que as experiências que foram inspiradas por esse princípio só
foram salvas da falência porque, em outro lugar, o desejo pudera emergir
ou porque, na escola, o carisma de um professor era tal que, para obter seu
amor ou sua estima, se decodificava e compreendia suas expectativas se­
cretas. Acredita-se que tais procedimentos selecionam inevitavelmente se­
gundo critérios invisíveis e confirmam a divisão social dos saberes... E no
entanto, essa posição é mantida mesmo assim, muitas vezes, como a refe­
rência, posição ideal para a qual deveriamos tender e que só deveriamos
abandonar a contragosto, porque a realidade nos impõe acordos, ou mes­
mo comprometimentos. O fato é que, mais uma vez, não estamos elucidando
o estatuto daquilo que afirmamos e que estamos passando facilmente de­
mais, ao contrário de antes, de um discurso descritivo a um discurso
normativo: enfatizar a função do desejo na aprendizagem não pode signifi­
car a subordinação de toda aprendizagem aos desejos já existentes, a não
ser sob pena de uma terrível simplificação e por confundirmos o processo
e o projeto, o método e o objetivo.
Não se pode, portanto, nem propor algum saber sem levar em conta o
desejo, nem sacralizar o desejo para submeter a ele todo saber. Ambas as
teses, na verdade, fazem valer “o desejo de saber” segundo uma ordem na
qual o pedagogo renuncia a agir e que será, assim, profundamente determi-
Aprender... Sim, Mas Como? 89

nada pelo sistema das expectativas sociais e pelos processos de identifica­


ção que torna possíveis. Poder-se-ia concluir com uma certa rapidez que a
solução se encontra na busca daquilo que pode suscitar o desejo de saber...
mas um pouco rápido demais, sem dúvida, pois o pedagogo tem mais um
coelho em seu chapéu.
• Ele é insuperável, por exemplo, a exercitar sua inteligência com sutis
distinções: dessa forma, sabe distinguir os “desejos superficiais” dos “dese­
jos autênticos” e, ao mesmo tempo em que nega os primeiros, exalta os
segundos5. A dificuldade nesse caso está no fato de que, miraculosamente,
os interesses “profundos” sempre coincidem com o seu projeto cultural e
estão de acordo com o programa que deve ensinar ou que corresponde
melhor a sua concepção do homem e da sociedade. Os “interesses superfi­
ciais”, por outro lado, são aqueles que foram suscitados por condiciona­
mentos diversos que, de acordo com as épocas e as ideologias, poderão ser
atribuídos à família e seus preconceitos, ao meio social e seus arcaísmos, ao
meio econômico e suas solicitações publicitárias; o interesse pelo rock e
pela moto é, como se sabe, totalmente “superficial” em um aluno; deve-se
à influência excessiva da televisão. Se vier a descobrir a geologia ou a
literatura, ver-se-à o seu entusiasmo pelo jurássico ou pela obra de Malraux...
o que prova incontestável mente onde estavam os seus interesses “profun­
dos”! O raciocínio não é novo; já o vimos ser exercido quando se tratava de
negar o obscurantismo familiar para propor os valores seculares ou de
rejeitar as tradições rurais para valorizar o sistema urbano de salário. Ele se
explica, sem dúvida, pelo fato de ser exercido por aquele que está “do lado
da cultura” ou de “sua cultura”, aquele para quem o saber elaborado surgiu
efetivamente como uma libertação, liberando-o de seus preconceitos e for­
malizando uma experiência que ele não pudera, até então, dominar e que,
enfim, sua cultura lhe dá os meios para compreender. Certamente, as cultu­
ras de referência vão mudar com o tempo, mas todas elas se caracterizam
pela capacidade que terão de romper com a experiência, ao mesmo tempo
em que a explicam e a tornam legível. Nesse sentido, o acesso à cultura
comporta bem esta “satisfação específica” de que fala G. Snyders, “a satisfa­
ção da cultura elaborada, o confronto com o mais bem sucedido, o que
exige as condições particulares do sistemático”6.
Ora, se não se pode contestar isso, o tratamento pedagógico que resul­
ta dessa teoria está longe de ser simples. Teoricamente, todo mundo está
perfeitamente de acordo quanto à fórmula: é preciso fixar-se no desejo exis­
tente, por mais superficial que seja, para abrir novos horizontes e assim
fazer com que nasçam, por “sobreposição”, novos desejos mais conformes
com um projeto cultural... Assim, constróem-se, como mostra J. Filloux,
“cadeias analógicas através das quais as coisas (interesses, necessidades,
etc.) se articulam, adquirem sentido no caminho do desejo que leva a um
conhecimento transfigurador do real”7. Mas, na prática, isso se torna mais
complicado: por um lado, porque nem todas as disciplinas de ensino e nem
90 Pbilippe Meirieu

