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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LUCIANA LOURENÇO PAES

AS QUATRO ESTAÇÕES HARTMANN DE EUGÈNE DELACROIX

CAMPINAS

2019
Luciana Lourenço Paes

As Quatro Estações Hartmann de Eugène Delacroix

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutora em
História, na área de História da Arte.

Orientador: Luiz Cesar Marques Filho.

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELA ALUNA LUCIANA LOURENÇO PAES
E ORIENTADA PELO PROF. DR. LUIZ
CESAR MARQUES FILHO.

CAMPINAS

2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Paes, Luciana Lourenço, 1984-


P138q As Quatro Estações Hartmann de Eugène Delacroix / Luciana Lourenço
Paes. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

Orientador: Luiz Cesar Marques Filho.


Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

1. Delacroix, Eugène, 1798-1863. 2. Hartmann, Jacques-Félix Frédéric,


1822-1880. 3. Estações do ano na arte. 4. Pintura francesa - séc. XIX -
História. 5. Arte - Colecionadores e coleções. I. Marques Filho, Luiz Cesar,
1952-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Les Quatre Saisons Hartmann d'Eugène Delacroix


Palavras-chave em francês:
Saisons dans l'art
Peinture française - XIXe siècle - Histoire
Art – Collectionneurs et collections
Área de concentração: História da Arte
Titulação: Doutora em História
Banca examinadora:
Luiz Cesar Marques Filho [Orientador]
Gabriel Ferreira Zacarias
Alexandre Ragazzi
Elaine Cristina Dias
Leticia Coelho Squeff
Data de defesa: 24-10-2019
Programa de Pós-Graduação: História

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: http://orcid.org/0000-0001-5431-0053
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/5309338936861505
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 24 de outubro de
2019, considerou a candidata Luciana Lourenço Paes aprovada.

Prof. Dr. Luiz Cesar Marques Filho (UNICAMP)

Prof. Dr. Gabriel Ferreira Zacarias (UNICAMP)

Prof. Dr. Alexandre Ragazzi (UERJ)

Profa. Dra. Elaine Cristina Dias (UNIFESP)

Profa. Dra. Leticia Coelho Squeff (UNIFESP)

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema


de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Lisian e Ladislau, a minha avó, Lucy, a minha irmã, Giovana e ao meu ex-
marido, Eduardo, pelo carinho e estímulo constantes.
Ao meu tio Luciano e a minha tia Nilce, pelo acolhimento e apoio na cidade de Campinas.

Ao meu orientador, Luiz Marques, pelo diálogo e pela confiança.


Ao professor Jacques Leenhardt, pela recepção e orientação em Paris.
Aos professores da banca, Alexandre Ragazzi, Elaine Dias, Gabriel Zacarias e Leticia Squeff,
pela atenção depositada na leitura do meu texto.
A todos os bibliotecários, arquivistas e historiadores, no Brasil e na França, em especial
Annick Méchin, Gérard Leser, Catherine Adam-Sigas, Renato Menezes e Vivian Braga, que
me ajudaram a chegar ao fim dessa etapa.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo suporte


financeiro para a realização do doutorado (processos nº 2015/17738-8 e nº 2016/19043-0).
“Dimicandum. C’est une belle devise (...).”
[“Lutar. É um belo lema (…).”]

- Eugène Delacroix, 7 de julho de 1852, Journal, I, p. 594.


RESUMO

O objeto de estudo desta pesquisa são as pinturas representando as Quatro Estações que
Eugène Delacroix (1798-1863) executou para o industrial e colecionador alsaciano Frédéric
Hartmann (1822-1880), entre os anos de 1856 e 1863. O artista morreu antes de entregá-las ao
comitente e as telas permaneceram inacabadas. Na primeira parte é proposta uma análise
iconográfica e técnica da série, em que se reflete sobre a sua relação com a tradição visual
ligada ao tema e com outras obras do artista, debatendo-se também a questão do “inacabado”
no âmbito do seu processo de criação. A segunda parte reconstitui a história da encomenda,
seu significado no contexto da coleção de Hartmann e da cultura da época, ligado
especialmente ao grande desenvolvimento, no período, da indústria têxtil francesa.

PALAVRAS-CHAVE

Delacroix, Eugène (1798-1863); Hartmann, Jacques-Félix Frédéric (1822-1880); Estações do


ano na arte; Pintura francesa – séc. XIX – História; Arte – Colecionadores e coleções.
ABSTRACT

The object of study of this paper is the paintings depicting the Four Seasons that Eugène
Delacroix (1798-1863) made for the Alsatian industrialist and collector Frédéric Hartmann
(1822-1880) between 1856 and 1863. The artist died before delivering them to the patron and
the paintings remained unfinished. In the first part of this study, we propose an iconographic
analysis of the series, aiming to reflect on its relationship with the visual tradition of
the Seasons and with other works of the artist. We also develop a technical analysis of the
series focused on the question of the “unfinished” in Delacroix’s creative process. The second
part reconstructs the history of the commission, its meaning in the context of Hartmann's
collection and nineteenth century culture, which is particularly connected to the great
development of the French textile industry in that period.

KEY-WORDS
Delacroix, Eugène (1798-1863); Hartmann, Jacques-Félix Frédéric (1822-1880); Seasons in
art; French painting – 19th Century – History; Art – Collectors and collections.
RÉSUMÉ

Cette thèse porte sur les peintures des Quatre Saisons qu’Eugène Delacroix a exécutées pour
l’industriel et collectionneur alsacien Frédéric Hartmann, entre 1856 et 1863. L’artiste est
décédé avant de les terminer et les toiles sont restées inachevées. Dans la première partie,
nous proposons une analyse iconographique et technique de la série des Saisons, en rapport
avec la tradition visuelle et avec d’autres œuvres de l’artiste. De plus, nous abordons la
question du non fini dans son processus de création. Dans la seconde partie, nous
reconstituons l’histoire de la commande et sa signification dans la collection d’Hartmann et
dans la culture de l’époque, particulièrement liée au grand essor de l’industrie textile en
France au XIXe siècle.

MOTS-CLÉS

Delacroix, Eugène (1798-1863); Hartmann, Jacques-Félix Frédéric (1822-1880); Saisons dans


l'art; Peinture française – XIXe siècle – Histoire; Art – Collectionneurs et collections.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

PARTE 1 – AS OBRAS 20
Capítulo 1 Iconografia das Quatro Estações 21
Capítulo 2 As Quatro Estações de E. Delacroix 44
2.1 Para Talma (1821) 44
2.2 Para Hartmann (1855-1863) 54
2.2.1 Orfeu e Eurídice – Primavera 57
2.2.2 Diana e Acteão – Verão 62
2.2.3 Baco e Ariadne – Outono 65
2.2.4 Juno e Éolo – Inverno 72
Capítulo 3 O problema do inacabado 82
3.1 O inacabado na arte 83
3.1.1 Séculos XVIII e XIX: o caso francês 103
3.2 Inacabado e estilo tardio 114
3.3 Delacroix e o inacabado 128

PARTE 2 – O COMITENTE 147


Capítulo 1 Mecenato artístico e colecionismo no século XIX: o caso de Frédéric
Hartmann 149
1.1 O industrial 151
1.2 O político 157
1.3 O colecionador 168
1.3.1 A encomenda das Quatro Estações 181

CONSIDERAÇÕES FINAIS 216

FONTES DE PESQUISA 223

APÊNDICE
1 A trajetória das Quatro Estações Hartmann até chegarem ao MASP 244
2 Genealogia dos Hartmann 249
3 A coleção de Frédéric Hartmann 250
11

Todas as traduções do francês, do inglês, do italiano e do alemão foram feitas por


mim, salvo quando especificado o contrário. O texto na língua original foi, em geral, mantido
entre parênteses ou em nota, a título de comparação, segundo o critério que adotar o leitor.
As citações do diário de Eugène Delacroix correspondem à edição mais recente, de
Michèle Hannoosh, publicada em 2009 (Journal, tomo, página). Aquelas da correspondência
publicada do artista foram extraídas da edição de André Joubin, de 1938 (Corres., volume,
página). Menções a outras edições, quando houver, virão explicitadas.
Para os documentos autógrafos, consultados em arquivos, adotamos as seguintes
abreviações:

- Bibliothèque de l’Institut National d’Histoire de l’Art (INHA + referência no


catálogo).

- Bibliothèque Nationale de France, Département des Estampes et de la Photographie


(Bnf + referência no catálogo).

- Département des Arts Graphiques du Musée du Louvre, Cabinet des Dessins (CD +
número do inventário).

- Archives Municipales de Munster (AMM + referência no catálogo).


12

INTRODUÇÃO
“[A morada dos deuses] não é abalada pelos ventos, nem
molhada pela chuva, nem sobre ela cai a neve. Mas o ar estende-se
límpido, sem nuvens; por cima paira uma luminosa brancura.”
- Homero, Odisseia, Canto VI, 42.

Homero conta que não havia estações no Olimpo. Elas pertenciam ao mundo dos
mortais, criaturas condenadas a viver no tempo. Aristóteles escreveu, na Física, que o tempo é
“o número de mudança, em relação ao antes e ao depois”1. Na medida em que as estações do
ano oferecem visualmente uma medida ou um padrão de mudança, representá-las significa
representar o tempo. E tudo que existe no tempo conhece um ponto de entrada e outro de
saída, um começo e um fim, um nascimento e uma morte. Para a consciência humana, a morte
é uma ruptura e talvez o que melhor nos defina em relação aos outros animais seja certa
dificuldade em lidar com o fim das coisas, com as perdas, certa resistência psíquica em fazer
o luto. Por alguma razão, desconhecida até mesmo para o pai da psicanálise, retirar a libido de
um objeto perdido e reinvesti-la em outro disponível não é um processo automático em seres
aculturados, mas exige, ao contrário, um grande dispêndio de energia2. Na natureza, contudo,
ao Inverno simplesmente sucede uma nova Primavera.
Por que estudar uma série de quadros das Quatro Estações pintados na metade do
séc. XIX, por um artista francês? Primeiro, porque se encontram no Brasil, no Museu de Arte
de São Paulo Assis Chateaubriand. Hoje, portanto, são parte de nosso patrimônio material e,
estando sob a nossa luz e os nossos cuidados, precisam também ser discutidos por nós, em
nossa língua, para adquirirem, efetivamente, um valor ativo dentro de nossa cultura. Além
disso, pelo fato de estarem inacabadas, essas obras proporcionam alguns insights sobre o
método de trabalho do artista. Constituem, ainda, quadros significativos de sua última fase, de
modo que contêm uma solução, entre outras possíveis, para a equação entre decadência física
e estilo. Finalmente, ensejam uma reflexão sobre as mudanças na relação entre o artista e o
mecenas que se processam ao longo do séc. XIX.
O tema das Quatro Estações é um dos mais tradicionais dentro da história da arte
ocidental. As primeiras representações visuais que conhecemos datam do séc. VII a. C. e,
depois do cristianismo, com os sucessivos renascimentos da arte clássica, não deixaram de
ocupar um lugar privilegiado na decoração de edifícios públicos ou de residências privadas.

1
ARISTÓTELES, Física, IV,11, 219b.
2
FREUD, Sigmund. A transitoriedade. In : ____. Obras completas. Vol. 12. Trad. : Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 2010. (e-book)
13

Delacroix, num século de crise, o séc. XIX, ainda recorre a esta iconografia ao criar as suas
quatro composições.
Assim, o método iconológico3, que investiga, num primeiro momento, a origem
da obra de arte por meio de sua relação (temática e formal) com outras que a precederam,
ainda se mostra útil para a análise, embora não suficiente. Do mesmo modo que a obra de
Delacroix demanda uma abordagem em termos de iconografia – pois ele ainda se insere
naquela tradição renascentista de pintores eruditos, que colhem seus temas na literatura – ela
demanda outra em termos materiais e técnicos – pois, nele, a apresentação já tem força
suficiente para comprometer a representação ou a mimeses. Agora, por que essa preocupação
com a gênese é tão importante? Toda vez em que apontamos para um início, criamos uma
referência e encontramos um sentido, ainda que provisório, para um objeto que existe em
nosso campo de visão. Ao “apontar para esse início”, contudo, é importante distinguir as
verdadeiras homologias, as relações demonstráveis, das meras justaposições que levam a
efeitos de sentido arbitrários. Esta talvez seja a maior dificuldade do método.
Iconologia vem do grego ikon, “imagem” e logos, “razão”, traduzido para o latim
como verbum. Um discurso sobre as imagens é algo inevitavelmente contraditório, pois são
códigos muito distintos para operarem em um modo de semelhança, qualquer que ele seja. Ao
discutir imagens por meio de um encadeamento de palavras chegamos, no máximo, a
aproximações. Porque é da própria natureza da imagem resistir à penetração do logos. Sua
simultaneidade, seu impacto instantâneo é inevitavelmente reduzido ao ser apropriado por
uma linguagem cujo princípio é o da sucessão temporal. Em seu texto clássico sobre o método
em arqueologia, por exemplo, Arnaldo Momigliano observa que os estudos iconográficos, ao
contrário da numismática, da epigrafia e da diplomática, apresentam uma grande variação em
termos interpretativos, compondo um campo em que qualquer forma de consenso parece
impossível4. A iconologia nunca será uma ciência rígida e só pode existir num terreno instável
de disputas semânticas.

3
Segundo Erwin Panofsky, enquanto a iconografia descreve e classifica imagens, num momento de análise, a
iconologia projeta sobre esse quadro descritivo uma interpretação, num momento de síntese. Ver o ensaio
Iconography and Iconology: an introduction to the study of Renaissance Art, publicado pela primeira vez em
1939 e reimpresso em: PANOFSKY, Erwin. Meaning in the Visual Arts: papers in and on Art History. New
York: Anchor Books, 1955, pp. 26-54. Uma das críticas feitas a Panofsky, contudo, é a de que, efetivamente, ele
nunca teria passado do momento iconográfico. Para uma revisão crítica do método iconológico, ver:
MITCHELL, W. J. T. The pictorial turn. In: _____. Picture Theory: essays on verbal and visual
representation. Chicago: University of Chicago Press, 1994, pp. 11-34.
4
“Vasos, estátuas, relevos e gemas falam uma linguagem muito mais difícil. (…) Dado um monumento com
imagens sobre ele, como podemos entender o que o artista quis dizer? Como podemos distinguir entre o que é
apenas ornamental e o que expressa uma crença religiosa ou filosófica? (...) Independente dos resultados
14

A primeira parte desta tese trata das obras de Delacroix propriamente ditas. No
capítulo 1, procedemos à iconografia do tema das Quatro Estações concentrando-nos nos
aspectos mais relevantes para a análise das duas séries do francês, a que executou no início de
sua carreira, para o ator François-Joseph Talma e a outra, que executou no fim dela, para o
industrial Jacques-Félix Frédéric Hartmann. Na primeira, ele pintou alegorias individuais
estáticas; na segunda, narrativas mitológicas. Assim, a essa história mais ampla da
representação do tema sucede, no capítulo 2, a análise iconográfica de cada uma das séries de
Delacroix. Acreditamos que um preâmbulo com uma retrospectiva, ainda que bastante
limitada, da abordagem do tema desde a Antiguidade enriquece a leitura da série que é,
isoladamente, o objeto desta tese, porque é com essa tradição sólida e extensa que o francês
dialoga ao criar a sua, durante a sua juventude e, cerca de trinta anos depois, na maturidade.
Isso, desde já, o distingue como um pintor plenamente consciente de sua posição histórica,
que lutava pela própria inserção dentro de um sistema hierarquizado, no qual a legitimação do
que é ou não arte estava ligada (como está ainda hoje) ao mapeamento de afinidades eletivas e
à construção de redes de influência.
No capítulo 3, é abordado o problema do inacabado que As Quatro Estações
Hartmann suscitam. Além de permitir ver o modo como Delacroix construía as formas na
tela, essa série desencadeia reflexões sobre o momento em que um artista decide que uma
obra foi concluída para, então, expô-la ao público. Assim, conduz a uma análise do processo
criativo que passa pela decisão do artista do que mostrar e do que esconder dos olhos do
público, ou seja, da construção da intimidade e da máscara.
A segunda parte desta tese trata de informações contextuais ligadas à relação
entre o artista e o mecenas. Conheceremos melhor o colecionador que encomendou essas
pinturas a Delacroix, Frédéric Hartmann, membro da terceira geração de uma importante
dinastia têxtil alsaciana e, aqui, o texto toma o rumo da biografia e mesmo o da história
regional. Por mais que o empreendimento biográfico esteja sempre sob o risco de cair num
exercício de idealismo, a tentativa de entender a natureza de certas escolhas e motivações
pressupõe inevitavelmente uma investigação do caráter. Fomos conhecendo o comitente
durante o avanço da pesquisa, ou seja, sua figura não estava bem delineada, nem era um

alcançados por Winckelmann (em Versuch einer Allegorie besonders für die Kunst, 1766) e seus predecessores
(Jacques Spoon, Miscellania Eruditae Antiquitates, 1679; J. Spence, Polymetes, 1747; Bernard de Montfaucon,
L’Antiquité expliquée, 1718, etc.), a frequência de concordâncias entre os antiquários é incomparavelmente
menor neste campo do que no campo da numismática, da epigrafia e da diplomática” (MOMIGLIANO, Arnaldo,
Ancient History and the Antiquarian, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 13, No. ¾,
1950, p. 304).
15

objeto central de interesse, desde o início. Compreender a sua trajetória, contudo, tornou-se
importante para compreender o problema da gênese da série de Delacroix, pois a sua vontade
precisou ser levada em consideração pelo artista durante a execução da encomenda.
Além disso, dadas as particularidades da coleção de Hartmann, pareceu-nos
interessante abordar também a história desse corpus no seu devido contexto. Isso vem
enriquecer a perspectiva sobre a continuidade da abordagem de temas consagrados pela
tradição, como o das Quatro Estações, num período de grandes questionamentos sobre o que
é ou deveria ser a arte na modernidade. Nesse sentido, a Parte 2 toca na história do
colecionismo, especialmente entre a burguesia francesa durante o segundo terço do séc. XIX.
A atuação patronal das elites é fundamental para o desenvolvimento das artes numa sociedade
em que o estado não consegue contemplar todos os artistas na distribuição das encomendas,
tampouco, pela margem de arbitrariedade do sistema de concursos, os melhores ou os mais
promissores. Os artistas dependem em grande parte, portanto, de encomendas privadas para
sobreviverem. Apesar de existir um mercado voltado para a classe média, especialmente de
gravuras e pequenos quadros, é à elite que eles devem os seus projetos mais rentáveis.
Não é incomum, em estudos sobre o colecionismo, encontrarmos a frase de Marx
e Engels, extraída de A ideologia alemã, em que afirmam que “as ideias da classe dominante
são, em cada época, as ideias dominantes”5. Poderíamos emendar com a observação de
Baudelaire, em sua exortação aos burgueses na abertura do Salão de 1846, de que há os
proprietários e há os sábios, mas não os dois ao mesmo tempo: “Um dia radiante virá no qual
os sábios serão proprietários e os proprietários, sábios”. Então, continua, o poder da burguesia
“será total e nada nem ninguém se voltará contra ela”6.
Toda coleção é, em alguma medida, uma aventura hedonista ou um instrumento
de legitimação social. Como escreve Italo Calvino, ela é uma busca do Eu por meio de
objetos, ou seja, uma exploração do mundo que é ao mesmo tempo uma realização do Eu7.
Mas ela é também uma busca do Eu por meio do Outro, ou seja, uma forma de sociabilidade.
A relação de Hartmann com as pinturas de sua coleção está, portanto, intimamente ligada à

5
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 47.
6
BAUDELAIRE; PICHOIS (éd.). Critique d’art…, Salon de 1846, 1992, p. 75.
7
CALVINO, Italo. Hermit in Paris. In : ___. Hermit in Paris: autobiographical writings. Trad.: Martin
Mclauglhin, New York: Vintage, 2004, pp. 167-174 [1994]. Há uma tradução para o português publicada pela
Companhia das Letras, em 2006.
16

afirmação de sua própria personalidade, do modo como queria se ver e ser visto dentro
daquela cultura e sociedade. Assim, a parte final desta tese apresenta uma discussão sobre o
gosto do comitente em relação ao de sua época.
Veremos que Eugène Delacroix, na metade do séc. XIX, possuía obras dentro de
coleções importantes e, com frequência, seus quadros estavam pendurados, nelas, ao lado dos
paisagistas holandeses do séc. XVII e de artistas ligados à nova escola de paisagem francesa.
Depois de sua morte, Hartmann repassa a encomenda das Estações a Jean-François Millet. A
mudança de orientação quanto ao tratamento do tema por Millet – de histórias mitológicas
para paisagens e cenas de gênero ligadas à vida no campo – pode ser lida como um sintoma
de um paradigma emergente em matéria de gosto. Ela pode ser associada também a eventos
políticos contemporâneos, bem como à rápida aceleração do desenvolvimento industrial na
primeira metade do séc. XIX na Europa, um dos períodos mais críticos dentro do
Antropoceno, ambos os fenômenos intimamente ligados à biografia do comitente.
Em geral, Delacroix ocupa na história da arte uma posição de passagem, um lugar
de transição. Como Baudelaire, ele é considerado o último clássico e o primeiro moderno. T.
J. Clark chamou-o de “artista da não identidade”; Hubert Damish, de “meio acadêmico, meio
estudante de arte”8. O levantamento de contradições, tanto em seu estilo quanto em sua
personalidade, tornou-se já um lugar comum de sua fortuna crítica. Certamente é muito mais
difícil, para um espectador, aderir apaixonadamente a um projeto em que as definições são
precárias, no qual não há um centro e cujo autor faz questão de manter-se em zonas de
fronteira e de conflito. Por isso ouvimos tanto que Delacroix é um artista, apesar de célebre,
pouco conhecido.
Mas, na verdade, foi o próprio Delacroix que tomou o cuidado de não se deixar
fixar por uma etiqueta. Sua estratégia diante da crítica era ou o silêncio eloquente ou a réplica
que opõe a uma afirmação o seu contrário. Assim, nunca respondeu publicamente aos seus
detratores. Se lhe diziam que era um romântico, retrucava que era um clássico, do mesmo
modo que, inversamente, se lhe diziam que era um clássico, retrucava que era um romântico.
Mas, apesar de todo o esforço em esquivar-se dos rótulos, um deles, com o tempo, colou: o da
contradição. O crítico e pintor Walter Pach e o historiador e connoisseur Bernard Berenson,

8
CLARK, T. J. Delacroix: to observe and imagine. Palestra proferida no Metropolitan Museum, Nova York,
por ocasião da restrospectiva de Delacroix, em 16 de novembro de 2018. Disponível em:
https://www.metmuseum.org/exhibitions/listings/2018/delacroix, acesso em julho de 2019; DAMISCH, Hubert.
Reading Delacroix’s “Journal”. Translated by Richard Miller, October, The MIT Press, Vol. 15, Winter, 1980,
p. 19.
17

ambos norte-americanos, sustentaram um diálogo bastante emblemático, no início do séc. XX,


a respeito disso.
Pach impressionou-se com a grande retrospectiva de Delacroix no Louvre, em
1930, quando já possuía certa convivência com seus escritos e buscava obras do artista na
Europa para comporem coleções norte-americanas. A exposição o convence, “apesar de todo
interesse pessoal” que tem no pintor, de que Delacroix “pertence aos grandes homens do
passado”. Ele a recomenda a Bernard Berenson, já morando permanentemente na Europa.
Berenson responde-lhe que conhece bem a obra de Delacroix, desde ao menos 1887, e que, na
sua idade, não é mais capaz de suportar aglomerações de nenhum tipo, nem mesmo de obras
de arte. Trata-se mais de um contorno diplomático à afirmação direta do motivo de seu
desinteresse. Seis anos antes, em 1924, ela já havia expresso, em carta a Pach, sua crítica à
obra de Delacroix:

“D.[elacroix] era demais um escritor e um teórico &, para o meu gosto, sua arte era
por isso menos ressonante. Não posso evitar de pensar que você o superestima
demais. Ele é demasiado o ilustrador. Sua cor – para mim – não é convincente & sua
forma muito submissa aos cânones de outra arte, a saber, a literatura (...)” (Berenson
a Pach, Florença, 13 set. 1924, In: PEARLMAN (ed.), The Walter Pach Letters,
1906-1958, 2003, p. 62).

Berenson, um especialista renomado em Renascimento, não consegue conciliar o


pintor e o ilustrador em Delacroix. A contradição entre um estilo que nega a imitação da
natureza e um conteúdo ligado a uma história que se quer transmitir com clareza ao
espectador não se resolve, para ele, em sua pintura. A consciência do literato entra em conflito
com a sensibilidade do pintor e vice-versa.
Walter Pach, pensando provavelmente em Berenson, não entende como pessoas
inteligentes continuam resistindo à obra de Delacroix e abre o seu ensaio The classicism of
Delacroix, que retoma ideias publicadas já em 1930, com este parágrafo:

“Quando alguém aprecia profundamente um tipo de arte, fica surpreso ao perceber


que existem pessoas inteligentes que não gostam dela. Quando alguém aprecia
Delacroix, aproveita cada oportunidade de ver sua pintura e inevitavelmente a
coloca entre as mais altas conquistas do gênio europeu. Mas então, conversando com
homens cuja cultura não é nada negligenciável, percebemos que olharam –
ocasionalmente – para as obras do mestre e que reconhecem nele pouco mais do que
amplitude de composição. Consideram mesmo essa qualidade não isenta de certo
tom teatral; veem imperfeições e, de fato, um desenho incorreto. Resumindo, eles
admitem que é um artista de grande ‘importância’ histórica, cuja escola, aquela do
romantismo, produziu trabalhos notáveis, sem sombra de dúvida, mas que o público
deve às vezes e muito apropriadamente rejeitar, com o objetivo de se concentrar em
coisas mais modernas, mais desconhecidas – ou mais permanentes” (PACH, Walter,
The classical tradition in Modern Art, 1959, pp. 20-1).
18

E o meio que Pach encontra de reparar o que lhe parece uma falta entre a
intelligentsia de seu tempo é olhar para a obra de Delacroix do ponto de vista do classicismo
que ela veicula. Pensar no Delacroix clássico e não no moderno.
O crítico que introduziu o Impressionismo francês entre os nórdicos, Julius Meier-
Graefe, escreveu uma monografia sobre Delacroix em 19139 e dedicou-lhe, pouco antes, um
capítulo inteiro de sua obra magna, História do desenvolvimento da Arte Moderna (1904). Na
parte final deste último, o autor contrapõe a imagem de uma ostra que esconde uma pérola à
de pérolas totalmente expostas ao comparar Delacroix aos seus sucessores, os impressionistas:

“Delacroix carrega todo um mundo. Ele se eleva como uma rocha em meio ao caos
diante do buraco da História. (...) Ele possui o aporte da tradição em suas essências
mais puras, o novo é nele como a pérola em sua concha nacarada. Com a certeza
calma do proprietário, ele a deixa lá, bem protegida em sua caixa. (…) Depois dele
vêm os pintores, os pescadores de pérolas, mergulhadores temerários em busca de
deleites mais curtos e mais intensos. Pérolas minúsculas nascem de mundos novos.
Nós nos regozijamos com elas. Como poderia ser diferente? Agora, o universo de
Delacroix que tudo abraça – isso não voltará mais” (MEIER-GRAEFE, Julius,
Entwicklungsgeschichte der modern Kunst, 1904, p. 162).

A contar o exemplo de Berenson, parece que pintores simpatizaram mais com a


obra de Delacroix do que historiadores. Meier-Graefe afirma, já no início do séc. XX, que ela
foi eclipsada pela obra dos impressionistas, os quais assimilaram de seu estilo somente uma
parte, ligada a aspectos técnicos e a harmonias cromáticas. Eles reduziram Delacroix a uma
determinada pincelada e a uma determinada paleta. Fecharam os olhos ao rigor com que ele
escolhia os seus temas e à sua grande erudição. Assim, perderam-se do coração de sua
pintura, desse senso da agonística, justamente a fonte da inquietação ou do incômodo que sua
obra gera até hoje no espectador.
Diante das telas impressionistas, Meier-Graefe, reproduzindo uma reação que bem
poderia ser a do próprio Delacroix, pergunta: “sim, são lindas, não conseguimos parar de
olhá-las. Mas... e daí? O que vem depois?” Elas não vão além do prazer dos sentidos e, para
esses homens, Meier-Graefe e Delacroix, tão comprometidos com o humanismo renascentista
agonizante desde ao menos o período pós-revolucionário, isso ainda não era a grande arte. A
imagem de Paul Valéry de Delacroix “lutando nervosamente o último combate do grande
estilo na arte” resume bem a tarefa ingrata que o pintor tomou para si10.

9
MEIER-GRAEFE, Julius. Eugène Delacroix: Beiträge zu einer Analyse. München: R. Piper & Co. Verlag,
1913. Disponível em: https://digi.ub.uniheidelberg.de/diglit/meier_graefe1922/0009/thumbs, acesso em julho de
2019.
10
VALÉRY, Paul. Autour de Corot, 1932. In: ____. Œuvres complètes, t. II, édition établie par Jean Hytier,
Paris, Gallimard, 1960. (Bibliothèque de la Pléiade, e-book)
19

Assim, o heroísmo da pintura de Delacroix deve mais à tradição humanística do


que à modernidade, tanto que Baudelaire elegeu não ele, mas Constantin Guy, um cronista
visual, como o pintor da vida moderna. Na verdade, todo grande aparato exigido pela tradição
da pintura para representação do mundo visível desde ao menos o Renascimento – andaimes,
grandes telas, cavaletes, modelos profissionais, etc. – já não fazia mais sentido, na ótica de
Baudelaire, para um artista do séc. XIX. Uma prancheta e uma pena bastavam. Obviamente,
não para Delacroix.
Esta tese apresenta um aspecto monográfico fundamental. A abordagem de
campos temáticos mais amplos – a iconografia das quatro estações, o inacabado na arte, o
estilo tardio e a história do colecionismo – tem como ponto de partida, sempre, o problema
central, a série das Quatro Estações de Eugène Delacroix. Procuramos sustentar essas
discussões do modo mais bem documentado possível, recorrendo especialmente a fontes
primárias – cartas autógrafas e outros documentos da época – consultadas em arquivos
franceses, tanto em Paris, quanto em cidades da Alsácia, como Munster, Colmar, Mulhouse e
Strasbourg. Esperamos que, ao final, o leitor possa dimensionar a importância dessas obras do
MASP tanto dentro da produção do artista, quanto naquela de sua época, e que, por meio de
uma análise que não teme nem a diversidade nem a complexidade das narrativas históricas,
encontre a sua própria síntese, desconfiando tanto da ideia de que a arte é pura matéria,
quanto daquela de que é apenas coisa mental.
20

Parte 1
As obras
21

Capítulo 1. Iconografia das Quatro Estações

Representar as estações significa, primeiro, representar a passagem do tempo.


Trata-se, ainda, de um movimento cujo início e o fim coincidem. Portanto, a concepção de
tempo implicada nessas representações é cíclica.
Para nós, hoje, as estações correspondem à alteração climática que ocorre durante
o período em que a Terra dá uma volta completa em torno do sol. Isso se passa de modo
diferente em regiões de clima temperado, mais próximas aos trópicos de Câncer e Capricórnio
e em regiões de clima tropical, mais próximas à linha do Equador. Neste último caso, não é
possível distinguir quatro, mas apenas duas estações, uma de seca e outra de chuva. No
entanto, tais regiões adotam a mesma divisão quadriforme.
Os marcos desta divisão são os solstícios e equinócios, que correspondem ao
modo como os raios solares incidem sobre a Terra de acordo com a sua inclinação sobre o
próprio eixo. No solstício de verão, os dias são mais longos do que as noites; no de inverno,
as noites são mais longas do que os dias. Já nos equinócios, quando o eixo da Terra encontra-
se perpendicular à linha do Equador, noite e dia têm a mesma duração. Isso se passa de modo
simetricamente inverso nos hemisférios norte e sul: no norte, os solstícios de verão e inverno
ocorrem em junho e dezembro e no sul, em dezembro e junho, respectivamente.
O ser humano organizou a passagem do tempo num sistema métrico coerente
observando o movimento dos astros no céu. Embora Tales de Mileto tenha calculado os
intervalos entre os solstícios de verão e inverno e os equinócios da primavera e do outono já
no séc. VII a. C.11, a adoção do calendário solar de mês lunar remonta ao período romano.
Nele, o tempo é organizado com base em unidades de medida interdependentes – ano, mês,
semana, dia – referenciadas na dinâmica dos fenômenos naturais. É um sistema especialmente
linear, pois há um desdobramento sequencial infinito no tempo, independente do espaço:
mesmo que as unidades se repitam a intervalos regulares, a sucessão é horizontal,
cronológica.
Para os antigos gregos, contudo, era a repetição de um ponto fixo no espaço na
qualidade de um círculo fechado sobre si mesmo, a passagem do dia à noite ou de uma
estação à outra, que fazia com que o movimento de avanço fosse medido12. Apesar de

11
Segundo John Burnet (2007[1892]:63), “não há dúvida de que ele [Tales de Mileto] construiu um parápegma
(…). O parápegma foi a mais antiga forma de calendário e indicava, para uma série de anos, os equinócios e
solstícios, as fases da Lua, o nascente e o poente helíacos de algumas estrelas e também previsões do tempo”.
12
Cf. HINKS: 1976[1939], pp. 42-43.
22

alegorias do Tempo (Χρόνος, Crónos) já terem sido formuladas na literatura no séc. V a. C.,
elas aparecem nas artes visuais, e de modo isolado, bastante tardiamente, somente no séc. II d.
C., com a representação do relevo do deus Fanes (Φάνης, Phánis), em Modena, por exemplo
(fig. 1)13. Nele, Fanes, o primeiro deus a nascer do Tempo, “o sem idade”, é retratado segundo
sua descrição no texto das Rapsódias da cosmogonia órfica14, ou seja, como um jovem alado
cujo corpo é envolto por uma serpente. Seus pés são de touro e ele está ereto, entre duas
metades de um ovo que o seu nascimento acaba de romper, no centro de outra oval maior que
retrata os signos do zodíaco15. Numa das mãos ele segura um bastão, na outra, um feixe de
chamas. O processo pelo qual o jovem torna-se, ao longo da Idade Média e do Renascimento,
um ancião de cabelos e barba brancos deve ter algo a ver com a representação de Deus-pai
como “o Antigo de dias”, segundo o texto bíblico16, do mesmo modo que os atributos da foice
e da ampulheta devem ter sido acrescidos ao das asas pela associação com Saturno, deus da
agricultura e do tempo, mas isso não nos interessa aqui. Fato é que, nas artes visuais, tal
alegoria do Tempo como um jovem ou uma jovem17 alados não aparece antes do séc. II d. C.
Segundo Roger Hinks, para representar visualmente as fases internas do Ano
(ενιαυτος, Eniáutos), período de tempo em que as constelações retornam ao mesmo lugar

13
Id., p. 40. Ver também o painel 8, figura 8, do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, disponível em
https://warburg.library.cornell.edu/image-group/panel-8-sequence-4?sequence=923, acesso em julho de 2019.
14
Trata-se de fragmentos colhidos em autores neoplatônicos citando trechos de um texto perdido sobre a
Teogonia órfica (conhecido, na Antiguidade, como Logos sagrado em vinte e quatro rapsódias). O filólogo
alemão Otto Kern os publica, em 1922, sob o título Orphicorum fragmenta. O nascimento de Phanes aparece já
no ínicio: “E o Tempo (Χρόνος) sem idade (ἀγήραος) foi movido pela Necessidade (Ἀνάγκη) e deu à luz Aithír
(Αἰθήρ) e a um Quiasma (χάσμα) ilimitado que se estendeu em todas as direções, e tudo estava em tumulto. Em
Aithír, o Tempo gerou um ovo (ὠεόν ou ᾠόν) prateado, a cria de Aithír e Kháos (Χάος). E o ovo começou a se
mexer num enorme e assombroso círculo e do ovo Phánis (Φάνης) emergiu e quando ele nasceu, Aíthir e
Quiasma foram separados (ἐρράγη)” (minha tradução a partir da tradução inglesa, disponível em:
http://www.hellenicgods.org/orphic-rhapsodies------24, acesso em julho de 2018)
15
Compreensivelmente, a representação é, na verdade, mais simples do que a sua elaboradíssima descrição nas
Rapsódias: “Contemplem o filho de Aithír! O primogênito (Πρωτογόνος)! Aquele que brilha (Φαέθων)! Aquele
que pela sua natureza ilumina tudo e foi o primeiro a aparecer em Aíthir! Testemunhem seus quatro olhos
olhando para todos os lados e maravilhem-se diante de seus quatro cornos! Contemplem suas asas de ouro que
fazem tudo vibrar! Ele bufa como um touro forte e ruge como um leão! Ele é Irikæpaios (Ἠριϰεπαῖος), homem e
mulher, que abriga em seu coração o cego e veloz Aérhos (Ἔρως)! Ele é Mítis (Μῆτις), o progenitor dos Deuses,
que chamam de Revelador e Primogênito! Ele é aquele da voz poderosa (Βρόμιος); ele é Zefs (Ζεύς), o que tudo
vê (πανόπτης)!” (id.).
16
Conforme a tradição aceita pelos iconógrafos tridentinos, de acordo com o livro de Daniel, Deus [Yahveh] é
descrito como um homem velho vestido de branco, com cabelos brancos: “Eu estava atento ao que via, até que
os tronos foram colocados e que o Ancião de Dias se sentou. Sua roupa era branca como a neve e os cabelos de
sua cabeça eram como a lã a mais branca e a mais pura” (Dan., 7,9).
17
Ver o relevo da apoteose de Sabina (c. 138 d. C.), no Palazzo dei Conservatori, Roma, no qual a eternidade é
uma mulher alada segurando uma tocha nas mãos.
23

(Platão, na República, derivou a palavra ενιαυτος de εν εαυτω, “em si mesmo”18), os gregos


usavam as Horai, horas. O autor afirma que, por trás delas, existe todo um mundo de magia e
feitiçaria, de daemons da fertilidade e ritos de passagem, ligados aos aspectos mais imediatos
da vida orgânica. Pois é o ventre, como canta Hesíodo, que aproxima o homem dos animais19.
Embora estejam inter-relacionados, é o ritmo não tanto dos astros quanto o das colheitas o
mais determinante para o homem em seu cotidiano, de modo que é também nesse sentido, de
acordo com seus respectivos atributos, que as Horai passam a ser identificadas com cada uma
das estações.
Elas aparecem já sob o número de quatro na descrição de Kallixenos de Rhodes
da procissão de Ptolomeu II Filadelfo (séc. III a. C.), precedidas de Penteteris, personificação
do quinquênio, e Eniáutos, o ano20. Hinks afirma que no calendário ático, o qual seguia uma
divisão trimestral baseada nas três fases da lua, elas eram apenas três. Só mais tarde, quando é
adotado o ano solar, que se tornam quatro. Aparentemente, então, antes estavam associadas às
três fases da lua. Foi somente quando o sol passou a ser a referência para a contagem do ano
que houve a adição de uma quarta21.
Hinks cita, a título de ilustração, o relevo do Museu da Acrópole de Atenas (c.
600 a. C., fig. 2) que mostra Hermes liderando as três horai acompanhadas de um menino,
interpretado pelo autor como o “daemon Eniáutos”, o espírito do ano novo. Hinks continua
afirmando que, no início do séc. III a. C., as quatro horai do ano solar tornaram-se
canônicas22. Interessante mencionar neste ponto que o número 4 era sagrado para Pitágoras e
para os pitagóricos e que o primeiro texto conhecido contendo explicações sobre as tétrades
aparece já no séc. II a. C.23 Voltaremos a essa questão adiante.

18
Cf. HINKS, 1976[1939], p. 43, nota 1.
19
Teogonia, v. 26; MANTOVANELI: 2011, p.35.
20
“E ela [Penteteris] era sucedida pelas Quatro Estações vestidas a caráter e cada uma delas carregava o seu
apropriado fruto” (ATHENAEUM, Deipnosophists, v. 198, apud HINKS, 1976[1939], p. 44). Trata-se de uma
procissão dionisíaca.
21
O dia 25 de dezembro, por exemplo, fixado pela Igreja romana oficial, na metade do séc. IV d. C., como o do
nascimento de Cristo, equivale ao dia do nascimento do sol nas crenças pagãs, porque a partir desta data um
novo sol começaria o seu curso de um ano [Cf. SEZNEC: 1993(1980), p. 56].
22
Sobre a passagem de três para quatro estações dos gregos aos romanos, ver: MOUNTFAUCON, Bernard de.
Supplément au Livre de l'antiquité expliquée et représentée en figures : les dieux des grecs et des romains,
t. I, Paris, 1724, pp. 18-24.
23
Expositio rerum mathematicarum ad legendum Platonem utilium, de Theonis Smyrnaei. Cf. HENINGER Jr.:
1961, p. 18.
24

Na arte romana, embora as horai portem já cada uma o seu respectivo fruto, como
no texto de Kallixenos de Rhodes, Hinks distingue ao menos três variações: ou são
representadas como figuras dançantes (tais quais as horai gregas), ou como figuras estáticas
com seus respectivos atributos, ou como meninos (os erotes ou genii das estações).
Hinks cita um relevo neo-ático num altar circular da Vila Albani (fig. 3)24 no qual
uma deusa (Hécate?) com uma tocha em cada uma das mãos lidera as quatro estações,
começando pelo verão, e o compara com dois outros no British Museum (fig. 5), com duas
horai cada, no qual a primavera, que segura um cesto de flores na mão esquerda e as patas de
um cabrito com a direita, vem antes25. Segundo ele, essa era a sequência no calendário
romano, ao passo que, no ático, o verão vinha antes. Além disso, na obra do British, os
atributos já estão mais bem definidos: depois da primavera, segue o verão segurando espigas
de trigo e papoulas; o outono, com romãs e uvas dentro da dobra do seu vestido e o inverno,
trazendo a carne de uma lebre, dois patos e um javali. Particularmente o inverno contém uma
lembrança das representações de mênades ou coribantes em êxtase.
Todo um capítulo poderia ser dedicado aos mosaicos que retratam as quatro
estações no período tardo romano. Neles, elas perdem o caráter individual e contínuo da
procissão e tornam-se mais personificações: bustos ou corpos-padrão (como manequins) aos
quais se adicionam os respectivos atributos. Um exemplo do primeiro caso, o das estações
como retratos, encontra-se no Museu do Bardo, em Tunis, num mosaico do fim do séc. II d. C
(fig. 9)26. A composição é organizada em duas colunas com três círculos cada, quatro deles
contendo o retrato frontal de uma das estações, as quais são identificadas pelo fruto ou planta
que carregam. O esquema geométrico é decorativo e o simbolismo já se tornou mecânico.

24
ZOEGA, Giorgio, Bassirelievi Antichi di Roma, 1808, prancha XCIV, p. 219. Ver, para uma variação
interessante com um homem no lugar de uma das horai (presumivelmente o outono): CAVACEPPI, Bartolomeo.
Raccolta d'antiche statue busti teste cognite ed altre sculture antiche scelte restaurate da Bartolomeo
Cavaceppi, III, Roma, 1772, prancha 56 (fig. 4).
25
Ver também os dois relevos em terracota da coleção Campana, do Museu do Louvre (fig. 6), cujo esquema
compositivo é idêntico aos da coleção Campana do museu britânico. Embora Hinks esteja se pautando no fato de
o ano solar romano começar em março, durante a primavera, ele não deixa claro o porquê de esta estação, nesse
caso em que as duas placas estão separadas, vir antes. No relevo Campana do Louvre, as horai aparecem no
contexto das bodas de Tétis e Peleu e há reconstituições em desenho dos fragmentos nas quais é o inverno quem
lidera, não a primavera (por ex., em REINACH, Salomon, Répertoire des reliefs grecs et romains, Paris, 1909-
12, vol. II, p. 262, fig. 7). Além disso, num sarcófago na Vila Albani do início do séc. II d. C. (fig. 8), retratando
o casamento de Tétis e Peleu, é também o inverno quem toma a frente na fila.
26
PARRISH, David, Seasons Mosaics of Roman North Africa, Bretschneider Editore, 1984, cat. n° 1 (pp. 93-
95).
25

Não é incomum encontrar, nesses mosaicos, as estações representadas ao lado dos


trabalhos agrícolas do ano. Nesse caso, elas deixam de ser meramente simbólicas para
integrarem cenas literais e narrativas. Também no Museu de Tunis encontramos um exemplo
desse caso (séc. II d. C.), em que a sucessão ocorre ao redor do círculo central contendo a
figura de Netuno emergindo das águas em seu carro (fig. 10)27. As personificações das
estações são vistas nos vértices do quadrado e de corpo inteiro, com o trabalho agrícola
respectivo, bem como o animal associado, preenchendo os intervalos entre uma e outra e um
arabesco vegetal muito delicado unificando-os.
Em outro exemplo, no qual os trabalhos de cada mês (e não de cada estação) são
representados, aquele do pavimento de uma casa em Saint-Romain-en-Gaul (início do séc. III
d. C., Musée d’Archéologie, Saint-Germain-en-Laye), as estações aparecem dentro de
quadrados que eram centrais – mais de 1/3 do pavimento foi perdido – organizados tais quais
módulos dentro do retângulo maior da área total (fig. 11). A primavera é um menino nu sobre
um touro; o verão um menino nu sobre um leão; o outono, um menino nu sobre um tigre e o
inverno, uma mulher coberta sobre um javali. Em torno de cada um, articulam-se os trabalhos
e as festas das estações correspondentes. No verão, vemos um rito religioso; no outono, o
processo de pressurização de olivas ou de uvas; no inverno, a preparação dos campos. Assim,
nesses mosaicos, a alegoria é acompanhada de cenas narrativas não-mitológicas isoladas,
referidas ao cotidiano agrícola, motor da economia local. Tratam-se de unidades espaciais
concebidas para serem vistas em separado e não como fases dentro de um ciclo com uma
continuidade dramática.
Nas representações das estações como erotes, meninos ou jovens, exclusivamente
tardo romanas, eles aparecem às vezes acompanhados de Saturno (o deus romano do tempo)
ou da personificação de Tellus Stabilita (“a terra reencontra o seu equilíbrio”), como é o caso
do mosaico de Aion, deus da eternidade, na Glyptothek de Munique, datado de c. 200-250 d.
C. (fig. 12), em que Tellus, a contraparte romana de Gaia, está reclinada entre os erotes
abaixo, à direita.
Em sarcófagos romanos do mesmo período, sécs. III e IV d. C., os gênios,
sozinhos ou com Tellus, podem também acompanhar a imago clipeata do morto28. No do
Dumbarton Oaks Museum, em Washington (fig. 13), a corona triumphalis na qual figura o

27
Id., cat. n° 49, pp. 201-4.
28
O estudo mais completo sobre as representações das estações em sarcófagos é o de KRANZ, Peter.
Jahreszeiten Sarkophage : Entwicklung und Ikonographie des Motivs der Vier Jahreszeiten auf
Kaiserzeitlichen Sarkhophagen und Sarkophagdeckeln. Berlin: Gebr. Mann Verlag, 1984.
26

casal falecido é cercada pelos signos do zodíaco para indicar o destino celestial de suas
almas29. Diferentes coroas sobre as cabeças dos jovens alados dispostos frontalmente, um ao
lado do outro, distinguem as diferentes estações: juncos para o inverno; flores para a
primavera; espigas de trigo para o verão; uvas para o outono. Visualmente, a linearidade das
fases sequenciais do ano é quebrada pela circularidade do tondo contendo os signos do
zodíaco30.
Portanto, há na domus aeterna do morto uma dupla narrativa de transição e de
retorno. As estações seriam tanto o símbolo do ciclo eterno de nascimento e morte e
renascimento ao qual todas as coisas vivas estão ligadas, quanto o da progressão linear do
nascimento à morte própria a cada criatura viva em especial. Como escreve Hinks, “o ciclo
menor do ano é apenas uma revolução do maior do mundus magnus, e a encarnação
individual (…) é do mesmo modo uma única fase no processo repetido de reencarnação”31.
É provável, então, que as representações das estações em sarcófagos relacionem-
se à doutrina da imortalidade da alma baseada na transmigração ou metempsicose como
difundida por Pitágoras e pelos pitagóricos, a qual Heródoto afirma que foi emprestada por ele
dos egípcios32. O mais aceito hoje, no entanto, é que ideias orientais, com origem na Índia de
tempos pré-budistas, tenham viajado para o Ocidente e assim chegado a Pitágoras. Com
efeito, na Roma dos séculos III e IV d. C., tal doutrina ainda era bastante influente33.
Lembremos que a sociedade romana encontrava-se então permeada pelo espírito de cultos e
mistérios que cresceram em paralelo ao cristianismo.
No último livro das Metamorfoses (8 d. C.), de Ovídio, por exemplo, Pitágoras,
apresentado como preceptor do rei Numa, discursa à Roma: “Nossas almas/ são imortais;
quando deixam sua antiga morada,/ sempre novas habitações as acolhem,/ para que vivam

29
HINKS, 1976 [1939]: p. 48.
30
Além disso, uma hipótese para o genii do inverno estar vestido como Átis é a da influência de um culto
oriental frígio, segundo o qual Átis dormiu durante o inverno e acordou na primavera, ambos os momentos
celebrados com cultos orgiásticos (id.).
31
Id., p. 53.
32
Essa crença é comum também à doutrina órfica. Alguns críticos dos séculos V e IV a. C., inclusive,
identificavam o orfismo com o pitagorismo, uma vez que não se conhecem poemas órficos anteriores a
Pitágoras. Contudo, embora provavelmente tenham uma origem comum, tais correntes divergem na forma. A
origem da representação das estações nas artes visuais liga-se a esses dois sistemas de ideias e ritos. Para a
referência a Heródoto e as semelhanças e diferenças entre o orfismo e o pitagorismo, ver KAHN: 2007[2001], p.
36 e p. 39.
33
Há uma questão patriótica por trás dessa influência, pois a ordem pitagórica fora criada na península italiana
(antiga Magna Grécia). Cf. KAHN: 2007 [2001], A tradição pitagórica em Roma, pp. 115-23.
27

novamente” (XV. 158-9). Tal doutrina do Pitágoras ovidiano pressupõe um padrão mais
amplo de transformação e mudança: Cuncta fluunt, omnisque vagans formatur imago (Tudo
flui e as formas não são mais que imagens fugidias, XV. 178). É assim também que, em suas
Cartas a Lucílio, datadas de 108 d. C., Sêneca coloca na boca de Socião: “Não são apenas os
corpos celestes que giram em torno de órbitas fixas; almas e animais também retornam em
ciclos regulares”34.
A equação entre as idades do homem e as estações na literatura remonta,
inclusive, a alguns versos do discurso do Pitágoras de Ovídio (XV. 200-13) que sucedem
imediatamente os da doutrina da transmigração. Ovídio, pela voz de Pitágoras, associa as
quatro estações do ano às quatro idades do homem (primavera-infância; verão-juventude;
outono-maturidade; inverno-velhice):

“Será que não vês que o ano se desenvolve


em quatro etapas, seguindo os passos da nossa vida?
Na primavera é delicado e brando, alimentado a leite
como uma criança. Rebenta então a erva nova e viçosa.
É débil, mas enche de esperança os agricultores.
Tudo então floresce, e o fértil campo ri com a cor das flores,
e na folhagem ainda não há um qualquer vigor.
Depois da primavera, mais robusto já, o ano passa a verão
e torna-se jovem, cheio de vigor. Não há realmente
estação mais robusta, mais fecunda e ardente.
Segue-se o outono. Perdeu o ardor da juventude.
Amadurecido e calmo, equilibrada mistura entre
jovem e ancião, de têmporas salpicadas de cãs.
Velho e com passo trêmulo, chega, depois, o medonho inverno,
calvo ou sendo já brancos os cabelos que tem.”35

34
Epist. ad Lucilium, 108.17-21.
35
Tradução de Domingos Lucas Dias, Editora 34, 2017, p. 801. (Apenas descabelados no último verso
substituímos por calvo.)
“Quid? non in species succedere quattuor annum
adspicis, aetatis peragentem imitamina nostrae?
nam tener et lactens puerique simillimus aevo
vere novo est: tunc herba recens et roboris expers
turget et insolida est et spe delectat agrestes;
omnia tunc florent, florumque coloribus almus
ludit ager, neque adhuc virtus in frondibus ulla est.
transit in aestatem post ver robustior annus
fitque valens iuvenis: neque enim robustior aetas
ulla nec uberior, nec quae magis ardeat, ulla est.
excipit autumnus, posito fervore iuventae
maturus mitisque inter iuvenemque senemque
temperie medius, sparsus quoque tempora canis.
inde senilis hiems tremulo venit horrida passu,
aut spoliata suos, aut, quos habet, alba capillos.”
28

Nos sarcófagos romanos, contudo, as figuras das estações possuem todas e


invariavelmente a mesma idade, de modo que a leitura linear (da infância à velhice) não
parece proceder, embora alguns autores a evoquem com base no arranjo espacial em
sequência e na função do objeto em que se encontram, pois a superfície do sarcófago conecta
o mundo dos mortos ao mundo dos vivos por meio do reconhecimento do termo de um
destino individual.
Antes de continuar, é importante destacar, ainda, uma variação da representação
das estações em sarcófagos: como quatro mulheres reclinadas na parte da frisa superior que
compõe a tampa, retratadas nessa posição, primeiro, para ajustarem-se a um espaço retangular
e estreito. Como exemplo, há uma tampa de sarcófago no Museo Pio Clementino (Vaticano),
datada do séc. II d. C. (fig. 14). Podemos supor, talvez, com base num outro sarcófago (séc.
III d. C.) cuja tampa é decorada com um esquema muito próximo, hoje na Galleria Borghese,
Roma (fig. 15), que o relevo da parte de baixo, perdida, retratava uma cena com nereidas e
thiasos marinhos. Delacroix segue o modelo das figuras reclinadas, retomado ainda em
decorações murais renascentistas, na sua primeira série das estações para Talma, embora os
elementos iconográficos sejam mais complexos.
Não é possível compreender o significado da representação das estações na
transição da Antiguidade tardia para a Idade Média sem a referência à astrologia (uma ciência
baseada na relação entre o macro e o microcosmo36) e ao tetractus (“quaternidade”)
pitagórico.
Jean Seznec (1993[1980]) defende que a migração dos deuses pagãos para a
astrologia no período final da Antiguidade teve como resultado a garantia de sua
sobrevivência. Os nomes dos deuses passam a identificar os planetas e os dos semideuses e
heróis, as constelações, do mesmo modo que os animais totêmicos das religiões tradicionais
teriam passado, num período anterior, aos signos do zodíaco. Segundo Seznec, “refugiados”
no céu, eles mantêm sua influência sobre a vida dos homens, que continuam a invocá-los e a
temê-los. Mas a astrologia também cria os seus próprios deuses, particularmente abstratos: o
Sol, o Tempo, o Ano e… as Estações.
O sistema proposto pelo astrólogo Antiochos de Atenas, no séc. II d. C., ilustra
como, no fim do mundo pagão, a astrologia estava completamente integrada à ciência. Nele,
as quatro estações (assim como, todos em número de 4, as idades da vida, os elementos, os

36
A teoria do macro e do microcosmo foi herdada do neoplatonismo e transmitida ao pensamento medieval, no
séc. VI d. C., por Boécio, um dos fundadores da escolástica.
29

ventos, as qualidades fundamentais, os estados do corpo, os humores, os temperamentos e as


cores – todo o espectro do mundo físico, enfim) ligam-se aos 12 signos do zodíaco divididos
em 4 grupos de três37. Tal tradição é retomada na Idade Média em esquemas que figuram as
relações numéricas entre os componentes do mundus, do annus e do homo com vistas a
conformar uma unidade, pois o objetivo da escolástica era o de constituir-se como uma
scientia universalis. E, para tanto, os escolásticos se servirão da tradição pitagórica do
tetractus.
O triângulo era importante para a ordem pitagórica desde antes de Platão. Ao
construir um triângulo começando por uma unidade e acrescentando inteiros sucessivos (.) (..)
(…) (….), os primeiros quatro números formam o tetractus, uma vez que cada lado do
triângulo equilátero resultante possui 4 unidades, como no esquema abaixo:

Segundo Charles Kahn (2007[2001]), era diante desta figura que os pitagóricos
pronunciavam este juramento: “Por ele que deu a nossa alma o tetractus, / A fonte e a raiz da
natureza que sempre flui.”38 Tal padrão inclui em si as três razões musicais (2:3, 3:2, 4:3)
como pares sucessivos de linhas que começam em qualquer vértice. Além disso, a soma dos
quatro números inteiros que o compõem resulta no número que os pitagóricos consideravam
perfeito: 1+2+3+4=10. Assim, o tetractus fornece visualmente “o símbolo completo para a
ordem músico-numérica do cosmo”39.
Pitágoras, inclusive, está por trás da origem da palavra “cosmo”40, cuja
representação desenvolve-se no sentido de conter os quatro elementos (terra, fogo, água, ar) e

37
SEZNEC: 1993[1980], p. 59.
38
Id., p. 51.
39
Id.
40
Cf. Diógenes Laercio (“[Pitágoras] foi o primeiro a chamar mundo o céu e redonda a terra …”, Vidas, Vida de
Pitágoras, final do livro VIII), entre outros autores antigos citados em HENINGER Jr., 1961, p. 13, nota 34. Ele
30

as quatro qualidades (seco, quente, úmido, frio), de acordo com o pensamento de um de seus
seguidores, Empédocles, como pares de opostos, a conciliação entre extremos constituindo o
princípio fundamental da harmonia.
Visualmente, o triângulo equilátero dá lugar ao círculo – a forma prototípica,
desde a cosmologia clássica, das figuras celestes perfeitas41 – e palavras, mais tarde também
símbolos e imagens, são incorporados àquela ordem fundamental de base matemático-
geométrica. A ideia é que ela pode conter e organizar, dentro de um padrão quaternário de
correspondências entre semelhantes e opostos, toda a matéria existente42. No fim do período
medieval, a primeira edição do De natura rerum (1472), de Isidoro de Sevilha (fig. 16), por
exemplo, contém, na qualidade de uma ilustração esquemática das ciências naturais, a famosa
tétrade associando em círculos concêntricos Mundo, Ano e Homem – para o primeiro, os
quatro elementos; para o segundo, as quatro estações; para o terceiro, os quatro humores –
mas só com palavras e arabescos, sem figuras.
Quando exatamente as estações foram incorporadas nesse esquema visual como
figuras é difícil de precisar. É algo, em todo caso, raro no início do período medieval43. No
fim do séc. XI, a iluminura que ilustra o tratado Scholium de duodecim zodiaci signis et de
ventis (Bnf, Département des manuscrits, Paris, fig. 17)44 as apresenta, como nos mosaicos
romanos, enquanto bustos, mas dentro do esquema astrológico medieval, embora sem a
referência aos elementos e às qualidades. A figura do sol (já confundida com a de Cristo)
encontra-se no centro da circunferência, em torno da qual giram os signos do zodíaco
seguidos das estações, tais quais retratos, em cada um dos vértices do folio. São também como
bustos, seguindo assim a tradição visual das iluminuras, que elas aparecem em medalhões

foi, segundo o autor, o primeiro a chamar o universo de κόσμο [kósmo], Mundum, palavra grega que significa
também “ornamento” ou “ordem”, destacando, desse modo, a beleza, ordem e regularidade de suas partes.
41
Kahn, op. cit., p. 206.
42
Como afirma o filósofo estoico da primeira metade do séc. II d. C., Hiérocles, citado por Heninger Jr. numa
tradução inglesa de 1657: “De fato, a tétrade cimenta todas as coisas que existem, como os Elementos, os
Números, as Estações do ano e as Idades. (…) porque a Tétrade está (…) no Criador e na causa de todas as
coisas (…)” (apud HENINGER Jr.: 1961, p. 15). Hiérocles identifica este padrão unificador com a origem
(inteligente) do cosmo.
43
No livro 22 do De Universo (842-7), Rabanus Maurus elenca as quatro estações - ver, aestas, autumnus, hiems
- e acrescenta depois uma quinta, entre o inverno e a primavera, hibernus. Na Porta da Virgem, fachada oeste da
Catedral de Notre-Dame, Paris, os relevos das cinco estações, cf. a leitura de Hinkle (1967), relacionam-se aos
cinco festivais do ano em honra da Virgem. Assim, pensando de um modo mais genérico, é possível que, por não
serem consideradas consensualmente em número de quatro pelos enciclopedistas medievais, houvesse
dificuldade em inseri-las, de início, em esquemas quaternários.
44
Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9067090j/f156.item, acesso em julho de 2018.
31

acima das alegorias do bom e do mau governo, pintadas por Ambroglio Lorenzetti, em 1338-
39, no Palazzo Pubblico de Siena (fig. 18).
A partir do séc. XIV, a astrologia vulgariza-se em calendários e livros de horas.
Nas doze páginas do calendário inserido no Les Très Riches Heures du duc de Berry (c. 1410-
11, Musée Condé, Chantilly, fig. 19) não encontramos ilustrações das quatro estações como
alegorias, antes elas aparecem apenas indiretamente na sucessão dos trabalhos agrícolas e das
festividades ao longo dos meses do ano, bem como nas coordenadas astronômicas
esquematizadas em paralelo. Assim, acima das imagens ilustrando as atividades próprias a
cada mês, encontra-se um semicírculo dividido em sete partes, cada uma contendo
informações astronômicas específicas. O quinto semicírculo encerra o símbolo do signo do
zodíaco correspondente: cada qual começa de acordo com a posição dos astros e da Terra no
início do séc. XV. No mês de março, por exemplo (fig. 19a), o equinócio da primavera
(estamos no hemisfério norte), que marca o princípio do domínio de Áries, tem início no dia
12. A imagem logo abaixo, por sua vez, mostra uma cena de preparação dos campos, poda das
vinhas, semeadura e pastoreio.
O Kalendrier des Bergiers (1493)45 apresenta, nesse sentido, uma versão popular,
convenientemente resumida, na última página, num esquema circular, do calendário privado
dos livros de horas (fig. 20). Para cada mês representado pela sequência de signos são
contrapostas as ocupações humanas ordinárias. Dividindo o espaço do centro, uma mulher
segurando flores com uma árvore frondosa ao fundo e um homem, próximo ao fogo, com uma
árvore seca ao fundo simbolizam a integração entre opostos (feminino/masculino e
verão/inverno).
Os afrescos na Sala dei Mesi do Palazzo Schifanoia, em Ferrara, executados por
Francesco del Cossa e Cosmè Tura, entre 1469-70, possuem uma organização semelhante à
do Livro de Horas do Duc de Berry, que reaparece no Calendário dos Pastores, embora a
iconografia seja muito mais complexa, pois a literatura de base é uma adaptação ou tradução,
que passa também por um deslocamento geográfico, de segunda, terceira ou mesmo quarta
geração de originais gregos46. Aby Warburg notou que a organização das imagens em três

45
A primeira edição foi publicada em 1493, em Paris, Le Compost et Kalendrier des Bergiers, por Guiot
Marchant e uma cópia rara encontra-se na coleção Grenville, British Library, Londres. Na edição de 1529, de
Troyes, as xilogravuras estão em melhor estado. Elas foram reproduzidas em fac-símile em 1908, a partir da
tradução inglesa, feita já em 1503, com introdução de A. H. Diplock. Disponível em:
https://archive.org/details/kalendarofshephe00compiala, acesso em julho de 2018.
46
As fontes, segundo Aby Warburg e seus comentaristas, são, para o estrato superior do afresco, o poema astral
de Manilius, ressuscitado desde 1417, que associa os deuses olímpicos aos signos do zodíaco; o De deorum
imaginibus libellus, de Albericus (Petrus Berchorius, na verdade), o texto anônimo do Ovide Moralisé e a
32

faixas paralelas configura, na verdade, um sistema esférico do tipo do planisfério Bianchini


(Musée du Louvre, Paris, figuras 21 e 22), embora conectado à um destino individual: mais
próximo ao centro, vemos representadas as atividades mundanas segundo o calendário da
corte do duque de Borso d’Este e, passando pelos misteriosos decanatos de cada signo da
faixa central47, chegamos, nas extremidades, aos doze deuses do Olimpo, em seus respectivos
carros, como padroeiros dos meses (e não dos 7 planetas). Novamente, as estações aparecem
refletidas de modo apenas indireto, na sucessão de atividades festivas ou laborais relativas aos
meses (fig. 23).
É de um modo semelhante que elas figuram nos afrescos do Salone do Palazzo
della Ragione, um edifício cívico de Padova, decorado inicialmente por Giotto. Depois de um
incêndio em 1420, foi redecorado por Nicolò Miretto, Antoni di Pietro da Verona e um pintor
de origem ferrarese entre 1425 e 144048. Nesse caso, elas encontram-se representadas na
metade superior da parede - dividida em três faixas - em compartimentos da faixa inferior, na
figura dos meses ou de forma literal como trabalhos sazonais. O mês de abril, início da
primavera, por exemplo, é personificado por uma mulher em trajes da época segurando flores
em suas mãos (fig. 24).

Genealogia Deorum, de Bocaccio. Para a faixa central, o Astrolabium Magnum, de Pietro d’Abano. O conteúdo
deste texto é definido a partir de uma série de camadas culturais sobrepostas. Consiste numa tradução da
Sphaera barbarica, de Teucro (séc. I a. C.), filtrada pela Introductorium magnus de Abû Ma’schar (que morre
em 886). O texto de origem grega ao qual Ma’schar tem acesso chega aos árabes pela intermediação persa já
investido do culto egípcio dos decanatos, intermediado, em parte, pela mitologia indiana. A sua Grande
Introdução, por sua vez, é traduzida para o hebraico, na Espanha, no séc. XII e depois para o francês, no séc.
XIII. É com base nessa tradução francesa que d’Abano elabora a sua versão latina de 1293. Também o tratado de
magia medieval conhecido como Picatrix, traduzido do árabe para o espanhol durante o reinado de Alfonso X de
Castilla, e depois para o latim (manuscrito hoje na Biblioteca de Cracóvia), ajuda a desvendar o complicado
sincretismo mitológico-astrológico da faixa central do afresco. No estrato inferior, vemos o duque de Borso e a
corte dos Este, bem como os camponeses, em suas ocupações mensais. (WARBURG: 2013[1912], pp. 453-505 e
id.; Atlas Mnemosyne, painéis 24, 26 e 27.)
47
Cf. Marco Bertozzi, Abû Ma’schar, em sua Grande Introdução (séc. IX, ver nota anterior), descreve os trinta e
seis decanatos de origem egípcia (os senhores dos dez dias) segundo as versões persa, indiana e grego-
ptolomaica. Cada um ocupa 10° da eclíptica zodiacal. (Isso fica claro na relação entre a terceira e quarta faixa no
esquema do planisfério Bianchini, ver fig. 21). Para além de coordenadas de cálculo, contudo, eram considerados
figuras divinas nas quais se refletiam os atributos das estrelas e constelações que apareciam e desapareciam, na
medida em que a noite sucedia o dia durante dez dias seguidos, dentro daquela seção definida da esfera celeste.
Cumpre notar, ainda, que o texto de Ma’schar é insuficiente para explicar os 21 decanatos que chegaram até nós
como representados no afresco de Ferrara. É legítimo considerar, portanto, que o erudito Pellegrino Prisciani,
astrólogo, historiógrafo e bibliotecário dos Este, serviu-se de outros textos tratando dos decanatos ao criar o
programa iconográfico da sala. (Ver: Warburg, op. cit., pp. 483-500; e BERTOZZI, Marco. “Un rapido schizzo
in forma sferica”: Aby Warburg e lo schema del ciclo astrologico di Palazzo Schifanoia, set./out. 2012,
disponível em: http://www.engramma.it/eOS/index.php?id_articolo=1137)
48
A fonte é o mesmo Astrolabium Magnum, de Pietro d’Abano (ver nota 46 anterior) e o Liber decem continens
tractatus astronomiae, de Guido Bonatti (1277). Ver: RIGOBELLO, Maria Beatrice; AUTIZI, Francesco.
Palazzo della Ragione di Padova: simbologie degli astri e rappresentazioni del governo. Padova: Il
Poligrafo, 2008, especialmente pp. 99-111 e 151-165.
33

Por trás de programas iconográficos como estes, tanto num contexto privado,
como na residência do duque em Ferrara, quanto público, como no palácio de Padova, subjaz
a ideia de que a posição que ocupam os planetas e as constelações no céu exerce uma
influência decisiva sobre a personalidade e a conduta dos homens na terra. As estações, na
medida em que constituem um indicativo universal da passagem do tempo no mundo sublunar
aparecem, no período medieval e proto-renascentista, com raras exceções, apenas como
elementos narrativos subsidiários dessa visão cósmica ampla, de ordem astrológica,
dominante na cultura da época.
Elas voltam a ser tratadas mais diretamente, enquanto alegorias, a partir do séc.
XVI. Além disso, agora vemo-las figurarem em obras móveis separadas, em número de
quatro, caracterizando efetivamente uma série. Na arte flamenga e holandesa reaparecem,
antes do famoso ciclo de pares bimensais (c. 1565) de Pieter Brueguel, o velho, numa série de
gravuras do chamado Mestre A.P., datadas de 1537 (existe uma edição no British Museum,
fig. 25), que representa cada estação sobre carros triunfais. Ilja Weldman (1980) identificou
uma possível fonte, que explicaria a presença dos carros (algo raro nas alegorias das estações)
no texto da Hypnerotomaquia Poliphili (1499), no qual uma xilogravura que mostra o carro
com Vertumno e Pomona49, ilustrando um trecho de uma longa procissão descrita no texto,
precede imediatamente as alegorias isoladas das quatro estações (fig. 26). De fato, o Mestre
A.P. incorporou o atributo de Pomona na Hypnerotomaquia, a cornucópia cheia de frutos, em
suas figuras do Copiecornu e da Abundancia50 na gravura do Outono, cujo carro triunfal leva
Pomona, sobre a marquise do qual se ergue um homem – a alegoria da estação propriamente
dita – cingido com folhas de parreira e segurando cachos de uva. Cada composição é
acompanhada, no alto, de um verso do Livro II das Metamorfoses de Ovídio, a fonte mais
óbvia para a representação das estações, bastante conhecida no séc. XVI. Trata-se de um
trecho extraído da história de Fáeton, na qual Apolo, o Sol, é visto em seu trono cercado pelas
Horas, divididas em quatro:

“a fresca Primavera estava lá, adornada com coroas de flores;


e o Verão, nu, carregava guirlandas de espigas,
e o Outono, manchado por pisar as suas uvas,

49
Vertumnus (de verum/autumnus, primavera/outono, ou de vertere, mudar, deus da mudança de estações) e
Pomona (de pommus, fruto) são duas deidades romanas associadas à mudança das estações. Nas Metamorfoses
(XIV. 623-771), a bela ninfa dos jardins e pomares, que ignora todos os seus pretendentes, cede às investidas de
Vertumno, capaz de mudar de forma, o qual um dia lhe aparece como uma senhora idosa que a convence sobre o
amor dele por ela.
50
O corno da cabra Amalteia era chamado de corno da abundância (Copie cornu).
34

e o Inverno, com seus cabelos cinza enregelados.”51


(Ovídio, Metamorfoses, II. 27-30)

Assim, nas quatro gravuras da série das estações do Mestre A. P., a alegoria da
Primavera é uma mulher com flores no cabelo e na dobra da saia de seu vestido; a do Verão,
uma mulher seminua segurando uma guirlanda de espigas de trigo, as quais leva também
numa coroa ao redor da cabeça; a do Outono, como visto, um homem segurando cachos de
uva e cingido com folhas de parreira; a do Inverno, uma mulher idosa com um braseiro
fumegante sobre a cabeça.
Cumpre notar que, pelo texto de Ovídio, não sabemos se as personificações são
masculinas ou femininas, uma vez que o gênero de cada uma corresponde ao das palavras em
latim que designam as estações: neutro para a Primavera, feminino para o Verão e o Inverno e
masculino para o Outono. No caso do Mestre A.P., a Primavera, o Verão e o Inverno são
mulheres; o Outono, homem. Além disso, o atributo do fogo na alegoria do Inverno encontra-
se expresso não nas Metamorfoses, mas no Remedia Amores (II:187-88). Nele, Ovídio
associa, por contraste, esta estação com o fogo: “O outono traz frutos, o verão é justo com as
colheitas, a primavera traz flores, o inverno é aliviado pelo fogo”52.
Além de Pomona para o Outono, Ceres é a deusa entronada no carro triunfal do
Verão, Flora, no da Primavera e Janus, no do Inverno. Os meses e os signos encontram-se
estampados em estandartes na fila processional, erguidos por coadjuvantes das figuras
alegóricas e mitológicas em marcha. Na Primavera, entre tais figuras, vemos Orfeu; no
Verão, Febo (o epíteto do deus solar Apolo); no Outono, Baco; e, no Inverno, Éolo. É Éolo,
inclusive, quem figura na xilogravura que representa o Inverno na Hypnerotomaquia

51
Minha tradução a partir da tradução para o inglês de Charles Martin (2004). O trecho completo, em latim, é
este:

“purpurea velatus veste sedebat [“Febo sentou-se em trajes púrpura no alto de um trono
in solio Phoebus claris lucente smaragdis. que resplandecia com o esplendor de esmeraldas;
a dextra laevaque Dies et Mensis et Annus ao seu lado esquerdo e direito estavam Dia e Mês e Ano
Saeculaque et positae spatiis aequalibus Horae e Século e todas as Horas, uniformemente divididas;
Verque novum stabat cinctum florente corona, a Primavera fresca estava lá, adornada com coroas de flores;
stabat nuda Aestas et spicea serta gerebat, e o Verão, nu, carregava guirlandas de espigas,
stabat et Autumnus calcatis sordidus uvis e o Outono, manchado por pisar em suas uvas,
et glacialis Hiems canos hirsuta capillos.” e o glacial Inverno, com seus cabelos grisalhos hirsutos.”]

Segundo G. M. A. Hanfmann (1951), citado por Weldman (1980:152, nota 13), Ovídio teria se inspirado num
poema escrito na corte de Alexandria sobre uma procissão dedicada a Ptolomeu II Filadelfo, na qual Faéton e as
figuras do Ano e das Horas tomam parte (a este mesmo texto já foram relacionadas as representações das
estações como horai na Antiguidade; ver nota 20 anterior).
52
“Poma dat autumnus: formosa est messibus aestas, Ver praebet flores: igne levatur hiemps.” Cf. VELDMAN:
1980, p. 152.
35

Poliphili53. O rei dos ventos, que os mantinha trancados no Monte Etna, lidera a procissão no
Inverno do Mestre A. P., onde se encontra logo abaixo do estandarte do mês de dezembro,
seguido de Janus, o deus de rosto duplo honrado no carro, o qual corresponde ao mês de
janeiro. Ainda no último plano de cada gravura, vemos representados os trabalhos de cada
mês e os humores.
A variedade e complexidade dessas representações alegóricas perdurarão, ainda,
em trabalhos de tapeçaria dos séculos XVI e XVII e em programas decorativos do XVIII,
sobre os quais nos deteremos adiante. Nas artes gráficas, a série das quatro estações
desenvolve-se no sentido de uma maior simplificação, mas sempre com algum grau de
variação em termos de iconografia.
A série de Maarten van Heemskerck, gravada em 1563, por exemplo (fig. 27),
concentra-se nas figuras alegóricas isoladas, vistas em primeiro plano, de corpo inteiro, sobre
um fundo campestre ou urbano no qual abaixo, na terra, os trabalhos de cada estação têm
lugar e acima, no céu, os três signos do zodíaco correspondestes atestam a influência
persistente da astrologia. As alegorias, ainda que acompanhadas dos versos latinos de
Hadrianus Junius, seguem a descrição de Ovídio nas Metamorfoses, tanto a do Livro II quanto
a do XV, que estabelece a relação com as idades do homem.
A série de Maarten de Vos, do fim do séc. XVI, por sua vez (fig. 28), enraíza-se
mais no texto da Hypnerotomaquia, com a “bela deusa com guirlandas de flores” e o
“menininho alado com atributos que infligem feridas”, Vênus, para a Primavera; a “dama de
aparência virginal coroada com espigas de trigo”, Ceres, para o Verão; o “deus nu com
aspecto de criança coroado com folhas de videira”, Baco, para o Outono; e, finalmente, a
“régia imagem” com “o cetro na mão esquerda”, “olhando para o céu” turbulento, e “vestindo
a pele de animal e o calçado antigo”, Éolo, para o Inverno54.

53
J. Appell (1898:10), no prefácio a uma edição fac-símile das xilogravuras publicada no séc. XIX, interpreta a
figura como Jupiter Pluvius, mas o nome Aeoliae consta no texto (em italiano obscuro) e vem inscrito abaixo da
imagem na primeira edição veneziana de 1499 (disponível em:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k587910/f193.item, p. 197 do pdf). A figura sob o céu de chuva e neve porta
a coroa e o cetro, atributos de Júpiter, mas Éolo é também o rei da Eólia. Nas Metamorfoses, ambos aparecem na
cena do dilúvio, o que pode ter gerado a ambiguidade. Ovídio conta que o senhor do Olimpo decidiu varrer a
humanidade da terra fazendo, primeiro, cair sobre ela uma terrível tempestade: “Outra punição agora o agrada,/
afogar a raça dos mortais sob as ondas/ e enviar jatos de chuva de cima abaixo./ Imediatamente ele fecha o vento
Norte na caverna/ de Éolo, junto com todos aqueles ventos/ que dissipam as nuvens; o vento Sul é deixado solto/
e voa ligeiro com suas asas molhadas,/a face terrível oculta na escuridão (…)” [poena placet diversa, genus
mortale sub undis/ perdere et ex omni nimbos demittere caelo./ Protinus Aeoliis Aquilonem claudit in antris/ et
quaecumque fugant inductas flamina nubes/ emittitque Notum./ madidis Notus evolat alis,/ terribilem picea
tectus caligine vultum (…)](minha tradução com base na tradução para o inglês de Charles Martin, 2004, I. pp.
260-65).
54
Hypnerotomaquia, op. cit. (ver nota 53), pp. 195-96 do pdf.
36

O Éolo de Maarten de Vos, contudo, é reconhecido apenas por meio do atributo


da corrente que segura nas mãos, como citado na entrada Eolo da 1ª edição, de 1593, da
Iconologia, de Cesare Ripa, pois o artista o retrata como um homem idoso vestido com trajes
pesados de inverno55. Ele segue a tradição ligada ao texto de Ovídio, que associa o Inverno à
senilidade, retomada por Ripa no caso das stagioni dell’ano, o qual afirma, ainda, que tal
estação poderia ser representada por Éolo ou Vulcano. Assim, o artista funde, com base no
texto de Ripa, o rei dos ventos e a alegoria típica do inverno. No caso das demais estações, as
deidades pagãs Flora, Ceres, Baco/Pomona são aquelas que figuram no manual do italiano56.
Essas associações aparecem também numa série de epigramas da Anthologia Latina57 e já
haviam sido propostas por Vincenzo Cartari, antes de Ripa, no seu Le imagini degli dei degli
Antichi (1556, fig. 29).
O primeiro ciclo das estações de Giorgio Vasari, uma encomenda do banqueiro
Bindo Altoviti para uma loggia de sua Villa, em frente ao Castel Sant’Angelo, em Roma, foi
gravado por Thomas Piroli numa edição parisiense de 1807 (figuras 30a e 30b)58. Vasari

55
Na entrada Eolo re de venti, lê-se: “Huomo con l’ali, & con capelli rabuffatti, cinti di una corona, le guancie
gonfie, & con ambe le mani tenghi in fiera attitudine un freno. Si dipinge che porti la corona, & il freno,
percioche i Poeti [Ovídio] lo chiama-no Re de venti (…)” (grifo nosso, Ripa, Iconologia, 1603, 1ª ed. ilustrada,
p. 495). A seguir, Ripa cita Virgílio (Livro I, Eneida) e Ovídio como citado por Bocaccio (Livro XV,
Genealogia deorum gentilium, 1360-74). Em outra edição desta série das Estações, Maarten de Vos retrata Éolo
nu, na mesma posição, abandonando os trajes de inverno e o fogareiro no canto inferior direito da composição
(fig. 28a).
56
Ripa, Iconologia, 1603, pp. 473-77. As fontes de Ripa para sua associação das estações com os deuses pagãos
são, além dos poetas latinos Ovídio, Virgílio, Horácio e Manílio, os mais próximos Giovanni Bocaccio
(Genealogia deorum gentilium, 1360-74), Gregorio Giraldi (De annis et mensibus, caeterisque temporum
partibus, 1541) e Pietro Valeriano (Hieroglyphica, 1556).
57
Nessa coletânea de epigramas de poetas menores do norte da África romana, há um conjunto de quartetos,
escritos pelos chamados “doze poetas escolásticos”, que consiste em exercícios sobre os versos de Ovídio do
Livro II das Metamorfoses tratando das estações. Muitos deles encontram-se inscritos em gravuras holandesas
das estações do séc. XVI, cf. lemos no artigo de Veldman (1980) supracitado. Por exemplo, o epigrama atribuído
a Euphorbius: “Na Primavera, Vênus dourada regozija-se em guirlandas de flores/ Ceres amarela reina no verão/
O outono vinífero, ó Baco, é o seu grande poder/ No Inverno, o império passa aos ventos frios e atrozes” [Vere
Venus gaudet florentibus aurea sertis. Flava Ceres aestatis habet sua tempore regna. Uvifero autumno summa
est tibi, Bacche, potestas; Imperium saevis hibero frigore ventis]. E o de Vomanius: “A primavera pinta os
bosques de cores variadas/ O verão ardente veste os campos com as espigas de milho de Ceres/ O outono arranca
as uvas da videira/ No inverno, os céus gelam com nuvens cheias de neve” [Ver pingit vario gemmantia prata
colore. Ignea vestit agros culmis Cerealibus aestas. Vitibus autumnus turgentes detrahit uvas. Frigore at
hyberna est gravibus nive nubibus aether]. Etc. Ver também: KAY, M. N. Epigrams from the Anthologia
Latina: Text, Translation and Commentary. London: Bloomsbury, 2006, especialmente 155(116R), p. 45 e
pp. 155-157.
58
Trata-se de um álbum de gravuras raro. Charles Davis (1979) escreve que tomou conhecimento dele por meio
da Michelangelo-Bibliographie de Steinmann e Wittkower (n. 1474, Peintures de la Ville Altoviti à Rome,
inventées par Michel-Ange, peintes par Giorgio Vasari et gravées au trait par Thomas Piroli, Paris, faisant
partie de la Calcographie des frères Piranesi, 1807). Há um exemplar na Biblioteca Casanatense, em Roma
(disponível em: http://opac.casanatense.it/Record.htm?idlist=2&record=10104669124929228419, acesso em
julho de 2018).
37

recorre, em 1553, à iconografia tradicional e retrata Flora na Primavera, Ceres no Verão,


Baco no Outono e Éolo no Inverno. A figura de Flora ajeita as tranças dos cabelos em coroa
diante do espelho (como num toalete de Vênus); Éolo possui asas; ao lado de Ceres se
encontram duas serpentes enroladas uma na outra, bem como um staio (unidade de medida de
grãos) – variantes iconográficas pouco comuns.
O segundo ciclo de Vasari tratando do mesmo tema foi concebido cerca de dois
anos depois (1555-57) para o Duque Cosimo I de Médici, no Palazzo Vecchio, em Florença,
cujo programa decorativo trata da história dos elementos e da genealogia dos deuses (fig. 31).
No teto da Sala di Opi, uma divindade arcaica romana equivalente à Tellus – figura que
vemos no quadro central, com seu cetro e “coroa de muros” sobre um carro puxado por leões
–, neste teto, Vasari retrata, segundo seu próprio relato, Prosérpina na Primavera, Ceres no
Verão, Baco no Outono e um homem idoso próximo ao fogo no Inverno, todos como figuras
reclinadas sobre um fundo que mostra, arranjados em faixas cadentes (sestoni), os frutos da
respectiva estação59. O programa completa-se com a representação dos meses e signos do
zodíaco60.
As alegorias das estações dentro deste contexto profano e astrológico-mitológico
foram abordadas, ainda, nos afrescos de Paolo Veronèse na Sala dell’Olimpo da Villa di
Màser (1560-61), noroeste de Treviso, Vêneto (fig. 32), e na decoração do teto de uma das
salas do Palazzo de Firenze (c.1574-75), pintado por Jacopo Zucchi. Nos séculos XV e XVI,
tais programas decorativos já haviam se tornado comuns e a representação das estações
repete-se com pouca variação de um para o outro.
O equivalente, no Norte, dessas grandes decorações murais italianas do
Cinquecento e do Seicento eram as tapeçarias, especialmente as produzidas na França e em

59
“Or ecco mi questi quattro quadri, che mettono in mezzo questo ovato, sono le quattro stagioni; quella
giovane più rugiadola, e più gentile di tutte queste figure, con acconciatura di fiori, vestita di cangiante, è
Proserpina, che sta a sedere in quel prato fiorito di rose; e questi sestoni, che ha di sopra, pieni de' primi frutti,
denotano essere la Primavera. Quest'altra, che segue in quest’ altro quadro, è Cerere vestita di giallo, femmina
più matura d’aspetto; e con quel corno di dovizia pieno di spighe, e con quei sestoni pieni di frutte grosse,
l’abbiamo finta per la State. Così quest’altro giovane in quest’altro quadro d’età virile, vestito di verde giallo
co’sestoni, e tante viti, e uve attorno, è Bacco a modo nostro fatto per lo Autunno. E quest'altro, che segue in
quest'altro quadro, vecchio, e grinzuto col capo coperto, che sta rannicchiato con le ginocchia, che ha il fuoco
appresso, abbrividato di freddo, tutto tremante, è fatto per il Verno, che anche esso ha li suoi sestoni, siccome
gli altri, pieni di foglie secche, suvvi pastinache, carote, cipolle, agli, radici, rape, e maceroni.” In: VASARI,
Giorgio, Ragionamenti del signor cavaliere Giorgio Vasari sopra le invenzioni da lui dipinte in Firenze nel
palazzo di loro altezze serenissime D. Francesco de Medici..., Arezzo, 1762 [Firenze, 1588], p. 26.
60
“P.: Tutto bene; ma io vorrei sapere queste quattro stagioni, e questi dodici mesi, che denotano sotto questa
Dea? G.: Denotano, che essendo ella madre di tutta la terra, come s'è detto, ha l’anno partito in quattro tempi e
quelli, poi anno generato li dodici mesi, che mediante i loro segni celesti, in diversi aspetti, e temperamenti
possono altrui corre, dare, crescere e sminuire (...)” (id., p. 28).
38

Flandres. O tema das estações tornou-se recorrente também nesse meio, respondendo a uma
demanda de mercado. Tais peças eram feitas para cobrir inteiramente as paredes dos cômodos
das residências reais ou de nobres e aristocratas. A série de quatro das Doze idades do homem
criada pela Manufatura de Bruxelas, entre 1516-20, hoje no Metropolitan Museum, Nova
York, representa, em torno da alegoria de cada estação entronada no centro da composição –
Vênus, Ceres, Baco e Éolo –, os trabalhos agrícolas ao fundo com um medalhão, acima,
indicando os signos, os ventos e o mês e, em primeiro plano, histórias moralizantes
relacionadas às idades do homem divididas em doze etapas, contadas de seis em seis anos
(figuras 33a e 33b).
Edith Standen (1969)61 observou que o deviser (inventor) baseou-se, em grande
parte, no popular Kalendrier des Bergiers tanto para compor os versos em latim, quanto para
escolher as histórias presentes nas tapeçarias. No mês de abril, por exemplo, sob os versos:
“Agora o Touro mostra flores em abundância nas árvores / Tão cedo a juventude mostra
esperança de virtudes”62, encontra-se o episódio de Hércules escolhendo entre o vício e a
virtude. No Kalendrier é feita a mesma referência à virtude nessa idade: “A erva cresce e a
árvore floresce (…) aos vinte e quatro anos o homem torna-se virtuoso”63.
Assim, nas quatro tapeçarias de Bruxelas, a representação das estações como
deuses pagãos é o eixo em torno do qual vemos dois ciclos – o da natureza e o da vida
humana – correrem em paralelo. No primeiro, localizado no último plano das composições,
após o gelo e o degelo, a terra é cultivada, dela nascem flores, frutos e grãos, que são colhidos
e tornados próprios para o consumo, depois novas sementes são plantadas e tudo recomeça.
No segundo ciclo, em primeiro plano, cujo tom é moralizante (e essa é uma marca distintiva
no tratamento do tema das idades pelos teóricos humanistas no tardo medievo), as histórias
retratadas seguem uma lógica semelhante: o ser humano passa da ignorância à inteligência, é
educado, escolhe a virtude, procria, pretere riquezas em favor da glória, acumula bens que lhe
garantam em sua velhice, educa seus filhos e morre64. Podemos pensar que implícita na última

61
STANDEN, Edith A. The Twelve Ages of Man: A Further Study of a Set of Early Sixteenth-Century Flemish
Tapestries, Metropolitan Museum Journal, Vol. 2 (1969), p. 165.
62
Jam Taurus letos ostentat in arbore flores,/ Sic spes virtutum prima juventa notat.
63
« L'herbe croist et l'arbre florit ... à vingt et quatre ans Devient I'homme fort vertueulx. »
64
Cf. Standen, op. cit., p. 160. As histórias escolhidas para representar cada fase do desenvolvimento humano
são: Janeiro (O teste de Moisés); Fevereiro (O adolescente Papirius omite da mãe as discussões no Senado);
Março (O jovem Alexandre convence os emissários persas); Abril (Hércules escolhe entre o vício e a virtude);
Maio (Vênus e Adonis); Junho (Mario Curius Dentatus recusa os presentes dos embaixadores samnitas); Julho
(A formação de Esculápio junto ao centauro Quíron); Agosto (A visão de José e o estoque de grãos para os
39

cena, do mês de dezembro, com Jacó no seu leito de morte abençoando os seus filhos, está a
ideia de que o ciclo recomeça em seus herdeiros. A tragédia da morte individual é anulada
pela renovação da vida da espécie. Além de feitos, filhos são o outro modo dado ao ser
humano de vencer a morte.
As tapeçarias representando as estações, criadas por Charles Le Brun, cujas oito
edições foram tecidas na Manufacture Royale des Gobelins, entre 1669 e 1716, tinham por
objetivo, ao contrário daquelas de Bruxelas, exaltar aspectos da vida de um único indivíduo e
não da espécie (figuras 34a, 34b e 34c). Elas foram concebidas para celebrar a figura de Luís
XIV e decorar os Bâtiments du roi. Três delas, remanescentes de uma das edições, encontram-
se atualmente expostas no Château de Fontainebleau. Cada estação é representada por um par
de figuras mitológicas suspensas numa nuvem no centro da composição: Vênus e Marte
(primavera); Minerva e Apolo (verão); Baco e Diana (outono); Saturno e Hebe (inverno).
André Félibien nos informa que o divertimento próprio a cada estação, bem como a Maison
Royale mais frequentada, também se fazem presentes65.
Outro projeto de Le Brun que inclui a representações das estações do ano é o da
Galerie d’Apollon, no Louvre, iniciado em 1661, como parte da reconstrução da Petite
Galerie, após sua destruição num incêndio. O programa decorativo centrava-se na figura solar
de Apolo, celebrando o governo do rei-sol Louis XIV. No projeto, as estações aparecem em
quatro compartimentos próximos aos vértices do central, onde Le Brun pintaria, segundo seu
aluno Claude Nivelon, Apolo “sobre um carro de ouro, puxado por quatro cavalos, o qual
durante o trajeto diário distribui sua luz sobre as quatro partes do mundo, representadas pelas
nações em quatro grandes grupos de escultura, colocados nos quatro ângulos desta galeria
(…)”66. As estações simbolizariam, nesse contexto, os benefícios produzidos pela irradiação
da luz solar. Le Brun articula aos períodos do ano, ainda, pinturas das quatro partes do dia e

tempos de seca); Setembro (Hércules e Hespérides, 11º trabalho); Outubro (O imperador Tibério II distribui seu
tesouro aos pobres); Novembro (Tobit aconselha o filho Tobias); Dezembro (Jacó em seu leito de morte).
65
FÉLIBIEN, André. Tapisseries du Roy: ou sont représentez les quatre elemens et les quatre saisons de
l'année. Paris: Mabre-Cramoisy, 1670. Os divertimentos são ilustrados em painéis emoldurados por guirlandas
com flores e frutos da estação, exibidos pelas figuras centrais ao espectador: exercícios de guerra (primavera);
Palais du Louvre (verão); caça (outono); um espetáculo de ballet (inverno). Os bâtiments são vistos ao fundo:
Orangerie do Château de Versailles (primavera); Château de Fontainebleau (verão); Château de Saint-Germain-
en-Laye (outono); Porte de la Conférence dando para o hoje perdido Château de Tuileries, residência real antes
da transferência a Versailles (inverno).
66
« … sur un char d'or tiré de quatre chevaux lequel pendant la course journalière répand sa lumière sur les
quatre parties du monde, représentées par des nations en quatre grands groupes de sculpture, placés dans les
quatre angles de cette galerie (…) », transcrição de Bénédicte Gady do manuscrito, copiado no séc. XIX, da
biografia de Le Brun e conservado na Bnf, Paris, in: BRESC-BAUTIER (ed.): 1998, p. 338.
40

dos elementos (Terra/triunfo de Cibele e Água/triunfo de Anfitrite), mais os doze meses e


signos zodiacais nas esculturas em estuque e as atividades agrícolas dos meses em medalhões
monocrômicos menores.
Em 1671, contudo, Louis XIV muda-se para Versailles e Le Brun deixa o projeto
inacabado. Primeiro os acadêmicos, no séc. XVIII, o complementariam pintando as quatro
telas das Estações; depois, em 1850, Delacroix seria chamado pelo arquiteto Félix Duban, à
frente da restauração do espaço, para executar a pintura central (fig. 35), pensada para receber
a representação de Apolo em seu carro, numa alegoria do sol nascente. Le Brun deixou um
esboço bastante sumário da composição, identificado com o projeto da galeria apenas
recentemente67. O livro de gravuras de Augustin-Renard Saint-André, publicado em 1695,
que Duban emprestou a Delacroix, não trazia, igualmente, nenhuma referência nesse sentido.
Delacroix poderia ter visto alguma outra decoração francesa retratando Apolo.
Frequentemente, no séc. XVIII, ele aparecia cercado pelas Horas/Estações, um tema que fazia
parte, desde o séc. XVII, do Allgemeingut. Encontramo-lo, por exemplo, no teto do Salon
d’Apollon pintado pelo aluno de Le Brun, Charles de La Fosse, no château de Versailles (fig.
36) e na decoração de Eustache Le Sueur da sala das musas, no Hôtel Lambert, Paris (fig. 37).
Apesar do dourado intenso ao redor do deus em Delacroix possuir precedentes na pintura do
séc. XVIII, a escolha do episódio pelo artista, nesse contexto, é particular. Apolo é o sol
nascente, mas também é aquele que mata a serpente Píton e salva a espécie humana da
extinção. Contudo, as estações foram representadas por ele somente de modo indireto, na cor
e posição da cabeça de cada um dos cavalos que dirige o carro de Apolo68.
É na segunda metade do século XVII que aparece, ainda, um novo modo de
representar o tema, como nas gravuras do norte, num formato serial. Nicolas Poussin pinta as
Estações (Musée du Louvre, Paris) para o duque de Richelieu, entre 1664-1665, por meio da
representação de histórias bíblicas extraídas do Antigo Testamento: Adão e Eva no paraíso
terrestre (Gên., III, 6) para a Primavera (fig. 39a); Boaz autoriza Rute a colher trigo em seus
campos (Rut., II, 8-10) para o Verão (fig. 39b); Caleb e Josué trazem o cacho de uva gigante

67
MONTAGU, Jennifer, Le Brun et Delacroix dans la Galerie d’Apollon, La Revue du Louvre et des Musées
de France, n° 5, 1962. O desenho está no Cabinet des Dessins do Louvre, Inv. 29493r.
68
Os cavalos representam, na verdade, as partes do dia: amarelo avermelhado com a cabeça baixa para a aurora,
dourado com a cabeça reclinada para o sol da manhã, branco com a cabeça erguida para o sol do meio-dia e
marrom com a cabeça baixa para o sol poente. A associação com as estações é feita, um pouco forçadamente, no
mesmo sentido. Delacroix escreve nos diários que Delaporte o lembra deste simbolismo, que se encontra
também em Cartari, cf. JOHNSON, The paintings of Eugène Delacroix, V, p. 118, nota 4; ver também: Journal,
I, p. 499, 10 abr. 1850.
41

de Canãa – a terra prometida – aonde foram enviados como espiões por Moisés (Núm., XIII,
23) para o Outono (fig. 39c); e o Dilúvio (Gên., VII, 7-18) para o Inverno (fig. 39d).
Alain Mérot69 nota nos quadros não propriamente a representação da passagem do
tempo no mundo físico, mas antes uma sobreposição de tempos distintos: o cíclico do ano; o
linear (escatológico) da narrativa bíblica, que vai das origens ao fim do mundo; o religioso, no
qual o Velho Testamento prefigura o Novo; e o natural da vida orgânica, que vai do
nascimento à morte e ao renascimento. De fato, a série de Poussin possui o mérito de
representar um tema alegórico não por meio de personificações ou de narrativas cotidianas,
mas sim por meio de narrativas históricas remetidas ao tempo heroico dos acontecimentos e
exemplos, limitando cada período do ano a um evento específico como contado pelas
Escrituras. Ele funde, então, a pintura alegórica à pintura de história – mais: aborda um tema
essencialmente profano de uma perspectiva sacra – e elimina da tradição visual ligada a ele a
convenção, as alusões mecânicas e o excesso de referências.

