Meirieu - Aprender ... Sim, Mas Como - Introdução Até o Cap 03
Meirieu - Aprender ... Sim, Mas Como - Introdução Até o Cap 03
Meirieu - Aprender ... Sim, Mas Como - Introdução Até o Cap 03
“Eu penso que é a melhor profissão do inundo; pois que sefaça bem ou
que sefaça mal, somos pagos da mesma forma. (...) Um sapateiro, fa
zendo seus sapatos, não podería perder um pedaço de couro sem que
tivesse que pagar por isso, mas aqui se pode perder um homem sem que
isso custe..."
Molière,
Le Médecin malgré lui.
Todos sabem que se pode aprender sempre e em todo lugar e que esta
atividade curiosa não se deixa limitar aos locais que lhe são atribuídos. Os
professores bem sabem que ela tem ainda cada vez mais tendência a fugir
da sala de aula ... É certo que os “bons alunos” ainda manifestam por ela
um respeito merecido, mas, certamente, nem por isso deixam de pensar
que “o essencial está em outro lugar”, nas obras de vulgarização e nas
revistas especializadas, em sua televisão ou em seu minitel *, junto a um
vizinho, o qual, provavelmente, tem menos diplomas que seu professor,
mas que tem tempo para ouvi-los e responde precisamente a suas pergun
tas. Os outros, “os menos bons”, já haviam anunciado, há algum tempo, aos
seus professores, às vezes ruidosamente, às vezes com a discrição daqueles
que não se sentem em seu lugar e que se eclipsam esforçando-se para não
incomodar, que as lições e os exercícios escolares não lhes interessavam
mais e que preferiam “ver em outro lugar”, no cinema, no campo, ou no
porão de um amigo que desmonta sua motocicleta.
' N. de T.: Terminal de consulta de bancos de dados comercializado por P.T.T. (Postes, Télégraphe,
Téléphone), empresa francesa de correios e telefonia.
16 Pbilippe Meiricu
k
18 Philippe Meiríeu
• Na França, o ensino secundário é dividido em primeiro ciclo - “collège" - e segundo ciclo - “lycée".
Aprender... Sim, Mas Como? 19
elos, como avaliar o alcance das soluções propostas e regular a sua aplica
ção. Também não se mudará a escola confiando a inovação a alguns indi
víduos cuja influência pessoal, muitas vezes incontestável, vem acompa
nhada de um modo de ação também pessoal e muito mais contestável no
qual são diariamente desprezados os valores de respeito por outrem, de
tolerância e de abertura que, por outro lado, invocam7. Em compensação,
mudar-se-á talvez a Escola se os problemas forem colocados em termos de
competência profissional dos professores, de qualidade do serviço presta
do, de eficácia da gestão das aprendizagens. E não é para obedecer ao mito
da empresa que se utiliza aqui o termo “gestão”, nem é para santificar tudo
o que vem do Japão que se evocam os “controles de qualidade”. Há muito
tempo que professores primários e secundários questionam os problemas
de gestão da classe, não para buscar os meios de nela trabalharem tranqüi-
los, mas para descobrir que instrumentos podem ser eficazes, como regular
o seu uso e trabalhar, juntamente com os alunos, para gerir esse sistema
complexo de limitações e de recursos que juntos constituem8. Há muito
tempo que professores primários e secundários se reúnem, não para fazer o
inventário detalhado daquilo sobre o que não têm nenhum poder, mas
para buscar, na análise de suas práticas, aquilo que é possível melhorar. É
claro que mantêm ainda alguns complexos e não ousariam se proclamar
“controles de qualidade”... e no entanto, não há nenhuma razão para pen
sarem que a gestão do aprender seja um ofício menos respeitável do que a
gestão da energia ou a das finanças; é, em todo o caso, uma tarefa igual
mente essencial ao futuro de uma nação.
Avalio tudo o que esse discurso pode ter de provocador para os edu
cadores; sei que estes não gostam muito de serem assim comparados a
profissões que, embora mais valorizadas socialmente, parecem-lhes menos
“nobres” por não trabalharem, como a deles, com pessoas; aceito que,
quando alguém se dedica legitimamente à tarefa de educar, fique chocado
com o que possa parecer uma redução tecnicista de sua missão... Mas não
seria demais lembrar que, no que diz respeito à Escola, não há “boa educa
ção” sem uma boa aprendizagem: como se poderia pensar que a Escola
poderia dar um algo mais de maneira credível se realiza mal aquilo para o
que é feita antes de mais nada? Além disso, parece evidente que toda apren
dizagem bem sucedida, realizada de maneira lúcida, tendo encontrado os
meios de identificar suas aquisições e de regular seus métodos é autentica
mente educativa9. Os professores, aliás, concebem isso muito bem. E no
entanto, resistem... Todos nós resistimos à idéia de que o educador possa
ser definido como um profissional administrador da aprendizagem; e até
mesmo, como diria o outro, “há resistência” de todos os lados.
- Primeiro, há resistência da parte de nossas representações da apren
dizagem e das possibilidades do aluno que aprende; é por isso que consa
graremos a primeira parte desta obra ao exame de algumas velhas questões
■
20 Philippe Meirieu
que, apesar cie seu caráter cie aparente abstração, atravancam diariamente
os debates sobre a educação: Podemos aprender? Quem pode aprender o
quê? Basta ensinar mais para que se aprenda melhor?
- Há resistência também da parte de nossas esperanças cientificistas.
Na verdade, fingimos muitas vezes acreditar que todos os problemas de
nossa profissão, todas as imperfeições que enfrentamos, poderíam, um dia,
ser apagados pelo estabelecimento de leis, pela elaboração de instrumen
tos cujos desempenhos seriam indiscutíveis. Há algum tempo apenas, era a
“pedagogia experimental”, o ensino programado, a pedagogia por objeti
vos... Hoje é o computador, o software educativo que nos fazem pensar
que, sendo capazes de antecipar todas as reações dos alunos, permitiríam a
todos atingir todos os objetivos. Ora, como observam D. Hameline e DJ.
v-' • Piveteau, “em pedagogia, se fosse possível estabelecer verdades de “ciência
exata”, a coisa, apesar de tudo, seria evidente (...). A pedagogia está longe
de ser a ciência da educação. É uma prática da decisão concernente a esta
última. A incerteza é, portanto, a sua sorte”10... como também é a sorte de
toda “gestão”: o administrador informa-se, mas sabe interromper suas in
vestigações para passar à ação e fazer repercutir a aproximação inevitável
na análise crítica dos resultados; o administrador identifica as variáveis
decisionais e sabe que toda decisão tomada repercute sobre essas variáveis;
o administrador pensa necessariamente em termos de “sistema”... Portanto,
é em termos de “sistema” que falaremos sobre a aprendizagem em nossa
segunda parte, tentando mostrar as múltiplas interações entre todos os ele
mentos em jogo: a relação pedagógica, a divisão taxonômica em objetivos,
as estratégias de aprendizagem dos sujeitos.
- Há resistência ainda quando nos falam em gestão das aprendiza
gens, porque nos falta um método para gerir a complexidade, para situar-
nos na sala de aula e no estabelecimento, mas não como “fornecedores” de
informações. É por isso que precisamos explicar como, muito concreta
mente, podemos ir além da montagem diária, e proporemos alguns exem
plos de ferramentas utilizáveis. Estas virão ilustrar cada um de nossos capí
tulos e concretizar nossas propostas. Evidentemente, são apenas suportes
para a reflexão e a ação pedagógicas, oportunidades para animar a pesqui
sa e melhorar a prática. Sua modificação pelo professor, ou até mesmo seu
desvio, seria um sinal de sua legitimidade.