todos os conteúdos se prestam da mesma forma a um tal tratamento e que,


às vezes, sào necessárias ginásticas incríveis para articulá-los a um desejo
ou a um interesse imediato do aluno; por outro lado, porque, quando se
consegue isso, as desilusões estão muitas vezes na medida das esperanças:
assim, observam-se professores que trabalham a partir de estórias em qua­
drinhos ou de letras de músicas que pedem comentários em língua estran­
geira sobre a moto ou que acompanham seus alunos ao cinema para ver o
último filme lançado e sobre o qual esperam poder aplicar exercícios e
pesquisas... Mas os alunos percebem logo o caráter um tanto quanto super­
ficial da aplicação e alguns aceitam mal, passado o primeiro momento de
sedução, o fato de ver suas preocupações, sua sensibilidade, as coisas que
mais estimam reduzidas a simples suportes de aprendizagens escolares.
Logo, caminha-se, às vezes, para uma alternância sutil entre a simples escu­
ta das preocupações dos alunos e a proposta paralela de objetos culturais
que permanecem para eles totalmente heterogêneos; a sala de aula ou o
estabelecimento clivam-se assim em dois domínios, um onde o prazer é
possível, mas a cultura está ausente, o outro onde a cultura é imposta e
encontra os impasses que já observamos. Seja como for, o objeto cultural
perde então todo o seu sentido; ele é desinvestido pelo desejo ou monopoli­
zado por alguns, enquanto que a experiência primeira, não se beneficiando
com seu aporte, continua deixando-se levar pelos clichês e diluindo-se nas
banalidades. Enquanto que se desejava estabelecer uma continuidade, apoiar-
se em desejos existentes para neles articular objetos novos, divide-se simples­
mente o tempo entre o respeito dos primeiros e a imposição dos segundos.
• Mas é raro que essa divisão seja fácil e, em geral, a divagem não
tarda a desvendar sua verdadeira natureza: chega-se muito depressa, de
fato, a subordinar a satisfação do desejo ã absorção dócil de conteúdos
culturais. Suspende-se então a consideração do interesse do aluno na exe­
cução de uma aprendizagem fastidiosa. A posição, é claro, é inconfessável
e raros são aqueles que ousam argumentá-la; o que não impede ninguém
de utilizá-la abundantemente, tanto com os alunos quanto com os filhos. É
sem dúvida por isso que resistiriamos a recusá- la, fingindo ignorar que,
tantas vezes, recorremos a ela e que, amanhã, em pouco tempo talvez, nos
entregaremos, na falta de algo melhor, a esse comércio banal. Consolamo-
nos, entretanto, ao dizer que, obrigando o sujeito a uma prática que ele não
teria iniciado sem a chantagem a qual foi submetido, podemos talvez fazer
com que a descubra e esperar que nela encontre prazer... Posição menos
absurda do que parece quando relacionada à nossa experiência pessoal.
Posição em que se sacrifica a pureza do procedimento pela eficácia do
resultado, mas que, sem dúvida, tem o mérito de mostrar-nos, ainda que
seja tão criticada, a direção certa: a que consiste não em ignorar o desejo,
sacralizá-lo, desvirtuá-lo, tampouco em dele tirar proveito, mas sim a que
consiste em criar as condições para sua emergência. É claro que, como já
insistimos o bastante8, nenhum desejo pode nascer do nada e, se não for
Aprender . Sim, Mas Como? 91

articulado ao “já existente”, praticamente não tem chance de surgir. Mas


que articulação que fuja aos desvios que acabamos de apontar podemos
imaginar?

Quando se mostra que a tarefa do professor é incentivar a


emergência do desejo de aprender, ou seja, “criar o enigma”

Denunciou-se, muitas vezes e com razão, a confusão entre o ensino-educa-


ção e o ensino-animação9. E é verdade que as duas atividades não obede­
cem a mesma lógica: com efeito, se pudermos conceber que a animação se
satisfaz com uma simples proposta de objetos culturais e que se coloca a
serviço da solicitação dos indivíduos, a educação, por sua vez, tem como
tarefa tornar essa solicitação possível efetuando uma iniciação sistemática,
pondo todos os sujeitos em contato com esses objetos culturais, esforçan­
do-se para mostrar-lhes o interesse desses objetos, para tornar possível, na
vida adulta, escolhas verdadeiras. Sem um ensino sistemático, a liberdade
do sujeito é uma liberdade do nada; não pode escolher entre ouvir Mozart
ou ler Giraudoux não se pode apaixonar pela física ou se interessar pela
história, se não teve a oportunidade de conhecer tudo isso um dia e se não
experimentou o prazer disso. “Toda a oferta de bens culturais — por mais
atenta que esteja a levar cm conta as clivagens sociais - termina cristalizan­
do ou até mesmo acentuando as diferenças, na medida em que a utilização
desses bens é determinada pela capacidade de cada pessoa para recebê-
los”, explica B. Schwartz10. Sem um ensino sistemático, a animação é redu­
zida a interessar apenas alguns participantes profissionais, a reproduzir as
desigualdades sócio-culturais que, no entanto, na maioria dos casos, diz
combater. O obrigatório aqui é a garantia do exercício da liberdade, o
ensino sistemático, a condição de escolhas racionais.
Mas é necessário ainda que esse ensino não afaste as crianças dos
objetos culturais que apresenta, é necessário ainda que assuma explicita­
mente a função de tornar esses objetos desejáveis. Ora, se é certo que não
se pode desejar aquilo que se ignora, também é certo que se deixa de
desejar aquilo que se possui; o poeta bem o sabe, ele quem saboreia a
plenitude do ato suspenso e suplica o ser amado:
“Ne hâte pas cet acte tendre
Douceur d’être et de n’être pas,
Car j’ai vécu de vous attendre
Et mon coeur iTétait que vos pas”. 11
O paradoxo do desejo deve-se, na verdade, ao fato de que o objeto
desejado deve ser, ao mesmo tempo, conhecido e desconhecido, que é
preciso adivinhar os seus contornos, entrever o seu segredo, mas ele deve
92 Philippe Meirieu