***

A história da representação das estações do ano oscila entre um modo mais


simbólico ou alegórico e outro mais literal ou narrativo, muitas vezes dentro de um mesmo
período de tempo. Na Antiguidade greco-romana, elas eram representadas inicialmente pelas
figuras das Horas em procissão. Também as encontramos em mosaicos como retratos
estáticos ou como meninos (erotes, genii) aos quais eram adicionados os respectivos atributos
– flores para primavera, espigas de trigo para o verão, cachos de uva para o outono e animais
de caça, fogo ou roupas pesadas para o inverno.
No contexto dos mosaicos, ainda, são ilustradas por meio dos trabalhos agrícolas
próprios a cada sequência de meses, concebidos para serem vistos isoladamente, compondo,
portanto, narrativas do cotidiano isentas de um conteúdo dramático que se desenvolve no
tempo: trata-se da representação de ações não tanto com um começo, meio e fim, mas
ocorrendo numa espécie de “eterno presente”. Nos sarcófagos tardo- romanos, elas aparecem
como jovens em pé enfileirados, vistos de frente, ou mulheres reclinadas junto, igualmente,
aos seus atributos característicos.
As representações visuais das estações ligam-se, no Ocidente, em sua origem
greco-romana, primeiro ao sistema métrico do calendário lunar ático (quando eram em

69
MÉROT: 2009, pp. 161-72.
42

número de três) e depois ao do calendário solar romano (quando passam ao número de


quatro). Segundo, à visualidade sequencial das procissões, conforme a descrição de
Kallixenos de Rodhes sobre aquela em honra de Ptolomeu II Filadelfo, na qual Ovídio teria se
inspirado ao compor os versos do Livro II das Metamorfoses, em que descreve Apolo, o Sol,
em seu trono, cercado por Dia, Mês, Ano e Século e também pelas quatro Horai.
No caso de sua representação em sarcófagos, associam-se à doutrina pitagórica da
transmutação da alma como descrita pelo Pitágoras de Ovídio no livro XV das Metamorfoses.
Nesse caso, servem a uma dupla narrativa de transição: do mundo dos vivos ao dos mortos e
de retorno deste ao dos vivos. É também nas Metamorfoses que elas são associadas, pela boca
de Pitágoras, às quatro idades do homem. Nesse sentido, o aspecto cíclico recorrente do
período anual, pertencente à ordem da natureza, é sobreposto ao linear de um destino
individual (de cujo termo o sarcófago constitui o emblema), relativo à vida humana.
No período medieval, as estações são articuladas a conjuntos cosmológicos e
astrológicos amplos, com base especialmente nas tétrades pitagóricas. Partindo da inter-
relação entre o micro e o macrocosmo, são estabelecidas correspondências entre elas, ligadas
ao ano, e os 4 elementos, ligados ao mundo, bem como os 4 humores, ligados ao homem,
dentro de um sistema de oposições e complementaridades ilustrado, a princípio, apenas
esquematicamente. No tardo medievo e proto-renascimento, esses esquemas gráficos
sintéticos transformam-se, sem perder de todo a mesma orientação circular, em representações
visuais complexas, nas quais fontes escritas diversas se cruzam dificultando uma simples
decodificação.
As estações ora ligam-se exclusivamente ao anonimato do “povo”, representado
em suas atividades sazonais, agrícolas ou festivas, ora à personalidade de um indivíduo a
ocupar uma posição mais alta na hierarquia social. Este último caso aparece especialmente
com os calendários dos livros de horas e estende-se aos grandes projetos decorativos
renascentistas, dos afrescos de Ferrara ao ciclo de tapeçarias de Louis XIV tecido em
Gobelins. No caso das casas burguesas do fim do séc. XVIII e início do XIX, como veremos
adiante, as pinturas decorativas ou de cavalete representando o tema não associam a figura do
patrono à representação, embora sejam dirigidas a uma leitura num contexto privado.
A associação das estações a deuses da mitologia - especialmente Vênus, Ceres,
Baco e Éolo - ocorre desde os poetas latinos, é retomada pelos humanistas italianos e termina
nas páginas dos manuais de Cartari (1553) e Ripa (1593). Já figuravam antes, inclusive, no
texto da Hypnerotomaquia Poliphili (1499). O surgimento da série, com quatro peças avulsas
separadas, lidas numa sequência, se dá inicialmente nas artes gráficas, durante o
43

Renascimento, especialmente nos Países Baixos. Poussin, no séc. XVII e no campo da


pintura, eleva esta tradição, renovando-a, a um novo patamar de excelência.
Como afirmamos, desde a Antiguidade tardia as estações são associadas, na
literatura, às idades do homem e não é incomum encontrar, a partir do período medieval, a
primavera retratada como uma criança, o verão, um jovem, o outono, um adulto e o inverno,
um idoso. Disso até a moralização do tema por meio de narrativas exemplares sobre o que é
apropriado ou não para cada fase da vida foi apenas um passo.
Assim, dentro de um ciclo ou tempo maior, o da natureza, insere-se o ciclo ou
tempo menor da vida humana, cujo desenvolvimento empresta daquela o seu modelo
fundamental. Há uma diferença no termo de cada uma: enquanto ao inverno sucede a
primavera, a morte individual pode ser vista como uma cesura. As doutrinas pitagóricas da
transmigração da alma eliminam essa diferença pela ideia de reencarnação. Pensando do
ponto de vista da espécie, ainda, a morte também não passa de ilusão, pois o ser humano se
perpetua em seus filhos, de modo que para cada óbito há, por assim dizer, um nascimento.
Podemos afirmar, portanto, que o processo de renovação constante da matéria no mundo
físico, por meio do binômio nascimento-morte, está na gênese das representações visuais das
Estações. Neste capítulo, buscamos traçar a iconografia desse tema centrando-nos mais nos
aspectos relevantes para a discussão das duas séries de Delacroix que terá lugar nos capítulos
seguintes.
44

Capítulo 2. As Quatro Estações de Eugène Delacroix

2.1 Para Talma (1821)

As quatro estações continuaram presentes em programas decorativos de casas


parisienses do séc. XVIII, especialmente dos hôtels particuliers, termo de difícil tradução para
o português (talvez “mansões” caiba) e de difícil definição em francês. Alexandre Gady
(2008) encontra um denominador comum entre projetos arquitetônicos muito diferentes,
executados entre os séculos XVII e XIX, no fato de serem habitações das elites, financeiras ou
culturais.
Relevos das alegorias das quatro estações integram as fachadas dos hôtels de
Sully e Carnavalet, em Paris, por exemplo. O primeiro foi construído no séc. XVII, com
esculturas anônimas das Estações divididas entre as fachadas dando para o pátio e para o
jardim; no séc. XIX, tornou-se um immeuble de rapport (para locação), abrigando
comerciantes e particulares. O projeto arquitetônico do hôtel Carnavalet remonta ao séc. XVI,
incluindo esculturas das estações de Jean Goujon em colaboração com seu ateliê; no séc. XIX,
serviu de sede à École des Ponts et Chaussées e depois ao Institut Verdot.
Em interiores, encontramos pinturas suntuosas, peintures d’apparat,
representando as estações já no séc. XVII, no hôtel Lambert, aqui acompanhando Apolo,
feitas por Eustache Le Sueur para o Cabinet des Muses (Phaëton demande à Apollon de
conduire son char, hoje no Louvre, fig. 37), a qual estava entre as pinturas restauradas por
Delacroix in loco, em 184470. Há, ainda, o desenho de uma quadratura, com o mesmo motivo
de Apolo e as Estações, de autoria de Laurent de la Hyre (Staatliche Grapische Sammlung,
München) para um teto não identificado de uma grande maison privée; quatro falsos relevos
no teto do salon do hôtel Lefebure de la Malmaison, île St. Louis ; quatro alegorias
executadas por Louis Le Lorrain, no séc. XVIII, no teto da ala do jardim do hôtel Le
Castanier; quatro de Joseph-Marie Vien para o salon do hôtel Amelot de Bisseuil;, etc.71 Anos
depois, em 1809, Anne Louis Girodet-Trioson pintará as suas na Chambre de l’Imperatrice
do chatêau de Compiègne, a poucos quilômetros de Paris.

70
Corres. II, 189. Segundo seu aluno, Louis de Planet, Delacroix falava muito destes « beaux Lesueur »
(PLANET; JOUBIN, notes de Louis de Planet sur l’Hôtel Lambert, p. 70).
71
Ver: MÉROT, Alain. Retraites mondaines : aspects de la décoration intérieure à Paris, au XVIIe siècle.
Paris, Le Promeneur, 1990 ; SCHULTEN, Holger, Französisches Deckenmalerei des 17. und 18.
Jahrhunderts: Theorie und Entwicklung der Dekorationssysteme, Frankfurt/Berlin: Peter Lang Verlag,
1999, especialmente o capítulo 4, pp. 233-308.
45

Representações das Estações poderiam ser vistas não somente em fachadas ou no


interior da residência dos ricos, mas também em monumentos públicos da capital francesa,
como a Fontaine des Innocents, do mesmo Jean Goujon, e a Fontaine des Quatre Saisons,
Rue de Grenelle, construída em 1739 com base num projeto de Edme Bouchardon. De modo
que a escolha do tema pelo ator François-Joseph Talma (1783-1826) e seu arquiteto respondia
à sua cristalização pela moda. Fazia parte da etiqueta subentendida da elite de como
apparaître.
A história da encomenda das Quatro Estações por Talma a Eugène Delacroix (fig.
42), então com 23 anos, foi discutida por Lee Johnson num artigo de 1957, que se tornou,
desde então, a principal referência a respeito da série72, a qual se encontra hoje numa coleção
particular na China73. É Alfred Roubaut (1885) quem afirma que foram pintadas para a salle à
manger da nova residência do ator74, onde permaneceram penduradas até pouco tempo atrás.
Em 1864, M. Frédéric Jouët, então proprietário e residente da antiga casa de Talma, empresta
as obras à exposição póstuma de Eugène Delacroix na Galerie Martinet75.
Talma comprara um lote para construção de seu hôtel na Rue de la Tour-des-
Dames, nº 9, em 5 de novembro de 182076. A região situada entre esta rua, a Rue de la
Rochefoucauld e a de Saint-Lazare ficou conhecida, em torno do ano de 1821, pelo nome de
Nouvelle Athène (fig. 40)77, pois fora pensada para servir de residência a artistas célebres da
época, como, além de Talma, as atrizes Mlle Duchesnois, Mlle Mars (amante do Conde de
Mornay, a quem Delacroix acompanharia em sua missão ao Marrocos, em 1832) e o pintor
Horace Vernet.
Delacroix escreve a sua irmã, em 29 de junho de 1821, afirmando que teria
“talvez pinturas a fazer nas férias para uma casa que está sendo construída” e “precisava fazer

72
JOHNSON, Lee. Delacroix’s decorations for Talma’s dining-room. The Burlington Magazine, Vol. 99, No.
648 (Mar., 1957), pp. 78-87+89.
73
Em 25 de junho de 2014, essas obras foram leiloadas em Paris. Conforme o catálogo da Rossini Maison de
Ventes aux Enchères de mesma data, lote nº 64. Em contato estabelecido com a casa de leilões no ano de 2017,
foi-nos informado que estão hoje na China.
74
Ver: R332, R333, R334, R335, p. 93.
75
SOCIÉTÉ Nationale des Beaux-Arts (Boulevard des Italiens), Exposition des Œuvres D'Eugène Delacroix,
Paris, J. Clave, 1864, p. 41.
76
JARRY, Paul, Les Vieux Hôtels de Paris : Les Porcherons et le Faubourg Montmartre, Paris, 1928, p. 7.
77
Cf. o artigo de Dureau de la Malle, Journal des débats, le 18 octobre 1823, mencionado em Jarry, op. cit., p. 2.
46

estudos”, mas que não se tratava ainda de uma “decisão acertada”78. Depois, numa carta a
Alfred Dupont, de 15 de outubro de 1821, escreve que foi descansar em Saint-Cyr de um
trabalho recém-feito79. Johnson acredita tratar-se das telas de Talma e, por isso, situa a
execução da encomenda entre julho, quando anuncia a possibilidade do projeto à irmã, e a
metade de outubro de 1821, quando vai descansar do trabalho em Saint-Cyr. O autor concorda
com Augustin Thierry (1942) quando afirma que Talma se mudou para o hôtel da Rue de la
Tour-des-Dames no outono (entre setembro e dezembro) de 1821, mas Thierry não cita suas
fontes80. Se Thierry e Johnson estão corretos, a mudança de Talma e a instalação das pinturas
em sua sala de jantar devem ter coincidido.
O jovem Delacroix debutaria no salão somente em 1822, com a Barca de Dante.
Ao receber a encomenda de Talma ele era, portanto, um artista relativamente desconhecido.
Trata-se, de fato, da sua quarta encomenda e da segunda para uma residência privada. Johnson
aventa a hipótese de ele ter sido indicado ao ator ou ao seu arquiteto, Paul Lelong (1799-
1846), por Théodore Géricault, que Delacroix conhecera no ateliê de Pierre-Narcisse Guérin81
e que havia lhe repassado, sem abrir mão da autoria, a encomenda da Vierge du Sacre Coeur
(Église d’Ajaccio) pouco antes, em 1820. Géricault conhecia Vernet, que, por sua vez, era
vizinho de Talma na Nouvelle Athène. Provavelmente, eles visitaram David em seu exílio em
Bruxelas, na Bélgica, em novembro de 1820. Géricault teria voltado a Paris junto com Vernet,
durante o inverno, antes de partir novamente a Londres. A hipótese de Johnson é a de que
Delacroix teria sido um tópico da conversa que tiveram nessa ocasião, especialmente porque
ele entregou a Vierge du Sacre-Coeur a Géricault nessa época, em dezembro de 1820, para
que a assinasse e encaminhasse à Igreja. Vernet teria feito a ponte até Talma.
Outra hipótese é a de que Delacroix tenha sido recomendado a Talma ou ao seu
arquiteto pelo cenógrafo Edmond Henri-Duponchel (1794-1868), responsável pela execução

78
« Mais ma fièvre m’a tellement mis en retard (…), que je crains de ne pouvoir cette année les passer à la Forêt.
J’aurai peut-être ces vacances des peintures à faire dans une maison qu’on bâtit; et j’ai grand besoin de faire des
études. Ce n’est pourtant pas encore une résolution arrêtée » (Corres., V, pp. 87-88).
79
« Je suis à Saint-Cyr depuis hier. Le temps qui est beau me sollicite pour y rester quelques jours que je ne crois
pas inutile à ma santé après le travail sur lequel je me suis livré » (grifo nosso, Lettres intimes, XXVII, p. 134).
80
Trata-se de um romancista e biógrafo, parente do historiador Jacques Nicolas Augustin-Thierry (1795-1856).
Thierry não cita, contudo, a fonte desta informação no trecho correspondente do seu Le tragédien de Napoléon:
François-Joseph Talma, de 1942. Johnson, por sua vez, reproduz a informação em seu artigo, op. cit., p. 82, nota
13.
81
Delacroix entra no ateliê de Guérin em outubro de 1815 e lá permanece até 1822. Em 1816, Guérin é nomeado
professor da École des Beaux-Arts, mas mantém seu ateliê na Rue de Lille, perto da Rue Bonaparte, onde passa
a funcionar a École.
47

das decorações neo-pompeianas do hôtel de Talma82. Duponchel também frequentou o ateliê


de Guérin, onde ele e Delacroix se conheceram. Pouco antes da encomenda de Talma, em
1820, ele havia recomendado Delacroix para decoração da sala de jantar do hôtel particulier
de Lottin de Saint-Germain, perto da Sainte-Chapelle, para a qual o pintor executou seis ou
sete dessus-de-portes83. Em 14 de maio de 1824, Duponchel visita Delacroix em seu ateliê
para consultá-lo sobre o figurino de Bothwell, drama em cinco atos de Adolphe-Simones
Empis, que estrearia no Théatre-Français (depois Comédie-Française) em 24 de junho84.
Depois, em dezembro, ele janta com Talma na casa de Duponchel85. Finalmente, é graças a
Duponchel e sua ligação com Mlle Mars, vizinha de Talma na Nouvelle-Athène, que ele
acompanha o Conde de Mornay em sua missão diplomática ao Marrocos, em 183286.
Condiscípulo no ateliê Guérin, que Delacroix ainda frequentava em 1820; ligado à
cena teatral e ao círculo de Talma; há menos de um ano tendo já recomendado Delacroix para
uma decoração semelhante; trabalhando ao seu lado na própria residência do ator; e, ainda,
proporcionando-lhe outras oportunidades de trabalho no futuro, Duponchel parece ser, com
maior probabilidade, a figura que o indicou para a decoração da sala de jantar do hôtel do
ator.
Nela, Delacroix representou as estações em quatro dessus-de-portes, em formato
semicircular, por meio de figuras alegóricas reclinadas, acompanhadas de seus respectivos
atributos e, excetuando o Verão, também dos respectivos signos do zodíaco. Na Primavera,

82
DION-TENENBAUM, Anne. Multiple Duponchel, Revue de l'Art, 1997, n°116, p. 66.
83
Louis de Virmond, na lista de obras de Delacroix que acompanha o texto de Théophile Silvestre sobre o artista
no seu Histoire des Artistes Vivants (1856:80), cita “seis ou sete dessus-de-portes semicirculares na casa de
Lottin-Saint-Germain, nos arredores da Sainte-Chapelle” logo antes da menção aos executados para Talma.
Clement de Ris (1862[1857]:381) afirma que Delacroix fora recomendado para este trabalho por Duponchel.
Johnson (1986, I: pp. 199-200) associa a encomenda a uma carta de 1º de março de 1820, na qual Delacroix
escreve a sua irmã que aguarda, ainda, o pagamento pelas pinturas “feitas perto do palais [Palais de Justice]”. Cf.
o autor, em 1818, havia um M. Lottin de Saint-Germain, provável imprimeur du Roi, vivendo perto do Palais, na
Île de la Cité, rue Nazareth, nº 1, destruída, junto com a casa e as pinturas, em 1855. Johnson (id.) sugere que os
estudos para as cinco telas estejam no Louvre: RF23356 folio 12v (duas lunetas, a de cima com um homem
barbado assando um pedaço de carne sobre o fogo e a de baixo com uma mulher sentada diante de uma criança
segurando um coelho), RF9146, folio 36 v (dois desenhos feitos para caber numa luneta, o de cima retratando
um Baco adormecido e o de baixo, um sátiro e uma ninfa), RF 9243 (luneta com uma mulher ordenhando uma
cabra ao lado de uma criança nua).
84
Journal, I, p. 160.
85
Journal, II, p. 1447.
86
Em carta a Duponchel, então diretor da Opéra, escrita em Tanger, em 23 de fevereiro de 1832, Delacroix
reconhece que era a ele que devia a viagem que estava fazendo. André Joubin explica, em nota, que Duponchel e
Mlle Mars se interpuseram em nome do pintor junto ao amante desta, o Duque de Mornay, para que ele o
acompanhasse [Corres., I, p. 314].
48

vemos Flora e o carneiro de Áries; no Verão, Hércules; no Outono, Baco e a balança de Libra;
no Inverno, Saturno e o vaso vertendo água de Aquário. A maior parte dos esboços para estas
pinturas encontra-se no Louvre. Folheando os carnês de croquis87, constatamos que Delacroix
estava envolvido, no período de incubação do projeto, com o estudo de: (1) obras da
antiguidade greco-romana (esculturas e especialmente pinturas de Pompeia e Herculano); (2)
elementos decorativos neo-pompeianos típicos do séc. XVIII francês, como os presentes na
decoração de Cotelle de Meaux para a Chambre des Mères em Fontainebleau88 e (3)
indumentária medieval ou renascentista.
Há nesses estudos preparatórios um forte componente de ecletismo. Escavações e
publicações recentes inventariando, com o apoio de ilustrações em gravura, as obras das
cidades italianas varridas pelo Vesúvio, cujo estilo fora absorvido pelas artes decorativas da
Restauração, somados a um eco da estatuária clássica grega são influências dominantes.
Sobretudo nas roupas, especialmente as botas de Baco e Hércules, vemos reflexos do estudo
de indumentária dos séculos XV e XVI, os quais podem ter uma relação com a atividade de
figurinista de Duponchel, que consultava Delacroix sobre o figurino das peças89.
Livros ilustrados, como o Delle Antichità di Ercolano, publicado em 6 volumes
entre 1757 e 176290, ou a tradução francesa Antiquités d’Herculanum, publicada em Paris, em
1804, pelos irmãos Piranesi, foram consultados ou encontravam-se na biblioteca de pintores
de orientações diversas, como Delacroix, Ingres e Rousseau. Constituíam, ainda na primeira
metade do séc. XIX, uma fonte comum para a pintura de artistas de estilos muito diferentes.
Aparentemente, a decoração do hôtel de Talma, como proposta por Lelong, era
bastante neo-pompeiana, do mesmo modo que a dos hôtels vizinhos, de Duschenois e Mars91.
Há uma probabilidade de o arquiteto ter sugerido a Delacroix as fontes nas quais poderia se

87
Álbuns: RF 09151, RF23356, RF9151, RF9146; folhas avulsas: RF 9239, RF 9246, RF 9244, RF 9240.
88
Fora os estudos no Louvre, ver a aquarela publicada no artigo de Johnson (1957), p. 79, fig. 10, pertencente à
coleção de Peter Nathan, Zurique.
89
Ver supra, nota 82. Encontramos desenhos de indumentária em RF9246r e nos fólios 39, 40; 9, 14 e 33 dos
álbuns RF9146, RF23356 e RF9151, respectivamente, que contêm muitos dos estudos das Estações para Talma.
Apesar de Bothwell, a peça sobre a qual Duponchel consulta Delacroix a respeito do figurino, tratar da história
de Marie Stuart, rainha da Escócia e depois da França entre 1542 e 1560, a trama se passa em cenários góticos.
90
Neste livro, as pinturas eram acompanhadas de comentários de quinze membros da Academia Real
Ercolanese, comissionados por Charles VII (então rei de Nápoles). As descobertas feitas nas escavações
começaram a ser anunciadas em 1736, mas esta é a primeira iniciativa de catalogação.
91
Ver: JARRY, Paul. Les vieux hôtels de Paris : Les Porcherons ou le Faubourg Monmartre. Paris: Contet,
1928, pp. 3-8 e pranchas 1-2 (Mars); 3 (Duchesnois); 5-7 (Talma).
49

inspirar para adequar suas pinturas ao programa decorativo maior. Também a fama de Talma
como reformador no teatro, precursor do estilo não declamatório e da maior acurácia do
figurino em peças que se passavam, geralmente, na Antiguidade, deve ter orientado os estudos
de Delacroix.
Em suas anotações nos esboços, Delacroix escreve: “les signes du zodiaque avec
les attributs de leur saisons” (RF9151, verso) e “les quatre âges avec leurs différentes
nourritures” (RF9151, folio13 verso). Embora ele tenha copiado diversas figuras femininas
de Stabiae, o modelo para a representação de Flora é uma escultura de Vênus agachada (há
uma cópia no Louvre). O de Baco, pinturas de Pompeia em gravuras contemporâneas. O de
Saturno banido (Saturno fugato), uma pintura perdida de Primaticcio, em Fontainebleau, que
sobreviveu apenas em gravura92. Até aqui, Delacroix segue aplicadamente, com pouca
variação, a tradição iconográfica, escolhendo Flora/Vênus, Baco e Saturno para compor as
alegorias. Seu Hércules, um misto do torso do Belvedere, então identificado com a figura do
herói93, e de sua figuração no quadro de Anibale Carracci, Ercole in bivio (1595-96, Museo
Nazionale di Capodimonte, Nápoles, fig. 46), é um pouco mais incomum no caso da alegoria
individual – Hércules nas imagens do Verão é, tradicionalmente, uma figura eventual e
acessória94.
A escolha do herói (e não de Ceres) para representar esta estação pauta-se na
idade da vida à qual ela é associada – a transição da adolescência para a idade adulta –,
associação difundida em tapeçarias francesas e flamengas desde o séc. XVII. A história
encontra-se em Xenofonte (Memorabilia 2, I, 24-34) e Cícero (De officiis, I, 32-118, 3, 5, 25)

92
Ver, para a alegoria do Inverno representando Saturno, a gravura de Hércules, Baco, Pan, e Saturno (?), de
uma série de oito composições a partir da decoração de Primaticcio do teto da galeria de Ulisses (destruído em
1738-39), em Fontainebleau (há uma no Metropolitan Museum, NY, Inv. 49.97.471). Nas imagens das Estações,
Saturno associa-se ao 6º planeta do sistema solar, que rege o mês de dezembro, por isso a ligação com o Inverno.
Na mitologia, Saturnus é a contraparte romana de Kronos. Em Roma, todavia, ele vincula-se à agricultura, ao
estabelecimento da lei entre a população local e a uma idade de ouro situada na origem do Lácio. Saturno é
destronado por Júpiter e exilado na Itália, enquanto Kronos, depois de castrar Urano, é banido por Zeus e
enviado ao Tártaro, quando tem início a idade de Prata, aquela que sucede a de Ouro, na qual as estações passam
a ser quatro (antes só havia a primavera). Ver: JOHNSTON, Patricia. Vergil's Conception of Saturnus,
California Studies in Classical Antiquity, Vol. 10 (1977), pp. 57-70.
93
WÜNSCHE, Raymund. Il torso del Belvedere: da Aiace a Rodin. Musei Vaticani, Glyptothek München,
1998 (Catálogo de exposição). Ver, especialmente, a seção Complementi artistici del torso (pp. 60-73).
94
Guila Ballas propôs esta identificação em 1985, afirmando que Hércules seria um alter-ego do próprio
Delacroix. Trabalharemos sobre a identificação com Hércules, que não pode, contudo, ser tomada como
definitiva, mas a construiremos sobre outros argumentos. Ver: BALLAS, Guila. La signification des Saisons
dans l’œuvre de Delacroix. Gazette des Beaux-Arts, juillet-août 1985, pp. 15-21.
50

e fora resgatada pelos humanistas desde o tardo medievo95. A palmeira, símbolo do triunfo
moral, aparece no modelo pictórico italiano, o quadro de Carracci96, mas Delacroix
transforma o caminho do vício e da virtude, entre os quais Hércules deve escolher, em dois
vasos de diferentes formatos. Mais tarde, no ciclo da vida de Hércules do Salon de la Paix, no
Hôtel de Ville (1852-54, destruído num incêndio em 1871), ele retoma o tema fazendo uso de
duas figuras femininas (não de vasos), a solução convencional (fig. 45).
No caso do semicírculo da série para Talma, encaixar mais duas figuras humanas
na cena seria problemático do ponto de vista da congruência entre as quatro composições. Os
três signos do zodíaco relacionados à estação do Verão (câncer, leão e virgem) são, contudo,
ignorados. Ele isola, de certo modo, esta pintura das outras, embora o monte de feno ao lado
esquerdo de Hércules tenha a mesma função que as flores no quadro da Primavera, as uvas no
do Outono e a árvore seca no do Inverno e mostre que Delacroix estudou, sim, obras
precedentes que tematizavam o Verão. A probabilidade, então, é a de que a figuração
simbólica pelos dois vasos tenha sido uma invenção do artista.
E não devemos excluir a hipótese de Hércules ser a representação do próprio
Talma, uma vez que a escultura retratando o ator, de David D’Angers (1788-1856), feita
poucos anos depois para a Comédie-Française, cujo modelo em terracota foi exibido no Salão
de 1827 (fig. 48), representa Talma numa posição e com trajes semelhantes aos adotados por
Delacroix em seu Hércules. Guilhem Scherf (2003) sugere que o escultor tenha visto uma
gravura de uma escultura antiga retratando um filósofo sentado, publicada no volume 5 do
Musée de Sculpture Antique et Moderne (1826-55, prancha 840c), de Pierre de Clarac (fig.
49). Num dos esboços para a obra, D’Angers retrata Talma com a cabeça literalmente apoiada
numa das mãos (MB A 604 4, Musée D’Angers, Angers, fig. 47), como o Hércules de
Delacroix. Por mais que a escultura seja posterior à pintura de Delacroix, podemos nos
perguntar por que se assemelham tanto. D’Angers, um admirador do artista, teria visto a
pintura na sala de Talma e reconhecido ali uma representação indireta do ator?
Além disso, em sua atuação como Hamlet entre os anos 1803 e 1826, com base no
texto adaptado para o francês de Jean-François Ducis, Talma contracena com um vaso que

95
Ver: MOMMSEN, Theodor. Petrarch and the Story of the Choice of Hercules, Journal of the Warburg and
Courtauld Institutes, Vol. 16, No. 3/4 (1953), pp. 178-192.
96
Cf. escreve Giovanni Bellori, referindo-se ao quadro: “Ma egli [Ercole] resta sospeso e fermo, palesando nel
volto il dubbio e profondo pensiero al deliberarsi. (...) Et in ciò ancora si reconolce la saggia mente del pittore:
poiché dietro il giovine [Ercole] s'inalza un albero di palma, presagio ben certo delle sue vittorie, spandendo
intorno gloriosi rami” (grifo nosso, BELLORI, Giovanni, Le vite de' pittori scultori e architetti moderni,
1672, pp. 34-35).
51

guarda as cinzas do pai de Hamlet (não com o fantasma), o que foi registrado num dos
retratos de Talma, pintado por Anthelme-François Lagrenée e exibido no Salão de 1810
(Comédie-Française, Paris, fig. 54). Eventualmente tenha ficado algum resquício dessa
substituição de um corpo por um vaso no imaginário de Delacroix. A escultura de D’Angers
foi chamada, genericamente, de “Talma refletindo sobre um de seus papeis”. Não mostra,
então, o ator interpretando um personagem em particular. Delacroix pode tê-lo retratado – o
rosto não foge tanto assim à iconografia talmaniana – como Hércules aleatoriamente, como se
ele mesmo tivesse dado a Talma este papel.
A litografia satírica que ele publicou anonimamente em 1821, no Le Miroir (há
uma no Met, Nova York, fig. 57), mostra um ator de rosto grotescamente envelhecido
andando em muletas, de modo a sugerir o declínio da Grand Opéra. Ele traja uma túnica
branca à l’antique e tem os cabelos cingidos por uma coroa (de flores?) de um modo muito
parecido com o do Hércules do Verão. Apesar de a aproximação parecer indigna – é certo que
Delacroix admirava Talma desde ao menos os seus 18 anos97 – cabe a associação entre a
figuração do “tipo” do ator clássico àquela de Hércules no respectivo semicírculo da série.
Ainda duas atuações recentes de Talma merecem, nesse sentido - o da escolha de
Hércules -, ser lembradas aqui. Talma interpretou o papel de Sylla na tragédia em cinco atos
de Étienne de Jouy (1764-1846), primeiro em 27 de dezembro de 1821, no Théatre-Français.
Uma das ilustrações publicadas sobre a peça, que o mostra como na escultura antiga
retratando Sylla sentado, da Villa Negroni, Roma (figuras 50 e 51), lembra a postura do
Hércules de Delacroix e do Talma de D’Angers.
O Sylla de Jouy possui um caráter ambíguo e dividido, como o de Hamlet e, ao
longo da tragédia, ele se revela um homem virtuoso, pois toma a decisão de abdicar do poder
em nome da liberdade dos romanos, ou seja, sua atitude, apesar de ditatorial no início, torna-
se heroica ao final – como Hércules, ele irá escolher o caminho da virtude. A peça foi um
grande sucesso, encenada 55 vezes entre 1821 e 182298. Alexandre Dumas e o próprio Jouy,
creditaram parte do êxito à atuação de Talma99. Assim escreve Jouy no prefácio ao texto da
peça, cuja 5ª edição foi publicada em 1823:

97
« Ortis, Poussin, Talma!... c’est du génie en barre que ces hommes-là » (a Achille Piron, 11 nov. 1815, Lettres
Intimes, p. 39).
98
MELAI: 2012, p. 46, nota 6.
99
Lafarge, num diálogo narrado nas memórias de Dumas, chama a peça de “succès de perruque”, ou seja,
remete-o a Talma, mais do que ao texto de Jouy (DUMAS, Mémoires, III, 1863, p. 51).
52

“(…) ele vive a cada dia, durante duas horas, a vida do personagem que representa; é
Augusto, é Hamlet, é Nero, é Sylla. (…) Jamais uma transformação foi mais
completa. Ele avança com um passo tranquilo; o manto negligentemente cruzado
sobre o peito (…). Ele se senta, apoia-se sobre a sua poltrona: diríamos que David
traçou a curva feliz de seu braço”100 (grifos nossos, JOUY: 1823, pp. 23-24).

Se a datação de Johnson para a execução das Estações está correta (entre julho e
outubro de 1821), esta associação entre o Sylla de Talma e o Hércules de Delacroix torna-se
problemática. No entanto, o pintor poderia ter em mente outro papel, também de um chefe de
estado romano, que Talma interpretou em 1814 no Théatre-Français. Delacroix, respondendo
a uma encomenda feita em 1852 pelo Baron Romieu, então diretor de Belas-Artes, retratou
Talma numa posição semelhante – sentado, uma perna à frente, outra atrás – interpretando o
jovem Nero, na peça Britannicus, de Jean Racine. O próprio Jouy estabelece uma espécie de
linhagem para Sylla mencionando, nesta ordem: Augusto, Hamlet e Nero.
Delacroix, no quadro para o foyer da Comédie-Française (fig. 55), ilustra a cena 2
do ato IV, em que Nero senta-se diante de sua mãe, Agripina, e a escuta falar sobre todos os
sacrifícios que fizera para que ele, ingrato, chegasse ao poder. Talma, em sua interpretação,
não permanece sentado e imóvel, como era comum entre os atores que estiveram, no passado,
à frente do mesmo papel, antes ele se mostra agitado, inquieto e, assim, como que indiferente
às palavras da mãe. Delacroix, inclusive, faz a perna esquerda do ator avançar (e não a direita,
como ocorre nas figuras sentadas das esculturas antigas e de D’Angers supracitadas),
enquanto a perna direita recua e o tronco pende para a frente, acentuando a impressão de
instabilidade, como se ele fosse, a qualquer momento, levantar-se. Embora no final da cena
Nero e Agripina se reconciliem, o espectador sabe, desde a cena 6 do segundo ato, que ele
pretende matar seu meio irmão, Britannicus. O interessante nesta cena é que Nero dissimula
sua inocência diante da mãe, embora já tenha tramado o primeiro entre uma série de atos
hediondos que culminariam – um espectador bem informado saberia – no incêndio de Roma.
Ele é, então, um adolescente que simula virtude quando, intimamente, já fez a opção pelo
vício.
A cena é um importante ponto de transição na peça e já havia sido ilustrada por
um amigo de Delacroix, Alexandre-Marie Colin (1798-1875), em 1824-25, em cuja gravura
(fig. 56) ele certamente se baseou para compor o seu retrato de Talma no início dos anos

100
« (…) il vit chaque jour, pendant deux heures, de la vie du personnage qu'il représente ; c'est Auguste, c'est
Hamlet, c'est Néron, c'est Sylla. (…) Jamais transformation ne fut plus complète. Il s'avance d'un pas tranquille ;
son manteau négligemment croisé sur son sein (…). Il s'assie, il s'appuie sur son fauteuil : on dirait que David a
tracé la courbe heureuse de son bras. »
53

1850101. Apesar de ser tentador cogitar que o pintor teria visto Talma no palco em
Britannicus, quando ele mesmo era um adolescente, e que a ambiguidade da cena que situa,
na peça de Racine, o início da carreira de crimes do tirano tenha-o marcado a ponto de
escolhê-la ao pintar, décadas depois, o retrato de Talma para a Comédie-Française, há poucas
evidências de que em 1821 ele estivesse conscientemente associando o ator neste papel ao
Hércules em seu quadro do Verão. (A gravura de Colin, uma fonte muito evidente para o
retrato entregue em 1853, é, cabe acrescentar, posterior à data de execução do ciclo das
Estações.)
Parece mais razoável, então, associar a ideia corrente de que Talma parecia-se,
nos palcos, com uma “estátua romana”102 e aproximar a referência à figura do ator feita no
Hércules às esculturas antigas de filósofos ou imperadores, e não tanto a uma peça
contemporânea em particular, como Sylla ou Britannicus, para pensar o quadro do Verão
pendurado em sua sala de jantar. No Antiquités d’Herculanum, essas esculturas são, de fato,
também o protótipo para a representação de atores. Delacroix, inclusive, copia uma delas no
estudo RF 10153, conservado no Louvre (figuras 52 e 53).
Num esboço para Ceres, a deusa comumente associada ao verão, para o projeto do
Salon de la Paix, de 1852, Delacroix repete o motivo da palmeira com os dois vasos ao fundo
do semicírculo retratando Hércules (fig. 58, ver também figuras 43 e 44). Ao longo de sua
trajetória, ele retorna, no âmbito das decorações públicas, a motivos criados nessa encomenda
do período inicial de sua carreira. Esta primeira série das Estações é um dos momentos em
que o jovem Delacroix mobiliza todas as suas habilidades e seu repertório visual para
responder às demandas de uma comissão. É quando ele está começando, enfim, a ganhar a
vida como artista.

101
Litografia colorida à mão por F. Noel a partir de uma ilustração de Alexandre-Marie Colin e publicada em:
Portraits d'Acteurs et d'Actrices dans différents rôles, F. Noel, Paris, 1825. Colin frequentou o ateliê de Girodet
na ENBA, onde Delacroix também estudava, ocasião em que se conheceram. Viajam juntos à Normandia, em
1824, e encontram-se, ambos, em Londres, em 1825.
102
Moreau de Commagny escreve, no seu Mémoires historiques et littéraires sur Talma (1826:13), que quando,
em 1789, Talma apareceu nos palcos pela primeira vez trajado numa toga romana, com os braços à mostra e
calçando sandálias, Mlle Contat teria zombado dele nos bastidores, dizendo: “Ah, meu Deus! Parece uma
estátua!”. A esposa de Talma narra a mesma anedota acrescentando o adjetivo “romana” ao substantivo estátua
(Madame Veuve Talma, née Vanhove, Paris, 1836, p. 309). É bem conhecido também o elogio de Madame de
Stäel a Talma: « Il possède tous les secrets des arts divers; ses attitudes rappellent les belles statues de
l’antiquité ; son vêtement, sans qu’il y pense, est drapé dans tous ses mouvement comme s’il avoit eu le temps de
l’arranger dans le plus parfait repos. L’expression de son visage, celle de son regard, doit être l’étude de tous les
peintres » (Staël, De l’Allemagne, t. II, Paris, H. Nicolle, 1813, p. 297). E Dumas : « (...) je vous vois encore lui
poser la main sur l'épaule, et, drapé comme la plus belle statue d'Herculanum et de Pompéi (…) » (Dumas,
Mémoires, III, 1863, p. 58).
54

Johnson afirma, pela análise do esboço RF9151 folio 13v, do Louvre (fig. 41),
que Delacroix pensou inicialmente num projeto com oito painéis. Parece-nos, contudo, que
ele simplesmente reproduziu, neste desenho, a planta baixa da sala de jantar, com todas as
portas e janelas. O que ele planejava era colocar uma representação do sol no espaço entre a
Primavera e o Outono, sobre o que parece ser a chaminé. A sequência, se crermos na
ilustração de Krafft & Thiollet, de 1838, também será alterada. Comparando o corte
transversal à planta baixa do nível do jardim (fig. 40b), alguém entrando pela porta ao lado
esquerdo da escada, presumivelmente veria diante de si o Verão e, à direita, mais próximo às
janelas dando para o jardim, a Primavera; acima de si estaria o Outono e sobre a porta à sua
direita, o Inverno.
Na série das Estações para Talma, o jovem Delacroix recorre a alguns clichês
formais da decoração de interiores do período, ligados especialmente ao repertório clássico,
encontrando algumas soluções que fogem, contudo, a uma interpretação óbvia, especialmente
no semicírculo do Verão, com a figura de Hércules escolhendo entre a virtude e o vício, que
pode ser associada às representações de atores em gravuras de Pompeia e Herculano, fontes
evidentes para as demais pinturas da série. Nesse sentido, pode talvez tratar-se de um retrato
indireto do próprio Talma.
Mesmo sendo um trabalho “alimentar” restringido pelo gosto do cliente, œuvres
de boudoir repletas de sages allégories, podemos ter já um vislumbre, nelas, de seu
temperamento. Na sua série seguinte das Estações, ele voltará a esse repertório clássico,
permitindo-se o cruzamento com fontes mais recentes e próximas, como o séc. XVIII francês,
mas agora operando com a segurança de um estilo que fora confirmado pela experiência.

2.2. Para Hartmann (1855-1863)

No fim do ano de 1855, Delacroix recebe uma encomenda para pintar as quatro
estações para o salon da residência do industrial alsaciano Jacques-Félix Frédéric Hartmann.
O artista morre em 1863, deixando as quatro telas inacabadas em seu ateliê em Champrosay.
Detalhes a respeito da encomenda, da relação entre Hartmann e Delacroix e do lugar dessas
telas dentro de sua coleção serão tratados na Parte 2. Nesta seção, ocupar-nos-emos de
problemas de iconografia e, na sequência, da questão do inacabado, que essas obras suscitam,
dentro do conjunto da produção do pintor.
Entre o verão de 1821, quando Delacroix provavelmente recebe a encomenda de
Talma, e o inverno de 1855, quando ele provavelmente recebe a encomenda de Hartmann, a
55

vida profissional do artista avançara enormemente. Delacroix havia se tornado, apesar de


todas as críticas que jamais deixaram de lhe ser dirigidas, um pintor reconhecido e
requisitado. Em 1838, ele abre um ateliê na Rue Neuve-Guillemin, com o propósito de
recrutar assistentes. Sobretudo nas decorações públicas, eles serão colaboradores constantes,
pintando sob suas orientações. (Voltaremos a este ponto no capítulo seguinte, sobre o
inacabado.) Uma retrospectiva de sua obra é realizada, ao lado da de Ingres, Descamps e
Vernet, durante a Exposição Universal de 1855, na qual é condecorado, promovido a
commandeur de la Légion d’Honneur. Este é certamente o momento de consagração do artista
como “chefe de escola”. Ao mesmo tempo, sua saúde vai se deteriorando. Nos últimos anos
de sua vida ele sofre por conta das complicações de uma “laringite” e se queixa
constantemente de estar resfriado (enrhumé). Ele passa, então, períodos intermitentes na
campagne, trabalhando em seu ateliê em Champrosay.
Nas Estações Talma, Delacroix pintou alegorias em telas semicirculares
encaixadas na parte superior das portas da sala de jantar, retratando uma figura sentada ou
reclinada em cada uma. Nas Estações Hartmann, ele pinta histórias da mitologia em grandes
telas retangulares, destacando em cada estação duas figuras principais, que dividem o espaço
com as paisagens naturais ao fundo.
Das quatro histórias, três delas têm como fonte as Metamorfoses, de Ovídio; uma,
a Eneida, de Virgílio. Delacroix tinha em sua biblioteca uma tradução de Le Marcis (1799) e
outra de Michel de Marolles, abée de Villeloin (1660, 1ª ed.), da Art d’aimer e dos Remèdes
d’amour103. Marolles traduziu as Metamorfoses em 1677 e compilou muitos dos seus versos
nos comentários moralizantes a histórias mitológicas publicados em Tableaux du Temple des
Muses (1655, 1ª ed., reeditado até 1768). Em dois momentos, logo que recebe a encomenda
de Hartmann, no fim do ano de 1855, e quase quatro anos depois de iniciar os esboços, dia 10
de setembro de 1859, Delacroix menciona nos diários a tradução de Fariau Desaintange das
Metamorfoses, de 1808, com, escreve, “120 grav[uras]”, seguidas, nas duas entradas, do

103
SAINTE-FOY, Fouffé de (commissaire-priseur); AUBRY, Auguste (expert). Catalogue des livres anciens et
modernes curieux et rares composant la bibliothèque de feu M. E. Delacroix, Paris, 28 mars-2 avril, 1868, p.
13, nos 102/103.
56

endereço dos livreiros em Paris104. Ele também realiza alguns croquis com base numa suite
flamande das Metamorfoses, em 26 de novembro de 1853105.
Não é possível, contudo, saber exatamente qual tradução Delacroix consultou ou
mesmo se foi diretamente nas Metamorfoses que se informou sobre essas histórias. De
qualquer modo, muitas edições - bilíngues ou não - do magnum opus de Ovídio estavam
acessíveis em Paris na época e Delacroix era capaz, inclusive, de ler em latim, devido à sua
formação no Lycée Louis Le Grand106. O mesmo vale para a Eneida, cuja tradução do abée
Delille é citada por ele nos diários107.
Além disso, pouco mais de um ano antes de receber a encomenda de Hartmann,
em 12 de agosto de 1854, Delacroix anota nos diários que no artigo de Théophile Gautier
sobre as pinturas de Pierre de Cornelius (1783-1867) para o salão de festa e o vestíbulo da
Glyptothek de Munique – as Quatro Estações entre elas – há “descrições de temas
mitológicos das quais há o que tirar”108. Gautier, em seus artigos, elogia a invenção em
Cornelius, mas critica a execução, pois uma pintura deve agradar também enquanto pintura,
independente da história109. “Em toda parte a erudição paralisa o impulso livre do gênio”,
escreve. As pinturas de Cornelius estão longe de satisfazer os olhos, especialmente os “olhos
franceses”, que viram as pinturas de Delacroix na Câmara dos Deputados, na Chambre des
Pairs e no teto da Galeria de Apolo, no Louvre110.

104
Journal, I, p. 872 e II, p. 1280. A edição de 1808 continha 141 estampas, com ilustrações de Moreau le Jeune
(1741-1814), entre outros. Tratam-se das mesmas de Moreau publicadas antes, numa edição parisiense de 1767,
e gravadas por Le Mire e Bassan, para acompanhar o texto traduzido pelo abée Banier.
105
Journal, I, p. 715. Ele faz uma crítica a uma dessas gravuras no seu artigo sobre Prudhon publicado em 1846,
cf. discutiremos adiante, na seção sobre o quadro de Hartmann da Primavera.
106
Ver, por exemplo, carta a J.-B. Pierret de 23 out. 1818 (Corres. I, pp. 26-28), na qual o lycéen Delacroix
traduz do latim a écogla X, de Virgílio (« Fais de mon latin et de ma traduction tout ce qu’il te plaira »). Ele
escreve, ainda, un petit mot de latin ao seu cunhado, numa carta à irmã, de 8 de dezembro de 1821 (Corres. V, p.
100).
107
Journal, II, p. 1280, 12 oct. 1859.
108
Gautier está em Munique como correspondente do La Presse entre 10 e 22 de julho de 1854. Ver: GAUTIER,
Théophile. École moderne allemande : I. P. de Cornelius ; II. Cornélius ; la Glyptothèque ; la Pinacothèque, Le
Moniteur Universel, 10 et 11 août 1854, reimpresso em: GAUTIER, Théophile, L’Art Moderne, Paris, 1856,
pp. 235-287. Delacroix menciona o artigo no qual há « … descriptions de sujets mythologiques dans lesquels il y
a à prendre » (Journal, I, p. 809 e p. 985, nota 90). Antes, em 1824, ele havia se impressionado com a série de
gravuras de Cornelius ilustrando Fausto, de Goethe (Journal, I, p. 120, 20 fév. 1824).
109
Gautier, 1856, op. cit., pp. 237-238.
110
id., p. 248.
57

Sempre condenando o estilo frio de Cornelius, Gautier descreve nas quatro


paredes da salle des dieux os grupos sistemáticos ligados à genealogia deorum representados
pelo alemão – os quatro elementos, as quatro estações, as quatro horas do dia e os quatro
reinos cosmogônicos111 – colocando-os em relação direta com as quatro representações de
Eros no cume da abóbada, cada qual cavalgando um animal simbolizando um dos elementos.
Na sequência, o autor descreve sumariamente as composições. Mas as únicas histórias que
serão efetivamente escolhidas por Delacroix nos quadros para Hartmann são as de Diana e
Acteão (“Diane punissant Actéon pour avoir profané ses charmes divins d’un regard mortel”)
na seção do Outono (fig. 59b) e uma relativa à de Orfeu e Eurídice, porém não o mesmo
episódio. Cornelius representa Orfeu nos Infernos, na seção do Inverno (fig. 59a). Gautier
elogia a Eurídice do alemão (“la figure d'Eurydice… est véritablement charmante”), mas
julga a de Orfeu “lourde et commune”112. Dito isto, voltemo-nos, agora, à segunda tetralogia
de Delacroix representando as Estações.

2.2.1. Primavera: Orfeu e Eurídice

No centro do quadro (fig. 60) vemos duas mulheres, uma seminua, a outra vestida;
uma tombando enquanto segura uma tira de flores, a outra tentando ampará-la ao segurar seu
braço direito, enquanto a mão que sobra eleva-se num gesto patético de espanto. Ela olha para
o canto inferior direito do quadro, onde distinguimos com algum esforço, em primeiro plano,
uma serpente. Mais duas figuras ao fundo – uma mulher à direita que parece ter derrubado sua
cesta com flores ao ver a cena e, à esquerda, um homem que repete o mesmo gesto de
espanto, a parte de baixo do corpo coberta por uma moita, um instrumento musical nos braços
e uma coroa de manchas verdes na cabeça. Três expressões de assombro – a dele, da mulher
ao fundo e daquela que ampara – para uma de constatação – a da mulher que cai. No canto
inferior esquerdo, imediatamente oposto à figura da serpente, há um cesto cheio de flores, um
dos termos de uma diagonal que passa pelo corpo da mulher caindo, continua pelo cotovelo
do gesto de espanto da que vem ao seu amparo e chega ao seu eco nos olhos assustados da

111
Água/Primavera/Manhã/Reino de Netuno (Mundo Marinho); Fogo/Verão/Meio-dia/Reino de Júpiter (Mundo
Luminoso); Ar/Outono/Tarde/Reino do “ar” (Mundo Gasoso); Terra/Inverno/Noite/Reino de Plutão (Mundo
Subterrâneo).
112
As pinturas de Cornelius foram destruídas quando o prédio da Glyptothek foi reconstruído depois da 2ª
Guerra. Os cartões em tamanho real (1:1), a partir dos quais as composições foram decalcadas, encontram-se no
Museu de Berlin. Ver: GRÜNBEIN, Die Götter Griechenlands…, 2005 (cartões) e BÜTTNER, Peter Cornelius:
Fresken und Freskenprojekte, Band 1, 1980 (reconstituição do projeto, com fotografias e plantas arquitetônicas).
58

que está ao fundo, cuja cesta agora tombou e deixou cair de dentro as flores. Essa diagonal, do
cesto em pé ao cesto tombado, contém um resumo visual da narrativa. Ao fundo, árvores e o
que parece ser uma grande rocha esverdeada, mas pintada de tal modo que a matéria dura
dilui-se, na medida em que sobe ao céu, em fumaça.
A fonte escrita deste episódio encontra-se no livro X, versos 8-10, das
Metamorfoses de Ovídio: “Quando, acompanhada por um grupo de Náiades113, a noiva
passeava na relva, picada no tornozelo por uma serpente, caiu morta”114. Os versos anteriores
(4-7) aludem ao casamento, Himeneu vem até Orfeu, mas traz apenas mau augúrio: “para
nada ele veio, pois não trouxe as palavras que o costume havia consagrado, nem semblante
irradiando alegria, nem votos de boa fortuna ao casal; mesmo a tocha que carregava
balbuciava as brasas, emitindo apenas fumaça lacrimosa, sem nunca tornar-se chama”115. Os
versos que sucedem imediatamente o da cena da morte de Eurídice anunciam a descida de
Orfeu ao Inferno (11-13), para resgatá-la: “Depois de o cantor de Ródope chorá-la à luz do
dia, para não deixar de tentar também à sombra, ousa descer à porta do Tênaro rumo ao
Estige”116.
Embora não fique claro no texto de Ovídio se Orfeu assistiu à morte de Eurídice,
Delacroix, ao contar uma história numa única imagem, faz como todo pintor formado na
tradição do ut pictura poesis faria: ele representa, na mesma composição, diferentes
momentos da narrativa. A coroa de flores sobre os cabelos de Eurídice e a guirlanda aberta
que segura nas mãos são um indicativo do casamento; Orfeu, ao fundo, da descida ao Inferno
após a constatação da morta da esposa.
No original em latim, a alusão à primavera ocorre mais adiante no texto, depois da
segunda morte de Eurídice, quando Orfeu, voltando do Hades, olha para trás. O poeta entra
num longo período de luto (78-85):

“Três vezes o Sol terminou o ano nas águas de Peixes e Orfeu recusava toda a
relação amorosa com mulheres, seja porque não deu certo para ele, seja porque a
promessa que fizera a Eurídice era permanente. (…) Entre os trácios, ele introduziu

113
Ninfas das fontes e dos rios.
114
“nam nupta per herbas/dum noua Naiadum turba comitata uagatur,/ occidit in talum serpentis dente recepto”.
Estamos nos baseando nas traduções do latim de Domingos Lucas Dias (2017) e de Charles Martin (2004).
115
“adfuit illequidem, sed nec sollemnia uerba/ nec laetos uultus nec felix attulit omen;/ fax quoque quam tenuit
lacrimoso stridula fumo/usque fuit nullosque inuenit motibus ignes.”
116
“quam satis at supera postquam Rhodopeius auras/ defleuit uates, ne non temptaret et umbras, ad Styga
Taenaria est ausus descendere porta.”
59

a prática de transferir as afeições aos jovens, colhendo a primeira flor da breve


primavera de sua virilidade nascente”117.

A tradução de Desaintange, que Delacroix cita nos diários, remete à primavera,


igualmente como uma idade da vida, também no trecho em que Orfeu pede a Plutão e
Prosérpina o retorno de Eurídice: “Je viens redemander une épouse ravie./ Le dent d’une
vipère, au printemps de sa vie,/ de ses beaux jours croissant a moissonné la fleur” (1800, II,
pp. 127-8). No latim, contudo, não é usada, neste trecho, diretamente a palavra primavera
(ver), apenas “crescentesque abstulit annos”.
De todo modo, na pintura de Delacroix, a relação com a primavera pode ser
estabelecida, de maneira simples e direta, pelo ato de colher flores. A tentativa implícita de
resgate de Orfeu projeta, por sua vez, a estranha ideia, pois entra em contradição com as
características da estação, de um renascimento sem êxito e, assim, de uma morte dupla.
Lee Johnson118 aproxima a pintura de Delacroix da de Nicolas Poussin, Paysage
avec Orphée et Eurydice (1648, Musée du Louvre, Paris, fig. 61), já que, como lembra o
autor, Delacroix comenta diretamente o quadro em seu longo artigo sobre Poussin, publicado
em junho de 1853, no Moniteur Universel:

“(…) e esta paisagem de Orfeu que mostra tão bem e de uma maneira talvez mais
tocante estes contrastes eternos de alegria e tristeza: o divino cantor reúne em torno
de si as ninfas e os pastores, todos encantados pelo charme de sua lira, enquanto que
Eurídice, à frente no quadro, tomada de um frio mortal pela mordida de uma
serpente, deixa escapar as flores de sua cesta. O fundo do quadro apresenta o
espetáculo de uma cidade feliz, onde florescem as artes: homens montados em
barcas deixam-se ir no curso de um rio tranquilo ou se banham em suas águas”119
(DELACROIX, Eugène, Le Poussin, Moniteur Universel, le 30 juin 1853. In:
DELACROIX: 1923, II, p. 91).

117
Grifos nossos, “tertius aequoreis inclusum Piscibus annum/ finierat Titan, omnemque refugerat Orpheus/
femineam Venerem, seu quod male cesserat illi,/ siue fidem dederat. (…)/ ille etiam Thracum populis fuit autor
amorem/ in teneros transferre mares citraque iuuentam/ aetatis breue uer et primos carpere flores”. É verdade
que as traduções francesas do tempo de Delacroix eram bastante circunspectas em relação a esta menção à
homossexualidade, muitas vezes suprimindo o último verso, mais sensual e alusivo, ou limitando-se mesmo à
ideia de misoginia. No livro XI das Metamorfoses, inclusive, Orfeu acaba esquartejado por bacantes
apaixonadas, em resposta ao seu desprezo por elas.
118
1986: III, p. 66.
119
« (…) et ce paysage d'Orphée qui présente si bien et d'une manière peut-être plus touchante ces contrastes
éternels de la joie et de la tristesse : le divin chanteur assemble autour de lui les nymphes et les bergers, tout
étonnés du charme de sa lyre, tandis qu'Eurydice, sur le devant du tableau, saisie d'un froid mortel par la piqûre
d'un serpent, laisse échapper les fleurs de sa corbeille. Le fond du tableau présent le spectacle d'une ville
heureuse, où fleurissent les arts : des hommes montés sur des barques se laissent aller au cours d'un fleuve
tranquille ou se baignent dans ses eaux. »
60

No quadro de Poussin, Orfeu é um personagem mais pronunciado do que na tela


de Delacroix. Além disso, ele não percebe que Eurídice é picada e morta enquanto está
absorvido tocando sua lira a alguns ouvintes, muito embora o casal esteja, espacialmente, a
apenas alguns passos de distância um do outro. Talvez Delacroix tenha estranhado isso e
optou por colocar Orfeu ao fundo, presenciando e reagindo à cena da morte da mulher. Não é
tanto a Eurídice de Delacroix que está posicionada como a de Poussin, mas sim a Náiade que
ele pintou ao fundo120. A mesma cesta de flores figura na tela do romântico e a mesma
serpente oculta na relva.
Delacroix deve ter estranhado a proximidade espacial acompanhada da
indiferença de Orfeu em relação à morte da esposa, porque já notara problemas semelhantes
numa gravura flamenga do episódio de Orfeu tocando a lira aos animais (Metamorfoses, X,
86-105), conforme ele mesmo escreve no seu artigo sobre Prudhon, de 1846. Pensamos tratar-
se da imagem reproduzida na fig. 64 (todos os animais citados por ele conferem, a exceção do
tigre/pantera), gravada por Crispijn van de Passe, a partir de Leandro Bassano (Rijskmuseum,
Amsterdã). Delacroix chama a atenção para o anacronismo, tolerável na época, de Orfeu
tocando violino, não a lira, para o absurdo de lebres estarem tranquilas ao lado de seus
predadores e mesmo para o caráter jocoso da turba de animais formando uma “plateia” e do
macaco que se encontra, ao lado de Orfeu, “attentif à lui tourner les feuillets de son livre de
musique”. Então, é possível que Delacroix tivesse estranhado a distância entre Orfeu e
Eurídice no quadro de Poussin: como, a poucos passos da esposa morrendo, ele permaneceria
tão indiferente?
Além disso, Delacroix chama a cidade ao fundo de heureuse, embora um dos seus
monumentos esteja evidentemente queimando. Ou ele transferiu o efeito da atividade dos
homens a nadar e puxar um barco sem velas sobre um rio “tranquilo”, em segundo plano, ao
espírito da cidade ou ele simplesmente associou as ideias Roma/florescimento das
artes/felicidade, ignorando, de todo modo, o incêndio. Seriam as manchas ao fundo em seu
quadro para Hartmann, logo atrás de Eurídice, fumaça e não montanha? Se compararmos o
quadro com o esboço no Musée Fabre (fig. 63), trata-se, de fato, de uma formação rochosa:
Delacroix parece ter negligenciado um detalhe que perturbava sua interpretação do quadro de
Poussin. Em compensação, ele percebeu, nele, os vestígios de uma cerimônia matrimonial.
Em sua pintura, Poussin remete ao casamento fazendo figurar o luxuoso vaso de ouro e as

120
Ao inverter horizontalmente a posição da Eurídice de Poussin, contudo, nota-se que a posição das pernas,
sobretudo a esquerda, da Eurídice de Delacroix é muito semelhante à dele. Ver também o estudo de Delacroix da
figura de Eurídice conservado no Louvre e citado adiante (fig. 62).
61

duas coroas de flores sobre o chão, em frente a uma árvore do lado direito de Orfeu.
Delacroix, por sua vez, coloca as coroas nas cabeças dos noivos (ainda que, no caso de Orfeu,
possa tratar-se de uma coroa de louros).
Poussin deve ter visto as ilustrações de Virgil Solis das Metamorfoses, tanto a da
morte de Eurídice, quanto a de Orfeu no Inferno (figuras 65 e 66)121, pois ele reuniu ambas
em sua composição. O inferno em chamas e a barca atravessando o Estige, na segunda
gravura, foram assimilados, respectivamente, pela paisagem romana (com o Castelo de Saint-
Ângelo tomado pela fumaça) e pelo rio com o barco e os nadadores122. Na primeira gravura,
Eurídice encontra-se na mesma posição que no quadro de Poussin.
A tela de Delacroix contém também elementos de uma ilustração das
Metamorfoses gravada por Bernard Picart para a tradução do abée Banier, publicada em 1732
(fig. 67). Nela, Eurídice está, como no quadro da Primavera, com os dois seios à mostra e
tombando, amparada por uma das Náiades, além de usar o mesmo bracelete. A edição
parisiense de 1767 do mesmo texto contém uma ilustração de Moreau le Jeune (fig. 68), o
qual ilustrou a versão que Delacroix comenta nos diários, traduzida por Desaintange, em que
Eurídice também é amparada por uma náiade, embora seja ela – e não a náiade – que faça o
gesto de espanto.
Dentro da produção de Delacroix, a Eurídice morrendo é um eco de Ofélia
morrendo, especialmente se a colocarmos ao lado de um estudo a lápis para a tela de
Hartmann que se encontra no Louvre (fig. 62, RF 9620r). Na verdade, Eurídice participa do
universo mais geral de “sangue, volúpia e morte”123 que envolve a representação da figura
feminina em Delacroix.

121
Cf. McTIGHE:1996, p. 60. Ver: Virgil Solis, P. Ovidii Metamorphosis, Frankfurt, 1581, fólios 126 e 129
recto (http://www.latein-pagina.de/ovid_illustrationen/virgil_solis/buch10/inhalt_buch10.htm#z1).
122
Sheila McTighe (1996:65) lê a cena do barco como uma espécie de alegoria do mau governo, segundo o texto
de Piero Valeriano, Hyeroglyphica, o qual Poussin consultou em outras composições. Ela cita o trecho da
tradução francesa, de 1576: “A quoy est contraire la navigation qui se fait ‘avec la perche ou l’aviron’ quando
quelq’un y va par secrette pratique, et comme l’on dit communement Nagez soubz l’eau. Ammianius interprete
ce passage (…) quasi à ce mesme propos : il alloit à l’encontre de la Republique non pas par le moyen de la rame
et aviron, comme on dit : c’est-à-dire, par dissimulation, subterfuge et tromperie, mais à plaine voile » (t. II,
315). A autora substitui, contudo, a expressão “navegar com bastão e remo” no francês por “com mastros e
cordas de reboque” do original em latim (conto, remulcore navigare). Depois, estabelece uma ligação entre essa
expressão, o barco sem velas e a cidade em chamas no quadro com as revoltas populares e a guerra civil
(conhecida como la Fronde) que assolou a França durante o período de regência, depois da morte de Louis XIII.
123
PRAZ, Mario. La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica. 3ª ed. Rizzolli, Bur Alta Fedaltà,
2012 [1930], p. 137. Na passagem, Praz lembra o culto que Maurice Barrès dedicava ao artista. Du sang, de la
volupté et de la mort (1864) é o título de um de seus romances.
62

William Perry124 sugere que o tema tenha-lhe ocorrido em razão da montagem da


versão de Berlioz da ópera de Gluck, Orphée et Eurydice, que estreou em novembro de 1859
no Théâtre Lyrique, com Pauline Viardot no papel de Orfeu. Delacroix fez um croquis da
mezzo-soprano para o figurino da peça, aconselhou-a sobre o cenário do inferno e admirou,
nos palcos, a sua interpretação125. Contudo, ele já anotara o tema nos diários como uma
possibilidade em 9 de janeiro de 1856 e, na sequência, iniciou os esboços; em junho de 1860,
inclusive, já havia, escreve, “avancé beaucoup les quatre tableaux des Saisons pour
Hartmann”. O trabalho encontrava-se, assim, já muito avançado para ter sido influenciado
pela ópera.
A história da morte de Eurídice não foi, ao que parece, usada antes para a
representação da Primavera. Notamos a influência do quadro de Poussin sobre a composição
de Delacroix, embora Orfeu reaja à cena da morte da esposa, e também das ilustrações de
edições francesas das Metamorfoses do séc. XVIII.

2.2.2. Verão: Diana e Acteão

Um homem com chifres despontando da testa entra no quadro pela direita (fig.
69), um dos pés quase à beira de um rio, as costas viradas para nós. Posicionado em ¾, está a
girar o dorso para a sua direita, no sentido da profundidade. Parece correr. Os braços e mãos,
alinhados numa horizontal perpendicular à cabeça, indicam um gesto de espanto e/ou
proteção. Um cão, próximo a ele, em primeiro plano, bebe a água do rio; outros dois, atrás
dele, também entram correndo no quadro. Na outra margem, uma mulher sentada, num
ímpeto de levantar, nua, um par de brincos e uma tiara com uma meia lua adornando seu
rosto, o que a identifica com Diana, aponta com o indicador da mão direita para o homem na
outra margem. Suas sobrancelhas estão levemente unidas e sua expressão é um misto de
serenidade e convicção. Atrás dela, outra mulher, vestida, com uma expressão de piedade,
tenta envolvê-la num tecido branco. À direita desta dupla central, vemos um arco-e-flecha
dourado e outros apetrechos entre, acima, uma mulher cobrindo-se e, abaixo, outra saindo
assustada do rio, enquanto olha para o homem na outra margem. No centro, mais ao fundo do
quadro, distinguimos uma clareira em meio à densidade da mata, para onde corre o riacho,
124
PERRY, William. Eugène Delacroix: a study of his subjects. New York, New York University thesis, 1942,
p. 75.
125
Ver: Further Corres., p. 156 (croquis, conselhos sobre figurino e cenário) e Journal, II, p. 1266, nota 27; p.
1333; Corres. IV, pp. 131-32, 139 (elogios à atuação de Viardot).
63

com uma mulher nadando e outras duas saindo rapidamente da água. O céu está azul, mas
ocupa um espaço muito pequeno da composição.
A fonte escrita encontra-se no livro III das Metamorfoses (138-205). Acteão126
está caçando e decide parar quando o sol está a pino (“[…] e o sol quente brilhou equidistante
dos extremos; agora Febo está no meio do céu, fendendo os campos com seu calor [...]”127).
Penetra na floresta do vale da Gargáfia e termina numa gruta, onde surpreende Diana nua,
banhando-se com suas ninfas num riacho. A guardiã da castidade feminina na mitologia
romana cora e irrita-se com o jovem (“seu semblante parecia-se com nuvens tingidas pela luz
oblíqua do sol ou com o desvanecer púrpura da Aurora”128), transforma-o num cervo e, na
sequência, ele é devorado pela sua própria matilha de cães. Logo que o vê, Diana vira a
cabeça para trás, procurando pelo seu arco. Não o tendo à mão, mas “apenas água, esta ela
colheu e lançou contra o semblante viril do jovem e borrifou com o fluxo vingador o seu
cabelo e disse-lhe estas palavras, presságio de desgraça futura: ‘Vá contar por aí, se puder a
sua língua, que seus olhos me viram sem nenhuma roupa’”129. Chifres de veado começam a
brotar da cabeça de Acteão. Este é o momento que Delacroix escolheu pintar.
A associação com o verão parece proceder tanto da ideia do calor do meio-dia,
quanto do banho das mulheres. Ainda que na Salle des Saisons, no Louvre, Giovanni-
Francesco Romanelli tenha pintado, em 1655-58, o mesmo episódio no teto, ele usou-o para
representar a Primavera, não o Verão. Renato Brollezzi130 propõe uma relação formal entre a
pintura de Delacroix e uma de mesmo tema de Francesco Albani, na coleção do Louvre (c.
1617) desde Louis XIV (fig. 72). Albani retomou-o diversas vezes e provavelmente Delacroix
também viu uma versão mais tardia (c. 1640, Musée du Louvre, Paris, fig. 73). O italiano teve
como modelo para sua Diana, por sua vez, a Diana dos Diana e Calisto, de Ticiano (1556-59,
National Gallery Scotland, Edimburgo; c. 1566, Kunsthistorisches Museum, Viena). Mesmo

126
Acteão é filho de Aristeu, o apicultor que no Livro IV das Écoglas de Virgílio perseguia Eurídice quando ela
foi picada por uma cobra.
127
“(…) nunc Phoebus utraque/distat idem meta finditque uaporibus arua” (III,151-2).
128
“(…) qui color infectis aduersi solis ab ictu/nubibus esse solet aut purpureae Aurorae,/is fuit in uultu uisae
sine ueste Dianae” (III, 183-5).
129
“(…) in latus obliquum tamen adistito oraque retro/ flexit et, ut uellet prontas habuisse sagitas,/ quas habuit
sic hausit aquas uultumque uirilem/perfudit spargensque comas ultricibus undis/ addidit haec cladis praenuntia
uerba futurae:/ ‘nunc tibi me posito uisam uelamine narres,/sit poteris narrare, licet.’ nec plura minata/ dat sparso
capiti uiuacis cornua cerui (…)” (III, 189-194).
130
BROLLEZZI, Renato. “O Verão ou Diana e Actéon” de Delacroix: uma versão moderna de uma tragédia.
Revista de História da Arte e Arqueologia, UNICAMP, nº 1, 1994, pp. 109-120.
64

as versões setecentistas de Louis Galloche (1732, Hermitage, São Petersburgo, fig. 77) e
Louis Boullogne, Le Jeune (gravada entre 1730 e 1735 por Dominique Sornique, fig. 76)
devem algo a Ticiano. Delacroix possuía as gravuras do Theatrum Pictorium (1660), de
David Téniers, o jovem, que reproduziam obras da coleção de quadros do arquiduque Leopold
Guillaume da Áustria, entre os quais o Diana e Calisto de Ticiano atualmente no museu de
Viena (figuras 74 e 75)131.
Em relação à segunda versão de Albani, Delacroix inverteu a posição dos
personagens principais, de modo que Acteão, ao invés de fugir, parece mais ir ao encontro de
Diana e de sua mágica cruel ou, como escreve Ovídio, “com passos incertos, errar para onde
lhe dirigia o destino”132. Além disso, aos dois personagens Delacroix deu maior atenção (as
ninfas, que acorrem para “escudar Diana com suas formas nuas”133, têm um papel mais
secundário do que em Albani, por exemplo). O movimento da ninfa que sai do riacho em
Delacroix, abaixo à esquerda, é igual ao daquela da versão de Albani de 1617 que se encontra
no mesmo lugar dentro da composição (ver também o estudo de Delacroix no Louvre,
RF9619r, fig. 71); os galhos na cabeça do Acteão de Delacroix têm o mesmo tamanho dos do
Acteão de ambos os quadros de Albani – a metamorfose está ainda no começo. A Diana do
francês, contudo, não é representada tão frontalmente e sua atitude denota certo pudor. Assim,
a figura da caçadora aproxima-se mais da mesma como pintada na primeira tela do italiano,
citada por Brollezzi, enquanto a de Acteão, da segunda.
A ninfa que vem cobrir Diana, por trás, está posicionada de modo mais parecido
com a das imagens do séc. XVIII citadas acima (figuras 76 e 77). O cenário, em termos
compositivos, com o riacho cortando a composição diagonalmente em duas partes e um
primeiro plano bem acentuado com as personagens, é mais tributário, embora invertido, do
Diana e Calisto de Ticiano em Viena. As mulheres nadando ao fundo, por sua vez, podem ser
vistas na paisagem histórica de Paul Bril, Diana descobre a gravidez de Calisto (1615-20), no
Louvre desde Louis XIV (fig. 78). Além disso, aparecem numa composição anterior de
Delacroix, datada de 1854, Mulheres turcas no Banho (Wadsworth Atheneum, Hartford, fig.
79).
A história de Diana e Acteão já figurou em séries das Estações antes, mas não na
representação do Verão. Na tela de Delacroix, observamos a influência das duas telas de

131
Journal, I, p. 1060.
132
“(…) per menus ignotam non certis passibus errans/ peruenit in lucum; sic illum fata ferebant.” (III, 175-6).
133
“nymphae (…)/ impleuere nemus circumfusaeque Dianam/corporibus texere suis (…)” (III,180).
65

Albani da mesma cena e de imagens do séc. XVIII, todas devendo algo a Ticiano. A
infraestrutura da paisagem lembra aquela do Diana e Calisto, de Ticiano, em Viena,
reproduzida na gravura pertencente ao álbum Theatrum Pictorium, que Delacroix possuía. Há,
ainda, a reminiscência de uma cena orientalista pintada por ele em 1854. As mulheres
nadando no riacho ao fundo figuram também numa paisagem de Paul Bril que estava
acessível ao artista, do mesmo modo que as telas de Albani, no Louvre.

2.2.3. Outono: Baco e Ariadne

No centro do quadro (fig. 80), a mão de um homem em pé segura a de uma


mulher levantando-se, seu tronco arqueado, suas pernas esticadas sobre o chão. A coroa de
folhas de parreira e o cetro com a pinha no topo, mais o carro com duas panteras à frente,
identificam a figura com Baco, o deus do vinho. Em primeiro plano, à esquerda, vemos uma
armadura e, à direita, uma ânfora e uma caixa douradas. Um menino alado sobrevoa o casal
com uma tira de folhas e flores nas mãos. Temos um vislumbre do mar, ao fundo, próximo à
moça, emoldurado pelo arco de rocha. Atrás de Baco, na montanha distante, distinguimos,
com certo esforço, algumas figuras humanas, em grande agitação, andando em fila.
O casamento de Baco e Ariadne é descrito no Livro VIII (172-182) das
Metamorfoses:

“e logo que, com a ajuda de uma donzela, a difícil porta, que nunca ninguém cruzou
duas vezes, foi encontrada com o enrolar do fio, logo o descendente de Egeu,
levando consigo a filha de Minos, navega para Dia134 e, cruel, abandona nessa praia
sua companheira. É Líber quem socorre e ampara a abandonada queixosa e, para a
tornar brilhante qual astro perene, lhe arrebata da fronte a coroa que atira ao céu
(…)”135.

Ovídio descreve o encontro também no Livro III dos Fastos (460-516):

“Chorava a esposa amante e vagando na praia,


(…) disse tais palavras:
‘Minhas queixas de novo, ó ondas, iguais ouvi;

134
Ilha próxima a Creta, cidade onde reinava Minos, pai de Ariadne e aonde vai Teseu, filho de Egeu, no lugar
das jovens atenienses, para ser entregue em sacrifício ao Minotauro, o monstro com cabeça de touro e corpo de
homem. Ariadne apaixona-se por ele por obra de Vênus, ajuda-o a sair do Labirinto depois de ele ter matado seu
meio irmão (filho de Parsifae com o touro) e deixa seus pais e sua terra, violando a pietas (obrigação e respeito
para com os deuses e a família), para seguir Teseu, o qual, immemor, a abandona na ilha de Dia. Em outras
versões, contudo, Teseu faz uma escala na ilha de Naxos antes de retornar a Atenas.
135
“utique ope uirginea nullis iterata priorum/ inua difficilis filo est inuenta relecto,/ protinus Aegides rapta
Minoide Dian/uela deit comitemque suam crudelis in illo/litore destituit; desertae et multa querente/amplexos et
opem Liber tulit, utque perenni/ sidere clara foret, sumpram de fronte coronam/ immisit caelo (…)”.
66

bebei de novo, ó areias, minhas lágrimas.


Lembro, eu dizia: ‘Ó Teseu pérfido e perjuro!’
(…) Também direi: ‘Mulher alguma em homem creia’136
(…) Por que salvaste-me, na areia moribunda,
ó Líber? -- Minha dor teria acabado.
(…) Líber ouviu a fala da queixosa,
ao segui-la de perto, por acaso.
Toma-a nu’abraço, seca as lágrimas com beijos
e diz: P’r’o alto do céu iremos juntos.
Tu estiveste em meu leito; assume então meu nome;
o teu será mudado para Líbera.
No monumento que te faço seja tua
coroa a que Vulcano deu a Vênus’.
Dito e feito. Transforma em fogo as nove gemas,
e a coroa com nove estrelas brilha.”137

Nos dois textos, não é feita uma menção direta ao sono de Ariadne, ou seja, ao
fato de que foi abandonada por Teseu (e encontrada por Baco) enquanto dormia, como a
personagem é, aliás, comumente representada nas artes visuais (por exemplo, na escultura no
Vaticano, fig. 89). Ovídio também não menciona a presença de Eros com a grinalda florida, e
não deixa claro que Baco aportou ali com o seu cortejo de mênades e sátiros. Nas
Metamorfoses e nos Fastos, o poeta dá maior destaque à transformação de Ariadne, pela
vontade de Baco, numa constelação. Delacroix, contudo, ignorou em sua pintura do Outono a
coroa e sua conversão em estrelas.

É no primeiro livro da Arte de Amar (versos 523-600) que Ovídio afirma,


seguindo Catulo (Carmen 64, 55-70) que, quando Baco encontrou Ariadne, ela estava
acordando, depois de ter errado pelas praias da ilha, e descreve sua aparência. Fica claro
também que Baco chegou num carro guiado por tigres e que não veio sozinho, mas
acompanhado, seu casamento com a filha de Minos e Parsifae não se passando sem grande
celebração:

“A princesa de Creta errava perdida sobre as areias desertas, onde a pequena Dia é
circunscrita pelas ondas do mar. Acordando, levantou-se com os pés nus, vestindo
apenas uma túnica leve: com os cabelos louros soltos, dirigiu-se às ondas surdas e
chamou, tendo os olhos cheios d’água, pelo cruel Teseu. Gritava e chorava ao
mesmo tempo: mas nem seu grito, nem suas lágrimas lhe eram desvantajosos e, ao
chorar, não se tornava de modo algum desagradável. (…) ‘O pérfido daqui se foi’,
dizia, ‘que será de mim? que farei?’, quando címbalos se fizeram ouvir ao longo da
costa, aos quais se misturava o som de um tambor frenético: ela se assustou e o
medo que cortou suas últimas palavras, fez-lhe também fugir o sangue. No entanto,

136
É conhecida a influência do Carmen 64, de Catulo, sobre Ovídio, que trata da história de Teseu e Ariadne em
meio à das núpcias de Tétis e Peleu. No poema do romano, que morre durante a adolescência de Ovídio, a
exortação “mulher alguma em homem creia” (nunc iam nulla viro iuranti femina credat), por exemplo, é dita por
Ariadne no verso 143.
137
Tradução do latim de Márcio Meirelles Gouvêa Junior (Autêntica, 2015, pp. 158-61).
67

eis aqui as bacantes com cabelos ao vento, eis uma trupe de sátiros ligeiros
precursores do deus da Ilha, eis Sileno (…).

Baco apareceu montado num carro ornado de videiras, ao qual os tigres, com rédeas
de ouro, estavam atrelados. A princesa empalideceu, sua voz perdera-se junto com o
nome tão proferido de Teseu. Três vezes tentou fugir: três vezes, paralisada pelo
medo, o horror arrepiou-a, como o vento que agita as espigas de trigo nos campos ou
os juncos no banhado. Mas o deus falou-lhe. ‘Eis-me aqui’, disse-lhe, ‘para te
dispensar os meus cuidados e para ser-te mais fiel do que aquele que te deixou neste
estado. Deixe para trás a apreensão que leio em teu rosto: serás a esposa de Baco.
Terás o céu como recompensa, serás contemplada como um astro resplandecente e
guiarás os barcos incertos (…)’. Falou e desceu de seu carro, de medo que ela se
assustasse com seus tigres (...). Tomando-a nos braços (…) ele a levou consigo e
Ariadne obedeceu-o, incapaz de resistir. Uma parte do cortejo cantou o Himeneu,
uma parte gritou Evoé! Evoé! – e, assim, a esposa e o deus entraram no leito
conjugal” (OVIDE, L’Art d’aimer et Remèdes d’Amour…, trad.: Michel de
Marolles, Paris, Pierre Lamy, 1660, pp. 29-31) 138.

Mas é somente Nonnus, nas Dionísicas (fim do canto 47), que menciona
explicitamente Eros e a guirlanda de flores. Citamos a seguir uma tradução francesa do grego
feita pela Comte de Marcellus, publicada exatamente no ano em que Delacroix iniciou o
projeto para Hartmann, 1856:

“Mesmo Eros admira Ariadne. (…) O impetuoso Eros, que acompanha Baco, a
atingiu com as flechas de seu arco e inspira-lhe um amor mais ardente que o
primeiro; porque ele quer unir ao deus seu irmão a filha de Minos. (…) Eros, em
incrível presságio, compõe, com rosas brilhantes que entrelaça pelo cálice, uma
coroa que resplandece como os astros, prenúncio da coroa celeste (…)”139.

138
Nossa tradução a partir da tradução francesa do abée de Marolles, que Delacroix tinha em sua biblioteca:
« La princesse de Crete, erroit comme une insensée sur les Sables inconnus, où la petite Die est battuë tout
autour des flots de la Mer. Estant éveillée, elle se leva du lit pieds nuds, n’ayant qu’une robe de chambre sur
elle : & ses cheveux blonds n’estant point resserrez, elle s’écrioit vers les ondes sourdes, & appeloit Thesée
cruel, ayant ses yeux trempez de larmes. Elle crioit & pleuroit tout ensemble : mais ny l’un ny l’autre ne lui
estoit point desavantageux, & pour pleurer, elle n’en devenoit point plus desagreable. Cependant elle se frappoit
le sein ; & recommençant ses plaintes, le perfide s’en est allé, disoit-elle. Que seray-je ? Helas ! que feray-je ?
Lors que des Cymbales se firent entendre tout le long de la coste, où se melloit aussi le son d’une espèce de
Tambours qu’on touchoit d’une main étourdie : Elle en fut surprise, & la frayeur qui entre coupq ses dernières
paroles, luy fit fuir le sang. Cependant, voicy les Mimalones, avec leurs cheveux éparts ; voicy une troupe de
Satyres legers à la course qui devancent le Dieu de l’Isle. Voicy (…) Silene (…). Cependant Bacchus parut
monté sur un char orné de Pampres où des Tigres estoint attelez avec des brides d’or (…). Et au mesme temps la
Princesse palit, & sa voix se perdit avec le nom de Thesée qu’elle proferoit. Par trois fois elle essaya de prendre
la fuitte : mais par trois fois, estant retenuë par la crainte, l’horreur la fit fremir comme un vent qui agite des
épics de bled steriles, ou des roseaux legers qui tremblent dans un Marais. Mais le Dieu luy parla. Me voicy, luy
dit-il, pour vous rendre mes soins, et pour vous estre plus fidele que celuy qui vous a laissée en l’estat où je vous
voy. Quittez cette apprehension qui vous saisit, & que je lis sur votre visage : Vous serez l’épouse de Bacchus.
Vous aurez le ciel pour votre recompense, vous y serez contemplée comme un Astre rayonnant, d’où vous serez
souvent utile aux Pilotes pour régir leurs Vaisseaux, quand ils seront en doute de la route qu’ils devront tenir. Il
parla de la sorte, & descendit de son char, de peur quelle ne fust effroyée de ses Tigres (…). L’ayant embrassée
(…) il l’enleva, & Ariadne luy obeït, & n’eust pas esté capable aussi de lui resister. Une partie de ceux de sa
suitte chanta l’Hymenée : Une partie s’écria Evoé Evoé : Et ainsi l’Épouse et le Dieu entrerent dans le lit
conjugal ».
139
« Éros lui-même admire Ariadne. (…). L'impétueux Éros, qui l'accompagne [Bacchus], l'a frappé [Ariadne]
des traits de son arc, et lui inspire un amour plus ardent que le premier ; car il veut unir au dieu son frère la fille
de Minos. (…) Éros par un éclatant préssage, forme avec les roses brillantes dont il entrelace les calices, une
couronne qui étincelle comme les astres, avant-courrière de la couronne céleste (…) » (NONNOS ;
68

O outono é tradicionalmente representado pelo fruto da videira e,


consequentemente, associado ao deus do vinho. Essa é a razão mais óbvia pela qual Delacroix
escolheu retratar, nesta estação, uma história em que Baco é um dos protagonistas. O triunfo
de Baco e Ariadne fora usado antes, em 1769, para representar o outono na Galerie
d’Apollon, no Louvre, por Jean-Hughes Taraval (1729-1785) respondendo ao projeto
decorativo original de Charles Le Brun (1619-1690) (fig. 82). Delacroix trabalhara ali entre
1850 e 1851, no painel central, representando Apolo matando a serpente Píton
(Metamorfoses, Livro I, 606-28) e a crítica foi quase unânime ao reconhecer a adequação com
que sua pintura veio preencher a lacuna do ensemble barroco retomado pelos pintores
acadêmicos do séc. XVIII. Como o esboço deixado por Le Brun para o Triunfo de Apolo
(Louvre, Inv. 29493r) parece não ter sido do conhecimento de Delacroix140, ele realmente
estudou, com vistas a harmonizar a sua composição e paleta, as obras vizinhas à sua,
incluindo a de Taraval, que já estavam ali. Além disso, posteriormente ele mesmo pintou um
triunfo de Baco (c. 1861, Fundação Bührle, Suíça), que foi adquirido pelo irmão de Frédéric
Hartmann na venda póstuma do artista, em 1864 (fig. 81).
Trata-se, porém, nos dois casos, de Taraval e do próprio Delacroix, de triunfos. A
cena mais específica do encontro do deus com Ariadne aparece, por exemplo, no Outono da
série das Estações de Nicolas Vleughels (1668-1737), gravada por Edme Jeurat em 1716 (há
uma no acervo do Musée des Beaux-Arts de Rennes, desde 1791) e na pintura de Charles de
La Fosse (hoje no Musée des Beaux-Arts de Dijon) encomendada pelo arquiteto Jules-
Hardouin Mansart ao grand salon do château de Marly, residência d’agrément de Louis XIV
próxima a Versailles, e entregue em 1699 (fig. 92)141. Não é possível, contudo, saber se
Delacroix viu essa pintura ou aquela gravura.
Foi também a figura do deus do vinho que ele escolheu representar, dando de
beber a um tigre, numa experiência com a técnica do afresco em 1834, na Abadia beneditina
pertencente a seu primo, em Valmont, Normandia (fig. 90), que citamos aqui especialmente

MARCELLUS, Comte de (rétabli, traduit et commenté par). Les dionysiaques ou Bacchus : poème en XLVIII
chants (grecque et français). Paris: Didot frères Éditeurs, 1856).
140
O projeto de Le Brun para a pintura central do teto, jamais executado, é associado ao Apolo do seu Pandora
recebendo presentes dos deuses (1658) do hôtel La Bazinière, pintura conhecida hoje por um esboço a óleo no
Musée Georges de la Tour, Vic-sur-Seille. E também ao Le Lever de l'Aurore, dit aussi, Apollon et les Heures
(1652-55), executado para o hôtel de la Rivière e transportado, em 1872, ao Musée Carnavalet, Paris.
141
O Outono e a Primavera foram encomendados aos acadêmicos partidários do colorido ou rubénistes, La
Fosse (quadro hoje no Musée des Beaux-Arts de Dijon) e Antoine Coypel (Musée du Louvre, Paris), enquanto o
Verão e o Inverno, aos partidários da linha ou poussinistes, Jean de Boullogne (Musée des Beaux-Arts de Rouen)
e Jean Jouvenet (Musée du Louvre, Paris).
69

pela qualidade pictórica do resultado, muito próxima às das pinturas de Pompeia e Herculano
(especificamente aquelas dos estilos III e IV) que ele, entretanto, só conheceria pelo
intermédio de gravuras.
Há, finalmente, o Outono de Talma, no qual Delacroix representara Baco sozinho
e de um modo bastante andrógino. Num estudo para a obra conservado no Louvre (RF 9151,
folio 76, fig. 87), vemos que ele chegou a conceber essa figura como uma mulher. No
Fitzwilliam Museum, Cambridge, há um esboço do artista para a pintura no teto do Salon de
la Paix, feito entre 1849-53, representando Ceres, em que a tradicional personificação do
Verão é retratada como, em geral, fora retratada Ariadne ao ser abandonada por Teseu
enquanto dormia – deitada, com o braço direito erguido e a respectiva mão atrás da nuca (fig.
88). Levando em conta que Delacroix escolheu Hércules (e não Ceres, como seria o esperado)
para representar o Verão na série para Talma, esse esboço de Ceres/Ariadne aproxima-se bem
mais, retrospectivamente, do seu retrato de Baco no semicírculo do Outono.
Essa associação Baco-Ariadne-Outono na série para Talma não o abandonou. Na
tela para Hartmann, ela se torna, inclusive, mais evidente. Ele provavelmente baseou-se numa
reprodução em gravura de uma pintura mural pompeiana, hoje no Museo Archeologico
Nazionale di Napoli (figuras 83 e 84), pois nunca viajou à Itália. O primeiro a notar essa
derivação foi Walter Pach142. Delacroix pode ter consultado uma reprodução que se encontra
no livro Antiquités d’Herculanum143. Ele havia emprestado os volumes da Baronne de Forget,
não sabemos exatamente de qual edição, volumes estes que lembra de devolver-lhe próximo à
data de sua morte, em agosto de 1863144.

