Parra - Saiz - Didatica Da Matematica - Cap8
Parra - Saiz - Didatica Da Matematica - Cap8
Parra - Saiz - Didatica Da Matematica - Cap8
Grécia Gálvez
A GEOMETRIA
A história da geometria localiza sua origem no Egito, relacionada a um
problema prático: a reconstituição dos limites dos terrenos após as enchentes do
Nilo. Dali é exportada à Grécia, possibilitando a Thales de Mileto voltar ao Egito
para calcular a altura da grande pirâmide, a partir da medição de sua sombra. A
geometria surge, então, como uma ciência empírica, em que os esforços de
Jeorização estão a serviço do controle das relações do homem com seu espaço
circundante. "O plano de Thales de Mileto é o deserto, onde a luz faz todos os
desenhos possíveis" (Serres, 1981).
Esta geometria empírica, ou física, constitui uma teoria da estrutura do
espaço físico, que "não pode nunca, logicamente, dar-se por válida com certeza
matemática, por amplas e numerosas que sejam as provas experimentais a que
seja submetida; como qualquer outra teoria da ciência empírica, só pode conse
guir um grau maior ou menor de confirmação" (Hempel, 1974).
* Capítulo II da tese "A aprendizagem da orientação no espaço urbano. Uma proposta para o
ensino da geometria na escola primária", apresentada pela autora, para obter o grau de
Doutor em Ciências na Especialidade de Educação no Departamento de Pesquisas Educaci
onais do Centro de Pesquisas e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, em
1985. O orientadtor da tese foi o professor Guy Brousseau.
236
Didática da Matemática 237
É sobre esta versão da geometria que está baseada uma série de atividades
humanas que requerem o controle das relações espaciais e de cuja vigência atual
ninguém duvida, entre as quais se pode mencionar o desenho e a construção de
todo tipo de objetos físicos (desde produtos e máquinas industriais até prédios,
cidades e estradas), a elaboração de mapas, o cálculo de distâncias astronômicas,
etc.
O momento culminante no desenvolvimento da geometria como ramo da
matemática se produz quando Euclides escreve Os Elementos (século III a.C.),
sintetizando o saber geométrico de sua época. Nesta obra, se parte de um núme
ro reduzido de axiomas, postulados e definições para construir, por via de dedu
ção, o conjunto das proposições geométricas vigentes, as que aparecem como
consequências necessárias das afirmações primitivas.
A geometria euclidiana constituiu, durante muitos séculos, um paradigma
para o resto da matemática e inclusive para o resto das ciências.1 De fato, foi a
primeira axiomatização na história da matemática.
Serres (1981) faz uma análise etimológica dos termos empregados na geo
metria euclidiana, mostrando sua origem física e dinâmica: o triângulo isósceles
se chama assim porque possui "duas pernas iguais", diferentemente do escaleno,
cujo nome faz menção a sua inclinação, devido a que "está manco"; o rombóide
deriva sua designação de um dos objetos mais dinâmicos que é possível imagi
nar: o pião. Haveria então uma mecânica oculta por trás do léxico utilizado por
Euclides. No entanto, o fato é que na geometria grega se raciocina rigorosamente
sobre quaisquer traçados; não se está falando de um desenho em particular, mas
de qualquer desenho que possua as propriedades consideradas no enunciado. E,
desta maneira, constitui um marco fundamental no processo de separação do
sensível, da estatização (no sentido de tornar estáticos) dos conceitos geométri
cos. Processo que culmina já em nossa época com Hilbert, que formula os axio
mas euclidianos e valoriza o sistema dedutivo, a sintaxe, afirmando que o
conteúdo semântico pode ser substituído por outro qualquer.
Em síntese, a contribuição da geometria euclidiana é o uso da demonstra
ção, que se refere às propriedades de um espaço puro, formal. "A geometria da
matemática não é o estudo do espaço e de nossas relações com o espaço, mas o
lugar em que é exercido um raciocínio levado à sua excelência máxima" (Laborde,
1984). Diferentemente da física, em que se busca uma aproximação à realidade
cada vez mais exata (por exemplo, através de medições mais precisas), a mate
mática é inexata, suas verdades são abstratas, necessárias, sem referência à reali-
1 Vinte séculos mais tarde Newton toma Os Elementos de Euclides como modelo para a orga
nização de seus Principia, nos quais expõe sua teoria da gravitação.
238 Parra & Saiz
2 Em grande parte do que segue, nos guiaremos por este texto para resenhar o desenvolvi-
mento histórico da geometria.
3 Postulado que afirma que, em um plano, só se pode traçar uma paralela por um ponto
exterior a uma reta.
Didática da Matetnática_ 239
A respeito, Revuz (1971) faz uma distinção entre situação, modelo e teoria,
afirmando que muitas teorias matemáticas, importantes e em uso na pesquisa
matemática atual, têm sua origem na abstração de modelos geométricos, os quais
por sua vez constituem esquemas de situações espaciais. Abre-se, assim, uma
brecha para a justificação do ensino da geometria, ao menos na profissionalização
de novos matemáticos.