— Há resistência enfim, porque vemos apontar no horizonte o
consumismo escolar11 e tememos, quando o evocamos, ver a Escola entre
gue à lógica liberal. De fato, pode-se temer o pior de uma livre concorrên
cia escolar, apoiada pela pulDlicação dos resultados dos exames de cada
estabelecimento, os quais não mostram nem o nível de seleção (as repetências
e as evicções que os italianos denominam “mortalidade escolar” e cujo
índice deveria figurar bem naturalmente ao lado dos resultados)12, nem o
Aprender... Sim, Mas Como? 21
projeto pedagógico do estabelecimento. Pode-se esperar o pior de uma
privatização larvada que, através da dessetorização, constituiría terríveis
guetos sociológicos. Mas não é possível ignorar, contudo, que um fenôme
no súbito chega ã Escola, que não está particularmente associado a uma
ideologia ou a uma escolha política identificadas e que modifica radicalmente
a atitude dos pais em relação à Escola. Estes, com efeito, se colocam cada
vez mais em situação não de controle da atividade dos professores — como
o temem os últimos — mas de apreciação de seus resultados; bem o sabem
os professores que não agem de outra forma quando se trata de seus pró
prios filhos... É porque as coisas são complexas e o maniqueísmo não é
mais aceito. Sem dúvida, progrediriamos sensivelmente se refletíssemos
sobre os problemas que apresenta a avaliação dos estabelecimentos e de
sua gestão das aprendizagens para prepararmos eficazmente os educadores
nesse domínio: que participem da elaboração dos critérios de avaliação,
que busquem indicadores pertinentes, enfim, que não abandonem um ter
reno do qual se sentiríam naturalmente excluídos depois...
Em outras palavras, que se comportem como verdadeiros atores so
ciais.
Notas
1. P.-B. Marquet não hesita em chegar a intitular uma de suas obras: L’enseignement ne sert
à rien, ESF, Paris, 1978. (O ensino não serve para nada)
2. É a tese que desenvolve com muita coerência A. Boutin em: L’Écolemaladedelaformation
professionnelle, Casterman, Paris, 1977.
3. É o que J.-P. Astolfi denomina “conceitos" e mostra que um trabalho rigoroso sobre eles
permitiría reorganizar os programas em torno do essencial, sem, contudo, cair em um
“nivelamento por baixo” (“Deux sortes de Savoirs”, in Cahiers pédagogiques, n. 244-245,
maio-junho 1986, p. 34 e 35). L. Legrand desenvolve notavelmente, por outro lado, essa
noção falando em “programas-núcleos”. Não podemos deixar de remeter à sua análise La
différenciation pédagogique, Scarabée, Cemea, Paris, 1986, p. 97 a 113.
4. Explicaremos mais adiante as noções de competência e capacidade (cf. 2a parte, cap. 3).
Mas observemos, desde já, que chamamos capacidade uma operação mental estabilizada e
reprodutível em diversos campos de conhecimento e competência, um saber identificado
colocando em jogo uma ou mais capacidades em um campo determinado e dominando os
materiais de que se serve.
5. Tomo a liberdade de remeter ao prefácio de D. Hameline em minha obra anterior: L'École
mode d'emploi, ESF, Paris, 1985, p. 18.
6. Tomo emprestada esta fórmula dos princípios orientadores do CRAP - Cahiers pédagogiques
(cf. Cahiers pédagogiques, n. 226, setembro de 1984, p. IV).
7. É tudo o que descreve com muita exatidão M. Tozzi em sua obra Militer autrement,
Chronique sociale, Lyon, 1985.
22 Pbilippe Meirieii
Por mais curioso que isto nos possa parecer hoje, nào foi tão fácil para os
homens admitir que pudessem aprender... Sócrates, lembramo-nos bem,
interrogando um pequeno escravo sobre uma questão de geometria, de
monstrava a seu contraditor que não ensinava nada a este homem, mas
permitia-lhe apenas, “graças a simples perguntas, descobrir sozinho e por si
mesmo a ciência”*.
É evidente que a demonstração, para quem tem o trabalho de lê-la
atentamente hoje, não é tão convincente: o pequeno escravo só se expressa
aí por monossílabos e Sócrates realiza a totalidade da demonstração sob
seus olhos. Talvez ainda, Menon, o interlocutor de Sócrates, pudesse ter
observado que esta redescoberta — esta reminiscência, no vocabulário de
Platão - parecia-se muito mais com uma manipulação e que mais emprega
va procedimentos retóricos para ganhar a adesão do que era um verdadeiro
“parto”... O pequeno escravo age tentando, sem dúvida, mais decodificar as
expectativas de Sócrates do que encontrar em si mesmo as respostas às
suas questões; a conversa é minuciosamente controlada pelo mestre a fim
de que o aluno remeta a ele, como um espelho remete uma imagem, uma
demonstração da qual, finalmente, participa pouco. A conclusão da conver
sa refrata então muito bem todo o procedimento:
“Sócrates - É a diagonal que para você, escravo Menon, cria o espaço
duplo?
O escravo - É exatamente isso, Sócrates2.”
26 Philippe Meirieu
ter “durável e permanente”7, uma referência, de certa forma, sem a qual nos
perderiamos no tempo como em areias movediças... É preciso, enfim, re
correr ao bispo irlandês Berkeley e seu idealismo radical, totalmente irre
futável e, no entanto, totalmente absurdo: “As coisas que percebemos são
idéias que existem apenas na inteligência”8?
Tudo isso, estou certo, parece um pouco poeirento e, enfim, corre o
risco de ser recusado como argúcias de uma outra época ou como passatem
pos de intelectuais ociosos. Diante de Zenão, que pretendia mostrar a ine
xistência do movimento, Diógenes havia afirmado que o movimento é prova
do ao caminhar e deixou a aula para comprovar suas afirmações. A esta
altura do desenvolvimento, sem dúvida estaríamos inclinados a agir como
Diógenes e a proclamar que aprendizagem existe, porque eu aprendi, há
alguns anos, a andar de bicicleta e que antes de aprender não sabia fazê-
lo... mas não há saída: como é que podemos aprender a fazer algo que não
sabemos fazer a não ser fazendo? E, se o fizemos, é porque já sabemos
fazê-lo! A demonstração é cômica. E no entanto, sentimos que estamos
longe de alguma coisa essencial, de um paradoxo sem dúvida inerente à
questão da aprendizagem e que nos faz oscilar incessantemente da afirma
ção do “já existente” a da “tábula rasa”... como se fôssemos obrigados a
escolher entre a metáfora da semente que já traz consigo todas as potencia
lidades da flor e que, para desenvolver-se, requer apenas um meio favorá
vel, e a metáfora da cera mole que recebe de fora uma forma que a modela.
Podemos fugir dessa alternativa? O leitor, sem dúvida, espera que sim e supõe
que eu tirarei de meu chapéu uma terceira solução, no momento exato. Mas,
antes de tentar esse empreendimento, observemos mais atentamente o quanto
aquilo que pode parecer algumas velharias filosóficas ocupa ainda, chegando
muitas vezes a saturá-lo completamente, o discurso educativo.
Notas
1. Platão, Afénon(85 d).
2. Platão, Ménon (84 b).
3. Platão, ibid. (85 a e 86 a).
4. Platão, ibid. (616 d a 621 d).
5. Doutrina filosófica segundo a qual o eu individual do qual se tem consciência é a única
realidade... os outros sujeitos e todos os objetos não têm assim mais existência que os
sujeitos ou objetos dos sonhos.
6. Kant, Critique de la raisonpure, PUF, Paris, 1950, p. 17
7. Ibid, p. 207. Cf. também p. 238 e 239.
8. Berkeley, Trois dialogues entre Hylas et Philonoüs, Aubier, Paris, 1970, p. 174. O fato de
que vários homens vêem a mesma coisa ao mesmo tempo não é por Berkeley atribuído à
existência desta coisa, mas à Providência divina (Jbid., p. 163 e seguintes).
Capítulo 1
Pode-se Aprender?
Quando se vê como a prática nos permite sair
das contradições onde a teoria nos aprisiona
30 Pbilippe Meirieu
1. Nada se faz sem desejo. Impor o que quer que seja ao sujeito, se disso
não manifestar desejo, é expor-se à recusa ou provocar a rejeição.
6. Não se pode desejar o que se ignora; não se pode gostar daquilo que
não se conhece. Esperar a emergência do desejo é levar à desigualdade.
8. O que é preciso antes de mais nada conhecer, para lidar com a educa
ção, é a psicologia. Pelo seu método — centrado no sujeito - como
também pelos conhecimentos que elaborou, ela nos dá o essencial do
que devemos levar em conta.