permanecer escondido e o segredo não deve ser penetrado. Se o papel do


professor é fazer com que nasça o desejo de aprender, sua tarefa é “criar o
enigma” ou, mais exatamente, fazer do saber um enigma-, comentá-lo ou
mostrá-lo suficientemente para que se entreveja seu interesse e sua riqueza,
mas calar-se a tempo para suscitar a vontade de desvendá-lo. Ora, acredita­
mos muitas vezes estar prestando serviço ao outro, em suas aprendizagens,
quando a ele revelamos “o segredo”: porque nós mesmos, quando apren­
demos, deparamo-nos com o que tomamos por dificuldades, porque tive­
mos então que buscar a informação ou a solução e, em nosso pensamento,
teríamos ido mais depressa, se elas nos tivessem sido fornecidas sem que
precisássemos procurá-las, porque somos vítimas desta ilusão retrospecti­
va... acreditamos estar favorecendo outrem privando-o desse tempo de busca,
dando-lhe aquilo que deveria tentar encontrar sozinho. Praticamos então
uma pedagogia tagarela que, ao invés de suspender a explicação e fazer
com que nasça o desejo, antecipa a solicitação e mata o desejo dentro do
ovo, antes mesmo de sua eclosão. Em pedagogia, ao contrário de muitas
outras áreas, é preciso sempre dizer “muito e não o bastante”, é preciso
levantar uma ponta do véu, mas apenas uma ponta para não desmobilizar
o sujeito. E preciso, para retomar aqui uma expressão que já utilizamos,
colocá-lo em uma “situação-problema”12 acessível e ao mesmo tempo difí­
cil, que ele possa dominar aos poucos, sem explorá-la de uma só vez, nem
dispor da solução antecipadamente. É no momento em que o aluno tem o
sentimento de que pode conseguir, em que entrevê uma hipótese, mas
ainda não consegue atingi-la e resta algo a fazer, que inicia sua ação, inicia
sua ação para penetrar o segredo.
O desejo nasce assim do reconhecimento de um espaço para investir,
de um lugar e de um tempo para estar, crescer, aprender. Ele não se engre­
na necessariamente de maneira mecânica em um desejo já existente, articu­
la-se antes a um mistério que é preciso ser elucidado e ao qual o sujeito se
sente em condições, ainda que timida ou mediocremente, de trazer um
pouco de luz. Paradoxalmente, portanto, são antes as aquisições anteriores
que são determinantes neste caso: é necessário que o sujeito disponha de
alguns instrumentos para que possa enfrentar a obscuridade, e é isto que o
professor deve buscar com prioridade: apoiar-se naquilo que os alunos
sabem e sabem fazer e sugerir, a partir daí, o que poderíam saber. Criar o
enigma com o saber; criar o saber com o enigma. Entrever o futuro questi­
onando o “já existente”, construir o futuro apoiando-se no “já existente”. Na
verdade, isso não é senão uma “situação-problema”: um conjunto de dados
que dominamos — o que sabemos — e uma situação que, por outro lado,
cria problema - o que não sabemos - um jogo de presença/ausência, de
conhecimento/ignorância, que gera uma aspiração, suscita um desejo. Um
jogo permanentemente inacabado, pois é verdade que quanto mais se sabe
mais se deseja saber, e que a solução, contra qualquer expectativa, aumenta
sempre o enigma.
Aprender... Sim, Mas Como? 93

Quando se sugere que o enigma só vive em uma relação em


que o professor se obriga a “variar a distância”

Há, no entanto, enigmas que, como o assunto do dever de casa sobre a


poesia de Jules Slowacki, não entusiasmam os alunos ou, até mesmo, os
mantêm totalmente indiferentes. É porque o enigma é uma concha vazia,
apenas intrigante, simplesmente objeto de um breve momento de espanto
para aquele que não sabe que “é bom saber”13. O enigma morre quando
ninguém está lá para testemunhar o prazer que se pode encontrar tentando
resolvê-lo, ele se dilui em um pequeno dispositivo insignificante quando o
adulto não assume o prazer de saber, a satisfação de buscar. “Os pedagogos,
explica J. Guillaumin, foram os primeiros a reconhecer, bem antes dos psi­
cólogos modernos, que a admiração e o desejo de imitar constituíam os
mais poderosos recursos da aprendizagem escolar”11. É sem dúvida por isso
que o encontro com um modelo adulto de referência, um modelo de saber
vivo que se elabora no prazer de sua busca, é tão determinante. Certamen­
te, hoje não se vê com bons olhos falar em modelo e o termo às vezes faz
rir, quando não suscita protestos indignados: quem pode ter a audácia,
neste período de incerteza e de perda de consenso, de ter-se como modelo?
Que orgulho excessivo estaria provando! Mas há aí a confusão da modéstia
indispensável em todo educador com o abandono de toda referência, a
perda do menor ponto de referência. Sem dúvida, é bom que o educador
se recuse como modelo, mas isso só tem sentido para a criança e só pode
ajudá-la a crescer se declarar seus próprios modelos e se, ao mesmo tempo,
manifestando sua capacidade para admirar, convidar o outro a ir além da­
quilo que representa apenas de maneira imperfeita, para ir bem mais adian­
te. Nesse sentido, os verdadeiros modelos são aqueles que têm um outro e
que não se apresentam como uma imagem rígida a ser imitada, mas como
uma dinâmica capaz de inspirar outros. Uma educação que ignorasse esse
processo, que forçasse os educadores a abandonar o que J. Guillaumin
chama de “o desnivelamento entre o professor e o aluno”15, ou ainda, que
invertesse o sentido deste16, perdería toda chance de criar o enigma e de
suscitar o desejo de saber.
Mas, simetricamente, uma educação em que o adulto, fixado à contem­
plação de si mesmo e à satisfação de ter enfim fugido à infância, jogasse a
criança em uma alteridade radical e lhe comunicasse o sentimento de uma
total estranheza não poderia mobilizar nenhuma energia. O desnivelamento
só pode funcionar como apelo se estiver inscrito em uma base de comuni­
dade; a diferença só desencadeia um esforço de identificação se o aluno a
perceber como um futuro possível para ele. Um modelo não me põe em
ação a não ser que eu possa esperar, um dia, parecer-me com ele, isto é,
que me considere, desde já no momento, apesar de meu estatuto diferente,
em comunidade natural com ele.
94 Pbilippe Meirieu