142
“(…) the figure of Bacchus himself recalls the masculine body of the antique fresco which the French master
had never seen” (PACH: 1959(1930), p. 27).
143
Em 1748, dez anos após o início das escavações em Herculano, têm início as de Pompeia, ainda não referida,
porém, com esse nome. Foi em agosto de 1763 que a descoberta de uma inscrição mencionando a res publica
Pompeianorum permitiu a identificação da cidade. Desde 1757, contudo, os primeiros 4 tomos dedicados à
pintura das Antichità esposte di Ercolano, comentados pelos membros da Accademia Ercolanese, já estavam em
circulação. A edição francesa dos Piranesi, de 1804, apesar de atualizar os comentários às obras catalogadas,
permanece fiel, no que tange às imagens gravadas, à edição original italiana, conservando inclusive o título e
isso pode ter gerado alguma confusão em termos de localização e proveniência. (O Les Ruines de Pompéi, do
arquiteto francês François Mazois, aparece somente a partir de 1815.) Pach, por exemplo, afirma que, ainda no
início do séc. XIX, era comum referir-se a pinturas de Pompeia como sendo de Herculano (id.; p. 35). Ver, além
de PACH (1959), DESSALES in: BRUGEROLLES (2017) e COATES; SEYDL (2007).
144
Ver o trecho correspondente do testamento de Delacroix, transcrito em: SÉRULLAZ: 1989, p. 456. Deveria
ser um livro muito estimado pela Baronne, uma vez que Delacroix lembrou-se de devolvê-lo dez dias antes de
morrer, incluindo mesmo uma linha em seu testamento como garantia do retorno. Joséphine Louise Forget,
nascida Lavallete (1802-1886), era amiga e prima distante de Delacroix. Hannoosh cogita que entram em relação
desde 1829, mas a maior proximidade começaria a partir de 1836 (Journal, II, p. 2192). Joubin, por sua vez,
pensa que se tornam amantes em algum ponto do ano de 1834 (Corres., I, p. 366 n.3; 368 n.2). Portanto, este
empréstimo pode ter ocorrido desde os anos 1830. Entre 1829 e 1863, novas edições francesas das Antiquités
70

O Baco de Delacroix dá um passo à frente, como o Baco da prancha XVI do tomo


II da edição dos irmãos Piranesi, de 1804, das Antiquités d’Herculanum, cujas imagens foram
gravadas por Thomas Pirolli (fig. 83). Sua Ariadne, por sua vez, encontra-se numa posição
semelhante àquela da prancha XIV do mesmo tomo (fig. 85), reclinada sobre um colchão
assistindo à nau de Teseu partir – mesma inclinação de uma das pernas e dos braços, mesmos
seios e ventre largo à mostra, mesmo colar, bracelete e penteado. O francês quebra o padrão,
contudo, ao fazer esta Ariadne, que se lamenta diante da visão da nau de Teseu partindo,
segurar a mão de Baco. Desse modo, ele projeta mais ênfase sobre o recomeço com o deus do
que sobre o abandono por Teseu.
No comentário sobre a imagem que acompanha a prancha XVI, S-Ph. Chaudé
afirma que a execução da pintura de Pompeia deixa a desejar, pois trata-se de um trabalho
mais sumário do pincel145. Walter Pach chamou a atenção para a semelhança entre o grafismo
da pincelada em pinturas de Pompeia e Herculano (ele se referia especificamente a um
conjunto decorativo do Metropolitan, Nova York) e o grafismo da pincelada de Delacroix nos
afrescos de Valmont e na série das Estações para Hartmann146. Pach surpreende-se porque, a
princípio, Delacroix não poderia ter visto as pinturas de Pompeia e Herculano.
Mas talvez uma lhe estivesse acessível. O original da prancha XIV da edição
francesa das Antiquités citada, retratando Ariadne queixosa, hoje no British Museum (fig. 86),
pertencia à coleção de Louis de Blacas d’Aulps (1815-1866), o qual herdou-a, expandindo-a,
de seu pai, Pierre Casimir, duc de Blacas d’Aulps (1771-1839). Entre 1824-25, Delacroix
consultou-a para realizar alguns estudos de moedas antigas147. Embora não seja possível saber

aparecem no mercado, como, por exemplo, a dos irmãos Didot, 8 volumes publicados entre 1861-1877
(“Herculanum et Pompéi: recueil général des peintures, bronzes, mosaïques, etc. découverts jusqu’à ce jour et
reproduits d’après Le Antichità di Ercolano, Il Museo Borbonico et tous les ouvrages analogues...”), além das
mais antigas já em circulação, como, fora a dos irmãos Piranesi, a comentada por Sylvain Maréchal e gravada
por François-Anne David, 9 volumes publicados entre 1780-1803. Nenhuma menção a esse empréstimo das
Antiquités é feita nos diários de Delacroix ou em sua correspondência com Mme de Forget publicada por André
Joubin. Finalmente, cabe notar que pelo testemunho de seus estudos da juventude (RF9151, 34, 41, 42, 45, 47,
48, 49, 54; RF10152, RF10153, RF9146, 70; RF9146, 68, Louvre), Delacroix já teria entrado em contato com
alguma edição desse influente catálogo de pinturas antes de 1830.
145
« Le mérite de la composition, très supérieur à celui de l’exécution, peut faire penser que ce tableau est la
copie d’un excellent original » (Antiquités, II, 1804, planche XVI, s/p). Não é possível, contudo, constatar isso
na gravura.
146
Pach, op. cit., p. 24.
147
Ver as litografias da coleção do Metropolitan Museum, NY (31.77.24 ; 31.77.26 ; 31.77.28) e aquela com o
retrato do Duc de Blacas na coleção do Musée Eugène Delacroix, Paris. E também o texto de NEIS, Laura
Hickman, The Duc de Blacas's Patronage of Ingres, Delacroix, and Horace Vernet, Ph.D. dissertation,
University of Wisconsin-Madison, 1987.
71

exatamente quando a pintura de Herculano ingressou em sua coleção, o duc de Blacas fora
embaixador da França no Reino das Duas Sicílias, em Nápoles, entre 1814-16, e pode tê-la
adquirido nesse período, junto com outra relacionada à história de Baco e Ariadne148. Mas
admitir isso implicaria, primeiro, em assumir que Delacroix teve acesso a obras da coleção
Blacas D’Aulps fora da seção de numismática e, segundo, afirmar que tal padrão de
pincelada, explicitado em algumas pequenas e não tão significativas amostras do terceiro
estilo pompeiano, foi retido em sua memória a ponto mesmo de determinar uma qualidade
essencial do seu próprio. Em todo o caso, seria uma coincidência interessante.
Na reprodução da pintura de Pompeia da prancha XVI do Antiquités
d’Herculanum, Eros, no chão, conduz Baco até Ariadne. O motivo do amorino, só ou em
grupo, sobrevoando o casal está mais presente em pinturas dos séculos XVII e do XVIII,
como aquela citada anteriormente do triunfo de Baco, de Taraval149. Delacroix referiu-se à
decoração da Galerie d’Apollon (especialmente às esculturas nas cornijas ou estuques) como
“incorrigivelmente fria”: “é pelo amor à perfeição que essas figuras são imperfeitas”. Adiante
ele compara essa correção fria das figures du style français a “mulherões bem construídos,
mas sem nenhum encanto”150. É assim que ele prefere emprestar elementos de cenário ou
periféricos – não centrais – de composições feitas no style français às suas próprias.
Em termos de conjunto e cenário, além do quadro de La Fosse mencionado acima
(fig. 92), convém lembrar ainda um esboço de Louis Boullogne, Le Jeune (1654-1733), no
Louvre (fig. 91), digno de nota nesse sentido, pois, além de Ariadne estar acordada quando
Baco se aproxima, o carro com os tigres está parado próximo ao deus, como em Delacroix,
com a mesma ânfora em primeiro plano. Há outro esboço deste artista no Louvre para uma
composição de Diana surpreendida no banho por Acteão (Inv. 24915), bem como uma
gravura, de 1721, de Charles Dupuis (1685-1742), a partir de uma composição sua para o Ar,
numa série dos Quatro elementos, que retrata a história que Delacroix escolherá para o
inverno, Éolo libertando os ventos a pedido de Juno (Inv. 868C/r).

148
Uma paisagem com a queda de Ícaro, cujo pai, Dédalo, construíra o labirinto do Minotauro (inv. 1867,
0508.1355). As histórias sucedem-se, por exemplo, nas Metamorfoses, de Ovídio.
149
Ver, ainda, as pinturas de Baco e Ariadne de: Clément Belle (atribuída, 1767, Chatêau de Fontainebleau),
Gianantonio Pellegrini (1720-1, Musée du Louvre), Sebastiano Ricci (1700-10, National Gallery, London),
Girolamo Batoni (1773, coleção particular, fototeca Zeri), Giuseppe Maria Crespi (c. 1730, coleção particular,
fototeca Zeri), entre outras, todas com amorini ao alto.
150
Journal, I, p. 888, 23 de março de 1855.
72

A paisagem marítima com a rocha em arco lembra a das falésias do Étretat, na


Normandia, que Delacroix pintara antes em aquarela (Museum Boijmans Van Beuningen,
Rotterdam, fig. 94, e Musée Marmottan-Monet, Paris). Em 18 de outubro de 1849, ele parte
de Valmont a Fécamp, a cerca de 15 km do Étretat e com uma topografia parecida, para ver
“o famoso Trou aux Chiens”151 (fig. 93). Próximo, o pintor descreve dois “magníficos
anfiteatros” (no sentido de formações rochosas circulares). Dentro de um deles nota “esta
gruta profunda que parece o refúgio de Anfitrite”152. Alguns meses depois, em torno de março
de 1850, nas suas anotações sobre a Galeria de Apolo, ele se lembra desta excursão,
associando a gruta ao tema das Estações: “- A gruta de Fécamp. /Estações”153, escreve.
Nesse quadro de Baco e Ariadne para Hartmann, especialmente, a influência da
circulação das reproduções de pinturas de Pompeia e Herculano, desde ao menos 1757, data
da primeira edição italiana das Antichità tratando das pinturas murais, mais a estética do séc.
XVIII francês, dão a medida da invenção de Delacroix. Como a tela está inacabada, vemos
com mais clareza seu procedimento técnico e, por mais que lembre as pinturas da Campânia
do séc. I, parece-nos mais uma coincidência do que propriamente emulação. No capítulo
sobre o inacabado, retomaremos essa questão.

2.2.4. Inverno: Juno e Éolo

No canto inferior esquerdo do quadro (fig. 95), sobre a ponta de um promontório


rochoso dando para o mar, um homem vestido com uma toga curta, girando o dorso na
direção da profundidade, costas e cabeça parcialmente voltadas para nós, segura algo na mão
direita. Aos seus pés, sobre a rocha, vemos alguns elos de uma corrente. Ele tem a cabeça
cingida por o que parece ser uma coroa. À sua volta, cinco figuras volantes precipitam-se de
dentro da rocha – no caso das duas primeiras, por conta de uma linha branca tênue que sai de
suas bocas e das bochechas inchadas, deduzimos que sopram. No alto, à direita, uma mulher
seminua, em frente a uma nuvem cinza que cobre praticamente toda metade direita da
composição, aponta com uma das mãos para o mar, enquanto que com a outra ela segura, num
gesto ordinário, sua capa inflada pelo vento. Ao contrário da figura masculina em primeiro

151
« (...) des pilliers qui semblent d’architecture romane et que soutiennent la falaise en laissant une percée par-
dessous » (Journal, I, p. 471).
152
« (…) cette grotte profonde qui semble la retraite de Amphitrite » (Journal, I, pp. 470-1).
153
Journal, II, p. 1683.
73

plano, o dorso e as pernas voltam-se para fora do quadro, para nós. Ela também porta uma
coroa.
A história de Juno e Éolo é narrada no Livro I (50-87) da Eneida, de Virgílio.
“Cabe tão fero rancor no imo peito dos deuses eternos?”154, pergunta o poeta logo após pedir à
Musa que lhe lembre as causas da guerra. Tomada de ódio contra os troianos, que “injuriaram
a sua forma impecável” pela eleição, por Páris, de Vênus como a mais bela entre as deusas155,
Juno deseja prejudicá-los a todo o custo. Como era possível que Minerva tivesse conseguido
lançar sua ira contra os argivos seus protegidos, após os atos sacrílegos de Ájax Oileu em seu
templo, fazendo sucumbir sua frota no retorno da guerra sob impiedosa tempestade e ela, a
própria irmã e esposa de Júpiter156, continuava a guerrear contra os troianos sem sucesso?

“Tais pensamentos volvendo no peito inflamado, a deidade


baixa até a pátria dos ventos furiosos, a Eólia chamada,
dos Austros feros. Aqui, numa furna espaçosa o rei Éolo
as tempestades sonoras domina, os impávidos ventos,
com duros ferros e cárcere, a todos impondo o seu jugo.
Bramam os ventos em torno à prisão, e a montanha retumba
Com a turbulência dos presos. Sentado na rocha altaneira
Éolo se acha com o cetro, seus brios aplaca e os tempera.
Se o não fizesse, consigo levariam as terras e os mares,
e o próprio céu, pelo espaço varrendo-os sem rumo nem nada.
O Onipotente [Júpiter], porém, cauteloso os comprime em profundas
escuridões de caverna, com montes enormes por cima;
como também um monarca lhes deu [Éolo], obediente ao seu mando,
para encurtar ou soltar mais as rédeas, conforme o ordenasse.
Súplice, Juno lhe fala, enunciando as seguintes palavras:
‘Éolo, (...), gente inimiga me sulca o Tirreno, levando consigo
Troia e os vencidos Penates157 em busca da Itália distante.
Força nos ventos insufla; submerge essas naus alquebradas
ou as dispersa no mar infinito e os seus corpos afunda.”158

154
“Tantaene animis caelestibus irae?” (I, 11), Tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora 34, 2016, p.75.
155
“iudiciam Paridis spretaeque iniurua formae” (I, 27).
156
“diuum incedo regina... soror et coniunx” (I, 47).
157
Cf. a nota do tradutor, “divindades romanas protetoras do lar e da pátria, designando, como substantivo
comum, as pequenas imagens que Eneias carrega consigo” (p. 79, n. 20).
158
“Talia flammato secum de acorde uolutans/nimborum in patriam, loca feta furentibus Austris,/ Aeolum uenit.
Hic uastro rex Aeolus antro/ luctantes uentos tempestatesque sonoras/império premit ac uinclis et cárcere
frenat./Illi indignantes magno cum murmure mintis/ circum claustra fremunt; celsa sedet Aeolus arce/sceptra
tenens, mollitque ânimos et temperat iras; / ni faciat, maria ac terras caelumque profundum/ quippe ferant rapidi
secum uerrantque per auras./ Sed pater amnipotens speluncis abdidit atris/ hoc metuens molemque et montes
insuper altos/ imposuit, regemque dedit qui foedere certo/ et premere et laxas sciret dare iussus habenas./ Ad
quem tum Iuno supplex his uocibus usa est: “Aeole, (...),/gens inimica mihi Tyrrhenum nauigat aequor/Ilium in
Italiam portans uictosque Penates:/incute uim uentis submersasque obrue puppes,/aut age diversos et disiice
corpora ponto” (I, 50-70).
74

Juno promete-lhe, em troca do favor, entregar-lhe como esposa a mais gentil de


suas ninfas, Deiopeia, ao que Éolo aquiesce, lembrando que é a Jove e a ela, Juno, que deve a
sua majestade, a sua frequentação do círculo dos deuses e o seu poder sobre a precipitação das
chuvas no mar tempestuoso.

“Assim falando, empurrou para o lado com a ponta do cetro


monte escavado. No jeito de tropas, os ventos, formados
em turbilhões, dada a porta, irromperam por essa abertura.
Jogam-se ao mar, em tropel, abalando-o até ao fundo sem luzes
Noto [vento sul] mais Euro [oriental] potentes e, fértil em grandes procelas,
Áfrico [sudoeste]159. Em rolos seguidos as ondas às praias investem.
(...)
Num pronto, as nuvens retiram da vista dos teucros a bela
luz da manhã, o alto céu. Negra noite o mar todo recobre.
Troam os polos; aos raios frequentes o mar se ilumina.
Tudo à visão dos troianos são formas variadas da morte.”160

Delacroix não retrata o cetro nas mãos de Éolo, com o qual ele abre a porta aos
ventos, antes usa como símbolo da libertação a quebra das correntes. O verso “as tempestades
sonoras [Éolo] domina com duros ferros e cárcere” da tradução brasileira equivale ao “le dieu
tient enchainés dans leurs noires prisons les vents tumultueux” da tradução francesa do Abée
Delille, de 1804, a qual o pintor comenta em seus diários, passagem esta que dá margem a sua
interpretação161.
Como vimos no capítulo precedente, Éolo e os ventos são figuras mitológicas
associadas ao inverno desde ao menos o fim do período medieval (figuras 26 e 28a). Essa
associação torna-se recorrente entre os pintores franceses do séc. XVIII. Jean-Jacques
Lagrenée, o jovem, pinta o momento em que o rei liberta os ventos da montanha em seu
Inverno, de 1775, para a Galerie d’Apollon (fig. 96)162, projeto lebruniano na origem e
arrematado décadas depois por Delacroix, que pinta o painel central do teto. Formalmente,

159
Nos versos 102 e 131 adiante são citados também o Aquilão, vento nordeste, e Zéfiro, vento oeste, fechando
então o número total de cinco, representado por Delacroix em seu quadro.
160
“Haec ubi dicta, cauum conuersa cuspide montem/ impulit in latus : ac uenti, uelet agmine facto,/qua data
porta, ruunt et terras turbine perflant./ Incubuere mari totumque a sedibus imis/ una Eurusque Notusque ruunt
creberque procellis/Africus, et uastos uoluunt ad litora fluctus. (…) Eripiunt subito nubes caelumque diemque/
Teucrorum ex oculis ; ponto nox incubat atra./ Intonuere poli et crebis micat ignibus aether/ praesentemque uiris
intentant omnia mortem” (Id., p. 81).
161
« (…) Là, sous de vastes monts,/ Le dieu tient enchaînés dans leurs noires prisons/ Les vents tumultueux, les
tempêtes bruyantes ;/ S’agitant de fureur dans leurs voûtes tremblantes,/ Ils luttent en grondant ; ils s’indignent
du frein » (TISSOT, P.-F. (préface), Œuvres Complètes de Delille, Paris, Furnes, t. II, 1832, p. 55).
162
Exposto no Salon de 1775, levava o longo título, no livret, de « L’Hiver ; Aeolus déchaîne les vents qui
couvrent les montagnes de neige ; les eaux des fleuves glacées & l’inaction du temps indiquent que l’Hiver est
un temps de suspension où rien ne végète » (apud GADY in BRESC-BAUTIER: 2004, p. 139, n.1).
75

contudo, a pintura que serviu de entrada para Lagrenée na Academia de Belas Artes difere
muito do Inverno de Delacroix. O mesmo vale para as composições precedentes de Louis de
Boullogne, o jovem (que só sobreviveu na gravura de Dupuis, o Ar, extraída de uma série dos
Quatro Elementos, 1717, Musée du Louvre, fig. 97), de Samuel Massé (1727, Musée des
Beaux-Arts de Nancy, fig. 98) ou de Jean Restout (1727, Hermitage, São Petersburgo, fig.
99), as quais incorporam, ao contrário de Lagrenée, a figura de Juno.
Na pintura de Lagrenée (fig. 96), na gravura a partir de Boullogne (fig. 97) e em
Restout (fig. 99), há literalmente uma porta de madeira em meio à montanha, além de as
composições serem densas e populosas. Nas duas últimas, Juno parece apontar para a ninfa
Deiopeia, sua moeda de troca, e não para o mar. Apenas na gravura é que a frota de Enéas é
entrevista, ao fundo, sulcando os domínios de Netuno, que irá efetivamente intervir a favor de
Enéias, nos versos 125-147, acalmando as águas. Alegorias do tempo ou Saturno
(particularmente ligadas às representações tradicionais do inverno), dos ventos como jovens
alados e dos rios também figuram nessas composições setecentistas.
A pintura de Delacroix se aproxima ainda da de François Boucher (1703-1770)
sobre o mesmo tema, feita alguns anos antes da de Lagrenée, em 1769, para o hôtel Bergeret
de Frouville, Paris e, entre 1815 e 1839, propriedade da família Périer, depois passada
hereditariamente ao comte de Marcilly (hoje no Kimbell Art Museum, Fort Worth, Texas, fig.
100)163. Nela, Juno está presente, também acima de Éolo. Mais importante, a título de
comparação, é o tratamento mais geral da infraestrutura que serve de apoio à ação das figuras.
Em Delacroix, ela apresenta um aspecto intermediário entre o estado líquido e o gasoso,
expresso por pinceladas sugestivas, que a pintura de Boucher traduz de um modo mais sólido.
Essas diferentes traduções pictóricas do céu, do mar e das rochas geram, todavia, um efeito de
movimento semelhante.
A opinião de Delacroix sobre a obra de Boucher (e de Van Loo, nomes quase
sempre encadeados nas frases de seu diário) é ambígua. As pinturas de Boucher “que, escreve,
encantaram as nossas avós” representam para ele a “manière”, ou seja, o “defeito da
sinceridade tanto no sentimento quanto na imitação”, bem como o “abandono de toda a
observação e de todo o natural”. Se, numa passagem, Delacroix afirma que as “pinceladinhas
curtas” do artista que fez a alegria das vovós “chegam, no máximo, a aproximações”, em
outra ele reconhece que o mau gosto, em Boucher, está associado a um grande savoir e que

163
BOUCHER, François. François Boucher, 1703-1770. New York: Metropolitan Museum of Art, 1986, pp.
318-24 (catálogo de exposição).
76

seus “procedimentos de execução são notáveis”164. Na verdade, o modo de pintar de


Delacroix representa um retorno à maneira mais livre dos artistas do rococó, embora sem a
assimilação paralela de seu espírito frívolo e licencioso.
Delacroix cita em dois momentos o Inverno de Poussin (1660-4, Musée du
Louvre, Paris), que retrata a cena bíblica do Dilúvio165: em seu artigo sobre Poussin
(simpatizando com sua última maneira) e em outro sobre as variações do belo (criticando a
dependência excessiva da pintura de uma fonte escrita)166. Mas fora a ideia mais geral da
violência da natureza voltando-se contra os homens num contexto marítimo, dificilmente
poderia funcionar como um elemento de derivação para o seu Inverno a Hartmann.
Este episódio específico já fora usado para representar o Inverno antes, no séc.
XVIII. Delacroix baseou-se em composições setecentistas, projetando o foco nos personagens
centrais. Há, no tratamento pictórico, ecos especialmente de Boucher. Para a figura de Éolo
segurando as correntes, as gravuras do Norte dos séculos XVI e XVII (fig. 28a) parecem
constituir também uma referência.

***

Delacroix desejou, nesta sua série das Quatro Estações, colocar o Inverno em
relação direta com o Verão, talvez pelo fato de serem estações contrastantes, extremas. É
assim que Éolo é um duplo invertido de Acteão e Juno, de Diana. Enquanto aquela aponta
com o indicador para a nau de Enéas, esta aponta com o indicador para o rosto de Acteão –
ambos os homens se tornam, nesse momento, o objeto de sua ira. As narrativas mitológicas
em que tomam parte são violentas, pois ilustram o ódio e a vingança dos deuses contra os
mortais, sempre sujeitos aos seus arbítrios. Já as histórias escolhidas por Delacroix para
representar a Primavera (Orfeu e Eurídice) e o Outono (Baco e Ariadne) são mais amenas,
pois tratam essencialmente de amor e perda. Orfeu tentará voltar com Eurídice do mundo
subterrâneo aonde levou-a a picada de uma serpente e Baco resgata, efetivamente, Ariadne do

164
« (...) les peintures de Boucher qui ont ravis nos grand-mères » (Journal, II, p. 1477). « Leur école (de
Boucher et Van Loo) : la manière et l’abandon de toute recherche et naturel »; ver também a entrada « manière »
do projeto de seu Dicionário de Belas Artes, na qual a define como um « défaut de sincérité dans le sentiment
comme dans l’imitation ». « Très petites touches » (Journal, I, p. 359); « pinceau qui ne mène qu’à des à peu
près » (id.); « savoir plus mauvais goût » (Journal, I, p. 1068); « procédés d’exécution remarquables » (id.).
165
Ver o capítulo precedente, pp. 40-41.
166
DELACROIX: 1923, I, pp. 51-2 e II, p. 102.
77

abandono e da morte numa ilha deserta. No centro dessas composições dois corpos se tocam
oferecendo amparo um ao outro.
O fato de cada estação ser protagonizada por pares, geralmente uma figura
feminina e outra masculina, com exceção da Primavera (embora Orfeu esteja ao fundo),
oferece uma espécie de contraponto à série de Watteau das Estações, gravada por Boucher no
L'Œuvre d'Antoine Watteau (...), gravé d'après ses tableaux et dessins originaux (...) (1735,
pranchas 28-31, figuras 101a e 101b). Nela, casais são associados a cada período do ano
participando de cenas meio jocosas, meio pueris de sedução. Obviamente, o sentido dessas
associações passa, em Delacroix, ao largo de toda a galanterie setecentista. No caso das
tapeçarias de Le Brun, tecidas em Gobelins (figuras 33a e 33b), também vemos pares de
figuras, dois deuses, protagonizando as cenas, mas como alegorias, não atores numa história.
Quando Delacroix pintou o seu Apolo matando a serpente Píton no centro do teto
da Galeria de Apolo, no Louvre, ele não representou o episódio cósmico do nascer do dia,
com maior probabilidade intentado por Le Brun, mas sim uma narrativa de combate entre
forças opostas – o bem e o mal, a luz e a escuridão. De modo semelhante, Delacroix pinta
alegorias para Hartmann não por meio de figuras individuais estáticas, como em sua primeira
série das Estações para Talma, mas sim por meio de figuras plurais em ação.
Ele representou os pares de cada história de corpo inteiro, pouco menor que o
tamanho natural, de modo que ocupam um espaço significativo nas quatro composições.
Apesar da atenção que deu à paisagem, ele não buscou um efeito de perspectiva e
distanciamento nas figuras, mas de proximidade e participação. Tal proximidade, associada à
escala e ao tratamento pictórico fragmentado, guarda algo desse desconforto visual diante da
dificuldade em encontrar os limites. As harmonias de sua paleta, nessa série, são mais
discretas, menos contrastantes do que estamos acostumados em sua produção e talvez não
ofereçam uma compensação à altura desse desconforto. As poses são mais convencionais
também, não há um questionamento significativo da tradição fora do domínio técnico, embora
o esforço de orquestração, a ação sobre o conjunto das quatro telas transpareça, traindo, como
diria Baudelaire, uma busca consciente e fria por um resultado “passional”.
Delacroix tinha o hábito de pensar a mesma composição de um ponto de vista
mais próximo e de outro mais afastado. Trata-se de uma diferença pequena de distância, como
se ele desse cerca de cinco passos para trás da cena representada. Ele procede desse modo no
Mulheres de Argel (versões do Louvre, Paris e do Musée Fabre, Montpellier), nas telas de A
morte de Ofélia (Pinacoteca de Munique, Oskar Reinhardt Collection, Winterthur e Louvre),
em O rapto de Rebeca (Louvre e Metropolitan Museum, Nova York), nas Caças ao leão do
78

período tardio (Musée des Beaux-Arts de Bordeaux e Chicago Art Institute), entre outras.
Quando varia a composição dando esta “folga” maior entre seu olho e o objeto, ele cria um
espaço vazio ao redor dos personagens em interação e aumenta a visibilidade dos fundos,
sejam eles interiores ou paisagens. Nas Estações Hartmann, o enquadramento é desse tipo.
Cumpre adiantar, conforme veremos na Parte 2, que ele havia planejado inicialmente fazer as
figuras menores, mas mudou de ideia para responder a uma demanda do comitente.
Apesar de reconhecido sobretudo como pintor de história, Delacroix fez inúmeros
estudos em aquarela, pastel ou óleo e alguns quadros, como Ovídio entre os citas (1859, The
National Gallery, London), Vista de Tanger a partir da costa (1858, Minneapolis Institute of
Art) e Margens do rio Sebou (1858, Pérez Simón Collection, México), nos quais a paisagem é
um motivo preponderante. Tanto os estudos preliminares, usados para pensar o espaço de
ação das figuras nas composições históricas, quanto as telas, são parte de sua produção do fim
dos anos 1840 em diante, ou seja, de sua última fase. Nesse período, mesmo que ainda
considerado um gênero inferior pela Academia, o estatuto da pintura de paisagem já havia
mudado junto à comunidade artística em geral, entre marchands e colecionadores,
especialmente pela ação de artistas que se reuniam para pintar na cidade de Barbizon, próxima
a Paris, dos mais eventuais, como Paul Huet (1803-1869) e Camille Corot (1796-1875), aos
mais assíduos, como Narcisse Diaz de la Peña (1807-1876), Constantin Troyon (1810-1865),
Jules Dupré (1811-1889), Charles Jacque (1813-1894), François-Louis Français (1814-1897),
Charles-François Daubigny (1817-1878) e, notadamente, Théodore Rousseau (1812-1867) e
Jean-François Millet (1814-1875).
O grande marco dessa mudança de status do gênero foi, talvez, o Salão de 1859,
no qual Eugène Boudin (1824-1898), estreando no evento, expôs seus estudos de céu,
executados com a técnica rápida do pastel, que tanto impressionaram Baudelaire. O poeta
despreza, em sua crítica, as telas de Rousseau como “meros estudos tomados por quadros”,
mas é capaz de aceitar e mesmo de se encantar com os pasteis de Boudin, que foram exibidos
como estudos, sem a pretensão de serem obras finais.
Outro crítico, Jules-Antoine Castagnary, mais entusiasmado, escreveu em seu
texto sobre o mesmo Salon que a pintura de paisagem tomava agora a dianteira na cena
artística, enquanto a religiosa e de história perdia tempo negando a própria morte. Para ele, o
79

futuro residia nas telas de pequenas dimensões “que expressavam, de algum modo, o lado
terreno da vida”167.
A pintura de paisagem que ganhava um lugar de destaque na cena parisiense
desde os anos 1840 não estava ancorada nas composições harmoniosamente calculadas,
judiciosamente eruditas e invariavelmente italianizadas de Nicolas Poussin ou Claude Lorrain,
mas tomava como referência especialmente a obra dos paisagistas holandeses do séc. XVII.
Assim, a natureza que vemos nas pinturas dos paisagistas franceses contemporâneos de
Delacroix é investida da humanidade transferida dos indivíduos – agora ou totalmente
ausentes ou meras manchas de tinta – aos elementos naturais, daí sua qualificação frequente,
na época, de “animistas” ou “panteístas”. Ao mesmo tempo, como os holandeses pintaram a
Holanda, esses paisagistas pintam a França rural, vernacular, “profunda”, ameaçada – e eles
provavelmente pressentiam isso – de desaparição pelo avanço implacável da civilização
industrial.
Delacroix manteve contato com essa nova geração de paisagistas, especialmente
através de sua amizade com Paul Huet. Ele também admirava a obra de Rousseau e conheceu
Millet, Corot, Diaz, Dupré, Français e o orientalista Eugène Fromentin168. É exatamente no
período de ascensão desses artistas que pratica mais a pintura de paisagem, sobretudo os
estudos. Contudo, em seus escritos, ele concede pouco espaço à análise do gênero. Em julho
de 1854, menciona a paisagem como “um acompanhamento aos temas” e observa o “desprezo
dos modernos por esse elemento de interesse” para, na sequência, comentar a relação entre

167
« Alors se sont produit les œuvres de T. Rousseau, Corot, Daubigny, Troyon et Millet, œuvres de force, de
mélancolie, de grâce ou de morne grandeur, qui ont fait du paysage la branche la plus importante de l’art de
notre temps.
Et voilà comment les rôles sont aujourd’hui intervertis, comment ce qui était infime autrefois occupe le
premier rang, comment ce qui était au faîte n’existe plus guère que de nom. Que sont devenues la peinture
religieuse et la peinture historique ? Que sont devenues l’architecture et l’épopée ? Elles sont mortes, mais ne
veulent pas l’avouer. Celui qui se promène dans les salles du Palais de l’Industrie peut se convaincre de l’état de
décrépitude dans lequel, malgré les encouragements de toutes sortes, elles sont finalement tombées.
L’avenir est aux toiles de petites dimensions, à celles qui expriment le côté humain et en quelque sorte
terrestre de la vie » (CASTAGNARY, Salon de 1859, In : Salons, t. I, Paris, 1892, p. 71).
168
Sobre Rousseau e Delacroix, ver adiante, Parte 2, p. 172-173. Em 1857, Delacroix cita nos diários uma das
narrativas de viagem de Fromentin, mas entram em relação, efetivamente, em 1859 (Journal, I, p. 1148); ele
chega a recomendar pinturas de Fromentin ao inspetor de Belas-Artes (Corres. IV, p. 114). Delacroix visita o
ateliê de Corot em 14 de março de 1847 e aprova seu método de trabalho (Journal, I, p. 365). Tece elogios a
Huet, provavelmente à série de oito quadros exposta no Salon de 1859, objeto de uma encomenda do industrial
Adrien Lenormand, sete dos quais estão hoje no Musée de Vire, Normandia (Journal, II, p. 1233). Encontra
Millet em 1853 e expressa nos diários a mesma opinião de Baudelaire sobre seus camponeses (Journal, I, pp.
633-4). Tece elogios a obras de Diaz (Journal, I, pp. 399 e 687). Tem contato com François-Louis Français
especialmente em 1855, quando ambos participam do júri da Exposição Universal (Journal, I, p. 970).
80

paisagem e figura na obra de Rubens, Ticiano, Poussin, Rembrandt, Watteau e os paisagistas


holandeses169.
Desde 1844 ele frequentava Champrosay, nos arredores de Paris, mais
assiduamente a partir de 1858, ano em que adquire o imóvel onde instala um estúdio, o único
imóvel, aliás, que comprou em vida. Durante um de seus passeios para escolher algumas
plantas para o jardim de Mme de Forget, em 8 maio de 1850, ele observa, no retorno, a
“verdura primaveril e os efeitos de sombras que as nuvens faziam passar sobre tudo isto”170.
Em casa, executa um croquis em pastel do efeito da luz do sol, pensando no seu teto da
Galeria de Apolo. Ele afirma, alguns dias depois, que a composição só o satisfez plenamente
depois da alteração feita em decorrência desse estudo do céu em pastel (fig. 102)171.
Delacroix usou uma história da mitologia recontada por Ovídio, uma narrativa de
ficção, como guia central da composição de Apolo matando a serpente Píton. Era necessário
construir um espaço plausível para o desenvolvimento da ação, por mais heroica e abstrata
que fosse, sem o qual o pacto ficcional ficaria comprometido. Ele sente que o encontra em sua
experiência sensível, direta e episódica da natureza, depois reelaborada em imagem. Assim, a
construção do espaço onde figuram os personagens liga-se à prática da pintura de paisagem
como observação e execução ao ar livre e posterior criação dentro do ateliê. Mesmo essa
narrativa mitológica que opõe forças contrárias e irreconciliáveis passa pelo filtro da
experiência mais concreta e menos idealizada do artista em meio à paisagem do lugar onde
vive. Em sua série das Estações para Talma, pintada durante a juventude, não existe ainda
espaço para essa penetração da experiência perceptiva que desloca o modelo literário ou a
tradição iconográfica do centro absoluto da obra de arte, diferente do que ocorre na série para
Hartmann.
Delacroix pinta as Estações Hartmann durante o período de ascensão da pintura
de paisagem na França, à qual ele não ficou indiferente. As quatro cenas mitológicas ocorrem
diante de paisagens naturais, algumas com origem em seu país natal (as falésias do Étretat,
por exemplo), que ele viu e que se misturaram a outras memórias de lugares em sua
imaginação. Pois há os pares protagonizando as cenas, que se ligam a composições anteriores

169
Journal, I, p. 797. Voltaremos a sua comparação entre Watteau e os holandeses no capítulo seguinte, p. 102.
170
« (…) verdure printanière et des effets d’ombres que les nuages faisaient passer sur tout cela » (Journal, I, p.
508).
171
Johnson identificou este pastel com aquele que se encontra hoje no Metropolitan Museum (Inv. 2014.732.4).
Para a observação de Delacroix, ver: Journal, I, p. 514.
81

e apontam para uma iconografia, mas há também a paisagem e o tratamento pictórico unindo-
os num sistema coeso e garantindo, nisso, a esperada circularidade de uma série desse tipo. É,
então, sobre a técnica de Delacroix, sobre o outro recurso que confere unidade ao conjunto
das quatro telas, que nos deteremos a seguir.
82

Capítulo 3. O problema do inacabado

“Uma obra é terminada apenas por algum acidente,


como o cansaço, a aprovação, a obrigação de
entregar ou a morte, porque uma obra, da parte de
quem ou do que a faz, não passa de um estado
numa sequência de transformações interiores”
(grifo do autor, Paul Valéry, Souvenir, in: Mélanges,
Œuvres Complètes, tome I)

As Quatro Estações Hartmann não foram terminadas. Delacroix mesmo admite


isso numa carta de 1863, escrita pouco antes de morrer. Ele, inclusive, não as assinou. Como
pensar essa interrupção no contexto de um estilo em si mesmo “inacabado”?
Na primeira seção deste capítulo, faremos uma breve revisão histórica da noção de
“inacabado” nas artes visuais, tendo como foco, especialmente, artistas que Delacroix
admirava, como Ticiano, Rubens, Velázquez e Rembrandt. Assim, depois de discutir a
recepção do inacabado nesses pintores entre críticos e historiadores de seu próprio tempo,
destacaremos os comentários do próprio Delacroix a respeito dessa qualidade de suas
produções. Com isso, pretendemos mostrar que uma fatura mais rápida, com pinceladas
visíveis, superfície irregular e aspecto de “esboço” não era algo novo no séc. XIX e que
Delacroix tinha plena consciência disso.
Especialmente no fim do Renascimento e no período Barroco, na teoria da arte,
distinguem-se modos de pintar que levam a um acabamento mais liso, de aparência mais
acabada, ou mais irregular, de aparência menos acabada. Apesar de constituírem marcas de
estilos individuais, tais modos também são considerados mais ou menos adequados de acordo
com o gênero da pintura, suas dimensões e o local em que será vista. Na França da primeira
metade do séc. XIX, esses dois modos coexistem, embora a passagem pelo Rococó e a
ascensão do gosto pela escola espanhola e holandesa, acompanhados de algumas iniciativas
no âmbito do ensino acadêmico, tenham dado ao inacabado um novo acento de credibilidade.
As Quatro Estações Hartmann foram pintadas no fim da vida de Delacroix.
Geralmente, nessa fase, os artistas apresentam um estilo mais esboçado. Esse era o seu caso?
Em que medida essas quatro telas são representativas de sua última maneira?
Na segunda seção deste capítulo, pensaremos sobre o estilo tardio de Delacroix
especialmente em comparação ao de Poussin, o qual pintou, como ele, as Quatro Estações no
início e no fim da vida e também de modos diferentes. Confrontaremos o lugar comum das
últimas obras como “testamentos espirituais” diante da tetralogia do MASP.
83

Na última seção do capítulo, buscaremos definir melhor o sentido do inacabado na


obra de Delacroix, especialmente na série para Hartmann, no contexto de toda a reflexão
anterior.

3.1. O inacabado na arte

O inacabado pode ser entendido de dois modos diferentes: literalmente, quando o


artista tem o seu trabalho interrompido por alguma contingência, como o excesso de
demandas paralelas ou a própria morte; e metaforicamente, quando o artista opta por um
tratamento de superfície irregular e produz uma obra inacabada apenas na aparência. Nesse
último caso, pode-se falar em uma estética do non fini ou non finito. Como vimos, As Quatro
Estações Hartmann estão inacabadas no duplo sentido do termo: ao mesmo tempo literal e
metaforicamente.
No séc. XIX, em especial, a distinção entre acabado e inacabado tornou-se mais
complicada. Os artistas sempre trabalharam com técnicas mais sugestivas e rápidas – o esboço
constituía uma etapa preliminar do processo de criação. Até, ao menos, o fim do séc. XIX, a
obra de arte pressupunha um trabalho mais ou menos linear de pesquisa formal que culminava
num objeto único e estático, geralmente assinado. Contudo, os esboços não faziam parte do
que o artista tornava público com a intenção de construir uma reputação. Tais exercícios
ficavam restritos ao seu ateliê e eram, no máximo, objeto do interesse prático de outros
artistas ou do impulso de acumulação do amateur. Se eram expostos, eram sempre avaliados
como esboços, uma evidência do princípio da concepção da obra, um resultado provisório e
não final, um projeto a levar a cabo em maiores dimensões. Mas não eram de modo algum
obras determinantes para alavancar uma carreira.
No séc. XVIII, obras não terminadas figuravam em vendas de coleções privadas
ou naquelas realizadas logo após a morte de um artista; no séc. XIX, esboços eram o objeto de
avaliação em concursos organizados pela Academia de Belas-Artes, como o Prix de Rome e
eram vendidos também por paisagistas. Embora não exista um estudo quantitativo a respeito,
podemos afirmar que, proporcionalmente, o gosto por esse tipo de obra aumenta no séc. XIX.
Acompanhando esse aumento da demanda, o que antes era considerado a intimidade da
cozinha do artista começa a penetrar em sua obra pública. Estudos e esboços continuam a ser
feitos, mas os parâmetros para defini-los em relação às obras acabadas mudam.
Assim, uma discussão em torno do problema do inacabado deve, necessariamente,
passar pela questão do que um artista escolhe mostrar e do que ele escolhe esconder dos olhos
84

do público. Essa fronteira vai se tornando cada vez menos nítida a partir do séc. XIX. Por
exemplo, Michelangelo provavelmente não esperava que suas esculturas deixadas inacabadas
alcançassem um status semelhante ou até maior, após a sua morte, do que suas obras
terminadas e devidamente entregues. Quando Leonardo da Vinci abandonava um projeto,
ninguém, no período de sua vida, vinha adquiri-lo com a intenção de exibi-lo em sua casa ou
na igreja da cidade. O que interessava aos patronos, nesse caso, fora notado já por Plínio, o
velho, muitos séculos antes, numa passagem que se tornou bastante conhecida no
Renascimento:

“É também um fato bastante incomum e memorável que as últimas obras dos artistas
e suas pinturas inacabadas… sejam mais admiradas do que aquelas que terminaram,
porque nelas são vistas as linhas preliminares deixadas visíveis e os pensamentos
mesmos dos artistas e, no meio do enlevo do assentimento, ressentimo-nos de a mão
do artista ter sido detida pela morte” (Historiae Naturalis, 35.145).

Só é possível vir a apreciar mais intensamente esboços e estudos preliminares


dentro de uma cultura em que o artista é considerado um intelectual e não apenas um
trabalhador braçal, quando ele passa, portanto, a rivalizar com os poetas. Essa mudança de
status fundamenta também o peso que passou a ter a sua assinatura, um dos sinais materiais
que ajudam a distinguir se o artista considerou ou não uma obra terminada.
Plínio, dirigindo-se ao imperador Titus na carta introdutória do Historiae
Naturalis (HN, 77- 79 d. C), lembra que muitas pinturas e esculturas gregas eram assinadas
com o verbo fazer (facere) no passado imperfeito, faciebat e não fecit, dando a entender que o
artista estava “fazendo” [isso], não que “fez” [isso]. Para Plínio, o artista admitia, desse modo,
que a obra poderia ser modificada se necessário, interpretando o faciebat como um sinal de
modéstia. Sarah Blake McHam (2013) lembra que, quando visitava Roma ao lado de Piero de
Medici, o humanista Agnolo Poliziano, depois de examinar um pedestal com uma inscrição
desse tipo, comentou, citando Plínio, que

“era como se a arte fosse sempre algo iniciado e não concluído: assim, diante de
mudanças de gosto, o artista estaria pronto, como indicado, a corrigir todas as falhas
que lhe fossem apontadas, se a morte não o interrompesse”172.

172
Grifo nosso apud McHAM, Sarah Blake, The Plinean Signature as a Badge of Prestige, In: ____. Pliny and
the artistic culture of the Italian Renaissance: the legacy of The Natural History, New Haven and London,
Yale University Press, 2013, p. 185. Plínio, no prefácio de sua HN (Cartas 26-7), remete à assinatura faciebat em
Apeles e Policleto usando a expressão “como se a arte fosse algo sempre em processo e nunca completo”
[tamquam inchoata semper arte et imperfecta].
85

Muitas obras renascentistas portam a chamada “assinatura pliniana”, incluindo a


Pietà (c. 1497-99) de Michelangelo na Basílica de São Pedro, no Vaticano173. Outro exemplo:
análises técnicas mostram que Ticiano assinou primeiramente com o verbo faciebat sua
Anunciação tardia, na Igreja de San Salvador, em Veneza174. Tal assinatura destaca um fazer
em curso e o papel ativo do artista nesse processo. Ela inscreve a ideia de inacabado na
ontologia mesma da obra de arte.
Ainda que Alberti tenha defendido, em seu célebre tratado de 1435, o De Pictura,
que finalizar era uma meta175, muitos artistas, especialmente nos séculos XVI e XVII,
deixavam algumas áreas da composição não resolvidas como um modo de alcançar maior
vivacità e forze. Embora tal procedimento pudesse suscitar críticas, Giorgio Vasari, ao
comparar os relevos das cantorias de Donatello e Luca della Robia (1433-9 e 1431-8, Museo
dell’Opera del Duomo, Florença), elogia o “inacabado” decorrente de uma execução rápida na
obra do primeiro:

“[Donatello] deixou o seu relevo cru e inacabado, de modo que, à distância, causava
maior impressão. O de Luca, feito com aplicação e de bom desenho, perdia em
qualidade, quando visto de longe, para o de Donatello, de execução sumária.

Os artistas devem dar mais atenção a isso, pois a experiência mostra que todas as
coisas distantes, sejam elas pinturas, esculturas ou o que for, têm mais beleza e
maior impacto quando são apenas um esboço (una bela bozza) do que quando bem-
acabadas.

E além da distância, que produz esse efeito, ele aparece frequentemente em


desenhos feitos às pressas, na emoção da arte que quer expressar a ideia em poucos
traços, enquanto um esforço laborioso e um excesso de indústria podem prejudicar
os que jamais dão por terminada uma obra”176.

Vasari admite que uma superfície irregular, “inacabada”, é conveniente no caso de


obras vistas à distância, ou seja, ele condiciona o seu uso à localização da obra no espaço em

173
Um dos dois únicos trabalhos de Michelangelo assinados que chegaram até nós, a sua pietà na Basílica de São
Pedro, de 1497, carrega a seguinte inscrição na faixa entre os seios da virgem:
MICHAEL.A[N]GELVS.BONAROTVS.FLOREN[TINVS].FACIEB[AT]. O outro, um desenho conhecido
como A alma danada (Furia) nos Uffizi, de c. de 1522, porta no canto inferior direito a assinatura
MICHELAN[GELO]/BONAROTI/FACIEB/AT seguida, abaixo, da impresa ou brasão do artista, três anéis
interligados. Cf. BAMBACH: 2016, p. 39.
174
Para uma lista das assinaturas FACIEBAT, derivadas de Plínio, durante o Renascimento, ver o Apêndice 3 do
livro de McHam, op. cit., pp. 346-350; as de Ticiano estão na p. 350.
175
“Não adianta fazer como alguns que assumem muitas obras, hoje uma, amanhã outra, deixando-as
incompletas. Ao contrário, a obra que se começa, devemos torná-la acabada sob todos os aspectos” (ALBERTI,
1989: p. 138) [Né giova fare come alcuni, intraprendere più opere cominciando oggi questa e domani quest'altra,
e così lassarle non perfette, ma qual pigli opera, questa renderla da ogni parte compiuta. De Pictura, 61].
176
Extraído da edição giuntina das Viti, de 1568 apud GOMBRICH, Arte e Ilusão, 2007[1977]: pp. 162-3.
86

relação ao ponto de vista do espectador. E ele admite, inclusive, que uma execução rápida, a
qual responde prontamente à ideia, pode alcançar um resultado mais belo e impactante do que
um trabalho produzido com excesso de zelo.
Uma discussão em torno do inacabado não poderia passar sem a menção aos
mármores deixados nessa condição com a morte de Michelangelo. Nos anos 1550, tais obras
encontravam-se disponíveis para estudo177. Ascanio Condivi, em sua Vita di Michelagnolo
Buonarroti (1553), afirmou que o inacabado das esculturas da nova sacristia de São Lourenço,
em Florença, não impedia que fossem consideradas perfeitas e belas178. Vasari usara o mesmo
oximoro ao referir-se à escultura de Nossa Senhora (conhecida como Madona Medici) para
essa sacristia: uma obra imperfeita que deixava ver a perfeição da obra completa (“nella
imperfezione della bozza la perfezzione dell’opera”)179.
O prestígio adquirido pelo inacabado dentro da obra de um artista de gênio aplica-
se também a Leonardo. Vasari atribuiu sua inabilidade em completar projetos a um caráter
volúvel e instável, aliado a um intelecto forte. Ele nota no artista um descompasso entre a
ideia e a execução, esta sempre defasada em relação àquela:

“Consta que Leonardo, por dominar a arte, começou muitas coisas e não terminou
nenhuma, parecendo-lhe que a mão não conseguiria atingir a perfeição das coisas na
arte, tal como ele as imaginava, de tal modo que ideava algumas dificuldades tão
admiráveis, que seria impossível expressá-las com as mãos, por mais excelentes que
essas fossem.”180

Carmen Bambach (2016) lembra que Leonardo possuía um exemplar da Historiae


Naturalis, de Plínio181. Plínio, além da famosa citação sobre os méritos pedagógicos das obras

177
Elas incluíam David-Apollo, que estava na coleção dos Medici (hoje no Museo Nazionale del Bargello,
Florença); os tondos dos Pitti e dos Taddei (Museo Nazionale del Bargello e Royal Academy of Arts, Londres);
as esculturas para a nova sacristia de São Lourenço, em Florença; quatro escravos que estavam então no ateliê de
Michelangelo, na via Mozza, e o São Mateus (1506-8), originalmente concebido para a catedral de Florença
(todos hoje na Galleria dell’Accademia, Florença).
178
“(…) con tanto studio [Michelagnolo] si messe à tale impresa; che in pochi mesi fece tutte quelle statue; che
nella sagrestia di San Lorenzo si veggiono spinto piu dalla paura che dal’amore. É vero che nessuna di queste, ha
hauta l’ultima mano, però son condotte à tal grado, che molto bene si può vedere l’eccelenza del artefice, ne il
bozzo impedisce la perfettione et la bellezza del’opera” (grifo nosso, Condivi, Vita…, 1553, 30r).
179
Vasari, Vidas, p. 730 (tradução brasileira da edição torrentiniana). Convém lembrar que o primeiro texto
sobre a vida de Michelangelo foi publicado por Vasari em 1550, quando ele ainda estava vivo, na primeira
edição das Viti, editada por Lorenzo Torrentino. Ascanio Condivi, discípulo de Michelangelo, escreveu a sua
biografia autorizada, publicada três anos depois, com a intenção de corrigir alguns erros contidos na de Vasari.
180
Vasari, Vidas, p. 444 (ed. bras.).
181
Bambach, op. cit., p. 36.
87

deixadas inacabadas, refere-se também aos esboços de Parrásio, que eram estudados pelos
artistas (HN 35.68); à execução rápida de Pausias que terminou a figura de um menino em
apenas um dia (conhecida como “menino-de-um-dia”) (HN 35.124-5); à Vênus de Cos, de
Apeles, que, deixada incompleta, era tão admirada que ninguém ousava terminá-la (HN
35.92). Leonardo possuía também o tratado de Alberti, que aconselhava o pintor a elaborar a
composição trabalhando rápido e com diligência (“prestezza di fare, congiunta con
diligenza”)182. “Deixe o esboço de composições ser rápido, com as partes não muito
acabadas”, escreveu Leonardo, tipo de desenho que chamou de componimento inculto ou
composição incipiente183.
Em suas notas e escritos fragmentários, Leonardo recomenda que se observem
homens na praça pública, de modo a desenhá-los com uma indicação sumária das formas184.
Como estímulo à imaginação, ele sugere que se preste atenção às manchas de uma parede ou
às nervuras de pedras multicoloridas para encontrar nelas paisagens, cenas de batalhas,
expressões fisionômicas, e tudo com que se deseje compor185. A ideia é a de que a mente de
quem observa é capaz de completar ou projetar uma forma reconhecível a partir de manchas
ou linhas aleatoriamente distribuídas numa superfície. Nesse caso, como no caso de obras
esboçadas em geral, o espectador desempenha um papel ativo na conversão do artifício em
representação.
No Barroco, muitos artistas adotaram um estilo mais expeditivo, deixando ver
deliberadamente a marca da pincelada. Giovanni Bellori, na biografia de Rubens incluída em
suas Vite… (1672), evoca os pintores venezianos em seu comentário sobre o ciclo de Maria
de Medici (1626), no Louvre, associando a sicurezza e libertà de seu pincel à cor e ao
chiaroscuro dos italianos do Vêneto186. Ele usa tais pinturas como exemplo da unidade e

182
Alberti, Da Pintura, 138. Alberti pede ao pintor que encontre um meio termo entre o tédio ao executar um
trabalho (demorando-se demais nele) e a ansiedade em acabá-lo (demorando-se de menos).
183
“Il bozzare delle storie sia. pronto. el me[n] brifichare. no[n] sia tropo. finito” (Bibliothèque de l’Institut de
France, Paris, MS A nº 2185, fol. 8v apud BAMBACH: 2016, p. 263, nota 31). Para a referência ao
componimento inculto, ver: id., nota 32.
184
“(…) e preste atenção neles [nos homens] nas ruas e praças, e nos campos, e os registre com uma indicação
sumária das formas; assim, para uma cabeça, faça um O e para um braço, uma linha reta ou inclinada e o mesmo
para as pernas e o tronco e quando voltar para casa retrabalhe essas observações numa forma completa” (Da
Vinci, Notebooks, p. 170).
185
Id., pp. 173-74.
186
“Espose il Rubens in questi componimenti la gran prontezza e'l fuoco del suo spirito, avendo usato una
maravigliosa sicurezza e liberta di pennello. Si tiene per[c]iò che la maniera del dipingere non possa essere né
più facile né più naturale. Si serví in esse [pitture] delle massime de' pittori veneti nella distribuzione de' colorí e
nelle opposizioni de' lumi e dell'ombre, riflessi e sbattimenti (…)” (BELLORI: 1672, p. 251).
88

resolução características das figuras de Rubens, que “parecem ter sido criadas por um único
golpe do pincel e num único fôlego”187.
A menção à furia del penello, à sua fierezza, franchezza e gran maneggio del
colore188, era corrente na literatura sobre Rubens do período e Roger de Piles, no seu Abrégé
de la vie de Rubens189 que sucede em alguns anos a biografia de Bellori, fundamenta tais
considerações em análises visuais mais extensas. De Piles escreve, além disso, influenciado
pela incipiente querela entre rubénistes e poussinistes que ocupava a Academia Real de
Pintura e Escultura190. Pendendo para o lado dos primeiros, ou coloristas, o francês defende a
incorreção do desenho de Rubens, justificando-a no fato de o artista copiar não os antigos,
mas seus modelos na natureza, como atestam, por exemplo, suas pinturas para Maria de
Medici no Palais du Luxembourg191. Elas representam, afinal, coisas vivas, não estátuas.
No diálogo narrado por De Piles, o personagem de Filarco afirma, depois de ouvir
um comentário de Damon sobre o uso da cor em Rubens, Ticiano e Veronèse, que pintar as

187
“Circa il colore, ebbe il Rubens una stupenda libertà; egli studiò in Venezia e mirò sempre a Tiziano, Paolo
Veronese e Tintoretto, con le osservazioni del chiaroscuro e delle masse delle tinte. Colorí dal naturale e fu
veemente nelle mistioni, radiando il lume con la contrarietà de' corpi ombrosi, siché mirabile nelle opposizioni
dell'ombre e de' lumi. Si mantenne sì unito e risoluto che sembrano le sue figure eseguite in un corso di pennello
ed inspírate in un fiato, come si riconosce nella galeria di Lucemburgo (…) ed invero che alia copia
dell’invenzione e dell’ingegno, aggiunta la gran prontezza e la furia del pennello, si stesi la mano del Rubens a
tanto gran numero d’opere (…)” (grifo nosso, Vite, 1672, p. 247). Bellori tinha à mão, para consulta, as
biografias do artista escritas por Mancini, Baglioni, Scanelli e Scaramuccia (cf. SPARTI: 2012, p. 91). Ele
mesmo forneceu material para a posterior, de Roger de Piles, quando se encontraram em Roma entre 1673 e
1674 (id: p. 88).
188
: “…cosi meravigliosamente dipinti, dissegnati, e con tal fierezza, e movimento di Figure condotti, che nulla
più giudicarono poter darsi per costituire l'eccellenza dell'Arte, ed in specie alcuni ritratti al naturale lodarono in
estremo per la gran franchezza, e maneggio del colore, riconosciutori per entro, come ogn'altra parte di
quell'Opera” (grifos nossos, SCARAMUCCIA, L., Le finezze de' pennelli italiani, Pavia, 1674, p. 118).
189
PILES, Roger de. Conversations sur la connoissance de la peinture, et sur le jugement qu'on doit faire
des tableaux : où par occasion il est parlé de la vie de Rubens, et de quelques uns de ses plus beaux
ouvrages. Paris: Langlois, 1677. Disponível em:
http://diglib.hab.de/edoc/ed000083/start.htm?ref=ed_rubens_263, acesso em julho de 2019.
190
Ela remonta, oficialmente ao menos, a novembro de 1671, quando Gabriel Blanchard proferiu a conferência
sobre o “Mérito da Cor”. Ver : MÉROT, Alain (ed). Les Conférences de l'Académie royale de peinture et de
sculpture au XVIIe siècle. 2. éd. actualisée. Paris : École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, 2003, préface e
p. 36 da cronologie.
191
« Tout cela vous doit faire voir, qu'encore que Rubens n'ait pas toûjous dessiné dans la derniere correction,
l'on peut neantmoins luy donner du rang considerable parmi les grands Dessinateurs, en considerant le dessin par
rapport à la Peinture; & que s'il ne s'est pas servi par tout des plus belles proportions, ce n'a pas esté par
ignorance, mais par discretion, les reservant pour les Divinitez, & pour les figures principales de ses Tableaux
qu'il a dessinées, non pas d'aprés l'Antique (car elles ne sentent point le marbre) mais d'une maniere si belle & si
noble, qu'il semble qu'elles ayent esté peintes d'aprés les personnes qui ont servi de modelles aux Sculpteurs de
l'Antiquité. Voyez sur cela la Gallerie qu'il a peinte au Palais de Luxembourg » (grifo nosso, De Piles, op. cit., p.
265).
89

coisas muito nitidamente e com tanta paciência não convinha ao temperamento ativo de
Rubens, nem ao seu “gênio de fogo”, e que ele não se serviu desse método, na maior parte de
suas obras, por duas razões. A primeira é o fato de quadros serem objetos feitos para serem
vistos à distância. Quando um quadro deve ser visto de perto convém que seja bem terminado,
como no caso de alguns retratos que apreciamos em nossas mãos. Contanto que o quadro
conserve de longe o efeito de força e de frescor, não há, contudo, problema em ser pouco
trabalhado.
A segunda razão pela qual Rubens adota o non fini, segundo o argumento de De
Piles, é o fato de a mistura de tintas na tela, exigida pelo acabamento liso de superfície,
diminuir muito a vivacidade e o brilho das cores, “sujá-las”. Rubens se absteve ao máximo de
misturar as cores - les tourmenter no jargão técnico - contentando-se em colocar cada uma no
seu devido lugar, unindo-as proporcionalmente à distância que tomava do quadro. Pintou
todos eles, segundo o autor, com esta intenção. Assim, sacrificou o fini ao todo (Tout-
ensemble). Ele desejava tanto “fazer sua máquina funcionar direito que não tomava o cuidado
de polir-lhe as rodas”192.
Quando Rubens esteve em Madrid, entre setembro de 1628 e abril de 1629, Diego
Vélazquez (1599-1660) foi o único pintor espanhol com quem manteve um diálogo regular193.
O testemunho imediato do impacto que tal encontro teve em Velázquez reside em seu
Banquete de Baco ou “Los Borrachos” (Prado, Madrid), entregue ao rei Felipe IV em julho

192
« Mais outre que cette maniere de peindre les choses si nettement & avec tant de patience ne convient gueres
au temperament actif de Rubens, ny a son Genie tout de feu, c'est qu'il n'a pas trouvé à propos de se servir de
cette conduite dans la plus part de ses Ouvrages, & en voicy deux raisons que l'on y découvre. La premiere, que
tous les tableaux ne sont point faits pour estre veus de prés, ny pour estre tenus à la main, & il suffit qu'ils
fassent leur effet du lieu d'où on les regarde ordinairement (…). Cela estant, je trouve que c'est une perte de
temps, pour ne pas dire un manque d'intelligence, que de faire un travail inutile & qui se perd dans la distance
convenable. Et au contraire il y a beaucoup d'Art & de science en (…) ne faire que ce qui est necessaire. Rubens
a suivi cette conduite (…). Ce n'est pas qu'il ne faille avoir égard aux occasions frequentes qu'on auroit de voir le
tableau de prés, auquel cas il seroit bon de le finir davantage, & cela est mesme necessaire aux portraits
desquels non seulement on approche de prés ; mais que l'on prend souvent à la main. (…) Pourveu que le
Peintre ait la discretion de ne point salir les couleurs à force de les méler ensemble, ou pour parler comme
parlent les Peintres, de les tourmenter, & que le Tableau conserve de loin beaucoup de force & de fraischeur, on
ne doit luy rien reprocher. (…) Il a peint tous les Tableaux dans cette intention (…). Ainsi Rubens qui avoit
fortement dans la teste le Tout-ensemble de son Tableau, songeoit plustost à faire bien aller sa machine, qu'il ne
prenoit soin d'en polir les rouës » (grifo nosso, De Piles, op. cit., pp. 300-4).
193
A crer no relato de seu sogro e antigo mestre, Francisco Pacheco, cf. BROWN; GARRIDO: 1998, pp. 31-32.
Além de quadros executados a Felipe IV, Rubens copiou todos os Ticianos da coleção real. Pacheco, em seu
tratado Arte de la Pintura (1649), escreve: “En los nueve meses [na verdade, sete] que asistió en Madrid
[Rubens] sin faltar a los negocios de importancia a que venía [negociar a paz entre Espanha e Inglaterra], y
estando indispuesto algunos días de la gota, pintó muchas cosas, como veremos (tanta es su destreza y facilidad).
(…) Parece cosa increíble haber pintado tanto en tan poco tiempo y en tantas ocupaciones. Con pintores
comunicó poco, sólo con mi yerno (con quien se había antes por cartas correspondido), hizo amistad y favoreció
mucho sus obras y fueron juntos a ver El Escorial” (PACHECO: 1866[1649], p. 133).
90

de 1629. Embora a mudança mais significativa resida no tema – Velázquez pinta uma cena
mitológica num contexto moderno – alguns aspectos técnicos, intensificados na posterior
viagem à Itália no verão de 1629194, anunciam seu estilo da maturidade. O tecido usado como
suporte é mais fechado; sobre a preparação de base, ele aplica um tom uniforme
avermelhado195; em seguida, ele esboça rapidamente as figuras com pinceladas amplas que
afinam na medida em que define melhor a posição de alguns corpos no espaço. O artista não
fazia estudos preparatórios (ou, se fazia, descartava-os depois)196, alterando a composição na
medida em que progredia, até considerá-la pronta.
Um dos primeiros exemplos da técnica mais esboçada pela qual o espanhol ficou
conhecido encontra-se nas figuras dos dois homens num plano intermediário, entre o irmão de
José segurando o tecido manchado de sangue e Jacó, no quadro Túnica de José trazida a Jacó
(1629, Escorial, Comunidade de Madrid), executado na Itália. Para pintá-las, ele usou uma
tinta mais fina e fluida, adicionando calcita e óleo ao pigmento, como continuará fazendo
sempre que buscar um resultado semelhante. Desse modo, o pincel deslizava mais rápido
sobre a superfície da tela197.
O quadro A forja de Vulcano (1630, Prado, Madrid) marca uma mudança ainda
mais substancial no desenvolvimento de seu estilo. Com base na análise de radiografias, a
partir dessa pintura (ou seja, início dos anos 1630), Velázquez, primeiro, passa a aplicar sobre
a tela preparada uma camada de base com branco de chumbo – clara e luminosa – executando
movimentos amplos de espátula; segundo, suas figuras começam a perder aquela nitidez de
contornos. Se comparamos a radiografia da Forja à de A rendição de Breda (1635, Prado,
Madrid, fig. 103), na qual absolutamente nada se distingue198, vemos a que ponto, no
intervalo de cinco anos, o “inacabado” evoluiu em seu método. O momento inicial da
execução, de caráter bastante aberto, praticamente coincide com o final.

194
Passou por Gênova, Veneza, Ferrara, Cento e Nápoles, mas permaneceu, sobretudo, em Roma. Sua estadia na
Itália dura cerca de um ano.
195
Intermediário entre o escuro do período sevilhano e o claro, composto essencialmente de branco de chumbo,
dominante a partir do período italiano. A escolha da cor na camada de base é fundamental em Velázquez (e em
todos os pintores do non finito), uma vez que o colorido e o chiaroscuro são construídos a partir da relação
dinâmica entre esse tom geral de fundo e as pinceladas que lhe são superpostas.
196
Apenas seis desenhos seguramente de Velázquez chegaram até nós. Ver: MCKIM-SMITH, Gridley, The
Problem of Velázquez's Drawings, Master Drawings, Vol. 18, No. 1 (Spring, 1980), pp. 65-70.
197
BROWN; GARRIDO: 1998, pp. 17-18 e 56.
198
Id., pp. 52 e 84, figuras 5g e 12c respectivamente.
91

Especialistas acrescentam, ainda, que a sua pincelada torna-se progressivamente


mais rápida e precisa - mais propriamente “velázquiana” - a contar do quadro da Rendição. É
no início dos anos 1630, inclusive, que o poeta Francisco de Quevedo (1580-1645) elogia a
técnica de borrones do artista e sua capacidade de animar lo hermoso e dar a lo mórbido
sentido / con las manchas distantes199. Ainda que o grau de “acabado” varie de acordo com o
objeto representado – Velázquez é mais meticuloso num retrato do que numa paisagem e mais
num retrato de um membro da realeza do que no de um anão da corte – nota-se o quanto essa
pincelada, depois do contato com Rubens e da viagem à Itália, vai se tornando mais rápida,
econômica, precisa e bem coordenada com os diferentes graus de empasto e as áreas de luz e
sombra.
O pintor do Haarlem, Frans Hals (1582/83-1666), também teve oportunidade,
tendo ido a Antuérpia em 1616, de ver pinturas de Rubens. Os quadros de Hals, especialmente
suas cenas de gênero dos anos 1620 e seus retratos dos anos 1630, foram chamados por seus
biógrafos de rouw, cru, de superfície irregular, e sua maneira mais direta de trabalhar sobre a
tela, prescindindo de estudos preparatórios e tendo como referência apenas a natureza - aquilo
que o pintor via diante de si - levou à associação de seu estilo com técnicas de esboço. Karel
van Mander (1548-1606), com quem Hals estudou, distinguiu em Den Grondt der Edel Vry
Schilder-const (Fundamentos da arte nobre e livre da pintura, poema didático que abre o seu
Schilder-boeck, 1604) duas maneiras de pintar: uma mais nítida (net) e outra mais esboçada
(rouw), como a da última fase de Ticiano. Aconselha os iniciantes a começarem pela primeira,
por ser a mais fácil, pois os que tentaram imitar Ticiano malograram200. Um estilo mais
rápido, com pinceladas aparentes e aspecto de esboço, “rouw” em holandês, era valorizado
entre o público esclarecido da época, em parte pelo domínio técnico exigido.

199
O trecho está na silva El Pincel, publicada não antes de 1670, em Las Tres Musas Últimas Castellanas: “Y
por ti el gran Velázquez ha podido,/diestro cuanto ingenioso,/ansí animar lo hermoso,/ ansí dar a lo mórbido
sentido/ con las manchas distantes,/ que son verdad en él, no semejantes” (grifos nossos, Quevedo, El Pincel, 85-
100, ver CASAL: 2012, pp. 201-2). Quevedo destaca a habilidade de Velázquez (diestro), algo particular e
intransferível, em agenciar manchas na tela de modo a produzir uma imitação mais convincente da natureza. Em
seu Arte de la pintura, Francisco Pacheco, ao contrário, condena a técnica de manchas hecha para de lejos por
ser apressada, licenciosa e menos douta (PACHECO: 1649, p. 413).
200
Van Mander segue, em geral, Vasari, que afirmara, em sua biografia de Ticiano publicada na segunda edição
das Vite…, de 1568, que a última maneira do pintor era difícil de imitar, pois pressupunha um método de revisão
contínuo e anos de experiência. Vasari distinguiu, no contexto da primeira e última fase de Ticiano,
respectivamente, uma maneira mais linear e outra mais esboçada. Van Mander retoma tal oposição, mas seus
argumentos parecem colocar ambos os modos de proceder em pé de igualdade (Vasari, como bom florentino,
tendia a exaltar o estilo linear), fazendo crer que eram tidos como igualmente válidos dentro do sistema de
instrução das guildas holandesas do início do séc. XVII. Sobre isso e as interpretações, mal-entendidos e adições
de Van Mander em sua adaptação, no seu Schild-boeck, do texto de Vasari, ver: GOLAHNY, Amy. Insights into
the Dutch Vasari: Carel van Mander's Life of Titian, Québec, 2000. A autora discute a oposição entre “nítido”
(net) e “esboçado” (rouw), como estabelecida no Grondt, no final do seu artigo.
92

David Atkins (2003) defende que o método de Hals era apreciado em seu próprio
tempo como virtuosístico201. Ele estabelece uma ligação entre manuais de etiqueta do séc.
XVI e XVII, como Il cortegiano (1528), de Baldassare Castiglione (especialmente o conceito
de sprezzatura202), e a apreciação de pinturas cuja pincelada visível e irregular, no contexto de
uma representação naturalista, exprimiria, por trás do aparente “descuido” da fatura, um alto
nível de domínio técnico. A aisance do pincel de Hals converteria o artifício em algo fácil e
natural. Atkins defende que possuir um retrato de si pintado rapidamente por Hals indicaria
um grande refinamento, ou seja, uma capacidade de juízo fundada em valores elevados, de
natureza estética e artística, mais do que em valores mundanos, práticos e financeiros.
Sobre a atração visual exercida por esse “desleixo” estudado, o pintor Pierre Le
Brun, na seção “Como falar de belos quadros” do texto não publicado conhecido como
Manuscrito de Bruxelas (1635), entre uma série de comentários prontos para o uso diante de
pinturas, elenca este: “Como é possível que o pincel tenha produzido tanta graça sob estes
traços tão rudes, sob cores tão rudes, e que em meio a tanta indolência existam tantos
atrativos[?]”203. Algumas décadas depois, o conde de La Rochefoucauld recolocaria a questão,
em suas Máximas e reflexões morais (1665), copiada por Delacroix em seus diários, em
diferentes termos: “Há coisas belas que brilham mais quando permanecem imperfeitas do que
quando demasiado acabadas”204.

201
Atkins (2003) cita uma série de comentários de autores holandeses contemporâneos de Hals, todos elogiosos
de sua maneira. Por exemplo: "[Hals] (…), um excepcional pintor de retratos e cópias (counterfeits) que parecem
muito irregulares e ousados, pintados rapidamente e bem compostos, agradáveis e engenhosos e, quando vistos à
distância, parecem não carecer de nada exceto da vida mesma”, Cornelis de Bie, Het Gulden Cabinet van de
Edel vry Schilderconst, Antuérpia, 1666, 281-2, apud p. 283. Atkins dedica alguns parágrafos (pp. 288-89),
ainda, à anedota de Arnold Houbraken, narrada em Groote Schouburgh der Nederlantsche Konstschilders en
Schilderessen (O grande teatro dos pintores holandeses, vol. 1, Amsterdã, 1718-21), uma adaptação de uma
história de Plínio sobre o encontro entre Protógenes e Apeles - que se transformam em Hals e Van Dyck - a qual
associa a questão do inacabado, no primeiro, à maestria técnica e à marca pessoal e distintiva. Tal retórica
apologética tendia, portanto, a valorizar a representação em Hals, primeiro, como altamente pessoal, segundo,
em sua abordagem direta da natureza, sem a intermediação de desenhos preparatórios e estudos do antigo, tão
convincente que seria possível tomá-la pela realidade mesma, ou seja, malgrado a crueza da fatura, um primor do
naturalismo.
202
“Una linea sola non stentata, un sol colpo di penello tirato facilmente, di modo che paia che la mano, senza
esser guidata da studio o arte alcuna, vada per stessa al suo termine secondo la intenzion dell’artefice/del pittore”
(CASTIGLIONE, libro 1, 50).
203
« Comme est il possible que le pinceau ait couche tant de douceurs sous ces traitz si rudes, sous des couleurs
si rudes, et que parmy tant de nonchalance, on ait couche tant d'attraits » Le Brun, Recueil des essaies des
merveilles de la peinture, 1635, In : MERRIFIELD, Marry. Original treatises, dating from the XIIth to
XVIIIth centuries on the arts of painting, London, 1849, p. 825, apud ATKINS: 2003, p. 299.
204
« Il y a de belles choses qui ont plus d’éclat quand elles demeurent imparfaites que quand elles sont trop
achevées » (n. 50, Maximes retranchées après la première édition de 1664).
93

Se conhecemos meia dúzia de desenhos preparatórios de Velázquez e nenhum


acertadamente de Hals, poucos entre os cerca de 1.400 de Rembrandt van Rijn (1606-1669)
que chegaram até nós cumprem a função de pensar uma composição num outro meio205.
Mesmo a eles, é possível aplicar a observação fundamental dirigida às suas pinturas, qual seja,
de que apresentam partes completas e partes incompletas mesmo quando terminadas. Depois
de lamentar o fato no seu De groote schouburgh der Nederlantsche konstschilders en
schilderessen (O grande teatro dos pintores holandeses, 1718), Arnold Houbranken reconhece
que o próprio Rembrandt, no entanto, afirmara que “uma obra está completa quando o artista
considera que sua intenção foi nela atingida”206. Terminar, portanto, é um problema, primeiro,
de ordem subjetiva e só depois, técnica.
Tanto em obras do Ticiano tardio207, quanto de Rubens, Velázquez e Hals,
pintores que adotam o non finito, há uma diferença, tematizada em autores do período, entre
ver de perto e ver de longe. Se de perto tudo parece confuso e indistinto, com o devido recuo,
os olhos distinguem a representação. Com a obra de Rembrandt não foi diferente. Roger de
Piles escreveu, em 1681, que “não existe quadro que não tenha o seu ponto de distância, de
onde deve ser visto”208. Apesar de sua afirmação implicar que a medida dessa distância é
ditada pelas características próprias a cada pintura, obviamente tamanhos maiores exigiam
mais distância do que tamanhos menores para que a composição fosse vista em seu conjunto.
Félibien, nos Entretiens (1684), afirma que o inacabado em Rembrandt entra em
conflito com o tamanho das telas no caso de retratos, que não exigiam tanta distância para
serem vistos. A pintura de Rembrandt é tão particular e diferente daquela “lambida” (lechée)
ordinariamente esperada dos pintores flamengos, sua pintura, que “não parece, com
frequência, mais que esboçada”, é aceitável, em sua opinião, se não se vê muito de perto,

205
Sobre os desenhos de Rembrandt, ver: SLIVE, Seymour. Drawings of Rembrandt: With a Selection of
Drawings by his Pupils and Followers. London: Dover, 1965.
206
HOUBRAKEN, Arnold. De groote schouburgh der Nederlantsche konstschilders en schilderessen. Den
Haag: Swart, Boucquet, Gaillard, 1753, p. 269, disponível em: https://www.dbnl.org/tekst/houb 005groo
01_01/houb005groo01_01_0129.php, acesso em julho de 2019.
207
Ver nota 200 anterior e, adiante, a seção Inacabado e Estilo Tardio, pp. 113-126.
208
Comentando o trecho da Ars Poetica, de Horácio, com a célebre menção ao ut pictura poesis: “La Peinture
n’est point faite pour estre veuë de pres, non plus que la Poësie: Ut Pictura Poësis erit; quae, si proprius stes, Te
capiet magis, & quaedam, si longius abstes, dit Hor. & il suffit que les Tableaux fassent leur effet du lieu d’où
on les regarde, si ce n’est que les Coinnoisseurs, après les avoir veus d’une distance raisonnable, veuillent s’en
approcher en suite pour en voir l’artifice: car il n’y a point de Tableau qui ne doive avoir son point de distance,
d’où il doist estre regardé: & il est certain qu’il perdra d’autant plus de sa beauté, que celui qui le voit sortira de
ce point pour s’en approcher, ou pour s’en éloigner” (grifos nossos, De Piles, Dissertation sur les ouvrages des
plus fameux peintres, 1681, pp. 65-66).
94

especialmente as cabeças das figuras humanas. Contudo, a “espessura de tinta tão


extraodinária” nos rostos, que lhes confere algo de “assustador” em close-up, não o satisfaz
no caso dos retratos209.
Filippo Baldinucci escreve, alguns anos depois, que Rembrandt fazia tantos
retoques “com pinceladas largas e curtas” em certas zonas que, muitas vezes, a espessura
projetada chegava a quase um dedo de altura210. A frase ecoa, em 1718, nas palavras de
Houbraken, que afirma que ele pintou um retrato tão carregado de tinta “que poderíamos
erguer a tela pelo nariz da figura”211. Assim, em Rembrandt, a visibilidade da pincelada, um
forte índice do “inacabado”, realiza-se pelo empasto – por zonas mais densas de tinta – e
depois, nas áreas mais finas ou transparentes, por uma espécie de sfumato grosseiro, feito com
um pincel de cerdas duras friccionado contra a tela com tinta mais seca, gerando um efeito
arenoso ou de superfície rochosa, diferente daquele mais fluído de Velázquez, por exemplo.

Até aqui vimos que o inacabado esteve associado, desde a Antiguidade, a um


modo de representação que deixa ver melhor o pensamento do artista e a origem da obra, a
qual se mostra despida, portanto, do artificialismo e das convenções que pressupõem a sua
apresentação aos olhos de outrem, seja em âmbito privado ou público. Ele esteve, portanto,
associado a adjetivos como “cru”, “espontâneo”, “livre” e “autêntico”. Porque um estágio
incipiente do processo de criação, mais perto do início, o esboço liga-se à ideia de inacabado.
Pintores que não eram guiados, na execução, tanto pelas linhas de um desenho transposto à

209
“Tous ses tableaux sont peints d’une manière très-particulière, & bien diférente de celle qui paroist si lechée,
dans laquelle tombent d’ordinaire les Peintres Flamans. Car souvent il ne faisoit que donner de grands coups de
pinceau, & coucher ses couleurs fort épaisses, les unes auprès des autres, sans les noyer & les adoucir
ensemble”; “une épaisseur de couleur si extraordinaire, qu’un visage paroist avoir quelque chose d’affreux lors
qu’on le regarde un peu près. Cependant, comme les yeux n’ont pas besoin d’une grande distance pour
embrasser un simple portrait, je ne voy pas qu’ils puissent estre satisfaits en voyant des tableaux si peu finis”
(grifos nossos, Félibien, Entretiens..., IV, 1684, p. 150).
210
“Avrebbe egli potuto fare gran quantità di ritratti per lo gran credito, ch’è s’era procacciato in quelle parti il
suo colorito, al quale però poco corrispondeva il disegno; ma l'essersi già fatta voce comune, che a chi voleva
esser ritratto da lui conveniva lo stare i bei due e tre mesi al naturale, faceva si, che pochi si cimentavano. La
cagione di tanta agiatezza era perchè subito, che il primo lavoro era prosciugato, tornava a darvi sopra nuovi
colpi, e colpetti, finché talvolta alzava sopra tal luogo il colore poco meno di mezzo dito (…)” (grifo nosso,
BALDINUCCI, Filippo, Cominciamento e progresso dell’arte dell’intagliare in rame…, 1686, p. 79).
Baldinucci baseia seu texto na autoridade do relato de um aluno de Rembrandt que vivia então em Roma,
Eberhard Keil (1624-1687). Ver também: SLIVE, Seymour. Rembrandt and His Critics: 1630-1730. The
Hague: Martinus Nijhoff, 1953, cap. VII, pp. 104-115.
211
HOUBRAKEN, Arnold. De groote schouburgh der Nederlantsche konstschilders en schilderessen. Den
Haag: Swart, Boucquet, Gaillard, 1753 [1718], p. 269. Gérard Dessons (2006:67) observa que Théophile Gautier
(em Caprices et zigzags, 1852) retoma esse topos quando afirma, sobre a Guarda Noturna (1642, Rijskmuseum,
Amsterdã), que “certains nés sortent positivement de la toile”.
95

tela quanto pela própria pintura em seu caminho particular rumo à representação, tinham seu
estilo associado à ideia de inacabado.
Assim, a exibição proposital da marca do pincel, o agenciamento de áreas de
empasto e áreas em que o suporte é deixado à mostra, a supressão de contornos nítidos pela
revisão explícita e reiterada das formas, o “grafismo”, enfim, imperando num meio pictórico
(de superfícies) e finalista, era agenciado de tal modo que ver de perto e ver de longe
produziam sensações totalmente opostas, mas aceitáveis porque absolutamente congruentes
em relação à função imitativa da arte. Métodos mais ortodoxos, que pressupunham a
supressão de qualquer sinal, numa imagem ou objeto, que remetesse diretamente à sua
origem, alcançavam o mesmo objetivo imitativo de um modo menos contraditório. O grau de
ilusão compartilhado com o espectador era controlado no tempo que o pincel levava para,
trabalhando sobre uma forma amendoada, entregar-lhe sempre e impreterivelmente um olho.
A crueza de uma maneira mais esboçada tinha o seu próprio atrativo técnico, ligado à
expressão individual e, nisso, insubmisso – até mesmo agressivo em relação – a um padrão
universal de beleza e perfeição passível de ser alcançado por meio do aprendizado de regras.
O inacabado também era mais ou menos conveniente de acordo com o destino da
obra e o objeto nela representado: uma pintura em grandes dimensões, que só pode ser vista
em seu conjunto à distância, autorizaria um tratamento mais livre; uma pintura de história ou
o retrato de um monarca exigia mais atenção e diligência do artista do que uma paisagem,
cena de gênero ou retrato de alguém situado num nível mais baixo da hierarquia social.
Em suas Impressions et Souvenirs (1873), George Sand recorda-se de uma
conversa que teve com Delacroix em janeiro de 1841. Ela explica ao pintor as teorias que um
conhecido havia-lhe exposto sobre o desenho e a cor como elementos mutuamente
excludentes. O que acha, pergunta, trata-se de um homem razoável? Delacroix responde que o
sujeito se engana, mas seu engano o precede, no sentido de que tais ideias têm origem na
escola de Jean-Auguste Dominique Ingres que “decretou que a cor era uma superfluidade e
que era muito perigoso apaixonar-se por um detalhe prejudicial à pureza da linha”, erigindo
como modelos absolutos o primeiro Rafael e os primitivos italianos. Sand concorda,
afirmando que tal escola e seus simpatizantes nutrem um profundo desprezo pelos venezianos,
Ticiano à frente. E Delacroix acrescenta, listando os artistas do passado ignorados pela escola
da linha e do fini, mas emulados por ele próprio:

“E a escola holandesa, então! Rembrandt, borrador! Teniers, libertino! E todos os


espanhóis, Velázquez incluído! O grande Rubens que lhes dá náuseas! Isso te deixa
indignada? Ah bah! Eu também me indignei enquanto acreditava que tinha a ver
com um erro de boa fé; mas essa doutrina não passa de uma piada de eunucos e,
96

desde que estou certo disso, não me incomodo mais: rio”212 (itálicos do autor,
SAND: 1873, pp. 72-73).

***

Durante os anos em que frequentou o ateliê de Pierre-Narcisse Guérin (1774-


1833), entre 1815 e 1822, Delacroix aprendeu as bases do métier de pintor: como
confeccionar telas, fazer fundos (enduits), preparar tintas, utilizar secativos, misturar óleos e
envernizar um quadro terminado. Guérin era um professor permissivo e, apesar da sua
formação com Jean-Baptiste Regnault (1754-1829), contemporâneo de Jacques-Louis David
(1748-1825), e de suas inclinações neoclássicas, ele encorajava seus alunos a copiarem os
mestres seguindo suas próprias inclinações, de modo que boa parte do aprendizado de
Delacroix ocorreu vendo e copiando obras de arte dentro de museus, igrejas e coleções
privadas.
Entre março e maio de 1824, Delacroix obteve permissão para copiar um retrato
de Charles II da Espanha, na época atribuído a Velázquez, hoje a Juan Carreño de Miranda
(1614-1685), da coleção do duque de Orléans, numa série de visitas ao Palais Royal213. Ele
admira especialmente o trabalho de empasto da pintura214. Durante o período de execução
dessa cópia, sente-se compelido a pegar sua paleta e “espalhar sobre uma tela marrom ou
vermelha boa tinta oleosa e espessa (de la bonne grasse couleur et épaisse)”215. Nota que, no
original, “vemos muito o óleo e os contornos são moles e lânguidos (veules et

212
« (…) (L’école d’Ingres) a décrété que la couleur était une superfluité et qu'il était fort dangereux de
s'énamourer d'un détail nuisible à la pureté de la ligne. (…) Delacroix – Et l’école Hollandaise, alors ? Ce
barbouilleur de Rembrandt, ce polisson de Téniers ! Et tous les Espagnols, Velasquez y compris ! Et l'immense
Rubens qui leur donne des nausées ! Cela vous indigne ? Ah bah ! je me suis indigné aussi, tant que j'ai cru avoir
affaire à une erreur de bonne foi ; mais cette doctrine-là n'est qu'une blague d'eunuques, et depuis que je m'en
suis assuré, je ne me fâche plus, je ris. »
213
A cópia está numa coleção particular (ver: J21; Journal, I, pp.137-145). No mesmo período, Delacroix parou
diante de um Velázquez exposto no Louvre, que só pode ser o Retrato da infanta Margarida (Journal, I, p. 128),
o único quadro do espanhol que figura na coleção do museu em 1824, hoje atribuído ao seu ateliê. Nos anos
1820, obras de Vélazquez estão concentradas sobretudo na Espanha, o Prado tendo sido aberto em 1818, e na
coleção real em Viena, embora alguns tenham circulado antes, na França, por conta das apropriações durante as
campanhas militares de Napoleão. Delacroix adquiriu, ainda, na venda póstuma de Géricault, também em 1824,
um esboço de Os filhos de Filipe II, então atribuído a Velázquez. Trata-se, na verdade, do Retrato da família do
pintor (Kunsthistorisches Museum, Viena), hoje considerado de seu discípulo e genro Juan Bautista Martínez del
Mazo (1611-1667), cujo estilo é muito parecido com o seu.
214
Os retratos de Carreño, que sucede Velázquez como pintor da corte espanhola no séc. XVII, devem muito ao
seu estilo, embora a pincelada livre e o trabalho de empasto sejam ainda mais acentuados, especialmente em sua
última fase, de quando deve datar o original copiado por Delacroix na coleção do duque de Orléans.
215
Journal, I, p. 138.
97

languissants)”216 e pensa ter encontrado ali “o que buscava há muito tempo: este empasto
firme e, no entanto, fundido”217.
O fato de ter documentado tão bem esse processo nos diários usando expressões
como “si je prenais la palette en ce moment, le beau Vélasquez me travaillerait”, “j’en suis
possédé”, “plein d’entrain, en me félicitant de copier mon Vélasquez”, mostra o impacto
(ainda que indireto, via Carreño) que a pintura do espanhol teve sobre sua percepção. Seu
nome aparece depois, nos diários, de modo intermitente, sempre junto ao dos holandeses,
flamengos e venezianos e oposto ao de Rafael e seu círculo, como na anedota de Sand citada
acima.
De Ticiano, Delacroix copiou a Mise au Tombeau, e o Concert Champêtre, então
atribuído a Giorgione, ambos no Louvre218. Parou diante dos retratos de François Ier, também
no Louvre, e do Marquis de Pescara, da coleção Potocki219. Depois de certa convivência com
sua pintura, ele concordou com Ludovico Dolce, que considerava, no Aretino (1557), Ticiano
melhor pintor que Rafael220.
Delacroix opõe, em 1847, a cor e o claro-escuro em Ticiano ao desenho em
Rafael221. Ele afirma que a execução em Rafael, ou seja, o desenho e a cor, é aquilo que ela
pode ser, o que não significa que seja má. Mas, continua, se comparada “às maravilhas do
gênero do Ticiano e dos flamengos”, torna-se algo secundário, como deve mesmo ser no seu
caso. Ele pensa que as qualidades próprias a Rafael seriam diminuídas por uma grande busca
no sentido da manipulação do pincel e do efeito. Em compensação, a “precisão um pouco
dura do seu pincel” (como na melhor maneira de Poussin) contribui para aumentar a
impressão da expressão e do caráter das figuras no quadro222.
Delacroix menciona a importância determinante nas obras de Ticiano do esboço
ou “cama da pintura” (lit de la peinture). Ele admira sua execução “ampla” (large). Contudo,
o que mais o atrai não é o aspecto inacabado de suas obras tardias, mas a simplicidade e

216
Journal, I, p. 139.
217
Journal, I, p. 137.
218
A cópia do primeiro encontra-se no Musée des Beaux-Arts de Lyon (J12); a do segundo foi perdida.
219
Provavelmente, visitando a oficina de um restaurador, Journal, I, pp.128-9.
220
Journal, I, p. 1060.
221
Journal, I, p. 402 e, novamente, em 1854, id., p. 820.
222
Journal, I, pp. 612-13.
98

ausência de afetação de seu estilo como um todo, qualidades de um talento não amaneirado,
ou seja, variado. Talentos amaneirados seguem, para ele, apenas uma inclinação ou um
hábito:

“Eles seguem mais o impulso da mão do que a dirigem. (...) O talento menos
amaneirado (...) obedece a cada instante a uma emoção verdadeira. É preciso que ele
traduza essa emoção: a mera aparência, uma vã demonstração de facilidade ou de
domínio não o ocupam em absoluto.”223

É nesse sentido que ele concorda com Dolce e afirma que, em Ticiano, “as
qualidades [próprias] de um pintor são levadas ao ponto mais elevado”224.
Nos anos 1850, Delacroix considera que Rubens, ao contrário de Ticiano, fait
parade de sua execução. O fato de eventualmente incomodar-se com uma espécie de
exibicionismo da pincelada em Rubens não impede que o tome como modelo. Nos anos 1820,
copiou uma das nereidas e um detalhe da Conclusão da paz, do ciclo de 24 quadros
representando a história de Maria de Medici, no Louvre. Voltou a esses quadros em várias
ocasiões225. Em 1852, viu as “sublimes” tapeçarias da Vida de Aquiles, na vente Louis-
Philippe em Monceaux, e preencheu longas páginas dos diários com suas impressões sobre a
“facilidade” da execução do flamengo226. Reparou nas incorreções do artista, não estando
“salvas pela cor e pela fatura”, numa fotografia do Érection de la croix, que, removido da
catedral de Antuérpia, ele pedira permissão para ver num ateliê de restauração durante uma
viagem à Bélgica, em 1850227. No Museu de Belas Artes de Antuérpia, parou, avançou e
recuou incessantemente diante do Cristo na cruz (conhecido como Coup de lance) e, não
satisfeito, emprestou uma escada de um jovem que o copiava para examiná-lo de perto. Além
de desenhá-lo, descreveu minuciosamente o quadro num caderno228, dizendo a si mesmo que
poderia ter percebido algumas coisas antes – o modo como Rubens se utiliza dos meios-tons,

223
« Ils suivent l’impulsion de la main plus qu’ils ne la dirigent. (...) Le talent moins maniéré (...) obéit à chaque
instant à une émotion vraie. Il faut qu’il rende cette émotion : la parure, une vaine montre de sa facilité ou de son
adresse ne l’occupent point » (Journal, I, p. 1059).
224
Journal, I, pp. 847-8.
225
J16 (para a cópia); Journal, I, p. 128 (19 mar. 1824); p. 447 (1º jun. 1849); p. 564 (6 jun. 1851); Journal, II, p.
1238 (10 mai. 1858, vê as pinturas com Villot, amigo e conservateur do Louvre, a série passando por uma
restauração).
226
Journal, I, pp. 569-573 (26 fev. 1852). Delacroix relê essas notas “com grande prazer” em 6 de março de 1857
e as recopia em 8 de março de 1860 para o verbete Rubens do seu projeto de Dicionário de Belas-Artes.
227
Viu a foto numa livraria da Galerie Vivienne, Paris, em novembro de 1853 (Journal, I, p. 714).
228
Desenhos: pastel no Louvre, Inv. 1352; detalhe do Cristo no Museum Boijmans-Van Beuningen, Roterdã.
Descrição: Carnet de Belgique, 1850, publicado em: Journal, II, pp. 1688-9.
99

por exemplo – se tivesse observado melhor os seus esboços229. Outro procedimento técnico
que nota ao examinar o Coup de Lance de Rubens é o uso de fundos claros que contribuem
para o efeito brilhante das carnes.