14. Toda aprendizagem verdadeira exige uma ruptura com antigas repre
sentações ou preconceitos anteriores. Requer, portanto, uma interven
ção externa ou uma situação específica que obrigue o sujeito a modifi
car o seu sistema de pensamento.
20. O sujeito não é senão o produto de sua educação e esta educação não
é senão a soma das determinações (fisiológicas, sociais etc.) às quais é
submetido.’
A B
Que representação se pode ter do
sujeito e daquilo que o constitui?
O que pode significar “educar para
a liberdade”?
É possível livrar-se da agressividade?''
A autoridade é necessária na educação?
Que finalidade se pode
conferir às aprendizagens?
Quando e como um sujeito efetua uma
aprendizagem realmente eficaz?
Que lugar é preciso atribuir ao desejo
na aprendizagem?
A B
Como responder a uma questão cultural
formulada por um ou mais sujeitos?
Que atitude é preciso ter quando um
sujeito parece precisar de um auxílio
particular para fazer frente a urna
dificuldade?
?
Aprender... Sim, Mas Como? 33
L
36 Philippe Meirieu
APRENDER
FERRAMENTA Ne 1 - ESBOÇO
Notas
1. A maioria destas afirmações foram reformuladas, mas podemos encontrar frases muito
próximas em vários autores: Assim, poderemos, por exemplo, ter reconhecido A.S. Neill na
afirmação 1, C. Rogers na 3 e 7, G. Mendel na 4, W. Reich na 5, P. Bourdieu na 6, Spinoza na
9, G. Snyders na 12, G. Bachelard na 14, Durkheim na 17, Freud na 19, Marx na 20...
As outras afirmações fazem parte de um fundamento comum ideológico refratado por tantos
autores que hesitaríamos em atribuí-las mais precisamente a um deles (é o caso principal
mente das fórmulas 2, 13, 16, 18). Evidentemente, estas fórmulas estão aqui isoladas, ao
passo que, nos autores que as utilizam, apresentam nuances e, às vezes até, sua antítese...
teremos a oportunidade de voltar a isso.
2. D. Hameline, Maitres et élèues, Classiques Hachette, Paris, 1973, p. 3.
3. La philosopbie de 1’éducatiori, PUF, Paris, 1981, p. 129.
4. L. Not, Lespédagogies de la connaissance, Privat, Toulouse, 1979.
5. O exercício-jogo que acaba de ser proposto pode ser utilizado de maneira eficaz cm
formação pedagógica. Procede-se então da seguinte maneira: cada afirmação é distribuída a
um membro do grupo (se o grupo tiver mais de vinte membros, algumas afirmações podem
ser dadas a duas pessoas, se tiver menos, retiram-se pares para obter tantas afirmações
quantos forem os participantes); procede-se então em quatro fases:
— Cada participante tenta apropriar-se da afirmação que lhe foi confiada redigindo pessoal
mente uma curta argumentação.
- Cada participante procura a afirmação contrária à sua e procede então a um confronto de
seus argumentos com o seu parceiro.
1
O Que É Aprender?
Quando se vê o quanto o ofício de ensinar
requer um esforço permanente de elucidação
e de retificação de nossas representações da
aprendizagem
1 -
48 Philippe Meirieu
Tais concepções não surgem assim por acaso. Dispõem, sobretudo, de uma
força que lhes permite parecer como a própria natureza das coisas, além ou
aquém de qualquer contestação racional, em contradição muitas vezes com
concepções, por outro lado, abertamente declaradas e que não parecem
atingí-las. Tudo acontece, na verdade, como se elas argumentassem dentro
de uma ordem específica, a do “bom senso” ou a do “senso comum”, às
quais se estaria, de uma certa forma, condenado a partir do momento em
que se quisesse falar sobre aprendizagem. Não haveria aí apenas uma questão
de “facilidade”, mas, talvez mais profundamente, uma questão de “possibi
lidade”: o que se pode dizer sobre o aprender que foge às imagens? Como
é que se pode falar sobre um tal processo fugaz e inteiramente “passageiro”
de outra forma que não seja trazendo-o para o que a linguagem sabe fazer,
isto é, designar suas manifestações externas e identificar seus produtos?
Não que a verdadeira aprendizagem seja “indizível”, no sentido em que
pertencería ao domínio da emoção, esta sempre traída por aquilo que tenta
expressá-la, ou ao da ontologia, quando só se pode designar um ser por
seus atributos e, portanto, por aquilo que não lhe é verdadeiramente essen
cial4, mas porque a linguagem, quando quer falar em história e na transfor
mação de um sujeito, só pode falar em aquisição e nomear suas diferentes
I
Aprender... Sim, Mas Como.'' 51
etapas. É por isso que não é perfeitamente possível, sem dúvida, livrar-se
por completo de todas as metáforas coisificantes; é por isso que é ilusório
pensar que se poderia, de uma vez por todas, delas “expungir” os indivídu
os e livrá-los totalmente das tentações simplificadoras; é por isso que - pela
própria coerência com essa afirmação - só se pode esperar que tentem
liberar incessantemente o “processo-aprender” daquilo que permite
representá-lo para eles e que, portanto, o paralisa de maneira inevitável.
Tarefa jamais concluída de fato, jamais totalmente possível e, no entanto,
particularmente necessária para inscrever sua atividade didática na dinâmi
ca real dos sujeitos. Tarefa que é provavelmente mais fácil a partir do mo
mento em que se compreende um pouco a natureza e a força das aderên-
cias com as quais se mantêm, em nós e em torno de nós, nossas represen
tações da aprendizagem.
Elucidando as condições de elaboração de uma representação, S.
Moscovici mostra que o sujeito constrói um “esquema figurativo” que, ao
contrário da “teoria” que se reconhece como um modelo abstrato da
inteligibilidade do real, assume ser a própria realidade. A teoria se diz distan
ciada; a representação se assume como “tradução imediata do real”5. Assim,
quando dizemos que aprender significa estar atento, ler e escutar, receber
conhecimentos, acreditamos estar descrevendo a realidade e, em muitos
sentidos, nós a estamos descrevendo: é verdade que a aprendizagem se
manifesta, muitas vezes, por tais sinais; mas ela apenas “se manifesta”, não
se efetua. Da mesma forma, quando dizemos que aprendemos por repeti
ção ou por imitação, estamos apenas descrevendo comportamentos, nada
estamos dizendo sobre as operações mentais que são efetuadas, sobre a
maneira precisa como um elemento novo é integrado em uma estrutura
antiga modificando-a: sabemos que existem coisas que podemos repetir
mecanica e infinitamente sem que isso seja suficiente para garantir a apren
dizagem, sem que isso seja suficiente também para assegurar o estabeleci
mento de reflexos condicionados: Thorndike observou longamente a im
portância da motivação e mostrou que uma aprendizagem que não se ins
creve dentro de um projeto e da qual o sujeito não percebe os efeitos
positivos em seu desenvolvimento não está estabilizada. O próprio Pavlov
nunca afirmou que a repetição bastava para estabelecer o reflexo; é preciso
associar a ela, mostra ele, um conjunto experimental complexo que permita
transferir progressivamente os efeitos de um estímulo finalizado (que dá
um prazer ou uma satisfação) para um estímulo neutro... É essa transferên
cia — aliás muito problemática no caso das aprendizagens complexas — e
não apenas a repetição de uma atividade, que torna possível a aquisição.
Enfim, Skinner, ainda que conhecido por seu gosto pelas “máquinas de
ensinar”, jamais considerou que a simples execução mecânica de tarefas
podia permitir a aquisição de todos os saberes e competências: “Como um
bom professor, afirma ele, a máquina só apresenta a matéria que o aluno
está preparado para abordar (...) Há, na verdade, uma troca contínua entre
52 Philippe Meirieu
Acredita-se muitas vezes, talvez porque isto esteja ligado a uma aparente
racionalidade, que os diferentes níveis da aprendizagem se encaixam como
“As bonecas russas”*: havería, em primeiro lugar, uma fase de identificação
ao longo da qual o sujeito realizaria atividades perceptivas apoiadas em
capacidades sensoriais, seguida de uma fase centrada na significação na
qual o sujeito integraria a novidade percebendo o seu interesse, o uso que
dela pode fazer ou o sentido que pode dar a ela e, em seguida, uma fase de
utilização em que o sujeito reinvestiría o conhecimento, o utilizaria para
fins pessoais, enfim, dominaria seu uso e o possuiría realmente. Os conheci
mentos encaixar-se-iam então da seguinte forma: Primeiro, devo saber que
o martelo está na oficina, em seguida, devo saber para o que serve o marte
lo para poder, enfim, utilizar essa ferramenta.