Eis o paradoxo da relação educativa; ela requer que o Educador seja


percebido como estando ao mesmo tempo muito próximo e muito distante:
próximo o bastante para que se possa ser como ele um dia, distante o
suficiente para que se tenha a vontade de ser como ele um dia. Eis a dificul­
dade de sua ação: manifestar, sem escrúpulos, sua diferença, mostrar-se na
posição mais bem sucedida e, nesse mesmo momento, manifestar sua ex­
trema proximidade, deixar penetrar a emoção compartilhada, a inquietação
ou o medo, sinal tangível de sua humanidade. Mas também, no momento
da mais respeitosa escuta, na mais empática compreensão, quando se es­
força para estar o mais próximo do outro e quando parece disposto a jun­
tar-se a ele, não esquecer que sempre faz “como se” e que esconder isso
seria a pior das ilusões. E quando se tratar de ensinar, encontrará ainda esta
dupla exigência: anunciar seus objetivos, apresentar o saber com a convic­
ção de quem sabe e quer ganhar a adesão, mas projetar-se também nos
bancos de sua sala de aula, tornar-se aluno de seu próprio saber para
compreender as tentativas e os erros daquele que ainda não sabe.
Assim caminha o professor, navegando na maioria das vezes com vi­
são, retomando a distância quando a proximidade compromete o
desnivelamento, aproximando-se do outro quando seu estatuto e seu saber
ameaçam afastá-lo demais. O aluno, aliás, não se ilude com isso, sensível a
um ímpeto, a uma palavra de compreensão, sensível ainda mais a um ins­
tante de fragilidade, de dúvida, a uma ponta de vulnerabilidade percebida
num segundo de hesitação e que coloca o professor, ainda que de maneira
fugaz, do seu lado. Também não se ilude quando constata tranquilizado
que, no auge do diálogo e quando se sente verdadeiramente compreendi­
do em suas divagações, o professor permanece ele mesmo, não hesitando
em estabelecer limites que julga úteis, em determinar os objetivos que con­
sidera importantes, mesmo que estes não estejam imediatamente ao seu
alcance. Sabe que o professor só pode ser para ele um modelo, como para
qualquer um, que o professor só pode inspirar o desejo de saber, se ele se
preocupar assim em “variar a distância”.

Quando se tenta identificar os pontos fixos que permitem


mediar a relação

O perigo da “relação pedagógica” - F. Oury e os defensores da “pedagogia


institucional” nunca deixaram de repeti-lo - está no fato de que ela possa
ser um fator de regressão, abrir caminho para “identificações massivas de
tipo canibal, para regressões inexplicáveis, para a confusão, para a mistura
dos corpos, para a loucura”17. Compreende-se a preocupação que aqui se
manifesta; avaliam-se bem os perigos que ameaçam uma saía de aula quan­
do nela se estabelecem relações seletivas de mestre a discípulos que absor-
Aprender... Sim, Mas Como?

vem toda a energia do professor, excluem a maioria dos alunos e limitam


estreitamente a circulação do desejo. O grupo inteiro torna-se então um
simples porta-jóias oferecido a alguns “pares” que se formam, mas sós, no
jogo das expectativas recíprocas. As duas partes arriscam assim perder qual­
quer controle de si mesmas, absorvidas pelo fascínio de seus próprios dese­
jos, cegas a qualquer alerta que viria lembrar a existência do outro. É por
isso que, se não é possível dispensar a relação que dá vida ao enigma e
suscita o desejo de resolvê-lo, o que importa é gerir, na medida do possível,
sua distribuição e seus efeitos, introduzindo aí as mediações necessárias.
• A mais ancestral das mediações, a que logo mostrou aos homens
que podia protegê-los contra a divagação da emoção, é sem dúvida o ritu­
al. Impondo uma organização do espaço e do tempo, atribuindo lugares e
codificando gestos e palavras, ele regula a vida coletiva, garante a seguran­
ça de cada um e define as fronteiras de sua ação. Quando surge a tentação
de privilegiar a relação dual, o fascínio recíproco de dois desejos que se
avolumam e se alimentam mutuamente, ele impõe marcar o passo e tomar
distância. O rito não proíbe a emoção, mas permite, pelo menos parcialmente,
controlá-la. Autoriza sua expressão, porque dá a segurança de que não se
poderá ir longe demais. Sem o rito, o professor deveria evitar qualquer
vicissitude relacionai temendo que ela o devorasse inteiro e que fizesse
desequilibrar sua classe em processos de fusão com uns e de exclusão dos
outros...
Mas se todos reconhecem a importância dos ritos escolares, avaliam-se
o seu interesse para estruturar, através do espaço e do tempo, a personalidade
de cada um dando-lhe referências e pontos de apoio, as propostas diver­
gem quando se trata de explorá-los: que pontos comuns encontrar entre
Alain ou Gusdorf18 por um lado, defensores do ritual magistral chegando a
sua sacralização, e Freinet ou Oury por outro, que propõem aos alunos,
através do “conselho”, estabelecer instituições que garantam a reciprocida­
de das trocas? Todavia, observando com mais atenção, não é certo que
essas propostas sejam, no fundo, tão diferentes assim: o que caracteriza,
na verdade, um ritual escolar eficaz é o fato de garantir a cada um a possi­
bilidade de implicar-se e de ao mesmo tempo retrair-se, o fato de ter um
espaço — que não deve ser todo o espaço — e de encontrar um refúgio,
quando estiver ameaçado em sua independência ou em sua integridade.
A organização do espaço deve, portanto, ser de tal forma que cada um
disponha de um território para investir, para apropriar-se, onde instalar os
objetos que lhe são caros e úteis, um território que reconheça como seu, de
onde possa falar e onde possa se fechar. Acredita-se enormemente que o
aluno, ao entrar no primeiro ano do primeiro ciclo do secundário, pode
dispensar um lugar onde deixar sua trilha e que o proteja contra a onipo­
tência de outrem; sem dúvida, pode-se imaginar que, progressivamente,
um espaço mental vai substituir o espaço físico, mas é um engano acreditar
que a mediação poderá desaparecer: é por continuar a existir fora da insti-
96 Philippe Meirieu