“[Rubens] esboça (ébauche) na tela o tom das figuras, que parecem escuras, sobre
uma preparação clara. Isso explica também que fazendo o fundo na sequência e por
uma necessidade extrema de produzir um efeito, ele escureça os fundos além da
medida com o objetivo de clarear as figuras”230.

Delacroix conclui, a partir da observação desse quadro, que “o esboço (esquisse)


deve ser bom o suficiente para permitir que o quadro seja feito assim, com tanta segurança (à
coup sûr)”. E transforma esse procedimento num imperativo: “Procurar no esboço (esquisse)
e executar seguramente o quadro”231. Assim, Rubens é um artista em quem o esboço contém
já todo o quadro final. Como, no seu caso, ele é muito preciso, uma vez posto sobre a tela, “o
mal está feito”: pouco resta a fazer depois232.
Delacroix considera “prodigioso” o fato da vis poetica (“cette puissance du je ne
sais quoi”) de Rubens acrescentar a uma composição sem parecer que ele a muda233. O
francês identifica a “licença pitoresca” própria a Rubens no seu exagero (l’outré)234, o qual,

229
Journal, I, p. 541.
230
Como ele observa depois, esse escurecimento pode ter sido acentuado pelo envelhecimento dos vernizes
(Journal, I, p. 799). Em outra passagem, ele insiste sobre a importância da transparência do fundo branco no
trabalho final para a obtenção de um efeito brilhante, por meio da técnica da velatura ou pintura em camadas
(glacis): « L’éclat des Van Eyck et ensuite des Rubens tient beaucoup sans doute au blanc de leurs panneaux.
(…) Leurs chairs brunes ne semblent que de simple glacis laqueux sur un fond qui transparait toujours. Ainsi,
non seulement les chairs, mais les fonds, les terrains, les arbres, sont glacés sur fond blanc (…) » (5 out. 1847).
Ele mesmo, em sua Nymphe Endormie (talvez J167), tenta a experiência ao aplicar uma velatura de laques
jaunes (vermelhos amarelados) e verte malachite (verde malachite) sobre o fundo de floresta e rocha preparado
com branco, com que ele sobrepôs o fundo anterior “affreux” de terre d’ombre (terra escuro). Delacroix observa
que tal técnica – velatura sobre fundo branco (glacis sur fond blanc) – permite harmonizar melhor o colorido do
fundo e das figuras (Paris, 5 out. 1847, Journal, I, p. 398).
231
« Contrairement à ce qu’on dit du Titien [que aplicava uma imprimatura de tons quentes], il [Rubens]
ébauche le ton des figures qui paraissent foncées sur le fond clair. Cela explique aussi qu’en faisant le fond
ensuite et par un besoin extrême de faire de l’effet, il s’applique à rendre les chairs brillantes outre mesure en
rendant le fond obscur. (…) L’esquisse du tableau devrait être bonne pour mettre à même de faire le tableau ainsi
et à coup sûr. Chercher dans l’esquisse et aller sûrement dans l’exécution du tableau” (Antuérpia, 10 ago. 1850,
Journal, I, pp. 541-2).
232
Observação do artista ao seu assistente Pierre Andrieu sobre o primeiro esboço na tela, o ébauche, (Journal
d’Andrieu, 8 mai. 1861, Journal, II, p.1865). Em 27 de janeiro de 1847, Delacroix já havia escrito: « Une fois ses
études faites et le point trouvé, il [le talent consommé] ne s’en départ plus. (…) c’est ainsi qu’ont fait Rubens
(etc.) » (Journal, I, p. 336). Em outra passagem (22 mar. 1855, Journal, I, p. 888), Delacroix anota uma
observação de Ingres sobre os bons ébauches: “Só terminamos sobre o que foi bem terminado” (« On ne finit
que sur du fini »).
233
Journal, I, p. 514 (8 jun. 1850).
234
Journal, I, p. 550.
100

nele, serve para chamar a atenção à parte principal da pintura e, assim, aumenta a força da
expressão. Isso lhe confere grande vantagem no tratamento de temas patéticos. É nesse
sentido, portanto, o do exagero, que Rubens sacrifica os detalhes ao efeito de conjunto em
seus quadros. A franchise de l’exécution compensa o “inconveniente da prodigalidade de
detalhes”, essa característica que faz com que suas pinturas pareçam “uma assembleia onde
todos falam ao mesmo tempo”235. O flamengo pinta seguindo um ideal realizado no prazer
que sua imaginação experimenta no ato de imitar e não na satisfação que a consciência pode
experimentar na cópia fiel do modelo236.
Delacroix copiou os escravos de Michelangelo do Louvre e, a partir de gravuras,
partes do teto da Sistina, do Juízo Final e da alegoria da Noite no túmulo de Giuliano de
Medici237. Em seu artigo sobre Michelangelo publicado na Revue de Paris, em 1830, cujas
fontes principais são as biografias de Vasari e de Condivi, Delacroix atribui o fato de ter
deixado muitas obras incompletas a dificuldades técnicas imprevistas encontradas ao trabalhar
o mármore e ao fogo (fougue) de seu temperamento natural. Assim, em Michelangelo, é esse
“entusiasmo extraordinário” (fougue extraordinaire) que faz com que deixe sempre em seus
mármores algo de incompleto238. Em Leonardo, ao contrário, é a frieza da razão crítica, a
desconfiança do próprio talento e facilidade, que conduzem a uma dificuldade em terminar239.
Delacroix pondera que as partes inacabadas nas esculturas de Michelangelo
aumentam, por contraste, a importância das partes acabadas240. É a esse tratamento desigual
das partes, ao fato de suas obras terem partes perfeitas misturadas a (e compensando) outras
imperfeitas, que Michelangelo deve o seu efeito sobre o espectador. Não seria essa

235
Um topos rubeniano, Journal, I, pp. 687-8.
236
Delacroix defende que é mil vezes mais importante para o artista aproximar-se do ideal que carrega em si
mesmo do que perseguir o ideal passageiro que pode apresentar a natureza. Sébastien Allard nota que,
especialmente a partir dos anos 1840, Delacroix substitui modelos externos por um repertório formal constituído
ao longo da carreira, repetindo e alterando os próprios motivos e soluções, em diferentes obras (ALLARD,
Sébastien, Répétitions, variations, séries. In:_____. (éd.) Delacroix: de l’idée à l’expression. Madrid: El Viso,
2011, pp. 268-281, catálogo de exposição).
237
RF91151, 63 a 65; RF10148r; RF10165r; RF10466r; RF10471r; RF23356, 58 (Cabinet des Dessins, Louvre).
238
DELACROIX, « Michel-ange », Œuvres Littéraires, II, pp. 38-9.
239
« (…) pourvu par la nature d’une facilité presque toujours plus grande que celle de ses rivaux, [Leonardo] se
défie de cette facilité, hésite entre une foule d’idée, (…) et se laisse arracher un ouvrage, plutôt que de le déclarer
fini (…) » (Journal, II, p. 1518). Ver também, no artigo Questions sur le beau: « Il est des talents délicats qui ne
peuvent facilement se satisfaire (…) ils refont cent fois un morceau (…). Tel est Léonard de Vinci (…)
» (Œuvres Littéraires, I, p. 31).
240
Journal, I, p. 652.
101

desproporção a condição mesma da admiração?241 O Juízo Final na Sistina impressiona como


um soco (coup de poing) pode impressionar quem o recebe: unidade e encadeamento não têm
participação nisso. Menos “natural”, Michelangelo suscita reações mais intensas. Em sua
obra, o corpo humano é movido pelas paixões: o artista investe de grandeza e de terribilità um
simples fragmento, um membro isolado e com isso quebra a expectativa de conexão desse
membro com a figura à qual ele pertence242. Delacroix acrescenta que os gênios incorretos e
sublimes são, claro, muito mais propensos à crítica. Sobretudo entre os franceses, que amam
“o frívolo, o agradável, o gracioso, o bonito e o fofo”243.
Rubens, segundo Delacroix, se reconheceu em Michelangelo244. Artistas com um
estilo mais vigoroso, como ambos, estão dispensados da imitação exata. Assim, eventuais
incorreções no desenho ou ofensas ao bom gosto e às convenções são, neles, redimidas pela
independência e confiança (fierté). Em Rubens, essa compensação se dá também pela verdade
do colorido e força do pincel. Delacroix pergunta-se por que a extrema facilidade, a ousadia
da pincelada não o choca em Rubens, mas parece-lhe uma prática detestável nos Vanloo, “do
seu tempo e de outros”245. O francês poderia estar se referindo aos pintores de seu próprio
tempo que adotavam, como no séc. XVIII, uma técnica mais expeditiva. Ele pondera que, nos
grandes mestres, essa facilidade extrema não era um fim, mas um meio, ao contrário do que se
passa com os pintores medíocres246. Delacroix associa uma pincelada mais aparente, a rapidez
da mão no contexto de um “modo cavalière de exprimir”, à “escola da decadência”, mas não
sem ambiguidade, pois admira, em outro momento, por exemplo, a execução em Boucher e
Watteau247.

241
Journal, I, p. 1198.
242
Journal, I, pp. 847-848.
243
« Le caractère français aime trop la faribole, la coquetterie, le gracieux, le joli, le mignon » (cf. o relato de
Pierre Andrieu, 7 out. 1852, Journal, II, p. 1834).
244
Antuérpia, 10 ago. 1850, Journal, I, pp. 542-3.
245
Delacroix refere-se a Carle Van Loo (1705-1765), que veio de uma dinastia de pintores estabelecida no séc.
XVII.
246
9 out. 1849, Journal, I, p. 465.
247
Journal, I, p. 1108; ver também nota 164 anterior (id., p. 1068).
102

Apesar de não existirem evidências seguras de que Delacroix tenha tido contato
com obras de Hals248, é certo que Rembrandt, cujas considerações serão abordadas na
próxima seção, bem como os paisagistas holandeses, foram objeto de sua atenção. Ele
menciona em seus textos especialmente paisagistas como Jacop van Ruysdaël, Albert Cuyp, e
Adrien van Ostade, além do flamengo David Teniers. Do primeiro (a grafia correta é
Ruisdael) Delacroix admira, em 1847, um effet de neige e uma marinha “toute simple” com o
mar ocupando boa parte da tela e um ou dois barcos esparsos, na coleção do duque de
Mornay. Essas pinturas parecem-lhe “o cúmulo da arte porque ela está, de fato, nelas
escondida”. Tal “simplicidade” atenua o efeito do Watteau (provavelmente o Les Champs
Élysées, hoje na Wallace Collection, Londres) da mesma coleção249.
Ele se explica melhor em 1854, numa nota dos diários intitulada “sobre a
paisagem”: em Watteau as árvores são “de pratique”, resultados do hábito, sempre as
mesmas, evocando mais o cenário de uma peça de teatro do que aquelas de uma floresta250. A
convenção em Watteau cansa rápido os olhos enquanto os holandeses os prendem – ele cita
especialmente Ruisdael e Ostade, de quem copiara em aquarela uma Paisagem de inverno, no
Louvre, em 1822. Em outro momento, refere-se aos petits tableaux rápidos de David Teniers
para ilustrar sua afirmação de que a pincelada em evidência não desagrada mesmo em obras
de pequenas dimensões251.
Nos flamengos e holandeses, a aisance dans l’exécution, “uma arte de dissimilar
os sacrifícios que encanta a imaginação” agrada a Delacroix. Ele contrasta essa qualidade não
apenas com a “pincelada pela pincelada” dos pintores do séc. XVIII, mas também com o
defeito francês do fait partout. Excesso de detalhes, excesso de aplicação no seu estudo,
apresentados sem nenhum sacrifício, sem nenhum constrangimento diante de um efeito ruim.
Nenhuma “negligência feliz”, cujo mérito é atrair o interesse para as partes que o merecem:
de um lado, Boucher, Vanloo e Watteau são muito artificiais (factices) e se perdem numa
maneira tão fascinante quanto frívola; de outro, a ausência de légèreté, a execução lisa e fria à
força do estudo (“tendue et rebutante à force de recherche”) de David, Ingres e seus

248
Delacroix poderia ter visto pinturas de Hals na coleção do duque de Arenberg, que visitou quando esteve em
Bruxelas, em 9 de julho de 1850, ou na de Louis La Caze, cujo endereço e horário de recepção anotados em seu
diário levam a crer que visitou em 1860.
249
Journal, I, pp. 370-1.
250
Journal, I, p. 797.
251
Journal, I, p. 1075.
103

seguidores constituem a grande marca de faiblesse da pintura francesa252. Uns pecam pelo
excesso, outros pela falta de encanto como resultado da execução.
Abordamos sumariamente a questão do inacabado, do ponto de vista da estética e
da teoria da arte, desde a Antiguidade, concepções que chegaram a Delacroix e seus
contemporâneos depois de terem passado pelo filtro do Renascimento, do Barroco e,
especialmente, do século das Luzes.

3.1.1 Séculos XVIII e XIX: o caso francês.

Algumas dificuldades de tradução levaram-nos doravante a empregar os termos


originais em francês ou italiano. Esquisses, sejam eles peintes (feitos com pincel e tinta) ou
dessinées (feitos a grafite, carvão ou pastel), diferem, em francês, do ébauche, o primeiro
esboço sobre a tela que precede a obra final. Consistem em trabalhos separados, cujo fim é
pensar uma composição em seu conjunto. Nesse sentido, os esquisses diferem também dos
études, feitos para pensar partes isoladas da composição. O croquis é um desenho (geralmente
a grafite) muito rápido e sumário, quase um esquema. Modello ou modèle são esquisses
apresentados pelo artista a clientes para avaliação, eventualmente em dimensões reais, a cuja
aprovação está condicionada a realização do trabalho. Ricordo, por sua vez, consiste numa
réplica esboçada de uma obra que o artista faz antes que ela deixe o seu ateliê. Ele a guarda a
título de documentação ou pedagógico (para exercícios de cópia dos alunos). Poderiam ser
feitos também para clientes.
Esquisses são aceitos no Salon de Peinture et Sculpture, em Paris, a partir de
1747, com particular intensidade nos anos 1760. De um evento relativamente privado, no séc.
XVII, o Salon, de entrada livre e gratuita, passa progressivamente à grande vitrine da arte
contemporânea francesa no séc. XVIII, atraindo multidões (em 1765, por exemplo, recebe 24
mil visitantes). Entre os esboços nele mostrados, no âmbito da pintura, encontravam-se
projetos executados ou ainda a executar de grandes composições decorativas que não
poderiam, obviamente, ser transportadas ao espaço da exposição; pinturas de paisagens,
sobretudo romanas, prises sur le motifs; e espécies de apêndices de obras acabadas, ao lado
das quais eram pendurados a título de comparação. Outro evento organizado pela Academia
envolvia a análise de esquisses: o processo de seleção para o cobiçado Prix de Rome253. Para

252
Todas as citações foram extraídas de Journal, I, pp. 1187-8.
253
As provas ocorriam em três etapas: na primeira, os candidatos realizavam um esquisse a óleo de um tema
mitológico ou bíblico; na segunda, um étude de nu a óleo em quatro sessões de sete horas; na terceira, um
esquisse e uma grande tela sobre um tema histórico, isolando-se durante 72 dias numa cabine.
104

além do sistema de ensino, esquisses figuram, no séc. XVIII, em vendas de coleções privadas
e, especialmente, em ventes après-décès de artistas, embora geralmente adjudicados a preços
módicos se comparados ao de obras acabadas.
O vocabulário empregado para referir-se aos esquisses, no séc. XVIII, tanto nos
livrets dos Salons quanto nos catálogos de venda, mostra que eram considerados obras
autônomas, com critérios próprios de avaliação, tanto quanto as obras acabadas. Pierre
Rosenberg distingue nos catálogos (mas o mesmo vale para os livrets) expressões como
esquisses “non terminées”, “moins terminées” ou “terminés”, “touchée avec sentiment” ou
“avec facilité”, “vigoureusement” ou “avec hardiesse” ; esquisse “fort agréable”, “très
achevée”, “avancée”, “arrêtée” ou “finie”254. Assim, mesmo um esboço poderia ser
considerado mais ou menos acabado enquanto tal.
Diderot, por exemplo, no Salon de 1765, refere-se ao “pauvre esquisse” da
Éducation des riches, de Hallé, como “miserável”: “Vimos algumas vezes pés e mãos
pintados com negligência, meros croquis como cabeças (têtes croquées), tudo sacrificado à
expressão e ao efeito; não há nada aqui de pronto (rendu), nada mesmo: é o paroxismo da
licença do esboço”. Depois de mostrar que não é capaz, pelo esboço de Hallé, de apreender o
sentido da composição (Qu’est-ce que cet abée? Cet homme acoudé sur la table? Ce laquais?
L’esphère? Le chien?), Diderot termina com uma exortação ao artista:

“Esconda isso de mim, Sr. Hallé! Parece que você borrou esta tela com uma taça de
sorvete de pistache. Se fosse obra do acaso, como naquelas litografias em papeis que
imitam o mármore, ela me surpreenderia, mas seria meramente em razão do acaso”
(BUKDAHL; LORENCEAU (éds.): 1984, p. 73).

A tela encontra-se hoje numa coleção particular. A julgar pela reprodução (fig.
104), constatamos que aquilo que desgostou Diderot passaria por um tableau assez leché a
olhos pós-impressionistas.
No mesmo Salon de 1765, Diderot deleita-se com um esquisse de Greuze, La
mère bien-aimée: “Os esboços têm geralmente um fogo que o quadro não tem; é o momento
de calor do artista, a verve pura, sem nenhuma mistura do artifício que a reflexão coloca em
tudo (...)”. Em seguida, compara o quadro acabado à música vocal e o esboço, a uma sinfonia:

“É preciso escutar na música vocal aquilo que ela exprime. Sou eu quem digo a uma
sinfonia bem-feita aquilo que me agrada (...). No quadro, vejo uma coisa claramente

254
ROSENBERG, Pierre. Qu’entend-on par esquisse ? In : JACQUOT, Dominique (éd.). L’apothéose du
geste : l’esquisse peinte au siècle de Boucher et Fragonard. Musée de Strasbourg, Musée de Tours, Hazan
Éditions, 2003. (Catálogo de exposição) A análise dos livrets foi feita sobre uma base de dados dos Salons:
http://salons.musee-orsay.fr/index, acesso em julho de 2019
105

pronunciada (prononcée); no esboço, suponho coisas que não são mais que
anunciadas!” (Ibid., pp.193-4).

Havendo projeção de um estado emocional e subjetivo, no caso da


sinfonia/esboço, dificilmente não haverá comoção. Diderot admira o poder que o esboço
exerce sobre a imaginação, não tanto no sentido de completar as partes que faltam, quanto de
antecipar o conjunto de um modo menos racional que sensível. O desenho a que se refere foi
perdido, mas o esboço para o Fils Ingrat (Musée Wicar, Lille), também de Greuze (fig. 105),
que ele comenta com a mesma aprovação logo na sequência, fornece uma ideia do que
agradava, no primeiro trabalho, ao salonnier.
Diderot avalia e admira, nos esboços – e essa também era a postura da Academia
de Belas-Artes no séc. XVIII – não a gestualidade na fatura ou a execução, mas a ideia ou
invenção expressa na composição. A primeira deveria, necessariamente, subordinar-se à
segunda. Na verdade, é sobretudo na obra de Fragonard, aluno de Boucher, que encontramos
pinceladas muito soltas e fluidas, comumente associadas à nossa ideia de esboço. Depois da
ascensão de David e sua escola, contudo, os esquisses perdem esse caráter enlevée, tornam-se
mais estáticos e polidos. Haja vista o que ele exibiu no seu primeiro Salon, em 1781,
Funérailles de Patrocle (Musée du Louvre, RF 4004, fig. 106, feito para um quadro
terminado em Roma, em 1778, hoje na Escócia).
Durante a Revolução e o Primeiro Império, obras dos artistas ligados ao Ancien
Regime eram muito baratas, pois haviam perdido a voga. Paulatinamente, contudo, após a
Restauração e as sucessivas mudanças de governo durante o séc. XIX, o gosto pelas obras
licenciosas do tempo dos filósofos das luzes reemerge, junto com certo espírito nacionalista, e
elas começam a compor seções ou mesmo a totalidade de importantes coleções privadas255.
Curiosamente, essas coleções passaram a contar, também, com pinturas de holandeses,
especialmente paisagistas como Cuyp, Hobbema e Ruisdael, não ligados a um tratamento
pictórico obsessivo em sua definição dos detalhes e em seu polimento de superfícies, típicos
de Van Eyck, Memling, Van der Werf ou Mieris. É quando, também, especialmente entre os
românticos da geração de Delacroix, os esquisses readquirem um caráter mais fluido.
Em 1810, no Concours des Prix décennaux, os dois prêmios à “pintura de
história” e à “pintura de história de tema nacional” foram concedidos a Anne Louis Girodet-

255
Por exemplo, as coleções de Louis de la Caze (1798-1869), com, além de obras do séc. XVIII cuja pincelada
era mais aparente, Rubens e Rembrandt e um dos primeiros, em Paris, a interessar-se por Hals; de Jean-Marie
François Xavier de Silguy (1785-1864); e de François Hyppolite Walferdin (1785-1880), repleta de Fragonards,
entre outras. Balzac e os irmãos Goncourt adquiriram esboços de Greuze, Boucher e Fragonard. Lembrando que
colecionadores dos impressionistas apreciavam também a petite manière do séc. XVIII.
106

Trioson (1767-1824), da primeira geração de alunos de David, pelos seus Déluge e


Couronnement de Joséphine, respectivamente, contrariando as expectativas de seu antigo
professor, que esperava arrebanhar o primeiro com o seu quadro das Sabinas e, o segundo,
com o Pestiférés de Jaffa de seu aluno preferido, Antoine-Jean Gros (1771-1835). Esse foi um
primeiro golpe na hegemonia de David como chef d’école, seguido pelo decreto de seu exílio,
em 1816, após a queda de Napoleão. Mesmo que, à distância, ele ainda participasse da cena
artística parisiense enviando obras a exposições, sua posição não era mais central256.
Girodet, um dos quatro pintores, junto com Gérard, Gros e Guérin (os quatro Gs),
que fizeram a ponte entre David e os românticos, nove anos depois de ter superado o seu
mestre no concours décennaux, sente que uma nova geração estava se impondo sobre a sua e
escreve, em 1819, a um amigo na Itália:

“Começamos, para a geração de pintores que emerge, a ser velhos mestres. (...)
nenhum de nossos alunos pôde obter o prêmio (de Roma) junto à Academia; nossos
colegas acham que eles terminam demais (finissent trop). Só querem esboços
(...)”257.

Gros, no enterro de Girodet, em 13 de janeiro de 1824, ao qual, inclusive,


Delacroix compareceu258, fez um discurso emocionado, afirmando: “Em breve nos farão crer
que um pedaço de tela sobre o qual se espalhou tinta durante quinze dias é uma obra-prima
digna de consagrar a memória de um príncipe!”259 Quase trinta anos depois, em abril de 1854,
Delacroix podia afirmar com segurança, sem, todavia, colocar em questão o valor dos cânones
da antiga escola, que “em pintura, uma bela indicação, um croquis de um grande sentimento
podem igualar as produções as mais acabadas em termos de expressão”260.

256
Sobre a ressonância do prix decennaux de 1810 entre a classe artística e a relação entre David, seus antigos
alunos e a cena artística parisiense durante o seu exílio, ver: ALLARD, Sébastien ; CHAUDONNERET, Marie-
Claude. Le suicide de Gros: les peintres de l’Empire et la génération romantique. Paris: Gourcuff
Gradenigo, 2010, especialmente os capítulos 2 e 3.
257
Carta de Girodet a Fabre, Paris, 29 de junho de 1819, in: PELESSIER, Léon Gabriel, Les correspondants du
peintre Fabre (1808-1834), Nouvelle Revue Rétrospective, 5e semestre, juillet-décembre 1896, p. 127.
258
No seu balanço financeiro de 1824, lemos que gastou 1 franco com o transporte ao Père-Lachaise (Journal, II,
p. 1448).
259
Étienne Délecluze cita em seus diários o testemunho de Bertin de Vaux: « Bientôt on voudra nous faire croire
qu’un morceau de toile sur lequel on a barbouillé de la couleur pendant quinze jours est un chef d’œuvre digne
de consacrer la mémoire d’un prince! » (DÉLECLUZE; BASCHET (éd.), Journal, 1948, p. 63).
260
« En peinture une belle indication, un croquis d’un grand sentiment, peuvent égaler les productions les plus
achevées pour l’expression » (Journal, I, p. 747).
107

Qual a origem desse interesse estético no esboço que fez com que se confundisse
progressivamente, ao longo do séc. XIX, com a obra final? Sem perder de vista o fato de que
um interesse pelo fini afirmava-se, em paralelo, pela penetração da obra de Jean-Auguste
Dominique Ingres (1780-1867), visto como o grande regénérateur da escola de David, uma
resposta a essa pergunta pode ser dada, primeiro, sob a perspectiva do sistema de ensino.
Na Escola de Belas-Artes, ensinava-se apenas desenho e disciplinas a ele ligadas,
como Anatomia e Perspectiva. Para obter uma formação em pintura, era necessário recorrer a
um ateliê particular. Nas duas primeiras décadas do século XIX, os dois mais concorridos
eram os de David, assumido por Gros depois de seu exílio em Bruxelas, e o de Guérin, aluno
de Regnault, mas comumente alinhado com os discípulos de David. (O ateliê de Ingres abre,
em Paris, mais tarde, em 1825.) Nesses ateliês, os alunos eram orientados a realizar não só
cópias dos quadros dos mestres, especialmente os expostos no Louvre, mas também de seus
esboços, como um meio de aperfeiçoar a técnica e desenvolver um sentido unitário da
composição.
Além disso, no contexto dos concursos organizados pela Academia, à parte os 72
dias que os candidatos tinham para executar o quadro final a partir do esboço aprovado na
última etapa do concurso para o Prix de Rome, esboços eram o objeto principal de avaliação
do júri. Igualmente, os laureados com o prêmio deveriam enviar à Paris, além de obras
acabadas, também estudos e esboços, feitos a partir da experiência italiana. Em 1816,
inclusive, é criado o concurso de esquisses peintes de composições históricas que ocorre até
1863, pelo qual o gênero conquista certa autonomia institucional. No mesmo ano de 1816,
uma nova modalidade do Prix de Rome, a de paisagem histórica, têm início e, desde 1821, um
concurso quadrienal de paisagem histórica passa a ocorrer também pela produção em tempo
real de um esboço. No âmbito das encomendas, os artistas executavam, primeiro, um projeto,
que era um esboço, para validação ou não do comitente, antes de começar, efetivamente, o
trabalho.
Ou seja, os jovens aspirantes a artistas precisavam passar por um treinamento para
desenvolver habilidades mais rápidas de execução, ainda que com foco na ideia ou invenção
que teria então, certo, peso maior na deliberação dos prêmios e na avaliação dos patronos do
que as qualidades formais da fatura independentes do tema. No caso dos concursos, as horas
limitadas do período de execução dificultavam um tratamento mais esmerado ou polido de
108

superfície, como notamos, por exemplo, passando em revista os primeiros lugares obtidos no
de esquisses peintes261.
À margem da Academia, Amaranthe Rouillet (1810-1888) e Horace Lecoq de
Boisbaudran (1802-1897) desenvolveram, nos anos 1840, métodos de ensino do desenho mais
adequados às demandas da sociedade industrial. Rouillet patenteou um procedimento de cópia
mecânica baseado no uso de uma gaze estendida num chassi, sobre a qual as linhas do objeto
tridimensional, enquadrado por ela, eram traçadas e depois decalcadas numa folha de papel
por frotagem262. A ideia é que um desenho mimético poderia ser feito rapidamente a partir
desse processo. Nas pranchas ilustrando o método, por exemplo, o tempo de execução é
cronometrado, não passando nunca de 30 minutos. Lecoq de Boisbaudran, conforme relata no
seu Éducation de la mémoire pittoresque (1847), orientava seus alunos do lycée a
memorizarem um objeto, por meio da observação de estampas e de descrições científicas,
para depois reproduzi-lo sem recorrer ao modelo, mas tão somente a essa imagem mental263.
Marie-Elisabeth Cavé (1806-1883), amiga e ex-amante de Delacroix, uniu o
procédé Rouillet ao desenho de memória de Boisbaudran num método próprio, voltado
inicialmente ao público feminino e publicado em Le Dessin sans maître (1850) e L’Aquarelle
sans maître (1851)264, nos quais o professor é substituído pela gaze Rouillet (“le calque

261
GRUNCHEC, Phillipe. Les concours d’esquisses peintes, 1816-1863, tomes I (textes et catalogue) et II
(planches). Paris: ENBA, 1996.
262
Ver: ROUILLIET, Amaranthe. Procédé A. Roulliet (sic) acheté par le ministère de l’Intérieur pour
faciliter l’étude de l’art du dessin, composé de 12 dessins faits d’après le modèle et lithographiés par
Amaranthe Rouilliet, suivi de l’explication sur son procédé. Paris: Gihaut Frères, 1843.
263
Na verdade, Boisbaudran deixava uma margem de liberdade grande a cada aluno quanto à maneira de
memorizar o modelo, de modo que eles poderiam também executar desenhos em casa a partir dele. « Le sujet de
la première leçon fut le détail de figure le plus simple, un nez de profil, et quelques jours furent donnés pour
l’apprendre. Après avoir fait remarquer les particularités de la forme propres à la fixer dans la mémoire et avoir
expliqué la construction anatomique nasale, j’engageai chacun à apprendre cette leçon d’un nouveau genre
comme il avait pu faire autrefois de ses fables ou de sa grammaire, soit qu’il répétât souvent chaque phrase, soit
surtout qu’il en pénétrât bien le sens. Chacun enfin dut, par la répétition et par la réflexion, étudier et retenir avec
la plus grande exactitude son modèle, grandeur, forme et teinte. Mais je m’abstins de prescrire une marche trop
uniforme, afin de laisser un champ plus libre à la spontanéité et aux procédés individuels. Au jour convenu,
chacun me remit le modèle qui lui avait été donné et se mit à le dessiner sans autre guide que le souvenir »
(grifos nossos, BOISBAUDRAN, Horace Lecoq de. Éducation de la mémoire pittoresque. 2e éd. aug., Paris :
Bance, 1862, pp. 12-13).
264
Le Dessin sans maître: méthode pour apprendre à dessiner de mémoire foi reeditado várias vezes durante a
vida de Mme Cavé. A segunda edição data já de 1851, também, como a primeira, por Susse frères, e a terceira, de
1852, por Aubert. Uma quarta edição apareceu, ainda, em 1857, pelo Bureau du Journal Amusant. Nela são
adicionadas mais duas cartas e, ao final, uma de Amaranthe Rouillet à autora sobre seu procedimento de
ampliação com a gaze. Em 1860, a editora Plon lança o Abrégé de la méthode Cavé pour aprendre à dessiner
juste et de mémoire, adaptado aos professores primários (instituteurs), pois o método, submetido ao exame de
uma comissão apontada pelo Ministério da Instrução Pública já em 1852, fora aprovado para aplicação nas
109

vérificateur”) e esta, progressivamente, pela memória, uma faculdade a serviço da imaginação


e, portanto, capaz de conferir à forma, “impessoal” na simples reprodução pela gaze, uma
expressão.

“Consultar, copiar, matam a invenção e o gênio: compor, lançar rapidamente sua


composição sobre o papel com a ajuda das suas lembranças, eis o verdadeiro método
para inventar.”265

Numa edição do L’Aquarelle... chamada La Couleur, de 1863, Cavé pondera que


o esquisse de uma composição já é o quadro, embora sejam necessários muitos anos para
colocar no quadro tudo o que há no esquisse. O ébauche, por sua vez, não consiste numa
etapa inicial, mas na maneira mesma de se chegar à obra final, confundindo-se, então, com
ela: “não tente fazer algo de acabado, mas sim um esboço (ébauche) e de esboço em esboço
você adquirirá a arte de acabar”266.
A mera constatação de que o progresso na carreira artística dependia da execução
de um bom esboço ou de que a educação artística em geral incluía métodos mais rápidos e
baseados não tanto no trabalho sobre o modelo quanto no de memória não é, contudo,
suficiente para explicar a fusão entre esboço e obra acabada que começava a se explicitar. Tal
mudança, de ordem estrutural, liga-se não só à prática de ensino, mas também a questões
econômicas; não só à esfera da produção, mas também à da recepção. O que fez com que
surgisse uma demanda por obras finais mais esboçadas? Uma das respostas é que a circulação
maior de esboços na cultura visual do período exerceu uma espécie de condicionamento do
olhar para a progressiva assimilação de obras finais menos acabadas.
Esboços eram exibidos no Salon desde o séc. XVIII, embora não necessariamente
baseados num sistema amplo de manchas ou pronunciado de pinceladas. Artistas
interessavam-se por esboços de outros artistas e os seus próprios poderiam ser contemplados
em seus ateliês por comitentes em potencial ou amateurs. Durante o Ancien Regime, o centro
de distribuição de encomendas era o Estado, na figura do monarca. Após a Revolução, com a
ascensão da burguesia industrial e do sistema de livre comércio, uma distribuição mais
democrática tem lugar sob a forma dos “concursos”. Em 1798, por exemplo, um júri é eleito
para selecionar as obras expostas no Salon. Antes, todas eram admitidas, desde que o artista

escolas em 1861. Os esforços de implementação, contudo, foram ultrapassados por currículos mais ambiciosos
(cf. GOTLIEB in: KAHNG et. al.: 2013, pp. 64-68).
265
CAVÉ, Dessin..., 1851, p. 4.
266
CAVÉ, La Couleur..., 1863, 3ª ed., p. 130.
110

fosse membro da Academia ou almejasse a essa função. Tanto os laureados nos concursos da
Academia quanto os selecionados nos Salons obtinham, geralmente, os favores da
administração quando se tratava da decoração de espaços públicos.
O mecenato estatal mais criterioso e burocratizado, contudo, não consegue dar
conta da grande quantidade de artistas profissionais circulando no mercado, de modo que o
excedente da demanda é absorvido, em parte, pelas encomendas privadas. Ao mesmo tempo,
o progresso da imprensa e o seu papel como formadora de opinião contribuem para a
formação de uma cultura artística média entre o público leitor. Os textos sobre arte incluíam
reproduções das obras abordadas, antecipando e, assim, criando uma expectativa do contato
com o original em museus (o Louvre abre ao público já em 1793) ou exposições.
A litografia, inventada no fim do séc. XVIII, é praticada conspicuamente em
Paris, sobretudo a partir dos anos 1820. Consiste numa técnica de reprodução menos
constritiva que a da gravura em metal ou madeira, usadas até então para reproduzir imagens.
Isso porque é possível desenhar livremente sobre uma pedra calcária plana e reproduzir esse
desenho, por um processo químico simples baseado na repulsão entre água e gordura, em
grandes tiragens. A partir dos anos 1830, a revista L’Artiste reproduz em litografia esboços de
artistas - e não somente suas obras acabadas -, esboços esses coletados em visitas a seus
ateliês. Alguns anos depois, outra publicação irá se dedicar exclusivamente a isso, o
L’Autographe267. Isso significa que tais obras saem dos limites do ateliê e passam a circular
mais amplamente na cultura. Na virada para os anos 1830, os marchands de couleurs Giroux,
Binan e Saint-Martin, que aceitavam esboços de artistas como pagamento, locavam essas
obras a amateurs ou aprendizes, num comércio que dura ao menos até os anos 1860, quando
Grobon empresta esboços de Corot a 12 ou 24 francos a folha por mês268.
Outro aspecto que não deve ser subestimado na ascensão da estética do esboço é a
produção de petits tableaux para o mercado burguês, composições originais ou cópias de
obras maiores realizadas pelos próprios artistas ou por seu ateliê em pequenas dimensões, a
preços mais acessíveis, que têm antecedentes nos ricordi. Um “quadrinho” com fins
comerciais pode ser pintado dentro de um estilo mais ou menos acabado, isso,
sistematicamente, desde o séc. XVII. No contexto que estamos tratando aqui, a questão é que

267
A primeira edição aparece em 1864. Ver, por exemplo: L’AUTOGRAPHE: au Salon de 1865 et dans les
ateliers, 104 pages de croquis originaux. Paris: Bureaux de l’Autographe, du Figaro et du Grand Journal, 1865.
268
VOISIN, Olivia, L’esquisse et l’amateur : du charnier romantique à la postérité d’une époque. In : ELOY,
Sophie (ed.), Esquisses peintes de l’époque romantique : Delacroix, Cogniet, Scheffer…, Paris, RMN, 17
sept. 2013 - 2 fév. 2014, Musée de la Vie Romantique, pp. 25-32, catálogo de exposição.
111

estilos mais esboçados passam a ter um público tão fiel quanto aqueles ligados ao fini
davidiano e ingriano. Os marchands compram essas obras para revenda diretamente com o
artista e as expõem em suas lojas ou elas são vistas em espaços expositivos à margem do
Salon, como na Société des Amis des Arts de Paris, nos anos 1830269.
Um tratamento mais livre era tolerado não somente em formatos reduzidos, mas
também em gêneros menores, como a paisagem. No influente tratado de Pierre-Henri de
Valenciennes, Eléments de perspective pratique: à l’usage des artistes, suivies de réflexions
et conseils à un élève sur la peinture et particulièrement sur le genre du paysage (1799), o
esboço em plein-air funciona, como ocorria já desde o séc. XVII, como um aide-mémoire à
obra final, concebida dentro do ateliê. A diferença é que agora maior atenção é dada, na etapa
dos esboços, aos fenômenos atmosféricos, efêmeros e mutáveis. Na seção études d’après
nature da parte 2, Réflexions et conseils à un élève, Valenciennes afirma que, diante da
variabilidade desses fenômenos, o pintor teria no máximo duas horas para fixar o que vê270.
Nessa época, a aquarela (ou a tinta a óleo diluída sobre cartão) havia alcançado
autonomia enquanto linguagem e era, pela facilidade do transporte no trabalho sur place, uma
técnica bastante usada pelos paisagistas, entre eles, o inglês John Constable (1776-1837). No
início dos anos 1820, os críticos seus conterrâneos já notavam o quanto suas obras finais
permaneciam ligadas aos seus esboços ao ar livre271. Os quadros de Constable que vieram à
Paris, no Salon de 1824, impressionaram Delacroix pela maneira como a pincelada era
justaposta sem fundir as cores, de modo que um tom de verde era formado pela justaposição
269
No L’Artiste de 1837, uma crítica à exposição da Société des Amis des Arts de Paris, cujo fim era comprar
obras dos Salons para depois sorteá-las entre seus membros, afirma que ela não apresentava “nenhum quadro que
pudesse ser chamado de bom, no sentido rigoroso da palavra, mas muitos bons esboços (esquisses), tanto
aquarelas quanto quadros a óleo”. O autor cita uma “pequena paisagem” como exemplo e reconhece que tal
organização civil não possuía grandes somas a investir. Assim, suas aquisições deveriam se restringir, em grande
parte, a obras de pequenas dimensões, pois poderiam ser compradas em quantidade, contemplando um número
maior de membros no sorteio (L'Artiste: journal de la littérature et des beaux-arts, Paris, Ire série, tome XIII,
1837, p. 53). Essas sociedades de amateurs espalhadas pela França são estudadas, desde 1789 até o pós-guerra,
por uma equipe de pesquisadores do INHA. (Ver a base de dados:
https://agorha.inha.fr/inhaprod/ark:/54721/00156, acesso em junho de 2019)
270
No caso de um efeito de sol nascente ou poente, menos ainda, meia hora no máximo: « (…) car toute étude
d'après nature doit être faite rigoureusement dans l’intervalle de deux heures au plus : et si c'est un effet du soleil
levant ou couchant, il n'y faut pas mettre plus d'une demi-heure » (VALENCIENNES: 1799, p. 407).
271
“Se o vigor, o frescor e a verdade do efeito, aparentes em todas as outras partes da obra, estivessem
associados a um pouco mais de nitidez na execução, a pintura seria perfeita” (texto de 1822 citado em:
MURDOCH, John, John Constable et le statut de l’esquisse, Les cahiers de l’École du Louvre, nº 3, oct. 2013,
p. 47). Murdoch lembra que para cada quadro da série de seis grandes paisagens geórgicas, ou seja, que
incorporam os labores do homem na Idade de Ferro, da East Anglia, entre eles a Carroça de Feno (que veio a
Paris em 1824), Constable executou um esboço de mesmo tamanho, que, a princípio, não teria deixado o seu
ateliê. Por que, nos anos 1820-30, em seu período tardio, ele executou tais esboços em tamanho real - e não
reduzido - é, ainda, uma questão em aberto.
112

de milhões de outros. Na verdade, Delacroix teve contato com pinturas do inglês desde ao
menos 1817, quando conhece o aquarelista Richard Parkes Bonington (1802-1828) e
frequenta dois marchands ingleses em Paris272.
Charles Rémond (1795-1875), que pintava paisagens ao gosto acadêmico,
organizou sua primeira venda em 1842, incluindo nela um lote com 279 études peintes
d’après nature. Em 1850, Théodore Rousseau (1812-1867), seu suposto ex-aluno, também
organizou uma venda incluindo études peintes junto com seus tableaux273. Ao mesmo tempo
em que aspectos dos esboços ao ar livre executados rapidamente são incorporados ao rigor de
composições indoors, os próprios esboços encontram um espaço de apreciação fora do ateliê.
Assim, apesar de não serem considerados obras inacabadas, nem tampouco possuírem o
mesmo estatuto e valor que obras finais, já eram objeto de vendas durante a vida do artista,
destinados, especialmente, aos cabinets dos amateurs.

***

Delacroix tinha plena consciência dos aspectos de sua obra pública ligados à ideia
de inacabado que incomodavam a crítica. Mais ainda: pelos comentários em seus escritos
sobre Ticiano, Velázquez, Michelangelo, Leonardo, Rubens, Rembrandt e os paisagistas
holandeses, poderíamos afirmar que se trata mesmo de uma consciência histórica. No seu
caso, ela tende ao dualismo, embora de natureza amoral, sem hierarquização de valor. O topos
da oposição entre Poussin e Rubens, reproduzido desde o séc. XVII, é estendido a outros
artistas, Rafael e Ticiano, Michelangelo e Leonardo, etc., gerando outras oposições. Apesar de
a redução e facilidade – as principais atrações do pensamento dualista – seduzirem Delacroix,
ele é bastante ponderado em suas observações e toma o cuidado, em geral, de não confundir
uma característica com um defeito ou de referir-se a um defeito simultaneamente como uma
qualidade, o que também serve para neutralizar um impulso na direção do maniqueísmo.
É importante, no contexto da atuação da Delacroix, marcar bem a diferença entre
o esboço enquanto um tipo de obra/exercício de ateliê e o esboço enquanto um efeito em
obras terminadas. Existem esboços mais e menos acabados. No entanto, um efeito de esboço
liga-se sempre à ideia de inacabado. Artistas continuam, mesmo no século XIX, a fazer

272
John Arrowsmith e Claude Schroth, cf. Journal, I, pp. 170-1 (nota 334). Sobre Bonington e Delacroix, ver:
carta de Delacroix a Théophile Thoré, Champrosay, 30 nov. 1861, Corres., IV, pp. 285-9.
273
A venda Charles Rémond ocorreu entre 21 e 23 de fevereiro de 1842 e a de Rousseau, em 2 de março de
1850, ambas em Paris.
113

esboços e assim até hoje. Contudo, nesse período, pinturas com pinceladas visíveis e grandes
áreas de empasto passam a rivalizar, na arena pública, com aquelas ligadas aos cânones
davidianos, depois ingrianos, dominantes de acabamento liso. Como no séc. XVI e XVII, não
há uma sucessão de estilos, mas uma convivência horizontal mais ou menos tensa, embora
mutualmente estimulante, entre eles.
O grande aporte que Delacroix traz a essa fatura “barroca” que existe já nos
venezianos, especialmente no Ticiano tardio, e que é retomada depois por seus
contemporâneos - Géricault, na França e Constable, na Inglaterra -, a contribuição de
Delacroix reside, para além de uma sistematização manual ou “caligrafia” própria, na
harmonia da cor, portanto, na escolha da paleta, que ele aprendeu não com Guérin, Géricault,
Constable ou algum manual prático de pintura ou de teoria ótica (quando Chevreul divulga
suas pesquisas sobre o contraste entre cores complementares, seu estilo já está consolidado):
Delacroix estabeleceu a harmonia de sua paleta vendo obras de Gros, especialmente o Gros,
pintor de Napoleão (do Jaffa e de Eylau), o qual, por sua vez, tomou-a de Rubens. Mas ele
tornou a prática dessa harmonia cromática mais complexa, pelo processo de aplicação da tinta
em camadas (velatura/glacis), associado à técnica da flochetage, ou seja, por uma
intensificação do contraste entre as cores através da manutenção do índice de pureza de cada
uma. Assim, ele construía os volumes sem usar o claro-escuro, sem a mera adição do branco
e do preto em diferentes quantidades à cor local. Essa questão será abordada na seção
“Delacroix e o inacabado”.
Assim, nos séculos XVIII e XIX, uma série de fatores contribuiu para a
revalorização de um estilo mais aberto: a preponderância de esboços como objeto de
avaliação nos concursos organizados pela Academia; a prática pedagógica corrente de copiar
esboços (desenhados ou pintados) com vistas a desenvolver habilidades técnicas; a circulação
de esboços para além do ateliê do artista durante sua vida, especialmente por meio de
reproduções em gravura; a expansão do comércio de petits tableaux; a descoberta pelos
franceses da escola espanhola e de Velázquez durante as conquistas de Napoleão e uma
renovação do gosto pelos holandeses Hals, Rembrandt, além de paisagistas e pintores de
gênero como Teniers, Cuyp, Hobbema e Ruisdael. Todos emergem, bem ou mal, sob a égide
do velho Ticiano e de Rubens. Essa revalorização ou reabilitação de uma prática antiga num
outro contexto criou, obviamente, um terreno propício para que Delacroix desenvolvesse suas
pesquisas com confiança e para que um público de amateurs e especialistas se formasse ao
seu redor.
114

3.2 Inacabado e estilo tardio

“O que perdi com a juventude? (…) Algumas


ilusões que me preenchiam, de verdade e
passageiramente, de uma felicidade muito viva,
mas que eram a causa, por isso mesmo, de um
amargor proporcional. Ao envelhecer, é preciso
perceber que há uma máscara sobre quase todas as
coisas; mas indignamo-nos menos contra esta
aparência mentirosa e nos acostumamos a nos
contentar com aquilo que vemos” 274
Eugène Delacroix, 24 de junho de 1849 (51 anos),
Journal, I, pp. 450-451.

Convém, antes de tratar da questão do inacabado em Delacroix, para a qual a


revisão histórica feita anteriormente será útil, pensar sobre a associação, frequente na história
da arte, entre inacabado e estilo tardio (Altersstil, Spätstil), entendido como uma constante
formal dissonante no contexto tanto da produção do artista, quanto da cena artística de sua
época275.
As Quatro Estações para Hartmann foram pintadas no fim da vida de Delacroix,
que morre em 1863, em consequência do agravamento de uma laringite. Hoje supõe-se que
ele faleceu de um episódio agudo de hemoptise (tosse com sangue). Desde aproximadamente
os 45 anos de idade, ele sofre de sucessivas crises, queixando-se com frequência de estar
resfriado (enrhumé) e passando períodos alternados nos banhos ou na campagne para curar-
se276.

274
« Quoi-je donc perdu avec la jeunesse ? (…) Quelques illusions qui me remplissaient, à la vérité et
passagèrement, d’un bonheur assez vif, mais qui étaient cause, par cela même, d’une amertume proportionnée.
En vieillissant, il faut bien s’apercevoir qu’il y a un masque sur presque toutes choses ; mais on s’indigne moins
contre cette apparence menteuse, et on s’accoutume à se contenter de ce qui se voit. »
275
Há três estudos recentes importantes sobre o estilo tardio: um artigo de Kenneth Clark (1970), o livro de
Philip Sohm (2007) e a coletânea póstuma de ensaios de Edward Said (2006). A perspectiva de Clark é a mais
romântica. Ele afirma que um “sentido de isolamento”, um sentimento de “raiva sagrada” convertido num
“pessimismo transcendental”, “a perda de confiança na razão, uma crença no instinto” e, mais raramente, a
resignação diante dos grandes crimes e loucuras da humanidade são as marcas do estilo tardio na obra de grandes
mestres (CLARK: 1970, p. 87). Sohm é mais cético e aborda o tema de um ponto de vista biológico, projetando
ênfase na relação do corpo do artista em idade avançada com a técnica. Ele insiste no fato de que é o declínio
físico e não “um sentimento de partida iminente”, como em Clark, que está por trás da fatura mais livre e
descuidada comum à última maneira, sempre se reportando ao modo como os pintores italianos dos séculos XVI
ao XVIII se relacionavam com seu próprio corpo quando velhos, geralmente negligenciado pelos seus biógrafos,
que tendem a reproduzir o argumento da sublimação. Said, por sua vez, dirige a atenção ao caráter desarmônico,
irresolvido, contraditório e intransigente de obras tardias, uma vez que, para ele, a marca do estilo tardio é a
impossibilidade da síntese: “o estilo tardio faz parte e ao mesmo tempo está à parte do presente” (SAID: 2006,
p. 44).
276
« C’est n’est guère que vers quarante-cinq ans [desde c. de 1843] qu’un petit avertissement de la nature m’a
donné à entendre que je n’étais pas éternel, et qu’il fallait opter entre la voix large et très courte, et une carrière
115

Mme Caroline Jaubert, em suas Memórias (1881, 5ª ed.), observando Delacroix


durante um séjour em sua companhia em Augerville277, conta que o pintor demonstrava
grande disposição para passeios, desde que lhe fosse dado tempo suficiente para se arrumar.
Delacroix dispunha sobre sua cama coletes, echarpes, chapéus, cada qual classificado
(numeroté) de acordo com a temperatura. Jaubert não sabia então de qual “deplorável afecção
da laringe” ele sofria.278 Nessa ocasião, Delacroix escreveu: “agora sempre bem agasalhado,
devido a minha última crise de garganta”279.
O grau de preocupação do pintor com seus trajes, para além da questão da saúde,
transparece numa carta escrita à Mme de Forget, em setembro de 1852, em que dirige uma
exortação a si mesmo: uma vez que a ação deliberada, qualquer que seja, ofereça um antídoto
ao sofrimento, tomá-la. E cita um exemplo trivial: “saio de casa, minha roupa me constrange,
continuo o meu caminho por preguiça de voltar para trocá-la”280. Ou seja, sentir que não
estava vestido adequadamente na rua o colocava num estado de angústia; ele toma, contudo, a
decisão de seguir, menos por convicção que por preguiça. O dândi envelhecera.
Em 4 de novembro de 1857, ele tem uma pequena epifania estética diante da cor
que as fibras na superfície de seu casaco cinza adquiriam ao serem tocadas pela luz do sol
matinal: “Todas as cores do arco-íris brilhavam ali como no cristal ou no diamante. Cada um
desses fios estando polidos, refletiam as mais vivas cores, que mudavam a cada movimento
que fazia (…)”281. Sim, trata-se da observação de um pintor, alguém que possui uma

un peu plus sobre, un peu plus resserrée, mais que put promettre quelque durée. Une très grande affection au
larynx, qui dura plusieurs années, me força à plus de modération. Depuis ce temps, je donne beaucoup au travail
et presque rien au reste (…) » (Journal, Cahier autobiographique, II, p. 1744). Ver, ainda: 7 set. 1855, Journal, I,
p. 939; carta à Mme de Forget, 30 abr. 1850, Corres., III, p. 13.
277
O primeiro data de 20 de maio de 1854.
278
« Irait-t-on en bateau, à pied ou en voiture ? Aussitôt la décision prise, il s’éclipsait, puis reparaissait, ayant
combiné ses vêtements pour affronter soit la mer de glace, le soleil du désert ou le vent de la montagne. Cette
manœuvre nous divertissait, ayant découvert (…) que sur son lit demeuraient étalés des gilets, des cache-nez, des
coiffures, numérotés et correspondant aux degrés du thermomètre. Nous ignorions alors de quelle déplorable
délicatesse de larynx il était affligé » (Jaubert, Souvenirs, 1881, p. 36).
279
21 mai. 1854, Journal, I, p. 768.
280
« Agis pour ne pas souffrir. Toutes les fois que tu pourras diminuer ton ennui ou ta souffrance en agissant,
agis sans délibérer. Cela semble tout simple au premier coup d’œil. Voici un exemple trivial : je sors de chez
moi ; mon vêtement me gêne ; je continue ma route par paresse de retourner et d’en prendre un autre » (12 set.
1852, Journal, I, p. 602).
281
« Je remarquais un de ces matins, étant au soleil dans ma galerie, l’effet prismatique de la multitude de petits
poils du drap de ma veste grise. Toutes les couleurs de l’arc-en-ciel y brillaient comme dans le cristal ou le
diamant. Chacun de ces poils étant poli réfléchissait les plus vives couleurs, lesquelles changeaient à chaque
mouvement que je faisais ; nous n’apercevons pas cet effet en l’absence du soleil (…) » (Journal, I, pp. 1188-9).
116

sensibilidade para a cor muito maior que a média das pessoas. No entanto, nesse momento, é
na roupa que veste que o prazer estético gerado pela apreciação do movimento das cores
encontra um objeto.
Para marcar sua identificação com Michelangelo no retrato que pintou do artista
em 1850 (Musée Fabre, Montpellier), Delacroix coloca ao redor de seu pescoço a sua própria
echarpe282. Em seus retratos fotográficos da maturidade, costumava usar um modelo de
camisa de colarinho alto, enlaçada por uma cravate de soie noire283 com um tipo de nó
chamado, num manual da época, de sentimentale: ideal para aqueles cuja fisionomia “respira
o ar do amor, do langor, da paixão” e que desejam preservar em sua imagem “quelque chose
d’enfantin”284.
No retrato fotográfico de Delacroix tirado por Carjat, em 1862, quando o pintor
tinha 64 anos, pouco antes de morrer, o colarinho e o nó central do adereço, mais a gola do
sobretudo abotoado até o alto, protegem a sua garganta, então já bastante afetada pela doença
(fig. 107). Eles funcionam, ao mesmo tempo, como um pedestal compacto ao seu “rosto de
leão”, coroado por uma cabeleira escura sem um fio sequer de cabelo branco285. Delacroix
tinha em sua biblioteca livros como: Histoire des modes françaises ou révolutions du costume
en France; Éloge des perruques; Histoire des Révolutions de la Barbe des français;

282
« Ce cache-nez, ce fameux cache-nez du frileux Delacroix, Delacroix l’a mis au cou de Michel-ange comme à
son propre cou, autre moyen de s’identifier avec lui (...) » SILVESTRE, Théophile ; FAURE, Élie (préface et
notes). Les artistes français. Paris: G. Crès, 1926, t. II, p. 161 [1856].
283
Philippe Burty escreve que, em seu leito de morte, Delacroix vestia uma gravata de musselina engomada: “Le
Jeudi 13 août 1863, à sept heures du matin, Eugène Delacroix s’était éteint doucement. Quelques privilégiés ont
pu voir, s’enlevant sur le blanc de l’oreiller en ton olivâtre à peine jauni et sortant d’une haute cravate de
mousseline empesée, ce visage à la puissante ossature, aux lèvres pincées, au front haut encadré par des mèches
de cheveux noirs sans reflet » (grifos nossos, BURTY, Préface, Lettres de Eugène Delacroix, 1878, p. ix).
Provavelmente, o tecido das gravatas nas fotografias tiradas, geralmente, para figurar em publicações de textos
sobre o autor, era a musselina de seda.
284
BALZAC, Honoré de; SAINT-HILAIRE, Émile Marco de. L'art de mettre sa cravate de toutes les
manières connues et usitées… par le Bon Émile de l'Empesé… orné de trente-deux figures explicatives …,
Paris, 1827, p. 72. No prefácio, lemos : « ‘L'art de mettre sa cravate est à l'homme du monde, ce que l’art de
donner à dîner est à l'homme d'État (…) ; mais la cravate n'est pas seulement un utile préservatif contre les
rhumes, torticolis, fluxions, maux de dents et autres gentillesses naturelles du même genre ; elle est encore une
partie essentielle et obligée du vêtement qui, dans ses formes variées, apprend à connaître celui qui le porte ».
285
« Son visage de lion, sa fière allure, son regard profond et plein de rêve, sa chevelure, son port de tête, sa
haute cravate, ses attitudes, sa main, nerveuse et fine, bien faite pour illustrer le mot fameux : ‘l’homme pense,
parce qu’il a une main’ (…) » DUHAMEL, Raoul, Eugène Delacroix, peintre et écrivain, prix Sujet
d’éloquence, Académie Française, 1932. Théophile Silvestre e Burty (supra nota 283) fazem a observação sobre
a cor do cabelo de Delacroix (Histoire des artistes vivants, 1856, p. 45).
117

Recherche historique sur l’usage des cheveux postiches, entre outros, e que dificilmente
seriam apenas documentos de consulta para os quadros286.
Em idade avançada, seus médicos recomendavam-lhe que falasse o mínimo
possível, o que Delacroix tinha muita dificuldade em fazer. Baudelaire conta que, logo que
entrava em sua casa, ele lhe dizia: “Não conversaremos esta manhã, não é mesmo? Ou muito,
muito pouco”. Em seguida, Delacroix falava durante três horas seguidas: “sua conversa,
afirma, era brilhante, sutil, mas repleta de fatos, lembranças e anedotas; em suma, une parole
nourrissante.”287 Como terá sido para um homem vaidoso e mundano como Delacroix
envelhecer? Essa resposta é relevante para a análise de seu trabalho paralelo como pintor?
Afinal, não foram os seus olhos nem as suas mãos, os instrumentos mais imediatos de seu
ofício, as partes do corpo acometidas pela doença, mas o órgão da fala. Esse mutismo forçado
parece, antes, tê-lo mergulhado mais do que nunca no trabalho288. Baudelaire escreve:

“A verdade é que, nos últimos anos de sua vida, tudo o que se chama prazer havia
desaparecido dele, tendo um único, severo, exigente, terrível, substituído todos, o
trabalho, que então não era apenas uma paixão, mas teria podido se chamar um
furor.”289

O fureur do ataque ao trabalho era proporcional à perda dos prazeres ligados à


vida em sociedade. A pergunta, então, é: não apresentando nenhum prejuízo em sua
habilidade motora nem uma degeneração severa da vista e dedicando-se mais do que nunca ao
métier, seu estilo mudou significativamente em idade avançada?
O estilo tardio é, em grande parte, uma resposta prática a limitações físicas. O
corpo do artista entra num processo de decadência ao qual a sua mente deve, numa certa
medida, se adaptar. Delacroix precisou adequar a sua rotina ao seu mal de gorge. Ele passou a
viajar mais, para submeter-se a tratamentos de saúde, especialmente os banhos, e para fugir
dos conhecidos em Paris, com quem se veria tentado a falar. No contexto desse isolamento
auto imposto acompanhado de uma nova compulsão pelo trabalho, algumas mudanças em seu
estilo fazem-se notar: ele pinta mais temas religiosos ou animália (incluindo as cenas de caça)
e faz experiências com naturezas-mortas, deixando um pouco de lado os quadros de história.
Ele também realiza muitas réplicas pequenas de suas próprias obras e retoma tanto antigos

286
Catálogo da venda póstuma de uma parte da biblioteca de Eugène Delacroix, op. cit., nota 103, p. 53.
287
BAUDELAIRE, L’œuvre et la vie d’Eugène Delacroix (1863), in: PICHOIS (éd.), 1992, p. 424.
288
Cf. a sua declaração na nota 276 anterior.
289
BAUDELAIRE, Charles, A obra e a vida de Eugène Delacroix, trad. Plínio Coelho, 2008, p. 113.
118

temas, produzindo variações, quanto antigas soluções visuais transpondo-as a novos


contextos, tornando-se mais repetitivo e tautológico. Seu método pictórico continua o mesmo,
ele continua dialogando, em suas invenções, com grandes obras do passado, mas a distância
entre o ébauche e a dernière main diminui.
Em artes visuais, o lugar comum é o de que o tratamento de superfície das obras
tardias torna-se mais descuidado e as formas, mais simplificadas. Os dois grandes modelos
dessas características são o velho Ticiano pintando com pinceis do tamanho de vassouras ou
mesmo com os dedos e Rembrandt que, como observou Proust, reduziu tanto a atenção ao
essencial em suas últimas telas que pintou apenas o sol290.
Os relatos de Giorgio Vasari e Marco Boschini sobre as pinturas do período final
da vida de Ticiano, executadas entre o fim dos anos 1550 e a sua morte, em 1576, são
comumente citados. Vasari visitou o ateliê de Ticiano em 1566 e contrastou a técnica
“diligente e delicada” de suas pinturas anteriores com as pinceladas largas (colpi) de então, as
quais tornavam a representação inteligível apenas a certa distância. Vasari reconhece que esse
efeito não era fácil de ser obtido e que os jovens que se aventuravam nesse caminho corriam
grande risco, pois não tinham a autoridade da experiência a seu favor:

“É certamente verdade que o método usado por Ticiano para pintar esses últimos
quadros [Vênus e Adônis, Andrômeda e Perseu, Diana e Acteão, Crucificação de
Ancona] é muito diferente do de sua juventude. Pois os da juventude foram
executados com grande delicadeza e diligência, e podem ser vistos tanto à distância
quanto de perto; por outro lado, estas últimas obras foram executadas com
pinceladas amplas e vigorosas e em manchas de cor, de modo que não podem ser
vistas de perto, embora pareçam perfeitas à distância. Este método é a razão das
pinturas inábeis de muitos artistas que tentaram imitar Ticiano (...); pois ainda que
obras de Ticiano pareçam a várias pessoas terem sido criadas sem muito esforço,
isto é falso e os que pensam assim estão se auto iludindo. Na verdade, está claro que
Ticiano retocava suas pinturas, voltando a elas com suas tintas várias vezes, de
modo que ele deve ter experimentado grandes dificuldades. O método que usa é
judicioso, belo e impressionante, pois faz os quadros parecerem vivos e pintados
com muita arte, mas esconde o trabalho que foi colocado neles” 291.

290
« Les derniers Monet ne peignent que du brouillard, les derniers Rembrandt que du soleil » (Lettre à R.
Dreyfus, 29 jan. 1908, Corr. viii. p. 36).
291
Vasari, Viti, edição giuntina, II, p. 815 (ver também a tradução para o inglês de George Bull, 1987, I, p. 458):
“Ma è ben vero che il modo di fare che tenne in queste ultime è assai differente dal fare suo da giovane: con ciò
sia che le prime son condotte con una certa finezza e diligenza incredibile, e da essere vedute da presso e da
lontano, e queste ultime, condotte di colpi, tirate via di grosso e con macchie, di maniera che da presso non si
possono vedere e di lontano appariscono perfette. E questo modo è stato cagione che molti, volendo in ciò
imitare e mostrare di fare il pratico, hanno fatto di goffe pitture: e ciò addiviene perché, se bene a molti pare che
elle siano fatte senza fatica, non è così il vero e s’ingannano, perché si conosce che sono rifatte, e che si è
ritornato loro addosso con i colori tante volte che la fatica vi si vede. E questo modo sì fatto è giudizioso, bello e
stupendo, perché fa parere vive le pitture e fatte con grande arte, nascondendo le fatiche”.
119

Mais de um século depois, em 1674, Boschini, apoiado numa tradição oral com
origem em Palma il Giovane, afirma que, no fim da vida, Ticiano esboçava seus quadros com
pinceladas amplas, definindo genericamente as áreas de luz e sombra, e encostava-os depois
na parede, onde poderiam permanecer por meses. “Olhava-os, então, como se fossem seus
inimigos mortais” e retomava-os, frequentemente usando mais os dedos do que o pincel292. A
Pietà concebida para a sua própria sepultura, em Sta Maria dei Frari (hoje na Galleria
dell’Accademia, Veneza), deixada inacabada com a morte do artista, fornece um exemplo
desse tratamento mais sumário, admirado pelos seus contemporâneos, pois os retoques com
reverenza de seu aluno Palma não alteraram a orientação geral da pintura, antes adequaram-se
ao seu aspecto inacabado (figuras 108 e 108a).
Provavelmente, os pinceis de Ticiano tornaram-se mais largos e mais extensos293,
porque, acometido de algo como catarata (“...oiguno dice che non vede più quello qu’el
fa...”294), podia ver somente pinceladas largas e precisava tomar uma distância permanente da
tela para controlar e coordenar sua ação. Sob essa perspectiva, a redução da acuidade visual
causada pela degeneração natural da vista teria determinado a redução da acuidade da forma,
dos contornos e dos detalhes na pintura295.
Há outra questão que o estilo tardio de Ticiano suscita: a relação entre o grau de
acabamento e o valor monetário da pintura. Pietro Aretino, numa carta de 1545 a Cosimo I de
Medici acompanhando o seu retrato feito pelo veneziano (Palazzo Pitti, Florença), afirma que,
apesar de o resultado respirar e ser pulsante de vida, “se tivessem sido dados a Ticiano mais
alguns escudos”, os tecidos estariam mais brilhantes, firmes e delicados como deveriam ser,
respectivamente, o cetim, o veludo e o brocado296. Haveria uma relação proporcional, neste

292
“Dopo haver formati questi preziosi fondamenti, rivoglieva i quadri ala muraglia, & ivi gli lasciava alle volte
qualche mese, senza vederli: e quando poi da nuovo vi voleva applicare i pennelli, con rigorosa offeruanza li
esaminava, come se fossero stati suoi capitali nemici, per vedere se in loro poteva trovar diffetto; (...). Ed il
Palma mi attestava per verità, che nei finimenti dipingeva più con le dita, che con pennelli” (BOSCHINI, Marco.
Le ricche minere della pittura veneziana. Veneza: Apresso Francesco Nicolini, 1674, s/p, verbete Tiziano).
293
Sobre os pinceis enormes, ver a carta de Francisco de Vargas (embaixador de Carlos V), na qual conta que
inquiriu Ticiano sobre o tamanho deles, curioso a respeito de sua técnica “de golpes de pincel grosseros, casi
como borrones” (PÉREZ, Antonio. Segundas cartas de A. P. mas los aforismos dellas facadas por el curioso
que facò los de las Primeras. Paris, 1603, 120v).
294
Carta de Niccolò Stoppio a Johann Jacob Fugger, 29 fev. 1568, apud SOHM: 2007, p. 77.
295
Para uma abordagem “oftalmológica” do estilo tardio de Ticiano, ver o capítulo 2 do livro de Sohm, op. cit.,
especialmente pp. 77-80.
296
“Certo ella (a pintura de seu retrato) respira, batte i polsi e movi lo spirito nel modo ch’io mi faccio in la vita.
E se più fussero stati gli scudi che gliene ho conti, invero i drappi sarieno lucidi, morbidi e rigidi, come il da
120

caso, entre acabamento, tempo de trabalho e preço. Embora não existam provas da veracidade
do relato de Aretino, Ticiano era famoso pela sua astúcia financeira, que lhe garantira uma
condição bastante confortável perto do fim da vida297.
Rembrandt foi à falência em 1656, quinquagenário, sete anos após a morte de sua
primeira esposa e treze anos antes da sua própria. Ao contrário de Ticiano, ele morreu pobre,
uma celebridade em franca decadência. Seus autorretratos tardios fornecem um testemunho
do despojamento e da simultânea acentuação de certas características estilísticas em sua
pintura, como o empasto e a luz dourada, no encalço de sucessivas perdas, afetivas e
materiais.
Ernst Van de Wetering afirma, com efeito, que o tratamento da pele humana,
especialmente nos rostos, é emblemático do estilo tardio de Rembrandt298. Comparando
alguns de seus autorretratos executados no fim dos anos 1650, especialmente o da National
Gallery de Washington (figuras 109 e 109a) e o da Frick Collection, ele conclui que tais
rostos apresentam, com frequência, tanto uma estrutura de camadas quanto uma interação
entre as pinceladas mais complexa. Três procedimentos são característicos da fase final do
holandês: a imprimatura localizada, o contraste acentuado entre áreas de transparência e
empasto e o trabalho simultâneo (não sequencial) sobre diferentes planos da pintura.
Após a aplicação do revestimento, geralmente de cola e cal, sobre o tecido, a
praxe em pintura era cobrir a tela com uma primeira camada de tinta – imprimatura – que
receberia, na sequência, o primeiro esboço da composição, o qual, no tempo de Rembrandt,
era chamado de “cor morta” (um sinônimo de maniera lavata), devido às variações tonais
limitadas a um único matiz (geralmente cinzas ou marrons). O Rembrandt tardio tem o hábito
de aplicar, sobre esta primeira camada homogênea ou imprimatura, ainda outra na área
reservada aos rostos, deixada visível, depois, em zonas de sombra ou luz. Geralmente, essa
segunda cor de base não corresponde à aparência final do que está sendo representado - o

senno raso, il velluto e il broccato (...)” (ARETINO, Lettere sull’arte, II, pp. 106-8 apud SOHM: 2007, p. 188,
nota 35).
297
Ver: WITTKOWER, Margot e Rudolph. L’opulence de Titien et son astuce financière. In : _____. Les
enfants de Saturne : psychologie et comportement des artistes de l’Antiquité à la Révolution Française.
Trad.: Daniel Arasse. Paris: Macula, 2018, pp. 462-70.
298
WETERING: 1997, p. 215.
121

rosto -, ou seja, a cor foge às combinações então usuais de branco, amarelo, ocre, vermelhos e
preto azulado para a pele humana299.
O Rembrandt tardio aplica pinceladas gordas que não cobrem totalmente, antes
interagem com a subcamada fina e homogênea da imprimatura local. As áreas que
concentram mais tinta parecem estar em foco comparativamente às que concentram menos.
Rembrandt retomou uma tradição medieval, em desuso desde Jan Van Eyck, de aplicação de
texturas em relevo para representar diferentes superfícies, mas ele o fez sem manter a
literalidade da correspondência (por ex., colar um brocado numa representação de um
brocado). A textura era obtida com sucessivas camadas de tinta aplicadas com pincel. No
Rembrandt tardio essa prática é levada ao seu limite, a ponto de alguns espectadores, no séc.
XIX, não entendendo como tais pinturas eram feitas, declararem que sua fatura
“hermeticamente fechada” era produto de “magia”300.
O velho Rembrandt contrasta tanto as partes de empasto, “grosseiramente”
pintadas, de seus autorretratos – especificamente, o rosto – com outras mais finas e lisas no
fundo que se tem a impressão de que ele decidiu que a pintura estava pronta (ele assinou,
inclusive, o autorretrato de Washington) num estágio não muito avançado do processo. Tais
quadros tomavam-lhe menos tempo. Quando jovem, ele trabalhava em giornate301, sobre cada
parte da pintura sucessivamente e de modo sistemático, do fundo ao primeiro plano da
composição. Para tanto, preparava sua paleta apenas com as cores que usaria no momento,
naquele trecho específico302. Wetering afirma que, ao contrário, um trabalho simultâneo,
voltado ao todo, teria prevalecido em seu período tardio, embora não necessariamente num
processo contínuo, que prescrevesse uma paleta “completa” numa etapa “única”, como
ocorrerá na arte moderna.

299
Rembrandt usava, antes, um verde acinzentado. Para um comentário sobre essas fórmulas de ateliê no seu
tempo, ver id., p. 147.
300
Essa era a opinião do connoisseur alemão, residindo em Paris, Edouard Kollof, em texto sobre o artista
publicado em 1854 (“das hermetisch versiegelte Machwerke seiner Bilder sei eine Zauberei”), apud
WETERING: 1997, p. 155. Delacroix também se refere, embora sem foco numa fase específica, “à magia (...) do
desenho expressivo de Rembrandt” nos diários (grifo nosso, 19 fev. 1857, Journal, I, p. 1112).
301
Termo italiano que designava uma seção de gesso úmido adicionada a uma pintura a fresco em curso para ser
preenchida, pelo pintor, com um fragmento da imagem durante um dia de trabalho.
302
Wetering, como resultado de um estudo experimental no qual pintou um retrato usando os mesmos pigmentos
e pinceis de Rembrandt, sugeriu que o artista trabalhava por etapas, a cada vez com o foco numa parte da tela.
Isso porque os pigmentos que o especialista usou foram detectados, pelo exame de raio-X, em toda a extensão de
sua tela, ao passo que, no holandês, eles foram acusados, pelo mesmo exame, em seções ou ilhas bem definidas
compondo misturas relativamente simples. Wetering colocou todos os pigmentos na mesma paleta e não limpou
os pincéis tão bem como pensara. Daí a ideia do uso de diferentes paletas e de pinceis sempre “renovados” em
diferentes partes da pintura de Rembrandt.
122

Wetering defende que o método tardio de Rembrandt, apesar de levar a um


resultado aparentemente arbitrário, fundava-se em escolhas conscientes e deliberadas.
Delacroix chama o inachevé de Rembrandt de uma “licença pitoresca” que conduz a “efeitos
os mais sublimes”303. Ele pondera que Rembrandt deveria começar um quadro, como Ticiano,
sem saber como acabaria, de modo que sua impetuosidade (emportements) era menos o
resultado de cálculo e intenção do que de tâtonnements successifs304. De fato, como vimos,
Rembrandt não executava estudos preparatórios. Se o grand Hollandais tivesse se limitado,
como Rafael, a este “hábito de ateliê”, ele não teria alcançado “a força da pantomina e do
efeito que transforma suas cenas na verdadeira expressão da natureza”305. Talvez, no futuro,
continua Delacroix, descobriremos que Rembrandt é um pintor muito maior do que o studieux
élève du Pérugin. Contudo, ele rapidamente emenda, para atenuar essa “blasfêmia”, que isso
não significa um partido decididamente tomado, apenas que, na medida em que envelhece,
encontra “o mais belo e raro da vida” na verdade (e não, subentende-se, na correção ou
perfeição).
Adiante nos diários, ele faz um comentário que mostra que analisou com atenção
os retratos de Rembrandt (poderia tê-lo feito no Louvre, onde se encontra, desde o séc. XVII,
um dos seus autorretratos da fase tardia, fig. 110). Olhando para o retrato que ele mesmo
pintou do colecionador Alfred Bruyas (1853, Musée Fabre, Montpellier), Delacroix imagina
como Rembrandt o teria pintado: mostrando principalmente a cabeça, com meras indicações
das mãos e da roupa. Em seguida, confessa que, apesar de admirar muito o “método que deixa
ver os objetos segundo sua importância”, sua natureza pende mais para a claridade dos
italianos, e cita Veronèse (“o nec plus ultra do rendu”). No fundo, é como se ele tivesse
desejado – e reconhecidamente fracassado – ao fazer um retrato no estilo do holandês.
Delacroix afirma que o tipo de sacrifício dos detalhes que busca em suas telas é
“infinitamente mais delicado que o da maneira de Rembrandt”306. Na verdade, um modelo do

303
Journal, I, p. 550.
304
Journal, I, p. 551. Mais tarde, ele afirma que suas “felizes negligências” são fruto tanto de cálculo quanto do
instinto (29 out. 1857, Journal, I, p. 1187).
305
Journal, I, p. 566.
306
Journal, I, p. 641.
123

que ele quer expressar lhe escapa: Poussin (o nome que lhe vem à mente de imediato,
provavelmente porque estava escrevendo um artigo sobre ele) era muito detalhista307.
Nicolas Poussin (1594-1665) pintou As Quatro Estações, como Delacroix,
primeiro como personificações, em torno de 1635308, e depois, no fim da vida, entre 1660 e
1664, como narrativas. Enviou-as de Roma a Paris, ao duque de Richelieu, o comitente, um
ano antes de morrer. Quando começou o ciclo, escreveu a Chantelou: “Não passo um dia sem
dor e o tremor de meus membros aumenta a cada ano” (2 de agosto de 1660). Um ano após tê-
lo terminado, escreveu ao abade Nicaise: “Deixei os pinceis para sempre. Só me resta morrer”
(26 de julho 1665, morre em 19 de novembro)309. Alguns autores consideram-na o seu
“testamento espiritual”, ou seja, imagens emblemáticas das reflexões de um homem que sabe
que sua morte é iminente.
Delacroix, em seu artigo sobre Poussin, nota que, no fim da vida, a inteligência do
seu compatriota continuava aguçada como sempre, embora a execução de seus quadros se
ressentisse do tremor de suas mãos. Ele cita um trecho de uma carta na qual o próprio Poussin
reconhece que, em sua prática pictórica tardia, a inteligência deveria compensar o declínio
físico:

“Se a mão me quisesse obedecer poderia, creio, conduzi-la melhor do que nunca;
mas tenho com demasiada frequência a ocasião de dizer o que dizia Temístocles,
suspirando, sobre o fim de sua vida, que o homem declina e vai-se quando está
pronto a fazer o melhor. Não me desanimo por conta disso, porque, enquanto a
cabeça estiver boa, ainda que sua serva esteja débil, é necessário que esta última
observe as melhores e mais excelentes práticas artísticas, as quais são do domínio da
outra” (POUSSIN apud DELACROIX, Œuvres littéraires, II, p. 101).

Enquanto Delacroix, na série para Hartmann, escolhe temas da mitologia clássica


ligados à tradição iconográfica consagrada, Poussin volta-se a temas bíblicos. Com base na
análise da exegese bíblica do séc. XVII, especialmente os comentários de Louis Lemaître de

307
Interessante notar, neste ponto, que no verbete “PENSÉE (PREMIÈRE PENSÉE)”, que sucede
imediatamente o “ÉBAUCHE” em seu projeto de Dicionário de Belas-Artes, Delacroix cita exatamente estes
três artistas, nessa ordem, Rafael, Rembrandt e Poussin: « (…) je nome exprès ceux-ci parce qu’ils ont brillé
surtout par la pensée. [Ils] jettent sur le papier quelques traits : il semble que pas un ne soit indifférent. Pour des
yeux intelligents, la vie déjà est partout, et rien dans le développement de ce thème, en apparence si vague, ne
s’écartera de cette conception, à peine éclose au jour et complète déjà » (26 e 27 jan. 1857, Journal, I, pp. 1088-
89). Van de Wetering emite uma opinião semelhante quando afirma que “o estágio da ‘cor-morta’ [primeiro
esboço na tela] não era, em Rembrandt, um simples estágio de transição, mas um todo provisoriamente
completo” (1997:27).
308
Apolo autorizando a condução de seu carro por Fáeton (Gemäldegalerie, Berlim). Ilustração do trecho das
Metamorfoses (II, 27-30) (fig. 38).
309
POUSSIN, Nicolas; BLUNT, Anthony (éd.). Lettres et propos sur l’art. Paris: Hermann, 1964, pp. 170 e
171.
124

Sacy, Nicolas Milovanovic (2014) afirma que, nas paisagens históricas das Quatro Estações,
Poussin alude a episódios do Velho Testamento que prenunciam, todos, a vinda de Cristo, o
redentor da humanidade. Assim, Cristo é aquele que irá redimir Adão, no quadro da
Primavera (Sacy, Genèse, 1672, p. 175); ele é o descendente de Obed, avô de David e filho
de Rute e Boaz, que será sacrificado no monte Gólgota, no quadro do Verão (Isaías, 16, 1);
seu sangue correrá na crucificação como o suco da uva pendurada na barra que os batedores
de Moisés trazem da terra prometida, no quadro do Outono (Sacy, 1688, p. 170); sua cruz será
feita da madeira da arca que salvou o homem do Dilúvio, no quadro do Inverno (Sacy,
Genèse, 1672, p. 324). De fato, nesta série de Poussin, quatro de suas últimas obras, há uma
dimensão espiritual senão evidente, ao menos latente.
Lee Johnson (1998) sublinha que Delacroix, em sua última fase, entre 1847 e
1863, retoma e varia temas da juventude e maturidade – não se trata, portanto, de ruptura, mas
de retorno ao início. Ele observa os dois extremos de um parêntese que o tema das Estações
representa em sua carreira e distingue a série tardia por “uma concepção mais dinâmica e
complexa”, mais “aberta”, em relação àquelas “trabalhadas um pouco demais” nos anos
1820310. Depois, o autor dirige a atenção às figuras das serpentes no semicírculo do Inverno,
da série para Talma e na tela da Primavera, da série para Hartmann, a qual contém, como
vimos, uma citação do Orfeu e Eurídice, de Poussin, com a serpente semioculta na relva.
Poussin pintou outras duas serpentes no quadro do Dilúvio, representando o
Inverno (e nenhuma no de Adão e Eva no Paraíso ou Primavera, onde esperaríamos encontrá-
la), criando um enigma. Milovanovic interpreta a que está enrolada na árvore, ao alto à direita,
como a serpente de bronze que prefigura a crucificação de Cristo em Números (21, 8-9):
“Quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze,
permanecia vivo”. Para explicar a segunda, maior e mais visível na parte direita do quadro, o
autor recorre a uma passagem de Agostinho (Contra Fausto, Livro XII, cap. 28), em que
afirma que as duas serpentes do Dilúvio simbolizam a morte e o renascimento da terra311. De
modo semelhante, já foi sugerido que Poussin teria feito a serpente do Paraíso pular para o

310
JOHNSON, Lee. Les dernières œuvres: continuités et variations. In: POMARÈDE; SÉRULLAZ: 1998, p. 33.
Petra ten-Doesschate Chu, divide a produção de Delacroix em três fases (The early Salon paintings, The Master
e The Late Work) e descreve a última como o momento em que o artista alcança uma nova
“simplicidade”, baseada numa confiança ainda maior no ébauche: “Nothing we see here is different from
Delacroix’s earlier pictorial practice, but there is a new simplicity in the juxtaposition of complementary color.
This new simplicity of effect, which relies on the initial lay-in of color rather than meticulous detailing of the
final layer, is also visible in other paintings of the same period (…)” (WRIGHT (ed.): 2001, p. 106).
311
MILOVANOVIC: 2014, p. 16.
125

quadro do Dilúvio como forma de aludir ao fim como um reinício. Delacroix observa, neste
último quadro, “ce serpent (encore un serpent) auteur des maux de toute notre race”312. Ele
considerou-o, ainda, uma obra-prima de concepção em seu artigo de 1853:

“Os últimos quadros de Poussin ressentem-se deste tremor de sua mão, do qual ele
reclama várias vezes nas suas últimas cartas, nós o notamos sobretudo em suas
quatro composições das Estações, que estão no Louvre e entre as quais uma,
representando o Inverno, é o famoso Dilúvio, uma de suas mais belas
concepções.”313

Johnson, então, depois de aludir às serpentes no Inverno para Talma, na


Primavera para Hartmann, no Orfeu e Eurídice de Poussin e, poderíamos acrescentar,
também no seu Inverno ou Dilúvio, menciona, ainda, as serpentes de pinturas tardias de
Delacroix de animália (por exemplo, a de 1856 do Folkwang Musem, Essen, ou a de c. 1858,
da Kunsthalle de Hamburgo, fig. 112), bem como a colossal e fantástica do Apolo matando a
serpente Píton (1850-1, Musée du Louvre). Na mesma época em que realizava esta última,
Delacroix candidatou-se pela sexta vez a uma cadeira no Instituto e, novamente, perdeu.
Irritado, teria dito ao seu assistente, durante uma das sessões de trabalho: “Vamos, coragem, é
preciso vencer as serpentes!”314 Se no Inverno de Talma a serpente é um elemento simbólico
semi-decorativo, progressivamente, em sua última fase, até a Primavera de Hartmann, ela vai
se tornando uma presença fatal e ameaçadora.
É difícil ir além disso e pensar nas telas das Quatro Estações Hartmann como
“testamentos espirituais”, na acepção profunda do termo. Não há nenhum sentido oculto a
desvelar, como em Poussin. Ambos trabalharam com relativa liberdade em suas respectivas
abordagens do tema – nem o duque de Richelieu, nem Hartmann parecem tê-los restringido
significativamente em suas escolhas. Mas o resultado em Poussin confirma, de fato, o
comentário que o escultor Gian Lorenzo Bernini fez, em 1665, diante do seu Cendres de

312
DELACROIX: Œuvres littéraires, « Des variations du beau », 1923 [1857], I, p. 51.
313
« Les derniers tableaux du Poussin se ressentent de ce tremblement de sa main dont il se plaint plusieurs fois
dans ses dernières lettres, on le remarque surtout dans ses quatre compositions de Saisons, qui sont au Louvre et
dont l’une, représentant l’Hiver, est le fameux Déluge, l’une de ses plus belles conceptions » (DELACROIX,
Œuvres littéraires, « Le Poussin », II, 1923 [1853], p. 102).
314
« Allons, courage, il faut écraser les serpents ! » (SILVESTRE, La Galerie Bruyas, p. 89). « Il faut écraser les
serpentes qui renaissent sans cesse au fur et à mesure que l’on entre dans la vie », citado no Journal d’Andrieu,
in: Journal, II, p. 1830.
126

Phocion (Walker Art Gallery, Liverpool): “questo è un pittore che lavora di là (dando duas
batidinhas na testa)!”315.
A série daquele que Delacroix considerava um dos pais da pintura francesa316,
paira, como vimos no capítulo anterior, sobre a sua, no sentido de que ele preserva a
abordagem de Poussin da alegoria pela representação de uma cena de história, transpondo-a
(ou devolvendo-a), contudo, a um contexto pagão. No trecho de seu artigo citado acima, ele
descreve a fatura de Poussin nas Estações de modo objetivo, mas parece, ao mesmo tempo,
ter se identificado com o artista que, velho, doente, próximo à morte, ainda encontrava
energia para pintar obras-primas.
Em 2 de março de 1671, Jean-Baptiste de Champaigne dedicou uma conferência
ao Rute e Boaz (Verão) na Academia Real de Pintura e Escultura. Nela, ele defendeu o quadro
contra a crítica de não estar suficientemente acabado (fini) em comparação às outras obras do
artista, afirmando que “(…) deixamos com frequência menos acabado o conjunto à força de
nos atermos demais às partes individualmente”. Assim,

“(…) terminando excessivamente as partes, desviamos a mente em longas paradas,


impedindo-a por um grande tempo de aplicar-se ao mais essencial e àquilo que a
pintura tem de maior e de mais magnífico em si.”317

Ou seja, se Poussin tivesse acabado demais as partes, provavelmente teria deixado


inacabado o conjunto. Delacroix emite uma opinião semelhante quando pensa sobre a
necessidade dos sacrifícios na expressão da ideia no quadro final. Ele nota que, com
frequência, dificuldades ou considerações secundárias fazem com que o pintor se desvie de
sua intenção inicial, expressa no esboço ou no croquis, o “ovo ou embrião da ideia”, o qual,
por sua vez, ainda não é algo completo. Ele contém tudo, continua Delacroix, mas é preciso
extrair-lhe este “tudo”, o que não significa simplesmente reunir cada uma das partes. Pois o

315
Apud ROSENBERG, Pierre, Poussin et la Nature, discours prononcé à l’Académie Française, le 24 octobre
2006 ; ver também: DELACROIX, Œuvres littéraires, « Le Poussin », II, 1923 [1853], p. 87.
316
Delacroix associa a tradição pictórica francesa à decadência da escola italiana, especialmente aos Carracci e
seus seguidores, e afirma que somente Poussin e Eustache Le Sueur resistiram a ela. Diferente desses italianos,
Poussin não fez nenhuma concessão ao desejo de brilhar, tanto em seu conhecimento, quanto em sua habilidade
técnica. Assim, mesmo tendo passado a maior parte da vida em Roma, Poussin era “o menos italiano dos
pintores”. Delacroix o considera tão original que foi, provavelmente, o único grande artista a não imitar
Michelangelo. Ele escreve que Poussin e Le Sueur, “os pais da pintura francesa”, prepararam o caminho para as
escolas modernas na França, levando a David, Prudhon e Gros. (DELACROIX, Œuvres littéraires, « Le
Poussin », II, 1923 [1853], pp. 57-104.)
317
« (…) l’on rend souvent moins fini le tout ensemble à force de s’attacher trop aux parties particulières. (…)
finissant extrêmement les parties, l’on détourne l’esprit par des longues arrêts, l’empêchant un grand temps de
s’appliquer au plus essentiel et à ce que la peinture a de plus grand et de plus magnifique en elle » in: MÉROT
(éd.): 2003, pp. 208-12.
127

que faz do esboço (croquis) a expressão por excelência da ideia não é tanto a supressão dos
detalhes, quanto a sua subordinação ao conjunto. A grande dificuldade do artista, então, é
retornar, no quadro, a esta subordinação dos detalhes que existe no esboço sem descuidar do
fato de que são eles mesmos que determinam a composição:

“(...) creio que os maiores artistas tiveram que lutar grandemente contra esta
dificuldade (...). Aqui mais do que nunca desponta o inconveniente de dar aos
detalhes, pela graça ou coqueteria da execução, um interesse tal que, em seguida,
arrependemo-nos mortalmente de sacrificá-los quando prejudicam o conjunto. (...) O
quadro composto sucessivamente de pedaços interligados, terminados com cuidado
e colocados ao lado uns dos outros, parece uma obra-prima e o cúmulo da
habilidade, uma vez que não esteja acabado, ou seja, que o campo não esteja
coberto: porque terminar, para estes pintores que se preocupam com cada detalhe
pintando-os sobre a tela, é ter preenchido esta tela. (...) o que parecia uma execução
somente precisa e conveniente se torna a aridez mesma pela ausência geral de
sacrifícios.”318

O esboço não é, nos grandes artistas, um “sonho” ou uma “nuvem confusa” ou um


“conjunto de linhas ininteligíveis”. Ele é uma espécie de ponto de origem ou de referência que
serve de guia durante o trabalho sobre a obra final, que mantém o artista fiel à sua própria
inspiração. Somente os grandes artistas, continua, “partem de um ponto fixo e é a esta
expressão pura que lhes é tão difícil retornar na execução longa ou rápida da obra”319. Note-se
que os sacrifícios não são uma questão de velocidade e instinto, mas de reflexão e
consciência. Reflexão cujo fim é a manutenção da força da primeira ideia e consciência cujo
fim é a resistência à tentação do detalhe.
E Delacroix acrescenta, ainda, que é somente com a experiência que o artista
desenvolve um sentido mais aguçado para o que é, de fato, importante. Sua convivência com
seus alunos e assistentes mostrara-lhe que os jovens são ainda muito apressados ou muito
vaidosos. Na entrada SACRIFICES do seu projeto de Dictionnaire, ele escreve: “O que é
necessário sacrificar, grande arte que os novatos não conhecem. Eles querem tudo mostrar”320.