No entanto, a ausência de uma comunidade científica que identifique a si
mesma como comunidade de geômetras incide, indubitavelmente, na tomada de
decisões oficiais a respeito do ensino da geometria. Estas decisões não po
dem ser controladas (criticadas, retificadas, apoiadas) por um grupo de pressão
que tome posição diante dos problemas do ensino em função das necessidades
de seu próprio desenvolvimento, como acontece no restante das ciências
vivas.
240 Parra & Saiz
Obs. 108
I. (1;3 [13]) está sentado, coloca uma pedrinha diante de si, em segui
da a desloca para a direita, corrige sua própria posição para colocar-se frente
à pedrinha, desloca-a novamente para a direita e assim sucessivamente,
até descrever quase um círculo completo (Piaget, 1937).
4 Segundo R. Garcia esta mudança é válida somente para o domínio das relações intrafiguráveis
(de uma figura isolada) e não para os domínios das relações interfiguráveis (entre figuras)
ou transfiguráveis, no sentido em que estas são definidas em Piaget e Garcia (1982).
Didática da Matemática 243
abstraído a partir das ações executadas sobre os objetos, ações que podem imitar
e ultrapassar as configurações e transformações do objeto.
No volume sobre o pensamento matemático da introdução à Epistetnologia
Genética (1949), Piaget faz um interessante paralelo entre operações lógico-arit-
méticas de classes e de relações assimétricas (seriação), que geram a noção de
número, e as operações espaciais de participação e de deslocamento, que geram
a possibilidade de medição (quantitativa) do espaço. Descreve uma vez mais o
desenvolvimento das operações espaciais, partindo do nível perceptivo, caracte
rizado por espaços heterogêneos. Este é seguido pelo nível sensório-motor, no
qual os deslocamentos, unidos às percepções, permitem determinadas coorde
nações, que se organizam em um espaço próximo, com conservação prática do
objeto, porém, sem espaço representativo além dos limites da ação. Em continu
ação, temos o nível do pensamento intuitivo pré-operatório, no qual se constitu
em imagens espaciais estáticas e a imaginação de algumas ações relativas às
possíveis transformações dos objetos, porém, sem conservação
nem reversibilidade. O nível seguinte é o das operações concretas, no qual são
organizadas as primeiras operações transitivas e reversíveis, aplicadas a objetos
presentes ou imaginados. A possibilidade de se descentrar do sujeito permite a
coordenação lógica do espaço a partir de múltiplos pontos de vista. Finalmente,
se constitui o nível das operações formais, no qual tanto as transformações espa
ciais como as numéricas desaparecem no interior de sistemas formais, de nature
za hipotético-dedutiva. As operações espaciais desligam-se das ações e objetos
do espaço físico, podendo abranger todo o universo de possibilidades espaciais.
O sujeito se move (intelectualmente) no âmbito possível, do hipotético, do infini
to.
Para finalizar esta síntese faremos uma rápida referência às conseqüências
pedagógicas que o próprio Piaget deriva de sua concepção da psicogênese das
noções espaciais. Em uma intervenção sobre a educação matemática (Piaget, 1973),
depois de fazer referência a como o pensamento lógico deriva de uma fonte pro
funda, da lógica implícita nas coordenações gerais da ação, afirmou:
7 Piaget afirma, pelo contrário, que a imagem espacial se elabora a partir das imitações
interiorizadas, que são as que possibilitam a representação das transformações espaciais.
Didática da Matemática 247
Uma estratégia que é utilizada com frequência no texto oficial para o ensi
no de algoritmos é a dofading ou desvanecí mento de algumas das características
do objeto em que o procedimento se apoiava originalmente. Vejamos como se
ensina a fórmula da área de um retângulo fazendo desaparecer o quadriculado
(Apêndice, p. 254), com a ilusão de que isto gera a compreensão da fórmula que
permite avaliar uma área (bidimensional), a partir da medida de dois compri
mentos.8
Mencionaremos uma última característica dos livros didáticos mexicanos,
que consiste em substituir a experiência direta dos alunos pela leitura do relato
da experiência de outros. Por exemplo, em sexta série pretende-se ensinar por
este procedimento como medir a altura de um objeto físico de grande tamanho,
utilizando o teorema de Thales. Com isto, se busca a economia da explicação do
s Para uma análise das dificuldades conceituais dos alunos do ensino primário, no âmbito
da medição de áreas, remetemos ao trabalho de R. Dominguez (1983).
248 Parra & Saiz
9
Propusemos a alunos da 6a série (cours moyen 2 na França), junto com Brousscau, um pro
blema semelhante: estimar o terceiro lado de um triângulo do qual só era possível medir
dois lados, no pátio da escola (com distâncias da ordem de 10 metros). A solução do proble
ma não foi nada evidente. As crianças podiam conceber o translado das medidas lineares a
uma representação em escala, porem não dispunham de métodos para reproduzir ângulos.
Uma equipe conseguiu resolver este problema dobrando um papel para "medir" o ângulo
compreendido entre os lados conhecidos do triângulo, no terreno, e transladando a conti
nuação desta medida a seu desenho em escala, procedimento semelhante aos que encon
trou Piaget nos primeiros estágios da medição espontânea de distâncias (reprodução c
translado da distância a medir). Outra observação interessante foi a inaptidão de algumas
crianças para esquematizar em um desenho as relações espaciais percebidas no terreno
(inclusive aconteceram situações de não-conservação de traçados retilíneos).