tuição escolar, e apenas sob tal condição, que esta poderá progressivamen­
te dispensá-la. De fato, quando o sujeito não tem mais território de referên­
cia, torna-se totalmente vulnerável a todas as solicitações fusionais; sem
esta ancoragem num objeto-seu, algo em que possa se reconhecer um pou­
co, mas que exista no seu exterior para que possa aí se apoiar, deixar-se-á
facilmente captar pelo outro. E o que vale para a organização do espaço é
perfeitamente transponível para a organização do tempo: se este não é
suficientemente ritmado, limitado de tal forma que cada um possa implicar-
se sabendo que poderá logo retrair-se sem ser perseguido, se o tempo é
apenas uniformidade, não pode ser senão totalmente desinvestido ou
neuroticamente superinvestido. Enfim, é a nível dos comportamentos que
o ritual deve também ser introduzido: não se trata de deles excluir toda
espontaneidade, de formalizar chegando ao artifício a menor palavra e o
menor gesto, mas sim de esclarecer suficientemente os limites do possível
para que cada um se sinta seguro e não tema, a cada instante, o extravasa-
mento da emoção ou a erupção da agressividade: cabe à regra proteger aí
cada um contra si mesmo e contra os outros, impondo a distância necessá­
ria. E a distância é, muitas vezes, simplesmente a obrigação de suspender o
impulso, pois é exatamente nessa suspensão que se exerce a inteligência...
isso é o que tão bem compreendeu J. Korczak que, na “Casa dos Órfãos” de
Varsóvia, havia instaurado a fórmula de “correio”; podia-se, através disso,
comunicar uma questão particular, uma queixa contra um par ou um educa­
dor, um insulto ou até mesmo uma ameaça: “Escreva e veremos”, dizia
Korczak, observando que, graças a esse sistema, as crianças aprendiam a
esperar ao invés de exigir no mesmo instante, a avaliar a situação, a refletir e
justificar uma decisão, a ter acesso a uma expressão oral mais serena e, portan­
to, mais eficaz19. A mediação do ritual, neste caso, está longe de ser vã.
Dessa forma, poder-se-ia encontrar, sem dúvida, tanto em Alain quan­
to em Freinet, mas adaptados a idades e públicos diferentes, os três níveis
de ritualização sem os quais, ao nosso ver, a classe não pode evitar as
transferências maciças e devoradoras: o ritual da organização do espaço,
através do qual cada um apropria-se de um território, estabelece suas ferra­
mentas de trabalho, reserva para si um lugar de onde possa manifestar-se e
onde possa retrair-se; o ritual da distribuição do tempo, que determina a
posição respectiva das atividades individuais, duais, coletivas, que impõe
os momentos de silêncio em que são possíveis a evocação e a reflexão; e,
enfim, o ritual de codificação dos comportamentos, através dos quais são
instauradas as regras que garantem a segurança física e psicológica das
pessoas. Acreditamos ainda que convém que esses rituais constituam o
objeto de uma atenção explícita e que sejam apresentados, explicados,
expostos em sala de aula ou escritos no quadro, retomados e retrabalhados
permanentemente. Acreditamos que o professor deve ter a preocupação
constante de mantê-los vivos e que só pode consegui-lo se estiver atento e
implicado nessa tarefa. Isso lhe parecerá, às vezes, tão trivial quanto nossas
Aprender .. Sim, Mas Como? 97

palavras banais... mas não há a certeza de que, neste domínio, as banalida­


des não sejam essenciais.
• Apesar de sua importância e do fato de que aqueles que a recusam
utilizam-na enormemente, a mediação pelo ritual pareceu muitas vezes “re­
acionária”, o que levou os pedagogos, particularmente no contexto da
Éducation Nouvelle, a ela preferir a mediação pelo projeto. Pensava-se as­
sim substituir regras “naturais” de funcionamento, emergindo do próprio
projeto e de suas exigências, ao que se apresentava como a boa vontade do
professor; isso significava esquecer que o projeto, mesmo que a classe
tenha participado de sua escolha, é finalmente retido e recusado pelo pró­
prio professor e, na maioria das vezes, precisamente, em função das regras
que ele pode determinar e de seu grau de aceitabilidade. Ao escolher a
redação de um jornal ao invés da organização de uma reunião dançante,
está sendo tão diretivo quanto ao impor simplesmente uma boa ortogra­
fia... mas essa diretividade é mediada pelo projeto.
O princípio aqui consiste em introduzir na relação o referente, objeto
concreto no qual se possam experimentar as intenções recíprocas e que
venha regular a circulação do desejo20. A tarefa realizada em conjunto per­
mite então a cada um “colocar-se em jogo a cerca de” uma realidade exter­
na à relação dual que mantém com o professor. Na medida em que cada
um se dedica a uma atividade precisa, útil a todo o grupo, identificada por
um produto, ainda que pequeno, não pode mais ser, da mesma forma,
objeto de fascínio ou de repulsa; de fato, existe entre ele e o outro a medi­
ação da tarefa que o preserva e ao mesmo tempo lhe fornece um ponto de
apoio: ela o preserva dos ataques e da sedução pura que vêm, de certa
forma, se deparar com o produto, serve de ponto de apoio para que possa
remanejar suas identificações, confrontar a imagem que o adulto faz de si
mesmo e do saber com a realidade que enfim apresentam “as coisas” pre­
sentes na sala de aula. E aí está, sem dúvida, o aspecto mais interessante da
mediação pelo projeto: o professor, com efeito, não mais é confundido com
o saber; não pode mais ser idealizado da mesma maneira, já que o objeto
do qual fala, as exigências às quais exorta, as consequências às quais faz
alusão, estão ao alcance de todos. Até então, era preciso acreditar em sua
palavra, agora é possível confrontar suas afirmações com a realidade, uma
realidade que, ao mediar a relação pedagógica, não pode deixar de colocar
as coisas em seu lugar.
Já tivemos a oportunidade, em outra ocasião21, de salientar as dificul­
dades de um tal empreendimento e, sobretudo, o perigo, para que cada um
tenha uma tarefa no grupo, de dividir estas últimas em função das compe­
tências pré-estabelecidas e, com isso, de esvaziar qualquer aprendizagem:
aspirados por uma lógica coletiva, os alunos dirigem-se então para a divi­
são do trabalho, marginalizando, em nome da qualidade do resultado, aqueles
que a comprometem... A mediação pelo projeto pode, no entanto, ser utiliza­
da quando, precisamente, os objetivos de caráter cognitivo são secundários
98 Pbilippe Meiríeit