318
« Je crois que les plus grands artistes ont eu à lutter grandement contre cette difficulté (…). Ici ressort plus
que jamais l’inconvénient de donner aux détails, par la grâce ou la coquetterie de l’exécution, un intérêt tel qu’on
regrette ensuite mortellement de les sacrifier quand ils nuisent à l’ensemble. (…) Le tableau, composés
successivement de pièces de rapport achevées avec soin et placé à cote les unes des autres, paraît un chef
d’œuvre et le comble de l’habileté tant qu’il n’est pas achevé, c’est-à-dire tant que le champ n’est pas couvert :
car finir, pour ces peintres qui finissent chaque détail en le posant sur la toile, c’est avoir couvert cette toile. (…)
ce qui semblait une exécution seulement précise et convenable devient la sécheresse même par l’absence
générale de sacrifices » (grifos do autor, 23 abr. 1854, Journal, I, p. 756).
319
« Chez les grands artistes, ce croquis n’est pas un songe, un nuage confus, il est autre chose qu’une réunion de
linéaments à peine saisissables ; les grands artistes seules partent d’un point fixe et c’est à cette expression pure
qu’il leur est si difficile de revenir dans l’exécution longue ou rapide de l’ouvrage” (Id.)
320
« Ce qu’il faut sacrifier, grand art qui ne connaissent pas les novices. Ils veulent tout montrer » (Journal, I, p.
1079).
128

3.3 Delacroix e o inacabado

“O próprio do homem é de inventar, de ser ele mesmo e não um outro.”


Théophile Thoré-Bürger, Musées de la Hollande, I, ix-x.

A venda das obras remanescentes nos ateliês de Delacroix de Paris e Champrosay,


após a sua morte, ocorreu em três seções – tableaux, dessins, gravures (eaux-
fortes/litographies) – durante o mês de fevereiro de 1864, no Hôtel Drouot, Paris. Elas foram
expostas ao público em geral um dia antes da venda e a um público seleto de amateurs, dois
dias antes. Lagrange comenta o evento em março, pouco depois de seu desfecho:

“O dia em que o ateliê de Eugène Delacroix (...) veio a esvaziar-se nas salas banais da casa de
leilões, quando vimos as paredes cobertas de estudos, de cópias, de quadros inacabados, de
composições interrompidas pela morte e todas palpitantes de vida, quando mais de seis mil
desenhos, escapando dos portfólios cheios, revelaram a todos os olhos as suas maravilhas,
atestando o trabalho fundamentado, fecundo, incessantemente renovado de uma existência de
pouco mais de cinquenta anos (...). Um novo artista se mostrava a todos (...). Foi uma revelação.

(...) Ter o que fosse de Delacroix, (...) esta foi a ambição de metade de Paris no mês passado. (...)
somente um grupo restrito de amigos íntimos podia conhecê-lo tal como sua venda o revelou,
porque um sentimento de intensa modéstia (pudeur jalouse), honrável num artista contestado,
obstinava-o a manter fechado o ateliê e os portfólios de onde saíram a público tantas luzes
repentinas. (...) parece que Eugène Delacroix, ao conservar completa a coleção de seus desenhos
(...), teve medo de perder uma parcela de sua personalidade. Ou talvez ele esperasse com confiança
a hora de uma reparação solene”321 (LAGRANGE, março de 1864 apud POMARÈDE et al., 1998,
p. 41).

Obras restritas às paredes de seu ateliê – esboços – vieram à público e foi possível
reavaliar o seu gênio, objeto de tantas críticas em vida. “Um novo artista se mostrava a
todos”, escreve Lagrange. Na seção de quadros inacabados do catálogo do leilão, figuram As
Quatro Estações pintadas para Hartmann, seguidas dos seus respectivos esquisses322. Pierre
Andrieu, assistente de Delacroix, realizou cópias dos esboços das quatro pinturas, que

321
« Le jour où l’atelier d’Eugène Delacroix (…) est venu se vider dans les salles banales de l’hôtel des ventes,
quand on a vu les murs couverts d’études, de copies, de tableaux inachevés, de compositions interrompues par la
mort et toutes palpitantes de vie, quand plus de six milles dessins, débordants des portefeuilles trop pleins, ont
étalé à tous les yeux leurs merveilles, attestant le travail soutenu, fécond, sans cesse renouvelé d’une existence de
cinquante années à peine (…). Un artiste nouveau se montrait à tous (…). C’était une révélation.
(…) Avoir un lambeau de Delacroix, (…) ça a été l’ambition de la moitié de Paris le mois dernier. (…) un
groupe restreint d’amis intimes pouvait seul le connaître tel que sa vente l’a révélé, parce qu’un sentiment de
pudeur jalouse, honorable chez un artiste contesté, s’obstinait à tenir fermés l’atelier et les portefeuilles d’où sont
sorties pour le public tant de soudaines lumières. (…) Il semble qu’Eugène Delacroix, en conservant complète la
collections de ses dessins (…), a eu peur de perdre une parcelle de sa personnalité. Ou peut-être attendait-il avec
confiance l’heure d’une réparation solennelle. »
322
Lotes 101 a 104, para os quadros, e 105 a 108, para os esboços pintados, Catalogue Vente Posthume
Delacroix, 1864, p. 16.
129

figuraram na sua própria venda póstuma323 e cuja comparação com os originais do mestre é
útil para pensar a hipótese de retoques alheios nas telas (figuras 115a, 115b e 115c).
A venda póstuma de Delacroix foi um verdadeiro acontecimento em Paris. Nela
estavam presentes literatos, críticos, artistas, amateurs (entre eles o irmão de Frédéric
Hartmann, o também colecionador Jacques Hartmann) e homens de estado os mais eminentes.
Um jornalista observa, um dia depois da última vacation da seção de pintura, que um grande
número de estudos diversos foi adjudicado a preços “relativement fort élevés”324. Phillipe
Burty, no La Presse, cita explicitamente os quadros das Estações, vendidos por 4.905 francos.
O autor frisa que se restringiu apenas à comunicação dos preços mais importantes e
acrescenta:

“O que confere a mais alta significação a esta venda são menos os preços elevados
do que a média em que se mantiveram os esboços (ébauches) os mais sumários. Um
Jesus dormindo durante a tempestade chegou a 1.570 francos, preço ao qual
Delacroix vendeu bem poucos de seus quadros, mesmo durante os últimos anos de
sua vida”325 (BURTY, La Presse, 20 fév. 1864).

Do mesmo modo, Charles Clément escreve, no Journal des débats, em agosto de


1864, que mesmo os esboços mais informes de Delacroix atingiram preços elevadíssimos:

“O que [Delacroix] teria pensado, no entanto, ele que era um tão justo apreciador
das coisas da arte, (…) se tivesse ouvido proclamar os preços escandalosos que
alcançaram, nesta venda que ficou famosa, alguns dos seus esboços os mais
informes? (…) Nenhuma ideia de especulação jamais passou pela sua cabeça. Todo
este barulho ter-lhe-ia desagradado”326 (Ch. Clément, Journal des débats politiques
et littéraires, 24 août 1864).

Certamente aquela “reavaliação da obra de Delacroix” foi medida também com


base na inflação dos preços de obras as mais banais durante essa venda. Depois dos
comentários irônicos de Feynert (“...admirer assez pour payer trop! Noble prodigalité,

323
DETRIMONT, M. P. (expert) ; TUAL, Léon (commissaire-priseur). Catalogue de tableaux par P. Andrieu
et de tableaux et esquisses par Bonignton, Géricault et Gros, tableaux et esquisses par Delacroix, le tout
composant sa collection…. 6-7 mai 1892, Hôtel Drouot, Paris, lotes 183 a 186. No catálogo são erroneamente
atribuídas a Delacroix. Lee Johnson (1986, III, pp. 65-67) afirma que são cópias dos esboços, não das telas finais
do mestre. Elas encontram-se hoje no Museum of Fine Arts, Boston.
324
Journal des débats, 21 février 1864.
325
« Ce qui donne une plus haute signification à cette vente, c’est moins les hauts prix que la moyenne à laquelle
se sont maintenues les ébauches les plus sommaires. Un Jésus endormi pendant la tempête a monté jusqu’à
1.570 francs, prix auquel Delacroix a vendu bien peu de ses tableaux, même pendant les dernières années de sa
vie. »
326
« Qu’aurait-il (Delacroix) pensé cependant lui si juste appréciateur des choses d’art, (…) s’il eût entendu
proclamer les prix scandaleux qu’ont atteints, à cette vente restée célèbre, quelques-unes de ses plus informes
ébauches ? (...) Aucune idée de spéculation n’a jamais effleuré sa pensée. Tout ce bruit lui eût déplut. »
130

louables folies, dont je suis tout heureux que notre temps soit encore capable”), o
L’Illustration publicou duas charges bastante emblemáticas do sentimento que tomou Paris e
a opinião pública durante e após a venda póstuma de Delacroix:

– Olhe, eis uma academia que comprei na – Eles se venderam muito bem, os quadros de
venda de Delacroix! – Não vejo mais do que Delacroix. – Meu caro, é preciso morrer para
os pés! – Não me surpreende! todas as suas poder viver da pintura.
pinturas subiram de tal modo na venda.

Tamanha foi a comoção diante de um artista tão injustiçado em vida, que a


Société Nationale des Beaux-Arts, por meio de uma comissão que incluía Théophile Gautier,
Louis Martinet, Charles Blanc, Philippe Burty e Paul de Saint-Victor, entre outros, foi
praticamente impelida a organizar uma exposição retrospectiva de sua obra327, que abriu no
aniversário de um ano de sua morte, em 13 de agosto de 1864, no Boulevard des Italiens (fig.
111). Nela figuraram algumas obras recém-vendidas no leilão, além de outras, de coleções
públicas e privadas. As Estações Hartmann e dois de seus esboços – o Verão e o Outono –,
então pertencentes a Étienne-François Haro (1827-1897), o marchand de couleurs attitré de
Delacroix que as adquiriu na venda póstuma, bem como os quatro dessus-de-portes das

327
Conforme lemos no texto do catálogo: « Malgré quelques opinions contraires, il était urgent de faire
immédiatement l'exposition des œuvres d'Eugène Delacroix ; on avait été certainement frappé du travail
prodigieux de ce peintre, mais un moment de réaction survenant, on eût été bien aise peut-être de s'emparer des
ébauches éparpillées à la vente pour s'en faire des armes contre sa gloire » (ARPINGNY, Exposition des Œuvres
d’Eugène Delacroix, 1864, p. 6).
131

Estações executados em 1821, então pertencentes a um descendente de Talma, Frédéric Jouët,


foram exibidos na mostra328. Depois da breve aparição 24 horas antes do leilão póstumo, essa
foi a primeira vez que as Estações Hartmann vieram a público, junto com dois de seus
esboços.
Das cerca de 300 obras da exposição, 30 foram classificadas como “esquisses” e 8
como “études” na seção de quadros do catálogo (um deles “esquisse terminée”, outro “étude
peinte”) e, na seção de desenhos, 3 como “esquisses” e 10 como “études”. Diante da
avalanche de cerca de 6 mil desenhos, aquarelas e pasteis da venda póstuma329 era um número
bastante modesto. Ainda assim, confrontado com um trabalho de cozinha tão intenso, o
grande público pôde verificar que a aparente improvisação na pintura de Delacroix era algo
bastante relativo. O que chocou, no entanto, foi o fato de obras dessa cozinha terem alcançado
preços próximos ao de obras finais.
No catálogo da venda póstuma, a fonte do texto de Lagrange citado no início
desta seção, Phillipe Burty afirma que Delacroix mantinha seus cartons (esboços e estudos em
diferentes técnicas) bem guardados em seu atelier (“ele só os mostrava aos seus alunos e
amigos mais íntimos”330), na esperança de que, quando viessem a público, testemunhassem o
seu grande trabalho de pesquisa, o que leva a crer que o próprio Delacroix cultivou, de certo
modo, a sua lenda de incompreendido, provavelmente porque, orgulhoso e consciente de seu
valor, não sentia a necessidade de se defender das acusações de incorreção no desenho
apresentando a seus detratores “provas”.
No segundo catálogo de suas obras completas, de 1885, Ernest Chesneau afirmou
que as toiles ébauche para Hartmann teriam sido retocadas pouco depois da venda331,
provavelmente, então, quando estavam na posse de Haro, que as repassa a Durand-Ruel em
1873. Essas interferências teriam sido eliminadas posteriormente, no séc. XX, em trabalhos de
limpeza. Análises técnicas feitas pelo C2RMF (Centre de Recherche et de Restauration des
Musées de France), em Versailles, em fevereiro de 1998, não encontraram vestígio de
restaurações anteriores feitas sobre as pinturas (à parte em alguns pontos que sofreram danos
materiais), mas acusaram a possibilidade de terem passado por limpezas há bastante tempo.

328
Id., pp. 22 (n. 50 a 55) e 41 (n. 152 a 155).
329
BURTY, Phillipe, Catalogue Vente Après-Décès Delacroix, p. XII.
330
« Il ne les ouvrait que pour ses élèves et ses amis les plus intimes » id., p. XIV. Burty descreve uma parte
dessas obras no La Presse : « Une très grande partie de ces dessins étaient des calques sur papier végétal, que
Delacroix prenait après avoir ébauché sa composition. »
331
ROBAUT: 1885, p. 383.
132

Numa gravura de 1873 de Laguillermie que reproduz o quadro do Inverno, no


tempo em que pertencia a Durand-Ruel, vemos um pavão ao lado de Juno (fig. 116a). Teria
sido uma espécie de licença poética do gravurista? Ou havia neste quadro, de fato, um pavão
ao lado de Juno que foi eliminado depois, durante uma limpeza? Na verdade, é possível que
Delacroix tenha planejado pintar o pavão, pois no seu esboço para o quadro, assim como na
respectiva cópia de Pierre Andrieu, vemos uma forma mais pronunciada nessa região,
semelhante à desse animal (figuras 116b e 116c). Nas gravuras dos outros três quadros da
série, Laguillermie “completou” eventualmente alguns elementos, como os cães de Acteão, no
Verão (fig. 117), mas, em geral, as composições são iguais às que vemos hoje.
Num artigo de revista, de cunho informativo, sem nome e sem data, dentro dos
arquivos do departamento de pinturas do Louvre (sabemos apenas que veio do Fonds Stephen
de Prémorel Higgons, 2009), o autor afirma que o expert Gaston Lévi (†1957) havia feito uma
limpeza nos quadros quando ainda pertenciam a Albert Gallatin, em Nova York, pouco antes
de serem vendidos a Wildenstein Gallery, em torno do início dos anos 1940. Segundo o
artigo, trata-se de um restaurador experiente, que já havia trabalhado sobre dois Renoirs, um
na coleção de Duncan Phillips (1886-1966) e outro na Frick Collection332. O Inverno de
Delacroix é o único quadro que foi reentelado, por conta de uma déchirure (rasgo) na parte
central, em 1952, quando integrou a exposição The Romantic Circle, no Wadsworth
Atheneum (Hartford, Connecticut), pouco depois de a série ser adquirida por Pietro Maria
Bardi para o MASP333.

332
“The first question a Delacroix admirer would ask is whether the four great canvases of the Seasons, from the
Gallatin Collection, are included – and one has reason to say that they are seen for the first time. In a way, they
have been seen here for over forty years, but, until now, it was always through a thick coat of varnish, or several
coats, amidst which was repainting from an early date, when some unscrupulous if skillful hand added ‘finish’,
in order to make the works more saleable. The death of the artist had prevented his carrying them to final
completion, though what he has given us – a veritable testament – is his art in its final splendor. The robust
fullness his impasto made the cleaning off of repaints, performed by M. Gaston Lévi, a far simpler matter for
that expert than his work with Mr. Phillips’s great Renoir of the Canotiers, or the perhaps even more delicate
operation on the same painter’s canvas in the Frick Collection. And so, the restoration of masterpieces always
being a just cause for nervousness, it is good to report that it was here crowned by complete and beneficent
success.” Lévi possuía, nos anos 1930, um ateliê de restauração em Nova York, na 16 West 56th St. Uma
menção ao reentelamento do Renoir de Duncan Phillips, Le déjeuner des canotiers (1880-1), é feita pelo
colecionador em uma carta a Walter Pach, datada de 26 de fevereiro de 1940. Phillips faz uma proposta
alternativa de empréstimo de algumas obras de sua coleção: “Our Renoir of the Canotiers has been shown so
often in New York and also throughout the country that I feel we should not send it again. I have made plans to
have it relined this spring in Washington and Mr. Gaston Levi is coming for the purpose” (PEARLMAN (ed.),
Walter Pach Letters, 1906-1958, p. 231). Se esse procedimento ocorreu na primavera de 1940, a limpeza das
telas de Delacroix deve ser posterior, podendo ser datada entre a metade do ano de 1940 e janeiro de 1941 (ver o
Apêndice 1).
333
Conforme sintetizado no Apêndice 1. As telas foram compradas por Albert Gallatin, em 1910, na venda de
James Inglis. Passaram à Wildenstein Gallery, Nova York, não antes de 1941 (cf. troca de e-mails com o Sr.
Joseph Baillio, diretor sênior da Wildenstein Gallery, Nova York). Bardi as comprou de Wildenstein em 1952.
133

Uma vez os esquisses peintes terminados (figuras 138 a 141), talvez mesmo
aprovados por Hartmann, Delacroix passou às grandes telas. Aplicou sobre elas uma
imprimatura cinza homogênea provavelmente oleosa, fina e bastante lisa, deixando a textura
da tela aparente. Sobre essa preparação de base, habitualmente ele teria feito um primeiro
esboço marcando áreas de cor mais claras e mais escuras e delimitando rapidamente figura e
fundo ou os diferentes planos da composição em tons homogêneos (grisaille). Depois, definiu
uma cor local para cada coisa (localité des chairs, localité des arbres, etc.) e uma cor de
meio-tom (demi-teinte) para fazer as passagens das áreas mais iluminadas às menos. Assim,
ele foi trabalhando com mais atenção em cada parte, embora mais ou menos simultaneamente,
de modo que não há uma discrepância tão grande, do ponto de vista do acabamento, entre
figura e fundo em cada uma das telas. Há, contudo, maior concentração de tinta nas carnações
e nas personagens do que nas paisagens, tratadas de modo mais amplo.
Delacroix procede à adição e justaposição de pinceladas por hachuras, um
processo que chamava, segundo Frédéric Villot, de flochetage334. Isso pressupõe um método
chamado “dessin par millieux” ou “par les boules” ou, ainda, “système des œufs”335, usado
especialmente em croquis, que ele aplicava à pintura modelando as massas com movimentos
repetitivos ovalares ou de acordo com a orientação geral do objeto no espaço. Ao fazer isso,
Delacroix não misturava as tintas na tela, de modo que a diferença entre tons e semitons de
cor pura produz, tomada a devida distância, uma vibração cromática em razão da exaltação
mútua, pelo contraste, entre cores vizinhas. A percepção de Gautier da técnica da flochetage é
justa:

“Seu desenho, que foi com tanta frequência criticado e que é muito sábio, apesar das
incorreções visíveis que o pintor mais medíocre pode notar, ondulante e trêmulo
como uma flama em torno das formas que evita delimitar para não constranger o
movimento; o contorno quebra mais do que fixa o impulso de um braço erguido ou
estendido. A cor se acumula no lugar que é o ponto central da ação, porque, antes de

334
Um neologismo criado a partir do verbo “flocher”, “cair molemente”; em sua forma adjetivada, aplicado a um
tecido, significa “trama frouxa”.
335
Journal, I, p. 430 (10 mar. 1849) ; Planet, Souvenirs, 1929, p. 33 (Louis de Planet, assistente de Delacroix,
afirma que « …de cette manière, sans avoir mis les détails, on a déjà l'aspect, le grand mouvement, les grands
plans, et sur les grands plans on dessine avec plus de sûreté » e, na sequência, ele explica que Delacroix
orientava-o a aplicá-lo mesmo às grisailles : « on peut appliquer ce système aux grisailles ; ainsi on commence à
concentrer sa couleur en empâtant vigoureusement ces espaces ovoïdes ... »); SILVESTRE, Histoire des artistes
vivants, 1856, p. 50 ; PIOT, Les palettes de Delacroix, 1931, p. 47.
134

tudo, Delacroix quer dar a sensação da coisa que representa em sua essência mesma
e não em sua realidade fotográfica”336 (Moniteur Universel, 18 nov. 1864).

E também a de Théophile Silvestre:

“Ao invés de escrever o contorno, Delacroix o faz sentir por meio de uma pincelada
ondulante, afim de conservar-lhe sua prestigiosa mobilidade e prodigalizar no
sentido da natureza, cuja elasticidade é infinita, enquanto os lineistas (linéistes)
exclusivos, Ingres e sua escola, por exemplo, fazem dele um fio de ferro”337
(Histoire des artistes vivants, 1856, p. 53).

Frédéric Villot faz uma analogia igualmente útil para entender o método da
flochetage, comparando o pincel de Delacroix a uma lançadeira de tear e a pintura resultante a
um “tecido cujos fios multicoloridos se cruzam e interrompem a todo o instante”338.
Delacroix dizia que depois de esboçar a composição e organizar as tintas na
paleta, seu quadro estava pronto339. Quanto ao preparo da paleta para as Estações Hartmann,
ele realizou, no conjunto e até o momento da interrupção, uma harmonia mais suave do que
de costume, em que as complementares verde-vermelho ou outros pares contrastantes
conduzem o conjunto, usando, ao invés disso, brancos puros ou levemente tingidos de um tom
malva nas áreas de luz mais extremas em contraste com malvas amarronzados nas partes
escuras das peles. Há uma intensa gama de verdes e azuis nos fundos de paisagens naturais
contrastando com tons mais quentes usados nas figuras. Alguns detalhes, como joias, foram
tratados com um pincel mais fino e com mais empasto. Quanto menor o detalhe iluminado,
maior a densidade de matéria.
No relatório da equipe de conservação do C2RMF, o único quadro que colocou
problemas quanto à autoria plena foi o do Outono, na figura do anjo sobrevoando Baco e
Ariadne, mas trata-se de interpretação do técnico que o redigiu, com base no arranjo atípico

336
« Son dessin qu’on a si souvent critiqué, et qui est très savant malgré des visibles incorrections que le
moindre rapin peut relever, ondoie et tremble comme une flamme autour des formes qu’il se garde de délimiter
pour n’en pas gêner le mouvement ; le contour craque plutôt que d’arrêter l’élan d’un bras levé ou tendu. La
couleur s’entasse à l’endroit qui est le point central de l’action, car, avant tout, Delacroix veut donner la
sensation de la chose qu’il représente dans son essence même et non dans sa réalité photographique. »
337
« Au lieu d’écrire le contour, Delacroix le fait sentir par une touche ondoyante, afin de lui laisser sa
prestigieuse mobilité et pour abonder dans le sens de la nature, dont l’élasticité est infinie, tandis que les linéistes
exclusifs, Ingres et son école, par exemple, en font un fil de fer. »
338
« Au lieu de poser la couleur juste à sa place, brillante et pure, il entrelace les teintes, les rompt et, assimilant
le pinceau à une navette, cherche à former un tissu, dont les fils multicolores se croisent et s’interrompent à
chaque instant » (VILLOT apud MOREAU-NÉLATON, Étienne, Delacroix, raconté par lui-même, I, 1916,
p. 182).
339
ANDRIEU apud PIOT: 1936, p. 35.
135

das pinceladas (finissions atypique) em comparação a outros elementos figurados no conjunto


da série, nenhuma análise mais aprofundada tendo sido conduzida.
Pela observação das fotografias em infravermelho (figuras 118 a 121), os quadros
mais trabalhados, nessa ordem de gradação, foram a Primavera, o mais avançado, o Verão,
um pouco menos (especialmente os primeiros planos), o Outono um pouco menos que os
anteriores e o Inverno, ainda menos. Provavelmente, então, o pintor foi seguindo o curso das
estações ao longo do ano na simultaneidade mesma de seu ataque às quatro telas. As figuras
de Eurídice e Diana são as mais acabadas, o que leva a crer que, nessa abordagem simultânea
das diferentes partes de uma mesma tela e de telas diferentes, Delacroix concentrava-se
inicialmente nas figuras principais. Apesar das sucessivas interrupções que estendem o
período de produção de 1856 a 1863, ele não teria passado, no total, mais do que um mês,
efetivamente, pintando.
Comparando cada quadro com seu respectivo esboço em menores dimensões (por
exemplo, figuras 115a e 115b), é possível notar como seu trabalho sobre a obra final perde um
pouco em energia, mas, como ele mesmo teria observado, vai ganhando, por outro lado, em
expressão. Mesmo o impacto das cores é reduzido nas obras maiores. Podemos ter uma noção
mais clara disso comparando um quadro terminado de sua última fase, o La Chasse aux lions
(1855, Musée des Beaux-Arts de Bordeaux, figuras 125a e 125b), aos seus respectivos
esboços, um mais sumário e outro mais acabado (Musée D’Orsay e Museu Nacional de
Estocolmo, figuras 123 e 124).
Delacroix pintava seguindo dois princípios fundamentais: (1) manutenção de
contrastes; “plus d’opposition, plus d’éclat”, escreve340 e (2) busca da unidade por um sistema
de reflexos. A rigor, segundo ele, não é a luz e a sombra o que define os volumes dos objetos
no espaço, mas sim um sistema de reflexos mútuos. Neste trecho dos diários, ele imagina uma
cena sem luz e sem sombras pronunciadas para mostrar o quanto estes dois fenômenos não
passam de acidentes sobre a constância das formas enquanto aglomerados de cores:

“É preciso esboçar o quadro como estaria o tema num tempo coberto, sem sol, sem
sombras cortadas. Não há radicalmente nem claros nem escuros. Há uma massa
colorida para cada objeto, refletida diferentemente de todos os lados. Suponha que
sobre esta cena, que se passa ao ar livre sob um tempo nublado, um raio de sol
clareie de repente os objetos: você terá claros e escuros como o entendemos, mas são
puros acidentes”341 (5 de maio de 1852, Journal, II, p. 1723).

340
Journal, I, p. 551.
341
« Il faut ébaucher le tableau comme serait le sujet par un temps couvert, sans soleil, sans ombres tranchées. Il
n’y a radicalement ni claires ni ombres. Il y a une masse colorée pour chaque objet, reflétée différemment de
136

Segundo Delacroix, o pintor deve buscar a saillie, a ilusão da projeção das formas,
pelo contraste dentro de um sistema geral de reflexos (ou continuidades) e não por gradações
ou passagens dentro de um sistema geral de interrupções (ou descontinuidades). Nesse
sentido, Delacroix separa o claro-escuro da cor, “blanc dans les ombres”, escreve em outro
momento342, e busca harmonias que a natureza produz raramente, embora seja possível
encontrá-las no mundo industrial.
Alexandre Dumas, numa conferência em 1864343, conta que, em certa ocasião,
Delacroix lutava para dar a um tecido amarelo os efeitos luminosos que havia admirado em
Rubens. Frustrado em suas tentativas, decidiu pegar um fiacre e ir ao Louvre para ver os
quadros sur place. No entanto, nem chegou a descer do carro que, conforme a moda dos anos
1830, fora pintado de amarelo. Observando o seu interior, Delacroix compreendera que as
partes escuras tendiam ao violeta. Ele teria se dado conta ali, segundo a imagem criada por
Dumas, de que a intensidade de uma cor aumentava pelo contraste com a sua complementar.
No caso das Estações Hartmann, contudo, a paleta é mais contida, mais ancorada
na calma das paisagens naturais expressa numa luminosidade difusa. Não se trata de uma
escolha sistemática em sua última fase. Ele poderia estar se adequando ao gosto do comitente,
que desejava, quando repassou a encomenda a Jean-François Millet anos depois da morte de
Delacroix, por exemplo, que as telas fossem muito claras, para compensar a pouca luz “de
nossas casas burguesas”, iluminadas por chamas a gás ou óleo e cujo raio de luz não
ultrapassava muito o halo da lamparina344. De qualquer modo, mesmo se tivesse terminado as
telas, a harmonia cromática de cada uma já se encontra definida em seu estado atual e o
resultado final, nesse aspecto, não fugiria muito ao que vemos hoje. Se comparamos a paleta
das Estações com a do Sardanapalo (1828, Musée du Louvre) ou das Mulheres de Argel
(1834, Musée du Louvre, figuras 128a e 128b), essa “continência” na série para Hartmann
fica mais evidente.

tous côtés. Supposez que sur cette scène, qui se passe en plein air par un temps gris, un rayon de soleil éclaire
tout à coup les objets : vous aurez des clairs et des ombres comme on l’entend, mais ce sont des purs accidents. »
342
« Très refletées les ombres – blanc dans les ombres » (Tanger, 21 fev. 1832, Journal, I, p. 209).
343
DUMAS, Alexandre, Les conférences d’Alexandre Dumas, Le Petit Journal, n°681, Paris, 12 déc. 1864.
344
A luz elétrica populariza-se na França somente no início do séc. XX. Uma das dificuldades para sua
implementação em grande escala, além do alto custo da tecnologia, foi a resistência da população, que
considerava a sua luz muito viva, dura, homogênea, capaz de causar perturbações à vista (éblouissements).
Assim, inicialmente, no fim do séc. XIX, a luz elétrica era usada apenas em grandes espaços abertos, vias
públicas, estações de trem, canteiros de obras e sinalização marítima ou ferroviária. (Ver no Musée des Arts et
Métiers, Paris, a seção Les Mystères de l’Électricité.)
137

Delacroix experimentava com os materiais também, mas não há como saber o


quanto no caso das Estações do MASP, pois ainda não foram tiradas amostras da superfície
pictórica para análise microscópica. Em muitas pinturas, ele acrescentava verniz,
especialmente o copal, às próprias cores (e não somente na última camada, ao fim da pintura),
com o objetivo, primeiro, estético de obter um efeito esmaltado ou mais transparente e,
segundo, prático de evitar as alterações das cores com o tempo345. Ele também trabalhava por
camadas – velaturas (glacis) – esperando uma secar para aplicar a próxima, de modo a não
misturar a cor de baixo com a de cima. A cera lhe servia, especialmente nas decorações
murais, como secativo antes de passar às camadas seguintes346. Não necessariamente essas
camadas são lisas e cada uma pode receber, com as pinceladas, uma densidade maior ou
menor de tinta, produzindo, ao final, texturas em relevo. Assim, o glacis, nele, não entrava em
conflito com o empasto.
O empasto e a técnica da flochetage foram-lhe inspirados especialmente por
Théodore Géricault347 e John Constable. Os experimentos com materiais, pela leitura de
manuais, como o de John Burnet (1827)348 ou Léonor Mérimée (1830)349, e pelo diálogo com
fabricantes de tinta e conservadores. As harmonias cromáticas baseadas no contraste,
especialmente entre as complementares, ele aprendeu observando as pinturas de Gros, que as
deve, em parte, a Rubens350. Em torno de 1838, ele recomenda a Louis de Planet, por

345
LIOT, David, La technique de Delacroix : une approche historique, in: POMARÈDE ; SERULLAZ: 1998,
pp. 389-91.
346
« La cire m’a beaucoup servi dans cette figure [l’Italie de l’hémicycle d’Attila à la Bibliothèque de la
Chambre des Députés] pour faire sécher promptement et revenir à chaque instant sur la forme. Le vernis copal
ou le maiguilp [mélange de mastic et de l’huile de lin, utilisé à l’époque comme vernis] peut remplir cet objet ;
on pourrait y mêler de la cire » (5 out. 1847, Journal, I, pp. 397-8).
347
Géricault, inclusive, de tanto carregar nas tintas, foi apelidado pelos críticos de “le pâtissier”.
348
BURNET, John. Notions pratiques sur l’art de la peinture, trad.: P.C. Van Geel. Paris: Rittner et Goupil,
1835. A primeira edição em inglesa data de 1827. Algumas considerações sobre a cor em seus diários são
semelhantes às de Burnet, como nota Hannoosh, Journal, II, p. 1549, nota 112.
349
MÉRIMÉE, Léonor. De la peinture à l'huile. Paris: Huzard, 1830. Ver nota 353 seguinte.
350
Ele conta com entusiasmo, num texto autobiográfico, que Gros deixou-lhe ver seus quadros do tempo do
Império em seu ateliê, em 1822, “ele me deixou lá durante quatro horas, sozinho ou junto dele, no meio de seus
esboços (esquisses), de suas preparações” e lembra como “idolatrava” o seu talento, “que é ainda para mim, no
momento em que te escrevo [1853, a Veron] e depois de tudo o que vi, um dos mais notáveis da história da
pintura” (Journal, II, p. 1738). Além disso, ele redigiu um artigo sobre Gros, publicado em 1° de setembro de
1848, na Revue des Deux Mondes. Em muitas passagens dos diários o nome de Gros é citado precedendo ou
sucedendo o de Rubens. Em 1849, por exemplo, visitando a nova accrochage do Louvre, Delacroix admira a
Batalha de Eylau, de Gros e, na sequência, a Apoteose de Henri IV e o Desembarque de Maria de Medici, do
ciclo de Rubens, na Grande Galerie (ibid., pp. 447-8). Ver uma justaposição semelhante nas notas de seu artigo
sobre Gros, ibid., pp. 1681-82 e as menções a Rubens no próprio artigo, Œuvres Littéraires, pp. 167; 173-4; 176.
138

exemplo, o uso de vermelho para as “sombras vigorosas” nos rostos (narinas, canto dos
lábios, rugas)351. Antes, no Dante (1822) e no seu Massacres de Quiós (1824), ele havia
pintado essas sombras vermelhas sobre peles esverdeadas, como fizera Gros nos moribundos
em primeiro plano do Napoleão em Jaffa (1804, Musée du Louvre, Paris). Essa sensibilidade
para os contrastes desenvolvida em sua juventude foi depurada depois pela viagem ao
Marrocos. Nos seus Souvenirs d’un voyage dans le Maroc, diante de homens a cavalo, ele
exclama: “Nem Gros, nem Rubens jamais teriam sonhado com isso!”352
Em 1834, cerca de dois anos após o seu retorno, nas notas da viagem ao Maghreb
e à Andaluzia, Delacroix desenha um triangle de couleur (fig. 126) opondo às cores primárias
(azul, amarelo e vermelho) as secundárias (laranja, violeta e verde)353. Abaixo desse esquema,
ele escreve:

“Das três cores primárias formam-se as três secundárias. Se ao tom secundário você
acrescentar o tom primário que lhe é oposto você o aniquilará, isto é, você produzira
o meio tom necessário. Assim, acrescentar o preto, não é acrescentar o meio tom; é
sujar o tom cujo meio tom verdadeiro se encontra no tom oposto, como afirmamos.
Daí as sombras verdes no vermelho. A cabeça dos dois camponeses (...). Aquele que
era mais sanguíneo e mais vermelho [tinha] sombras verdes.”354

Em geral, ele aplicava a cor complementar para produzir áreas escuras e usava
variações de cinza ou marrom, às quais esse par de complementares estaria presente em
diferentes quantidades, para os meios-tons. Por exemplo, se a área de luz é feita com um

351
PLANET ; JOUBIN (éd.), Souvenirs…, 1929, p. 20.
352
Journal, I, pp. 203 e 291.
353
O esquema de Delacroix parece-se com o de Gaspar Grégoire (1751-1846), segundo a descrição de Georges
Roque. Roque (1994) afirma que Grégoire propôs, no seu Théorie des couleurs (c. 1820), o desenho de dois
triângulos equiláteros – um maior contendo um menor – para ilustrar a relação de complementaridade entre as
primárias (primitives) e as secundárias (binaires). Nos vértices, Grégoire inscreveu as primárias e, nas arestas, as
secundárias. Léonor Mérimée (1757-1836), o pai do escritor Prosper (este Delacroix conheceu nos Salons de
Gérard), no seu De la peinture à l’huile (1830), propôs um esquema semelhante, embora inscrevendo o triângulo
equilátero (um apenas) dentro de um círculo e adicionando um círculo central menor, no meio do triângulo, para
representar o cinza, resultante da mistura de uma primária com a secundária sua complementar na mesma
proporção, fenômeno que ele chamou de décoloration (Grégoire, de achromatisme) e que Delacroix associa,
como veremos, ao meio-tom (demi-teinte). Ver: ROQUE, Georges. Les couleurs complémentaires : un nouveau
paradigme, Revue d'histoire des sciences, tome 47, n°3-4, 1994, pp. 405-434, disponível em:
https://www.persee.fr/doc/rhs_0151-4105_1994_num_47_3_1212; GREGOIRE, Gaspar, Théorie des couleurs,
contenant explication de la Table des couleurs, Paris, De Gillé, c. 1820 (não encontramos o esquema do
triângulo duplo descrito por Roque nesta edição); Mérimée, op. cit. (nota 349), p. 272.
354
« Des 3 couleurs primitives se forment les 3 binaires. Si au ton binaire vous ajoutez le ton primitif qui lui est
opposé vous l’annihilez, c. à d., vous en produisez la demi-teinte nécessaire. Ainsi, ajouter du noir n’est pas
ajouter de la demi-teinte ; c’est salir le ton dont la demi-teinte véritable se trouve dans le ton opposé que nous
avons dit. De là les ombres vertes dans le rouge. La tête des deux paysans (...). Celui qui était plus sanguin et
plus rouge [avait] des ombres vertes » (Delacroix, Carnet de Chantilly, Ms390, Musée Condé, Chantilly;
transcrito em: Journal, I, p. 257).
139

verde claro, a de sombra vai ser definida pela adição de tons avermelhados aos verdes e no
caminho entre um e outro, um tom neutro (o resultado da adição de duas complementares)
promove a união pela manutenção dos contrastes.
Ele tinha o costume de aplicar uma cor em pequenas tiras de tela e fazer anotações
ao lado – nome, uso na composição, estabilidade da mistura. Parece que Edgar Degas adquiriu
um pacote cheio dessas amostras na venda póstuma de Andrieu355. Delacroix anotava também
nos seus diários muitas das suas combinações de cor, mas sem uma precisão matemática para
as quantidades de pigmento, o que leva a crer que, na verdade, ia testando as proporções na
medida em que progredia356.
Nas Estações Hartmann, executadas quando já era um pintor experiente,
Delacroix trabalhou com a flochetage com uma tinta mais fina desde um estágio bastante
inicial dos quadros, provavelmente, desde a grisaille. Ele deve ter considerado muito bons os
seus esboços (ébauches); eles devem, de fato, tê-lo “tranquilizado em relação ao resultado da
pintura”357, pois as fotografias em infravermelho não acusam nenhuma mudança significativa
nas composições (figuras 118 a 121). No Dante, o quadro com que debutou no Salon em
1822, ele aplicou as pinceladas justapostas somente ao final, sobre uma pintura lisa. Charles-
Paul Landon, conservateur dos Musées Royaux, sentiu-se tão desnorteado diante das
pinceladas “picadas” (hachées) que pensou na hipótese de dois pintores diferentes terem
trabalhado sobre o quadro: um para o desenho e outro para a cor358. Maduro, Delacroix já não
precisa mais de uma pintura lisa por baixo a servir-lhe de guia. De qualquer modo, um
trabalho que ignora linhas de contorno oferece certa margem para ajustes e arrependimentos
até o momento final.
Numa carta a Dutilleux datada de 1859, Delacroix comenta sua dificuldade em
terminar: “Dar a última mão é de uma grande dificuldade. O perigo consiste em chegar a um
ponto no qual não podemos mais nos arrepender utilmente e sou o homem dos

355
Piot, op. cit., p. 2.
356
Ele chegou a anotar, por exemplo, a paleta para o esboço do Outono, hoje no Fogg Museum (8 mai. 1856,
Journal, I, p. 1015). Normalmente, Delacroix definia, nessas anotações, as cores locais dos elementos de uma
composição, os meios-tons (tendendo aos cinzas) e o tom de reflexo (que era de uma cor complementar à da cor
local).
357
Journal, I, p. 1072.
358
« ... l’une [main] aurait disposé le sujet sur la toile et dessiné les figures ; l’autre les aurait coloriées »
(LANDON, Charles-Paul. Annales du Musée de l’École Moderne des Beaux-Arts, Salon de 1822, p. 87).
140

arrependimentos (l’homme aux repentirs)”359. Ele tem a consciência de que terminar é perder
para ganhar. Estraga-se uma coisa para obter-se outra. A questão é sempre em que medida o
ganho compensa a perda.
Na entrada TOUCHE de seu projeto de Dicionário de Belas-Artes, Delacroix
afirma, refutando um argumento próprio aos partidários da cor, que não só a linha, mas
também a pincelada não existe na natureza. Na sequência, nota-se como seu pensamento
estava afinado com a tradição que expusemos no início deste capítulo:

“Sem dúvida, uma pintura pode ser muito bela sem mostrar a pincelada, mas é
pueril pensar que nos aproximamos do efeito da natureza deste modo. (...) tudo
depende, além disso, na obra de um verdadeiro mestre, da distância exigida para ver
o seu quadro; a uma certa distância, a pincelada se funde no conjunto, mas ela
confere à pintura um acento que a fusão das tintas não é capaz de produzir. Em
compensação, vendo muito de perto a obra a mais acabada, descobriremos ainda
traços de pinceladas (...). Resultará daí [desta ideia falsa de que um quadro sem
pinceladas aparentes está mais próximo da natureza] que um esboço (esquisse)
bastante solto (bien touchée) não pode dar tanto prazer quanto um quadro acabado,
ou melhor, sem pinceladas aparentes; pois há muitos quadros em que a pincelada
encontra-se completamente ausente, mas que estão longe de estar acabados. (...)

A pincelada empregada como convém serve para pronunciar mais convenientemente


os diferentes planos dos objetos. Bem marcada, ela os faz vir para a frente: o
contrário, os recua”360 (16 de janeiro de 1857, Journal, I, p. 1075).

Ele considera, então, que não é o fato de a pincelada estar ou não visível num
quadro o que determinará se ele foi terminado ou não. Quadros de superfície lisa e pincelada
oculta podem também não estar terminados. Foi uma cultura parcial de apreciação de obras
“lambidas” como capazes de chegar a resultados mais próximos da natureza que projetou um
juízo de valor sobre a característica da pincelada, associando-a, quando aparente, a algo
incompleto num sentido negativo. Delacroix pensa que a pincelada é mais um recurso para
expressar a ideia do que uma medida para calcular o grau de acabamento. Justapostas em
cores puras, elas acentuam o efeito geral e induzem o espectador a tomar distância do quadro;

359
« Mettre la dernière main est d’une grande difficulté. Le danger consiste à arriver à un point où on ne peut
plus se repentir utilement et je suis l’homme aux repentirs » (Corres., IV, p. 91).
360
« Sans doute une peinture peut être très belle sans montrer la touche, mais il est puéril de penser qu’on se
rapproche de l’effet de la nature en ceci. (...) Tout dépend au reste, dans l’ouvrage d’un véritable maître, de la
distance commandée pour regarder son tableau ; à une certaine distance la touche se fond dans l’ensemble, mais
elle donne à la peinture un accent que le fondu des teintes ne peut produire. En regardant par contre de très près
l’ouvrage le plus fini, on découvrira encore des traces de touches (...). Il résultera de là (de cette idée fausse
qu’un tableau non touché est plus proche de la nature) qu’une esquisse bien touchée ne peut faire autant plaisir
qu’un tableau très fini, je devrais dire non touché ; car il est bon nombre de tableaux dont la touche est
complètement absente mais qui sont loin d’être finis. (…)
La touche employée comme il convient sert à prononcer plus convenablement des différents plans des objets.
Fortement accusée, elle les fait venir en avant : le contraire les recule. »
141

lisas em tintas misturadas, produzem acentos setorizados e induzem o espectador a aproximar-


se dele. Aparentes, fazem os objetos avançarem no espaço (lançando o espectador para trás);
lisas, recuarem (puxando-o para frente). O pintor controla essa variação de acordo com os
seus objetivos com dada composição e com o interesse que cada elemento deve despertar em
relação ao conjunto.
Delacroix abordou a questão do fini não somente de um ponto de vista prático,
mas também metafísico, associando o inacabado aos sentimentos do vago e do sublime, de
natureza, na verdade, distintas. Suas considerações sobre o vago são recolhidas sobretudo do
Oberman (1804), de Étienne Pivert de Senancourt (1770-1846). Mas ele o experimenta
também em seu cotidiano, dentro de uma igreja escura à luz de algumas velas esparsas, por
exemplo:

“No bairro de Saint-Rémy, vendo a porta aberta, entrei e apreciei (joui) o espetáculo
o mais grandioso, o da igreja escura e ampliada, iluminada por uma meia dúzia de
velas fumegantes colocadas aqui e ali. Peço aos adversários do vago que produzam
em mim uma sensação que pudéssemos comparar a esta com a precisão de linhas
bem definidas”361 (grifo nosso, Journal, I, p. 831).

Mais tarde, Delacroix cita uma passagem de Oberman nos diários, em que o
caminhante solitário (promeneur solitaire) que é o autor distingue as categorias estéticas do
“bonito” (jolie), que diverte o pensamento (qu’amuse la pensée), do “belo” (beau), que
sustenta a alma (que soutient l’âme), do “sublime”, que a espanta e exalta (que l’étonne et
l’exalte) e, finalmente, das “belezas mais vagas” (beautés plus vagues), que seduzem e
apaixonam os corações (qui séduisent et passionnent les cœurs)362. A diferença entre vago e
sublime, nessa classificação, reside no efeito sobre a sensibilidade – ao mesmo tempo atração
e repulsão no caso do sublime e atração passional, mais sexualizada, no caso do vago.
A ausência de clareza do vago (o fato de a percepção não discernir algo em sua
completude somado a um impulso natural de preencher o vazio) excita a imaginação e chama
à participação. Nesse sentido, o da participação, é que o vago e o sublime podem assemelhar-
se. Em outro momento, Delacroix copia um trecho do Traité du Sublime (séc. II-III d. C.), do
(Pseudo)Longinus, traduzido por Boileau em 1674, que ajuda a pensar em que sentido o
sublime convida à participação:

361
« Dans le quartier de Saint-Rémy, voyant la porte ouverte, je suis entré et ai joui du spectacle le plus
grandiose, celui de l’Église sombre et élevée, éclairé par une demi-douzaine de chandelles fumeuses placées ça
et là. Je demande aux adversaires du vague de me produire une sensation qu’on puisse comparer à celle-là avec
de la précision et des lignes bien définies. »
362
Journal, I, p. 1130.
142

“… Pois tudo o que é verdadeiramente sublime tem isto de próprio quando o


escutamos, de elevar a alma (…) preenchendo-a de (…) não sei qual nobre orgulho:
como se fosse ela que tivesse produzido as coisas que tão somente acabou de
ouvir”363 (Longinus copiado por Delacroix, Journal, II, p. 1278).

O sublime gera a ilusão de que somos também os autores daquilo que admiramos,
de que participamos da origem daquilo que, naquele instante, “eleva a nossa alma”. É
paradoxalmente algo que nos acolhe e ultrapassa. Que nos faz estar dentro e fora ao mesmo
tempo. Dar ao finito uma aura de infinito é certamente uma inclinação romântica364.
No desenho de uma medalha com o perfil de Delacroix feita em homenagem ao
pintor após a sua morte, o escultor Auguste Préault escreve, como se as palavras saíssem da
boca do artista: “Não sou partidário do finito/acabado, sou partidário do infinito” (“Je ne suis
pas pour le fini, je suis pour l’infini”) (fig. 127). De certo modo, Delacroix encontrou um
modelo visual do infinito em sua prática pictórica baseada num sistema de reflexos. E é essa
prática, especialmente aquilo que ela comporta de intuitivo e pulsional, que as Quatro
Estações do MASP nos permitem, hoje, ver melhor:

“(...) o reflexo do reflexo nos lança ao infinito e Delacroix o sabia bem; mas ele não
poderá jamais prová-lo, pois sua busca é incessante e ele me confessou que o devia,
com mais frequência, à inspiração do que à ciência”365 (SAND, George, Mémoires et
souvenirs, 1873, p. 82).

***
Alguns dos esquisses mais vibrantes de Delacroix que chegaram até nós, como o
do Sardanapalo (Musée du Louvre), do Sultão do Marrocos (Musée des Beaux-Arts de
Dijon) e o da Caça aos leões (Musée D’Orsay), se colocados ao lado dos respectivos quadros
que vieram a público, mostram como ele buscava manter o frescor da primeira ideia, do

363
« … Car tout ce qui est véritablement sublime a cela de propre quand on l’écoute, qu’il élève l’âme (…) la
remplissant de (…) je ne sais quel noble orgueil : comme si c’était elle qui eut produit les choses qu’elle vient
simplement d’entendre. »
364
Novalis definiu o ato romântico por excelência: dar ao conhecido a nobreza do desconhecido ou ao fugaz uma
aparência de eterno. Nos Fragmenten und Studien (1800, frag. 37), ele escreve: “Romantizar nada mais é do que
uma potencialização qualitativa. O eu inferior é identificado com um eu melhor nesta operação. Assim como nós
mesmos somos uma série de potências qualitativas. Ao dar ao comum um sentido elevado, ao ordinário uma
aparência misteriosa, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito uma aparência de infinito, eu os
romantizo” („Romantisieren ist nichts, als eine qualitative Potenzierung. Das niedere Selbst wird mit einem
besseren Selbst in dieser Operation identifiziert. So wie wir selbst eine solche qualitative Potenzen-Reihe sind.
Indem ich dem Gemeinen einen hohen Sinn, dem Gewöhnlichen ein geheimnisvolles Ansehen, dem Bekannten
die Würde des Unbekannten, dem Endlichen einen unendlichen Schein gebe, so romantisiere ich es“). Safranski
chamou isso anacronicamente de um “triunfo sobre o princípio de realidade” (SAFRANSKI: 2010, p. 17).
365
« (...) le reflet du reflet nous lance dans l’infini, et Delacroix le sait bien ; mais il pourra jamais (sic) le
démontrer, car il cherche sans cesse et il m’a bien avoué qu’il le devait plus souvent à l’inspiration qu’à la
science. »
143

esboço, na obra final, mas sem “pular etapas”, pois uma obra exibida ao público jamais seria,
para ele, o simples resultado de um premier jet. Prestemos atenção aos cavalos dessas três
composições. Na obra final encontramos, ainda, as marcas das pinceladas e o empasto,
embora elas estejam mais organizadas sobre as formas. Ao mesmo tempo, a expressão no
rosto do animal passa por transformações do esboço à obra final. A dos cavalos do canto
inferior esquerdo do Sardanapalo e da Caça, por exemplo, apenas sugeridas ou neutras nos
esboços, tornam-se importantes centros dramáticos das composições nas telas maiores. Nos
esboços, o valor expressivo é mais unitário e difuso ou melhor distribuído entre as partes; nas
obras finais, mais definido e setorizado, concentrado nas formas anatômicas.
O movimento vigoroso da fatura dos esboços a lápis para A luta de Jacó com o
anjo (Fogg Museum, Cambridge, Mass.; The Morgan Library, Nova York) se mantém, em
alguma medida, na parede da capela de Saint-Sulpice, malgrado a diferença entre os materiais
(grafite e tinta). Se fizermos a mesma aproximação entre o esboço e o quadro de David do
Funeral de Pátroclo (o primeiro no Louvre e o segundo, na National Gallery of Ireland,
Dublin) ou entre o esboço e o quadro de Ingres da Apoteose de Homero (ambos no Louvre),
poderíamos afirmar que a distância entre os dois é mais da ordem da escala do que, como em
Delacroix, das qualidades formais.
Delacroix adorava o esquisse de Gros do Combate de Nazaré (Musée de Nantes):
“É impossível dar àqueles que não conhecem este admirável esboço uma ideia do vigor, do
brilho, do fogo (fougue) e ao mesmo tempo da ciência de composição que ele apresenta”366.
No estudo de Delacroix para a Batalha de Taillebourg (1837), conservado no Louvre, nota-se
o mesmo espírito que animou o de Gros na de Nazaré. São ambos pintores cujos esboços
compartilham deste aspecto rápido e enérgico. Mas é somente em Delacroix que encontramos
uma fatura próxima nos quadros finais. Guérin, seu professor e da mesma geração que Gros,
deixou inacabado o quadro A Morte de Príamo (Musée des Beaux-Arts d’Angers), no qual
trabalhou durante 11 anos. Nele, não vemos a marca do pincel num trabalho tão gestual e
expressivo como ocorre nas Estações Hartmann. Constitui, antes, um exemplo de quadro
inacabado com acabamento liso.
Assim, o inacabado na arte diz respeito, no sentido literal, a um tipo de obra e, no
figurado, a um efeito, ou seja, não são sinônimos, pois obras esboçadas podem estar acabadas
e obras lisas podem estar inacabadas. A associação esboço-inacabado é legítima, mas traduz-

366
« Il est impossible de donner, à ceux qui ne connaissent pas cette admirable esquisse, une idée de la vigueur,
de l’éclat, de la fougue, et en même temps de la Science de composition qu’elle révèle » (DELACROIX, Œuvres
Littéraires, « Gros », II, 1848, p. 173).
144

se, muitas vezes, num juízo de valor ou preconceito. Um modo de pintar mais “esboçado”
adequava-se melhor a certas condições de visibilidade e a certos gêneros de pintura. Ele se
liga, como escolha deliberada e de modo mais ostensivo, especialmente aos pintores do séc.
XVII e XVIII. Mas como a elogiosa “fúria del penello” (fúria do pincel) de Rubens
transformou-se, no séc. XIX, no sarcástico “balai ivre” (vassoura bêbada)367 de Delacroix? Na
verdade, a ideia wolffliana de sucessão temporal de estilos opostos torna-se problemática
neste contexto, em que há uma convivência horizontal entre eles. Do mesmo modo que alguns
críticos eram irônicos em relação à pincelada de Delacroix, outros eram bastante elogiosos.
Para Delacroix, a questão é de que modo o pintor é capaz de preservar a primeira
ideia, seu frescor e unidade, mediante o trabalho meticuloso, linear, sistemático e teleológico
de produção de um quadro ambicioso. A resposta é: fazendo sacrifícios e resistindo à tentação
do detalhe. No caso dos petits tableaux, executados para o mercado burguês, essa questão não
parece, contudo, tão relevante. Eles são espécies de ricordi, feitos para o público amplo, não
mais para um arquivo de ateliê ou um patrono específico, e suas exigências são outras. Na
verdade, a estética do esboço é também um modo de o trabalho artesanal no campo da arte
manter-se vivo diante da produção em série e da expansão da indústria.
Além disso, para Delacroix, o non fini indica uma escolha estética tanto quanto o
fini. Mais importante é o modo como a fatura e a aparência (o “efeito”) se articulam à ideia, à
invenção, porque a apreciação da arte não é, para ele, algo apenas sensorial. Ainda que perto
da morte ele tenha, digamos, concedido mais às aparências, ao longo de sua vida ele sempre
abordou a arte como uma atividade intelectual.
Em Delacroix, o impulso clássico na direção da clareza entra em conflito com o
trabalho puramente material e instintivo do pincel, como afirma, em outras palavras, Ernest
Chesneau, em sua análise dos esboços do artista para a série litográfica de Hamlet, quando
vieram à tona após a sua morte, em 1864:

“Em cada croquis, há dois elementos essenciais que persistem sob o capricho
aparente da improvisação (…). É, de um lado, a preocupação constante com o
sentido pitoresco da forma; de outro, a busca exclusiva do sentido patético. É

367
A expressão é usada por Théophile Gautier neste constat por ocasião da exposição retrospectiva póstuma de
Delacroix, em 1864: « On invectivait l’artiste avec des injures telle qu’on ne les eût pas adressées plus grossières
ni plus ignomineuses à un voleur ou à un assassin. (…) C’était un sauvage, un barbare, un fou (…). Il avait le
goût du laid, de l’ignoble, du monstrueux ; et puis il ne savait pas dessiner, il cassait plus de membres qu’un
rebouteux n’en ait pu remettre. Il jetait des seaux de couleur contre la toile, il peignait avec un balai ivre (…) »
(apud POMARÈDE ; SÉRULLAZ: 1998, p. 34). Ponsonailhe, por ocasião de outra retrospectiva póstuma do
artista, em 1885, retoma a expressão: « A-t-il jamais entrevu, dans une radieuse envolée d’espérance, la
triomphale exposition de son œuvre à l’École des Beaux-Arts, dans cette bastille ennemie où fut inventée contre
lui la plus sanglante des critiques, la legendaire épithète de ‘balai ivre’ ? » (apud ibid., p. 44).
145

assim que o homem e o artista se revelam (…). O artista (…) quer dar à toda a
forma uma aparência [tournure] nova. (…) O homem sente sua alma atraída, de
preferência, na direção da interpretação das grandes lutas: aquelas das quais a
história conservou a lembrança e aquelas com as quais a imaginação dos poetas
mobiliaram a nossa memória (…)”368 (destaques nossos, itálicos do autor, Le
Constitutionnel, le 26 juillet 1864).

O que melhor caracteriza o estilo de Delacroix é a luta violenta de que, nele, é


investido o ato de concepção. Luta entre o pitoresco da forma e o seu sentido patético. Entre a
fatura rápida, que quer conservar o vigor do premier jet e a busca paciente, cujo fim é
encontrar o efeito dramático que melhor exprima a interpretação do tema. É, então, no
contexto desta luta que o inacabado em Delacroix pode ser melhor compreendido.
Suas pinturas para Hartmann estão inacabadas, mas o quanto? É um pouco
supérfluo oferecer precisões desse tipo. Mas certamente estão mais próximas do fim do que
do início, especialmente a Primavera e o Verão. Finalizá-las não demandaria muito mais
tempo. Teriam sido retocadas por outro? Durante a vida do pintor, não. Provavelmente sim
quando estiveram na posse de Haro, logo após a venda póstuma, mas essas interferências, se
ocorreram, foram eliminadas e não podem ser vistas hoje. Pensamos que essas pinturas são
autógrafas. No máximo, as preparações de fundo foram feitas por assistentes. O anjo do
Outono, de fato um pouco maladroit, não foge muito, contudo, ao tratamento das figuras
acessórias nos outros quadros da série (ver os cães no Verão, por exemplo). Provavelmente,
no decorrer do processo, Delacroix tivesse ajustado melhor as pinceladas nessa figura.
Ernest Chesneau, no mesmo artigo do Constitutionnel, fica um pouco embaraçado
diante dos desenhos da última fase do artista, usando expressões do tipo “digamos”, “como
direi?”, etc. Há, neles, um excesso de liberdade que o constrange. Em que sentido as Estações
Hartmann são emblemáticas do estilo tardio de Delacroix? Não nos parece muito rigoroso
chamá-las de “testamentos espirituais”. O A luta entre Jacó e o Anjo, de Saint-Sulpice,
executado paralelamente e com uma harmonia cromática semelhante, pode ser chamado
assim, mas não essa série decorativa. Delacroix baseou-se, nas composições, em obras
anteriores de Pompeia e Herculano, de Ticiano, Albani, Poussin e, ainda, de pintores do séc.
XVIII francês. Ele parece ter procedido como sempre procedeu no que tange à invenção,
emulando grandes mestres do passado, não necessariamente apenas os clássicos ou apenas os

368
« En chaque croquis, il est deux éléments essentiels qui persistent sous le caprice apparent de l’improvisation
(...). C’est d’une part la préoccupation constante du sens pittoresque et original de la forme ; d’autre part la
recherche exclusive de son sens pathétique. C’est ainsi l’homme et l’artiste qui se révèlent (...). L’artiste (...)
veut donner à toute forme une tournure nouvelle. (...) L’homme sent son âme attirée, de préférence, vers
l’interprétation des grandes luttes : celles dont l’histoire a conservé le souvenir et celles dont l’imagination des
poètes a meublé notre mémoire (...). »
146

barrocos. Contudo, em sua última fase, Delacroix não está tão voltado, de um modo geral, à
pintura de história, mas, antes, à de animália e religiosa. O quanto essas pinturas das Estações
não são algo, como ele mesmo diria, de pratique? Qual era a qualidade do seu interesse nelas?
Por que demorou tanto para terminá-las e não as colocou como prioridade em relação a outras
de cavalete? Veremos adiante que o comitente cancelou e retomou, no mesmo ano de 1859, a
encomenda, o que irritou Delacroix, porque ele já havia começado as telas. Mesmo assim, ele
não as entregou a tempo.
O artista, maduro, diz que prefere sua paleta atual à do Sardanapalo, pintado em
1828: “Ela é menos brilhante, talvez, mas não se desvia mais. É um instrumento que só toca o
que eu quero que toque”369. Essa é a paleta das Estações, menos brilhante e mais sábia; menos
impactante e mais controlada. Emblemática da última fase do pintor, nas Estações Hartmann,
ainda, é uma aproximação mais radical entre esboço e obra final e um tratamento mais amplo
das formas, o que, contudo, só pode ser avaliado com base no seu caráter inconcluso. Se ele
tivesse terminado, essa aproximação se manteria tão radical assim? Afinal, são telas de
grandes dimensões, não pequenos quadros. Ele as teria empastado mais, como na Caça aos
leões? Teria se aplicado na definição ou nitidez das pinceladas finais? Teria definido mais
alguns detalhes das figuras? Essas obras são emblemáticas de sua fase final, portanto, na
medida em que geram mais perguntas do que respostas.

369
« Elle est moins brillante peut-être, mais elle ne s’égare plus. C’est un instrument qui ne joue que ce qui je
veux lui faire jouer » (PIRON, Delacroix : sa vie, ses œuvres, 1865, p. 71).
147

Parte 2
O comitente
148

“Mas quem é este homem, não notado até o momento, que entrou no ateliê do
artista não se sabe quando nem como e que parece, ali dentro, estar em casa? É um
colecionador (amateur). Ele não frequenta todos os pintores. Há três ou quatro
somente de quem gosta de fato e busca as obras, seja à casa deles, seja em leilões.
Com que atenção curiosa ele passeia seus olhos do quadro terminado ao quadro
começado e do quadro começado ao esboço (esquisse)! Que alegria ele experimenta
quando encontra um bom croquis. É um achado! ‘Não toque mais nele, diz, você o
estragaria’. Ele o toma para si (...) e vai depressa pendurá-lo em seu gabinete, tendo o
cuidado de colocá-lo sob uma boa luz e de um modo que entre em harmonia com as
outras maravilhas ao redor. (...) Há entre eles [o colecionador e o pintor] uma ligação
inexplicável. Defina, se você puder, este sentimento irresistível que faz com que um
homem se ligue assim a outro, dê uma preferência quase exclusiva a suas obras, passe
horas inteiras a observá-lo trabalhar, seguindo com o olho cada movimento de seu
pincel e segurando a respiração para não o distrair. Se o artista permitisse, o
colecionador o seguiria como a sua sombra e chegaria ao ponto de participar de todas
as suas emoções, felizes ou infelizes.”

(« Mais quel est cet homme, jusqu’ici inaperçu, qui est entré dans l’atelier on
ne sait quand ni comment, et qui semble être chez lui ? C’est un amateur. Il ne va pas
chez tous les peintres. Il en est trois ou quatre seulement qu’il affectione et dont il
recherche les œuvres, soit chez eux, soit dans les ventes. Avec quelle attention
curieuse il promene ses yeux du tableau terminé au tableau commencé, et du tableau
commencé à l’esquise ! Quelle joie il éprouve quand il rencontre un premier croquis
bien réussi. C’est une trouvaille. ‘Vous n’y toucherez plus, dit-il au peintre ; vous le
gâteriez.’ Il s’en empare (…) et il va bien vite l’accrocher dans son cabinet, en ayant
le soin de le placer dans un bon jour, et de manière qu’il s’harmonise avec les autres
merveilles qui l’entourent. (…) Il y a entre eux [l’amateur et le peintre] un lien
inexplicable. Définis, si tu peux, ce sentiment irresistible qui fait qu’un homme
s’attache ainsi à un autre, donne une préférence presque exclusive à ses ouvrages,
passe des heures entières à le regarder travailler, suivant de l’œil chaque mouvement
de son pinceau et retenant son haleine pour ne pas le distraire. Si l’artiste le permettait,
l’amateur le suivrait comme son ombre et finirait par s’associer à toutes ses émotions
heureuses et malheureuses. »)

Marie-Élisabeth Cavé, La Couleur, 1863 [1851], pp. 121-3.


149

Capítulo 1. Mecenato artístico e colecionismo no século XIX: o caso de Frédéric


Hartmann

Desde o Renascimento até meados do séc. XVIII, a relação entre artista e mecenas
era mediada pela figura do “conselheiro” ou “inventor”, o qual escolhia dentro do vasto
repertório literário disponível a melhor história para representar o tema estabelecido pelo
patrono. O detentor do capital tinha um desejo; o conselheiro criava um projeto no qual esse
desejo pudesse encontrar uma expressão adequada; o artista o executava.
No século XIX, essa relação passa a ser mais horizontal ou menos triangular e a
função do conselheiro é progressivamente absorvida pelo artista, que passa a criar ele mesmo
o projeto, tendo como base o tema proposto pelo mecenas. Embora, no âmbito das
encomendas privadas, o artista se torne mais livre para definir tanto a organização do
conteúdo quanto a sua forma de apresentação, uma tensão entre o seu desejo e o desejo do
comitente não pode ser totalmente excluída do processo de criação.
Essa zona de fricção entre, digamos, o poder econômico e o poder criativo reflete-
se no produto final. O modo como o artista encontra uma solução para um problema imposto
de fora torna-se um dos critérios mesmos de avaliação da qualidade do resultado. Um tema,
em arte, funciona como um estímulo à criação. Mas escolher por si mesmo um tema e
adaptar-se a um tema predeterminado gera problemas e dificuldades específicos. Por exemplo,
um tema que entra em conflito com o temperamento do artista ou que o constrange em suas
inclinações naturais pode deixar transparecer no resultado final um esforço excessivo de
adaptação. Sentimos, nesse caso, o mesmo incômodo que sentiu o artista ao ser obrigado a se
mover no interior de suas limitações. Por outro lado, o artista pode vir a superá-las, sentindo-
se proporcionalmente mais estimulado pelo tamanho do desafio.
Um colecionador compra obras de artistas mortos e/ou encomenda obras a artistas
vivos. Neste último caso, ele é também um mecenas. O que faz com que ele prefira um artista
a outro? Trata-se somente de uma questão de gosto ou inclinação pessoal? Em que medida
fatores externos – ligados à religião, à política, ao mercado, à sociedade – podem ter alguma
influência sobre essas escolhas? Francis Haskell observou que existe uma rede sutil, quase
invisível, de relações ideológicas entre diferentes domínios da vida cotidiana condicionando
as preferências dos colecionadores370. Estudar o perfil de um colecionador significa, portanto,
cruzar dados de sua biografia com informações contextuais que oscilam do campo político,

370
HASKELL, Francis. La norme et le caprice : redécouvertes en art. Traduit par Robet Fohr. Paris :
Flammarion, 1993 [1976], Préface à l’édition française.
150

econômico e religioso ao cultural e artístico. O espectro é amplo e raramente documentos ou


imagens apontam de modo direto para razões ou motivações, próprias ou alheias. Ler e
interpretar esses sinais dentro de uma cultura que não é a nossa gera, ainda, mais uma
dificuldade. Por outro lado, o ponto de vista externo tem outro alcance, não menos legítimo,
devido ao grau de sua independência.
A segunda parte desta tese pretende, nesse sentido, reconstituir a história da
encomenda de Hartmann das Quatro Estações a Delacroix, bem como inserir essa encomenda
dentro de sua coleção de quadros modernos, contextualizando-a. Pomarède (1998), no
catálogo da exposição sobre o período final de Delacroix, e Hannoosh (2009), em sua edição
dos diários do artista, identificaram corretamente o membro da família Hartmann responsável
pela encomenda, confundido, até então, com a figura de seu tio, que possuía o mesmo
primeiro nome, Frédéric. O artigo de Simon Kelly (2000), que aborda a coleção de Hartmann
em seu conjunto, constitui um precedente importante do trabalho desenvolvido nas próximas
páginas, o qual, contudo, pelo foco temático e pela extensão das fontes, apresenta outra
perspectiva de análise e de interpretação. Algumas publicações recentes em torno da obra de
Théodore Rousseau e Jean-François Millet, os pintores de quem Hartmann esteve mais
próximo, contribuíram igualmente para a construção dessa perspectiva371 cuja base
epistemológica, contudo, constituiu-se sobretudo a partir do trabalho sobre fontes primárias.
Assim, consultamos catálogos de venda, cartas pessoais, documentos oficiais e
textos de crítica e história da arte publicados na época, com o objetivo de construir uma
reflexão não apenas sobre um aspecto – o mais pragmático – da gênese da série do MASP,
mas também sobre o lugar de um tema tão tradicional como o das Quatro Estações e, no
limite, da própria ideia de pintura alegórica, na arte de um século tão dividido como o XIX.
Primeiramente, procederemos à análise de dois aspectos da atuação profissional
de Hartmann – como industrial e como político – que nos revelam traços importantes de seu
caráter e, em consequência, também de seu gosto pessoal. Após algumas considerações sobre
sua atividade de colecionador, tendo como base aspectos estilísticos comuns entre os pintores
que patrocinou, antecedentes familiares e o colecionismo entre a burguesia francesa do
período, deter-nos-emos sobre a encomenda das Estações propriamente dita. Contingências
ligadas a questões práticas foram determinantes para certas escolhas materiais do artista, por
exemplo: o espaço destinado às telas no salon da residência de Hartmann levou à definição da
escala das figuras em relação à paisagem nas composições. Além disso, veremos que, alguns

371
Allan; Kopp (2016), Thomas (2000), Georgel (2017), Constantin (1997).
151

anos após a morte de Delacroix, Hartmann repassa a encomenda a Millet, que representa as
estações não por meio de histórias mitológicas, mas sim de paisagens e cenas de gênero.
Pensaremos sobre as razões dessa mudança e sobre sua relação com movimentos mais amplos
ligados à atividade artística e ao colecionismo privado do período.

1.1. O industrial

Em parte por motivos econômicos (forte concentração de protestantes e judeus


com capital acumulado), em parte por questões geográficas (presença de rios e mananciais) e
estruturais (boa distribuição da rede ferroviária), em parte por razões circunstanciais (grande
densidade populacional e pouca oferta de emprego no campo da exploração agrícola), a região
do Alto-Reno, na Alsácia, compreendendo a cidade de Mulhouse e os seus arredores, tornou-
se um importante polo da indústria têxtil na França e na Europa, da segunda metade do séc.
XVIII até meados do séc. XX.
Uma peculiaridade da burguesia industrial que se desenvolveu nessa região é a
hereditariedade longeva no âmbito administrativo, daí encontrarmos o termo “dinastias” para
descrevê-la na literatura aplicada. Contrariando a “lei das três gerações” do romance de
Thomas Mann, Os Buddenbrook (1901), que retrata a ascensão e decadência de uma família
burguesa de industriais alemães no intervalo da primeira à terceira geração, essas famílias
mantiveram-se na liderança de seus negócios por, no mínimo, quatro gerações sucessivas. Por
isso, com frequência, é no âmbito das relações familiares que encontramos respostas para
questões que envolvem motivação, iniciativa e gosto pessoal. Muito mais do que capital
financeiro deve ser transmitido de uma geração à outra para que um negócio mantenha-se
ativo e rentável, sobretudo num período de tempo de mais de um século.
Jacques-Félix Frédéric Hartmann (fig. 129) pertence à terceira geração de uma
dessas importantes dinastias industriais da Alsácia, com origem na cidade de Colmar, a cerca
de 50 km de Mulhouse. Nasceu em 14 de janeiro de 1822, numa cidade próxima a Colmar,
Munster, terceiro filho de Henry Nicolas Hartmann (1782-1856) e Louise Schouch (1795-
1834), neto de André Hartmann (1743-1837), o patriarca e fundador das indústrias de fiação,
tecelagem e impressão sobre tecido que levavam o seu sobrenome. Em 1839, Henry Nicolas e
seu irmão Frédéric Hartmann-Metzger (1772-1861) tomam posse da fábrica, após a morte do
pai, André, e do irmão, Jacques (1774-1839)372.

372
Ver a genealogia dos Hartmann no Apêndice 2.
152

Frédéric e o irmão, Henry filho (1820-1881), tornam-se associados e participam


dos negócios da família já em 1846. Em 1853, seus dois irmãos mais novos, Jacques e Alfred,
entram na sociedade. Em 1856, com a morte do pai, os quatro irmãos compartilham a posse e
direção das indústrias Hartmann et Fils. Em 1865, os irmãos Henry filho, Jacques e Alfred
delegam a gestão única, por um contrato particular (acte de sous-seing privé), a Frédéric
Hartmann, sem renunciar aos seus respectivos cargos de chefes responsáveis. Em 1870,
Jacques e Alfred retiram-se definitivamente da sociedade, que passa às mãos de Frédéric e
Henry filho. Em 1879, Henry cede sua parte a Frédéric, que se torna o único proprietário de
todos os estabelecimentos. Um ano depois, em 3 de junho de 1880, ele vem a falecer em
Paris.
Em 8 de abril de 1847 ocorre um evento importante: Frédéric Hartmann casa-se
com Aimée Sanson-Davillier (1826-1907), filha de Alexandre Sanson-Davillier (1793-1863),
membro de uma família de banqueiros parisiense, atuando também no ramo da indústria
têxtil373. A irmã de Aimée, Blanche (1828-1908), por sua vez, casa-se com o irmão de
Frédéric, Henry filho. O matrimônio, formando ou reforçando alianças estratégicas no seio de
uma mesma classe, era um dos meios de as famílias burguesas garantirem a continuidade de
seu nome e de seu domínio econômico no sistema da livre concorrência de mercado. Apesar
de o casamento ser, a princípio, de conveniência, Aimée e Frédéric parecem, pela leitura de
suas cartas, ter nutrido uma afeição legítima um pelo outro. Eles não tiveram filhos, algo
bastante raro dentro dessas famílias de industriais, pois a longevidade estava estreitamente
ligada à descendência.
Segundo Claude Fohlen (1956), os grandes industriais têxteis alsacianos do
séc. XIX têm em comum um espírito empreendedor aguçado, a crença na virtude da seleção
natural entre as empresas (ou no liberalismo econômico e alfandegário) e o interesse em
questões sociais. São, para o autor, homens que compartilham do “sentido da grandeza dos
negócios”374. Com frequência, têm uma atuação também no campo político.

373
Ver: PLESSIS, Alain. Régents et gouverneurs de la Banque de France sous le Second Empire. Genève :
Droz, 1985, pp. 34-5 ; 119-22. Conforme o autor, apesar de ocupar o cargo de Regent de la Banque de France de
1847 até a sua morte, em 1863, sucedendo o seu sogro, Jean-Charles Davillier (1758-1846), Alexandre Sanson-
Davillier parece se dedicar especialmente aos seus negócios e indústrias durante o Segundo Império.
Geralmente, é referido no período como négociant ou manufacturier e não banquier. Em Wesserling, Alto-Reno,
estava sediada a Gros, Davillier, Odier et Cie, mas Alexandre ocupa-se sobretudo, a contar de 1851, da gestão
do depósito de algodão em Paris e das usinas de Gisors (Normandia), Inval (próxima a Beauvais) e Saint-
Charles.
374
FOHLEN: 1956, p. 74. Ele cita o exemplo de Jean Dollfus père, da Dollfus-Mieg et Cie (DMC), de
Mulhouse, ligado sobretudo ao ramo da impressão. Dedicou-se à pesquisa de novos mercados e engajou-se na
luta pela diminuição das taxas de importação, participando da redação do tratado de comércio de 1860, que
153

A indústria do algodão do Leste francês (Alsácia, Champagne-Ardenne e Lorena),


em plena expansão nos anos 1850, compensava a distância em relação ao mar, onde aportava
a matéria-prima, investindo na qualidade e não na quantidade da produção, ao contrário do
que ocorria na Normandia, por exemplo. Assim, os industriais do Leste contrabalançavam os
preços mais elevados do transporte com a perfeição (e o valor a ela agregado) dos seus
tecidos. Em Munster, as indústrias Hartmann produziam os indianos375 chamados de
Hartemines, que fizeram a reputação da marca, exemplo dessa opção pela qualidade para
compensar os custos mais elevados de produção.
Outra característica da produção têxtil alsaciana é a existência de grandes
complexos industriais, conjugando usinas de fiação (filature), tecelagem (tissage) e impressão
(impression). “Cada firma, escreve Fohlen, tem por objetivo realizar o ciclo completo de
transformações do algodão”376. Em 1789, o avô de Frédéric, André Hartmann, tornou-se o
único proprietário, em Munster, da usina de impressão do Graben, especializada em indianos,
mesmo ano em que expandiu a fábrica à antiga abadia da cidade, no Couvent. Já em 1818,
com a injeção de capital suíço, são somadas as atividades de tecelagem e branqueamento
(blanchiment) às de impressão e, em 1819, a de fiação no Hammer, seguida da usina do
Leymel, em 1830. Nos anos 1840, elas ocupam mais de 4.000 trabalhadores, além de imensas
florestas e arrendamentos rurais. Jacques, o irmão mais novo de Frédéric, construiu, inclusive,
em 1854, a represa e o lago do Fischboedle para abastecer as usinas, uma obra de envergadura
e de grande impacto ambiental. Os Hartmann abandonam, contudo, o ramo da impressão em
1857, seguindo uma tendência progressiva, ao longo do século, à especialização (fig. 130).

instituiu as “admissões temporárias” de tecidos na França, às quais voltaremos adiante. Dollfus apoiou também
projetos em benefício dos operários, como a Société des Cités Ouvrières de Mulhouse (1853), o Asile pours les
indigents (1859) e a Association des femmes en couches (1864). Além disso, ocupou uma cadeira no Conseil
Général du Haut-Rhin, foi prefeito de Mulhouse entre 1863 e 1869, e deputado protestataire durante o
Reichstag, de 1871 até a sua morte, em 1877. Fohlen cita também um de seus genros, Frédéric Engel-Dolffus,
que toma parte na direção da empresa em 1848, promovendo uma série de melhorias técnicas no ramo da fiação
do algodão. Interessado também pela produção da matéria-prima e pelas questões alfandegárias apresenta, entre
1853 e 1866, seis relatórios à Société Industrielle de Mulhouse sobre a cultura do algodão nas colônias francesas,
especialmente na Argélia, e publica, no fim dos anos 1860, algumas brochuras sobre as admissões temporárias.
Criou, em benefício dos operários, a Société d’encouragement à l’épargne (1851), Association pour prévenir les
accidents, Caisse d’épargne pour les ouvriers de la retorderie et de la filterie, Caisse de Secours et de Retraite.
Participou, ainda, da fundação da Société des Bibliothèques Rurales, em 1863, em Mulhouse e da Ligue de
l’Enseignement, junto com Jean Macé. De fato, a biografia de Hartmann, como ficará claro adiante, apresenta
muitos pontos em comum com a destes industriais também alsacianos.
375
Tecidos de algodão pintados ou impressos, originais da Índia. Os indianos circulam na Europa desde o séc.
XVII e passam a ser produzidos na França no mesmo período, concorrendo com as mais tradicionais indústrias
da lã e do linho. Ver: METARIE, Norbert ; BOCKEL, Jean-Marie (et. al.). Féerie indienne: des rivages de
l'Inde au Royaume de France. Paris: Somogy, 2008 (catálogo de exposição) e PEZZOLO: 2007, pp. 34-5.
376
FOHLEN: 1956, p. 218.
154

A austeridade e a crença na disciplina do trabalho típicos da religião protestante


dominante na região transformam empresa e família numa coisa só, como já notamos no que
tange ao casamento. Havia, desse modo, uma divisão de cargos e funções já no seio familiar:
enquanto Frédéric, formado em direito, viajava a Paris regularmente, o que indica que seria o
responsável pelas vendas (o homme de la vente), seu irmão Henry filho, formado em
engenharia química pela École Centrale des Arts et Manufactures, dedicava-se à supervisão e
ao aprimoramento técnico da produção.
O principal mercado para o escoamento de mercadorias ficava em Paris, com
destaque para as grandes lojas de departamento. Hartmann tinha um endereço na capital no
Boulevard Poissonière, n° 23 (o Boulevard de Courcelles, n°18, era da família de Aimée, sua
esposa), ao lado do Grand Bazar Industriel, no nº 28. Na Rue du Sentier, n° 32, muito
próxima ao Boulevard Poissonière, funcionava a sede da manufatura Hartmann et Fils. Essa
área, conhecida como Sentier, o mesmo nome da rua principal, abrigava o centro têxtil de
Paris na época.
Inaugurado em abril de 1829, o Grand Bazar Industriel oferecia, num prédio de
quatro andares, a preços moderados e fixos (extinguindo, portanto, a prática corrente da
“pechincha”, marchander), todo tipo de produto de uso diário, incluindo tecidos. Já em 1824,
com a inauguração do La Belle Jardinière, transformada nos anos 1860 em uma grande loja
de departamento, o comércio de tecidos ganhava espaço na capital e foi, de fato, o principal
motor de vendas dos grands magasins que se seguiram, ao lado dos artigos de mercearia
(épicerie)377.
O estímulo ao consumo promovido por essa nova modalidade de comércio,
ancestral dos atuais shoppings (centres comerciaux), é uma consequência do grande
desenvolvimento da indústria têxtil durante o segundo Império, então o maior empregador da
França378. A entrada livre, as liquidações periódicas para fazer girar rapidamente o estoque e
uma propaganda agressiva, além da venda a preços acessíveis e fixos, incitavam os passantes
a comprar o desnecessário. Émile Zola descreve neles o murmúrio contínuo da multidão, o ar
sufocante, o calor intenso misturado ao odor dos tecidos379. Era no âmbito desse comércio,

377
Para uma cronologia dos grands magasins de Paris, ver: MARREY, Bernard. Les grands magasins : des
origines à 1939. Paris : Librairie Picard, 1979, p. 256.
378
CHANTEUX, Anne. « Au Bonheur des Dames » ou la naissance des grands magasins. Paris : Musée des
Arts et Métiers (cahier pédagogique consulté en 2018), p. 4.
379
“Agora a trepidação no interior abafava os ruídos de fora; (…) restava, para além do grande murmúrio da
venda, apenas o sentimento de Paris imensa, de uma imensidão que sempre forneceria compradoras. No ar
155

especialmente pela ação dos commissionaires (intermediários entre a indústria e o consumidor


final), que Hartmann precisava negociar os produtos de sua manufatura em Paris.
A formação de Frédéric em direito o habilitava, ainda, a responder juridicamente
pela firma. Somada à sua atuação política, que será abordada na próxima seção deste capítulo,
tal posição dentro da empresa explica sua participação na formação do Sindicato dos
Industriais de Mulhouse, em 1869380, bem como nas discussões e iniciativas tomadas, dentro
desse novo órgão, contra medidas governamentais que afetavam a produção industrial, a
exemplo do tratado de comércio de 1860, chamado Traité Cobden-Chevalier, que instituiu as
admissões temporárias de tecidos importados em território nacional.
Segundo esse acordo, os imprimeurs eram autorizados a comprar tecidos crus,
isentos de impostos, de outros países, mas não poderiam revendê-los sem ter passado pela
mão de obra e num prazo máximo de 4 meses. Essa medida beneficiou o setor da impressão,
mas prejudicou os da fiação e tecelagem, que tinham no da impressão um de seus melhores
mercados. Filateurs e tisseurs viram-se obrigados a baixar os preços, apesar do custo elevado
da produção, para competir com o produto estrangeiro, especialmente o inglês e o suíço, livre
de taxas381.
Os membros do sindicato patronal, incluindo Hartmann, não eram contrários à
prática do livre comércio, mas sim a favor de uma compensação que garantisse ao produto
nacional a possibilidade de concorrer com o estrangeiro. Essa compensação poderia ser obtida
mediante, por exemplo, a redução dos impostos que incidiam sobre o transporte de bens. Os
industriais, especialmente das filatures e tissages, pronunciavam-se contra, ainda, o modo
como o tratado passou a valer, sem ter sido votado no Parlamento e com um engajamento
irrevogável até o vencimento, ou seja, durante, no mínimo, 10 anos. “Abdicar de sua liberdade
da maneira que for, exclamou o Sr. Hartmann, é sempre um grande mal”382. O discurso de

imóvel, o aquecedor amornava o odor dos tecidos, o brouhaha aumentava, feito de todos os ruídos, dos passos
contínuos, das mesmas frases repetidas cem vezes ao longo dos corredores, do ouro estralando sobre o cobre dos
caixas assediados pela precipitação das carteiras, dos carrinhos dos quais os pacotes caíam incessantemente (...).”
E, ainda: “Sob as galerias cobertas, fazia muito calor, um calor de estufa, úmido e fechado, carregado do odor
brando dos tecidos e no qual os passos da multidão eram abafados” (ZOLA, Émile. Au Bonheur des Dames.
Paris : Charpentier, 1883, 11° vol. do ciclo Les Rougon-Macquart : histoire naturelle et sociale d'une famille
sous le Second Empire, capítulos IV e IX).
380
Para o estatuto do Syndicat des Industries Cottonières de l’Est, ver: FOHLEN: 1956, anexo III, pp. 474-475.
381
« Si l’imprimerie, qui exporte 2.500.000 kilogrammes de tissus n’en tire que le quart de l’étranger où elle
pourrait acheter à 10% au dessous du prix nécessaire au producteur français, c’est précisément parce que le
producteur français est obligé de subir le prix de l’étranger » (Le Temps, Paris, 20 oct. 1869).
382
« Abdiquer de sa liberté de quelque façon que ce soit, s’est écrié M. Hartmann, est toujours un grand mal »
(COCHUT, André, La manifestation de Mulhouse II, Le Temps, Paris, 29 oct. 1869).
156

Frédéric, que chamou a atenção do jornalista do Le Temps, por ocasião da primeira reunião do
Sindicato, teve como foco estas duas questões: concorrência leal e regulamentação
transparente, garantias da autonomia e do desenvolvimento da indústria nacional.
Neste momento, trabalhadores e patrões estão unidos na mesma luta, uma vez que
reconhecem nos efeitos do Traité sobre a produção um mal comum. Quando os patrões
resolvem o seu problema esquecem-se, contudo, dos empregados, que vivem como se a crise
ainda existisse. Em 1870, uma grande greve varre, então, a Alsácia. A pauta não era política:
as reivindicações diziam respeito apenas a melhores condições de trabalho, especialmente a
redução da jornada com a manutenção dos salários383. Somente os trabalhadores de Munster,
onde estavam as manufaturas Hartmann, e de Sainte-Marie não aderiram à greve384. Por quê?
O paternalismo constitui outra característica marcante dos industriais alsacianos
do séc. XIX. Mas não sabemos se seus projetos de assistência aos trabalhadores tinham uma
relação, por exemplo, com o pagamento de baixos salários. Em 1863, durante o ponto mais
alto da crise gerada pela “fome do algodão” (famine du coton), ou seja, pela escassez da
matéria-prima devida ao fechamento, durante a guerra da Secessão (1861-1865), dos portos
do sul dos Estados Unidos, principal fornecedor de algodão da França, Frédéric Hartmann
chegou a propor à autoridade departamental (préfectorale) a redução da produção em toda a
Alsácia, com vistas a salvar as empresas menores que não poderiam, como as grandes,
continuar a produzir no mesmo volume de antes e mesmo à perte, mas não foi atendido385.

383
O movimento grevista começa timidamente em Logelbach, na Maison Herzog, com 200 operários, em junho
de 1870. Ele explode em 29 de julho no resto da região. Em Mulhouse, os operários param já entre 5 e 9 de
julho, na Dreyfus-Lantz, Vaucher, Frères-Mieg e, depois, na Schlumberger, Dollfus-Mieg e Trapp. A cidade
contava com 12 a 15 mil grevistas. Fohlen, na página 438 do estudo supracitado, elenca as demais cidades
alsacianas que aderiram, levando o movimento à sua apoteose. A pauta de reivindicações era estritamente
profissional: jornada de trabalho de 10 horas; abolição das multas; aumento de 50 centavos por dia para o
ouvrier de profession; fixação de 3 francos por dia a jornada da mão de obra; abolição do pagamento da luz;
responsabilidade unilateral do patrão nos casos de acidente de trabalho; apenas um tear/uma máquina por
trabalhador. Fohlen chama o movimento de “revolta da miséria”. Para uma descrição das condições de vida dos
trabalhadores da indústria têxtil na época, ver o relatório do médico Louis-René Villermé (1782-1863), Tableau
de l’état physique et moral des ouvriers employés dans les manufactures de coton, de laine et de soie (1840),
encomendado pela Académie des Sciences Morales, Paris. Alguns trechos que concernem à indústria do algodão
do Alto-Reno estão disponíveis em: http://www.crdp-strasbourg.fr/data/patrimoine-industriel/mulhouse-
19/villerme.php?parent=25, acesso em maio/2019. Em Mulhouse, as instalações dos ateliês de fiação, tecelagem
e impressão eram, geralmente, insalubres; a jornada era de 13 horas por dia, com pausa de 30 minutos para o
almoço e 60 para o jantar, somadas a duas ou três de deslocamento, pois a maioria dos trabalhadores residia em
locais distantes, onde o aluguel era mais barato; a alimentação, à base de batata, sopa e pão. Enquanto os filhos
dos patrões ou de altos funcionários chegavam a uma média de idade de 29 anos, os dos operários não passavam
dos 2 anos de idade.
384
« Les vallées de Munster et Sainte-Marie demeuraient calmes » (FOHLEN: 1956, p. 438).
385
Segundo os relatórios citados por Fohlen, Frédéric escrevera ao préfet: « Pour eux [les petits fabricants], la
continuation du travail est tout simplement une impossibilité, et le fait des grandes maisons qui tirent vanité de
pouvoir continuer à travailler en plein, même à perte, une cause de ruine. Ne vaut-il pas mieux… chercher à
157

Em 1864, então, ele toma medidas rigorosas para superar a crise: redução da jornada a 9 horas
por dia; 300 teares parados; demissão de trabalhadores estrangeiros; queda dos salários em ¼.
No mesmo relatório lemos, ainda, que “a população estava muito inquieta”386. Alguns anos
depois, em 1870, contudo, seus empregados não participaram da grande greve que
interrompeu bruscamente a produção na Alsácia. Hartmann teria sido um “bom patrão” ou
seus empregados não possuíam consciência política, bloqueada, justamente, pelo
assistencialismo patronal?
Esta, contudo, é uma questão para outra tese. Para os fins desta, é suficiente
observar que, enquanto herdeiro de uma grande dinastia têxtil alsaciana, Frédéric Hartmann
insere-se numa tradição empresarial marcada pelo protestantismo, pelo paternalismo e pela
ideologia liberal.