N.R.T. “Bonecas Russas" sào bonecas encaixadas uma dentro da outra. Muito usado em decoração de
ambiente.
1.
54 Pbilippe Meirieu
É claro que uma tal concepção pode ter um valor regulador para per
mitir a organização de uma aula; ela está, aliás, refletida de maneira muito
ampla na maioria dos manuais escolares: identifica-se primeiro, compreen
de-se em seguida, fazem-se os exercícios enfim. Mas, na realidade, essa
concepção ignora a realidade dos processos mentais; ignora, sobretudo,
que uma simples identificação perceptiva não existe, que uma informação
só é identificada se já estiver, de uma certa forma, assimilada em um projeto
de utilização, integrada na dinâmica do sujeito e que é este processo de
interação entre a identificação e a utilização que é gerador de significação,
isto é, de compreensão. Observemos um adolescente que desce as encos
tas de uma montanha: ele corre e salta controlando ao mesmo tempo sua
velocidade em função de seus recursos físicos e da apreciação permanente
do contexto. A cada instante, domina a paisagem, tanto na sua configura
ção geral, quanto nas menores rugosidades sobre as quais poderá colocar
corretamente seu pé, adquirir apoio para acelerar ou, ao contrário, freiar
sua corrida. Percebe, identifica uma variedade de elementos, mas esses
elementos, ele os seleciona instantaneamente, de forma que a operação de
percepção e a de seleção são absolutamente confundidas e que aquilo que
as associa é aquilo que as finaliza, ou seja, um projeto e recursos pessoais,
epfim, um sujeito. Formalizando um pouco mais essa experiência — que é,
sem dúvida, muito próxima daquilo que fazemos quando tomamos indícios
de um texto para construir seu sentido, isto é, lê-lo — pode-se dizer que
uma aprendizagem se realiza quando um indivíduo toma informação em
seu meio em função de um projeto pessoal. Nesta interação entre as informa
ções e o projeto, as primeiras só são desvendadas graças ao segundo c o
segundo só se tornou possível graças às primeiras; a aprendizagem, a com
preensão verdadeira, só ocorrem então através dessa interação, não são
senão essa interação, ou seja, são criação de sentido.
Além disso, a importância da fórmula identificação significação de
utilização
ve-se ao fato de que ela permite compreender por que a ação didática
consiste em organizar a interação entre um conjunto de documentos ou de
objetos e uma tarefa a cumprir. Haverá, na verdade, situação de aprendiza
gem efetiva quando o sujeito colocar em ação os dois elementos, um sobre
o outro, de maneira ativa e finalizada. Observa-se então que o trabalho do
professor ou do educador é preparar essa interação de forma que ela seja
acessível e geradora de sentido para o sujeito: pois os materiais podem ser
complexos ou numerosos demais para uma tarefa pequena demais que
então não parecerá capaz de organizá-los, nem mesmo de finalizá-los. Si
metricamente, uma tarefa pode ser, às vezes, impossível ou muito difícil,
porque os materiais fornecidos são insuficientes, não permitem todos os
confrontos necessários, não fornecem as “rugosidades” positivas ou negati
vas que permitem que o sujeito avance ou, às vezes, simplesmente, que ele
se “sinta seguro”. O professor sabe disso quando prepara uma sequência e
Aprender... Sim, Mas Como? 55
58 Pbilippe Meirieu
que lhe permite elaborar um projeto mais ambicioso que, por sua vez,
contribui para estruturá-la. E cada representação é, ao mesmo tempo, um
progresso e um obstáculo; será um obstáculo ainda maior quando tiver
constituído um progresso decisivo e que, em função disso, o sujeito estará
ainda mais ligado a ela. O professor quase não leva em conta que cada
sucesso obtido deverá, um dia, ser ultrapassado, retrabalhado, reorganiza
do. Acredita poder instalar de uma só vez o sujeito em aquisições rigorosas
e definitivas: mas não é nada disso, e é preciso que ele aceite que o que
pode ser absolutamente necessário para o progresso de um aluno é, muitas
vezes, de uma extrema precariedade. Confundem-se, com muita frequên
cia, o necessário e o definitivo, o inútil e o precário: ora, talvez seja útil
ensinar aos alunos do curso elementar (segundo e terceiro anos do ensino
primário na França) que o sujeito faz a ação na frase, mas essa representa
ção cria obstáculo para a compreensão da voz passiva, será necessário
então derrubá-la e substituí-la por uma outra mais adaptada... E esse pro
cesso evidentemente nunca termina, constitui a própria trama do progresso
intelectual. É isso que G. Bachelard explica perfeitamente quando diz: “É
no próprio ato de conhecer, intimamente, que surgem, por uma espécie de
necessidade funcional, lentidões e distúrbios (...). Na verdade, conhece-se
sobre um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal feitos, ven
cendo aquilo que, no próprio espírito, constitui obstáculo à espiritualizacão”17.
Mas como ocorre esse processo? Como um sujeito pode reorganizar
seu sistema de representações?}. Piaget mostrou a importância, nesse domí
nio, da “ desce n tragem”18 e seus trabalhos foram continuados por W. Doise
e A. N. Perret-Clermont, que salientam o aspecto decisivo do “conflito de
centragens”19: um sujeito faz progresso quando nele se estabelece um conflito
entre duas representações, sob pressão do qual é levado a reorganizar a
antiga para integrar os elementos trazidos pela nova. É claro que esse conflito
se manifesta, na maioria das vezes, exteriormente: trata-se então de uma
discordância com um colega, com o professor ou com o manual escolar...
mas esse conflito só é desencadeador de progresso se a socialidade for de
alguma forma interiorizada, se o sujeito fizer sua a contradição para vencê-
la. Não basta, portanto, dizer a um aluno que ele está errado, também não
basta, como se acredita muito frequentemente, mostrar-lhe isso com obstina
ção, é preciso que ele interiorize essa constatação, é preciso colocá-lo em
situação de experimentá-la pessoalmente. Para compreender como pode se
operar essa colocação em situação, retomemos um pouco o que foi visto:
um conhecimento, como dissemos, conesponde a um certo nível de interação
entre informações e um projeto; esse conhecimento é estabilizado sob for
ma de uma representação que remete a um certo “registro de formulação”
de um conceito. Se quero que a representação evolua, devo então provocar
um desequilíbrio que torne sua reelaboracão necessária: para isso, posso
ora apostar nas informações e fornecer materiais que não podem entrar em
interação com a representação sem impor o exame de sua pertinência, ora
60 Pbilippe Meirieu
À
62 Pbilippe Meirieu
cado antes de ter compreendido e retido o mais simples. Todo o mundo lhe
dirá, por exemplo, que, para saber fazer uma divisão, é preciso saber primeiro
fazer uma multiplicação. Ora, ao dialogar com crianças do curso elementar
(segundo e terceiro anos do ensino primário francês), descobre-se que
algumas conseguem fazer divisões por um caminho muito complexo onde
aparecem subtrações e adições sucessivas... Dizem até mesmo “compreen
der” como se faz uma divisão e explicam, com muita serenidade, que é
mais fácil, para elas, dividir um bolo em quatro partes do que saber quantas
notas precisam para distribuir três para seis alunos! Evitemos qualquer mal
entendido: isso não significa que é possível dominar perfeitamente a divi
são sem dominar primeiro a multiplicação; isso significa, por outro lado,
que é possível, sem dúvida, “virar-se” na divisão, fazer dela uma representação
aproximativa, mas que permitirá em seguida, e só em seguida, voltar à
multiplicação; será neste momento que o domínio da divisão poderá ser
completo. Nota-se que o processo é complexo, faz vaivéns múltiplos, que a
racionalidade nocional não desaparece, mas que também não se confunde
com o processo de aprendizagem: ela é construída pelo sujeito de maneira
muitas vezes inesperada, está no fim e não no início do processo.