e quando se trata acima de tudo, por exemplo, de mobilizar o aluno para


um futuro possível, ajudá-lo a encontrar seu espaço dentro de um grupo,
regular relações interpessoais que, em um determinado momento, dentro
de uma sala de aula, perdem-se nas fantasias e geram um extravasamento
incontrolado de afetividade. Mas pode-se, sobretudo, introduzir tempos de
“produção” para fazer com que surjam, a partir de um projeto de fabricação
diante do qual os alunos se encontram, exigências escolares ou conheci­
mentos a serem apropriados. O erro não está no fato de proceder dessa
forma; o erro está no fato de confundir a emergência de um problema com
a aprendizagem de sua solução ou acreditar que a primeira implica automati­
camente a segunda: quando alunos têm uma tarefa a cumprir em conjunto
e que consideram importante, se a dificuldade surgir, tentarão vencê- la
“com economia”, isto é, sem realizar uma aprendizagem que parecerá lon­
ga e cansativa, mas será encontrando alguém ou servindo-se de um objeto
que poderão precisamente evitar a aprendizagem. É por essa razão que a
tarefa do professor é exatamente impedir o encerramento produtivo, mes­
mo que isso o leve a gerar frustração.
Enfim, é particularmente útil, em sala de aula, introduzir com regularida­
de a mediação pelo projeto: centrando os alunos em uma produção, intro­
duz-se um referente que medeia sua relação com o adulto-, este último pode
assim evitar as identificações descontroladas que ligam sua pessoa ao Saber
e criam situações de dependência. Mas esses tempos devem estar precisa­
mente situados em uma progressão: possibilitam a identificação e não a
aprendizagem dominada. Este limite impede que essa mediação se torne a
única usada em sala de aula; ele não pode dispensar nem a mediação pelo
ritual que garante um quadro mínimo, nem a mediação pela avaliação que
deve imperativamente prolongá-lo.
• O leitor provavelmente ficará surpreso com o fato de introduzirmos
aqui o termo avaliação em um capítulo destinado à relação pedagógica. É
porque, hoje, seu uso está essencialmente ligado, por um lado, aos traba­
lhos de docimologia e às tentativas de racionalização dos procedimentos
avaliativos, e por outro, às pesquisas tão fecundas sobre a avaliação formativa
como instrumento de regulagem de um dispositivo de ensino22. Ora, nossa
intenção não é sugerir uma nova definição para esse termo que já apresen­
ta tantas, tampouco propor uma nova forma de avaliação que se viria acres­
centar àquelas já empregadas, mas sim insistir no papel essencial que pode
ter toda avaliação, na medida em que o sujeito dela se apropria e é onde
pode identificar suas aquisições. Na verdade, apesar de todas as precau­
ções que acabamos de descrever e que permitem mediar uma relação dual
cujo caráter dinamogênico e ao mesmo tempo perigoso foi mostrado, é
difícil fugir daquilo que Mélanie Klein nomeia “a identificação projetiva”
que, como mostra J. Oury, pode se tornar “sortilégio, posse do outro atra­
vés de seu interior, esvaziando-o de seu conteúdo, em posição de controle,
de observação quase absoluta”23. Um dos paradoxos da posição de educa-
Aprender... Sim, Mas Como? 99

dor é, na verdade, o fato de que quanto mais ele tiver sucesso, mais repre­
senta um pólo positivo para o sujeito, quanto mais assumir o prazer de
saber e quanto mais comunicá-lo a outrem, mais difícil é desligar-se dele e,
portanto, mais forte é a ameaça de captação. Há nisso, aliás, um fenômeno
que os educadores e muitas vezes os pais percebem confusamente: admi­
ram os professores prestigiosos, reconhecem o seu valor e o seu sucesso,
mas, ao mesmo tempo, fazem pesar sobre os últimos uma suspeita estra­
nha, compreensível de uma certa forma, ainda que injusta na maioria das
vezes: na verdade, o êxito surge aí como o culpado e isso confirma, ao
contrário do que se pensa, a idéia de que aquele que não inspira nenhuma
admiração, que deixa o outro indiferente e que se contenta, no máximo,
em satisfazer os desejos existentes é um “bom profissional”, livre de qual­
quer crítica. Estranho ofício onde, ao invés de proteger-se contra os efeitos
perversos do êxito, promove-se o insucesso, quando não a incompetência!
Ora, há um meio de fugir ao fascínio mais poderoso ou, pelo menos,
de afastá-lo: identificando aquilo que ele permitiu adquirir, desvinculando-
o das condições da aprendizagem, reutilizando-o em outra situação e em
benefício dela. Aquele que sabe sem saber que sabe fica eternamente depen­
dente daquele que o ensinou; poderá apenas mostrar seu saber se isso lhe
for solicitado. Em contrapartida, aquele que sabe que sabe pode mobilizar
seus saberes e seu sauoir-faire, por sua própria iniciativa, em função das
situações diante das quais se encontra. Aquele que sai da sala de aula
sabendo do que é capaz a partir desse momento, aquele que desvia do
olhar do professor para anotar algo que decide reter, aquele que se prende
a um detalhe que pretende verificar, aquele que tenta utilizar em outra
situação e de outra forma o que lhe foi ensinado, aquele que relaciona os
resultados que obtém com a situação que tornou possível sua obtenção é
quem se livra do poder absoluto do mestre. A introdução de um ponto fixo
faz com que a relação assimétrica, mesmo que ele, parcial ou mais ou
menos conscientemente, seja dela tributário, perca seu poder de des-
pojamento: uma ancoragem, mesmo mínima, permite fugir da aspiração.
É por isso que é necessário praticar a avaliação como descontextuali-
zação sistemática e meio de identificar as aquisições. Descontextualizar é
utilizar um conhecimento em uma outra situação, numa ruptura em relação
à situação de aquisição, com outros exemplos, dentro de outro quadro,
dentro de um outro contexto intelectual mas também sócio-cognitivo, ou
até mesmo com outras pessoas; identificar as aquisições significa saber
nomeá- las, exteriorizá-las, ser capaz de colocá-las em prova, sobretudo, à
prova do tempo. Descontextualização e identificação das aquisições: duas
operações estreitamente solidárias que se manifestam reciprocamente, em
uma dinâmica onde se constrói progressivamente um sujeito autônomo.
Duas operações que nada têm a ver com o milagre, mas que surgem quan­
do o professor tem a preocupação com essa referência necessária à terceira
realidade e estabelece alguns dispositivos e instrumentos capazes de encarná-
100 Pbilippe Meirieu