1.2. O político

Na metade dos anos 1830, Frédéric e seu irmão mais velho, Henry filho, residem
em Paris, no Faubourg Poissonière, junto com um antigo preceptor da família, então
trabalhando como advogado na Cour de Cassation. Frédéric é diplomado bachelier en droit
em março de 1841 e, aparentemente, exerce a profissão de advogado em Paris (il s’est inscrit
au barreau ao menos) até tomar parte na gerência das Indústrias Hartmann et Fils, em julho
de 1846. Todas as responsabilidades que lhe ocupavam o tempo como empresário não o
impediram de seguir uma prolífica carreira política.
Durante sua formação, foi exposto, dentro da família, ao ideário liberal. Seu avô
André fora prefeito de Munster entre 1792 e 1815. Fiel aos valores da Revolução, que
permitiu aos protestantes alsacianos fazerem fortuna na Indústria, uma vez que acabou com a
hereditariedade dos privilégios nobiliárquicos e suprimiu regulamentações corporativas que
restringiam o direito de abertura de empresas, André, malgrado toda a diplomacia empregada
em sua gestão como prefeito, integrava a oposição política durante a Restauração. Seu filho
mais velho, Hartmann-Metzger, tio de Frédéric, deputado do Alto-Reno entre 1830 e 1846,
depois pair de France387, recebeu o epíteto de “energúmeno do partido liberal” num relatório

persuader les industriels que l’intérêt général commande de réduire universellement ? » (AD Haut-Rhin, M125,
Paris et Colmar, 5 et 7 mars 1863 apud FOHLEN, 1956, p. 302, note 61.)
386
AD Haut-Rhin M 50/3, Munster, 22 février 1864 apud FOHLEN, 1956, p. 277, nota 100.
387
De 1845 a 1848, quando o título foi suprimido.
158

estadual; Jacques, seu irmão, foi louvado pelo porta-voz da oposição liberal, o general Foy,
por ocasião de uma visita a sua usina de fiação têxtil; Henry, o pai de Frédéric, foi
cossignatário de uma petição, dirigida em 1821 à Câmara, que reivindicava a restituição das
cinzas de Napoleão à França388.
Frédéric Hartmann é nomeado prefeito de sua cidade natal, Munster, pelo decreto
de 13 de junho de 1857, cargo que ocupa até o ano de sua morte, em 1880. Durante os seus 23
anos de gestão, é realizada uma série de reformas, urbanas e estruturais, que contribuem para
o desenvolvimento econômico e social da cidade, entre as quais se destacam: a construção das
escolas maternais e da Escola Técnica (Collège antes, Realschule depois da anexação à
Alemanha); a restauração da igreja católica e construção do templo protestante; a criação de
jardins públicos e praças, como o passeio em frente à estação de trem; a abertura e
pavimentação de vias públicas; a construção da ferrovia que liga Munster a Colmar (a qual foi
pensada inicialmente como uma seção da linha internacional Paris-Viena); a conclusão da
estrada da Schlucht, iniciada por seu tio Hartmann-Metzger, que atravessa a parte mais alta da
cadeia de montanhas do Vosges, conectando Munster a Gérardmer; a regularização do fluxo
do rio Ill e da gestão da água pela construção de barragens e reservatórios nas montanhas.
Em 1861, durante o Segundo Império e com 39 anos, Hartmann é eleito membro
do Conseil Général du Haut-Rhin389, sucedendo seu tio Frédéric Hartmann-Metzger390,
falecido recentemente. Seu principal concorrente era o industrial Jean Kiener. Hartmann
recebe o apoio do governo estadual e dos prefeitos do distrito (canton) de Munster, mas, ao
mesmo tempo, colaco-o em questão:

“Que os eleitores discutam o meu valor pessoal comparativamente ao do Sr. Kiener


(…). Creio que é melhor para a administração deixar o debate se concentrar sobre os
dois candidatos ao invés de dar-lhe o caráter de luta entre a administração e certa

388
SCHIMITT: 1968, pp. 9-10
389
Trata-se de um conselho deliberativo estadual (départemental) voltado ao debate e promoção de ações
sociais, educativas e culturais em âmbito local, cujo corpo é constituído, a partir de 1848, mediante sufrágio
universal masculino (em 2013, passa a chamar-se Conseil Départemental e o sistema eleitoral é alterado para o
binominal misto com dois turnos). No período de 1789, ano de sua instauração, até 1833, quando a seleção passa
a ser feita mediante sufrágio censitário, os conselheiros eram nomeados pelo ministro do Interior e pelos
governadores (préfets). É a mais alta instância deliberativa do aparelho de estado francês na esfera estadual.
390
Rapports du Conseil Général du Haut-Rhin, disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb345
224792/date, acesso em junho de 2019. O tio de Hartmann chegou a ocupar, nele, o cargo de presidente e vice-.
Antes de compor o Conseil, Frédéric esteve presente em algumas reuniões, e é referido nas atas como “Frédéric
Hartmann, dit le jeune” para distingui-lo do tio.
159

oposição”391 (Hartmann ao governador Odent, Munster, 9 de junho de 1861,


Archives Départamentales du Haut-Rhin 3M36 apud CONRAD: 1997, p. 28).

A disputa suscitou grande interesse na região do Vale de Munster. Em 17 de


junho de 1861, Hartmann vence com 77,9% dos votos, entre 83% dos válidos. Ele foi um dos
grandes oradores da Assembleia Estadual (départamentale), defendendo os interesses dos
industriais locais. Estava entre as poucas vozes capazes, pela influência e fortuna, de opor-se
ao governador. Conrad observa que, num relatório estadual, apesar de descrito como “muito
inteligente” e de “natureza ativa e apaixonada”, o relator risca a frase “sua atitude política é
conveniente” e a substitui por “sua devoção ao Império é duvidosa”392. Mesmo assim,
Hartmann é reeleito para cadeira de conselheiro estadual em 1867.
Em 1866, é um dos signatários em favor do estabelecimento, na França, de uma
“Liga do Ensino” (Ligue de l’Enseignement), conforme a lista dos aderentes publicada em seu
Primeiro Boletim393. Trata-se de uma iniciativa do jornalista e pedagogo Jean Macé (1815-
1894), desde 1852 ensinando em Beblenheim, Alsácia394. Consistia numa espécie de grande
sociedade cooperativa descentralizada, trabalhando em comum acordo pela expansão da
educação popular395. Macé inspira-se num modelo belga, sobre o qual escreve um artigo,
publicado no jornal l’Opinion Nationale, seguido de uma campanha pela adesão de membros

391
« Que les électeurs discutent ma valeur personelle comparativement à dele de M. Kiener (…). Je crois qu’il
vaut mieux pour l’administration laisser le débat s’engager et se concentrer entre les deux candidats, que de lui
donner un caractère de lutte entre l’administration et une certaine opposition. »
392
Citado em: CONRAD, Olivier. Les conseillers généraux du canton de Munster au dix-neuvième siècle.
L’influence de la famille Hartmann sur la vie politique locale. Annuaire de la Société du Val et de la ville de
Munster, Tome LI (51), 1997, p. 30.
393
MACÉ, Jean, Projet d’établissement d’une ligue de l’enseignement en France, Premier Bulletin, Colmar, 15
décembre 1866, p. 9.
394
Macé estava convicto, em 1848, que a instauração do sufrágio universal em si mesma, pela qual militava, sem
a paralela instrução da população em matéria política, não aprimoraria, como esperado, o sistema democrático.
« Depuis 1848 je n’ai eu qu’une pensée, celle de l’éducation du peuple, escreve, le suffrage universel a surpris la
masse de la nation française en flagrant délit d’ignorance » (apud Jean Macé: un village, un homme, une idée,
Beblenheim, 2003, p. 21). Em Paris, onde nasceu, frequentou círculos fourieristas e, depois de ter percorrido a
França ministrando conferências sobre o socialismo, dirigiu, entre 1848-49, o bureau de propaganda socialista na
capital. Ingressou, em seguida, no jornal La Republique, de tendência associationniste, fechado pelo governo
imperial em 2 de dezembro de 1851, ocasião em que se exila em Beblenheim, onde segue a carreira docente sem
deixar de lado a atividade de escritor.
395
No breve manifesto publicado no primeiro Boletim, Macé afirma que os grupos autogeridos espalhados pelo
território nomeariam um bureau (que terá depois sede em Paris) para reunir, divulgar e compartilhar as
diferentes experiências, funcionando como um centro de documentação e propaganda. Macé já tinha estado à
frente de um tipo de organização civil como essa, a Société des bibliothèques du Haut-Rhin, fundada por ele em
1863.
160

com a qual outros jornais, entre eles o Les Echos de la Valée de Munster, de Munster, e o
L’Industriel Alsacien, de Mulhouse, vêm colaborar, divulgando igualmente a chamada.
Na carta de adesão, os signatários liam que a Liga não serviria a interesses
religiosos396 e, no art. 3º de seu primeiro estatuto, datado de 1867, determina-se que “seja no
ensino, seja no programa das escolas, fundadas ou apoiadas pela Liga, abster-nos-emos de
toda polêmica (…) religiosa”397. Apesar de no breve manifesto, publicado no primeiro
Boletim, não ser feita nenhuma alusão direta ao tema, a Liga atuará no sentido de promover a
educação laica398, culminando na petição que Macé entregará à Assembleia Nacional, em
junho de 1872, a favor da escola obrigatória, gratuita e laica, que reuniu mais de oitocentas
mil assinaturas399. Hartmann, como sua atuação como prefeito desde 1857 vinha mostrando,
interessou-se particularmente por esse problema da instrução popular. Logo que assume o
cargo, ele recebe de seu tio Hartmann-Metzger a nova sede das escolas primárias, depois
inaugura as escolas maternais em 1866, mesmo ano em que oferece seu apoio à criação da

396
« Les soussignés désireux de contribuer personnellement au développement de l’instruction dans leur pays,
déclarent adhérer au projet d’établissement en France d’une LIGUE DE L’ENSEIGNEMENT, au sein de
laquelle il demeure entendu qu’on ne servira les intérêts particuliers d’aucune opinion religieuse ou politique. Ils
s’engagent à en faire partie, quand elle sera constituée, et à souscrire annuellement chacun pour la somme portée
à la suite de son nom » (caixa alta no original, op. cit., nota 393, p. 28). Muitos assinaram sem estipular a soma
anual de contribuição, entre eles Fritz Hartmann, maire de Munster.
397
« (…) soit dans l'enseignement des cours, soit dans le programme des écoles, fondés ou soutenus par la Ligue,
on s'abstiendra de tout ce qui pourrait avoir une couleur de polémique, politique ou religieuse » (DESSOYE,
Arthur, Jean Macé et la fondation de la Ligue de l'enseignement, Paris, 1883, p. 64).
398
Em julho de 1868, por exemplo, os aderentes criam uma Société Civile d’épargne et de crédit mutuel
intitulada Association Générale coopérative de l’enseignement libre, com vistas a remunerar professores “livres
e laicos” (cf. LEFEBVRE, André, « Jean Macé », communication du 8 mai 1976, p. 15). Em outra ocasião, para
responder a ataques do clero, que considerava suspeito um movimento que excluía de sua carta a religião, Macé
publica um artigo no Boletim da organização, Filosofia da Liga, em que afirma que sua obra era religiosa no
sentido mais profundo da palavra, pois cumpria “um dever universal de amor e justiça” (cf. Dessoye, op. cit., pp.
67-73). Convém lembrar, ainda, que a Liga belga, modelo da francesa, nasceu justamente como reação a uma lei,
promulgada em 1842, que entregava o ensino nas mãos do clero.
399
Chamada também de mouvement national du sou contre l'ignorance, pois solicitava um centavo para as
custas do processo, a petição começara a circular em outubro de 1871. A Liga foi muito cautelosa em relação ao
emprego do adjetivo “laica”, preferindo ressaltar, destarte, a gratuidade e obrigatoriedade, entendendo que a
laicidade seria promovida como uma consequência natural, sendo o Estado responsável pela oferta. Dessoye
afirma que foi o jornal Siècle que a reivindicou explicitamente, depois outros vieram no seu encalço. Malgrado
todo o esforço de moderação (desde, aliás, a fundação da Liga), os partidos clericais reagiram criando outra
petição, chamada pétition des évêques, na qual se pronunciavam contra a obrigatoriedade, gratuidade e laicidade
(a palavra fora impressa) do ensino, o que terminou por consolidar, paradoxalmente, o tríplice objetivo do
movimento que combatiam. Por fim, a petição de cerca de 200 kg (foi preciso um chariot, uma carroça grande,
para transportá-la até Versailles) contendo a proposta de reforma entregue à Assembleia discriminava aqueles
que assinaram pela obrigatoriedade (116.105), pela obrigatoriedade e gratuidade (383.391) e, enfim, pela
obrigatoriedade, gratuidade e laicidade (348.265), totalizando 847.761 subscritos (Dessoye, op. cit., pp. 109-10;
114-15). Os frutos do engajamento de Macé, todavia, só foram efetivamente colhidos dez anos depois com a
promulgação, em 1881-82, das chamadas Leis Ferry.
161

Liga do Ensino de Macé e que preside o comité cantonal de l’instruction publique, ocupando-
se depois da reorganização do ensino secundário técnico.
O “ensino público, obrigatório e gratuito, destituído de qualquer caráter
confessional” foi um dos pontos fortes do programa político de Hartmann quando, em 1869,
concorreu ao mandato de deputado nas eleições legislativas pela primeira circunscrição do
Alto-Reno (compreendendo então 94 comunas, entre as quais Munster), contra o candidato
oficial, funcionário público apoiado pela administração, Léon Lefébure, o qual também
possuía uma cadeira no Conseil Général400. As eleições ocorrem em 23 e 24 de maio de 1869
e Hartmann perde. Logo após a sua derrota, ele defende obstinadamente o princípio da escola
laica também no seio do Conselho Geral.
Na séance de 28 de agosto de 1869, ele se pronuncia contra a Lei Falloux de 13 de
março de 1850, que conferia às escolas públicas primárias um caráter confessional e aos
professores (instituteurs), a obrigação de ensinar os dogmas sob a direção dos ministres de
cultes, clamando pelo retorno ao esprit équitable da Lei Guizot de 1833. Hartmann deixa
claro que não está tomando o partido de uma ou outra crença religiosa ou mesmo
antirreligiosa, mas que, antes, coloca-se “sob o ponto de vista imparcial da liberdade de
consciência que garante a todos, crentes ou não, a mesma independência e plenitude de
direito”401. A escola deve ser, para ele, “um terreno neutro e de conciliação, despido de todo
caráter sectário ou clerical”402.
Segundo a Lei Falloux, as comunas deveriam ofertar o ensino público elementar
gratuito em escolas separadas, uma para cada culto “reconhecido” ou “professado
publicamente”, exceções devendo ser circunstanciais e provisórias, o que implicava vedar o
acesso a todos os dissidentes, os quais, no entanto, argumenta Hartmann, eram também
contribuintes. Além do problema da violação da liberdade de consciência e da exclusão dos
agnósticos e ateus, o estabelecimento e manutenção de diferentes escolas para diferentes
cultos elevava consideravelmente as despesas municipais (em especial numa região como a
Alsácia, com uma comunidade protestante e judaica tão ou mais forte que a católica). Ele cita,
ainda, o exemplo bem sucedido da Holanda, que adotou o princípio da escola mista e laica

400
A disputa é registrada em dois jornais da época – o Journal de Colmar (partidário de Hartmann) e o L’Alsace
(por Lefébure). Ver a profession de foi de Hartmann publicada no Journal de Colmar, 25 abril 1869, p. 3, que
abre com o lema: « que le pays soit réintégré dans son droit de se gouverner lui-même ».
401
CONSEIL Général du Haut-Rhin, Du caractère exclusivement laïc dans les écoles primaires : session de
1869, Colmar, 1870, grifo nosso, p. 8.
402
Grifos nossos, id.
162

desde o início do séc. XIX, pela força da lei francesa promulgada durante o Primeiro Império,
e que, distinguindo claramente ensino moral de ensino dogmático, preservou tais princípios
décadas depois, ao revisar a lei de 1806, continuando a educar suas crianças em valores de
igualdade, cooperação e fraternidade403.
Hartmann pede um voto pela “retomada da função social da escola” – que ela
congregue crianças de todos os credos, sem se pronunciar em matéria religiosa (restringindo-
se ao ensino de valores cristãos universalmente aceitos), e que os professores tenham sua
atuação acompanhada por um comitê local, eleito entre os pais de família e presidido pelo
prefeito, independente do jugo eclesiástico (ministres de cultes) ou da vontade da
administração estadual (préfectorale). As réplicas de Léfebure incluíam argumentos do tipo
“neutralidade é idealismo, só pode existir na aparência”, “ausência de posicionamento claro
desemboca em democracia autoritária ou ateísmo destrutivo”, “não há educação religiosa sem
religião positiva”, “as crianças pertencem aos seus pais antes de pertencerem ao Estado”, etc.
Tais argumentos parecem, contudo, ter impressionado a audiência e, depois de Hartmann ter
perdido as eleições legislativas para Lefébure, sua proposição é rejeitada, após um debate que
revivia questões levantadas à exaustão na recente disputa eleitoral, por uma diferença de 6
votos a contar do total de 25 válidos.
O princípio da liberdade de consciência, sem o qual não há emancipação ou
independência, garantido, ainda, mediante uma ação estatal o mais “neutra” possível, esteve
no cerne da atuação política de Hartmann. Isso fica literalmente visível na construção do
templo protestante e simultânea restauração da igreja católica de Munster promovidos durante
a sua gestão como prefeito. Desde o séc. XVII, os dois cultos, católico e protestante, eram
celebrados na mesma igreja dentro do regime do Simultaneum. Na metade do séc. XIX, o
desenvolvimento industrial e a consequente expansão demográfica, somados ao estado
precário da igreja católica, dirigiram a atenção do município para a necessidade de reforma
desta última e de construção de uma nova para acolher a população protestante, igualmente
numerosa.
Já em fevereiro de 1860, descontente com o anteprojeto para o templo de autoria
do arquiteto Charles Geiger Fils, Hartmann encomenda, por carta, um novo ao parisiense
Henri Labrouste (1801-1875)404. Ele é bastante preciso em suas instruções e envia-lhe, em

403
Id., pp. 11-2.
404
Sobre Ch. Geiger Fils, pouca informação existe. Nasceu em Colmar e foi o responsável, em Munster, pelo
transporte e remontagem, devido à construção do templo protestante, do prédio chamado La Laub, entre 1867-
69. Labrouste nasceu em Paris e foi admitido na École des Beaux-Arts em 1819, depois laureado com o Prix de
163

anexo, o anteprojeto de Geiger e algumas fotografias de igrejas do Alto e do Baixo Reno com
vistas a ilustrar as suas orientações405. Em relação às janelas, por exemplo, ele remete
Labrouste à fotografia da igreja de Pfaffenheim, a qual “indique une fenêtre fort belle” (fig.
133). Hartmann prefere que a sacristia e as outras peças sejam iluminadas por grandes baies
em menor quantidade que as pequenas e numerosíssimas janelas propostas por Geiger, as
quais conferem ao edifício, em sua opinião, “l’air d’un tissage ou d’une filature”. Ele busca,
assim, uma coerência não somente entre forma e função, mas também de ordem cultural,
desejando integrar o templo dentro da tradição arquitetônica local.
O projeto de Labrouste foi bem acolhido por Hartmann, que o considerou “severo
e simples”, pecando apenas “talvez” pelo “excesso de simplicidade”406. Contudo, ele não foi
levado a cabo, mas sim o do arquiteto suíço Frédéric Louis De Rutté (1829-1903)407. Embora
Hartmann não cite a igreja católica de Munster como modelo nas cartas a Labrouste e,
desconhecendo as cartas que eventualmente possa ter trocado com De Rutté, o projeto
definitivo terminou parecido com o dela, a sua precedente: estreito na base, com a torre
quadrangular elevando-se numa proporção de 1:3 (fig. 132).
Apesar de considerado por Eugène Delacroix “um fervoroso protestante”408, a
intervenção de Hartmann procurou, aparentemente, ser a mais neutra possível, testemunhando
uma prática em consonância com o ideal liberal e republicano, tão prezado por ele, da
“liberdade de consciência”. O templo protestante foi concebido como uma espécie de espelho
da igreja católica. Isso fica claro numa foto atual recuada do centro da cidade (fig. 131).
Tal conduta de Hartmann, orientada no sentido de colocar as diferenças em
harmonia em nome de um objetivo maior, também é ilustrada no modo como ele conduziu as

Rome em 1824, permanecendo na Itália durante seis anos. De retorno, abriu um ateliê de formação de arquitetos
na capital. Representante da corrente racionalista, seus trabalhos mais conhecidos são a Bibliothèque Sainte-
Geneviève e a renovação do setor histórico da Bibliothèque Nationale de France, Paris.
405
Munster, 19 fev. 1860, Bnf, Estampes, Hz465(3) Pet fol, Papiers Labrouste, Dossier 45.
406
Munster, 29 ago. 1860, Bnf, Estampes, Hz465(3) Pet fol, Papiers Labrouste, Dossier 45.
407
Conforme a ata da reunião do Conselho Municipal de Munster do dia 29 de dezembro de 1866, registrada no
Livro de Deliberações. De Ruté nasceu em Sutz, estudou em Berthoud e Karlsruhe. Nos anos 1860, trabalhou em
Mulhouse em associação com o escritório de arquitetura parisiense de Pierre-Charles Dusillon (1804-1878). Em
1872, transferiu seu domicílio à Suíça, mas continuou a fazer projetos na Alsácia, por exemplo, o prédio do atual
Musée de l’Impression sur l’Étoffe, em Mulhouse.
408
Journal, II, p. 1212, Paris, 29 dez. 1857. Hartmann foi membro do Consistoire supérieur de l’Église de la
Confession d’Augsbourg (Nouveau dictionnaire de biographie alsacienne, p. 1422) e “defendia com ardor a tese
da existência de Deus e da vida além-túmulo” (Notice, Discours de M. Jacques Koechlin, ancien ami de la
famille, p. 95).
164

negociações, envolvendo inclusive o imperador Napoleão III, do projeto da linha ferroviária


de Paris à Viena, na qual o trecho Munster-Colmar (já aprovado por decreto em 1866 e em
fase de execução entre maio de 1867 e dezembro de 1868) estaria incluído. Interesses das
cidades de Colmar e Mulhouse/Strasbourg divergiram e uma disputa entre dois planos com
traçados distintos teve lugar até que Hartmann propusesse um terceiro, uma solução de
compromisso que é referida na literatura posterior como “projet de conciliation”, que ele
apresenta à Comission d’enquête du Haut-Rhin sur les divers projets de percée des Vosges em
janeiro de 1868409. Após algumas modificações, ele é votado favoravelmente no corpo
legislativo e aprovado por decreto em agosto de 1870. Mas sobrevém, então, o “ano terrível”.
A guerra franco-alemã de 1870-71 muda os rumos da trajetória política de
Hartmann410. Em 1871, depois da bem-sucedida intervenção militar inimiga, com a
capitulação de Napoleão III e a queda do Segundo Império, diante, então, da iminência da
vitória alemã após a assinatura do armistício em janeiro, uma eleição legislativa é feita às
pressas e sem muita publicidade, em 8 de fevereiro de 1871, na Alsácia. Hartmann encontra-
se entre os deputados eleitos enviados à Assembleia Nacional, então com sede em Bordeaux,
que subscreveram a famosa Protestation de Bordeaux, lida na séance de 1º de março de 1871.
Nela, eles opunham-se veementemente à cessão da Alsácia e de uma parte da Lorena ao
governo prussiano e afirmavam seu desejo e direito de permanecerem franceses411. Em vão,
pois o voto pela anexação foi majoritário (546 a favor, 107 contra, 23 abstenções) e, com o
tratado de Francfort, de 10 de maio de 1871, a anexação é, finalmente, ratificada.

409
SCHIMITT: 1968, pp. 16-17; 39-45. No original, chamava-se “Projet Mixte” (HARTMANN, Frédéric.
Percée des Vosges: projet mixte. Strasbourg: Berger-Levrault, 1868).
410
Sobre o conflito, que opôs a França, um país cuja unidade fora construída ao longo de séculos às custas de
diferentes regimes políticos, à Alemanha, composta então de estados mais jovens no caminho da unificação, ver
o catálogo da exposição France Allemagne(s) 1870-1871: la guerre, la commune, les mémoires, Musée de
l’Armée, Paris, 13 avril - 30 juillet 2017.
411
« Livrés, au mépris de toute justice et par un odieux abus de la force, à la domination de l'étranger, nous
avons un dernier devoir à remplir. Nous déclarons encore une fois nul et non avenu un pacte qui dispose de nous
sans notre consentement. La revendication de nos droits reste à jamais ouverte à tous et à chacun dans la forme
et dans la mesure que notre conscience nous dictera. Au moment de quitter cette enceinte où notre dignité ne
nous permet plus de siéger, et malgré l'amertume de notre douleur, la pensée suprême que nous trouvons au fond
de nos cœurs est une pensée de reconnaissance pour ceux qui, pendant six mois, n'ont pas cessé de nous
défendre, et d'inaltérable attachement à la patrie dont nous sommes violemment arrachés. Nous vous suivrons de
nos vœux et nous attendrons, avec une confiance entière, dans l'avenir, que la France régénérée reprenne le cours
de sa grande destinée. Vos frères d'Alsace et de Lorraine, séparés en ce moment de la famille commune,
conserveront à la France, absente de leurs foyers, une affection filiale, jusqu'au jour où elle viendra y reprendre
sa place » (a frase em destaque é de autoria de Hartmann, Archives de l’Assemblée Nationale, disponível em:
http://www2.assemblee-nationale.fr/decouvrir-l-assemblee/histoire/1914-1918/les-deputes-protestataires-d-
alsace-lorraine/la-declaration-du-1er-mars-1871, acesso em maio de 2019).
165

Os alsacianos são instados, então, a escolher entre manter a cidadania francesa e


emigrar à França ou permanecer no país e adotar a cidadania alemã. Fréderic Titot, que fora,
como Hartmann, eleito deputado pelo Alto-Reno e enviado a Bordeaux, afirma que ambos
renunciaram ao cargo diante do “esvaziamento” do mandato gerado pela mudança de
nacionalidade daqueles que o haviam confiado a eles412. Com família e negócios bem
consolidados na região, Hartmann permanece na Alsácia. No mais, ele precisa, enquanto
prefeito de Munster, negociar com as autoridades prussianas.
Com a intervenção militar, o tráfego ferroviário fora interrompido já em agosto de
1870. A construção da linha Munster-Colmar, aberta em 3 de dezembro de 1868, propriedade
do município de Munster, foi possível, em parte, por conta de um empréstimo feito por um
grupo de industriais da região (incluindo os Hartmann)413 que se tornaram, então, credores da
dívida cuja amortização seria quitada com a receita gerada pela própria atividade da ferrovia.
Com a aplicação do Deutscher Zollverein, a aliança aduaneira e comercial alemã, os
industriais alsacianos perdem a ligação com regiões que serviam ao escoamento de suas
mercadorias, especialmente Paris; eles perdem, então, uma parte significativa de seu mercado.
Diante da situação precária e deficitária, respectivamente, das indústrias e da ferrovia,
Hartmann, o industrial e o prefeito, consciente da necessidade iminente de vender a concessão
da linha ao governo prussiano, reúne-se com as autoridades competentes, inclusive com o
chanceler imperial Otto von Bismarck e, em dezembro de 1871, ela passa às mãos dos
alemães. Além disso, ele discute com a administração do Reichsland o novo estatuto das
escolas de Munster, que se tornam, finalmente, interconfessionais, a obrigatoriedade do
ensino sendo decretada já em 1871.
Depois da anexação, Hartmann passa a defender uma política autonomista na
Alsácia. Num discurso pronunciado numa reunião de industriais em Colmar, após seu retorno
de Bordeaux, em 24 de março de 1871, ele pondera que, contanto que o novo governo
deixasse a Alsácia ser ela mesma, dotando-a de instituições tão liberais quanto possível, a

412
« À la suite de cette protestation, notre mandat se trouvant épuisé par suite du changement de nationalité de
ceux nous l’avaient confié, nous crûmes devoir donner notre démission » (Notice, Discours de M. Tilot [sic],
ancien collègue du défunt à la députation de Bordeaux, pp. 99-100).
413
Na cotização entre os industriais – obviamente a linha férrea era do interesse deles tanto quanto da população
– a firma de Hartmann assumiu a maior parte da dívida: « Dans le cas où le rendement kilométrique (…)
n’atteindra pas le chiffre nécessaire pour couvrir, outre les frais d’exploitation et d’entretien, le service annuel
des intérêts et des amortissements du capital emprunté par la ville (…), les manufacturiers s’engageaient
solidairement à parfaire la différence dans les proportions ci-après : (…) Hartmann et fils : 36% » (grifo nosso,
apud Schimitt, op. cit., p. 52)
166

cooperação, em nome da prosperidade e da paz, era um caminho viável414. Em resposta, em


maio de 1871, um panfleto não assinado, mas emitido por uma organização de resistência à
germanização chamada Liga da Alsácia, dirige-lhe críticas violentas, acusando-o de traidor,
desertor e oportunista415.
A resposta de Hartmann é publicada no jornal L’Industriel Alsacien em 1º de
junho de 1871. Após condenar o anonimato do texto, ele defende o realismo de suas ações em
contraste com o julgamento “mais apaixonado que razoável” de quem o ataca. Ele objeta que
não cabia mais protestar “em nome do direito” diante da violência da conquista; que estavam
no meio de um estado de coisas cujo movimento os engolia e ultrapassava e dentro do qual,
bem ou mal, era necessário viver; que encontrou uma ocasião não de negar, mas de reafirmar
seu compromisso com a mère-patrie nas reuniões que teve em Berlin, pois o seu objetivo era
o de salvar a indústria e a economia local da ruína. Seu acusador poderia lançar mão das
frases de efeito que fossem, mas o povo, “c’est Molière qui l’a dit: il vit de bonne soupe et
non de beau langage”416.
Hartmann acrescenta, ainda, que escrevera um projeto de protestation, em
Bordeaux, o qual tinha a intenção de levar à tribuna em 28 de fevereiro de 1871 (um dia antes
da leitura do documento histórico), mas que foi demovido pela divisão que gerara dentro do
grupo. Nele, continua, os sentimentos que exprimia atualmente já haviam sido formulados (de
modo que não estava sendo contraditório com o que defendera antes), ou seja, de que, acima
de toda a disputa territorial, o seu lugar não era, no fundo, nem alemão, nem francês, mas
alsaciano: “Vítimas da mais dolorosa iniquidade, os subscritos limitam-se a inspirar-se

414
« Nous vous aideront de notre concours, pour contribuer à rendre à notre pays la prospérité et le repos. À
condition toutefois que vous laissiez notre pays être lui-même et le dotiez d’institutions aussi libérales que
possible » (apud LESER: 2009, p. 96).
415
Gerard Leser publica, em 2009, dois panfletos diferentes, ambos anônimos, mas remetidos à Liga da Alsácia,
a qual, segundo o autor, era dirigida por Alfred Koechlin (1825-1872), um “inimigo pessoal” de Hartmann. No
trecho a seguir extraído de um deles, não datado, o tom agressivo é evidente: “Allez donc à Bismarck demander
la pâture/ qu’il daigne jeter à ses chiens;/ Vous aurez en surplus, suprême flétrissure,/ Le mépris… même des
Prussiens !/ Allez, mais désormais, pour traverser nos villes/ Cherchez les plus secrets détours ;/ Gardez-vous
d’étaler, lâches, vos faces viles/Au peuple de nos carrefours ! » O outro, na verdade o primeiro publicado pela
Liga, em maio de 1871, mais comedido na linguagem, afirma ironicamente : « Il est opportun d’accepter
franchement les faits accomplis et de renoncer à la lutte ; en d’autres termes, il est bon de sacrifier les révoltes de
sa conscience à la logique des intérêts matériels » (apud LESER: 2009, p. 94; p. 97). Para uma documentação
mais completa, ver a brochura: La Ligue d’Alsace: première série, 1871-1872, Paris, 1873 (consultada na
Biblioteca de Colmar).
416
Transcrito em LESER: 2009, p. 101.
167

apenas no sentimento de sua própria dignidade e em sua devoção à essa grande e nobre
família alsaciana à qual permanecem orgulhosos de pertencer.”417
Ele conclui sua réplica assim:

“Se a Alsácia tivesse permanecido francesa, teria eu devotado toda a minha energia
ao fortalecimento da República. Mas a Alsácia é alemã! Entendo permanecer ligado
à sua fortuna diversa e sofrer a sorte de minha terra natal. Trabalharei no meio de
meus concidadãos, que estimo e amo, no seio deste nobre país cujos grandes
aspectos elevam e fortificam as almas que o compreendem, e que me aparece,
somado tudo, como o meu melhor refúgio contra as dolorosas desventuras da
política dos homens e de suas apreciações injustas e equivocadas.”418

Todos os discursos fúnebres e necrologias em honra a Hartmann mencionam esse


momento de sua carreira política, o da anexação, o qual coincide com a hostilidade aberta de
alguns compatriotas em face da Realpolitik que se vê, então, compelido a praticar. Depois
disso, Hartmann se retira da vida pública, mantendo apenas suas atividades como prefeito de
Munster. O discurso fúnebre do pastor Dhombres, pronunciado na Église du Saint-Esprit, em
Paris, supõe que a perda do pays natal tenha-lhe infligido uma ferida tão profunda “que
certamente teve a sua parte no esgotamento de suas forças e em seu fim prematuro”419. O
quanto isso o matou ninguém pode, de fato, saber. Podemos afirmar apenas que a convicção
de que estava trabalhando pela Alsácia o consolava de perdas maiores e que o exercício de um
patriotismo mais circunscrito veio compensar a impossibilidade de outro mais amplo.
Sua ascensão política desde 1857 foi marcada por uma espécie de “regionalismo-
nacionalista” (minha aldeia é minha nação) cujo móvel era, por um lado, o vínculo estreito
com a Indústria, grande motor da economia local e, por outro, a forte crença em princípios
liberais, de valorização do indivíduo, da democracia representativa e da independência,
herdados de sua família burguesa e protestante. Em poucas palavras: liberdade de consciência,
independência, Alsácia.

417
« Victimes de la plus douloureuse iniquité, les soussignés en sont réduits à ne plus s’inspirer que du sentiment
de leur dignité, et de leur dévouement à cette grande et noble famille alsacienne à laquelle ils restent fiers
d’appartenir » (transcrito em LESER: 2009, p. 102).
418
« Si l’Alsace était restée française, j’eusse voué toute mon énergie à l’affermissement de la République. Mais
l’Alsace est allemande ! J’entends rester associé à ses fortunes diverses et subir le sort de ma terre natale. Je
travaillerai au milieu de mes concitoyens que j’estime et que j’aime, au sein de ce noble pays dont les grands
aspects élèvent et fortifient les âmes qui le comprennent, et qui m’apparaît, à tout prendre, comme mon meilleur
refuge contre les douloureuses mésaventures de la politique des hommes et leurs appréciations injustes ou
erronées » (id., p. 102).
419
Notice, p. 7.
168

1. 3. O colecionador

Como o ser humano é educado mais por exemplos do que por palavras, convém
pontuar alguns antecedentes de colecionismo e, especialmente, de mecenato artístico dentro
da família de Hartmann.
Seu tio, Frédéric Hartmann-Metzger, custeou a reparação do prédio onde já então
funcionava o Museu de Colmar: o convento de Unterlinden420. Seu outro tio, Jacques
Hartmann, por sua vez, um dia antes de morrer, conforme a necrologia publicada em 30 de
março de 1839 num jornal de Strasbourg, doou uma soma considerável para a criação e
instalação da estátua de Gutenberg, ainda hoje na praça de mesmo nome, em Strasbourg. Na
mesma necrologia lê-se que, além do amor à música – Jacques tocava fagote (basson) –
aprazia-lhe cercar-se de artistas, bem como ajudá-los e encorajá-los421.
O compositor e violinista Louis Spohr (1784-1859) e a esposa, a famosa harpista
Dorette Scheidler (1787-1834), em turnê pela Europa, passando por Strasbourg, foram
convidados por Jacques para uma estadia em Munster de algumas semanas, em março de
1816. É Spohr quem relata, em sua Selbstbiographie (1860):

“O senhor Hartmann não deixa passar facilmente um artista distinto pela Alsácia
sem o atrair e, em consequência, um grande número hospedou-se com ele, entre os
quais Rodolphe Kreutz, Durand, Turner, Bärmann e os irmãos Schunke.”422

Além disso, o contato com a arte fazia parte do cotidiano da fábrica. O mesmo
Spohr escreve que, durante sua estadia em Munster, Jacques o levou para conhecer a sua
fabrique d’indiennes:

“Ela (…) produz tecidos que, no que diz respeito a seus desenhos de bom gosto, são
preferidos mesmo aos da Inglaterra. Ocupa mais de 800 pessoas e, dentre elas,
artistas distintos como pintores e gravuristas. Nela fabrica-se todo tipo de indianos:
o mais ordinário, impresso à mão; o fino, impresso em rolo; indianos para móveis e
para tapeçarias ornados de gravuras pequenas e grandes (…). Com frequência, os

420
Notice, p. 42.
421
« La musique, entre autres [des beaux-arts], avait attiré sa préférence et ne se bornant pas à l’amour de la
musique pour elle-même, mais la cultivant surtout dans ses représentant, il aimait à s’entourer d’artistes
distingués (…) qu’il se plaisait à encourager et à aider (…) » (Notice, p. 53).
422
« M. Hartmann ne laisse pas passer facilement un artiste distingué par l’Alsace sans l’attirer, et, par suite, bon
nombre ont séjourné chez lui, entre autres Rodolphe Kreutz, Durand, Turner, Bärmann et les frères Schunke »
(apud Notice, p. 61).
169

artistas trabalham durante anos neste gênero de pranchas para impressão. A maior
parte dos desenhos são cópias de quadros conhecidos.”423

As quatro estações, por exemplo, foram tema de uma estampa para mobiliário
criada por Bonaventure Marie Lebert (1759-1836) para a Hartmann et Fils, em 1808 (Cooper
Hewitt Collection, Nova York). Flora é levada pelos ares por Zéfiro, enquanto pastores
conduzem um rebanho de ovelhas, na Primavera; Ceres entronada recebe oferendas, enquanto
os campos de trigo são ceifados, no Verão; Sileno montado sobre um asno aproxima-se de um
altar onde o jovem Baco é adorado, no Outono; Cronos vigia o fogo na companhia de Éolo,
no Inverno. O tema possui, de fato, um apelo junto à indústria da decoração em geral e
podemos encontrá-lo também em bibelôs e peças de louça.
Convém lembrar, ainda, que a filha de Jacques, Caroline Hartmann (1808-1834),
era uma pianista de grande talento. Depois de ser notada, aos oito anos de idade, por Spohr,
ela mudou-se para Paris em 1833, onde teve aulas com Franz Liszt (1811-1886) e Frédéric
Chopin (1810-1849). Jean-Jacques Eigeldinger escreve que Caroline estava entre os talentos
mais promissores orientados pelo mestre, não tivesse morrido prematuramente424. Chopin
dedicou-lhe o Rondo em mi bemol maior op. 16 (cujo primeiro exemplar encontra-se anotado
à mão “pour Mlle Caroline avec mille belles choses de la part de son dévoué, FF Chopin”)
como forma de impulsionar-lhe a carreira425. O pintor Henri Lebert (1794-1862), filho de
Bonaventure, que trabalhava nessa época nas Indústrias Hartmann, tendo visitado Chopin
quando ela se encontrava já muito doente, afirma que, ao falarem dela, “lágrimas sinceras
correram dos olhos do professor”426 e que ele se dispôs a fazer uma visita, na ocasião, a
Jacques Hartmann.

423
« Elle (…) produit des tissus qui, eu égard à leurs dessins de bon goût, sont préférés même à ceux
d’Angleterre. Elle occupe plus de 800 personnes et, dans le nombre, des artistes distingués comme peintres et
comme graveurs. On y fabrique toutes sortes d’indiennes, de l’ordinaire, à impression à la main, du fin, à
impression au rouleau, des indiennes pour meubles comme aussi pour tentures ornées de gravures petites et
grandes (…). Souvent les artistes travaillent des années à ce genre de planches à impression. Les dessins sont la
plupart de copies de tableaux connus » (apud Notice, p. 63).
424
EIGELDINGER, Jean-Jacques. Chopin vu par ses élèves. Paris: Fayard, 2003 [1970], p. 15.
425
Id., pp. 319-20.
426
“Nous n’avons encore parlé que de Mademoiselle Caroline avec une véritable douleur, car des larmes
sincères se montrèrent dans les yeux du professeur de Mademoiselle Caroline Hartmann. (…) Dans peu de jours,
M. Chopin se rend à Aix-la-Chapelle à un Congrès de musiciens et se propose de faire une visite à M.
Hartmann » (le 4 mai 1834, Journal d’Henri Lebert, Archives Municipales de Colmar, publicado em: Annuaire
de la Société du Val et de la Ville de Munster, Tome XVIII, 1963, p. 93). Mesmo podendo tratar-se de
linguagem figurada, parece que Caroline não era, de fato, uma aluna qualquer para Chopin.
170

É muito provável que, nessa época, metade dos anos 1830, a residência dos
Hartmann em Paris tivesse uma sala com um piano, uma salle de concert. Lembrando que
pouco depois, provavelmente em 1835 ou 1836, Frédéric e Henry filho estarão na cidade para
concluir o lycée e iniciar a faculdade427. Como mencionado, Henry estudou na École Centrale
des Arts et Manufactures de Paris, tendo demonstrado, jovem, talento para o desenho e a
pintura428.
Onze anos depois da morte de Caroline, em 1845, Liszt apresentou-se, a convite
do pai de Fredéric, Henry, em Munster e foi recebido tanto por ele quanto por Jacques, seu
irmão, com toda distinção possível: almoço farto, visita ao Schlosswald (próximo à Munster,
onde a família tinha um chalet de veraneio), seguida de visita à filature, terminando no
pavilhão de música do jardim de Jacques. Segundo Henri Lebert, que presenciou os
acontecimentos, Lizst teria dito que a recepção do Sr. Hartmann foi “royale”. É provável
todavia que, na ocasião, os irmãos Henry e Frédéric estivessem em Paris, pois, no dia
seguinte, Lebert vai à capital e afirma ter visto “les fils Hartmann”429.
Finalmente, o sogro de Frédéric, o régent de la Banque de France e
manufacturier Alexandre Sanson-Davillier, provavelmente possuía uma coleção de obras de
arte em Paris430 e seu exemplo pode ter influenciado o jovem Hartmann. Além disso, o Baron
Jean-Charles Davillier (1823-1883), primo da esposa de Frédéric citado adiante no texto, foi
um colecionador de renome e grande erudito, embora mais interessado pelas artes decorativas
da península ibérica431.

427
Pensamos na possibilidade de o contato inicial de Hartmann com Delacroix ter origem neste vínculo
profissional entre sua prima e Chopin, o qual conhece o pintor em Paris em torno de 1836-1838, período que
marca o início de uma grande amizade entre os dois. Mas a possibilidade é muito remota, uma vez que Caroline
já havia falecido há pelo menos dois anos quando Chopin e Delacroix se conheceram e Hartmann ainda era
muito jovem – tinha então 14 anos – para levar a cabo a formação de uma coleção de envergadura. Guardemos,
contudo, o fato de a residência dos Hartmann em Paris ter um piano e, portanto, muito provavelmente, uma salle
de concert.
428
Notice, p. 76.
429
Lettre d’Henri Lebert à son fils, Colmar, le 4 juillet 1845, Archives Municipales de Colmar, publicada em
Annuaire…, Tome XVIII, 1963, pp. 86-89.
430
Sabemos que Sanson-Davillier possuía um Ingres em sua coleção, uma das versões de L’épée d’Henri IV
(1832). Ver: FÉRAL, Jules (expert). Catalogue de deux tableaux (…) dépendant des successions Hartmann,
Hôtel Drouot, Paris, 6 mai 1909. Na Gazette des Beaux-Arts de abril, 1870, é mencionada uma coleção de
quadros modernos na Rue de Courcelles, nº 18, de Mme Samson-Davillier (sic), mãe de Aimée.
431
Para uma descrição da coleção do Baron, ver: EUDEL, Paul. Le Baron Charles Davillier, in: ___. Collections
et Collectionneurs. Paris : Charpentier, 1885, pp. 4-63.
171

A coleção que Hartmann reuniu a partir, ao menos, do início dos anos 1850, não
era muito vasta nem muito diversificada – possuía praticamente apenas obras de Delacroix,
Rousseau e Millet. Tratava-se, portanto, de uma coleção de quadros modernos. Os principais
documentos de que dispomos para estudá-la são sua correspondência e o catálogo de sua
venda póstuma, que teve lugar em Paris, no dia 7 de maio de 1881. Apesar de Hartmann citar
em suas cartas, por exemplo, um Salvator Rosa (1615-1673) que estaria em sua casa432, e uma
série de obras gráficas, não há um documento em que pudéssemos verificar essa informação,
pois o inventário detalhado, cuja redação Hartmann incumbe, em seu testamento, sua esposa e
seus dois legatários, seus sobrinhos Albert e André, de fazer, não chegou até nós433.
Em compensação, o inventário dos quadros, desenhos e aquarelas da coleção de
Mme Henry Hartmann, cunhada de Frédéric (e irmã de sua esposa), cujo repertório de artistas
é semelhante ao seu, contando com Rousseaus e outros paisagistas da escola de Barbizon
(Diaz, Millet Fils, Français, Cabat, etc.), bem como Isabey, encontra-se nos Arquivos
Municipais de Munster. O irmão mais novo de Frédéric, Albert, realizou uma venda em 1873,
na qual figuraram quadros de antigos mestres, da escola italiana, francesa e holandesa434.
Tanto ele, quanto Jacques também reuniram coleções que orbitaram em torno dos mesmos
artistas presentes na de Frédéric, embora, de fato, mais vastas e ecléticas. Assim, pode tratar-
se, no caso de Frédéric, de uma coleção maior do que podemos, de fato, averiguar com
segurança.

432
« Mon Salvator Rosa qui est ici en place, a 1m35 de large sur 1m10 de haut, sans le cadre ; il n’est pas du tout
trop grand pour mes pièces » (grifo do autor, Hartmann à Rousseau, Munster, 26 déc. 1862, CD BSb22L104).
433
« Article huitième : en ce qui concerne spécialement mes tableaux dont ma femme aura la jouissance viagère
comme de tout ce que je délaisserai, je veux qu’ils soient inventoriés par les soins d’experts choisis para ma
femme et mes deux légataires (…). S’ils tombent d’accord avec ma femme pour les vendre, à cause de la grande
valeur peut-être passagère de certains d’entre eux, ma femme aura droit aux intérêts du prix obtenu qui
appartiendra par moitié à mes deux légataires » (Testament holographique de Frédéric Hartmann, le 25 août
1879, Archives Municipales de Munster). Em cartas de junho e dezembro de 1883, Albert afirma que os quadros
foram avaliados pela police d’assurance por um valor inferior ao alcançado na venda e que foram todos
atribuídos pelo preço inventariado, por meio de um partage notarié, à Aimée, sua tia, que “se beneficiou
sozinha, então, da alta momentânea que se produziu sobre esse gênero de pinturas”. Ele escreve que 4 telas
penduradas no salon da Rue de Courcelles, Paris, foram anunciadas na venda e compradas de volta por ela e
acrescenta que “restam ainda na casa de sua tia de 22 a 24 quadros, dos quais muitos pertencem a ela
pessoalmente e dos quais alguns chegam dificilmente a 50 por 40 cm. São todos de pintores pouco conhecidos,
muitos são cópias medíocres e não assinadas. Todos juntos não valem certamente o menor dos quadros de
Rousseau e duvido que obtivéssemos 30.000f pelo bloco” (AMM, Copies des lettres particulières de M. Albert
Hartmann, G1). Assim, Aimée manteve alguns quadros de menor importância consigo, a maior parte de sua
propriedade, após a venda do marido. Contudo, nenhum deles pode ser, por conta das dimensões descritas por
Albert, o Salvator Rosa mencionado por Frédéric na carta da nota 432 anterior.
434
HARO (peintre-expert); ESCRIBE (commissaire-priseur). Catalogue des tableaux anciens et modernes,
aquarelles composant la collection de M. A., Hôtel Drouot, Paris, 10 février 1873.
172

Cumpre pontuar desde já o gosto que Hartmann demonstra pela pintura holandesa
do séc. XVII. Veremos que ele cita, em sua troca de cartas com Rousseau, uma série de
paisagistas e pintores de gênero holandeses como referência nas discussões sobre o processo
de trabalho do pintor. O único artista francês com o mesmo status, para ele, é Claude Lorrain
(1600-1682). Catherine Jordy estudou a influência dos pintores holandeses do século de ouro
sobre a pintura alsaciana da primeira metade do séc. XIX435. Ela é conspícua também entre os
colecionadores, existindo obras do gênero em todas as grandes coleções regionais, como, por
exemplo, as de Alfred Ritleng (1828-1905) e Georges Spetz (1844-1914)436. Eventualmente,
então, a coleção de Hartmann incluísse quadros dos holandeses que ele tanto admirava e não
estivesse tão circunscrita aos pintores seus contemporâneos.
O que há em comum entre os artistas que Hartmann colecionou: Delacroix,
Rousseau e Millet? Primeiro, todos podem ser chamados, cada um a seu modo, de
“românticos”, no sentido de recorrerem mais à imaginação ou às emoções do que à imitação e
aos métodos pictóricos tradicionais na execução de suas obras437. Isso quer dizer que suas
composições guardavam uma parte considerável de idealismo (no sentido de responder a um
ideal interno, não externo) e que seu acabamento de superfície não era polido e liso, mas de
aparência irregular ou “inacabada”, com características de esboço.
Além disso, os três artistas mantiveram relações entre si. Delacroix e Rousseau
admiravam-se mutuamente. O primeiro recomendou a compra da pintura L’Allée de
Chataîgners (Musée du Louvre, Paris), de Rousseau, pelo estado, em carta de 1840 ao diretor
435
JORDY, Catherine, Les peintres alsaciens du XIXe siècle et l’École hollandaise du Siècle d’or, in: PELTRE,
Christine, LORENTZ, Philippe (ed.), La Notion d’école, Strasbourg, Presses Universitaires de Strasbourg, 2007,
pp. 59-70. Ver também: JORDY, Catherine, La Peinture romantique en Alsace (1770-1870), Strasbourg 2,
Université Marc Bloch, thèse de doctorat en deux volumes, 2002.
436
Ver: FORRER, Robert. Les antiquités, les tableaux et les objets d'art de la collection Alfred Ritleng à
Strasbourg. Strasbourg: Revue alsacienne illustrée, 1906, pp. 64-71; HIGHLY interesting and valuable objects
of art "The Georges Spetz Museum collection" (Sale jan. 14-17). New York: The American Art Association,
1925 (Third Session).
437
Muita tinta já foi gasta, desde o séc. XIX, na tentativa de definir o Romantismo. As palestras de Isaiah Berlin,
proferidas em 1965, na National Gallery of Art, em Washington, editadas e transcritas por Henry Hardy e
publicadas pela primeira vez, em 1999, sob o título Roots of Romanticism, não só revisam essa literatura, como
lhe dão coerência. No capítulo “O romantismo desenfreado”, Berlin pergunta-se: por que a Revolução Francesa
fracassou? Por que, depois dela, a maioria dos franceses não era nem livre, nem igual, nem particularmente
fraternal? Ele considera que o motivo do fracasso, para um amplo setor da intelligentsia, residia numa espécie de
reação do lado obscuro da natureza humana que, ignorado, retornou produzindo efeitos inesperados. Essa noção
de que existe uma “natureza humana” ou “natureza social” ou “forças de produção” ou “Ideia” trabalhando
ocultamente e com uma força superior, impessoal, imperscrutável e inevitável foi um dos legados, para Berlin,
da Revolução Francesa e é por isso que Friedrich Schlegel a considera uma das três grandes influências do
Romantismo. Em outras palavras, a ideia de que muito mais do que a vontade consciente do artista está presente
numa obra de arte é romântica por excelência. Neste parágrafo, estamos chamando isto, a título didático e muito
sutilmente, de “imaginação e emoções”, mas a questão é obviamente mais complexa.
173

de Belas Artes, Edmond Cavé, afirmando: “c’est de l’argent bien placé”438. Além disso,
Delacroix ficou impressionado com a originalidade de algumas obras expostas na venda
pública que Rousseau organizou de 50 de seus trabalhos, na Galerie Durand-Ruel, em
1850439. Rousseau e Millet tornaram-se grandes amigos, especialmente depois de o primeiro
mudar-se para Barbizon, em 1848; ambos viam Delacroix como uma espécie de mentor,
alguém que de certo modo já realizara aquilo que eles buscavam então realizar e que já fora
objeto, por conta disso, da mesma resistência de uma parte considerável da crítica e do
público. Ambos visitam entusiasticamente a exposição com as obras de Delacroix organizada
pouco antes e após a sua venda póstuma, respectivamente no Hôtel Drouot e na Galerie
Martinet, no primeiro e segundo semestres de 1864. Nelas, inclusive, a série das Estações
Hartmann estava pendurada440. Alfred Sensier escreveu que Rousseau admirava
apaixonadamente Delacroix441 e encorajou Millet a tomar abertamente o partido do
romântico442. Ou seja, os três estavam alinhados em torno de práticas e ideias comuns sobre a
pintura.
Diante daquilo que une os três artistas, podemos traçar um perfil de Hartmann, o
colecionador, especialmente depois de termos estudado a sua biografia. Suas ideias liberais,
por exemplo, a defesa do ensino laico e a supressão de candidaturas apoiadas pelo Estado, o
conduziram a confrontos exaustivos com o status quo. Ele respeitava artistas que eram

438
Carta inédita apud ANGRAND: 1966, p. 217.
439
Journal, I, pp. 340-1, 25 fév. ; 1er mars 1850.
440
A exposição que precedeu o leilão tinha por objetivo divulgar as obras a serem vendidas, de modo que
dificilmente As Estações Hartmann não estariam presentes. Sobre a exposição subsequente, foi publicado um
catálogo: SOCIÉTÉ Nationale Des Beaux-Arts, Exposition des œuvres d'Eugène Delacroix, Paris: Imprimerie
de J. Clave, 1864. Os quadros inacabados de Hartmann, que haviam sido comprados por Haro no leilão, estão
listados na p. 22. Há também a outra série das Estações para Talma, pertencente a M. Jouët, na p. 41. Ver, no
capítulo 3 da parte 1 desta tese, a seção sobre Delacroix e o inacabado. Em cartas de Millet a Sensier datadas de
janeiro, fevereiro e outubro de 1864 (CD BS b14 L325, CD BS b14 L327, CD BS b14 L357), o pintor anuncia
seu projeto de ver a exposição de Delacroix por ocasião da venda póstuma, acompanhado de Rousseau e, na
última carta, ele afirma que retornará à exposição na Galerie Martinet. Millet cita, ainda, Victor Hugo aludindo
ao reconhecimento tardio de Delacroix: « Lâche insulte, affront vis, vaine insulte d’une heure qui fait tout ce qui
passe à tout ce qui demeure. »
441
« (…) et il [Rousseau] m'a dit bien souvent (…) qu'il avait toujours admiré passionnément Eugène Delacroix
(…) » (SENSIER : 1872, p. 27).
442
« L’exposition de Delacroix durera bien encore jusqu’à fin novembre. Vous feriez bien de la revoir. (…) Je ne
puis trop vous engager à voir et étudier tout cela. Vous êtes destiné, mon cher Millet, à bien des négations, à bien
des attaques stupides et méchantes. Delacroix, comme vous, a porté ces outrages là toute sa vie (…). Je voudrais,
puisque vous le comprenez et l’aimez, que vous le connaissiez jusque dans ses plus intimes pensées et ses grands
côtés, afin qu’à l’occasion, vous puissiez le défendre et l’interpréter. (…) je ne vois pas un artiste sérieux qu’on
ne sache un réel ami de Delacroix. Sachez-vous compromettre et rattachons-nous à quelqu’un » (Sensier à
Millet, 18 oct. 1864, CD AR48, p. 125).
174

capazes de afirmar a sua liberdade e manter a sua independência, que escolhiam com
consciência e sustentavam com perseverança um modo de pintar o qual, aceito em alguns
círculos, não era, ainda, aquele que a École des Beaux-Arts e o Instituto, a pedagogia oficial,
encorajavam.
Apesar de a coleção do montpelliérain Alfred Bruyas (1821-1877), com quem
Hartmann já foi comparado443, ser muito mais vasta e eclética, incluindo, por exemplo, obras
de Ingres e Cabanel, ele é hoje reconhecido como o grande mecenas de Gustave Courbet.
Tanto Hartmann quanto ele, portanto, patrocinaram artistas que, de certo modo,
questionavam, com sua pintura, valores correntes, tradicionalmente aceitos. Bruyas, no
entanto, parece mais um diletante – ele abandona a carreira de banqueiro para dedicar-se à
paixão pela pintura – com interesses eruditos e amplos no meio artístico, ao passo que a
relação de Hartmann com seus quadros, como esperamos que fique claro depois, é mais
pontual, subjetiva e circunstancialmente orientada.
Podemos, ainda, cotejar a sua atividade de colecionador com a de outros membros
da elite financeira seus contemporâneos, especialmente industriais. Eugène Schneider (1805-
1875), originário da Moselle, um dos fundadores da metalúrgica Le Creusot, na região de
Bourgogne-Franche-Comté, era altamente possessivo em relação a sua coleção, que mantinha
guardada à sete chaves em sua residência. Louis Gonse a chama, em 1876, de “pequena” e
“desconhecida”, somando 55 pinturas de “primeira ordem”, majoritariamente de holandeses e
flamengos444.
Para o resenhista da Gazette, as condutas de Schneider como homme d’affaires e
como colecionador se equivalem: “Ele não teria adquirido uma pintura contestável, como não
teria recebido em seu caixa um documento duvidoso”445. O maître de forge escolhia
rigorosamente seus artistas e obras: comprou apenas quadros que estiveram antes em coleções

443
KELLY, Simon. The patronage of Frédéric Hartmann and the question of ‘Finish’, The Burlington
Magazine, n. 1170, Vol. 142, September, 2000, p. 550. Sobre a coleção de Bruyas, ver o catálogo da exposição
Bonjour, Monsieur Courbet!: the Bruyas collection from the Musée Fabre, 2004.
444
Destacam-se, nela, os retratos do Pastor Johannes Elison e de sua esposa, de Rembrandt; Interior de cabaré,
de Adrien Von Ostade; Vista da Gueldre, de Hobemma; O prado, de Cuyp; A torrente, de Ruisdael; um interior
hoje célebre, de Pieter de Hooch e uma “rareté rarissime”, Mercúrio e Argo, de Adrien Van de Velde, além de
um notável ciclo de tapeçarias do tempo de Louis XIV representando os Quatro Elementos. [Cf. GONSE, Louis.
La Galerie de M. Schneider, Gazette des Beaux-Arts, 2e période, 13, 1876, 494-6.] Ver também: HARO,
Étienne (peintre-expert); PILLET, Charles; SCRIBE, Eugène (commissaires-priseurs). Catalogue des tableaux
anciens, dessins et aquarelles composant la collection de feu M. Schneider. Hôtel Drouot, Paris, le 6 et 7
avril 1876.
445
« Il n’eût pas acquis une peinture contestable qu’il n’eût reçu dans sa caisse un papier douteux » (Gonse, op.
cit., pp. 494-5).
175

de membros da realeza ou aristocratas e não é à toa que o leilão de 1876 lembrou a alguns as
“belles ventes du XVIIIe siècle”446. Aparentemente, então, colecionar, para Schneider, era uma
forma de autolegitimação social, um meio simbólico de se destacar dos seus iguais no
presente e se igualar aos seus opostos no passado.
Jean Dollfus fils (1823-1912) é um caso mais próximo ainda de Frédéric
Hartmann, pois também é herdeiro de uma grande dinastia têxtil alsaciana. Diretor da Dollfus
Mieg et Cie (DMC), de Mulhouse, Alto-Reno, desde os anos 1840, ligado especialmente à
manufatura de toiles peintes, sua coleção era vasta e variada, abrangendo desde tapeçarias
belgas e lacas japonesas até os primitivos italianos e os holandeses do séc. XVII.
Especialmente depois da guerra franco-prussiana, quando se muda para Paris, ele se interessa
pelos pintores de Barbizon e pelos impressionistas seus contemporâneos. O núcleo de sua
coleção de quadros modernos era formado por obras de Camille Corot, seu preferido, mas
possuía também trabalhos importantes de Rousseau e Millet. Um visitante descreve-a no seu
hôtel da rua Pierre-Charron, Paris:

“[Dollfus nos recebeu] no hall da grande galeria, onde a Flora de Carpeaux cintilava
em meio a uma assembleia de primitivos habituados já à sua presença inesperada
(…). Ele logo nos introduziu ao pequeno salão posterior a essa galeria e onde alguns
dos seus quadros modernos os mais preciosos, La femme à la perle, de Corot, a
surpreendente e vibrante cópia da Noce Juive de Delacroix por Renoir brilhavam
sobre a parede da direita, em frente da grande tapeçaria de Bruxelas que havia
adquirido – troféu entre todas as glórias – na venda do duque de Berwick e de Alba.
(…) nesta época já a mansão transbordava de riquezas; os quadros, os bibelôs, as
lacas do Japão, as miniaturas, os desenhos, as cerâmicas esmaltadas (émaux),
acumulavam-se vazando pelas galerias e salas em direção aos quartos e quase até as
escadas (…).”447

A princípio, Dollfus parece um grande acumulador. É preciso, contudo, lembrar


que, em torno de 1860, ele foi instruído em técnicas artísticas pelo pintor alsaciano Clément
Faller (1819-1901), aluno de Paul Delaroche e Eugène Delacroix. Nesse período, Dollfus
deixa seu cargo na empresa familiar para dedicar-se ao colecionismo, tornando Faller o seu
446
Gonse, op. cit., p. 494.
447
« [Dollfus nous a accueilli] au seuil de la grande galerie où la Flore de Carpeaux pétillait au milieu d’une
assemblée de primitifs qui semblaient habitués déjà à sa présence inattendue (...). Il nous introduisit aussitôt dans
le petit salon qui faisait suite à cette galerie et où quelques-uns de ses tableaux modernes les plus précieux, la
Femme à la perle, de Corot, l’étonnante et vibrante copie de la Noce juive de Delacroix par Renoir brillaient sur
la paroi de droite, en face de la grande tapisserie bruxelloise qu’il avait rapportée, trophée entre tous glorieux, de
la vente du duc de Berwick et d’Albe. (...) À cette époque déjà l’hôtel regorgeait des richesses ; les tableaux, les
bibelots, les laques du japon, les miniatures, les dessins, les émaux, s’entassaient débordant des galeries et des
salons dans les chambres et presque dans l’escalier (...) » (MICHEL, André. La collection de Jean Dollfus, in:
GALERIE Georges Petit, Catalogues des tableaux modernes dépendant des collections de M. Jean Dollfus
et dont la vente, par suite de son décès…, Paris, le 2 mars 1912, pp. 5-6).
176

conselheiro. Numa carta de janeiro de 1864, ele agradece ao pintor por tê-lo ensinado a ver e
apreciar a natureza e afirma que a prosperidade material outorgada pela indústria “não é de
modo algum feita para dar o sentimento da arte”448, razão provável da ausência de grandes
artistas no Leste.
Em 1868, Dollfus se entusiasma com a leitura da biografia póstuma de Delacroix
que lhe emprestara Faller, escrita por Achille Piron, e compara o romântico, dividido entre
intensas paixões e sofrimentos, às pessoas comuns que buscam apenas a satisfação de suas
necessidades físicas, sem demonstrar preocupação alguma, ao longo da vida, com o despertar
da própria alma449. Ele começa sua carta a Faller com um elogio de Delacroix e conclui
exaltando a figura do artista em geral para, finalmente, identificar-se com ela:

“O quanto um grande artista é desejável e encontra-se acima do resto da


humanidade! São os verdadeiros reis do mundo e seu trono ocupa um lugar mais alto
que os daqueles de todos os potentados da terra. Perdoe-me todas essas reflexões,
mas sei que me dirijo a alguém capaz de compreendê-las” 450 (Dollfus a Faller, 4 de
novembre de 1868, in: GIRODIE: 1907, p. 28).

Assim, a compulsão de Dolffus não pode ser separada de uma sensibilidade


estética mais ampla e de um reconhecimento tácito dos artistas como seus pares. Seu
interesse, apesar de eclético, não era superficial. Por exemplo, o Étoile du soir, de Millet, que
compra em 1875 (dia que chama de albo signanda lapillo, “memorável”), bem como os
Barberi, de Géricault, estavam pendurados em sua galerie em meio a estudos, esboços e
litografias que lembravam ao espectador o seu processo de concepção. A superabundância e o
excesso da expografia não impediam, desse modo, um movimento simultâneo na direção da
origem dos objetos.

448
« Ayant abandonné les affaires depuis quelques mois, je me suis remis à la peinture depuis octobre dernier,
sans autre guide que la nature. Vous m'avez appris à voir la nature, à l'apprécier, et il en résulte des jouissances
dont je vous serai toujours reconnaissant. (…) Paris est une ville où il est bien difficile de se faire connaître, et
c'est souvent la chance, le hasard qui vous y font un nom. (…) Ici, la vie continue à être aussi uniforme que par
le passé, et les arts n'y sont guère compris, la peinture surtout, ainsi que vous avez pu vous en convaincre. On est
absorbé par l'industrie qui développe, il est vrai, la prospérité matérielle, mais n'est point faite pour donner le
sentiment de l'art » (grifo nosso, Jean Dollfus à Clément Faller, le 18 janvier 1864, in : GIRODIE, André. Un
peintre alsacien de transition : Clément Faller. Strasbourg : Revue alsacienne illustrée, 1907, pp. 26-7).
449
Conforme carta de Dollfus à Faller de 4 de novembro de 1868, citada em: GIRODIE: 1907, p. 28. Dollfus
possuía, de Delacroix, as seguintes pinturas : Angélique et Medor blessé (1850), Paysage à Champrosay (1842),
uma cópia da Montée au Calvaire, de Rubens, Paysage (1849), Le Christ en croix (1837) e Lion guettant sa
proie (1854).
450
« Combien un grand artiste est enviable et au-dessus du reste de l’humanité ! Ce sont là les vrais rois du
monde, et leur trône est plus haut placé que ceux de tous les potentats de la terre. Pardonnez-moi toutes ces
réflexions, mais je sais que je m'adresse à qui peut les comprendre. »
177

Outro importante colecionador dos pintores de Barbizon foi Alfred Chauchard


(1821-1909), proprietário das Galeries du Louvre, uma grande loja de departamento aberta em
1855, próxima ao Palais Royal. Começou suas aquisições depois de, com grande capital
acumulado, se retirar dos negócios, em 1880, época em que tais artistas, falecidos
recentemente ou em fim de carreira, já eram reconhecidos e valorizados no mercado. O
catálogo de sua coleção, doada ao Louvre após a sua morte, inclui obras importantes de
Rousseau e Millet, além de duas pinturas de Delacroix451. O único artista que destoa do
conjunto, embora encontre-se representado por 25 telas, é Ernst Meissonier (1815-1891), cujo
estilo era considerado pelos impressionistas “pompier”, ainda muito ligado ao gosto
acadêmico.
Em 1900, ele compra de um norte-americano o Angelus (1857-59, Musée
D’Orsay, Paris), de Millet, pela soma exorbitante de 800.000 francos. O quadro, no qual um
casal de camponeses interrompe suas atividades nos campos para rezar o Angelus anunciado
pelo sino da igreja, ao longe, na hora crepuscular, era então tomado como um símbolo da
França rural, tectônica, pia e, assim, “autêntica”. Sua partida a uma coleção nos Estados
Unidos, em 1889, foi sentida como uma grande perda nacional e sua aquisição por Chauchard,
proporcionalmente louvada como um grande gesto patriótico452.
André Becq de Fouquières conta que Chauchard dava aos visitantes de sua
coleção, no hôtel da Avenida Vélasquez, medalhas ou pequenos bustos contendo a sua efígie
como souvenirs, do mesmo modo que seus clientes, nos Grands Magasins du Louvre, eram
mimados com balões e cupons de desconto453. Essas peculiaridades somadas à sua iniciação
tardia, rápida e exemplar no colecionismo de arte, fazem pensar num homem em idade
avançada que encontrou, numa ocupação alternativa, uma satisfação substituta àquela do
período mais ativo de sua vida. A gestão de sua coleção veio, por assim dizer, substituir a

451
Suas oito pinturas de Rousseau incluíam Avenue de la forêt de l’Isle Adam (1846-49) e La Passerelle (c.
1855); das quatro de Millet, uma era o célebre Angelus (1857-9); de Delacroix, enfim, destaca-se a Chasse au
tigre (1854). Possuía, ainda, quadros de Corot, Daubigny, Diaz, Dupré, Decamps, Fromentin, Isabey, Henner,
Jaque, Troyon, Roybet, Ziem e esculturas de Barye. Cf. MUSÉE National Du Louvre. Catalogue de la
collection Chauchard. Paris: Librairie Centrale d'Art et d'Architecture, 1910.
452
O quadro havia sido adquirido em 1889 pela American Art Association, por 553.000 francos, na vente
Sécretin. Ver: PLUDEMARCHER, Isolde. L’Angélus de Millet : du souvenir personnel à la mémoire collective,
in: GEORGEL, Chantal (et. al.). Millet, Palais des Beaux-Arts de Lille, oct. 2017- jan. 2018, pp. 39-42 (catálogo
de exposição).
453
FOUQUIÈRES, André de. Mon Paris et ses Parisiens : le quartier Monceau. Paris: Éditions Pierre Horay,
1954, p. 195.
178

gestão de seus negócios. E o culto à cultura local, por sua vez, serve para estreitar os laços
com a clientela.
Uma menção deve ser feita, ainda, à coleção dos irmãos Emile e Isaac Péreire,
dois judeus portugueses que trabalhavam no ramo de investimentos bancários. Ela se destaca
pelo fino conjunto de pinturas holandesas, entre elas o retrato de Jan Sylvius, de Rembrandt e
o Geógrafo, de Vermeer. Os Péreire colecionavam também artistas contemporâneos de
orientações diversas, como, de um lado, Delacroix, de quem possuíam o Marino Faliero e o
Combate entre o Giaour e o Pachá, e, de outro, Ingres, representado pela Banhista de
Valpiçon e por uma réplica do Édipo. Emile encomendou pinturas a jovens artistas para
decorar o seu luxuoso hôtel no Faubourg Saint-Honoré. William Bouguereau (1825-1905),
por exemplo, pintou em um dos seus salons, entre 1857 e 1858, pouco depois da encomenda
de Hartmann a Delacroix, uma série das Quatro Estações com figuras mitológicas individuais
(Flora, Ceres, Pomona e Vesta), acompanhadas de painéis alegóricos ligados às atividades
próprias a cada período do ano454.
Outros industriais, banqueiros e magnatas de lojas de departamento455 reuniram
coleções igualmente vastas e variadas a partir da metade do séc. XIX. Albert Boime, num
artigo em que propõe um balanço das principais456, chama a atenção para a predominância,
nelas, da pintura holandesa e flamenga do séc. XVII, além da francesa do séc. XVIII e do
mecenato, muitas vezes paralelo, de artistas contemporâneos. A haute bourgeosie, então,
definia e afirmava sua identidade em relação à velha aristocracia por meio da reprodução de
seus hábitos, seja comprando quadros de antigos mestres antes amados por ela, seja
patrocinando pintores modernos, fossem eles acadêmicos ou independentes. Em muitos casos,
inclusive, as encomendas para decoração de suas residências representavam os mesmos temas
mitológicos-alegóricos presentes nas residências de seus modelos aristocráticos.

454
BARTOLI, Damien; ROSS, Frederick. William Bouguereau: catalogue raisonné of his painted work.
Woodbridge: Antique Collector’s Club, The Art Renewal Center, 2010, pp. 54-56.
455
Ver, por exemplo, Achille Seillière, James de Rothschild, François Delessert, James-Alexandre de Pourtalès e
Paul-Casimir Périer, para os bancos e, para o comércio, Ernest de Cognacq e Marie-Louise Jaÿ (La Samaritaine)
e Aristide Boucicault (Au Bon Marché). Convém citar, ainda, o casal Nélie Jacquemart e Édouard André.
456
BOIME, Albert. Entrepreneurial patronage in Nineteenth-Century France, In: CARTER, Edward (et. al.)
Enterprise and entrepreneurs in Nineteenth- and Twentieth-Century France. Baltimore and London: John
Hopkins University Press, 1976, pp. 137-207. Existe uma tradução francesa, porém não do texto integral:
BOIME, Albert. Les hommes d'affaires et les arts en France au XIXème siècle, Actes de la recherche en sciences
sociales, Vol. 28, juin 1979, pp. 57-75.
179

É interessante notar, ainda, que o aumento da circulação de pinturas holandesas no


mercado de arte e em coleções privadas remonta, na França, ao séc. XVIII457. Sinal
significativo de decadência do culto à escola italiana, o movimento se cristaliza no século
seguinte. Paralelamente à sedimentação do gosto, entre os colecionadores, pela escola
holandesa, durante o séc. XIX verifica-se um crescimento e uma nova valorização da pintura
de paisagem feita na França, de tendência romântica ou antiacadêmica, que vai de Barbizon
ao Impressionismo.
Boime escreve que “o séc. XIX é dominado por gostos ecléticos que tornam
difícil uma análise das coleções como expressões de temperamentos individuais”458. Esse não
é o caso de Frédéric Hartmann. Bruyas, Schneider, Dollfus, Chauchard e os irmãos Péreire,
eles sim são diferentes exemplos de colecionadores burgueses seus contemporâneos que
podem ser descritos como ecléticos, diletantes ou pragmáticos. Mas não Hartmann.
Os irmãos de Frédéric também colecionavam. Embora o repertório de artistas seja
muito próximo, tratam-se de coleções mais vastas e variadas do que a sua. Citamos o
inventário après décès da coleção de quadros de sua cunhada, Blanche, esposa de Henry filho,
com nada muito precioso ou significativo, embora totalmente centrado em paisagistas
franceses e holandeses459.
Jacques Hartmann (1825-1887)460 possuía em sua coleção seis Delacroix: o Rapto
de Rebeca (Musée du Louvre, Paris), Tasso no Hospital de Sant’Ana, Ferrara (Oskar
Reinhardt Collection, Winterthur), Macbeth e as feiticeiras, os esboços de dois hemiciclos da
vida de Hércules do Salon de la Paix, o esboço para São Pedro encontra a dracma na boca
do peixe, da decoração da Assembleia Legislativa, e uma réplica de uma parte da composição
dos Massacres de Quios461. Além disso, tinha um quadro de Rousseau, o Outono, e outros
dois de Millet, O retorno do campo (Cleveland Museum of Art) e Pastor retornando com o

457
Especialmente estimulado pela atividade do marchand Jean-Baptiste Pierre Le Brun (1748-1813). Ver:
MICHEL, Patrick. Peinture et plaisir : les goûts picturaux des collectionneurs parisiens au XVIIIe siècle.
Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2010.
458
« Le 19ème siècle est dominé par les goûts éclectiques qui rendent difficile une analyse des collections
comme expressions de tempéraments individuels » (BOIME, Les hommes d'affaires…, op. cit., p. 58; p. 139 no
original em inglês).
459
AMM (cote B39); ver também supra nota 169.
460
Jacques casou-se com Emma Steiner (depois suposta amante de Edward VII). Eles se mudam para Inglaterra,
onde é referido como James Hartmann.
461
Respectivamente J326, J268, J107, J586, J587, J537; não encontramos a réplica da mãe com a criança dos
Massacres de Quios. Sobre a encomenda do Rapto de Rebeca a Delacroix, ver adiante, p. 187.
180

rebanho sob a luz da lua, obras em nada negligenciáveis. Aos três artistas de predileção de
Frédéric vêm somar-se outros paisagistas franceses importantes, como Isabey, Diaz, Troyon,
Achard, Jacque, Corot e Français, além de Decamps e Gustave Moreau462. Em sua venda de
1876, figuraram ao todo 36 quadros.
A coleção de Alfred Hartmann (1826-1898), o mais novo, era muito mais vasta do
que a de Jacques e Frédéric (contando 81 telas e 324 aquarelas e desenhos na venda póstuma),
dominada também por paisagistas franceses e com alguns Delacroix menores463. Numa venda
realizada em 1873, notamos a presença também de pintores antigos, entre eles holandeses
como Van der Werf, Ostade, Porbus, o velho, Ryckaert, Heemskerk, Van Goyen, além de
Claude Lorrain, Louis Lagrenée e de uma série de italianos, o Cavaleiro de Arpino, Paris
Bordone, Tintoretto, Bassano, Tiepolo e Canalleto, entre outros.
Obras dos holandeses, de Delacroix, de Rousseau e de Millet aparecem com
frequência nas coleções da metade do séc. XIX. Embora Hartmann estivesse em sintonia com
o gosto de seu tempo, inclusive na escolha das Quatro Estações como tema para decoração de
seu salon, sua coleção apresenta algumas particularidades em relação a de seus
contemporâneos, mesmo a de seus irmãos.
Ela é muito menor do que as citadas anteriormente (a de Schneider, com 55
quadros, já era considerada “pequena”). A contar do catálogo da venda póstuma, reunia 17
quadros (dois de Delacroix, seis de Rousseau, nove de Millet) e quatro desenhos (todos de
Rousseau) no total464. Tratam-se de quadros de artistas que estavam todos vivos durante as
aquisições. As obras de Delacroix são petits tableaux, uma réplica do Sultão do Marrocos
(coleção particular, Nova York) exposto no Salão de 1845, e um Leão sendo atacado
(Ordrupgaard Museum, Copenhagen). Mas ele havia também lhe encomendado telas maiores,
as das Estações, para decorar a sua residência. Já as obras de Millet e Rousseau são bastante
significativas no conjunto de suas respectivas produções. Assim, foi uma coleção que primou
muito mais pela qualidade do que pela quantidade.

462
Ver: DURAND-RUEL (expert); PILLET, Ch. (commissaire-priseur). Catalogue des tableaux modernes
provenant de la collection de M. X***, Hôtel Drouot, Paris, 11 mai 1876.
463
O petit tableau do Cheval arabe conduit en laisse par son cavalier, antes na coleção de Diaz (1873, n. 59) e
duas aquarelas também de tema orientalista, Les convulsionnaires de Tanger e Une halte de cavaliers marocains
(1899, n. 154 e 155). A coleção de Alfred pode ser estudada a partir do catálogo de uma venda de 1873 (ver
supra nota 434) e de outra, póstuma, de 1899: HARO, Henri (peintre-expert); COULON, DUCHESNE
(commissaires-priseurs). Vente après décès, collection de M. Alfred Hartmann: catalogue des tableaux et
aquarelles remarquables..., Hôtel Drouot, Paris, 12-15 avril 1899.
464
Ver a lista no Apêndice 3.
181

Quanto ao gênero pictórico, há um predomínio da pintura de paisagem e de cenas


de gênero relacionadas à vida rural francesa. Mesmo nas suas Estações, de Delacroix, apesar
do enredo mitológico desenvolvido em primeiro plano, a paisagem tem um papel bastante
proeminente. Quanto ao estilo, todos os artistas que colecionou ligam-se ao que se
convencionou chamar, no período, de romantismo ou mesmo a uma estética do esboço,
antiacadêmica, fundada no culto ao indivíduo e realizada na afirmação de sua independência,
valores com os quais Hartmann certamente se identificava.
Finalmente, apesar de Delacroix já ser um pintor conhecido quando lhe
encomendou os quadros, Rousseau e Millet ainda eram artistas bastante contestados.
Hartmann foi fiel a um e depois ao outro durante todo o período de suas vidas. Ele se tornou,
de fato, íntimo de ambos e seu interesse, apoio financeiro e encorajamento foram, como
veremos, constantes junto a eles.
Tendo definido o perfil de Hartmann como colecionador comparando-o a outros
colecionadores seus contemporâneos, passaremos, na sequência, à reconstituição detalhada da
história da encomenda das Quatro Estações a Delacroix e do seu repasse, após a morte do
artista, a Millet. Tentaremos iluminá-la, ainda, a partir do contexto do conjunto de sua coleção
de quadros modernos.

1.3.1. A encomenda das Quatro Estações

Muito provavelmente em dezembro de 1855, Frédéric Hartmann encomendou


uma série das Quatro Estações ao pintor Eugène Delacroix, cujo ateliê localizava-se então na
Rua Notre-Dame de Lorette, nº 54 (fig. 136). Esta data é suposta por Michèle Hannoosh,
porque Delacroix escreveu no início de sua agenda de 1855, entre os dias 10 e 16 de
dezembro, o nome e o endereço de Hartmann em Paris465.
Pouco tempo antes, entre maio e novembro de 1855, o imperador Napoleão III
promoveu, na França, a primeira Exposição universal de produtos da agricultura, da
indústria e das artes. Segundo o decreto de abertura, era preciso reforçar a relação entre o
aperfeiçoamento da indústria e o das belas artes, por meio da emulação entre artistas e
produtores de diferentes partes do mundo466.

465
Journal, I, p. 877, nota 81. O endereço anotado por Delacroix é o do Boulevard Poissonière, nº 23.
466
Conforme o decreto de 22 de junho de 1853. In: CATALOGUE officiel : Exposition des produits de
l'industrie de toutes les nations, 1855. Paris : E. Panis, 1855, "publié par ordre de la commission impériale", p. III
(section « Documents officiels »).
182

Uma comissão, dividida em duas seções, é constituída para dirigir e supervisionar


os trabalhos. Delacroix e Ingres, fizeram parte da seção de belas-artes. Ambos os pintores
foram convidados também a apresentar retrospectivas na mostra467. Delacroix escolhe 36
pinturas representativas do conjunto de sua produção, recebe uma das 16 grandes medalhas de
honra e é condecorado com o título de commandeur de la Légion d’Honneur. As críticas
foram, em geral, positivas, referindo-se a uma aclamação meritória, ainda que tardia, do
mestre468. Foi, sem dúvida, um momento de consagração pública do artista.
No mesmo evento, mas num prédio separado, a manufatura Hartmann et Fils
exibiu os seus tecidos469 e foi, ela também, condecorada470. A “facilidade de concepção, a
elegância dos desenhos e a arte de nuançar as cores” são as qualidades notáveis dos produtos
alsacianos, segundo o Rapport de 1855 des départements de l’Est à l’Exposition Universelle
de 1855471. Em outro relatório, os autores referem-se diretamente à beleza das cores dos
indianos do Sr. Hartmann472.
Além do destaque para a participação de Delacroix e da manufatura munsteriana,
é preciso lembrar também que Hartmann emprestou à exposição no Palais de Beaux-Arts um
467
Depois de comparar Delacroix e Ingres a dois lutadores e a crítica, ao público da luta, Baudelaire liga o
estabelecimento dessa oposição a um “amor comum e pueril pela antítese”. No entanto, ele mesmo começa o seu
balanço da Exposição Universal de 1855 pelos dois, pois fora “ao redor e abaixo deles” que os demais artistas
vieram a ser “organizados ou hierarquizados”: « MM. Eugène Delacroix et Ingres se partagent la faveur et la
haine publiques. Depuis longtemps l’opinion a fait un cercle autour d’eux comme autour de deux lutteurs. Sans
donner notre acquiescement à cet amour commun et puéril de l’antithèse, il nous faut commencer par l’examen
de ces deux maîtres français, puisque autour d’eux, au-dessous d’eux, se sont groupées et échelonnées presque
toutes les individualités qui composent notre personnel artistique » (publicado no Le Pays de 3 de junho de 1855;
BAUDELAIRE, Critique d’art…, 1992, p. 250).
468
Ver, por exemplo, o texto de Théophile Gautier para o Moniteur Universel de 19 de julho de 1855 e o de
Baudelaire, para o Le Pays de 3 de junho, citado na nota anterior. Para uma visão crítica menos favorável, ver:
DU CAMPS, Maxime, Les Beaux-Arts à l'Exposition universelle de 1855 … Paris, Librairie Nouvelle, 1855,
pp. 87-118; DELÉCLUZE, Étienne, Les Beaux-arts dans les deux mondes en 1855, Paris, Charpentier, pp.
200; 221.
469
Número 5797 da 19ª classe (« Industries des Cotons ») no catálogo geral (nota 466). Segue a descrição : « Fil
de coton. Tissus de coton, écrus et blancs, unis et façonnés. Impressions sur tissus de coton pur, de coton et laine,
de laine pure, de laine et soie. - O 1834, 1839, 1849. »
470
Cf. Notice, Relevé de Récompenses, p. 131. A firma foi contemplada com uma “medalha de honra” pela
qualidade de seus tecidos impressos, segundo a notícia publicada no Moniteur Universel: « Hartmann et fils à
Munster (Haut-Rhin), France - Percales imprimées. Garance et garancine (colorantes) ; belle collection ; tissus
imprimés haute nouveauté », Le Moniteur Universel, le 16 nov. 1855, p. 2.
471
Apud Fohlen, op. cit., p. 211: « Les départements de l’Est, l’Alsace et les Vosges apparaissaient au palais des
Champs Élysées avec cette facilité de conception, cette élégance de dessins, cet art de nuancer les couleurs, qui
ont établi leur réputation dans toutes les parties du monde. »
472
« Le pinceau n'a pas de plus belles couleurs que les indiennes de MM. Gros Odier, Kœchlin et Hartmann »
(GIRARDIN, Jean; CORDIER, Alphonse; BUREL, Eugène. Rapport sur l'Exposition universelle de 1855...
Rouen: Imprimerie de A. Péron, 1856, p. 335).
183

de seus quadros de Théodore Rousseau, que foi pendurado numa sala próxima à de
Delacroix473. Assim, o industrial deve ter sido exposto, em alguma medida, à repercussão da
retrospectiva do artista no evento.
Tendo, portanto, provavelmente recebido a encomenda na sequência do
encerramento da Exposição Universal, no fim do ano de 1855, pouco tempo depois, no dia 9
de janeiro de 1856, Delacroix já pensa no tema de cada composição:

“- Eurídice. Figuras conversando à sombra, etc. (Primavera)


- Meleagro oferecendo a cabeça do javali à Atalanta. (Outono)
- Juno e Éolo. Frota de Ulisses, etc. (Inverno)
- A terra pede a Júpiter que acabe com os seus males, etc. Fáeton ao longe. Rios e
ninfas, etc.
- Ceres busca sua filha. A ninfa Aretusa conta-lhe seu rapto. Ceifadores ao longe.
(Verão).
- Baco encontrando Ariadne. (Outono).
- Diana no banho. Acteão. Os cães entram na água, etc.
- Bóreas rapta Orítia. Sua família desolada, rio seu pai ou outro”474
(destaques nossos, 9 de janeiro de 1856, Journal, I, p. 985).

O fato de Delacroix ter listado temas mostra que Hartmann, apesar de ter
escolhido o das Estações, não foi tão diretivo em relação ao modo de representá-lo. No
máximo, os dois devem ter concordado que Delacroix pintaria histórias mitológicas. Note-se
também que Delacroix já está pensando em pares centrais de personagens, embora Eurídice
apareça só. Ele decide pintar, efetivamente, Orfeu e Eurídice para a Primavera; Diana e
Acteão para o Verão; Baco e Ariadne para o Outono e Juno e Éolo para o Inverno. Com
exceção do primeiro, os outros já haviam sido usados para ilustrar as estações do ano antes475.
Depois de listar os temas no início de janeiro, numa carta datada de 6 de fevereiro
de 1856, Delacroix pede que Hartmann lhe passe as medidas dos quadros:

“Eu lhe ficaria muito grato se você pudesse fixar as medidas dos painéis para o seu
salon em concordância (de concert) com seu arquiteto. Gostaria muito de estar à

473
O Marais dans Les Landes, encomendado em 1852.
474
« - Eurydice. Figures conversant sous des ombrages, etc. (Printemps).
- Méléagre offrant la hure à Atalante. (Automne).
- Junon et Éole. Flotte d’Ulysse, etc. (Hiver).
- La terre demande à Jupiter de finir ses maux, etc. Phaéton dans le lointain. Fleuves et nymphes, etc.
- Cérès cherchant sa fille. La nymphe Aréthuse lui raconte son enlèvement. Moissonneurs dans le
lointain. (Été).
- Bacchus trouvant Ariane. (Automne).
- Diane au bain. Actéon. Les chiens entrent dans l’eau, etc.
- Borée enlevant Orithye. Sa famille éplorée, fleuve son père, ou tout autre. »
475
Ver os capítulos 1 e 2 da Parte 1 desta tese.
184

vontade para fazer os esboços neste momento no qual tenho um pouco mais de
liberdade”476 (6 de fevereiro de 1856, CD BSb5L29).

A expressão “de concert”, que em francês significa tanto “de concerto” quanto
“de acordo”, fez com que Vincent Pomarède afirmasse que os quadros foram encomendados
para o Salão de Música, “assez réputé”, da casa de Hartmann em Paris477. Tal “reputação”
deve datar do tempo em que Caroline Hartmann, prima mais velha de Frédéric, residia na
capital para ter aulas com Lizst e Chopin. Ela morre muito jovem, contudo, em 1833. Além
disso, não há evidências de que Hartmann recebesse com regularidade em seu apartamento
em Paris, embora sua família e a de sua esposa fossem, de fato, ligados à música, como
praticantes ou apreciadores478. Pomarède está pressupondo também, em sua afirmação, que os
quadros destinavam-se à residência de Hartmann em Paris, não em Munster. Nesse sentido,
ele pode estar correto, mais adiante veremos o porquê.
No dia 11 de março de 1856, um mês depois de enviar a carta solicitando as
medidas dos quadros, Delacroix pede a Hartmann que suspenda junto ao seu decorador a
mudança de proporção do tamanho das molduras, cuja orientação tornar-se-ia mais horizontal
do que vertical, o que prejudicaria, segundo ele, o desenho de cada composição. Ao invés de
aumentar a largura das telas, ele propõe a Hartmann o aumento do tamanho das figuras em
relação à paisagem:

“Esqueci-me de pegar o endereço do decorador que veio com as medidas tomadas,


para se entender comigo sobre as dimensões dos quadros dos quais você me
encarregou. Gostaria de pedir a ele que suspenda o trabalho relativo à mudança de
proporções das molduras sobre o seu plano. Serei provavelmente levado a fazê-los
um pouco mais largos do que pensava, o que acabará com o seu desenho. (…)
Centrar-me-ei, assim, em suas intenções aumentando a proporção das figuras em
relação à paisagem” (11 de março de 1856, CD BSb5L30).479

476
« Je vous serais bien reconnaissant s’il vous était possible d’arrêter les mesures des panneaux de côté salon de
concert avec votre architecte. J’aimerais être bien aise d’en faire les esquisses dans ce moment où j’ai un peu
plus de liberté » (grifo nosso).
477
Michèle Hannoosh (2009: I, p. 986) afirma que Vincent Pomarède leu a locução adverbial « de concert »
como um qualificativo do substantivo « salon ». Segundo a autora, ele se enganou quando afirmou que os
quadros se destinavam ao Salão de Música da residência de Hartmann em Paris (POMARÈDE: 1998, pp. 344-
345). Contudo, na carta original não há nenhuma vírgula para bem marcar a diferença, o que torna a frase, em
francês, de fato, ambígua. Pomarède também não cita as suas fontes quando lança a hipótese do Salão de
Música.
478
Sobre a relação de seu tio Jacques com a música, ver a seção anterior, O colecionador. Além disso, seu pai,
Henry, funda a Harmonie Hartmann, em Munster, em 1847, e sua esposa, Aimée, faz construir na cidade, em
1892, uma salle de concert et de théâtre para abrigar os concertos da Société Philarmonique.
479
« J’ai négligé de prendre l’adresse du décorateur qui est venu de cotée fait, pour s’entendre avec moi sur les
mesures des tableaux dont vous avez bien voulu me charger. Je voudrais le prier de suspendre le travail relatif au
changement de proportions des cadres sur son plan. Je serais probablement amené à les faire un peu plus large
185

No dia 8 de maio de 1856, Delacroix menciona nos diários o “encantador tom de


ligação (demi-teinte) do fundo com terra, rochedos, etc. no rochedo atrás de Ariadne”480, além
das outras cores igualmente empregadas neste esboço, hoje no Fogg Museum481. Em 26 de
maio de 1856, escreve que avançou os esquisses para Hartmann em Champrosay482. Ele
retorna à sua casa nos arredores de Paris pouco depois, no dia 29 de junho, e sente-se
descontente com o que deixara ali: entre outras obras, os esquisses das Estações483.
Talvez Hartmann estivesse pensando no seu Empereur du Maroc, que acabara de
ser-lhe entregue por Delacroix (fig. 137)484 e talvez ele tivesse também os esboços para as
Estações em mente quando, no dia 14 de setembro de 1856, confessa ao artista que

“(…) a sua pintura tem para mim um valor inestimável; ela me encanta, identifico-
me facilmente com o sentimento que te inspirou. E abordo no seu encalço um mundo
ideal onde passo deliciosos momentos” (grifos nossos, 14 de setembro de 1856,
INHA, Fonds Piron, NUM0507-2)485.