Os próprios professores sabem que, quando compram um eletrodo
méstico, podem não estudar o manual de instruções de maneira detalhada
antes de experimentar o aparelho; podem até mesmo começar pela opera
ção mais complexa, tanto é verdade que o complexo dá imediatamente o
sentido do objeto, enquanto que sua análise faz perdê-lo. E os professores
são aqui como a maioria dos alunos que, como observa Tolstoi, “só acham
fáceis as questões complicadas e vivas”24 e se aborrecem ou se vêem em
dificuldade diante daquelas belas questões simples nas quais só são manipu
ladas leis gerais, definições abstratas e grandes categorias intelectuais muito
distanciadas de qualquer experiência. Sabem muito bem que a experiência,
em sua complexidade interdisciplinar, mobiliza um sujeito, porque precisa
mente nela se encontram com muita facilidade um projeto e materiais, en
quanto que o tratamento de elementos abstratos requer um projeto já muito
elaborado. Podem observar como se opera uma verdadeira compreensão,
quando se vai do concreto ao abstrato, o que equivale, na maioria das
vezes, a ir do complexo ao simples. Evidentemente, não pode ser qualquer
“complexidade”, deve ser uma complexidade mobilizadora, ou seja, uma
complexidade que se articule aos recursos e aos projetos do sujeito que os
integre em uma situação finalizada, tendo uma significação escolar e/ou
social capaz de desencadear todo um processo no qual o sujeito deverá
recorrer às suas representações e verificar, graças às solicitações do profes
sor, a pertinência das mesmas. Essa situação de complexidade regulada,
sugerida ou organizada pode ser chamada de “situaçào-problema”; será,
por exemplo, uma situação de comunicação (como as que C. Freinet se
empenhou em promover através da correspondência escolar e do jornal),
urna situação de resolução (assim, explica A. Bouvier, é melhor “pedir, no
Aprender Sim, Mas Como? 63
APRENDER
FERRAMENTA Ne 2 - FORMALIZAÇÃO
3. Porque o sujeito só mobi Para que o sujeito inicie uma aprendizagem, devo
liza suas representações e colocá-lo em uma “situação-problema", rica e
só faz sua rcolaboração cm atrativa capaz de mobilizá-lo; esta pode ser de três
“situações-problcmas”; por ordens:
que a racionalidade nocio- — situação-problema de comunicação,
nal aparece apenas no fim — situação-problema de resolução,
do processo como uma — situação-problema de utilização.
elucidação do resultado e
não como o procedimento Além disso, devo ajudá-lo, ao longo da situação, a
de sua elaboração... construir o simples a partir do complexo:
- identificando precisamente com ele, sempre que
possível, suas aquisições e seus problemas;
- recensiando regularmente suas aquisições;
- articulando-as aposteriori para esclarecer
progressivamente as “caixas pretas” e, assim,
restaurar a coerência nocional;
- permitindo a formalização dessa coerência para
transformar a situação-problema em situação-
recurso.
APRENDER
FERRAMENTA N9 3 — IDENTIFICAÇÃO
...trata-se de ...trata-se de
“dificuldade” se: “bloqueio” se:
O aluno se queixa frequentemente de fal O aluno não utiliza todo o tempo que
ta de tempo. lhe é proposto.
Após a leitura das anotações sobre uma O aluno não integra as observações que
cópia ou a correção de um dever em sala lhe são feitas; um trabalho refeito após
de aula, o aluno pode refazer seu traba a correção não apresenta melhora deci
lho melhorando sensivelmente seu de siva.
sempenho.
O aluno reconhece seus erros como tais O aluno sabe que está errando mesmo
quando estes lhe são mostrados; conse antes que isto lhe seja mostrado; vive
gue, pouco a pouco, retificá-los. essa situação como inevitável.
O aluno não sabe enunciar uma regra, Quando é interrogado sobre uma regra,
uma lei ou um conceito; pode, porém, uma lei ou um conceito, o aluno não
ainda que inabilmente, evocar um exem pode dar nem definição, nem exemplo;
plo onde se possa observar a aplicação evoca, às vezes, uma regra, uma lei ou
da regra, a manifestação da lei ou a pre um conceito diferentes, mas que lhe
sença do conceito. parecem equivalentes.
O aluno pede para ir mais devagar com O aluno manifesta o desejo - até mesmo
uma explicação; interrompe o professor a vontade - de ver as explicações resu
ou pára uma leitura para fazer perguntas midas; seu comportamento leva o
ou pedir explicações. professor a acelerar o ritmo ao invés de
diminuí-lo.
L
68 Pbilippe Meirieu
O aluno precisa ter aquilo que foi expos O aluno intervém mudando sistemati
to melhor representado; manifesta suas camente de registro; manifesta suas ob-
objeçòes evocando situações ou exem jeções recorrendo a experiências sem
plos um pouco diferentes ou deslocados, relação aparente com o domínio consi
para melhor apreender a especificidade derado.
do que se está falando.
Notas
1. Este diálogo foi gravado com o acordo dos participantes.
2. Pode-se também utilizar este texto na formação de professores; após a leitura individual,
pedir-se-á a cada participante para anotarem as imagens que lhes vêm à mente e que
poderíam figurar as concepções da aprendizagem que são aqui trabalhadas. Em pequenos
grupos, tentam então encontrar uma imagem-força. Em intergrupos (grupos transversais),
tentam então encontrar a concepção dominante da aprendizagem que serve de referência
implícita a toda a discussão.
3. J.-P. Astolfi formalizou muito bem essas representações; cf. “Apprendre, ce n’est pas....
c’est plutôt...” in Cahiers Pédagogiques, n° 239, dezembro de 1985, p. 15.
4. Não foi Parmênides que dizia que não podemos falar do Ser, nem mesmo apenas dizer
que é Um, porque sendo Ser e Um ao mesmo tempo, já seria dois?
5. S. Moscovici, La psychanalyse, son image et son public, PUF, Paris, 1961, p. 314.
6. B.F. Skinner, La réuolution scientifique de Venseignement, Dessart, Bruxelas, 1968, p. 112
e 113.
7. R. Barthes, Mythologies, Le Seuil, Paris, 1957, p. 260.
8. Assim, diz Piaget, “o sujeito se conhece mal a si mesmo, pois, para explicar suas próprias
operações mentais e até para perceber a existência das estruturas que elas comportam, teria
que reconstituir todo um passado do qual jamais tomou consciência no momento em que
estava vivendo cada etapa" (Logiqueel connaissance scientifique, Encyclopédie de Ia Pléiade,
Gallimard, Paris, 1967, p. 120).
9. Cf. J.-P. Astolfi, “Deux sortes de savoirs”, in Cahierspédagogiques n" 244-245, maio-junho
de 1986, p. 34 e 35-
10. Cf. P. Meirieu, Outils pour apprendre en groupe. Apprendre en groupe? 2, Chronique
sociale, Lyon, 1984.
Aprender... Sim, Mas Como? 69
11. Apóio-me aqui, em particular, nos trabalhos do grupo ASTER (equipe de didática das
ciências experimentais do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica — INRP. O exemplo da
respiração é tomado precisamente de um documento elaborado por M. Develay.
12. A. de la Garanderie, Le dialogue pédagogique avec 1’élèue, Le Centurion, Paris, 1984, p.
109.
13. A. de la Garanderie, Pédagogie des moyens d’apprendre, Le Centurion, Paris, 1982, p. 91.
14. R.M. Gagne é um dos raros "taxionomistas" a mostrar o fenômeno colocando, em sua
classificação das fases de aprendizagem, a “motivação expectativa” logo antes da “percepção
seletiva” e todas as outras operações intelectuais que estas tornam possível. Ele aponta o
fenômeno, mas isola ainda demais, a meu ver, motivação e percepção que não estão presentes
apenas “no início", mas ao longo de cada fase da aprendizagem (cf. Lespríncipesfondamentaux
de Tapprentissage, H.R.W., Montreal, 1976, em particular p. 42).
15. G. Bachelard, La formation de 1‘esprít scientifique, Vrin, Paris, 1971, p. 18.
16. A. Giordan, Une pédagogie pour les Sciences expérimentales, Le Centurion, Paris, 1978, p.
190.