10 Organizamos uma experiência de revestir uma lata, na Ia série, comprovando que uma
parte dos alunos era capaz de antecipar a forma retangular do forro; outros propuseram
uma forma elíptica (já que se tratava de cobrir uma superfície curva, a figura também devia
possuir um limite curvo) e, finalmente, tivemos crianças que limitaram-se a representar as
diferentes perspectivas conhecidas do cilindro. A possibilidade de confrontar a validade
destes modelos, aplicando os pedaços de papel recortado sobre a superfície da lata, consti
tuiu um forte estímulo para fazê-las evoluir.
Didática da Matemática 249
rir o domínio de suas relações com o espaço, a escola não faz nada para ajudá-
los. Piaget teria dito que isso está muito bom, já que é preferível deixar que a
criança construa, através de sua interação espontânea com o meio, as estruturas
que lhe permitirão desenvolver-se com propriedade no espaço, antes que impor-
Ihe exercícios escolares que não contribuirão a fazer evoluir suas concepções e
que só servirão para gerar sentimentos de fracasso e de menosprezo nas crianças
que ainda não estão em condições de efetuá-los corretamente. Nossa hipótese é a
de que é possível, em um contexto escolar, gerar situações nas quais os alunos
formulem problemas relativos ao espaço e tentem resolvê-los baseados em suas
concepções "espontâneas", introduzindo-se em um processo no qual deverão
elaborar conhecimentos adequados e reformular suas concepções teóricas para
resolver os problemas formulados. Reconhecemos que o projeto e implementação
de tais situações não é tarefa fácil, porém por isso mesmo o formulamos como
objeto de nosso estudo experimental, como tema de uma intensa busca, antes de
dedicar-nos a fazer propostas que serão utilizadas em condições escolares abso
lutamente fora de nosso controle.
Por outro lado, estamos convencidos de que há grande quantidade de adul
tos que, através de sua interação extra-escolar com o ambiente, não conseguiram
desenvolver uma concepção do espaço que lhes permita um controle adequado
de suas relações espaciais, controle que lhes possibilite orientar autonomamente
seus deslocamentos em âmbitos de determinada magnitude.11
APÊNDICE
Materiais dos programas e textos oficiais da Secretaria de Educação Pública (SEP), México
(1982), sobre o ensino da geometria na escola primária.
Atividades
Com o compasso
Trace seis raios no círculo azul. Meça esses raios com a régua e anote, sobre cada um, sua
medida. Todos esses raios têm a mesma medida?
Trace oito raios no círculo laranja e meça. Todos esses raios têm a mesma medida?
Compare os raios dos dois círculos. Medem o mesmo os raios do círculo azul que os do
círculo laranja?
Trace em um papel um círculo que tenha o mesmo raio que os dos círculos desenhados
acima. Então recorte-o c coloque-o sobre cada um deles. Os três círculos são iguais?
Quadrinhos em colunas
1
0
I I 1111 I I
centímetros
i:
| | I I I
| | centímetros
Quadricula os seguintes retângulos. Pinta de diferente cor cada coluna de quadrinhos. Depois
completa o que falta.
Discute com teus colegas como encontrar a área dos retângulos, sem os quadricular.
BIBLIOGRAFIA
Alarcón, J. (1978): "La geometria cn la escuela primaria", I Congreso Internacional y V Nacio
nal de la A.N.P.M., Toluca, México.
Appleyard, D. (1970): "Stylcs and Methods of Structuring a City", Environment and Behavior,
N2.
Aragonés, I. (1983): "Marcos de referencia en el estúdio de los mapas cognitivos de ambientes
urbanos", Estúdios de Psicologia, N 14/15.
Artigue, M. (1984): "Modelisation et reproduetibilité en didactique des mathématiques", Cahier
de Didactique des Mathématiques, N 8, IRUM de 1'Université de Paris VII.
Artin, E. (1963): "Puntos de vista extremados sobre la ensenanza de la geometria", en J. Piaget
y otros, La ensenanza de las matemáticas modernas, Madrid, Alianza, 1978.
256 Parra & Saiz
i
Didática da Matemática 257
Shemyakin, F.N. (1940). Uchenje Zapiski Gos. In-ta Psikologie. (On the psychology of space
representations), Moscou [Trad. inglesa: B.G. Anan yev e outros (comps.), Psychological
Science in the USSR, Vol. 1, Washington, D.C.]
SPP (1981): Guias para la interpretación de Cartografia. Topografia, Coordinación General de los
Servicios Nacionales de Estadística, Geografia e Informática, México.
Thomm, R. (1979): "Modélisation et Scientificité", Actes du Colloque "Elaboration et justification
des Modeles", Paris, Maloine.
Vasconcelos, J. (1982): Ulises Criollo (Primeira Parte), México, F.C.E.
DOAÇÃO 10/5/2011
Origem: Roselene Crepaldi