“Identificação”, “sentimento”, “mundo ideal” são as palavras chaves para


compreender o que Hartmann buscava nas pinturas de Delacroix: não o naturalismo, ainda
menos o realismo, mas sim a idealização motivada pelos sentimentos.
Delacroix menciona nos diários uma visita de Hartmann em 29 de dezembro de
1857486, um dia depois de ter se mudado para o ateliê da Rua Furstemberg, n° 6, onde
atualmente funciona o Museu Eugène Delacroix. Ele sente saudades de seu antigo ateliê, local

que je ne pensais, ce qui les tuerait dans son dessin. (…) Je centrerais ainsi dans vos intentions en augmentant la
proportion des figures, relativement au paysage. »
480
« (…) charmant ton demi-teinte de fond de terrain, rochers, etc. dans le rocher derrière l’Ariane » (Journal, I,
p. 1015).
481
Em 2015, uma equipe de especialistas fez análises técnicas deste esboço e concluiu que, em 1856, Delacroix
estava efetivamente trabalhando sobre ele e não sobre a tela do MASP. Ver: KHANDEKAR, Narayan;
KIANORESKY, Sarah; EREMIN, Katherine. Delacroix’s ‘Bacchus and Ariadne’, The Burlington Magazine,
n. 1345, Vol 157, April, 2015, pp. 255-258.
482
Journal, I, p. 1018.
483
Journal, I, p. 1029.
484
Journal, I, pp. 1011-12.
485
« Votre peinture a pour moi un prix qui ne se paie pas ; elle m’enchante ; je m’identifie assez facilement avec
le sentiment qui vous a inspiré. Et j’aborde à votre suite un monde idéal où je passe de délicieux moments. »
486
Journal, II, p. 1212.
186

onde passara boa parte de sua “arrière-jeunesse”487, mas acorda motivado e faz um passeio
pelo Luxemburgo. À noite, Hartmann aparece para vê-lo. O alsaciano teria lhe pedido a
“cópia do seu retrato de homem de Rafael”. Hannoosh sugere que seja a cópia perdida do
quadro do Louvre, hoje atribuído à Parmegianino ou Corregio (fig. 134), catalogada por
Alfred Robaut em 1885488. Ela figurou na venda póstuma das obras do artista, portanto não
fora adquirida por Hartmann nem nessa visita de 1857, nem depois.
Eles poderiam, eventualmente, estar falando da cópia do Portrait d’un jeunne
homme, atribuído então a Rafael e hoje perdido (fig. 135)489, que se encontrava na coleção do
príncipe polonês Adam Jerzy Czartorski (1770-1861), exilado desde 1849 em Paris. A
pintura, apesar de não estar acessível ao público em geral, poderia ser vista pelos seus
habitués no hôtel Lambert, seu endereço em Paris. Delacroix o menciona, tanto ele quanto
outros integrantes de sua família (tinha particular afeição pela princesa Marcelline), inúmeras
vezes nos diários. Uma delas, logo após a entrada em que relata a visita de Hartmann, em 31
de dezembro de 1857490.
Delacroix conta que, durante a visita de Hartmann, eles falaram o tempo todo
sobre teologia e o descreve como um “fervoroso protestante”. O alsaciano, apesar de defender

487
O testemunho de Delacroix uma semana antes de deixar efetivamente o ateliê de Monmartre, Rive droite,
para o da Rive gauche, a meio caminho entre Saint-Sulpice e o Institut (para o qual havia sido eleito em 10 de
janeiro de 1857), é um dos mais pungentes dos diários: « L’atelier est entièrement vide. (…) Ce lieu (…) me
plaît encore dans sa solitude. Il semble qu’il soit doublé. (…) Mon ambition est renfermée dans ces murs. Je
jouis des derniers instants qui me restent pour me voir encore dans ce lieu qui m’a vu tant d’années, et dans
lequel s’est passée en grande partie la dernière période de mon arrière-jeunesse. Je parle ainsi de moi, parce que,
quoique dans un âge avancé de la vie, mon imagination et un certain je ne sais quoi me font sentir des
mouvements, des élans, des aspirations qui se sentent encore des belles années. Une ambition effrénée n’a pas
asservi mes facultés et ne m’a pas fait sacrifier le plaisir de jouir de moi (…), au vain désir d’être admiré par les
envieux dans quelque poste en vue (…). Je ne puis quitter sans une vive émotion ces humbles lieux où j’ai été
tantôt triste ou tantôt joyeux pendant tant d’années » (20 déc. 1857, Journal, I, pp. 1210-11).
488
N°1925, portrait de jeune homme accoudé, vêtu et coiffé de noir.
489
Passavant (1839) pensava tratar-se de um autorretrato de Rafael e a atribuição ao pintor de Urbino foi
comumente aceita no período. Mais tarde, houve divergências: Gruyer (1881) atribuiu-o a um colaborador de
Rafael, Gianfrancesco Penni, il Fattore; Crowe e Cavalcaselle (1882), a Parmigianino ou a Timotteo della Viti;
Fraser (1883), a Jacopo Palma il Vecchio; Bernard Berenson (1910), a Sebastiano dal Piombo. Após a IIª Guerra
tem sido, novamente, creditado a Rafael (com a colaboração de Giulio Romano). Sobre a história das
atribuições, ver: WAŁEK, Janusz, The Czartoryski "Portrait of a Youth" by Raphael, Artibus et Historiae, Vol.
12, No. 24, 1991, pp. 201-224.
490
Journal, I, p. 1213. O nome do príncipe encontra-se numa lista de pessoas a quem, provavelmente, ele
pretendia enviar cartões de ano novo. Delacroix o teria retratado a partir de 1843, terminus post quem, num
desenho conservado no Museu Czartoryski, em Cracóvia (publicado em JOUBIN, André, Delacroix, Chopin et
la societé polonaise, fig. 10). Lembramos, ainda, uma coincidência interessante: a pintura Portrait d’un jeunne
homme de Czartoryski foi emprestada anos depois, em 1874, a uma mostra, em Paris, em honra aos alsacianos e
lorenos, quando ambos os departamentos haviam sido cedidos à Alemanha. Hartmann também emprestara
quadros de sua coleção a essa mostra (Gazette des Beaux-Arts, 1° ago. e 1° set. de 1874, p. 100 e p. 208,
respectivamente).
187

o princípio da escola laica, acreditava piamente em Deus; Delacroix, por sua vez, era
agnóstico491. Ele vai se deitar “entediado e cansado” e termina a nota dos diários com uma
citação de Honoré Jean Riouffe, do Mémoires d’un détenu pour servir à l’histoire de la
tyranie de Robespierre (1795): “Morrerei envergonhado de ter sido homem” (“Je mourrai
honteux d’avoir été homme”). No dia anterior, o da mudança, ele anotara uma definição de
homem proposta por Benjamin Franklin: “o homem é o animal que sabe fazer ferramentas
para si” (“l’homme est l’animal qui sait se faire des outils”). A mudança para o novo ateliê
parece ter-lhe provocado, de fato, reflexões existenciais, de modo que não é à toa que a
conversa com Hartmann tenha girado em torno de uma ciência que estuda Deus e sua relação
com os homens e com o universo. Se chegaram a falar da encomenda das Estações, isso
passou ao largo do espírito de Delacroix, no momento ocupado com questões mais profundas.
Jacques Hartmann, irmão mais novo de Frédéric, encomenda a pintura do Rapto
de Rebeca (Musée du Louvre, Paris) a Delacroix, conforme uma carta datada de 1858 de um
funcionário da empresa em Paris, Sr. Hirth, encarregado de pegar o quadro com o pintor492.
Jacques autoriza o seu empréstimo ao Salão de 1859, que abre em abril, e Delacroix o retira
da exposição antes do encerramento493. Três anos antes, em 26 de maio de 1856, o pintor
escreveu que havia esboçado na tela o Templier emportant Rebecca du château de
Frondeboeuf pendant le sac et l’incendie de ce repaire, tema tirado de Ivanhoe, de Walter
Scott. É provável, então, que Jacques tenha encomendado esta tela ao mesmo tempo em que
Frédéric encomendou as Estações, porque Delacroix trabalha paralelamente no quadro e nos
esquisses da série494.
Nesse mesmo ano de 1859 em que O Rapto de Rebeca, de Jacques, é exposto no
Salon, Frédéric anula a encomenda das Estações, provavelmente em junho, e a restabelece
alguns meses depois, em 4 de dezembro. Delacroix incomoda-se, pois os quadros já haviam
sido esboçados (ébauchés). Em 24 de junho de 1859, ele escreve ao marido de sua prima,
Auguste Lamey:

491
Sobre a fé de Hartmann, conforme o comentário de um padre em uma das necrologias (ver supra nota 408).
Sobre o ceticismo agnóstico de Delacroix, ver: Journal, 20 mai 1856; 30 mai 1856 e 31 jan. 1860.
492
Paris, le 10 oct. 1858, INHA, Fonds Piron, NUM0507-2.
493
Jacques Hartmann à Delacroix, Accrington-Lancashire, le 4 mars 1859; Hirth à Delacroix, Paris, le 21 mai
1859, INHA, Fonds Piron, NUM0507-2.
494
Journal, I, pp. 1018 e 1029.
188

“Lamento que você não tenha feito ao mesmo tempo a sua visita a Munster; duvido
que seja possível irmos até lá juntos. Alguns contratempos entre um dos Hartmann e
eu seriam a causa de minha abstenção de apresentar-me em casa deles (…).
Nossos caros prussianos tomam uma atitude bastante inquietante em relação às suas
províncias do Reno. É provável que os seus vizinhos os renanos devam preparar
arcos do triunfo”495 (itálicos do autor, Paris, 24 de junho de 1859, Corres., IV, pp.
107-8).

Na carta em que restabelece a encomenda, Hartmann explica a Delacroix que, ao


anulá-la, tomava precauções diante da iminência de uma guerra:

“(…) cedi fácil demais aos temores que provocaram em mim as tristes
circunstâncias nas quais nos encontramos, bem como os grandes empréstimos de
dinheiro que havíamos então feito. Estávamos todos convencidos, aqui na Alsácia,
que entraríamos num novo período de guerra geral que nos impunha desde então, a
nós industriais, a interdição de todo tipo de despesa”496 (Munster, 4 de dezembro de
1859, INHA, Fonds Piron, NUM0507-14).

Em seguida, ele reitera o compromisso de pagar-lhe o preço acordado


previamente pelo conjunto dos quadros, 12.000 francos:

“Comprometo-me, eu ou meus herdeiros, a pagar-lhe doze mil francos pelos quatro


painéis representando as Estações que você esboçou a meu pedido (…)”497 (id.).

Em 14 de abril de 1860, Delacroix escreve em seus diários que havia “avançado


muito os quatro quadros das Estações para Hartmann”498. Quase um ano depois, em 5 de
janeiro de 1861, ele fornece as medidas dos panneaux499 das Estações a “M. Fritz Hartmann”
(Fritz sendo o equivalente em alemão de Frédéric), quais sejam: 1,92 x 1,62 m500. Quatro
meses depois, em 21 de maio de 1861, Hartmann, não encontrando Delacroix que trabalhava

495
« Je regrette que vous n’ayez pas en même temps fait votre visite à Munster ; je doute qu’il nous soit possible
d’y aller ensemble. Quelques nuages entre l’un des Hartmann et moi seraient cause de mon abstention de me
présenter chez eux (…). Nos chers Prussiens prennent une attitude bien inquiétante pour leurs provinces du Rhin.
Il est probable que vos voisins les Rhénans doivent préparer des arcs de triomphe. »
496
« (…) j’ai trop facilement cédé aux craintes qu’avait éveillé en moi les tristes circonstances où nous nous
trouvions et les prêts d’argent assez forts que nous avons faits alors. Nous étions tous convaincus ici en Alsace
que nous entrions dans une période nouvelle de guerre générale qui nous imposait dès lors à nous autres les
manufacturiers de nous interdire toute dépense. »
497
« (…) je m’engage, moi ou mes héritiers, à vous payer douze mille francs les quatre panneaux représentant
les Saisons que vous avez esquissés à mon intention (…). »
498
Journal, II, p. 1346.
499
Panneaux (painéis) tem o sentido, nesse caso, não de uma pintura feita sobre madeira, como o termo em
francês normalmente sugere, mas de um trabalho decorativo em tela a ser posto sobre uma área demarcada na
parede.
500
Journal, II, p. 1381. As medidas dos quadros no catálogo do MASP são: 1,98 (h) x 1,65 m. O museu
provavelmente somou o tamanho da moldura.
189

na capela da Igreja de Saint-Sulpice, envia-lhe uma carta na qual pergunta sobre seus quadros.
Uma segunda vez ele lhe pede para alterar as dimensões das telas. Ele deseja reduzi-las entre
60 e 70 cm na altura, mantendo a proporção atual (ou seja, reduzindo também entre 30 e 20
cm na largura):

“Sei que nossos painéis foram já iniciados e encontram-se em estado bem avançado,
mas mais como concepção do que sobre a tela, ao menos creio eu. É por isso que me
permito propor-lhe esta mudança (…)”501 (Munster, 20 de maio de 1861, INHA,
Fonds Piron, NUM0507-14).

Ele acredita que as telas estão apenas esboçadas nesse momento. Contudo,
Delacroix já havia “avançado muito”, segundo ele próprio, um ano antes de Hartmann
solicitar a redução no tamanho. Embora o Descriptif de Conservation do C2RMF tenha
acusado na Primavera, no Verão e no Outono uma linha horizontal “impressa” na camada
pictórica, alguns centímetros abaixo da borda superior502, o pintor não atende a este pedido do
comitente, provavelmente porque implicaria em recomeçar todo o trabalho. Porém, dois anos
se passam desde 1861 e as telas não são terminadas. Numa carta de 30 de junho de 1862 a
Mme de Forget, Delacroix refere-se à dificuldade em acabar alguns quadros sobre os quais está
trabalhando em Champrosay, por conta tanto de problemas de saúde, quanto técnicos,
inerentes às obras:

“Trabalho muito, ainda que um mal-estar constante sempre no meio do dia venha
colocar um obstáculo à finalização de alguns quadros que tenho a obrigação de
terminar num tempo próximo e que oferecem muitas dificuldades”503 (Champrosay,
30 de junho de 1862, Corres., IV, p. 321).

Quase um ano depois, no dia 13 de maio de 1863, três meses antes de morrer,
Delacroix escreve ao colecionador Paul Beurdeley que os quadros para Hartmann estavam

501
« Je sais que nos panneaux sont déjà avancés et arrêtés, mais plutôt comme conception que sur la toile, du
moins je le crois. C’est pourquoi je me permets de vous proposer ce changement (…). »
502
CUECO, David Aguilella, Descriptif de conservation et d’intervention, 2 à 13 fév. 1998, fait au MASP, à
São Paulo, 14333 (cote), C2RMF (Versailles).
503
« Je travaille beaucoup quoique le malaise que j’éprouve toujours au milieu de la journée vienne mettre
obstacle à l’achèvement de quelques tableaux que j’ai la tâche d’achever pour um temps prochain et qui offrent
beaucoup de difficultés. »
190

“quase terminados neste inverno, mas cuja finalização completa interrompi quando
tive a certeza, dois meses antes do Salão [de 1863], de que não poderiam ser
admitidos”504 (13 de maio de 1863, Corres., IV, pp. 372-373).

Delacroix falece no dia 13 de agosto de 1863. Em fevereiro de 1864, as obras


remanescentes em seus ateliês de Paris e Champrosay – incluindo as quatro telas das Estações
Hartmann – foram vendidas em leilão no Hôtel Drouot505. Jacques Hartmann, irmão de
Frédéric, que possuía o L’Enlevèment de Rebecca do Louvre, adquire nesta venda dois
dessus-de-porte: Le triomphe de Bacchus e Le triomphe d’Amphitrite (Fondation Bührle,
Zurich, figuras 143 e 144)506. No catálogo, eles aparecem na sequência das Estações, o que
permite supor que foram leiloados logo depois delas. O tema lhes era iconograficamente
próximo e também se encontravam inacabados, apesar de terem sido adjudicados por um
preço mais baixo. Nessa ocasião, Frédéric Hartmann teria tido uma chance de adquirir as suas
Estações. Seu irmão comprou obras muito próximas, no tema e no tratamento, a sua antiga
encomenda. Teria sido o preço que os fez recuar507? O tamanho, que Delacroix não alterou?
Ou as composições representando as estações por meio de histórias mitológicas já não
agradavam tanto? Outra hipótese, ainda, é a de que os Triunfos tenham sido encomendas do

504
« (…) presque achevés cet hiver, mais dont j’ai interrompu l’achèvement complet lorsque j’eus l’assurance,
deux mois avant le Salon [de 1863], qu’ils ne pourraient être admis. » André Joubin explica, em nota, que um
artigo do novo regulamento do Salon proibia a admissão de mais de três obras por artista.
505
PETIT, Francis; TEDESCO, Joseph (experts); BURTY, Philippe (notice). Catalogue de la vente qui aura
lieu par suite du décès de Eugène Delacroix..., Hôtel Drouot, Paris, 17-19 février 1864. O exemplar da Bnf
pertencia a Étienne Moreau-Nélaton. Ele foi anotado pelo seu pai, Adolphe Moreau, o qual acrescentou o nome
do comprador e o preço ao lado de cada obra.
506
No catálogo anotado por Adolphe Moreau (nota 505), consta apenas o sobrenome “Hartmann” ao lado das
obras. Isso gerou certa confusão. Vincent Pomarède, por exemplo, afirmou que se tratava de Frédéric (1998: p.
350). Contudo, essas pinturas não figuram na venda póstuma de sua coleção, em 1881. Mas tampouco aparecem
na venda da coleção de Jacques Hartmann, de 1876. Em outro catálogo anotado da vente Delacroix, o da galeria
Valloton, Lausanne, citado por Jonhson (1986, III, p. 67), ao lado do sobrenome Hartmann consta o endereço da
Rue du Sentier, n° 32. Frédéric residia no Boulevard Poissonière, n° 23. Segundo lemos na sua correspondência,
ele indicava o endereço da Rue du Sentier, que era também o da sede da manufatura Hartmann et Fils em Paris,
apenas quando estava ausente da cidade. No Annuaire des artistes et des amateurs dos anos de 1861 e de 1862,
consta um “M. Hartmann, Rue du Sentier, n° 32, tableaux modernes” (pp. 111 e 81, respectivamente). Logo,
havia uma coleção de quadros modernos neste local. Frédéric morando em outro endereço, seria a de Jacques ou
a de seu outro frère cadet Alfred ou, ainda, de ambos? Em todo caso, a probabilidade maior é de que seja
Jacques mesmo quem adquiriu os Triunfos, porque ele encomendara a pintura do Rapto de Rebeca a Delacroix,
em torno do início de 1856 (entregue em 1858), indicando-lhe em suas cartas o endereço da Rue du Sentier.
Além disso, os Triunfos não aparecem nos catálogos da venda de 1873 e da póstuma, de 1899, de Alfred.
507
Como vimos, Hartmann negociou com Delacroix o preço de 12.000 francos pelas quatro telas; em leilão, o
conjunto atingiu a soma de 4.920 francos. Jacques, por sua vez, pagou 1.525 francos pelos dois Triunfos.
191

próprio Jacques Hartmann a Delacroix, embora não exista nenhum documento ou evidência a
respeito508.
Durante os anos 1860, Hartmann já frequentava há mais de uma década o
paisagista, admirado por Delacroix, Théodore Rousseau509. Em 26 de fevereiro de 1852,
alguns dias após não tê-lo encontrado em seu ateliê em Paris, Rua Pigalle, nº 77, Hartmann
escreve uma carta a Rousseau exprimindo sua admiração pelo que viu lá510. Ele acrescenta a
razão pela qual compra quadros:

“O pequeno quadro de M. Bounet511 agradou-me infinitamente (…). O tom do


quadro me pareceu de uma verdade e de uma harmonia geral e todos os detalhes, de
um fini que não deixa nada a desejar. Em resumo, Sr., como não compro um quadro
por vaidade ou para cobrir minhas paredes com molduras douradas, mas antes para o
meu bel prazer e para me ligar a ele cada dia mais, de você gostaria de algo tão
completo e trabalhado quanto este belo quadrinho, algo enfim capaz de suscitar
corajosamente um exame consciencioso e prolongado. É o privilégio do belo
verdadeiro inspirar uma admiração constante”512 (26 de fevereiro de 1852, CD
BSb5L1).

Ele não prioriza o valor econômico ou decorativo de um quadro, mas sim o seu
valor estético. Um quadro é, para ele, um objeto sobre o qual é necessário inclinar o espírito
continuamente com vistas a se beneficiar dos efeitos do “belo verdadeiro”. Ele se apresenta a

508
Johnson, no catálogo completo das pinturas de Delacroix, afirma desconhecer quais eram as intenções do
artista com esses dois Triunfos. Ver: J252 e J253.
509
Ver: ANGRAND, Pierre. Théodore Rousseau et Eugène Delacroix, Gazette des Beaux-Arts, octobre 1966,
pp. 205-226.
510
Alfred Sensier (1815-1877) descreve o encontro entre Rousseau e Hartmann de modo diferente. Segundo
Sensier, em sua biografia de Rousseau publicada em 1872, eles foram apresentados pelo pintor vosgiano
François-Louis Français (1814-1897) : « Français (…) s’était lié avec un jeune compatriote qui n’avait pas quitté
ses montagnes et en avait le culte et l’admiration native, M. Frédéric Hartmann, originaire de la belle vallée de
Munster, près de Colmar. M. Hartmann trouvait nos artistes fort au-dessous de la grande nature vosgienne et
résistait aux conversations singulièrement pittoresques de Français, sur l’excellence de nos paysagistes
modernes. Pour le convaincre il le mena chez Rousseau. Les atomes crochus ne furent pas longs à se produire
entre les deux nouvelles connaissances » (SENSIER: 1872, pp. 218-219). Já um aluno de Français afirma que foi
o amateur Édouard Gros (1819-1910), cunhado de Frédéric Hartmann e manufacturier em Wesserling, quem o
apresentou a Rousseau (François-Louis Français : causeries et souvenirs par un de ses élèves, Paris, 1902, p.
159, nota 1).
511
Ou Bonnet? No catálogo de Schulman das obras completas de Rousseau há um quadro proveniente da
coleção Bonnet: n. 327, En forêt de Fontainebleau, c. 1848, 64 x 54 cm, atualmente no Museu Pouchkine,
Moscou. No catálogo da Vente Bonnet, de 9 de março de 1864, consta mais um Rousseau, n. 31: Un lac dans les
montagnes, 24 x 32 cm.
512
« Le petit tableau de M. Bounet m’a infiniment plu (…). Le ton du tableau m’a paru d’une vérité et d’une
harmonie générale et tous les détails d’un fini qui ne laissent rien à désirer. Bref, M., comme je n’achète pas le
tableau par vanité et pour couvrir mes murs de bordures dorées, mais bien pour en jouir et m’y attacher chaque
jour d’avantage, je ne voudrais de vous que quelque chose d’aussi complet et d’aussi travaillé que ce joli petit
tableau, quelque chose enfin en état de rapporter vaillamment un examen consciencieux et prolongé. C’est le
privilège du vrai beau d’inspirer une admiration constante. »
192

Rousseau, desse modo, como um comprador digno do seu talento. Seis mil francos é o valor
que lhe propõe pelas duas vistas de Les Landes apreciadas em seu ateliê: Un Marais dans Les
Landes (Um pântano em Les Landes) e Ferme dans Les Landes (Fazenda em Les Landes).
Provavelmente, a segunda trata-se do dessin-peinture, como o chama Sensier, hoje na Ny
Carlsberg Glyptotek, Dinamarca (fig. 145). Na mesma carta, Hartmann explica o porquê de
sua demanda de uma redução de preço, demonstrando assim a consciência do risco que corria
ao comprar quadros ainda não acabados:

“Note, contudo, (…) que por preços assim elevados é possível comprar quadros
antigos muito belos de um valor invariável e de um mérito inconteste, enquanto que
com os quadros que compramos ainda em estado de esboço, corremos sempre o
risco de uma realização mais ou menos perfeita; porque qual é o artista tão seguro de
seu pincel para poder garantir que conduzirá as suas obras a um ponto sempre
igualmente perfeito [?]”513 (26 de fevereiro de 1852, CD BSb5L1).

Aproximadamente entre novembro de 1855 e abril de 1856, portanto, exatamente


durante o período em que Hartmann encomenda as Estações a Delacroix, Rousseau entrega-
lhe o Marais (Musée du Louvre, Paris, fig. 146)514, mas Hartmann esperará até o fim da vida
do artista para entrar em possessão, no início do ano de 1868, da Ferme (The Clark Art
Institute, Williamstown, MA, fig. 147) e das outras telas que acrescentará, em nome de seu
irmão Alfred, a esta primeira encomenda, a saber, Le Four Communal (O forno comunitário,
Museum der bildenden Künste, Leipzig, fig. 152) e Village de Becquigny (Vilarejo de
Becquigny, Frick Collection, New York, fig. 149)515. Este atraso produziu uma prolífica
discussão, registrada na correspondência entre os dois, sobre o fini na pintura francesa do séc.
XIX.
Em 1857, com a encomenda do Marais e da Ferme já estabelecida, Rousseau
propõe a Hartmann a substituição da Ferme pelo Gorges d’Apremont (Desfiladeiro de
Apremont, Middlebury College Museum of Art, Middlebury, fig. 148). Hartmann considera o
quadro inacabado e, vendo-o no mesmo estado dois anos mais tarde, no Salão de 1859,

513
« Remarquez cependant (…) que pour des prix aussi élevés, on trouve à acheter de fort beaux tableaux
anciens d’une valeur invariable et d’un mérite incontesté, tandis qu’avec des tableaux que l’on achète encore à
l’état d’ébauche, on a toujours à courir les chances d’une réussite plus ou moins parfaite ; car quel est l’artiste
assez sûr de son pinceau pour pouvoir garantir d’amener des œuvres à un point toujours également parfait (…). »
514
Essa data é suposta por conta de uma carta de 15 abril de 1859, citada adiante (nota 516), na qual Hartmann
escreve a Rousseau que esperou três anos pelo quadro (CD BSB22L90). Como ele foi exibido na Exposição
Universal de 1855, que terminou em 15 de novembro deste ano, o quadro deve ter-lhe sido entregue entre o fim
de 1855 e o início de 1856.
515
O Four e o Village eram inicialmente encomendas para o seu irmão Alfred Hartmann, segundo uma carta de
Hartmann a Rousseau datada de 14 de abril de 1862 (CD BSb22L98). No entanto, os dois quadros figuram na
venda póstuma da coleção de Frédéric (1881: pp. 17,19).
193

comunica a Rousseau o seu desejo de desfazer-se dele. Antes em sua carta, ele recusara um
empréstimo a Rousseau, o estado de suas indústrias obrigando-o a restringir o máximo
possível as suas despesas. (Em 1857, a firma já havia saído do ramo da impressão.) Hartmann
faz, então, uma recapitulação dos seus negócios com o pintor:

“Você se lembra (…) de que nossa primeira negociação compreendia a vista de Les
Landes, que tenho em minha casa, e a Ferme [que espera ainda] pelo preço de 6.000
francos ambas. Este preço era, devo admitir, conveniente, mas você estabeleceu a
condição de ser pago antecipadamente, o que ocorreu, e esperei três anos por um de
meus quadros e pelo outro, [venho esperando durante] cerca de seis anos. Depois,
você substituiu a Ferme pela vista de Fontainebleau [o Gorges d’Apremont] e você
me fez pagar pela Ferme 8.000 francos adiantado. Consenti, se bem que este quadro
estivesse, na verdade, já incluso em nosso primeiro negócio. (…) Isso dá 14.000
francos que você recebeu e pelos quais eu já perdi o interesse durante todos esses
anos (…). Isso me daria talvez o direito de esperar que o meu terceiro quadro [o
Gorges] fosse tão estudado quanto os outros dois. Entendo menos, pelas
observações que precedem, fazer-lhe uma repreensão que justificar minha intenção
de me desfazer da vista de Fontainebleau. Este quadro é muito pouco acabado para
que eu tenha prazer em tê-lo em minha casa e constantemente sob os meus olhos”516
(Paris, 15 de abril de 1859, CD BSB22L90).

Eis então Hartmann em déficit com Rousseau no mesmo ano em que anula e
restabelece a encomenda das Estações a Delacroix. Esta dívida só aumentará ao longo dos
anos, sem que seus quadros (e aqueles destinados a outros membros de sua família) sejam
entregues. Em 1864, quando passa por uma nova crise financeira, o industrial tem dificuldade
em esconder sua impaciência numa carta a Rousseau:

“A situação de nossos negócios é tão ruim, que me é absolutamente necessário


restringir minhas despesas. Não poderei, então, adiantar-te nada além da soma de
52.000 francos que você me deve.517 (…) Agora me deixe resumir a sua situação
para comigo. Você me deve 52.000 francos, pelos quais o que tenho em minha casa
[o Marais incluso] não representa certamente 10.000 francos, se fôssemos calcular
(…).

Além disso, você possui três quadros meus não terminados e pagos [a Ferme, o Four
e o Village], mas sem valor enquanto não forem terminados e assinados. Até aqui,
estou no prejuízo de uma soma de, aproximadamente, 27.000 francos.

516
« Vous vous rappelez (…) que notre premier marché comprenait la vue des Landes que j’ai chez moi et la
Ferme [qu’il attend encore], pour le prix de 6.000 F les deux. Ce prix était, je l’admets, avantageux, mais vous y
aviez mis la condition d’être payé d’avance, ce qui a eu lieu, et j’ai attendu un de mes tableaux trois ans et l’autre
près de six ans. Puis vous avez substitué à la Ferme la vue de Fontainebleau [le Gorges d’Apremont], et vous
m’avez fait payer la ferme 8.000 F d’avance. J’y ai consenti, bien que ce tableau fut (sic) en réalité compris dans
notre premier marché. (…) Cela fait 14.000 F que vous avez reçus et dont j’ai perdu les intérêts pendant bien des
années (…).Cela me donnait peut-être le droit d’espérer que mon troisième tableau [le Gorges] serait aussi étudié
que les deux autres. J’entends moins, par les observations qui précèdent, vous faire un reproche, que vous
justifier mon intention de me défaire de la vue de Fontainebleau. Ce tableau est trop peu fait pour que j’aie du
plaisir à l’avoir chez moi et constamment sous mes yeux. »
517
Hartmann foi credor de Rousseau na liquidação de uma dívida de 70.000 francos. Ver a carta CD AR51, p.
19.
194

Enfim, eis que meu irmão encontra-se num prejuízo de 24.000 francos e sem
nenhuma garantia518.

O todo reunido representa mais de 100.000 francos, o que é uma fortuna!”519


(Munster, 11 de janeiro de 1864, CD BSb22L106).

Efetivamente a razão, ao menos a mais imediata, pela qual Hartmann não compra
as Estações na venda póstuma de Delacroix, que teria lugar algumas semanas mais tarde, era
financeira. Em compensação, a questão do inacabado é mais complexa. Em abril de 1859,
Hartmann estimara que o Gorges d’Apremont, por exemplo, era um “ébauche à peine
nettoyée”520. Baudelaire, escrevendo sobre a participação de Rousseau no Salão daquele ano,
onde o Gorges estava pendurado (fig. 148), emite a mesma opinião:

“(...) ele toma um simples estudo por uma composição. Um pântano cintilante,
fermentando de ervas úmidas e pontilhado de placas luminosas (…) torna-se aos
seus olhos apaixonados um quadro suficiente e perfeito. Todo o encanto que ele
coloca neste farrapo arrancado ao planeta nem sempre é suficiente para fazer
esquecer a ausência de construção”521 (BAUDELAIRE, Salon de 1859, in: PICHOIS
(éd.), Critique d’art…, 1992, p. 322).

O Gorges estava, para Hartmann e Baudelaire, realmente no início. Existiam


outras pinturas, contudo, nas quais o inacabado significava, ao contrário, uma fase anterior, à
qual seria necessário retornar, ou seja, um avanço além da medida.
Rousseau expôs o Village de Becquigny (fig. 149) no Salão de 1864, onde foi mal
recebido. Um dia antes da abertura, ele pintara o céu de um tom azul safira uniforme que
desagradou a crítica522. Hartmann envia-lhe uma carta, de 17 de agosto de 1864, na qual copia

518
Alfred Hartmann havia-lhe encomendado La vue de la chaîne des Alpes, prise des hauteurs de La Faucille
em 1863 (SENSIER: 1872, p. 174). Ver também supra nota 515.
519
« La situation de nos affaires est tellement mauvaise, qu’il me faut absolument restreindre mes dépenses. Je
ne pourrai donc pas vous avancer au-delà de la somme de 52.000 f que vous me devez. (…) Maintenant laissez-
moi vous résumer votre situation vis-à-vis de nous. Vous me devez 52.000 f pour les quels ce que j’ai chez moi
[le Marais y compris] ne représente certainement pas 10.000 f s’il fallait le réaliser (…).En outre, vous avez à
moi 3 tableaux non achevés et payés [la Ferme, le Four et le Village], mais sans valeur tant qu’ils ne seront pas
achevés et signés. Je suis là encore en découvert d’une somme de 27.000 f environ. Enfin voilà mon frère à
découvert de 24.000 f et sans aucun gage. Le tout réuni représente plus de 100.000 f, ce qui est une fortune ! »
520
CD BSb22L90.
521
« (…) il prend une simple étude pour une composition. Un marécage miroitant, fourmillant d’herbes humides
et marqueté de plaques lumineuses, (…) deviennent à ses yeux amoureux un tableau suffisant et parfait. Tout le
charme qu’il sait mettre dans ce lambeau arraché à la planète ne suffit pas toujours pour faire oublier l’absence
de construction. »
522
SENSIER: 1872, pp. 272, 303-304.
195

um extrato do texto de Jules-Antoine Castagnary. Escrevendo para o Le Courrier du


Dimanche, o crítico comenta o quadro do Village:

“No entanto, se o Village estivesse livre de algumas faltas muito evidentes; se as


árvores, por exemplo, ao invés de estarem aplainadas em leque sobre o céu,
estivessem modeladas e posassem livremente na atmosfera; se as sombras projetadas
correspondessem a luzes mais reais; se, enfim, o trabalho do pincel fosse menos
uniforme, não coloco em dúvida que este quadro não teria resistido à comparação
com os mais belos do mestre”523 (grifos de Hartmann sobre o texto de Castagnary,
17 de agosto de 1864, CD BSb22L109).

Tendo em vista a recepção do Village, Hartmann preocupa-se com o Buisson (o


Four Communal, fig. 152) e aproveita a oportunidade para aconselhar Rousseau:

“Vou ficar cheio de ansiedade até o dia de ver o Arbusto (Buisson) acabado. Irá ele
realizar o seu sonho e o meu? Permanecerá brilhante e claro? Será redondo e
preciso, sem acusar nem peso nem cansaço? Sobre essa bela tonalidade geral,
reinará uma pincelada livre, nervosa e expressiva, como aquela de seus desenhos à
pena ou a grafite, e ao mesmo tempo gorda e transparente, como aquelas de Paul
Potter, de Hobbema e de Cuyp? Pelo amor de Deus, chega de ilusões, como também
para a Ferme e o Village! Quando temos sempre uma tela diante dos olhos,
terminamos por vê-la apenas sob o prisma de nossas emoções passionais e
momentâneas. Para retomar a percepção clara, é preciso mergulhar de novo na
natureza e, sobretudo, na meditação dos mestres. Gostaria de ver em seu ateliê
cópias de vacas e do cavalinho branco de Paul Potter, do pequeno cavaleiro de Van
der Neer, de alguma coisa de Ruysdael ou de Hobbema, como víamos no ateliê de
Delacroix muitas belas cópias de Rubens. Essas são comparações que acrescentam
muito à discussão. O cavalo branco de Paul Potter é de uma pincelada gorda e
franca, ao mesmo tempo que de um desenho firme, realmente maravilhoso. O
pequeno cavaleiro do Village cujo papel é tão importante, deixa muito a desejar em
termos de sutileza e de nitidez”524 (id.).

Nesta carta, Hartmann demonstra ser um amateur não apenas bem informado,
mas também seguro de seus desejos. Na intenção de ajudar Rousseau a terminar o Village, ele
evoca a lembrança dos holandeses que viram juntos no Louvre: o Cheval Pie (1653), de

523
« Pourtant si le Village était expurgé de quelques fautes trop visibles ; si les arbres, par exemple, au lieu de se
plaquer en éventail sur le ciel, étaient modelés et posaient librement dans l’atmosphère ; si les ombres portées
correspondaient à des lumières plus réelles ; si enfin le travail général de la brosse était moins uniforme, je ne
mets pas en doute que ce tableau ne put supporter la comparaison avec les plus beaux du maître. »
524
« Je vais être plein d’anxiété jusqu’au jour où j’aurai vu le Buisson achevé. Va-t-il réaliser votre rêve et le
mien ? Va-t-il rester éclatant et clair ? Sera-t-il serré et précis, sans accuser ni lourdeur ni fatigue ? Sur cette belle
tonalité générale, va-t-il régner une touche libre, nerveuse et expressive comme celle de vos dessins à la plume
ou au crayon, et en même temps grasse et transparente comme celles des Paul Potter, des Hobbema et des
Cuyp ? Pour l’amour de Dieu, plus d’illusions comme pour la Ferme et le Village ! Quand on a toujours une toile
devant les yeux, on finit par ne plus la voir qu’à travers le prisme de ses impressions passionnelles et
momentanées. Pour en ressaisir la perception nette, il faut se retremper dans la nature, et surtout dans la
méditation des maîtres. J’aimerais à voir dans votre atelier des copies des vaches et du petit cheval blanc de Paul
Potter, du petit cavalier de van der Neer, de quelques morceaux de Ruysdael ou d’Hobbema, de même qu’on
voyait chez Delacroix plusieurs belles copies de Rubens. Ce sont là des types de comparaison qui aident
beaucoup à la discussion. Le cheval blanc de Paul Potter est d’une touche grasse et franche, en même temps que
d’un dessin ferme, vraiment merveilleux. Le petit cavalier du Village, dont le rôle est très important, laisse
beaucoup à désirer comme finesse et comme netteté. »
196

Paulus Potter (fig. 151), e o cavaleiro no centro do Village traversé par une route (1660s), de
Aert van der Neer (fig. 150) – ambos podendo servir, segundo ele, de parâmetro para revisar
os mesmos elementos no quadro do Village. Ele menciona também Meindert Hobbema, cujo
quadro no Louvre, La ferme dans le bois (1662), foi uma fonte evidente para a Ferme dans
Les Landes de Rousseau. Talvez Le Buisson (1649), de Jacob van Ruisdael (e não Ruysdael,
grafia empregada na época) tenha influenciado, por sua vez, o Four Communal, que
Hartmann frequentemente chama, em suas cartas, pelo mesmo nome de Buisson (fig. 153)525.
Ele aconselha Rousseau a copiar todos estes mestres holandeses do séc. XVII, aos quais o
artista se sentia certamente ligado, para reencontrar a “percepção clara” e cita o exemplo
rassurant de Delacroix (cuja exposição retrospectiva no Boulevard des Italiens havia aberto
alguns dias antes) em relação a Rubens. Hartmann notara, numa de suas visitas ao seu ateliê, a
presença de cópias de Rubens nas paredes. Rousseau precisava retornar aos holandeses, como
Delacroix retornava ao flamengo.
Dois livros importantes sobre a arte holandesa haviam sido publicados na França
no fim dos anos 1850: L'Histoire des peintres de toutes les écoles (1858), de Charles Blanc,
com dois tomos tratando da École Hollandaise, e Les Musées de la Hollande, de Thoré-
Bürger (o primeiro volume foi publicado em 1858 e o segundo, em 1860). Alguns anos
depois, em 1876, Eugène Fromentin publica o seu Les maîtres d’autrefois: Belgique et
Hollande526. Neste, um capítulo inteiro é dedicado aos paisagistas franceses; nele, é feita uma
comparação direta entre Rousseau e os holandeses. Fromentin acredita que, em termos de
invenção e espírito, os paisagistas franceses poderiam superar os holandeses, mas sua técnica
continuava aquém. Ele escreve:

“Rousseau (…) representa (…) os esforços do esprit français em criar, na França,


uma nova arte holandesa (…). Ele deriva dos pintores holandeses e deles se afasta”
(FROMENTIN, Les maîtres…, 8ª ed., Paris, 1896, pp. 275-77).

525
Sobre o apelido dado ao quadro de Ruisdael e sua recepção na França do séc. XIX, ver: FOUCART, Jacques.
Le Buisson de Ruisdael : un tableau du Louvre très admiré des Français au XIXe siècle. Bulletin de la Société
de l’Histoire de l’Art Français, Paris, 2004, pp. 233-252.
526
Tais autores, mesmo versados em outras línguas, já tinham à sua disposição alguns textos de referência
traduzidos, bem como estudos franceses sobre o tema, a saber: o manuscrito da tradução francesa do Groote
Schouburgh der Nederlantsche Konstschilders en Schilderessen (1718-21), de Arnold Houbraken, feita por
Madame Bernard-Picard, então na biblioteca do Louvre; os quatro volumes da Vie des peintres flamands et
hollandais (1753-64), de Jean-Baptiste Descamps, com adaptações de trechos do Schilder-boeck (1604), de
Karel Van Mander, e da obra de Houbraken citada; os três volumes da Galerie des peintres flamands, hollandais
et allemands (1792-96), do marchand Jean-Baptiste-Pierre Le Brun; a brochura Les Musées d'Angleterre, de
Belgique, de Hollande et de Russie : guide et mémento de l'artiste et du voyageur (1844), de Louis Viardot; os
quatro volumes da Histoire de la peinture flamande et hollandaise (1846), de Alfred Michiels; e, finalmente, as
Lettres écrites de Hollande (outubro de 1857), de Maxime Ducamp, publicadas na Revue de Paris.
197

E depois:

“Se você pegar um de seus quadros [de Rousseau], o melhor, e colocá-lo ao lado de
um quadro de Ruysdael, de Hobbema ou de Wynants, de mesma ordem e acepção,
você ficará admirado com as diferenças (…). A solução é mais fisionômica, a
observação, mais rara, a paleta, infinitamente mais rica, a cor, mais expressiva, a
construção mesma, mais escrupulosa. (…) Um holandês ficaria (…) estupefato
diante de tais faculdades de análise. E, no entanto, as obras [dos modernos] são
melhores, mais inspiradas? São elas mais vivas? (…) Quando Rousseau pinta uma
Pesca de trutas, ele é mais grave, mais úmido, mais sombrio do que Ruysdael em
suas águas dormentes ou em suas cascatas escuras? (…) Isso é um progresso ou o
contrário de um progresso?” (id., pp. 280-82).

No fim da seção, ele esboça uma resposta sutil a essa última pergunta:

“Não ficaria surpreso se a Holanda nos prestasse um serviço, e que depois de nos
haver conduzido da literatura à natureza, mais cedo ou mais tarde (…), ela nos
conduzisse da natureza à pintura. (…) Nossa escola sabe muito, ela se esgota em
errâncias; sua coleção de estudos é considerável e é mesmo tão rica que ela nela se
compraz, se perde; e ela termina por reunir em documentos [em estudos] forças que
empregaria melhor produzindo e colocando em obra. (…) o dia no qual pintores e
pessoas de gosto se persuadirem de que os melhores esboços (études) do mundo não
valem um bom quadro, o espírito público terá feito (…) um retorno sobre si mesmo,
o que é o meio mais seguro de progredir” (id., p. 289).

Em termos técnicos, Fromentin, Blanc e Bürger reconhecem na pintura holandesa


do século XVII tanto o detalhismo quanto a generalização – uma maneira mais diligente, de
superfícies lisas e formas bem demarcadas e outra mais rápida, voltada ao “todo” ou “efeito
geral”. Albert Cuyp e Aert Van der Neer, que Hartmann e Rousseau viram juntos no Louvre,
são estimados por Blanc, por exemplo, nesses últimos termos. Mas mesmo essa pintura mais
sumária, piquante, direta, feita sem a intermediação de estudos, tendo apenas a natureza como
guia, mesmo ela é admirada somente em função do naturalismo de que é o veículo.
Assim, quando Hartmann clama a Rousseau que retome suas pinturas do
Buisson/Four, da Ferme e do Village evocando os holandeses como modelos, ele está
pensando não só em termos de composição, mas também demandando um pouco mais de
precisão. Não que esteja exigindo um acabamento de porcelana, mas ele se ressente da falta
de estrutura. Contudo, tempo depois, ele pensa que Rousseau avançou de tal modo que
perdeu, no trabalho com a cor, a forma. Como veremos, tais quadros começam, de fato, a
parecer-lhe trabalhados demais.
Rousseau, por sua vez, justificava o atraso justamente nessa busca pela estrutura,
definida por ele na imagem de um relojoeiro que regula, depois de montado, o relógio527.

527
“Quero estabelecer neste quadro [o da Ferme dans Les Landes] uma tal decisão de forma, que ela possa
existir independente dos caprichos da luz e da irregularidade da influência das horas do dia. Eu a ajusto como um
relojoeiro ajusta um relógio depois de tê-lo terminado (…)” (grifo do autor, Rousseau a Hartmann, Besançon, 4
de setembro de 1858, CD BSb5L4). Antes, em resposta à recusa de Hartmann ao Gorges, Rousseau escrevera,
198

Apesar de seu biógrafo e amigo Alfred Sensier afirmar que Rousseau tinha dificuldade em se
separar de seus quadros, comparando-o à Penélope que, com o objetivo de ganhar tempo,
desfazia o bordado à noite para refazê-lo durante o dia528, Rousseau parece ter realmente
levado a sério essa busca infinita pelo fini. Numa carta à sua esposa, por exemplo, ele se
ressente da pressão de Hartmann: “Se você soubesse quanto trabalho, mas creio que serei
recompensado. O Sr. Hartmann não se dá conta da importância desses quadros (...).”529
Segundo suas próprias palavras, lembradas por Sensier, ele bem que teria gostado de se
apaixonar, como Pigmalião, pela própria criação, mas infelizmente não conseguia: “Deve ser
uma felicidade esmagadora; mas nunca irei alcançá-la.”530 Jamais um quadro seu lhe parecia
digno de sua ideia do que seria um bom quadro. Um superego tirânico ou uma dificuldade em
lidar com a perda projetavam uma imagem de Rousseau como “esse homem constantemente
inquieto e palpitante que, atormentado por vários diabos, não sabia a qual atender”531. Toda a
paciência e boa vontade de Hartmann não o tornavam capaz, contudo, de explicar a razão dos
repentirs sucessivos e da procrastinação do pintor.
Em 15 de novembro de 1865, mais de um ano depois da carta em que aconselha
Rousseau evocando os holandeses, a ansiedade de Hartmann em relação ao Buisson dá lugar à
constatação de um fracasso. Ele observa que se passava então com este quadro a mesma coisa
que se passara antes com o Village. A Ferme, acrescenta, encontra-se num estado igualmente
incerto, com tons “que não se harmonizam” (ne se raccordent pas). Nestes dois casos,
contrariamente ao quadro do Gorges, Hartmann pede ao pintor mais frescor e imprevisto e
menos esforço e trabalho:

“Quanto ao Buisson [o Forno Comunitário], preciso de fato admitir o seu estado


transitório e que irá logo clarear-se. Tenho, todavia, dificuldade para crer que, para
conduzir um quadro aonde está o Village, seja necessário fazê-lo passar por essa fase
crítica que atravessa neste momento o Buisson e na qual o Village se encontrava na

em sua defesa, que desejava realizar não um quadro “extérieurement pittoresque”, mas sim “consciencieusement
réfléchi” (CD BSb5L8).
528
« Combien de jours, combien de nuits ne dépensa-t-il à ces toiles de Pénélope qu’il édifiait le jour pour les
déchirer la nuit ! (…) Travail sans fin, mais auquel il semblait à chaque phase toucher le but qui fuyait. »
(SENSIER: 1872, p. 220).
529
« Si tu savais quel travail, mais je crois qu’il me portera profit. M. Hartmann ne s’attend pas à l’importance de
ces tableaux là (…) » (sem data, CD BSb22L66).
530
Sensier arremata: « Jamais devant aucun de ses tableaux je ne le vis entièrement convaincu de sa supériorité »
(SENSIER: 1872, p. 288).
531
BAUDELAIRE, Salon de 1859, in: PICHOIS (éd.), Critique d’art…, 1992, p. 323.
199

época da exposição [Salão de 1864]. É, em todo o caso, um parto doloroso que deixa
os seus traços.

Veja o Village, reporte-se em pensamento aos seus bons quadros sutis, transparentes
e vaporosos, depois examine o Buisson com o olho imparcial de um estrangeiro. Sua
impressão será a de um doloroso espanto. Você o encontrará (...) duro, pesado,
carregado nos detalhes, muito recortado e irregular, e carente de transparência, de
frescor. (…) é uma pintura velhota na qual o esforço se mostra em toda parte. (...)
Mais graça, meu caro Rousseau, menos ciência e trabalho e mais frescor, juventude,
transparência, liberdade e mesmo imprevisto. Isso é realmente preciso, se você
quiser que o Buisson não produza um efeito tão desagradável no Salon como
produziu o Village.

Quanto à Ferme, creio-a num caminho de transformação feliz, ainda que seja difícil
saber com certeza o que ela se tornará e que esteja longe de ter um caráter tão franco
como o Village; já a vi verde, depois azul, depois amarela. Os terrenos estão ainda
num tom amarelo que não se harmoniza com o das árvores”532 (Paris, 15 de
novembro de 1865, CD BSb22L110/L111).

Apesar de todo o estímulo de Hartmann, Rousseau morre em 22 de dezembro de


1867 deixando estas três telas inacabadas. É pouco antes da morte do pintor que Hartmann
tem a ideia de encarregar o amigo e vizinho de Rousseau em Barbizon, Jean-François Millet,
da tarefa de terminá-las533. Em 19 de dezembro de 1867, Sensier, o historiador próximo dos
dois pintores, previne Millet:

“Ele [Hartmann] viu os quadros dele [de Rousseau] e não está descontente com a
Ferme, que conserva belezas evidentes e muito frescas (…).

O Vilarejo é o trabalho mais em processo; é uma obra retomada (…).

Ele te pedirá que… gele um caminho, que manche uma pedra. Estou te avisando. Se
Rousseau sucumbir, ele retornará à carga.

532
« Quant au Buisson, je veux bien admettre son état transitoire, et qu’il va tout à coup s’éclairer. J’ai
cependant peine à croire que pour ramener un tableau où en est le Village, il faille le faire passer par cette phase
critique que traverse en ce moment le Buisson, et où se trouvait le Village à l’époque de l’exposition. C’est en
tout cas un enfantement douloureux qui laisse ses traces.
Regardez le Village, reportez-vous par la pensée à vos bons tableaux fins, transparents et vaporeux, puis
examinez le Buisson avec l’œil impartial d’un étranger. Votre impression sera un étonnement pénible. Vous le
trouverez (…) dur, plombé, lourd dans ses détails, trop déchiqueté et manquant de transparence, de fraîcheur.
(…) c’est une peinture vieillotte où l’effort se montre partout. (…) De grâce, mon cher Rousseau, moins de
science et de travail, et plus de fraîcheur, de jeunesse, de transparence, de liberté et même d’imprévu. Il le faut
absolument, si vous voulez que le Buisson ne fasse pas au salon plus fâcheux effet encore que le Village.
Quant à la Ferme, je la crois dans une voie de transformation heureuse, quoiqu’il soit difficile de bien voir ce
qu’elle deviendra, et qu’elle soit loin d’avoir un caractère aussi franc que le Village ; je l’ai déjà vue verte, puis
bleue, puis jaune. Les terrains sont encore dans un ton jaune qui ne se raccorde pas avec celui des arbres. »
533
Hartmann conhecia a obra de Millet, por intermédio de Rousseau, desde ao menos 1854. Numa carta de 3 de
fevereiro desse ano, o amateur Louis Campredon revela a Millet: « Rousseau a organisé un cours de propagande
qui vous convertit les plus mutins. M. Harttman (sic) lui-même a déclaré qu’il voulait un tableau de vous, et il
serait bien possible qu’il vous demandât la Mère de Tobie » (grifo do autor, CD AR44, pp. 13-16).
200

(…) Esta ideia partiu dele, não de mim, e ele parece convencido de que é boa e
praticável” 534 (19 de dezembro de 1867, CD AR49, pp. 53-54).

Em 13 de janeiro de 1868, a caixa contendo os três quadros de Rousseau chega à


casa de Millet, em Barbizon535. Alguns dias depois, em 31 de janeiro, Hartmann comunica a
Sensier sua “intenção de propor ao Sr. Millet um negócio”536. No dia 19 de março, Sensier
escreve a Millet afirmando que combinou com Hartmann o preço de 25.000 francos. Em 20
de março, ele avisa Millet sobre a visita de Hartmann no domingo seguinte:

“O Sr. Hartmann deseja que você desembale os quadros dele [de Rousseau] e
também conversar com você a respeito; depois, incontinenti, determinou que seu
crédito de 25 [mil francos] estará disponível.

Gostaria muito que você tivesse vários de seus grandes pasteis para lhe mostrar. (…)

Seu trabalho em pastel produziu grande efeito sobre o Sr. Hartmann; ele está
maravilhado”537 (Paris, 20 de março de 1868, CD AR49, p.74).

Hartmann registra por escrito, numa carta de 25 de março de 1868 a Millet, o


acordo oral que selaram naquele domingo. Ele compromete-se a pagar 25.000 francos ao
artista em troca de “quatro quadros pintados a óleo de dimensões uniformes”. (Os retoques
das telas de Rousseau estavam inclusos no preço.) Ele continua:

“Chego a dimensões maiores, para que cada quadro cubra suficientemente (…), ele
sozinho, um dos painéis538 do meu salão. Penso que as pinturas ganham ao serem
vistas assim isoladas. As telas deveriam ter 105 a 110 de altura e a largura
proporcional de 90 a 92, se não me engano. Contudo, se as composições às quais
você chegar te fizerem preferir telas maiores na largura, aceito prontamente,
desejando, antes de tudo, não te constranger em nada. Neste caso, você poderia

534
« Il (Hartmann) a vu ses tableaux (de Rousseau), il n’est pas mécontent de la Ferme, qui conserve des
beautés très visibles et toutes fraîches. (…)
Le Village est le morceau qui est le plus en travail ; c’est un morceau remis sur le chantier (…).
Il vous demandera de … glacer un sentier, de salir une pierre. Je vous en préviens. Si Rousseau doit
succomber, il y reviendra.
(…) C’est à lui que cette idée est venue, et non à moi, et il paraît se persuader qu’elle est bonne et
praticable. »
535
CD BSb15L485.
536
Bnf, Z77(03)-BOITE4.
537
« M. Hartmann désire que vous fassiez le déballage de la caisse de ses tableaux et en causer avec vous ; puis,
incontinent, il est arrêté que son crédit de 25 vous sera ouvert.
Je voudrais bien que vous ayez plusieurs de vos grands pastels à lui montrer. (…)
Votre pastel a fait le plus grand résultat sur M. Hartmann ; il en est ébloui. »
538
Superfície da parede limitada por um enquadramento (ver supra nota 499).
201

adotar uma largura de 115 e mesmo 110 cm e uma altura de 90 a 95 cm. Essas
proporções sempre me pareceram muito boas, são aquelas dos quadros do Claude.
(…)

Quanto aos temas, desejo (…) que você me faça cenas campestres resumindo as
diversas épocas da natureza e da vida rústica, tais como você as compreende. Entre
os belos desenhos que você me mostrou há os Montes de feno (les Meules) e a Ceifa
(la Moisson) que me atraem. Você me falou de uma Primavera que tem na cabeça e
que, disse-me você, me convirá; tenho certeza disso. Resta encontrar um quarto
tema que poderá ser um aspecto de inverno, seja um efeito de água, seja o interior de
um vilarejo, seja um retorno de trabalhadores, enfim, o que você quiser. A única
observação geral que me permito fazer é de que gostaria que as tonalidades destes
quatro quadros, tão diferentes quanto possam ser, permaneçam claras. Explico-me. É
preciso tomar nossas casas burguesas pelo que são e ter em conta a sua iluminação
defeituosa; é conveniente que os quadros que penduramos nelas, podendo ser
admirados de perto, agradem também à distância; é somente sob tais condições que
é possível viver com eles numa intimidade continuada. Temo que um fim de tarde
que pressupõe uma tonalidade escura, o quão relativamente luminosa ou
transparente ela possa ser, não receba toda a luz de que poderia ter necessidade, em
razão das dimensões do quadro”539 (grifos do autor, Paris, 25 de março de 1868, CD
BSb5L32).

As instruções de Hartmann são precisas. Primeiramente, ele quer que cada quadro
funcione independente do outro, o que significa que ele não deseja, necessariamente, uma
série. Notemos que ele não emprega jamais em sua carta a expressão “as Estações” para
descrever o tema. O que ele deseja são “cenas campestres resumindo as diversas épocas da
natureza e da vida rústica”. Ele escolheu duas composições entre os pasteis de Millet a Émile
Gavet, que se tornarão o Outono (os Montes de feno) e o Verão (a Ceifa)540. Millet tinha uma

539
« Je viens à d’assez grandes dimensions, pour que chaque tableau garnisse suffisamment (…), à lui seul, un
des panneaux de mon salon. Je trouve que les peintures gagnent à être vues ainsi isolées. Les toiles devraient
avoir 105 à 110 en hauteur et la largeur proportionnelle de 90 à 92, si je ne me trompe. Toutefois, si les
compositions aux quelles (sic) vous vous arrêterez devaient vous faire préférer des toiles en largeur, j’y souscris
volontiers, voulant avant tout ne vous gêner en rien. Dans ce cas, vous pourriez adopter une largeur de 115c et
même de 110c soit une hauteur de 90c à 95c. Ces proportions m’ont toujours paru fort heureuses, ce sont celles
des tableaux du Claude. (…)
Quant aux sujets, je désire (…) que vous me fassiez des scènes champêtres résumant les diverses époques de
la nature et de la vie rustique, telles que vous les comprenez. Parmi les beaux dessins que vous m’avez montrés il
y a les Meules et la Moisson qui me ravissent. Vous m’avez parlé d’un Printemps que vous avez en esprit et qui,
m’avez-vous dit, me conviendra ; j’en suis certain. Resterait à trouver un quatrième sujet qui pourrait être soit un
aspect d’hiver, soit un effet d’eau, soit un intérieur de village, soit un retour de travailleurs, bref ce que vous
voudrez. La seule observation générale que je me permettrais de faire, c’est que je voudrais que les tonalités de
ces quatre tableaux, quelques différentes qu’elles doivent être, restent claires. Je m’explique. Il faut prendre nos
maisons bourgeoises pour ce qu’elles sont, et tenir compte des jours défectueux qu’elles donnent ; il est agréable
que les tableaux qu’on y suspend, tout en pouvant être admirés de près, fassent plaisir de loin ; ce n’est qu’à cette
condition que l’on vit avec eux dans une continuelle intimité. Je craindrais qu’une veillée qui suppose une
tonalité sombre, quelque lumineuse et transparente qu’elle puisse être relativement, ne reçût pas tout le jour dont
elle pourrait avoir besoin en raison des dimensions du tableau. »
540
Em 1875, ano da morte de Millet, o arquiteto Émile Gavet (1830-1904) expõe e vende sua coleção de 95
pasteis do artista. Ver: DURAND-RUEL, (expert); SILVESTRE, Théophile (notice). Dessins de Millet
provenant de la collection de M. Émile Gavet, Hôtel Drouot, Paris, 11 et 12 juin 1875. Le battage du sarrasin
202

ideia para a Primavera, que Hartmann aprova; o Inverno permanece a composição mais
incerta541. Finalmente, por razões práticas – os quadros deveriam ser vistos de longe e sob
uma iluminação ruim – Hartmann pede a Millet para centrar sua paleta em tons claros.
Quatro anos antes, no início de 1864, na mesma época da venda póstuma de
Delacroix, Millet recebera uma encomenda das Quatro Estações com “personagens
mitológicos” de outro alsaciano, Charles Xavier Thomas de Colmar, para decorar a sala de
jantar de seu hôtel particulier, em Paris. Alfred Feydeau, o arquiteto encarregado dos
trabalhos, pede-lhe para “manter o programa um pouco decorativo”542, ou seja, para não fazer
nada de inesperado. Millet instala as telas no salão de Thomas em setembro de 1864, mas não
fica satisfeito com o resultado (figuras 154, 155 e 156). Em 16 de março de 1865, ele confessa
ao historiador Siméon Luce: “teria preferido fazer estas quatro estações de outro modo que
mitologicamente”543.
Rousseau talvez tivesse sido da mesma opinião. Philippe Burty (1868), depois de
lembrar que “jamais nossa sociedade burguesa sonhou em confiar-lhe a decoração de uma
galeria, de um salão”, conta que o pintor dizia: “e, no entanto, eu lhes teria mostrado que
podemos exprimir o Verão, o Outono e a Primavera de outra maneira que não por meio de
mulheres nuas coroadas com espigas, uvas ou flores”544. Rousseau teria ficado satisfeito ao
saber que, anos depois, Millet pintou as Estações para Hartmann, efetivamente, sem recorrer a
histórias mitológicas.
Todos os quadros de Rousseau pertencentes ao alsaciano retratavam paisagens da
França rural, pré-industrial. De Millet, ele queria igualmente cenas campestres. No início do
séc. XIX, contudo, o desenvolvimento da indústria transformava já a paisagem, como atestam
as duas litografias das propriedades dos Hartmann em Munster, uma da usina de fiação e a

está inscrito no catálogo sob o n° 52, hoje no Museum of Fine Arts, Boston (fig. 163), e o Meules et troupeau de
moutons dans la plaine de Barbizon sob o n° 53, hoje no Museu Mesdag, em Haia (fig. 164). Estes são os dois
pasteis aos quais Hartmann se refere em sua carta.
541
O n° 90 do catálogo da venda de Gavet (ver nota anterior) corresponde à Primavera, pastel hoje conservado
na coleção Calouste-Gulbenkian, Lisboa (fig. 162). O n° 18, L’entrée de la forêt de Barbizon: effet de neige,
hoje em Boston, corresponde ao Inverno (fig. 165).
542
« (…) le tient un peu décoratif (…) » (Paris, le 16 jan. 1864, CD AR38, pp. 93-94).
543
« Ce que je puis vous dire, c’est que je serais mieux arrivé [à] faire ces quatre saisons autrement que
mythologiquement » (Barbizon, le 16 mars 1865, CD AR38, pp. 72, 75).
544
« (…) jamais notre société bourgeoise n’a songé à lui demander la décoration d’une galerie, d’un salon » ;
« et cependant je leur aurais montré qu’on peut exprimer l’Été, l’Automne, le Printemps, autrement que par des
femmes nues couronnées d’épis, des raisins et de fleurs » (BURTY, Phillipe. Théodore Rousseau, Gazette des
Beaux-Arts, Paris, tome XXIV, 1er avril 1868, p. 322).
203

outra da fábrica de indianos (figuras 157 e 158), datadas do início dos anos 1820. Vemos um
primeiro plano pitoresco, com árvores, um caminho de terra batida e homens caminhando ao
lado de animais. Mais ao fundo, os prédios industriais seguidos das montanhas: os dois
mundos parecem tão bem integrados que mesmo a fumaça num plano intermediário à direita
torna-se um detalhe inócuo. Embora a ação do homem sobre a paisagem se faça sentir, o
litógrafo, encarregado de uma peça de propaganda, a harmoniza o máximo possível com a
natureza.
Nesta mesma época, em 1818, o pintor Henri Lebert criou para as indústrias
Hartmann uma estampa tendo como motivo as propriedades industriais e privadas dos
Hartmann em Munster (figuras 159 e 160). O desenho mostra, em planos paralelos, a usina de
fiação, o quiosque de música da Maison de Barth, o chalet do Schlosswald com uma cena
pastoral à frente, as ruínas do castelo de Schwarzenbourg e o vale da Wormsa que serve de
fundo a uma cena de caça545. Apesar de a estampa trair certo desejo de legitimação social pela
burguesia, não podemos negar a vontade de valorização de elementos locais, “autênticos”, que
ela promove.
Frédéric era ainda uma criança quando as duas litografias e o tecido circulavam.
No entanto, ao crescer, ele também manifesta o desejo de ver Munster e os seus arredores
fixados em imagens. Mas tal desejo não estava direcionado às suas propriedades privadas,
tampouco às industriais (talvez, mais de vinte anos depois, fosse já muito difícil integrá-las à
paisagem sem notar a sua consequente destruição): era apenas a natureza mesma de sua terra
natal e a vida rural com a qual ela entra em harmonia que ele desejava ver representadas.
Particularmente, ele queria que o olhar de grandes artistas as interpretasse.
Em Munster, Rousseau, em 1867, depois Millet acompanhado de Sensier, em
1868, fazem-lhe uma visita. Após o retorno de Millet, numa carta de 29 de outubro de 1868
destinada a Sensier, Hartmann confessa seu desejo de ver a Alsácia ser retratada por artistas à
altura de sua beleza, uma beleza muito própria546. O outono chuvoso havia atrasado a
inauguração da estrada de ferro em um mês. No entanto

545
Ver: BRÜGGEN, Viktoria von der, MARIANI, Raphaël (éds.). Jean-Jacques Karpff (1770-1829) : visez au
sublime, Colmar, Musée Unterlinden, 18 mars-19 juin 2017, p. 228.
546
Hartmann tinha um desenho a carvão de Rousseau de um riacho do Vale de l’Ahr (cf. sua carta a Sensier de
29 de outubro de 1868, Bnf, Z77(03)-BOITE4) e sabemos que Millet fez vários croquis de carvalhos do Vale da
Wormsa – uma destas árvores passou a ser chamada de “o carvalho Millet” pelos habitantes (FLORENCE: 1976,
p. 98).
204

“(…) retornei duas vezes ao Schiessrothried, acima da Wormsa, no pé do Honeck


(sic), e sob o melhor tempo do mundo. (…) Os ricos monumentos dos prados, que se
sentem sob a erva curta e espessa, as veias escuras dos riachos, as belas reentrâncias
das rochas e da madeira que cercam o pasto e que marcam o sopé da montanha que
se ergue, as pequenas fazendas espalhadas e abrigadas pelas grandes faias, as linhas
gerais e simples das montanhas que envolvem o todo, tudo isso forma um conjunto
muito rico, muito variado e que se sustenta maravilhosamente. No entanto, parece-
me que preferiria ver o Sr. Millet abordar primeiro as pastagens da Schlucht, no sopé
do Honeck (sic), com as vacas se projetando no espaço, os pastos altos estendendo-
se em inclinações suaves até a beira do abismo, as entradas com velhas faias
mostrando-se no horizonte, as profundezas além das quais apareceria o Honeck (sic)
em sua bela coloração; depois primeiros planos encantadores, formados por essas
fazendas, e tão variados, que admiramos. Tudo isso forma um mundo cheio de
poesia, de um caráter bem marcado, bem resumido, plenamente acessível à pintura e
cujo sabor me parece que um artista deve poder transmitir ao público”547 (Munster,
29 de outubro de 1868, Bnf, Z77(03)-BOITE4).

Ou, ainda, numa carta de 30 de outubro de 1868 também a Sensier:

“Sempre pensei que a parte alemã do Vosges que habitamos, que nossos fundos de
vale e nossas altitudes, seduziriam o Senhor Millet tanto quanto encantaram antes
Rousseau, e que ele encontraria ali variados e numerosos elementos pictóricos. Este
belo país não é conhecido; ele jamais foi interpretado por um artista sério. Rousseau
queria assumir esta tarefa diante da qual se sentia pleno de ardor, quando a morte
veio interrompê-lo. Será para mim uma eterna pena que ele não tenha podido
desembaraçar-se a tempo dos bens que o retinham em Paris, para vir fixar residência
aqui, como havia planejado. (…)

O Sr. Millet, que me parece ter sofrido tanto quanto Rousseau a influência deste
país, saberia, estou convencido, interpretá-lo e resumi-lo maravilhosamente.
Desejaria intensamente então que ele me fizesse, a seu bel prazer, uma série de
pasteis ou de telas à óleo que resumissem os seus principais aspectos, de maneira a
conferir-lhes o caráter geral” 548 (Munster, 30 de outubro de 1868, Bnf, Z77(03)-
BOITE4).

547
« (…) je suis retourné deux fois au Schiessrothried, au-dessus de la Wormsa, au pied du Honeck (sic), et par
le plus beau temps du monde. (…) Les riches monuments des prairies, qui se sentent sous l’herbe courte et drue,
les échancrures sombres des ruisseaux, les belles découpures des rochers et des bois qui bordent le pâturage et
qui marquent le pied de la montagne qui se dresse, les petites fermes disséminées et abritées sous leurs grands
hêtres, les grandes lignes simples des montagnes qui enveloppent le tout, tout cela forme un ensemble très riche,
très varié et qui se tient merveilleusement. Pourtant il me semble que j’aimerais mieux voir M. Millet s’attaquer
d’abord au pâturage de la Schlucht, au pied du Honeck (sic). Il y aurait là à faire des vaches se détachant sur
l’espace, des pâturages trompeurs s’étendant en pentes douces jusqu’au bord de l’abîme, des lisières de vieux
hêtres se montrant sur l’horizon, des profondeurs au-delà des quelles apparaîtrait le Honeck (sic) dans sa belle
coloration ; puis des premiers plans charmants, formés de ces fermes et si variés que nous avons admirés. Tout
cela forme un monde plein de poésie, d’un caractère très marqué, très résumé, très accessible à la peinture et
dont il me semble qu’un artiste doit pouvoir transmettre la saveur au public. »
548
« J’avais toujours pensé que la partie allemande des Vosges que nous habitons, que nos fonds de vallées et
nos hauteurs séduiraient Monsieur Millet autant qu’ils avaient précédemment charmé Rousseau, et qu’il y
trouverait des éléments de peinture variés et nombreux. Ce beau pays n’est pas connu ; il n’a jamais été
interprété par aucun artiste sérieux. Rousseau voulait entreprendre cette tâche devant laquelle il se sentait plein
d’ardeur, lorsque la mort est venue le prendre. Ce sera pour moi un éternel regret qu’il n’ait pas pu se dégager
assez à temps des biens qui le retenaient à Paris, pour venir se fixer ici, comme il en avait formé le projet. (…)
205

Nesta época, ele esperava já os quadros das Estações de Millet. Este sentimento
de Hartmann em relação à paisagem natural de sua terra natal possivelmente já informava esta
encomenda. Ele adorava o seu Marais dans Les Landes549 – trata-se, de fato, de uma
província francesa, mas não a sua. Millet escreve a Hartmann para agradecê-lo por sua
hospitalidade e aproveita para pedir que lhe envie algumas fotografias de Munster que vira
num álbum em sua casa550. Estariam elas entre as fotografias de paisagens e monumentos da
Alsácia tiradas por Adolphe Braun (1812-1877) e publicadas num álbum em 1859 (fig.
161)551?
Talvez este desejo de ver sua terra natal representada, não somente pela
fotografia, mas também pela pintura, crescesse mais na medida em que Hartmann progredia
em sua carreira política. Ele era prefeito de Munster desde 1857 e membro do Conselho Geral
do Alto-Reno desde 1861. Em 1869, apresenta-se nas eleições legislativas contra Léon
Lefebure, o candidato oficial e, como vimos, perde. Quando recebe seus quadros de Rousseau
terminados por Millet, ele revela a Sensier:

“É na contemplação destas coisas belas, enquanto te escrevo, que aguardo o


resultado do voto ou, para ser mais exato, a notícia de meu desastre eleitoral. Fui
tratado pelos padres e pela administração de um modo que desafia qualquer relato.

M. Millet, qui me paraît avoir subi autant que Rousseau le charme de ce pays, saurait, j’en suis convaincu,
l’interpréter et le résumer merveilleusement. Je désirerais donc vivement qu’il me fit, à son gré, une série de
pastels ou de toiles à l’huile qui en résumeraient les principaux aspects, de manière à en donner le caractère
général. »
549
« Je ne vous demande aucune garantie autre pour les deux tableaux que vous aurez à me faire qui un
engagement d’honneur de me les livrer (…) dans des conditions telles qu’ils me plaisent, comme me plaisent vos
vaches dans les Landes que je regarde chaque jour et auxquelles je m’attache tous les jours davantage » (grifos
do autor, Hartmann a Rousseau, Paris, le 18 avril 1859, Cabinet des Dessins, Louvre, BSb22L91, fig. 147a).
550
Numa carta de 22 de outubro de 1868, Millet pede as fotos do álbum a Hartmann (CD BSb5L37). Depois, em
4 de novembro de 1868, ele supõe que Hartmann não recebeu esta carta, porque ele não havia lhe dito nada sobre
“as fotografias do fotógrafo de Munster” (CD BSb15L515).
551
BRAUN, Adolphe. L’Alsace photographiée par Adolphe Braun, Dornach, Haut-Rhin: 1859 (2 volumes).
Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8447274b. Hartmann menciona o nome de Braun em sua
correspondência. Ele deixa desenhos que recebeu de Rousseau “chez Braun” (31 jan. 1868, Bnf, Z77(03)-
BOITE4); ele quer também passar, junto com Millet e Sensier, “chez Braun” antes de levá-los ao Museu de Bâle
(4 set. 1868, id.). Nessa época, ele e Sensier planejam fotografar os quadros de Rousseau, falecido recentemente,
para publicação num catálogo que aparece em 15 de janeiro de 1870, com 120 pranchas (KEMPF: 1994, p. 71;
há uma edição de 1874 na BNU, Strasbourg: BRAUN, Adolphe. Choix des compositions peintes et dessinées
par Théodore Rousseau… Mulhouse, 1874). Mais tarde, no fim do século XIX, a foto do Marais feita pela
firma de Braun aparece numa série de diapositivos destinada ao uso em escolas (ver: Collections du Musée
National de l’Éducation, Rouen, https://www.reseau-canope.fr/musee/collections/, inv. 0003.00729.25). Além
das obras de sua coleção, Hartmann mesmo foi fotografado por Braun, como atesta o seu retrato conservado nos
Arquivos Municipais de Munster, com a etiqueta da “Maison Ad. Braun et Cia.” colada no verso.
206

São ilegalidades e indignidades acumuladas umas sobre as outras”552 (Munster, 24


de maio de 1869, Bnf, Z77(03)-BOITE4)553.

Diferentemente do que ocorre na política, numa pintura de paisagem as relações


humanas não são o mais importante. Os objetos que vemos ali representados não existem num
mundo de intenções, de meios e de fins, e se prestam de um modo totalmente desinteressado à
contemplação. Apreciar uma paisagem de son pays, ao qual Hartmann parece ter dado muito
sem ter recebido o retorno esperado, poderia talvez compensar as decepções ou frustrações
em sua vida política. Seria, finalmente, como se a Alsácia estivesse sempre lá para consolá-lo.
Em fevereiro de 1870, Hartmann ainda não havia recebido os quadros das
Estações de Millet. Ele se impacienta nesta carta do dia 24 a Sensier, na qual explica porque
havia cortado subitamente o depósito mensal de 1.000 francos que fazia ao artista:

“Não gostaria de cair nas mesmas errâncias cuja experiência já tive com Rousseau.
Eis-me aqui tendo adiantado 31.000 francos a Millet sem que tenha ainda recebido
dele o menor pedaço de pintura (…). Por outro lado, como lembro a ele, meus
depósitos mensais de dinheiro tinham o objetivo de compensar aqueles que o Sr.
Gavet poderia recusar-se a fazer554. Mas não posso realmente depositar 1.000

552
« C’est dans la contemplation de ces belles choses, et en vous écrivant, que j’attends le résultat du vote, ou,
pour parler plus exactement, la nouvelle de mon désastre électoral. J’ai été traité par les curés et l’administration
d’une façon qui défie tout récit. Ce sont des illégalités et des indignités accumulées les unes sur les autres. »
553
Lendo o Journal de Colmar de 30 de maio de 1869, somos informados de que, na madrugada de 23 de maio,
no dia mesmo das eleições e um dia antes da data desta carta, foram distribuídas por toda a circunscrição de
Colmar (compreendendo 94 municípios) circulares e cartazes contra Hartmann, assim como uma carta do
prefeito de Guebwiller, Henri Schlumberger, afirmando que Hartmann havia, na qualidade de protestante e em
sua defesa de uma escola não-confessional, dirigido um ataque à religião católica e ao papa. Três dias antes,
Hartmann já respondera às acusações do clero: “Alguns padres não hesitam em usar os meios de intimidação que
forem para influenciar seus eleitores. Emprestam-se palavras ultrajantes para com o Santo-Pai que jamais
pronunciei e sentimentos de intolerância aos quais minha vida inteira desmente por completo” (Journal de
Colmar, 20 mai 1869). O jornal afirma reiteradas vezes que a administration havia recomendado Lefébure,
auditor no Conselho de Estado e funcionário público, a todas as prefeituras da circunscrição e que ela foi, ao lado
dos padres, seu verdadeiro agente eleitoral. Por oposição, a campanha de Hartmann centrou-se em sua
independência. Depois da derrota, Hartmann chegou a interpor um pedido de anulação das eleições, alegando
terem sido viciadas por inúmeras irregularidades e manobras de última hora, mas não obteve ganho de causa
junto à jurisdição competente (ver: Mémoire présenté par M. F. Hartmann à l’appui d’une demande
d’annulation formée contre l’élection de la 1ere circonscription du Haut-Rhin, Colmar, 1869). É preciso lembrar,
ainda, que mesmo tendo perdido a disputa, Hartmann obteve, na província de Munster, quase que a unanimidade
dos votos. Na cidade que administrava, por exemplo, ele contou com 1.170 contra apenas 53 a favor de Lefébure
(Journal de Colmar, 27 mai 1869). Depois, em 1871, Hartmann será eleito deputado.
554
Gavet propusera um contrato a Millet que Hartmann considerava abusivo. Ele lhe oferece, então, uma
alternativa com mais independência. Sensier a expõe a Millet: “O Sr. Hartmann dispôs-se a te transferir 1.000
francos por mês em conta corrente e de liquidá-los seja em pinturas, seja em depósitos que você faria na medida
em que recebesse o retorno de suas encomendas (…)” [« M. Hartmann vous propose de vous faire 1.000 F par
mois en compte courant chez lui, et de les liquider soit en peintures, soit en versements que vous ferez sur vos
rentrées de vos commandes (…)»] (Paris, 14 juillet 1869, CD AR49, p.107). Na verdade, Hartmann propõe a
Millet a mesma quantia mensal que Gavet, mas não impõe uma quantidade de obras a serem entregues ou um
prazo de entrega.
207

francos por mês a Millet, quando ele não trabalha em meus quatro quadros já há
vários meses (…)”555 (Munster, 24 de fevereiro de 1870, Bnf, Z77(03)-BOITE4).

Após uma espera de seis anos, Millet entrega-lhe a Primavera (Musée D’Orsay,
Paris, fig. 166) em torno de maio de 1873. Quase um ano depois, em 18 de março de 1874, ele
escreve a Hartmann afirmando que o quadro dos Montes de Feno (o Outono, Metropolitan
Museum, New York, fig. 168) está quase terminado e que deu une bonne poussée ao dos
Batedores de trigo (o Verão, Museum of Fine Arts, Boston, fig. 167)556. Étienne Moreau-
Nélaton afirma que o Inverno (Philadelphia Museum of Art, fig. 169) permanecerá em estado
de esboço557. Parece que o alsaciano pegou as telas que faltavam um pouco antes da morte do
artista em 20 de janeiro de 1875, se crermos no filho de Millet quando escreve a Hartmann,
em 1º de janeiro de 1875: “Recebi a sua carta que me anuncia a chegada dos seus quadros”558.
Além disso, tais telas não figuram no catálogo da venda póstuma de Millet559. É muito
provável, contudo, que Hartmann não tenha recuperado o quadro do Inverno.
Simon Kelly (2000:557) observou que as composições da Primavera e do Outono
de Millet parecem-se àquelas do Vilarejo e do Forno, dois quadros de Rousseau que ele
retocava, em paralelo, para Hartmann. Como o Outono (Os montes de feno) havia sido
originalmente escolhido entre os pasteis para Gavet, é razoável pensar que não foi Millet, mas
o próprio Hartmann, que fez essa associação formal, conscientemente ou não, em razão da

555
« Je ne voudrais pas retomber dans des errements dont j’ai fait l’expérience avec Rousseau. Me voici en
avance avec Millet de 31.000f sans que j’aie encore le moindre but (sic) de peinture de lui (...). D’un autre côté,
comme je lui rappelle, mes versements mensuels d’argent n’avaient d’autre but que de suppléer à ceux que M.
Gavet aurait pu se refuser à faire. Mais je ne puis vraiment pas verser 1.000f par mois à Millet, alors qu’il ne
touche plus à mes quatre tableaux depuis plusieurs mois (…). »
556
CD BSb15L589.
557
“De posse desse primeiro quadro (a Primavera), o industrial alsaciano esperará cerca de um ano ainda pelos
Montes de feno e pelos Batedores de trigo. O Inverno permanecerá em estado de esboço” [« Nanti de ce premier
tableau (Le Printemps), l'industriel alsacien attendra près d'un an encore les Meules et les Batteurs de sarrasin.
L'Hiver restera toujours à l'état d'esquisse »] (Moreau-Nélaton: 1921, III, 91). Stéphanie Constantin (1997)
aproximou a pintura do Inverno, de modo convincente, da que hoje se encontra no Museu de Arte da Filadélfia,
porque esta: 1) possui as mesmas dimensões das outras três telas das Estações de Millet (c. 85 x 110 cm); 2)
pode ser qualificada de esboço e 3) apresenta, em sua composição, a mesma proporção de 1:2 para a colocação
da linha do horizonte. Constantin baseia-se também em análises técnicas. Ela afirma que o quadro que era até
então tomado pelo Inverno, As catadoras de gravetos (Les fagoteuses, 1868-75), da coleção Cardiff, foi pintado
sobre uma tela reutilizada. No entanto, em 1868, Millet adquiriu telas exclusivamente para pintar as Estações de
Hartmann, sobre três das quais ele pediu que fosse aplicada uma camada de tinta de base lilás rosa escura (cf.
carta sua de 17 de abril de 1868, CD BSb15 L493). A tela hoje na Filadélfia foi, de fato, pintada com uma
camada de base lilás rosa escura.
558
« J’ai reçu votre lettre qui m’annonce l’arrivée de vos tableaux » (CD BSb5L47).
559
Ver: DURAND-RUEL, Paul (expert), Catalogue de la vente qui aura lieu par suite du décès de Jean-
François Millet, Paris, Hôtel Drouot, 10 et 11 mars 1875.
208

estima que tinha pelo quadro do Forno. A Primavera (O arco-íris), por sua vez, pode ter sido
concebida por Millet, tanto o pastel quanto a tela, a partir da lembrança da pintura do Vilarejo.
O historiador da arte alsaciano Raymond Régamey (1925:76) afirma, sem citar as
suas fontes, que Hartmann encomendou as Estações a Millet para a sala de jantar do seu chalé
no Schlosswald, ou seja, que ele não pretendia pendurá-las em suas residências de Paris ou de
Munster (a chamada maison de Barth), mas sim em sua casa de veraneio nos arredores de
Munster. Podemos nos perguntar se, quando Hartmann pede a Delacroix que reduza a altura
de suas telas, chegando assim aproximadamente às mesmas proporções das telas de Millet
(0,85 x 1,10 m), ele não estaria pensando em colocá-las em seu chalé no Schlosswald.
Régamey acrescenta que Hartmann pendurou apenas as três telas (uma acabada e duas
bastante avançadas) de Millet, a Primavera, o Verão e o Outono, mas novamente não cita as
suas fontes560. De todo modo, como vimos pela carta enviada a Millet com o programa da
encomenda, Hartmann não estava pensando exatamente numa série, logo, pode não ter feito
questão de permanecer com um quarto quadro visivelmente inacabado.
Quando Aimée Hartmann organiza a venda póstuma da coleção de seu marido, no
início do ano de 1881, ela envia uma carta ao seu primo, o hispanista Baron Charles Davillier,
listando os seus quadros que estão em Munster e os que estão em Paris. As Estações de
Millet, somente as três telas da Primavera, Verão e Outono, mais o seu Greffeur (Enxertador)
e o Semeur (Semeador), encontravam-se em Paris, junto com o Four e duas paisagens
inacabadas de Rousseau. As demais, incluindo o Marais e o Village de Rousseau e os
pequenos quadros do Empereur du Maroc e do Lion attaqué, de Delacroix, estavam em
Munster, junto com obras gráficas561. Não sabemos desde quando, contudo, essa divisão foi
estabelecida, de modo que a hipótese de Hartmann ter encomendado as Estações a Delacroix
e Millet para o salon de sua residência em Munster não pode ser totalmente excluída.
Assim, de sua primeira encomenda a Delacroix, no fim do ano de 1855, até a
reunião das provavelmente três telas em sua casa, no início de 1875, Hartmann esperou quase
vinte anos por este ciclo de pinturas. Como morreu em 1880, foi apenas durante os seus cinco
últimos anos de vida que pôde apreciar os seus quadros das Estações.

560
No catálogo do Museu da Filadélfia, consta que, no ano de 1887, a tela do Inverno figurou numa retrospectiva
de Millet em Paris, emprestada por Duz (n° 27: Le Bornage). Não se sabe onde ela se encontrava entre 1875, ano
da morte de Millet, até chegar a essa coleção e ser exibida, em 1887, em Paris.
561
Aimée Hartmann a Charles Davillier, le 9 fév. (ou jan.?) 1881, INHA, Fonds Charles Davillier, Archives 027,
Carton 1. Numa outra carta, datada de 14 de fevereiro, quando estava expedindo os quadros de Munster, ela
confirma que os dois « petits Delacroix » estavam na remessa à Paris.
209

Sua coleção foi vendida pela família, no hôtel dos Davillier na Rue de Courcelles,
n° 18, em 7 de maio de 1881, para resolver problemas de sucessão e dívidas da manufatura
com credores. O próprio Hartmann, em seu testamento, sabia que isso seria necessário e
confia o destino de seus quadros à sua esposa562. Quando ela decide finalmente vender a
coleção em leilão, quase um ano após a morte do marido, ela mesma compra tanto o Outono
quanto a Primavera de Millet e depois doa o segundo ao Louvre. O Marais, de Rousseau, por
sua vez, é adquirido pelo estado563. Um dos grandes chagrins de Hartmann, escreve, era não
ver obras destes dois artistas num museu nacional564. Ela revela, ainda, que hesitou durante
tantos meses em vender as pinturas, porque eram objetos caros demais a Frédéric:

“Os quadros são para mim amigos que partem, testemunhos dos anos ao mesmo
tempo os mais doces e os mais intensos de nossa vida conjugal, ainda que tenham
sido tristes, porque eles consolavam ou distraiam meu pobre marido em suas horas
de sofrimento!565 ” (grifos da autora, carta a Charles Davillier, 9 de fevereiro ou
janeiro [?] 1881, INHA, Fonds Charles Davillier, Archives 027, Carton 1).