17. G. Bachelard, La formation de 1’esprít scientifique, op. cit., p. 13-14.
18. Cf. em particular, J. Piaget e B. Inhelder, La psycbologie de 1’enfant, PDF, Paris, 1978, p.
101 e seguintes.
19. Cf. A.N. Perret-Clermont, La construction de 1'intelligence dans íinteraction sociale, Peter
Lang, Berna, 1979.
20. Estes dois modelos estão perfeitamente formalizados pela equipe ASTER, em seu relató
rio de pesquisa: Procédures cTapprentissage en Sciences expérimentales, INRP, Paris, 1985, p.
21 e 23.
21. A. Bouvier dá excelentes exemplos deste processo na matemática (“Sur les styles
pédagogiques” in Apprentissage et didactique, documento IREM de Lyon, nu 51, maio de
1985, p. 13 a 28).
22. Descartes, Discou rs de la méthode, II.
23. G. Bachelard, La formation de 1’esprít scientifique, op. cit., p. 246.
24. Citado por Charles Baudoin, in Tolstoi éducateur, Delachaux et Niestlé, Neuchâtel e
Paris, 1921, p. 106.
25. Cf. P. Watzlawick et al., Cbangements, Le Seuil, coleção “Points”, 1981.
Final da
Primeira Parte
Quando se descobre que o que é
fundador no ofício de aprender
é da ordem da ética
72 Pbilippe Meirieu
que não deixou de tentar pôr em prática durante todo o seu trabalho com
Victor9.
Assim Itard, apesar de sua falta de habilidade, apesar de seu insucesso
— Victor morreu com quarenta anos sem ter falado, apesar de seus referen
tes teóricos contestáveis, nos introduz no centro da dinâmica educativa.
Sem dúvida, porque diante de uma situação-limite que o obriga a abando
nar o terreno fácil demais da ideologia, compromete-se com a aprendiza
gem e torna difícil a experiência de sua historicidade. Convencido de que
tudo era construído, ele chega a afirmar que nada se constrói se não se
partir do inato. Militante do “adquirido” e combatente do “inato”, demons
tra que nada se adquire sem que se implante no já existente. Será uma
renegaçào? Não, pois na realidade, ele não muda de “campo” — ao final de
seus trabalhos, continua ainda a invocar Condillac - mas sim de registro.
Não passa da tese “ambientalista” que legitima a onipotência educativa, à
tese do “inatismo” que limitaria a educação à admiração das aptidões que
despertam “naturalmente”... mas assume uma posição teórica de outra or
dem, uma espécie de “opção” que ele observa como sendo a única a poder
inspirar verdadeiramente uma prática educativa eficaz. E, quando adere a
essa “opção”, não renuncia a seu projeto de socialização de Victor, não
renuncia a seu projeto de instruir, busca simplesmente uma forma de coloca
lo em prática e descobre que só é possível fazê-lo apoiando-se no inato,
não um “inato definitivo”, mas um “inato ponto de partida” que vai ser
enriquecido por aquilo que permitirá atingir e, assim, novas potencialidades
serão construídas. Itard vai, portanto, completamente além da disputa entre
o inato e o adquirido, e da única forma possível de sair desse debate medí
ocre: através da educacão. Com efeito, só se pode trabalhar sobre o inato e
seria absurdo, hoje, negar a existência de um programa genético específico
do homem; é esse programa, escreve F. Jacob, que “dá o poder de apren
der, de compreender, de falar qualquer língua”10; e esse programa dá a cada
um potencialidades combinatórias consideráveis11 graças às quais, por “es
tabilizações seletivas”12, constrói suas aprendizagens. Mas se é absurdo ne
gar o inato, seria igualmente um absurdo considerá-lo como uma coisa-em-
si de onde emergiríam naturalmente as aprendizagens; estas são construídas
nas e pelas atividades que esse inato torna possível, as quais o educador
deve suscitar, organizar, administrar e cujas aquisições deve ajudar a identi
ficar.
A “opção” educativa é isto: “confiança no imediato, escreve G. Snyders,
confiança no elaborado e, o que é o ponto crucial, confiança na possibilidade
de passar de um ao outro”13. O ponto crucial, de fato, o que torna possível
e estimula o trabalho de Itard, da mesma forma que o de Sócrates e o de
qualquer educador: a convicção de que um elo pode ser formado entre “o
que ele é” e “o que eu gostaria que ele fosse”, ... um elo que devo inventar
incessantemente, alimentado pela certeza de que “é realizável”. No fundo,
esta é a grande lição de Itard: ele mostra que o outro só pode crescer, só
Aprender... Sim, Mas Como? IS
Notas
1. M. Montessori presta a ele uma vibrante homenagem e enfatiza tudo o que o pensamento
europeu lhe deve (Pédagogie seientifique, Paris, 1926). Uma recente obra publicada na Itália
por Andréa Canevaro {Handicap e identità, Cappelli Editore, Bolonha, 1986) devolve a Itard
o lugar eminente que ocupou na história da educação.
76 Pbilippe Meirieu
2. As duas memórias de Itard consagradas a Victor foram publicadas por L. Malson em Les
enfants sauvages, Gallimard, col. “10-18”, Paris, 1964, p. 125 a 246.
3. Cf. p. 127, 167, 168, 185, 186 e 193 das Memórias de Itard (op. c/7.).
4. Cf. De IHomrne, Oeuvres complètes, t. III, Londres, 1777, p. 523.
5. Qp. cit., p. 91
6. Mémoire d’Itard de 1801, op. cit., p. 137 e 138.
7. Mémoire d’Itard de 1801, op. cit., p. 138.
8. Mémoire d’Itard de 1801, op. cit., p. 138.
9. Pode-se inclusive analisar as dificuldades de Itard mostrando que foi quando desviou
desse que se viu fracassado. H. Lane faz esta análise de uma maneira particularmente inte
ressante observando o fato de que Itard deixa de explorar muitos talentos de Vicror e de
articular novas habilidades àquelas que já tinha (inclusive no domínio da linguagem); ler-se-
á com interesse o seu trabalho. I I. Lane, L’enfant sauvage de 1’Aueyron, Payot, Paris, 1979-
10. F. Jacob, La logique du uiuant, Gallimard, col. “Tel quel”. Paris, 1970, p. 338.
11. Temos cada um aproximadamente trinta bilhões de neurônios; podemos efetuar de 10
000 a 100 000 conexões por segundo e por neurônio, com uma velocidade de transmissão
que chega a 120 metros por segundo.
12. Cf. J.-P. Changeux, L’homme neuronal, Fayard, col. “Pluriel", Paris, 1983, p 337.
13- G. Snyders, La joie à 1’école, PUF, Paris, 1986, p. 107.
14. Sobre o conceito de educabilidade, cf. P. Meirieu, Itinéraire des pédagogies de groupe,
Chronique sociale, Lyon, 1984, p. 139 a 164.
Segunda Parte
Gerir a Aprendizagem
I
Introdução
Quando se tenta delimitar um
espaço onde possa ser exercida
a atividade pedagógica
i
Aprender... Sim, Mas Como? 81
go, pelo medo do outro ou pelo desejo estranho de melhor exercer seu
poder camuflando a natureza do mesmo; depois, porque uma atividade
cognitiva, ainda que perfeitamente teorizada, não pode ficar sem a energia
do desejo que lhe dá vida e força; enfim, porque seria estúpido negar o
aspecto determinante, na aprendizagem, dos fenômenos de identificação e
de sedução. Sabe-se, de fato, que a vontade de seduzir anima qualquer
educador, mesmo que ele quase não o confesse, mesmo que anuncie o
contrário, fingindo ignorar que a recusa de seduzir pode vir reforçar a
sedução... o problema, aliás, não está aí: não há nada de grave no fato de
que um aluno saia da sala de aula tendo sido seduzido e estando contente
de tê-lo sido, e é preciso desfazer-se aqui daqueles vestígios de puritanismo
que nos fazem recusar o prazer na aprendizagem, porque o confundimos
com a facilidade ou, até mesmo, com a demagogia. Pode-se encontrar pra
zer na dificuldade, no trabalho com a complexidade cujas chaves são lenta
mente descobertas. E é justamente o aluno capaz desse prazer que terá
êxito na escola.