Ia: verificar urna afirmação em um livro ou em um documento, questionar


uma competência externa, realizar uma experiência - por mais modesta
que seja colocar-se em posição de explicar a outrem aquilo que o profes­
sor permitiu compreender, de construir um esquema a partir de uma expli­
cação oral, ter que explicar a um terceiro o que se acaba de apreender são
todos meios modestos para desvincular a aprendizagem daquilo que foi o
seu vetor. Elaborar com os alunos, como sugere G. Nunziati24, os critérios
de avaliação de um objetivo para que possam analisar efetivamente seus
resultados; fazer com que cada criança, ao final de cada dia, escreva, sobre
uma folha grande, aquilo que decide lembrar e que a exponha na sala de
aula, como o faz este ou aquele professor primário; dispor de um livro de
auto-avaliação, de tempo para preenchê-lo e consultá-lo, ser acompanhado
de maneira regular e exigente nessa tarefa; determinar-se a si mesmo, ao
final de um estágio ou de um curso de formação, os três indicadores cuja
contribuição, dentro de um mês ou um trimestre, se poderá verificar... tan­
tas garantias de que a introdução da terceira realidade poderá criar um
espaço, sempre frágil e a ser reinstaurado, de onde a pessoa possa manifes­
tar-se, isto é, onde possa intervir a ética.
Na verdade, a ética não é senão o difícil trabalho em que tento articu­
lar o crescimento de outrem ao meu e em que, criando permanentemente
mediações para não me tornar mediador, permito que ele se liberte de
mim. A ética, diz E. Lévinas, é a exigência essencial que faz com que “me
torne responsável pela responsabilidade de outrem”25.
ro>

Q*
APRENDER
FERRAMENTA Ne 4 - RELACIONAR

Esta ferramenta é, antes de tudo, um suporte à reflexão individual ou


coletiva. Poderá ser utilizada com proveito por um professor que encontra,
com seus alunos, certas dificuldades no domínio “relacionai” (letargia, indi­
ferença, captação por alguns, agressividade, resistências...) Permitirá que
examine então sua atitude e, sobretudo, que preveja os reajustes necessári­
os.
Ainda que diga respeito ao domínio da “relação” e concerna então ao
registro das atitudes, ela faz intervir amplamente a instalação de dispositivos
muito concretos. Aposta-se, neste caso, que estes dispositivos serão capazes
de operar remanejamentos em nível sócio-cognitivo. O professor não tem,
na verdade, com muita freqüência, tempo nem meios para realizar uma
análise de tipo psicológico, afortiori psicanalítica. Em compensação, pode
esclarecer e melhorar sua posição face aos alunos, tentando melhor compre­
ender e dominar a situação pedagógica, e isto não pode deixar de ler efeitos
psicológicos indiretos.

Biblioteca FEUSP
Aprender... Sim, Mas Como? 101

A eficiência de urna tal ferramenta será consideravelmente melhorada se


ela for utilizada por colegas que, na confiança e na exigência recíprocas,
assistem a aulas dadas por uns e outros e procedem coletivamente à análise
do que aí se passou.

1. Fazer do saber um enigma...

Sou capaz de imaginar para criar enigma com


saber, situações-problema ao mesmo tempo
acessíveis e difíceis, isto é...
- onde o aluno pressente que, utilizando o que
já sabe, poderá transpô-las,
- onde não pode desviar facilmente, nem achar
a solução "com economia”?

Tenho a preocupação de identificar Tenho a preocupação de suspender a


aquilo que os alunos sabem ou sa­ explicação, de adiar a resposta, de
bem fazer (na disciplina que ensino e não dar imediatamente a solução às per­
em um plano mais geral), a fim de fa­ guntas que sou levado a fazer? Sei me
zer com que estas aquisições pareçam calar de vez em quando e criar momen­
insuficientes, incompreensíveis, mes­ tos de suspense e de busca pessoal?
mo misteriosas, se não forem esclare­
cidas por conhecimentos mais amplos?

(Para esclarecimentos sobre a noção de situação-problema, ver as ferramentas nQ2


e 6.)

2. Variar a distância com o aluno...

Sou capaz de testemunhar, pelo menos às vezes


e arriscando adiar a urgência dos programas, o
prazer que me dá o saber que eu ensino? Sou
capaz de estar assim suficientemente “afastado”
para suscitar o desejo de identificação e, ao mes­
mo tempo, suficientemente “próximo" para fa­
zer com que esta pareça possível?