***

A produção têxtil do Leste destacava-se pela qualidade de seus produtos. Foi essa
opção pela elaboração e pelo acabamento dos indianos, especialmente no âmbito da
impressão, que construiu a reputação da Hartmann et Fils, a exemplo da repercussão de seu
stand na Exposição Universal de 1855. Obviamente, esse ramo da indústria possui uma
ligação estreita com as artes visuais, empregando, inclusive, artistas e compartilhando com
eles de certos temas, entre eles o das Estações. Em 1857, quando a empresa se retira da área
da impressão, Frédéric Hartmann é nomeado prefeito de sua cidade natal, Munster. Em 1861,
é eleito conselheiro do Alto-Reno.
562
« … S’il [Fritz] ne les a pas exécutés lui-même c’est que la pensée de se séparer de ses chères toiles lui était
trop amère, mais il l’eut fait prochainement (…) » (Carta a Davillier, le 4 février 1881, INHA, Fonds Charles
Davillier, Archives 027, Carton 1). Ver também o trecho do testamento, nota 433 anterior.
563
VÉRON, Eugène (redacteur en chef). L’Art: revue hebdomadaire illustré, 7ème année, tome II (XXV de la
collection), Paris, Imprimerie de l’Art, 1881, p. 165. Os quadros de Millet foram comprados no nome de Mme
Sanson-Davillier, a mãe de Aimée. A aquisição por Edmond Torquet do quadro de Rousseu para o Louvre, por
129.000f, de longe a soma mais alta do leilão, foi « saluée par des longues salves d’applaudissements ». Um
pastel de Millet representando a tentação de Saint-Antoine, pelo qual Hartmann tinha, segundo sua esposa,
particular afeição (le 19 fév. 1881, INHA, Fonds Charles Davillier, Archives 027, Carton 1), foi vendido a um
membro da família, M. Gros-Hartmann.
564
Carta a Davillier, Munster, le 12 février 1881, INHA, Fonds Charles Davillier, Archives 027, Carton 1.
565
« Les tableaux sont pour moi des amis qui partent, des témoins des années à la fois les plus douces et les plus
intenses de notre vie conjugale, quoiqu’elles aient été tristes, car ils consolaient ou amusaient mon pauvre mari
dans ses heures de souffrance ! »
210

Sua atuação política não pode ser separada de seus interesses enquanto industrial,
sobretudo se pensarmos nas melhorias que ele promoveu na malha ferroviária local. Mas ele
investiu igualmente na educação básica, defendendo a laicidade, gratuidade e obrigatoriedade
do ensino, contra a Lei Falloux de 1850. Esse foi o foco de sua campanha quando perdeu as
eleições legislativas, em 1869, para o candidato do governo e do clero. Hartmann apoiou,
ainda, uma importante iniciativa nacional em torno da educação popular – a Liga do Ensino,
de Jean Macé. Mesmo sendo protestante, suas ações como prefeito foram, até onde pudemos
averiguar, tão imparciais quanto possível, haja vista a reforma da igreja católica e a
construção simultânea do templo protestante em Munster.
Sua palavra de ordem era: independência. Criado, como Delacroix, no seio de
uma família de bonapartistas ferrenhos, a quem os burgueses deviam a sua ascensão social
após a Revolução, Hartmann certamente acreditava no valor da iniciativa privada, em sintonia
com a crença protestante no valor do trabalho, mas sua defesa da educação pública e laica
transformava o que poderia ser tão-somente ambição pessoal, dissimulada pela etiqueta do
“progresso”, num projeto político coerente comprometido com uma camada mais ampla da
população. Afinal, como acreditava Jean Macé, apenas o direito ao voto, sem a paralela
instrução popular, não aprimoraria o sistema democrático.
Durante a grande greve de 1870, a cidade de Munster permaneceu calma.
Paternalismo e consciência política não combinam, mas a contradição não anula uma
tendência numa dada direção, a do liberalismo, que estava, na época, mais próximo da
esquerda do que, como hoje, da direita. Com o advento da guerra franco-prussiana e a
anexação da Alsácia, em 1871, à Alemanha, certos brios nacionalistas aguçados pela recepção
crítica, entre a população, das negociações que se vê impelido a travar com o novo governo
lançam Hartmann cada vez mais para dentro de sua aldeia e para fora da vida pública. Afinal,
a Alsácia não é nem francesa, nem alemã: é um pays à parte. Consequente com sua palavra de
ordem, ele passa a defender uma política autonomista na região.
Hartmann começa a comprar quadros em torno do início dos anos 1850. De onde
vem o seu gosto pelo colecionismo? Talvez de suas relações familiares: seus tios e seu pai
apoiaram artistas e instituições culturais, especialmente na esfera local, alsaciana; seus
irmãos, todos, possuíam uma coleção de quadros modernos com um repertório muito próximo
ao da sua, de modo que talvez constituísse um exercício de emulação mútua; seu sogro,
Alexandre Sanson-Davillier, também parece ter tido uma coleção em Paris. Podemos afirmar
que colecionar obras de arte era, então, um hábito comum entre a alta burguesia da época, que
211

buscava não só um modo de legitimar a sua posição social, mas também de autoafirmação
diante da antiga aristocracia. Cada colecionador, contudo, possui as suas particularidades.
A coleção de Hartmann não é um fenômeno de thésaurisation, nem o resultado de
um simples impulso à repetição, de uma compulsão. Ele não tinha um interesse enciclopédico
ou meramente especulativo em suas aquisições, tampouco acumulava cada vez mais objetos
para oferecer uma espécie de antídoto à perspectiva da morte. Além disso, nunca abandonou a
indústria ou mesmo a política para se dedicar apenas ao colecionismo – não era um diletante.
Sua coleção estava em sintonia com outras de seu tempo – Delacroix aparece, em muitas
delas, ao lado dos paisagistas de Barbizon e mesmo dos holandeses do séc. XVII, embora, em
geral, verifique-se uma tendência muito maior ao ecletismo. Mas, como o conjunto de sua
produção têxtil, sua coleção primava pela qualidade, não quantidade. Pequena, altamente
seletiva e com obras importantes, ela respondia ao seu desejo de “intimidade” com um
“mundo ideal” e foi, nesse sentido, tanto um cano de escape de sua vida cotidiana quanto uma
espécie de espelho dela, uma vez que a orientou na direção de artistas vivos que, como ele,
desafiaram o status quo afirmando, apesar de todas as vicissitudes, a sua independência.
Ele foi um mecenas paciente, fiel e bem informado. Sustentou discussões bastante
técnicas sobre a pintura com Rousseau, citando textos da crítica de arte e pinturas de artistas
do passado, sobretudo os paisagistas holandeses do séc. XVII, como parâmetros de avaliação.
Como respeitava o tempo de produção dos artistas aos quais se ligava e porque queria
garantir-lhes acima de tudo a sua liberdade, ele esperou as pinturas que havia encomendado,
às vezes pagando-as adiantado, muito mais tempo do que seria o aceitável do ponto de vista
de uma transação comercial. Apesar da procrastinação infinita, ele jamais abandonou os
artistas cujas obras admirava.
Quando encomenda as Quatro Estações a Delacroix, em 1855, ele já possuía,
muito provavelmente, o Marais dans Les Landes, de Rousseau, e esperava pela Ferme dans
Les Landes. Por que Delacroix? Nos anos 1850, ele já era reconhecido como chefe da escola
romântica de pintura. Em 1855, na Exposition Universelle, tem lugar uma retrospectiva de sua
obra ao lado da de Ingres, considerado seu antípoda. Tanto Ingres quanto Delacroix estavam
bastante em voga na metade do séc. XIX. Hartmann tomou o seu partido. E não sem
coerência, já que Delacroix e Rousseau se admiravam mutuamente.
Delacroix morreu em 1863, antes de terminar as Estações para Hartmann. O
alsaciano não as adquiriu em sua venda póstuma. Passando por uma crise financeira em 1864
e tendo já gasto muito dinheiro com Rousseau, ele ignora esta oportunidade, embora seu
irmão Jacques compre, na ocasião, dois dessus-de-porte também inacabados e cujo tema era
212

iconograficamente próximo ao da sua antiga encomenda. Frédéric discute bastante com


Rousseau, no período, o grau de acabamento dos quadros da Ferme, do Four e do Village,
mas o paisagista morre sem terminá-los. Hartmann incumbe Millet, amigo de Rousseau que
ele já conhecia, de levá-los a termo. Cinco anos após a morte de Delacroix, em 1868, o
industrial retorna ao tema das Estações e encomenda a Millet quatro pinturas para o seu salão
com aproximadamente as mesmas proporções daquelas que encomendara antes a Delacroix.
Uma carta chegou até nós na qual ele dá instruções a Millet sobre o programa. Não se tratava
mais de histórias mitológicas, mas de paisagens e cenas de gênero emprestadas do calendário
agrícola.
Por que esta mudança? Primeiramente, devido à sua amizade com Rousseau,
um paisagista, que ele conhece desde 1852, amizade que será reorientada, após a morte de
Rousseau, a Millet, outro pintor da natureza, mais sensível, contudo, ao trabalho no campo.
Hartmann teve muito mais intimidade com eles do que com Delacroix, cuja relação era,
segundo os documentos que nos restam, essencialmente profissional. Hartmann poderia então
ter se sentido constrangido diante do impulso de orientar o pincel de Delacroix em suas
Estações, mas ele se sentia certamente mais à vontade com Millet – as longas discussões com
Rousseau tendo preparado o terreno para uma experiência renovada de mecenato individual –
para expor seu gosto e seus desejos em matéria de arte.
A progressão em sua carreira política nos anos 1860, somada ao amor sempre
ativo pela Alsácia, são talvez duas outras causas deste desvio para a paisagem e as cenas
rurais na representação das Estações. Notamos em algumas cartas de Hartmann a Sensier,
datadas do fim dos anos 1860, o seu desejo de ver a sua terra natal representada pelo pincel de
grandes artistas. Mas as indústrias de sua família já tinham alterado esta paisagem. Duas
litografias das manufaturas Hartmann e um tecido de personagens que reproduz lugares de
Munster, feitos no início do séc. XIX, testemunham uma vontade de integração e de exaltação
de bens e paisagens locais. Talvez, anos depois, na metade do séc. XIX, quando o
desenvolvimento industrial passa por um período de grande aceleração na Europa, fosse já
difícil representar de maneira naturalista ou realista a natureza conjugada ao desenvolvimento
industrial sem notar o evidente desequilíbrio. Hartmann prefere o “mundo ideal” que
encontrava nas pinturas de Delacroix; ele prefere “viver numa intimidade continuada” com a
representação de paisagens invioladas pela ação humana ou que existem em harmonia com
ela.
A ascensão do gênero da pintura de paisagem na França ocorre paralelamente a
esse período de grande desenvolvimento industrial. Uma tendência, no âmbito do
213

colecionismo, à aquisição de obras dos paisagistas holandeses e flamengos, que remonta, na


verdade, ao séc. XVIII, teve também a sua participação nessa nova valorização do gênero.
Como industrial, Hartmann deve ter entrado com alguma frequência nas salas de máquinas de
suas manufaturas, com várias récolteuses à broche, mully jennys, teares industriais e o
barulho ensurdecedor do metal batendo, o calor, o ar cheio de penugens, a penumbra, o cheiro
forte de produtos químicos inseparáveis de seu funcionamento. O quão diferente não era essa
visão daquela de uma floresta, de um pântano, de uma choupana camponesa, de um rebanho
de vacas, de um caminho de terra dando para um pequeno vilarejo percorrido por um homem
montado em seu cavalo, de um grupo de ceifadores colhendo as espigas de trigo com
instrumentos muito simples ou as próprias mãos. Voltar-se para aquilo a que os avanços
tecnológicos estavam afastando cada vez mais a civilização parece parte de um movimento
esperado de retorno sempre que uma mudança de impacto nos hábitos culturais se processa.
Talvez as experiências que a modernidade estava pronta a abandonar em nome da crença
otimista no “progresso” estivessem sendo processadas na arte. E Hartmann encontrava-se na
posição de agente dessas mudanças, dessas perdas, mais do que de espectador ou de mero
objeto delas.
Outro fator explica a preferência pela paisagem e cenas de gênero: no
protestantismo, imagens são indesejáveis. É uma religião iconofóbica, que condena a
idolatria. Hartmann possuía um pastel retratando Santo Antônio, de Millet, pelo qual tinha
especial apreço, e chegou a cogitar, segundo rumores, encomendar-lhe um Tobias e o anjo566.
São casos muito pontuais. A imagem do santo projeta ênfase sobre o ascetismo de uma vida
isolada, em meio à natureza, e o consequente conflito com o desejo sexual, algo talvez mais
bem conciliado no protestantismo. A cena de Tobias viajando com o Arcanjo Rafael, por sua
vez, foi com frequência usada, na história da arte, como pretexto para pintura de uma
paisagem.
Nas Estações de Delacroix, a mitologia representada não era cristã, como em
Poussin, mas pagã, embora a paisagem concorra, em termos de escala, com as figuras.
Hartmann possuía de Millet, fora as Estações, outros quadros retratando tarefas camponesas –
um enxertador, uma mulher carregando baldes de água, um homem espalhando feno sobre a
terra, entre outros. Essa exaltação da natureza e do trabalho rural, físico, repetitivo, cotidiano
e anônimo parece algo bastante adequado à ética protestante. Foi Baudelaire quem denunciou
a nova escola de paisagem como idólatra, uma idolatria voltada à natureza. O mesmo vale

566
Ver supra notas 533 e 563.
214

para a pintura da vida rural, especialmente em Millet. Afinal de contas, humanizar o mundo
vegetal e a dureza do trabalho no campo, pintar “legumes santificados” e “camponeses que
parecem ter uma alta ideia de si mesmos”567 era também uma forma de religião. Deus não é
representado pela imagem do messias ou de mártires, mas pela imagem da natureza e dos
pobres e humildes. O mesmo impulso, observa o poeta, diferentes objetos.
O vínculo de Frédéric Hartmann com Munster e com a Alsácia era também
político. Já prefeito e membro do Conselho Geral do Alto-Reno, em 1869, um ano após
repassar a encomenda das Estações a Millet, apresenta-se nas eleições legislativas como
candidato liberal e independente, contra Leon Lefébure, apoiado pela administração e pelo
clero. Esgotado pelas calúnias que lhe eram dirigidas, ele poderia ter buscado refúgio em
imagens que representavam “o universo sem o homem”, nas quais a figura humana em ação
era algo apenas secundário e que, quando presente, desempenhava um papel mais “neutro” em
relação à natureza circundante.
Delacroix representa as Estações para Hartmann como narrativas mitológicas.
Millet, por sua vez, pinta as estações como paisagens (Primavera e Inverno) e cenas da vida
rural francesa (Verão e Outono, embora neste último as figuras humanas sejam menores em
relação à paisagem). O que acontece com o gênero da alegoria nesse caso?
Em sua mudança de orientação, Hartmann rejeita o tipo de codificação savante
que a pintura alegórica tradicionalmente encerra e que fora intentada por Delacroix, para o
industrial, por meio de narrativas, não de figuras estáticas, como ele fizera antes, por exemplo,
na série para Talma. O alsaciano prefere, então, aquela repetição sem conteúdo dramático que
culmina no “eterno presente” das representações das estações por eventos naturais e pelos
trabalhos agrícolas do ano.
Além disso, ao menos dois quadros de Millet são simplesmente paisagens, sem
nenhum tipo de história ou simbologia cósmica envolvida. As quatro estações se desprendem,
em seu ciclo, não somente dos quatro elementos, das quatro idades da vida e das quatro partes
do dia, como já haviam se desprendido, aliás, em Delacroix – elas se despem também da
narrativa literária e da ideia mesma de uma ação humana, qualquer que seja, heroica ou
cotidiana, no tempo. O único tempo em ação nas paisagens é aquele geológico e sedentário,

567
« Mais vous savez bien que je suis incapable de m’attendrir sur les végétaux, et que mon âme est rebelle à
cette singulière religion (…). Je ne croirai jamais que l'âme des Dieux habite dans les plantes, et, quand même
elle y habiterait, je m’en soucierais médiocrement et considérerais la mienne comme d’un bien plus haut prix que
celle des légumes sanctifiés » (grifos do autor, Baudelaire a Fernand Desnoyers, fim de 1853/início de 1854,
Corres., I, p. 248). O comentário sobre Millet encontra-se na crítica ao Salon de 1859, in: BAUDELAIRE;
PICHOIS (éd.), 1992, pp. 321-22.
215

longo e lento, da natureza. Nesse sentido, o de uma espécie de quebra da coesão do conjunto,
os quadros de Millet quase se perdem da própria ideia de alegoria.
Finalmente, Delacroix e Millet pintaram as Estações para Hartmann no fim de
suas vidas. Do mesmo modo, Hartmann pôde apreciar esses quadros apenas no fim de sua
própria vida. Tratava-se sempre do fim de um ciclo. Em compensação, as obras não foram
todas terminadas. Depois de tanto discutir a questão do fini com Rousseau, é irônico pensar
que Hartmann terminou os seus dias diante de obras inacabadas.
216

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 6 de junho de 1856, Delacroix faz uma visita à Exposição Agrícola Universal


e à Exposição da Sociedade de Horticultura, aberta dia 1º de junho no Palais de l’Industrie.
Ele anota nos diários:

“Ao entrar nesta exposição de máquinas destinadas a laborar, a semear, a moer,


pareceu-me estar dentro de um arsenal e em meio a máquinas de guerra; eu via,
então, essas balísticas, essas catapultas, instrumentos grosseiros eriçados com pontas
de ferro, esses carros armados de foices e lâminas aceradas: tratam-se de engenhos
de Marte e não de Ceres dourada”568 (Journal, I, p. 1021).

Alguns anos antes, entre 1833-1838, Delacroix concebera uma alegoria da


Indústria para a frisa do Salon du Roi (a sala do trono), no Palais Bourbon, logo acima da
coluna na qual figura outra alegoria, a de um dos rios da França, o Reno. Previsivelmente, ele
pinta duas fiandeiras, cada uma segurando um fuso de uma roca no qual o fio encontra-se já
torcido e enrolado. Vemos também um homem trazendo dentro de um cesto os casulos do
bicho da seda. Próximas, as palavras em latim “fuso stamina torta levi”, “fios torcidos por
uma roca leve”, provavelmente extraídas de um poema do italiano Giovanni Pontano, Do
amor conjugal (1501)569. No trecho, que pertence à seção dedicada à mulher, “Sobre a
educação dos filhos”, o poeta exorta sua leitora a voltar-se à antiga arte da tecelagem e ao
exemplo materno, pois “da penugem é a mão que retira o fio”. Assim, Delacroix escolhe um
elemento arcaico – a “roca leve” – para representar alegoricamente uma entidade moderna – a
Indústria – para a qual essa ferramenta já era algo obsoleto, substituída por imensos métiers à
filer e à tisser, máquinas de Marte que, de fato, em nada lembravam uma tradição “materna e
antiga”.
Sobre essa alegoria, o crítico Gustave Planche observou, em 1837:

“Para apresentar a indústria sob uma forma tão agradável, é preciso não somente
uma poderosa invenção, mas ainda um esquecimento completo da realidade
mesquinha em meio à qual vivemos. Um homem vulgar teria transposto à parede

568
« En entrant dans cette exposition de machines destinées à labourer, à ensemencer, à moissonner, je me suis
cru dans un arsenal et au milieu de machines de guerre ; je me figure ainsi ces balistes, ces catapultes,
instruments grossiers et hérissés de pointes de fer, ces chars armés de faux et de lames acérées ; ce sont là les
engins de Mars et non de la blonde Cérès. »
569
Tum colere antiquas artes maternaque iussa,/ Atque agili discant carpere pensa manu;/ In digitis acus, ante
pedes intexta quasilli/ Viminaque et fuso stamina torta levi. (Volgano all’arti antiche l’amore e all’esempio
materno: / giú dal pennecchio il filo tolga la pronta mano; / sia tra le dita l’ago, davanti il paniere tessuto / di
vimini, e gli stami torti col lieve fuso.) Grifos nossos, PONTANO, Giovanni, De amore coniugali, Livro I,
seção 9, versos 13-16.
217

uma cópia fiel de um ateliê de Lyon [onde a indústria da seda era particularmente
poderosa]; ele teria desenhado, com uma literalidade escrupulosa, os teares que
transformam a seda em veludo ou cetim; o Sr. Delacroix compreende muito bem não
apenas a parte técnica, mas ainda a parte poética da pintura, para cair num erro
desses. (…) ele compreende que a pintura alegórica, mais que qualquer outro gênero
de pintura, não pode prescindir da idealidade. Ao escolher, para figurar a indústria, o
coral, a pérola, a amoreira, a seda e o fuso, ele apenas seguiu a inclinação natural de
seu pensamento; para encontrar a única beleza que convém ao tema, ele não
precisou violentar os seus hábitos, contentou-se em tratar a alegoria como quis.”570

Para Planche, ao invés de retratar o maquinário industrial propriamente dito, como


o fizera François Bonhommé (1809-1881), por exemplo, Delacroix respeita o seu
temperamento natural e idealiza o tema. Essa idealização pressupõe “um esquecimento
completo da realidade mesquinha” em que vivem. O mesmo esquecimento existe em quadros
retratando camponesas realizando atividades de fiação com a roca, de Jean-François Millet571.
Em relação ao tema das Quatro Estações, também notamos esse desajuste entre a experiência
da realidade e o gênero da alegoria: agora as alterações climáticas ao longo do ano ligam-se a
um ciclo comercial, a uma agenda financeira, a um mercado aquecido de produtos destinados
ao consumo de massa – um contexto que não tem nada a ver com personagens engajados em
ações heroicas ou cotidianas, movendo-se dentro de uma paisagem natural total ou
parcialmente intocada.
Não foi à toa que Baudelaire comparou o cuidado com que a paleta de Delacroix
era composta àquele de um “vendedor de tecidos” (étalagiste d’étoffes) organizando a sua
vitrine e que Gautier remeteu uma observação de Delacroix sobre a lei das complementares a
uma experiência do artista dentro de um fiacre, diante da cor amarela supersaturada do
estofado dos bancos – signos (a loja de tecidos, o carro) de um novo tempo. Assim, as
Estações constituem um tema “antigo”, arcaico, telúrico em plena era das máquinas, da
mecanização das atividades agrícolas e da produção de artigos de primeira necessidade em
grande escala para um público cada vez mais indiferente, cada vez mais blasé. Em seus dois

570
« Pour présenter l’industrie sous une forme si riante, il faut non seulement une puissante invention, mais
encore un oubli bien complet de la réalité mesquine au milieu de laquelle nous vivons. Un homme vulgaire aurait
transporté sur la muraille la copie fidèle d’un atelier de Lyon ; il aurait dessiné, avec une littéralité scrupuleuse,
les métiers qui s’emparent de la soie pour la changer en velours ou en satin ; M. Delacroix comprend trop bien
non-seulement la partie technique, mais encore la partie poétique de la peinture, pour tomber dans une pareille
erreur. (...) il comprend que la peinture allégorique, moins que tout autre genre de peinture, peut se passer de
l’idéalité. En choisissant, pour figurer l’industrie, le corail, la perle, le mûrier, la soie et le fuseau, il n’a fait que
suivre la pente naturelle de sa pensée ; pour trouver la seule beauté qui convînt au sujet, il n’a pas eu à violer ses
habitudes, il s’est contenté de traiter l’allégorie comme il avait choisi » (PLANCHE, Gustave, Le Salon du roi de
M. Eugène Delacroix, Revue des Deux Mondes, période initiale, tome 10, 1837, p. 762).
571
Como este, hoje no Clark Art Institute, Williamstown, MA: https://www.clarkart.edu/Collection/2363, acesso
em julho de 2019.
218

principais textos publicados sobre estética, Questions sur le beau (1854) e Des variations du
beau (1857), Delacroix afirma que, no séc. XIX, o belo não varia, como nos antigos, de
acordo com a mudança dos costumes – mais profunda e substancial em termos culturais –,
antes segue a variação bem mais superficial da moda, a qual, a seu turno, depende do arbítrio
da indústria e do comércio572.
A indústria têxtil, da qual provinha o sustento dos Hartmann, compunha uma fatia
importante da atividade industrial na França no segundo terço do séc. XIX, como atesta a
própria pintura de Delacroix no Salon do Palais Bourbon onde o monarca, Louis-Phillipe,
sentava-se em ocasiões solenes. Consistia, além disso, num ramo que empregava artistas. Na
Exposição Universal de 1855, ficou evidente a importância, para o governo de Napoleão III,
de aliar a produção industrial ao desenvolvimento das belas-artes. Parece quase uma
consequência natural que muitos desses industriais tenham sido também importantes
colecionadores.
A encomenda das Quatro Estações a Delacroix ocorre neste contexto dos anos
1850. Elas não foram terminadas nem entregues a Hartmann. Alguns anos depois, em 1868,
ele a repassa a Millet. Há, então, uma mudança no tratamento dos temas. Mesmo que Millet
tenha visto, em 1864, os quadros inacabados de Delacroix, seja na exposição do leilão
póstumo, seja na da Galerie Martinet logo depois, ele não tentou representar, na série para
Hartmann, as estações por meio de alegorias individuais ou histórias mitológicas, como fizera
naquele mesmo ano de 1864, para o salão da residência parisiense de Thomas de Colmar,
outro alsaciano. Ele não segue Delacroix, mas sim seu amigo e vizinho em Barbizon, o
paisagista Théodore Rousseau: Millet pinta, então, paisagens e cenas da vida rural
correspondentes a cada período do ano. Ele realiza, efetivamente, o desejo de Rousseau de
pintar alegorias de outro modo, que não mitologicamente. Mas a escolha do objeto de
representação é tão seletiva e ideal quanto à de Delacroix, pois é a França rural que vemos em
seus quatro quadros das estações. No fim dos anos 1860 e início dos 1870, a atividade
industrial já estava esvaziando o campo e mudando o aspecto da paisagem natural, recortada e
tingida, agora, pelas chaminés e pela fumaça das fábricas. Ao movimento de avanço do
progresso opõe-se outro de retrocesso da nostalgia, especialmente evidente no mundo das

572
« Ce goût a péri chez les anciens, non pas à la manière d’une mode qui change, circonstance qui se produit à
chaque instant sous nos yeux et sans cause absolument nécessaire : il a péri avec les institutions (…) »
(DELACROIX, Des variations…, in : Œuvres Littéraires, I, p. 38). « La mode, qui ballotte les talents à son gré
et qui décide de tout pour un peu de temps, a toujours agité cette question du beau ; sa frivole influence croit
s’étendre jusqu’à ce qui est immuable » (DELACROIX, Questions…, I, p. 32).
219

representações visuais e, nesse “impasse”, a cultura encontra um espaço para fazer um


balanço de suas perdas e ganhos.
Delacroix, Rousseau e Millet, os artistas que Hartmann colecionou,
compartilhavam, então, dessa idealização totalmente oposta à ideia de “realismo” ou de
exploração de um universo sem o homem. Os três artistas também possuem um modo de
pintar ligado à ideia de inacabado, uma maneira mais esboçada usada a serviço da imitação da
natureza. Na obra de Delacroix, contudo, as paisagens nunca chegam a ter a mesma
autonomia que apresentam em Rousseau ou Millet. Sua proeminência nas quatro composições
para Hartmann, por exemplo, é relativa, pois concorrem com as duas figuras principais, em
primeiro plano.
Particularmente no gênero da paisagem, considerado menor na hierarquia
acadêmica em relação à pintura de história e ao retrato, uma pincelada visível e menos
descritiva era mais tolerada, inclusive em meios oficiais – a Academia e o Salon. Essa
aparência de desleixo é típica de esboços. Eles eram parte da fase inicial do processo de
criação, eram ensinados nas instituições de ensino públicas e nos ateliês privados e
constituíam objetos de avaliação em concursos por prêmios de viagem e encomendas. A
questão é como um estilo mais esboçado, mais “inacabado”, como o de Delacroix e seus
admiradores, Rousseau e Millet inclusos, passou a ser progressivamente aceito em obras
finais, tanto quanto um estilo de superfícies lisas e tons fundidos na tela, ligado ao paradigma
clássico, cujo exemplo icônico no tempo de Delacroix é o de Ingres e de seus seguidores.
Embora não haja uma resposta precisa, podemos supor que a maior circulação
de esboços fora dos ateliês dos artistas, durante a sua vida, bem como um interesse maior por
seus esboços após a sua morte, sejam fatores importantes. Particularmente os petits tableaux
traduzem uma tentativa do mercado de arte de responder aos processos de seriação em outras
dimensões da vida cotidiana: uma fatura rápida, que repete realizações de sucesso e em
maiores dimensões do artista, uma mercadoria sempre “em estoque” e mais barata.
Como a venda póstuma das obras remanescentes nos ateliês de Delacroix
mostrou, para o espanto do público, ele realizava muitos esboços com o objetivo de pensar
suas composições, mesmo as menores, como as litografias. Talvez as pessoas esperassem que,
como Velázquez, Rembrandt e Hals, seu ataque às telas fosse mais direto e espontâneo,
menos mediado por estudos, o que não era o caso. Conhecemos os quatro esboços a óleo para
as Estações Hartmann que figuraram nesta venda. É possível que tenham sido os modelos
apresentados ao comitente para aprovação final, em 1856.
220

Nas grandes telas para Hartmann, Delacroix aplicou uma camada de base
acinzentada sobre a qual esboçou toda a composição, definindo áreas de luz e sombra e foi
construindo as formas graficamente, por meio do método de desenho “pelos meios” ou
“sistema de ovos”. Nas áreas mais acabadas, as pinceladas aparecem um pouco menos. Tais
áreas estão concentradas nas figuras e não nos fundos, o que leva a crer que o artista
começava por elas, pelos primeiros planos e progredia para trás, no sentido da profundidade.
Também é evidente que trabalhou nas quatro telas ao mesmo tempo, ainda que pareça ter
seguido, na simultaneidade mesma desse ataque, a ordem natural das estações.
Em sua última fase, a distância entre o esboço e a obra final diminui, ou seja,
Delacroix decide que a obra está pronta mais rápido do que antes. Além disso, ele volta-se
com mais frequência à sua produção anterior, repetindo-se. Alcança igualmente uma síntese
cromática própria e um instinto puro da paleta, sem necessidade alguma de “consulta ao
dicionário da natureza”, de modo que nunca existiu um mar mais falso e mais verdadeiro,
mais raso e mais profundo, do que aquele azul-esverdeado dos quadros da Vista de Tanger a
partir da costa (1858, Minneapolis Institute of Art) ou o dos Cavalos sendo tirados da água
(1858-60, The Phillips Collection, Washington D.C.), ambos em coleções norte-americanas.
Reproduções, contudo, não fazem jus à pintura de Delacroix. Nas Américas, é nos Estados
Unidos onde suas obras estão mais concentradas. Não seria surpreendente descobrir que,
depois da França, é o país que mais possui Delacroixs no mundo. Walter Pach sentiu como
um grande golpe a vinda das Estações Hartmann ao Brasil, em 1952, quando Pietro Maria
Bardi as adquiriu para o MASP, telas que se encontravam em solo norte-americano já há mais
de meio século. “Certamente algo de que não devemos nos orgulhar”, lamentou o crítico, em
1959573. Este deslocamento marca igualmente uma nova fase de apreciação do artista naquele
território.
Estas quatro telas inacabadas não foram entregues ao comitente, devido à
morte de Delacroix. Rousseau também não terminou a sua trilogia de Les Landes (só entregou
o Marais), bem como outras encomendas adicionais para Hartmann, isso depois de longas
discussões entre artista e mecenas sobre o seu grau de acabamento. Contudo, Hartmann
recuperou suas encomendas após a morte de Rousseau e confiou a sua conclusão, do mesmo
modo que transferiu sua amizade e seu patrocínio, a Millet. Ele recuperou a “trilogia de
tormentos” (trinité des tourments) de Rousseau, como a chamou Alfred Sensier – o Forno, a

573
PACH :1959 [1930], p. 27, nota 1.
221

Fazenda e o Vilarejo 574 – provavelmente porque já havia pago por ela (e bem mais do que o
valor acordado a princípio), ao contrário das telas de Delacroix. Hartmann desapegou-se
totalmente das suas Estações e ignorou-as mesmo no leilão póstumo de 1864, onde figuraram
por um preço mais baixo do que o contratado com o artista e onde seu irmão Jacques adquiriu
pinturas próximas iconograficamente. Nessa época, além de sua empresa enfrentar crises
financeiras, Hartmann já havia se engajado totalmente junto a Rousseau. Ele tornou-se, com
efeito, seu amigo íntimo, enquanto que sua relação com Delacroix permaneceu estritamente
profissional, bem mais distanciada.
Hartmann foi um mecenas seletivo, paciente, fiel e bem informado. Seguia a
imprensa em matéria de arte, era capaz de sustentar discussões bastante técnicas com
Rousseau e Millet e pressionou os artistas que amou de tal modo que eles jamais lhe atendiam
quanto a prazos. No séc. XIX, no âmbito das encomendas privadas, os artistas haviam
encampado a função do inventor e ocupavam-se do projeto no qual o desejo do mecenas
deveria encontrar uma expressão adequada. Eles não eram mais meros executores. Nesse
sentido, tensões entre eles e os comitentes aumentam. As discussões de Hartmann com
Rousseau e Millet sobre o inacabado ilustram bem isso. O fato de ter solicitado reiteradas
vezes a Delacroix para que alterasse as dimensões das telas ou de ter simplesmente cancelado
a encomenda depois de já ter sido começada pelo artista, o que o irrita profundamente,
mostram como existe um trabalho de conciliação entre vontades a ser realizado entre artista e
patrono que vai muito além de simples normas contratuais estabelecidas a priori. A
independência que Hartmann prezava, tanto em sua atividade como político, quanto naquela
dos artistas que admirou tinha, no campo das relações entre mecenas e artista, não só os seus
prós, como também os contras.
Hartmann admirava enormemente os pintores holandeses do séc. XVII.
Recomendou-os mais de uma vez a Rousseau em suas cartas. Em sua coleção, como na de
seus três irmãos, Henry, Jacques e Alfred, predominam os paisagistas franceses,
especialmente ligados à Barbizon, sem contar o próprio Delacroix. Esta era uma tendência no
âmbito do colecionismo na época à qual vem se somar não só a pintura dos holandeses, como
também a dos franceses do Rococó. Isso significa que a escola italiana e as antiguidades
greco-romanas tão amadas pelos neoclássicos perdiam campo e o gosto geral tomava outros
rumos. Certas tendências preponderantes do colecionismo privado participam, desse modo, da
ascensão de uma estética do esboço que culmina, já nos anos 1860, no Impressionismo.

574
SENSIER: 1872, p. 293.
222

Nicolas Poussin, considerado por Delacroix um dos pais da pintura francesa,


também pintara, como ele, as quatro estações no início e no fim da carreira. Delacroix recebeu
sua segunda encomenda privada quando foi recomendado, muito provavelmente por Henri
Duponchel, para decorar a sala de jantar de Talma. A de Hartmann, por sua vez, foi a última
compreendendo uma decoração de interior. Como Poussin, Delacroix pintou as Estações
primeiro como alegorias individuais e, anos depois, como narrativas mitológicas, porém
pagãs, não bíblicas. Delacroix ama mais a pintura de Pompeia em suas soluções formais;
Poussin, apesar de dever algo à estatuária clássica, está impregnado do imaginário cristão.
O aspecto trêmulo da pincelada do último Poussin nas Estações Richelieu
incomodou alguns críticos, emocionou outros. Mas suas telas foram concluídas e devidamente
entregues ao comitente. Havia então, no séc. XVII, um paradigma mais bem definido do que
significava “acabar”. As telas de Delacroix para Hartmann não foram nem terminadas, nem
entregues. No período em que esperava por elas, o industrial discutiu a questão do fini com
Rousseau obstinadamente. Aconselhou-o como pôde – “veja os holandeses”, “veja o Claude”,
“defina melhor aqui”, “recupere o frescor lá”, etc. – com o objetivo, nada isento, de ver de
uma vez por todas os seus quadros pendurados em sua casa. Só recebeu, durante a vida do
artista, o Marais e o elevou imediatamente a sua pintura preferida. Mesmo quando repassa a
encomenda das Estações a Millet, não recebe todas as obras durante a vida do artista;
aparentemente não recuperou um dos quadros, o Inverno, talvez porque estivesse
evidentemente inacabado. Então, esta é a grande ironia: tendo discutido tanto a questão do
fini com seus artistas, Hartmann aprecia efetivamente, no fim da sua vida, uma série das
Quatro Estações inacabada, com obras, ao menos duas, quase concluídas. Se tivesse
adquirido sua primeira encomenda na venda póstuma de Delacroix, ele teria, curiosamente,
ficado na mesma.
223

FONTES DE PESQUISA

ARQUIVOS E COLEÇÕES MUSEAIS

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Piranèse Frères et Leblanc, 1804-1806, 6 volumes.

MAZOIS, François. Les ruines de Pompéi [continué par François Christian Gau, Alexis-
François Artaud de Montor et Quatremère de Quincy], Paris, Frères Didot, 1824-1838, 4
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Herculanum et Pompéi: recueil général des peintures, bronzes, mosaïques, etc., découverts
jusqu'à ce jour et reproduits d'après "Le Antichità di Ercolano", "Il Museo Borbonico"....
augmenté de sujets inédits, gravés au trait sur cuivre, par H. Roux aîné, et accompagné d’un
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https://masp.org.br/acervo/busca?author=delacroix#collections

Musée du Louvre, Paris:


http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=crt_frm_rs&langue=fr&initCritere=true

Musée D’Orsay, Paris:


http://www.musee-orsay.fr/fr/collections/oeuvres-commentees/accueil.html

Musée des Arts et Métiers, Paris:


https://www.arts-et-metiers.net/les-collections

Musée Fabre, Montpellier:


https://museefabre.montpellier3m.fr/RESSOURCES/RECHERCHE_D_OEUVRES/

Collections du Musée National de l’Éducation, Rouen:


https://www.reseau-canope.fr/musee/collections/

Coleçāo Calouste-Goubelkian, Lisboa:


https://gulbenkian.pt/museu/works_museu/o-arco-iris/

Sammlung E. G. Bührle, Zürich:


http://www.buehrle.ch/painters_detail.php?lang=fr&id_pic=16&id_painter=14
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De Mesdag Collectie, den Haag:


https://www.demesdagcollectie.nl/en/collection/hwm0267

Metropolitan Museum, New York:


https://www.metmuseum.org/art/collection/search/437097

Frick Collection, New York:


https://collections.frick.org/objects/131/the-village-of-becquigny#showAudios

Cooper Hewitt Collection, Nova York:


https://collection.cooperhewitt.org/

Philadelphia Museum of Art:


http://www.philamuseum.org/collections/permanent/104432.html?mulR=1465666370|1

Museum of Fine Arts, Boston:


http://www.mfa.org/collections/search

Fogg Museum, Cambridge, MA:


https://www.harvardartmuseums.org/collections/object/226891?position=67

The Clark Art Institute, Williamstown, MA:


http://www.clarkart.edu/Collection/14699

National Gallery of Art, Washington, D.C.:


https://www.nga.gov/collection/collection-search.html

• Outros

Gallica, Bnf:
https://gallica.bnf.fr/

Internet Archive:
https://archive.org/

Universitätsbibliothek Heidelberg:
https://www.ub.uni-heidelberg.de/

Fototeca Zeri, Università di Bologna:


http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/cerca/opera

Base de dados Joconde:


http://www2.culture.gouv.fr/public/mistral/joconde_fr
243

Le portail pour les imprimés numérisés des bibliothèques suisses:


https://www.e-rara.ch/

Base de dados iconográfica do Instituto Warburg, Londres:


https://iconographic.warburg.sas.ac.uk/vpc/VPC_search/main_page.php

Lexicum Iconographicum Mithologiae Classicae (LIMC):


http://www.limc-france.fr/

Base de dados dos Salons:


http://salons.musee-orsay.fr/index

Les Sociétés des Amis des Arts, de 1789 à l’après-guerre, INHA:


https://agorha.inha.fr/inhaprod/ark:/54721/00156
244

Apêndice 1
A TRAJETÓRIA DAS QUATRO ESTAÇÕES HARTMANN ATÉ CHEGAREM AO
MASP, BRASIL.

Fim do ano 1855/início de 1856 – Delacroix recebe a encomenda das Quatro Estações de
Frédéric Hartmann. Elas não foram terminadas nem entregues ao comitente. Quando o pintor
falece, em 13 de agosto de 1863, são encontradas em seu ateliê em Champrosay, próxima a
Paris.

1864 – Figuram no leilão póstumo das obras de Delacroix, realizado entre 17 e 19 de


fevereiro, no Hôtel Drouot, Paris (Seção « tableaux inachevés », p. 16). As quatro telas são
vendidas à Etienne François Haro (1827-1897), fornecedor de materiais artísticos e
restaurador attitré de Delacroix. O pintor adquiria com Haro chassis, pinceis, brochas, óleos,
essências, cera, pigmentos e confiava-lhe a restauração de seus quadros (dévernissage,
rolagem, transporte, etc.), bem como a colagem das telas sobre o teto ou parede (marouflage)
em suas grandes composições decorativas.
Este é o carimbo de cera vermelha da venda póstuma, com as iniciais ED presente no verso
das telas:

Conforme anotado por Adolphe Moreau no catálogo da venda póstuma, conservado na Bnf,
elas são adjudicadas por:
• Primavera = 1500f;
• Verão = 1550f;
• Outono = 870f;
• Inverno = 1000f.
No segundo catálogo das obras completas de Delacroix, organizado por Alfred Robaut
(1885:383), consta que foram retocadas pouco depois da venda, portanto, quando pertenciam
a Haro.
245

1873 – Haro vende as telas ao marchand de tableaux Paul Durand-Ruel (1831-1922). Durand-
Ruel as reproduz em gravuras executadas por Laguilhermie, num catálogo de 1873, no qual é
visível, por exemplo, a existência de um pavão ao lado de Juno no quadro do Inverno. Isso
confirmaria a afirmação de Robaut de que teriam sido retocadas por outra pessoa após a venda
póstuma, pois hoje a figura do pavão não existe mais575. Contudo, Durand-Ruel teria
afirmado, segundo Walter Pach (1930:252-3, nota 1), que “jamais distinguiu nas telas uma
pincelada que não fosse de Delacroix”576.

187? – Em algum momento depois de 1873, as telas são adquiridas pelo jornalista, político e
colecionador Émile Girardin (1802 -1881).

1883 – Figuram no leilão póstumo da coleção de Girardin, em 24 de maio, no Hôtel Drouot,


Paris, nos 12 a 15. A série retorna a Durand-Ruel por 20.000f no total.
• Primavera = 5000f;
• Verão = 5000f;
• Outono = 5000f;
• Inverno = 5000f.

Entre 1883 e os anos 1890 – O britânico James Smith Inglis (1852-1907) compra as telas de
Durand-Ruel, Paris. Inglis foi diretor da filial nova-iorquina da loja de decoração e galeria de
arte Cottier & Cie, fundada por Daniel Cottier (1838-1891), em 1869, em Londres. Mais
tarde, tornou-se sócio e depois o único dono da empresa, que passou a ter sede em Nova
York577. As obras de Delacroix integravam a sua coleção pessoal, vendida por ordem de sua
esposa, em 1910.

575
É possível que Delacroix tenha pensado em incluir o pavão, conforme o seu esboço da composição, hoje
numa coleção particular, publicado em KAHNG: 2013, cat. 18 (fig. 141). Mas não chegou a realizá-lo na tela
final.
576
Pach repete uma afirmação de Albert Gallatin, proprietário posterior da série: “O velho Durand-Ruel me disse
que isso não era verdade (uma nota em Robaut que afirma que as pinturas teriam sido retocadas) e que ele não as
teria comprado duas vezes como fez se acreditasse nisso” (cópia datilografada de carta de Gallatin, datada de 17
de outubro de 1932, Arquivos do MASP).
577
Sobre Inglis, ver a introdução ao catálogo de uma de suas vendas: SALE James S. Inglis: paintings and
watercolors of the Italian, French, Dutch and American schools by old and modern masters…, New York, Mar.
11-12, 1909. Sobre Cottier, ver: BURKE, Doreen Bolger ; FRELINGH, Alice Cooney. In Pursuit of Beauty:
Americans and the Aesthetic Movement, 23 out. 1986 – 11 jan. 1987, Metropolitan Museum of Art, New
York, pp. 414-16.
246

1910 – Figuram na venda póstuma da coleção de James S. Inglis, realizada pela American Art
Galleries, Nova York, em 10 de março, nos 119 a 122. (A gravura que reproduz o quadro do
Inverno deixa ver, ainda, o pavão ao lado de Juno; os títulos dos quadros da Primavera e do
Outono estão trocados.) São adquiridas pelo colecionador residente em Nova York, Albert
Gallatin (1880-1965)578. Sua coleção incluía antiguidades gregas, orientais e egípcias, além de
pinturas de Whistler, Degas e Gauguin579. Segundo suas memórias, publicadas em 1950580,
ele teria recebido uma proposta de James J. Hill (1838-1916), importante colecionador de arte
francesa do período, de aquisição do conjunto pelo dobro do valor que ele mesmo havia
investido ao comprá-las da American Art Galleries (1950:201).

1941 – Gallatin empresta o Verão e o Outono à exposição French Painting: from David to
Toulouse-Lautrec, no Metropolitan Museum, Nova York, inaugurada no dia 6 de fevereiro581.
Pietro Maria Bardi, ex-diretor do MASP, em carta a Lee Johnson de 16 de julho de 1982,
afirma que as quatro telas foram repintadas numa data indeterminada após a venda de 1864 e
restauradas em torno do ano de 1935582, portanto, quando pertenciam, ainda, a Albert
Gallatin. Num artigo de revista não datado nem assinado, mas que deve remeter ao período
desta exposição no Metropolitan, consultado nos arquivos do departamento de pinturas do
Louvre, lemos que o expert Gaston Lévi († 1957) havia feito uma limpeza nos quadros
quando ainda estavam sob a posse de Gallatin, pouco antes de serem vendidos a Wildenstein
Gallery, o que ocorreu não antes de 1941583. Segundo o artigo, trata-se de um restaurador

578
Não o confundir com seu primo de primeiro grau de mesmo nome, Albert Eugene Gallatin (1881-1952), cuja
coleção continha importantes obras dos cubistas.
579
A coleção egípcia está hoje no Metropolitan Museum, Nova York. Ver : FISCHER, Henry. The Gallatin
Egyptian Collection. The Metropolitan Museum of Art Bulletin, volume xxv, number 7, March 1967, pp. 253-
263.
580
The Pursuit of Happiness é o título do livro, um trabalho impresso às próprias expensas, no qual Gallatin
reflete sobre sua vida como colecionador.
581
WEHLE, Harry B. French painting from David to Toulouse-Lautrec: loans from French and American
museums and collections, February 6 - March 26, 1941, Met Museum, New York, catálogo disponível em:
https://libmma.contentdm.oclc.org/digital/collection/p15324coll10/id/178192, acesso em junho de 2019.
582
A carta encontra-se nos arquivos do MASP: "In an indetermined [sic] period the pictures were submitted to a
heavy repaint in the suppositions that the definitive works had not been finished. These strange interventions
were eliminated (c. 1935) showing the maturity of the artist's work."
583
Gaston Lévi possuía um ateliê de restauração e expertise em Paris (7, Rue La Bruyère). Em 1926, abriu, por
insistência de seus clientes americanos, uma filial em Nova York (primeiro na 12 East 54th St.; depois na 16
West 56th St.), onde passou a atender periodicamente. Conforme carta a Jacques Seligman & Co Inc., 30 de
dezembro de 1926, Smithsonian Institute, Archives of American Art, Box 57, Folder 24.
247

experiente, que já havia trabalhado sobre dois Renoir, um na coleção de Duncan Phillips,
outro na Frick Collection584. O reentelamneto do primeiro foi programado por Phillips para a
primavera de 1940585. Portanto, a limpeza das pinturas de Delacroix por Lévi deve ter
ocorrido depois e pouco antes da exposição no Metropolitan, ou seja, entre a metade do ano
de 1940 e janeiro de 1941. As interferências mencionadas por Robaut teriam sido suprimidas
nessa ocasião.

A partir de 1941, provavelmente entre 1941 e 1945 – As telas são adquiridas pela George
Wildenstein Gallery, Nova York.

1952 – As telas são vendidas a Francisco de Assis Chateaubriand, pelo intermédio do


professor Pietro Maria Bardi, passando à coleção do Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand, Brasil. Walter Pach queixa-se, em 1959, do fato de terem sido vendidas ao
museu brasileiro, o que “dá pouco crédito ao nosso país, que as teve durante mais de 50
anos”586. Joseph Rischel, por sua vez, escreve que a partida das Estações à América do Sul
“foi um golpe duro a uma política (...) de aquisições de obras de Delacroix na América do
Norte”587 e acrescenta que tal episódio abriu um novo capítulo na história da avaliação do
pintor entre os norte-americanos.

Ainda em 1952, as quatro telas são exibidas na Wildenstein Gallery, em Londres (a partir de 5
de junho), entre outras 50 pinturas e 25 desenhos de Delacroix. Elas integram, na sequência, a
exposição The Romantic Circle, no Wadsworth Atheneum, Hartford, Connecticut, de 15 de
outubro a 30 de novembro, onde a tela do Inverno passa por um acidente588. Ela é reentelada

584
Gaston Lévi trabalhou, entre 1944 e 1945, sobre as seguintes pinturas da Frick Collection: As Quatro
Estações, de Boucher; as alegorias do Desenho e da Poesia, atribuídas a Boucher; o retrato de Elizabeth,
Condessa de Warwick, de Jean-Marc Nattier; a Procissão de comediantes italianos e a Orquestra do vilarejo, de
Jean-Baptiste Pater. Não foi possível confirmar sobre qual Renoir desta coleção ele trabalhou.
585
Phillips a Pach, 26 de fevereiro de 1940. In: PEARLMAN ed., Walter Pach Letters, 1906-1958, p. 231.
586
PACH :1959, p. 27, nota 1.
587
In : SÉRULLAZ; POMARÈDE: 1998, p. 71.
588
“Tentarei descrever a você o acidente como me foi contado. A grande caixa que recebemos de Day &
Meyers, os empacotadores (packers) da Wildenstein & Co., foi aberta por nossos dois empacotadores em nossa
sala de expedição (shipping room) e a tampa removida. O ‘Inverno’ era a primeira pintura da caixa e os
empacotadores tinham-na removido e estavam carregando-a até o depósito da sala de expedição quando um dos
homens esbarrou numa placa que estava apoiada na parede. Infelizmente, essa placa caiu sobre a superfície do
quadro e o rasgou. (...) O rasgo na tela mede em torno de 19 cm2 (3 inches square), está localizado a cerca de 81
cm (32 ½ inches) da borda inferior, 106 cm (42 inches) da borda superior, 66 cm (26 inches) da borda esquerda e
248

pelo restaurador Alfred Jakstas, indicado a Bardi pelo diretor do museu norte-americano.
Jakstas aplica uma camada de cera-resina para fechar um pequeno rasgo perto do centro, na
área de fundo da composição. É a única tela cujo chassi não é mais o original.

1998 – A série é exibida no Petit Palais, em Paris, de 7 abril a 20 julho, e no Museu de Arte
da Filadélfia, Estados Unidos, de 10 de setembro a 3 de janeiro de 1999, durante a exposição
Delacroix: les dernières années. Elas passam pela avaliação de especialistas em conservação
e restauro. O relatório e as imagens que resultaram dessas análises podem ser consultados no
C2RMF, respectivamente em Versailles e Paris589.

83 cm (33 ¾ inches) da borda direita. (...) O rasgo está limpo na maior parte, mas um pouco irregular à direita.
(...) Felizmente, se podemos usar esse termo num acidente como esse, o dano não ocorreu sobre as figuras, mas
sobre o fundo, que contém uma variedade de tons verdes” (carta de C. C. Cummingham, diretor do Wadsworth
Atheneum, a Pietro Maria Bardi, 23 de outubro de 1952, Arquivos do MASP).
589
Este rapport nos arquivos franceses é de fevereiro de 1998, assinado por David Aguilella Cueco, e consta que
foi feito no MASP. Nos arquivos do museu paulista, existe, ainda, uma cópia de um exame técnico anterior, mais
sintético e feito igualmente no MASP, em 3 de outubro de 1997, por Nathalie Volle, então conservatrice en chef
du service de conservation des musées en France.
249

Apêndice 2
GENEALOGIA DOS HARTMANN
250

Apêndice 3
A COLEÇÃO DE FRÉDÉRIC HARTMANN590

EUGÈNE DELACROIX
Os títulos dos quadros são seguidos do respectivo número no catálogo da obra
pictórica de Delacroix organizado por Lee Johnson (J...), de sua localização atual e do ano da
aquisição por Hartmann.

• L’Empereur du Maroc (J401, coleção particular, Nova York)


- Adquirido em 1856.

• Un lion dans les montagens ou Lion attaqué (J183, Ordrupgaard Museum,


Copenhagen)
- Adquirido em 1856.

• Les Quatre Saisons (J248, J249, J250, J251, MASP, São Paulo)
- Encomendado em 1855-56, não entregue.

THÉODORE ROUSSEAU
Os títulos dos quadros e desenhos são seguidos dos números no catálogo de Schulman
das obras completas de Rousseau, relativo à obra pictórica (S...) ou gráfica (SG...), de sua
localização atual e do ano da encomenda e/ou aquisição por Hartmann.

Pinturas :
• Le Marais dans Les Landes (S312, Musée du Louvre, Paris)
- Encomendado em 1852, exposto na Exposição Universal de 1855, entregue em torno
do fim do ano de 1855 e início de 1856.

• La Ferme dans Les Landes (S271, Sterling and Francine Clark Art Institute,
Williamstown, Massachussets)
- Encomendado em cerca de 1852, entregue após a morte de Rousseau, início do ano
de 1868, terminado por Millet e entregue em 1869.

590
Grifadas em cinza estão obras encomendadas, mas não entregues ou recusadas.
251

• Le Four Communal dans Les Landes (S269, Museum der bildenden Künste, Leipzig)
- Encomendado no início de 1862 em nome de seu irmão Alfred, entregue após a
morte de Rousseau, início do ano de 1868; terminado por Millet e entregue em 1869.

• Le village de Becquigny (S643, Frick Collection, Nova York)


- Encomendado no início de 1862 em nome de seu irmão Alfred, exposto no Salão de
1864, entregue após a morte de Rousseau, início do ano de 1868, terminado por Millet
e entregue em 1869.

• Coucher de Soleil (dans Les Landes) ou Un abreuvoir dans le Berri (S647, Coleção
particular)

• Une plaine aux Pyrénées ou Gardien de troupeau dans une plaine près des Pyrénées
(S622, Museum of Fine Arts, Philadelphia)

• Le Gorges d’Apremont (S561, Middlebury College Museum of Art, Vermont, US)


- Rousseau propõe trocar esta tela pela da Ferme, em 1857. Ela é exposta no Salão de
1859. Hartmann recusa o quadro em 1860.

Desenhos :
• La Plaine de Barbizon
• Étude pour le tableau La Ferme
• Un pacage
• Village sous les grands arbres (SG690 ?)

JEAN-FRANÇOIS MILLET
Não existe, ainda, um catálogo das obras completas de Millet.

• Le printemps ou L’Arc en ciel (Musée d’Orsay, Paris)


- Encomendado em 1868, entregue em 1873.

• L’été ou Les batteurs de sarrasin (Museum of Fine Arts, Boston)


- Encomendado em 1868, recuperado após a morte do artista, em 1874.
252

• L’automne ou Les meules (Metropolitan Museum, Nova York)


- Encomendado em 1868, recuperado após a morte do artista, em 1874.

• L’hiver ou Solitude ou Porte aux vaches dans la neige (Museum of Fine Arts,
Philadelphia)
- Encomendado em 1868, não terminado e muito provavelmente não recuperado por
Hartmann.

• Le greffeur (Neue Pinakothek, München, Inv. 14556)

• Femme venant de puiser de l’eau (há uma versão dessa composição, em menores
dimensões, no Rijskmuseum, Amsterdã, Inv. SK-A-2707)

• Les falaises de Grunchy

• Paysan étalant du fumier (North Carolina Museum of Art, Inv. G.52.9.128)

• Femme étendant du linge


- Vente Millet, 1875.

Desenho:
• Tentation de Saint Antoine
- Desenho realçado com pastel, três mulheres e o santo ajoelhado.
253

PARTE 1
Capítulo 1

Iconografia das Quatro Estações

IMAGENS
254

Fig. 1. Fanes, séc. II d.C., mármore, Palazzo dei Musei, Modena.

Fig. 2. Hermes, as horai e o daimon Eniáutos, c. 600 a. C., mármore, Museu da Acrópole, Atenas.
255

Fig. 3. ZOEGA, Giorgio, Bassirelievi Antichi di Roma, 1808, prancha XCIV, p. 219.

Fig. 4. CAVACEPPI, Bartolomeo. Raccolta d'antiche statue busti teste cognite ed altre sculture antiche scelte restaurate da Bartolomeo
Cavaceppi scultore romano. Volume terzo, Roma, 1772, pl. 56. Disponível em: http://arachne.uni-koeln.de/item/buchseite/217714 (p. 141 do
pdf). Ver também: Folio 33, n. 8288, do catálogo de VERMEULE, Cornelius C., The Dal Pozzo-Albani Drawings of Classical Antiquities in the
Royal Library at Windsor Castle, Transactions of the American Philosophical Society, Vol. 56, No. 2 (1966), p. 17.

Fig. 5. Estações (Horai), relevo romano em terracota, coleção Campana, 50-100 d. C., British Museum, Londres, inv.1805,
0703.328.
256

Fig. 6. Estações (Horai), Relevo da Coleção Campana, 50-100 d. C., Terracota, 41 x 40 cm, Musée du Louvre, Paris, inv. CP4169.

Fig. 7. REINACH, Salomon, Répertoire des reliefs grecs et romains, Paris, 1909-12, vol. II, p. 262. Disponível em:
http://bibliotheque-numerique.inha.fr/viewer/12146/?offset=15#page=270&viewer=picture
257

Fig. 8. Neste sarcófago, do séc. II d. C., as estações como Horai em procissão entregam presentes ao casal
Tétis e Peleu, depois de Hefesto e Atena. O Inverno vem antes da Primavera. Mármore, 117-138 d. C.,
Roma, Villa Albani, inv. 131.
258

Fig. 9. Chão de mosaico retratando as Quatro Estações, fim do séc. II d. C., Musée du Bardo, Tunis.
259

Fig. 10. O triunfo de Netuno, mosaico romano de La Chebba, Tunísia, 138-161 d. C., Musée du Bardo,
Tunis.
260

Fig. 11. Parte central do mosaico do calendário agrícola, início do séc. III d. C., St Romain-en-Gal (Rhône),
Musée de St Germain-en-Laye.
261

Fig. 12. Parte central de um mosaico de Sentinum (atual Sassoferrato, em Marche, Itália), c. 200-250 d. C.,
Glyptothèque, Munique.
262

Fig. 13. Sarcófago das Estações, c. 330 d. C., Dumbarton Oaks Museum, Washington D.C., inv. 36.65.

Fig. 14. Tampa de sarcófago com as Estações e eroti, 140-150 d. C., mármore branco, 22 x 228 x 76 cm,
Museo Pio Clementino, Vaticano, Inv. MV94100. (Imagem ampliada na página seguinte.)

Fig. 15. Sarcófago con Tiaso marinho, séc. III d.C.,, Galleria Borghese, Roma.
263
264

Fig. 16. Tétrade mostrando as relações dinâmicas entre os Elementos, as Qualidades, as Estações e os
Temperamentos, extraída do Liber de responsione mundi et astrorum ordinatione, de Isidoro de Sevilha,
Augsburg, 1472.

Fig. 17. Scholium de duodecim zodiaci signis et de ventis, 1001-1100, Pergaminho, Bibliothèque Nationale
de France, Paris.
265

Fig. 18. Ambroglio Lorenzetti, detalhes do ciclo Alegorias do bom e do mau governo: alegoria do Inverno
(paredo do mau governo) e alegoria do Verão (parede do bom governo), 1338-1340, Palazzo Pubblico,
Siena.
266

Fig. 19. Frères de Limbourg, Calendrier des Très Riches Heures du duc de Berry (páginas lado a lado),
1411-1416, Manuscrito e pintura sobre velino, 29 × 21 cm, Musée Condé, Bibliothèque, Chantilly, Ms. 65.
267

Fig. 19a. Mês de março do Calendrier des Très Riches Heures du duc de Berry.
268

Fig. 20. DIPLOCK, A. H. (intro.), The Kalendar of shepherds: being devices for the twelve months, London, Sidgwick & Jackson,
1908, s/p. Fac-símile de edição inglesa de 1503.
269

Fig. 21. Planisfério Bianchini, Roma, séc. II d. C., mármore, 77 x 78 cm, Musée du Louvre, Inv. MA 540.

Fig. 22. Aby Warburg: esquema do afresco do Palazzo Schifanoia (desenho de Mary Hertz Warburg, 1911).
270

Fig. 23. Francesco del Cossa, detalhe do afresco do mês de Março, poda das vinhas, c. 1468-70, Palazzo
Schifanoia, Ferrara.

Fig. 24. Alegoria do mês de Abril, 1425-40, Palazzo della Ragione, Padova.
271
272
Fig. 25. Mestre A.P., Verão (acima) e Inverno (abaixo), 1537, xilogravuras, 33,7 x 48 cm, British Museum,
Londres.

Fig. 26. À Primavera florida; Ao Verão dourado; Ao Outono vinífero; Ao Inverno eólico. Xilogravuras da
primeira edição da Hypnerotomaquia Poliphili (Veneza, Aldo Manucci, 1499).
273

Fig. 27. Philips Galle, a partir de Maarten van Heemskerck, As Quatro Estações: Primavera, Verão, Outono e Inverno, 1563,
gravura, Rijksmuseum, Amsterdam.
274

Fig. 28. Crispijn de Passe, o velho, a partir de Maarten de Vos, duas edições diferentes das Quatro Estações,
fim do séc. XVI, xilo de topo, Rijskmuseum, Amsterdã. O Inverno, com Éolo, está na página seguinte.
275

Fig. 28a. Crispijn de Passe, o velho, a partir de Maarten de Vos, Inverno: Éolo, fim do séc. XVI, xilo de
topo, Rijskmuseum, Amsterdã.
276

Fig. 29. Vicenzo Cartari, Imagini de gli dei delli antichi, Padova, 1615.
277

Fig. 30a. Giorgio Vasari, Villa Altoviti, gravado por Thomas Piroli.
278

Fig. 30b. Giorgio Vasari, Villa Altoviti, gravado por Thomas Piroli.
279

Fig. 31. Giorgio Vasari e assistentes, As quatro estações com Opi ao centro,1555-57, óleo sobre tela, Sala di
Opi, Palazzo Vechio, Florença.
280

Fig. 32. Paolo Veronèse, Villa di Màser, Sala dell’Olimpo.


281

Fig. 33a. Provavelmente, a partir de um modelo da oficina de Bernard van Orley; autor das inscrições, possivelmente, Jerome van Busleyden
(Hieronymus Buslidius), As doze idades do homem: as primeiras três idades do homem (nascimento-18), ou Primavera, e As doze idades do
homem: as três idades seguintes do homem (18-36), ou Verão, c. 1515, lã/seda, 414 x 721.4 cm, Metropolitan Museum, Nova York.
282

Fig. 33b. Provavelmente, a partir de um modelo da oficina de Bernard van Orley; autor das inscrições, possivelmente, Jerome van Busleyden
(Hieronymus Buslidius), As doze idades do homem: as três idades seguintes do homem (36-54), ou Outono e As doze idades do homem: as
últimas três idades do homem (54-72), ou Inverno, c. 1515, lã/seda, 414 x 721.4 cm, Metropolitan Museum, Nova York.
283

Fig. 34a. Charles Le Brun (autor do modelo); manufatura de Gobelins; Yvart Baudouin (cartão); Delacroix (tecelagem), As Estações, o Verão,
1673, 3(h) x 4.80 m, Musée National du château de Fontainebleau. (F 754 C)

Fig. 34b. Charles Le Brun (autor do modelo); manufatura de Gobelins; Yvart Baudouin (cartão); Delacroix (tecelagem), As Estações, o Outono,
1673, 3(h) x 4.80 m, Musée National du château de Fontainebleau. (F 755 C)
284

Fig. 34c. Charles Le Brun (autor do modelo); manufatura de Gobelins; Yvart Baudouin (cartão); Delacroix (tecelagem), As
Estações, o Inverno, 1673, 3(h) x 4.80 m, Musée National du château de Fontainebleau. (F 756 C)
285

Fig. 35. Galeria de Apolo, Louvre, foto atual, destaque para o painel central, pintado por Delacroix, em 1850-51. As pinturas das
Estações, que não aparecem nesta foto à esquerda, estão nos compartimentos próximos aos cantos do painel central. Nas
extremidades, vemos os triunfos de Amfitrite e Baco e, na passagem, os quatro momentos do dia.
286

Fig. 36. Charles de La Fosse (1636-1716), Apolo em seu carro puxado por quatro cavalos e acompanhado das Estações,
1672-1681, Salon d’Apollon, châteaux de Versailles et de Trianon, Versailles.

Fig. 37. Eustache Le Sueur (1616-1655), Fáeton pede a Apolo as rédeas do carro do sol, Hôtel Lambert, séc. XVII, óleo
sobre tela, 2.78 x 3.6 m, Musée du Louvre, Paris (inv. 8056).
287

Fig. 38. Nicolas Poussin, Hélio e Fáeton com Saturno e as Quatro Estações, c. 1635, óleo sobre tela, 122 x 153 cm,
Staatliche Museen, Berlin.
288

Fig. 39a. Nicolas Poussin, Adão e Eva ou A Primavera, 1660-64, óleo sobre tela, 1,18 x 1,60 m, Museu do Louvre, Paris (Inv.
7303).

Fig. 39b. Nicolas Poussin, Rute e Boaz ou O Verão, 1660-64, óleo sobre tela, 1.18 x 1.60 m, Museu do Louvre, Paris (Inv. 7304).
289

Fig. 39c. Nicolas Poussin, O cacho de Canãa ou O Outono, 1660-64, óleo sobre tela, 1.17 x 1.60, Museu do Louvre, Paris.

Fig. 39d. Nicolas Poussin, O dilúvio ou O Inverno, 1660-64, óleo sobre tela, 1.18 x 1.60 m, Museu do Louvre, Paris (Inv. 7306).
290

PARTE 1
Capítulo 2

As Quatro Estações de Eugène Delacroix

IMAGENS
291

Fig. 40. KRAFFT, Jean-Charles ; THIOLLET, François. Choix de Maisons et d'Édifices Publics de Paris et de ses
Environs, 2e Edition, II, Paris, A Morel, 1838, prancha 5.

Fig. 40a.Vista atual da fachada da casa de Talma.


292

Fig. 40b. KRAFFT &THIOLLET, 1838, pranchas 6 e 7.


293

Fig. 41. Eugène Delacroix, carnet d’études, RF 9151, 27 Folio 13 verso, Cabinet des Dessins, Louvre.

Fig. 42. Eugène Delacroix. As quatro estações (Talma), a partir do alto/esq., em sentido horário: Inverno,
Primavera, Verão e Outono, 1821. Óleo sobre tela (transferido ao formato retangular ao ser reentelado), 45 x
85 cm cada. Foram leiloadas na Rossini Maison de Ventes aux Enchères, Paris, em 25 de junho de 2014.
294

Fig. 43. Eugène Delacroix, estudo para o Verão de Talma, lápis e aquarela, 17x24 cm, RF09244, Cabinet des Dessins, Louvre.
(notar a foice na mão)

Fig. 44. Eugène Delacroix, estudo para o Verão de Talma, RF9151, folio 38 recto, Cabinet des Dessins, Louvre (notar o signo no
alto à esq.)

O Verão, de Delacroix, para Talma, fig. 42.


295

Fig. 45. Pierre Andrieu, a partir de Delacroix, Salon de la Paix, lunettes,.

Fig. 46. Anibale Carracci, Hércules na encruzilhada, 1596, óleo sobre tela, 165 × 239 cm, Museu Capodimonte, Nápoles.
296

Fig. 47. David d'Angers, Estudos para a estátua de Talma, antes de 1837, lapis sobre papel, 14 x 11 cm, Musée des Beaux-
Arts d’Angers (MBA 604 6).

Fig. 48. David D’Angers, Talma, Salon 1827, terracota, Musée d’Angers.
297

Fig. 49. Filósofo, in : CLARAC, 1826-55, v. 5, prancha 840c.

Fig. 50. Talma como Sylla, Le Miroir, Paris, Théâtre français, 27 décembre 1821.
298

Fig. 51. Homem sentada, dito Menandro, mármore, segunda metade do séc. I a. C., baseada num modelo do
séc. III a. C., Musei Vaticani, Museo Pio-Clementino, Galleria delle statue (Inv. No. 588). Encontrado perto
de S. Pudenziana, no Viminal.
299

Fig. 52. Eugène Delacroix, Estudo a partir de uma gravura das Antiguidades de Herculano, anos 1820, RF 10153,
Recto, Cabinet des Dessins, Louvre. A gravura liga-se a uma representação do teatro.

Fig. 53. Representações de atores nas duas páginas seguintes à página acima, copiada por Delacroix, nas
Antichità d’Ercolano (primeira edição italiana). In : Le Pitture Antiche d'Ercolano, Bayardi, Ottavio Antonio
Napoli, 1757, t. IV.
300

Fig. 54. Anthelme François Lagrenée, Talma en Hamlet (Hamlet de Ducis), 1810, huile sur toile (I 0090),
Comédie-Française, Paris.
301

Fig. 55. Eugène Delacroix, Talma como Nero, 1852-3, Comédie-Française, Paris.
302

Fig. 56. Alexandre-Marie Colin, Portraits d'Acteurs et d'Actrices dans différents rôles, Paris, F. Noel, 1825.
303

Fig. 57. Eugène Delacroix, Le Grand Opéra, 1821, litografia, 27.5 x 21.8 cm (a folha), Metropolitan Museum, Nova
York.
304

Fig. 58. Eugène Delacroix, Ceres (estudo para uma das pinturas do teto do Salon de la Paix, Hôtel de Ville, Paris), 1849-53.
Óleo sobre tela, 19,7 x 37,5 cm. Fitzwilliam Museum, Cambridge.
305

Fig. 59a. Pieter Cornelius, Orfeu no Inferno, 1820-21, carvão sobre papel colado sobre tela, 3105 x
6145mm, Staatliche Museen zu Berlin, Alte Nationalgalerie (Cornelius SZ 24).

Fig. 59b. Pieter Cornelius, Artemis e Acteão, 1820, carvão sobre papel colado sobre tela, 1690 x 1820 mm,
Staatliche Museen zu Berlin, Alte Nationalgalerie (Cornelius SZ 40).
306

Fig. 60. Eugène Delacroix, Primavera - Eurídice colhendo flores é mordida por uma cobra, 1856-63. Óleo
sobre tela, 1,98 x 1,66 m. MASP, São Paulo.
307

Fig. 61. Nicolas Poussin, Paisagem com Orfeu e Eurídice. Óleo sobre tela, 1,20 x 2,00 m. Musée du Louvre,
Paris.
308

Fig. 62. Eugène Delacroix, estudo para a Primavera de Hartmann, Cabinet des Dessins, Louvre.
309

Fig. 63. Eugène Delacroix, Orfeu indo ao socorro de Eurídice, 1862, óleo sobre tela,, 61 x 50,5 cm, Musée Fabre, Montpellier.
[Don Alfred Bruyas, 1868, inv. 868.1.42]
310

Fig. 64. Gravado por Crispijn van de Passe, a partir de Leandro Bassano, c. 1636-670, Orfeu atrai os animais com a sua música,
Metamorfoses de Ovídio (título da série), gravura em metal, 167 x 216 mm, Rijskmuseum, Amsterdã.

A pintura de Bassono foi reproduzida por Jan van Ossenbeek no Theatrum Pictorum (livro n° 23, n° 103). Na gravura de
Ossenbeck faltam alguns animais que constam na de Crispijn, como o leão, por exemplo.

« J'ai sous les yeux une estampe flamande qui fait partie d'une suite des Métamorphoses d'Ovide, composée par des élèves de
Rubens. Voici des hommes qui, tout pleins de la manière et des habitudes de style de ce grand maître, sont insipides, parce qu'il
leur manque ce faire, cet idéal, ce souffle, dont Rubens est plein. On a représenté dans cette estampe Orphée attirant à lui les bêtes
par le son de son archet. Le violon est ici substitué à la lyre consacrée ; mais cet anachronisme ne choquait pas à cette époque. Au
son de cet archet et de ce violon, des animaux de toute espèce se sont rassemblés ; mais comment le peintre animera-t-il cette
réunion étrange ? Vous fera-t-il voir les oiseaux fendre les airs à tire-d'aile pour se percher le plus près possible de l’enchanteur ?
Les cerfs timides, étonnés d'être attirés hors de leurs retraites, dresseront-ils l'oreille tout inquiets ? Les panthères se rouleront elles
aux pieds du musicien dans de petites convulsions presque voluptueuses, en suivant du regard le divin archet et les sons qui
s’envolent ? Tout cela peut se passer dans l'imagination du lecteur sur l'énoncé de ce beau sujet ; mais, à coup sûr, Ovide l'avait vu
dans la sienne, et ses vers charmants ne laissent à cet égard que bien peu de chose à inventer à la pensée la plus féconde. Rien de
tout cela n'a frappé le Flamand : dans une plaine tout unie, il rassemble une foule paisible d'animaux, comme on les voit dans la
basse-cour ou dans une foire de bestiaux ; des moutons, des bœufs, des ânes et jusqu'à des dindons, imités à merveille à la vérité,
et chacun dans son allure se mêle tranquillement à quelques bêtes sauvages dont la contenance offre la même tranquillité et la
même modestie. La biche, le lièvre y coudoient les lions et les tigres ; tout ce monde semble venu là pour y prendre sa place
comme au concert, pendant que le singe se tient auprès du musicien, attentif à lui tourner les feuillets de son livre de musique »
[DELACROIX, Eugène, Proudhon, Revue des deux mondes, 1er novembre 1846, in : Œuvres Littéraires, pp. 146-7].
311

Fig. 65. Virgil Solis, P. Ovidii Metamorphosis, Frankfurt (1581), fol. 126 r.:
Eurydica vulneratur.

Fig. 66. Virgil Solis, P. Ovidii Metamorphosis, Frankfurt (1581), fol. 128 r.:
Orpheus apud ínferos.
312

Fig. 67. Ovide, Les Métamorphoses d'Ovide en latin, traduites en françois avec des remarques et des explications historiques, par
M. l'abbé Banier,... ouvrage enrichi de figures en taille douce gravées par B. Picart et autres.... Wetstein & Smith, Amsterdã,
1732.
313

Fig. 68. Les métamorphoses d'Ovide, trad. par M. l'abbé Banier, gravées par MM. Le Mire et Basan, Pissot (Paris), 1767, vol. 3, p.
189.
314

Fig. 69. Eugène Delacroix, Verão - Diana surpreendida por Acteão, 1856-63. Óleo sobre tela, 1,98 x 1,67 m. MASP, São Paulo.
315

Fig. 70. Detalhe ampliado do rosto de Diana na fig. 69.

Fig. 71. Eugène Delacroix, Estudo, possivelmente para o quadro do Verão das Estações Hartmann, Cabinet des
Dessins, Louvre, RF 9619, Recto.
316

Fig. 72. Francesco Albani, Acteão metamorfoseado em cervo, c. 1617. Óleo sobre tela, 52 x 61 cm. Musée du Louvre, Paris.

Fig. 73. Francesco Albani, Acteão metamorfoseado em cervo, c. 1640. Óleo sobre tela, 77 x 99 cm. Musée du Louvre, Paris.
317

Fig. 74. Ticiano, Diana e Calisto, c. 1566, óleo sobre tela, 183 x 200 cm, Kunsthistorisches Museum, Viena.

Fig. 75. A partir de Ticiano, gravado por Theodorus van Kessel, para o Theatrum Pictorium, de David Teniers, le Jeune,
Diana e Calisto, 1673, Galerie Nationale Slovaque, Bratislava. Delacroix menciona o álbum nos diários (Journal, I, p.
1060).
318

Fig. 76. Dominique Sornique, a partir de Louis Boullogne, o jovem, Acteão, neto de Cadmo, metamorfoseado em cervo (seguido
de um poema de Moraine), c. 1730-35, publicado por Basan, Paris.

Fig. 77. Louis Galloche, Diane et Actéon, 1732, oléo sobre tela, 81 x 46,5 cm, Saint-Pétersbourg, Hermitage (inv. 1163).
319

Fig. 78. Paul Bril, Diana descobrindo a gravidez de Calisto, c. 1615-1620, óleo sobre tela, 1,61x 2,06 m, Musée du
Louvre, Paris (Inv. 207).
320

Fig. 79. Eugène Delacroix, Banhistas ou Mulheres turcas no banho, 1854, óleo sobre tela, 92,7 x 78,7 cm,
Wadsworth Atheneum, Hartford.
321

Fig. 80. Eugène Delacroix, Outono - o encontro de Baco e Ariadne, 1856-63. Óleo sobre tela, 1,97 x 1, 67 m. MASP,
São Paulo.
322

Fig. 81. Eugène Delacroix, O triunfo de Baco, c. 1861, óleo sobre tela, 92 x 143 cm, Foundation E.G. Bührle, Zurique.

Fig. 82. Hughes Taraval, Outono ou Triunfo de Baco e Ariadne, 1769, óleo sobre tela, 3,05 x 4,10 m, Galerie
d’Apollon, Musée du Louvre, Paris.
323

Fig. 83. O encontro de Baco e Ariadne, in: Antiquités d'Herculanum (edição de 1804), planche XV.

Fig. 84. Original da prancha XV acima, Dioniso e Ariadne, Pompeia, 45-79 d. C., 76 x 63 cm, Museu Arqueológico
de Nápoles (Inv. 9271).
324

Fig. 85. Ariadne acordando, abandonada por Teseu, in: Antiquités d'Herculanum (edição de 1804), planche XIV.

Fig. 86. Ariadne acordando, abandonada por Teseu, séc. I d.C., 44.5 x 46.5 cm, British Museum, Londres, adquirido
em 1867 da coleção do Duc de Blacas D’Aulps (inv. 1867,0508.1358).
325

Fig. 87. Eugène Delacroix, Folha de caderno com estudo para as Quatro Estações de Talma, 1817-21. Grafite sobre papel, Musée du Louvre, Paris.

Fig. 88. Eugène Delacroix, Ceres (estudo para uma das pinturas do teto do Salon de la Paix, Hôtel de Ville, Paris), 1849-53. Óleo sobre tela, 19,7 x 37,5 cm.
Fitzwilliam Museum, Cambridge.

Fig. 89. Ariadne abandonada por Teseu na Ilha de Naxos. Cópia romana de um original da escola de Pérgamo, do séc. II a. C. Museu Vaticano.
326

Fig. 90. Eugène Delacroix, Baco, afresco pintado em Valmont, Normandia, 1834, 57 x 89 cm,
Musée Eugène Delacroix, Paris.
327

Fig. 91. Esboço de Louis de Boullogne, o Jovem, Baco e Ariadne, preparação para mise au carreau, 20 x 28 cm,
Cabinet des Dessins, Louvre (Inv. 24899, Recto), INVERTIDO HORIZONTALMENTE.

Fig. 92. Charles de La Fosse, Baco e Ariadne, 1699, óleo sobre tela, 242 x 185 cm, Musée des Beaux-Arts de Dijon (Inv.
CA 344).
328

Fig. 93. Cartão postal com foto do Trou au chien, Fécamp, França.

Fig. 94. Eugène Delacroix, La falaise d’Étretat, c. 1849, 23 x 14 cm. Aquarela realçada com guache. Museum Boijmans Van Beuningen, Rotterdam.
329

Fig. 95. Eugène Delacroix, Inverno – Juno implora a Éolo a destruição da frota da Eneias, 1856-63. Óleo sobre tela,
1,98 x 1,66 m.
330

Fig. 96. Jean-Jacques Lagrenée, o jovem, O Inverno ou Éolo desacorrentando os ventos que cobrem as
montanhas de neve, 1775, óleo sobre tela, 3,20 x 3,20 m, compartimento do teto da Galerie d'Apollon e
pintura apresentada para ingresso do artista na Academia, Musée du Louvre, Paris.
331

Fig. 97. Charles Dupuis, a partir de Louis de Boullogne, O Ar : Juno ordena a Éolo que desacorrente os ventos, 1718, água-
forte/buril, 56 cm x 76 cm (folha), Chalcographie du Musée du Louvre, Paris (Inv. 868).
332

Fig. 98. Samuel Massé, Juno ordena a Éolo aue destrua a frota de Enéas, 1727, oléo sobre tela, Musée des Beaux-arts
Nancy.

Fig. 99. Jean Restout (1692-1768), Junon na morada de Éolo, 1727, óleo sobre tela, 180 x 247 cm, Hermitage, São Petersburgo.
333

Fig. 100. François Boucher, Juno pedindo a Éolo que liberte os ventos da montanha, 1769, óleo sobre tela,
278.2 x 203.2 cm, Kimbell Art Museum, Texas (Inv. AP 1972.08).
334

Fig. 101a. François Boucher, a partir de Antoine Watteau, 1735, As Quatro Estações, Bibliothèque de
l'Institut National d'Histoire de l'Art, collections Jacques Doucet, disponível em: https://bibliotheque-
numerique.inha.fr/viewer/18653/?offset=#page=33&viewer=picture&o=info&n=0&q=
335

Fig. 101b. François Boucher, a partir de Antoine Watteau, 1735, As Quatro Estações, Bibliothèque de
l'Institut National d'Histoire de l'Art, collections Jacques Doucet, disponível em: https://bibliotheque-
numerique.inha.fr/viewer/18653/?offset=#page=33&viewer=picture&o=info&n=0&q=
336

Fig. 102. Eugène Delacroix, Pôr do sol, estudo associado à pinura do teto da Galeria de Apolo, c. 1850, pastel sobre
papel azul, 20.4 x 25.9 cm, Metropolitan Museum, Nova York (2014.732.4).
.
337

PARTE 1
Capítulo 3

O problema do inacabado
IMAGENS
338

Fig. 103. Radiografias de A forja de Vulcano e de A rendição de Breda, de Diego Velázquez, ambos no Prado, Madrid. In :
BROWN; GARRIDO: 1998, pp. 52 e 84, figuras 5g e 12c respectivamente.
339

Fig. 104. Noël Hallé, A educação dos ricos, 1764-5, Salon de 1765, óleo sobre tela, 34,3 x 42,5 cm, Coleção particular.

Fig. 105. Jean-Baptiste Greuze, O filho ingrato, c. 1765, Salon de 1765, aguada com tinta escura e realces em cores sobre
papel branco, 32 x 42,6 cm, Musée Wicar, Lille.
340

Fig. 106. Jacques Louis David, Funeral de Pátroclo, aguada cinza e realce em branco sobre esboço em pierre noire em
quatro folhas de papel justapostas, 332 x 00,758 m, Cabinet des Dessin, Musée du Louvre, Paris (RF 4004, Recto).
341

Fig. 107. Carjat & Cie, Retrato de Delacroix, 1862, Musée D’Orsay, Paris.
342

Fig. 108.Ticiano, Pietà, 1575-1576, oléo sobre tela, 389 cm × 351 cm, Galleria dell'Accademia, Veneza.
343

Fig. 108a. Detalhe da Pietà de Ticiano da imagem anterior.


344

Fig. 109. Rembrandt van Rijn, Autorretrato, 1659, óleo sobre tela, 84.5 x 66 cm, National Gallery of Art, Washington D.C.
345

Fig. 109a. Detalhes do autorretrato de Rembrandt da imagem anterior.


346

Fig. 110. Rembrandt van Rijn, Retrato do artista diante do cavalete, 1660, óleo sobre tela, 1,11 x 0,85 m,
Musée du Louvre, Paris, adquirido em 1671. [Delacroix deve tê-lo visto]
347

Fig. 111. Ed. Albertini, Mostra das obras de Delacroix na galeria Martinet, boulevard des Italiens, em
1864, óleo sobre tela, Musée Carnavalet, Paris.
348

Fig. 112. Eugène Delacroix, Tigre ameaçado por uma serpente, c. 1858, óleo sobre papel colado em madeira, 32 x 40cm,
Kunsthalle Hambourg.

Fig. 113. Eugène Delacroix, Tigre rugindo para uma serpente, 1862, óleo sobre tela, 33 x 41cm, Corcoran Gallery of Art,
Washington, D.C.
349

Fig. 114a. Eugène Delacroix, Orfeu indo ao socorro de Eurídice, 1862, óleo sobre tela, 61x 50,5 cm, Musée
Fabre, Montpellier.

Fig. 114b. Eugène Delacroix, Primavera, MASP.


350

Fig. 115a. Eugène Delacroix, Outono, MASP.


351

Fig. 115b. Delacroix, Esboço (esquisse) para o Outono, 61.5 x 50.5 cm, Fogg Museum, Harvard.

Fig. 115c. Pierre Andrieu, cópia do esboço (esquisse) do Outono, 28.6 x 23.5 cm, Museum of Fine Arts,
Boston.
352

Fig. 116a. Laguillermie, a partir de Delacroix, O Inverno, Galerie Durand-Ruel : recueil d’estampes gravées
à l’eau-forte, tirage exécuté par A. Salmon, 7e livraison, Paris, Londres, Bruxelas, 1973, Prancha LXVI.
353

Fig. 116b. Eugène Delacroix, Juno e Éolo (esboço), 1862, óleo sobre tela, 61 x 49,5 cm, Coleção particular.
354

Fig. 116c. Pierre Andrieu, cópia do esboço (esquisse) do Inverno, 28.6 x 23.5 cm, óleo sobre papel, Museum
of Fine Arts, Boston.
355

Fig. 117. Laguillermie, a partir de Delacroix, O Verão, Galerie Durand-Ruel : recueil d’estampes gravées à
l’eau-forte, tirage exécuté par A. Salmon, 12e livraison, Paris, Londres, Bruxelas, 1973, Prancha CXII.
356

118. Radiografia em infravermelho da Primavera de Delacroix, C2RMF, Paris.


357

119. Radiografia em infravermelho do Verão de Delacroix, C2RMF, Paris.


358

120. Radiografia em infravermelho do Outono de Delacroix, C2RMF, Paris.


359

121. Radiografia em infravermelho do Inverno de Delacroix, C2RMF, Paris.


360

Fig. 122. Detalhes das pernas da ninfa que socorre Eurídice e de Acteão dos quadros do MASP (fotografia
colorida com luz rasante, C2RMF, Paris.)
361

Fig. 123. Eugène Delacroix, A caça aos leões, c. 1854, óleo sobre tela, 86 x 115 cm, Musée D’Orsay, Paris.

Fig. 124. Eugène Delacroix, A caça aos leões, 1855, óleo sobre tela, 57 x 74 cm, Stockholm National Museum (Inv. NM
6350). Esboço submetido ao governo.
362

Fig. 125a. Eugène Delacroix, A caça aos leões, 1855, Exposition Universelle de 1855, óleo sobre tela, 175 x 360 cm, Musée
des Beaux-Arts de Bordeaux (inv. Bx E 469). A parte superior foi perdida num incêndio.

Fig. 125b. Detalhe da imagem acima.


363

Fig. 126. Eugène Delacroix, notas da viagem ao Maghreb e à Andaluzia, Carnet de Chantilly, Musée Condé,
Chantilly (Ms390).
364

Fig. 127. Auguste Préault, Medalhão de Eugène Delacroix,1864, tinta marrom sobre papel bege, 16,7 x 12,6
cm, Cabinet des dessins, Musée du Louvre, Paris, (RF 29751, Recto).
365

Fig. 128a. Eugène Delacroix, Mulheres de Argel em seu apartamento, 1834, óleo sobre tela, 180 x 229 cm, Musée du
Louvre, Paris (INV 3824).

Fig. 128b. Detalhe da imagem anterior.


366

PARTE 2
Capítulo 1

O comitente

IMAGENS
367

Fig. 129. Jacques Félix Frédéric Hartmann (1822-1880)


Archives de l’Industrie Hartmann, Munster.
368

Fig. 130. Litografia mostrando o complexo das indústrias Hartmann em Munster e arredores, 1893.
369

Fig. 131. As duas igrejas de Munster, França, em 2017.

Fig. 132. A igreja católica, construída em torno de 1590, e a igreja protestante, construída em 1873, ambas em Munster.
Foto de 2017.
370

Fig. 133. Igreja de Saint-Martin, em Pffaffenhein, Alto Reno, Alsácia. Foto de 1859, extraída do álbum Alsace photographiée, de
Adolphe Braun, disponível em Gallica : www.gallica.bnf.fr (consultado em setembro de 2019).
371

Fig. 134. Atribuído a Francesco Mazzola, dito Parmigianino, Retrato de jovem,


pintura sobre madeira, 59 x 44 cm, Musée du Louvre, Paris. (Coleção de Louis XIV, adquirido do duque de Richelieu em 1665.)

Fig. 135. Rafael Sanzio, Retrato de um jovem (perdido durante a II Guerra), início do séc. XVI, Czartoryski Collection, National Museum, Cracóvia.
372

Fig. 136. Ateliê de Delacroix na Rue Notre-Dame de Lorette, n° 54, gravura publicada no l’Illustration.
373

Fig. 137. Eugène Delacroix, O imperador do Marrocos, 1856, óleo sobre tela, 65 x 55cm, coleção
particular, Nova York (J401). Versão reduzida do quadro de 1845, hoje no Musée des Augustins,
Toulouse (J370).
374

Fig. 138. Delacroix, Orfeu e Eurídice (esboço), 1862 Fig. 139. Delacroix, Diana e Acteão (esboço), 1862 (id.),
(datado por Robaut/Chesneau), óleo sobre tela, 61x 50,5 óleo sobre tela, 61,3x50cm, Mahmoud Khalil Museum,
cm, Musée Fabre, Montpellier (J244). Adquirido por Pierre Cairo (J245). Adquirido por Haro na venda póstuma de
Andrieu na venda póstuma de Delacroix. Delacroix.

Fig. 140. Delacroix, Baco e Ariadne (esboço), 1862 (id.), Fig. 141. Delacroix, Juno e Éolo (esboço), 1862 (id.), óleo
óleo sobre tela, 61.5 x 50.5 cm, Fogg Museum (J246). sobre tela, 61 x 49,5 cm, Coleção particular (J247).
Adquirido por Haro na venda póstuma de Delacroix. Adquirido por Pierre Andrieu na venda póstuma de
Delacroix.
375

Fig. 142a. Eugène Delacroix, Le Printemps : Eurydice Fig. 142b. Eugène Delacroix, L’Été : Diane surprise au bain
cueillant des fleurs est mordue par un serpent (la mort par Actéon, 1856-1863, huile sur toile, 197.5 x 166 cm,
d’Eurydice), 1856-1863, huile sur toile, 197.5 x 166 cm, MASP.
MASP.

Fig. 142c. Eugène Delacroix, L’Automne : Bacchus et Fig. 142d. Eugène Delacroix, L’Hiver : Junon implore d’Éole
Arianne, 1856-1863, huile sur toile, 197.5 x 166 cm, MASP. la destruction de la frotte d’Énée, 1856-1863, huile sur toile,
197.5 x 166 cm, MASP.
376

Fig. 143. Eugène Delacroix, O triunfo de Baco, c. 1861, óleo sobre tela, 92 x 143 cm, Sammlung E. G. Bührle.

Fig. 144. Eugène Delacroix, O triunfo de Anfitrite, c. 1861, óleo sobre tela, 92 x 143 cm., Sammlung E. G. Bührle.
377

Fig. 145. Théodore Rousseau, Fazenda em Les Landes (Ferme dans Les Landes), 1844-1847, óleo e carvão sobre
tela, 64 x 98 cm, Ny Carlsberg Glyptotek, Danemark (inv. nr. SMK 3269).
Grisaille que Hartmann deve ter visto em sua primeira visita ao ateliê de Rousseau.
378

Fig. 146. Théodore Rousseau, Um pântano em Les Landes (Un marais dans les Landes), 1852, óleo sobre tela, 63 x 97 cm, Musée du
Louvre.

Fig. 147. Théodore Rousseau, Fazenda em Les Landes (Ferme dans Les Landes), c.1852-67, óleo sobre tela, 64.8 x 99.1 cm, Clark Art
Institute.
379

Fig. 147a. Detalhes do quadro do Marais, de Rousseau, com as vacas que Hartmann gostava muito de olhar,
conforme sua carta ao pintor de 18 de abril de 1859.
380

Fig. 148. Théodore Rousseau, O desfiladeiro de Apremont, Floresta de Fontainebleau (Le Gorges d’Apremont, Forêt de
Fontainebleau), 1857, óleo sobre tela, 64.8 x 100.3 cm, Middlebury College Museum of Art.
381

Fig. 149. Théodore Rousseau, Vilarejo de Becquigny (Village de Becquigny), c. 1857-1867, óleo sobre tela, 63.5 x 100 cm, Frick
Collection.

Fig. 151. Paulus Potter, O cavalo pintado, 1653, 30


x 41 cm, Musée du Louvre.

Fig. 150. Aert van der Neer, Vilarejo atravessado por uma
estrada, début des années 1660, 69 x 61 cm, Musée du
Louvre.
382

Fig. 152. Théodore Rousseau, O forno comunitário (Le Four Comunnal), 1852-1869, óleo sobre tela, 62 x 98 cm,
Museum der bildenden Künste, Leipzig.

Fig. 153. Jacob van Ruisdael, Caminho entre as dunas do Haarlem, conhecido no séc. XIX como O Arbusto (Le
Buisson), c. 1649, óleo sobre tela, 68 x 82 cm, Musée du Louvre (Inv. 1819).
383

Fig. 154. As Estações de Jean-François Millet para Thomas : L’Automne (teto) e L’amour transi ou l’Hiver. In : MOREAU-
NÉLATON, Étienne, Millet raconté par lui-même, t. II, 1921, pp. 157-160.
384

Fig. 155. Jean-François Millet, Le Printemps ou Daphné et Chloé, 1864-1865, óleo sobre tela, 235.5 × 134.5 cm,
National Museum of Western Art, Tokyo. (Disponível no Google Art Project.)
385

Fig. 156. Jean-François Millet, L'Été ou Cérès,1864-1865, óleo sobre tela, 266 x 135 cm,
Musée des Beaux-Arts de Bordeaux.
386

Fig. 157. G. Engelmann d’après le dessin de Jean Mieg, La filature du Hammer, 1823, lithographie,
Archives Municipales de Munster.

Fig. 158. G. Engelmann d’après le dessin de Jean Mieg, Fabrique d’indiennes à Munster, 1823, lithographie,
Archives Municipales de Munster.
387

Fig. 159. Vistas e lugares do Vale de Munster na Alsácia, desenho de Henri Lebert para as manufaturas Hartmann, 1818, impressão
sobre algodão, Archives Municipales de Munster.

Fig. 160. Tissu de personnage (detalhe de uma variante, mostrando a usina de fiação Hartmann),
Coleção do Musée de l’Impression sur l’Étoffe, Mulhouse.
388

Fig. 161. Duas vistas de Munster do álbum de fotografias da Alsácia de Adolphe Braun, 1859.
389

Fig. 162. (esq.) Jean-François Millet, O Arco-Íris, c. 1872-73, pastel, 42 cm x 54 cm, Museu Calouste Gulbenkian,
Lisboa, Inv. 88. / Fig. 163. (dir.) Jean-François Millet, A colheita de trigo sarraceno, c. 1868-70, pastel, 75.9 x 97.8
cm, Museum of Fine Arts, Boston, 06.2425.

Fig. 164. (esq.) Jean-François Millet, Montes de feno, c. 1867-8, pastel, 71.5 cm x 93.5 cm, The Mesdag Collection,
The Hague./ Fig. 165. (dir.) Jean-François Millet, Entrada da floresta de Barbizon no Inverno, c. 1866–67, pastel,
51.5 x 40.6 cm, Museum of Fine Arts, Boston, 17.1491.
390

Fig. 166. Jean-François Millet, A Primavera (O arco-íris), 1868 -73, Fig. 167. Jean-François Millet, O Verão (Os batedores de trigo
óleo sobre tela, 86 x 111 cm, Musée D’Orsay, Paris. sarraceno), 1868–74, óleo sobre tela, 85 x 111 cm, Museum of
Fine Arts, Boston.

Fig. 168. Jean-François Millet, O outono (Montes de feno), c. 1874, Fig. 169. Jean-François Millet, O Inverno (Porteira na neve, solidão),
óleo sobre tela, 85 x 110 cm, Metropolitan Museum, New York. 1868–74, óleo sobre tela, 85 x 110 cm, Philadelphia Museum of Art.

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