De fato, o importante, na aprendizagem, não é escapar à sedução, mas
escapar-se da sedução: o importante não é sair da aula podendo afirmar
“não fui seduzido, eu juro”, mas sair reconhecendo: “Eu fui seduzido, mas
isso me permitiu compreender isto ou aprender aquilo e o que sei posso
identificar, reutilizar fora do contexto de sua aprendizagem; agora sou disso
o mestre e, mesmo se isso traz ainda durante algum tempo a marca daquele
ou daqueles que me fizeram alcançá-lo, sou capaz de confrontá-lo com
novas situações...” Todo problema está, como se vê, em reinjetar, na rela
ção pedagógica, a terceira realidade, o conhecimento identificado, reco
nhecido como tal, transferido e, portanto, desligado das condições de sua
aquisição. Não se trata aqui de suspender a relação pedagógica, mas de
mediá-la o bastante para que não se considere a si própria como objeto e
para que os fenômenos de fascínio-repulsa não totalizem a situação peda
gógica; trata-se de restaurar incessantemente o triângulo para não se deixar
absorver por relações duais de captação, mas para permitir um acesso, que
será sem dúvida lento e caótico, a uma verdadeira autonomia. Programa
vasto para o qual precisamos dar algumas dicas.
tada? É por isso que as estratégias de aprendizagem não devem ser levadas
em conta de maneira mecânica, mas tentando sempre respeitá-las e, ao
mesmo tempo, permitir sua superação. Tarefa difícil, que supõe o reconheci
mento da distância entre os itinerários e os resultados, distância que o
educador poderá então explorar, apoiando-se nos segundos para tornar
possível a exploração sistemática de novas estratégias... Novamente, é restau
rando o triângulo pedagógico, isto é, introduzindo nele o pólo formador e
sua preocupação de promover o desenvolvimento mais completo da pes
soa, que se obtém um espaço para a ação, que se parte para a elaboração
de verdadeiras situações de aprendizagem.
Como construir essas situações, ocupar esse espaço? Apresentamos as
fronteiras disso — uma relação interpessoal, objetivos rigorosamente formu
lados, estratégias pessoais de aprendizagem escrupulosamente levadas em
conta -, sugerimos como permanecer presente no centro desse espaço man
tendo a preocupação com o terceiro excluído — o saber mediador, a opera
ção mental do educando, a vontade de ampliar suas capacidades estratégi
cas... Resta-nos explicar cada uma dessas três dimensões antes de esboçar
mos um método para gerir um tal sistema.
Notas
1. Cf. J. Houssaye, Le triangle pédagogique, tese, Paris X, 1982. Fala-se também em “triângulo
didático”: cf. M. Develay, “Didactique et pédagogie” in Apprentissage et didactique, IREM de
Lyon, n° 51, maio de 1985, p. 29 a 42. Cf. também, dentre muitas outras referências, F.
Galligani, Préparation etsuiui d’uneaction deformation, Éditions d’Organisation, Paris, 1980,
p. 94-95. Pode-se também ver no “triângulo da aprendizagem” um exemplo da definição de
um objeto através dos seus três pólos, segundo a proposta de J.-L. Le Moigne: O pólo
ontológico (o do saber), o pólo funcional (o do educador) e o pólo genético (o do educan
do) (La tbéorie du système général, PUF, Paris, 1977, p. 38-39).
2. Cf. L‘École, mode d’emploi, op. cit., p. 106-107.
3. Para aqueles que não tiveram essa formação, sempre é possível ler a obra de D. Hameline,
Les objectifspédagogiques, ESF, Paris, 5a ed. 1986.
4. Cf. P. Gillet, “Utilisation des objectifs en formation”, Éducation permanente, n" 85, 1986,
p. 17 a 28, em particular p. 26-27.
Capítulo 3
A Relação
Pedagógica
Quando se vê como o desejo vive
do enigma, o enigma da relação,
e a relação da mediação
Todos sabem disto e passaram por isto ao longo de sua história pessoal; cada
professor o vive diariamente; qualquer pai o observa com seus filhos... o
que faz realmente diferença na atividade pedagógica parece fugir a qual
quer definição e não pode ser descrito em termos de dispositivo ou de
tecnologia. É claro que não se discute quanto ã importância desses instru
mentos, quanto ao fato de que eles facilitam muitas coisas e amenizam, às
vezes, certas dificuldades, mas só vivem e têm valor através das pessoas
que os habitam e que conseguem dar sentido a eles. Não há um professor
ou um educador que não tenha passado por esta experiência: a seqüência
já está pronta, perfeitamente estruturada, experimentada por ele mesmo ou
por outros, utilizada muitas vezes com sucesso; a imaginação apresentada
1
86 Pbilippc Meirieu
L
88 Pbilippe Meirieit
tuição escolar, e apenas sob tal condição, que esta poderá progressivamen
te dispensá-la. De fato, quando o sujeito não tem mais território de referên
cia, torna-se totalmente vulnerável a todas as solicitações fusionais; sem
esta ancoragem num objeto-seu, algo em que possa se reconhecer um pou
co, mas que exista no seu exterior para que possa aí se apoiar, deixar-se-á
facilmente captar pelo outro. E o que vale para a organização do espaço é
perfeitamente transponível para a organização do tempo: se este não é
suficientemente ritmado, limitado de tal forma que cada um possa implicar-
se sabendo que poderá logo retrair-se sem ser perseguido, se o tempo é
apenas uniformidade, não pode ser senão totalmente desinvestido ou
neuroticamente superinvestido. Enfim, é a nível dos comportamentos que
o ritual deve também ser introduzido: não se trata de deles excluir toda
espontaneidade, de formalizar chegando ao artifício a menor palavra e o
menor gesto, mas sim de esclarecer suficientemente os limites do possível
para que cada um se sinta seguro e não tema, a cada instante, o extravasa-
mento da emoção ou a erupção da agressividade: cabe à regra proteger aí
cada um contra si mesmo e contra os outros, impondo a distância necessá
ria. E a distância é, muitas vezes, simplesmente a obrigação de suspender o
impulso, pois é exatamente nessa suspensão que se exerce a inteligência...
isso é o que tão bem compreendeu J. Korczak que, na “Casa dos Órfãos” de
Varsóvia, havia instaurado a fórmula de “correio”; podia-se, através disso,
comunicar uma questão particular, uma queixa contra um par ou um educa
dor, um insulto ou até mesmo uma ameaça: “Escreva e veremos”, dizia
Korczak, observando que, graças a esse sistema, as crianças aprendiam a
esperar ao invés de exigir no mesmo instante, a avaliar a situação, a refletir e
justificar uma decisão, a ter acesso a uma expressão oral mais serena e, portan
to, mais eficaz19. A mediação do ritual, neste caso, está longe de ser vã.
Dessa forma, poder-se-ia encontrar, sem dúvida, tanto em Alain quan
to em Freinet, mas adaptados a idades e públicos diferentes, os três níveis
de ritualização sem os quais, ao nosso ver, a classe não pode evitar as
transferências maciças e devoradoras: o ritual da organização do espaço,
através do qual cada um apropria-se de um território, estabelece suas ferra
mentas de trabalho, reserva para si um lugar de onde possa manifestar-se e
onde possa retrair-se; o ritual da distribuição do tempo, que determina a
posição respectiva das atividades individuais, duais, coletivas, que impõe
os momentos de silêncio em que são possíveis a evocação e a reflexão; e,
enfim, o ritual de codificação dos comportamentos, através dos quais são
instauradas as regras que garantem a segurança física e psicológica das
pessoas. Acreditamos ainda que convém que esses rituais constituam o
objeto de uma atenção explícita e que sejam apresentados, explicados,
expostos em sala de aula ou escritos no quadro, retomados e retrabalhados
permanentemente. Acreditamos que o professor deve ter a preocupação
constante de mantê-los vivos e que só pode consegui-lo se estiver atento e
implicado nessa tarefa. Isso lhe parecerá, às vezes, tão trivial quanto nossas
Aprender .. Sim, Mas Como? 97
dor é, na verdade, o fato de que quanto mais ele tiver sucesso, mais repre
senta um pólo positivo para o sujeito, quanto mais assumir o prazer de
saber e quanto mais comunicá-lo a outrem, mais difícil é desligar-se dele e,
portanto, mais forte é a ameaça de captação. Há nisso, aliás, um fenômeno
que os educadores e muitas vezes os pais percebem confusamente: admi
ram os professores prestigiosos, reconhecem o seu valor e o seu sucesso,
mas, ao mesmo tempo, fazem pesar sobre os últimos uma suspeita estra
nha, compreensível de uma certa forma, ainda que injusta na maioria das
vezes: na verdade, o êxito surge aí como o culpado e isso confirma, ao
contrário do que se pensa, a idéia de que aquele que não inspira nenhuma
admiração, que deixa o outro indiferente e que se contenta, no máximo,
em satisfazer os desejos existentes é um “bom profissional”, livre de qual
quer crítica. Estranho ofício onde, ao invés de proteger-se contra os efeitos
perversos do êxito, promove-se o insucesso, quando não a incompetência!