- Tenho a preocupação de mostrar, sua busca, aceitando sem escrúpulos


através do que sou (e não somente do sua “diferença”?
que digo), que é bom aprender e co­ — Mas, no mesmo instante em que ma­
nhecer? Posso aceitar ser um “mode­ nifesto minha diferença, minha rique­
lo de saber vivendo na felicidade de za, meu sucesso, será que estou sufici-
102 Pb ílippe i\ leiríet t

entemente atento para não me afastar - Mas, no mesmo instante em que


do aluno e para intoduzir sinais de mi­ estou mais próximo do outro, em
nha proximidade com ele? compreensão ou em cumplicidade
- Tenho a preocupação de mostrar, com ele, será que estou suficiente­
através do que faço e digo, minha mente atento para não lhe dar a ilu­
proximidade com o aluno, de ma­ são de identidade, será que ouso
nifestar os sinais de uma comunidade sustentar meus objetivos, minhas
com ele, o testemunho, mesmo exigências?
efêmero, de uma humanidade dividi­
da?

3. Mediar a relação...
r*
• Estou atento em criar “rituais escolares” que permitam que cada um se
implique e se retrate no funcionamento da sala de aula, identificar-se sem ser vítima
de captação?
— rituais de organização do espaço que permitem
que cada um se aproprie de um território,
— rituais de divisão do tempo que organizam mo­
mentos de trabalho individuais, momentos de informa­
ção coletiva e momentos de trabalho em grupos,
— rituais de codificação dos comportamentos que
asseguram a segurança física e psicológica dos indiví­
duos.
Tenho a preocupação de apresentar estes rituais reduzindo sua parte de implícito
e de renegociar regularmente suas modalidades e sua aplicação?
• Estou atento em utilizar “projetos” (tarefas que mobilizam a classe ou um
grupo numa produção coletiva) para fazer emergir necessidades de conhecimentos e
dar assim ao saber uma outra referência além de mim mesmo? Esforço-me, então,’
para limitar estes projetos a este objetivo e para articular a ele procedimentos de
apropriação individual?
• Estou atento em proceder com avaliações regulares que permitam
descontextualizar e reconhecer as aquisições?
, — descontextualizar confrontando com outras fontes e utilizando os
I conhecimentos em outros planos,
| — reconhecer nomeando e identificando as aquisições, bem como sua
retenção a médio e longo prazos.

Notas
1. V. Jankélévitch, Leje-ne-sais-quoi et le presque-rien, 1.1, Le Seuil, col. “Points”, Paris, 1981,
p. 53 e 74.
2. W. Gombrowicz, Ferdydurke, Christian Bourgois, col. “10/18”, Paris, 1977, p. 50 e 51.
3. Le domestique et raffrancbi, Éditions Ouvrières, Paris, 1977, p. 134. D. Hameline explica
que “a própria circulação dos conhecimentos (e, portanto, sua transmissão) supõe, subjacente
Aprender... Sim, Mas Como? 103
a seus circuitos, uma circulação dos gostos e das vocações que não é mais do que a
domesticação das pulsões para objetos culturalmente valorizados tanto na sociedade quanto
nas preferências individuais” (Jbid).
4. Cf. P. Meirieu, L’École mode demploi, ESF, Paris, 1986, p 43 a 48.
5. G. Avanzini faz a mesma análise a respeito da noção de “interesse” nos métodos ativos; cf.
Immobilisme et nouation dans 1’institution scolaire. Privat, Toulouse, 1975, p.59.
6. G. Snyders, La joie ã 1’école, PUF, Paris, 1986, p. 322.
7. J. Filloux, Du contrat pédagogique, Dunod, Paris, 1974, p. 335
8. Cf. primeira parte, cap. 1.
9. Cf. G. Snyders, La joie à 1’école, op. cit.
10. B. Schwartz, Léducation demain, Aubier-Montaigne, Paris, 1973, p. 56.
11. P. Valery, “Les pas”, Charmes, Poésies, Gallimard, Paris, 1966, p. 59- Tradução: Não
precipite este ato terno / Doçura de ser e de não ser / Pois vivi de sua espera / E meu
coração era só os seus passos".
12. Cf. primeira parte, cap. 2. Cf. também ferramenta n°2
13. Cf. J.-P. Dolle, Monsieur le Président, ilfaut queje uous dise, Lieu commun, Paris, 1983, p.
116.
14. J. Guillaumin, “Aspects de la relation maitre-élève”, Bulletin Binet-Simon, n° 472, 1962,
p. 9.
15. J. Guillaumin, “Aspects de la relation maitre-élève”, art. citado.
16. Assim G. Avanzini observa que hoje “os adolescentes são aqueles que seus “educadores"
imitam e aos quais tentam de uma forma ou de outra se alinhar. Assim deu-se,
subrepticiamente, uma gigantesca inversão das influências...” (“La relation éducative
aujourd’hui”, Le Supplément, Le Cerf, n° 150, outubro de 1984, p. 65 a 84, p. 79).
17. F. Oury, in C. Pochet, et al., L année dernière, j étais mort, Matrice, Vigneux, 1986, p. 124.
18. Cf. G. Gusdorf, Pourquoi des professeurs?, Payot, Paris, 1963-
19. J. Korczak, Comment aimer un enfanfí, Laffont, Paris, 1978, p. 289 a 291-
20. Cf. F. Oury e A. Vasquez, Dela classe cooperaiiue à la pédagogie institutionnelle, Maspero,
Paris, 1971.
21. Cf. P. Meirieu, Itinéraire des pédagogies de groupe, Apprendre en groupe? 1, Chronique
sociale, Lyon, 1984.
22. Cf. L’éualuation en question(s), CEPEC, ESF, Paris, 1987.
23. J. OURY in C. Pochet et al., L’année dernière, j’étais mort, op. cit., p. 190.
24. Cf. Collège, n° 2, março de 1984, CRDP de Marselha.
25. Citado por J. Oury, op. cit., p. 173.

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