Ora, há um meio de fugir ao fascínio mais poderoso ou, pelo menos,
de afastá-lo: identificando aquilo que ele permitiu adquirir, desvinculando-
o das condições da aprendizagem, reutilizando-o em outra situação e em
benefício dela. Aquele que sabe sem saber que sabe fica eternamente depen
dente daquele que o ensinou; poderá apenas mostrar seu saber se isso lhe
for solicitado. Em contrapartida, aquele que sabe que sabe pode mobilizar
seus saberes e seu sauoir-faire, por sua própria iniciativa, em função das
situações diante das quais se encontra. Aquele que sai da sala de aula
sabendo do que é capaz a partir desse momento, aquele que desvia do
olhar do professor para anotar algo que decide reter, aquele que se prende
a um detalhe que pretende verificar, aquele que tenta utilizar em outra
situação e de outra forma o que lhe foi ensinado, aquele que relaciona os
resultados que obtém com a situação que tornou possível sua obtenção é
quem se livra do poder absoluto do mestre. A introdução de um ponto fixo
faz com que a relação assimétrica, mesmo que ele, parcial ou mais ou
menos conscientemente, seja dela tributário, perca seu poder de des-
pojamento: uma ancoragem, mesmo mínima, permite fugir da aspiração.
É por isso que é necessário praticar a avaliação como descontextuali-
zação sistemática e meio de identificar as aquisições. Descontextualizar é
utilizar um conhecimento em uma outra situação, numa ruptura em relação
à situação de aquisição, com outros exemplos, dentro de outro quadro,
dentro de um outro contexto intelectual mas também sócio-cognitivo, ou
até mesmo com outras pessoas; identificar as aquisições significa saber
nomeá- las, exteriorizá-las, ser capaz de colocá-las em prova, sobretudo, à
prova do tempo. Descontextualização e identificação das aquisições: duas
operações estreitamente solidárias que se manifestam reciprocamente, em
uma dinâmica onde se constrói progressivamente um sujeito autônomo.
Duas operações que nada têm a ver com o milagre, mas que surgem quan
do o professor tem a preocupação com essa referência necessária à terceira
realidade e estabelece alguns dispositivos e instrumentos capazes de encarná-
100 Pbilippe Meirieu
Q*
APRENDER
FERRAMENTA Ne 4 - RELACIONAR
Biblioteca FEUSP
Aprender... Sim, Mas Como? 101
3. Mediar a relação...
r*
• Estou atento em criar “rituais escolares” que permitam que cada um se
implique e se retrate no funcionamento da sala de aula, identificar-se sem ser vítima
de captação?
— rituais de organização do espaço que permitem
que cada um se aproprie de um território,
— rituais de divisão do tempo que organizam mo
mentos de trabalho individuais, momentos de informa
ção coletiva e momentos de trabalho em grupos,
— rituais de codificação dos comportamentos que
asseguram a segurança física e psicológica dos indiví
duos.
Tenho a preocupação de apresentar estes rituais reduzindo sua parte de implícito
e de renegociar regularmente suas modalidades e sua aplicação?
• Estou atento em utilizar “projetos” (tarefas que mobilizam a classe ou um
grupo numa produção coletiva) para fazer emergir necessidades de conhecimentos e
dar assim ao saber uma outra referência além de mim mesmo? Esforço-me, então,’
para limitar estes projetos a este objetivo e para articular a ele procedimentos de
apropriação individual?
• Estou atento em proceder com avaliações regulares que permitam
descontextualizar e reconhecer as aquisições?
, — descontextualizar confrontando com outras fontes e utilizando os
I conhecimentos em outros planos,
| — reconhecer nomeando e identificando as aquisições, bem como sua
retenção a médio e longo prazos.
Notas
1. V. Jankélévitch, Leje-ne-sais-quoi et le presque-rien, 1.1, Le Seuil, col. “Points”, Paris, 1981,
p. 53 e 74.
2. W. Gombrowicz, Ferdydurke, Christian Bourgois, col. “10/18”, Paris, 1977, p. 50 e 51.
3. Le domestique et raffrancbi, Éditions Ouvrières, Paris, 1977, p. 134. D. Hameline explica
que “a própria circulação dos conhecimentos (e, portanto, sua transmissão) supõe, subjacente
Aprender... Sim, Mas Como? 103
a seus circuitos, uma circulação dos gostos e das vocações que não é mais do que a
domesticação das pulsões para objetos culturalmente valorizados tanto na sociedade quanto
nas preferências individuais” (Jbid).
4. Cf. P. Meirieu, L’École mode demploi, ESF, Paris, 1986, p 43 a 48.
5. G. Avanzini faz a mesma análise a respeito da noção de “interesse” nos métodos ativos; cf.
Immobilisme et nouation dans 1’institution scolaire. Privat, Toulouse, 1975, p.59.
6. G. Snyders, La joie ã 1’école, PUF, Paris, 1986, p. 322.
7. J. Filloux, Du contrat pédagogique, Dunod, Paris, 1974, p. 335
8. Cf. primeira parte, cap. 1.
9. Cf. G. Snyders, La joie à 1’école, op. cit.
10. B. Schwartz, Léducation demain, Aubier-Montaigne, Paris, 1973, p. 56.
11. P. Valery, “Les pas”, Charmes, Poésies, Gallimard, Paris, 1966, p. 59- Tradução: Não
precipite este ato terno / Doçura de ser e de não ser / Pois vivi de sua espera / E meu
coração era só os seus passos".
12. Cf. primeira parte, cap. 2. Cf. também ferramenta n°2
13. Cf. J.-P. Dolle, Monsieur le Président, ilfaut queje uous dise, Lieu commun, Paris, 1983, p.
116.
14. J. Guillaumin, “Aspects de la relation maitre-élève”, Bulletin Binet-Simon, n° 472, 1962,
p. 9.
15. J. Guillaumin, “Aspects de la relation maitre-élève”, art. citado.
16. Assim G. Avanzini observa que hoje “os adolescentes são aqueles que seus “educadores"
imitam e aos quais tentam de uma forma ou de outra se alinhar. Assim deu-se,
subrepticiamente, uma gigantesca inversão das influências...” (“La relation éducative
aujourd’hui”, Le Supplément, Le Cerf, n° 150, outubro de 1984, p. 65 a 84, p. 79).
17. F. Oury, in C. Pochet, et al., L année dernière, j étais mort, Matrice, Vigneux, 1986, p. 124.
18. Cf. G. Gusdorf, Pourquoi des professeurs?, Payot, Paris, 1963-
19. J. Korczak, Comment aimer un enfanfí, Laffont, Paris, 1978, p. 289 a 291-
20. Cf. F. Oury e A. Vasquez, Dela classe cooperaiiue à la pédagogie institutionnelle, Maspero,
Paris, 1971.
21. Cf. P. Meirieu, Itinéraire des pédagogies de groupe, Apprendre en groupe? 1, Chronique
sociale, Lyon, 1984.
22. Cf. L’éualuation en question(s), CEPEC, ESF, Paris, 1987.
23. J. OURY in C. Pochet et al., L’année dernière, j’étais mort, op. cit., p. 190.
24. Cf. Collège, n° 2, março de 1984, CRDP de Marselha.
25. Citado por J. Oury, op. cit., p. 173.