Domenico Losurdo - Contra-História Do Liberalismo
Domenico Losurdo - Contra-História Do Liberalismo
Domenico Losurdo - Contra-História Do Liberalismo
T CONTRA-HISTóRIA DOÿ
LIBERALISMO
2a edição
Domenico Losurdo
JITDé’IAS&
%LETRAS
Por meio de uma surpreendente meto¬
dologia de pesquisa, manejada com maestria,
e uma investigação histórica e filosófica inédita
e corajosa, o professor Losurdo vira ao avesso
a história do liberalismo convencionalmente
divulgada e ensinada. Os resultados que o
leitor poderá verificar nas páginas desta obra
são impactantes e polêmicos.
Como o próprio autor explicita, “ésó para
chamar a atenção sobre aspectos até agora
ampla e injustamente ocultados que o autor
deste livro fala de contra-história'. Pelo
resto, trata-se de uma história da qual é
necessário apenas focalizar o objetivo: não o
pensamento liberal em sua abstrata pureza,
mas o liberalismo, quer dizer, o movimento e
as sociedades liberais em sua concretização.
Tal como para qualquer outro grande
movimento histórico, trata-se de indagar
certamenle as elaborações conceituais, mas
também e acima de tudo as relações políticas
e sociais nas quais ele se manifesta, assim
como a ligação mais ou menos contraditória
que se instaura entre essas duas dimensões
da realidade”.
J
CONTRA-HISTÓRIA
DO LIBERALISMO
DOMENICO LOSURDO
CONTRA-HISTÓRIA
DO LIBERALISMO
J1IDÉIAS&
%LETRAS
Dianoais EOHOUAS: TMOUçAO:
Carlos da Silva Giovanni Semersro
Marcelo C. Araújo RCVKAO:
Ana Lúcia de Castro Leite
EOTTOMS:
Avelino Grassi DWGRAMAçAú:
Roberto Girola Alex Luís Siqueira Samos
t IDÉIAS &
LETRAS
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I. O que é o liberalismo? - 13
1. Um conjunto de perguntas constrangedoras, p. 13 - 2. A revolução
americana e a revelação de uma verdade constrangedora, p. 19 - 3. O papel
da escravidão entre os dois lados do Atlântico, p. 24 - 4. Holanda, Inglaterra,
América, p. 27 - 5. Irlandeses, índios e habitantes de Java, p. 29 - 6. Grotius,
Lockc c os Pais Fundadores: uma leitura comparada, p. 33 - 7. Historicismo
vulgar e a remoção do paradoxo do liberalismo, p. 39 - 8. Expansão colonial
e renascimento da escravidão: as posições de Bodin, Grotius e Locke, p. 42
1
Tocqueville ( 1951-)» vol. II, t. 1, p. 69-70 (O Antigo regime e a revolução, de agora cm
diante AR, Prefácio).
12 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
D.L.
I
O que é o liberalismo?
17
Calhoun, 1992, p. 374.
"Cranston, 1959, p. 1 14-15; Thomas, 1977, p. 199,201.
'* Calhoun, 1992, p. 590.
w Freidcl, 1968, p. 278, 235-59.
7. O que é o liberalismo ? 17
Observe-se, agora, um contemporâneo de Locke. Andrew Fletcher é
um “campeão da liberdade” e, ao mesmo tempo, um “campeão da escravi¬
dão” . No plano político ele declara ser “um republicano por princípio” ; e
no plano cultural é “um profeta escocês do iluminismo” ; ele também foge
para a Holanda na onda da conspiração antijacobita e antiabsolutista, exata¬
mente como Locke, com o qual mantém correspondência epistolar . A fama
de Fletcher atravessa o Adântico: Jefferson o define um “patriota”, ao qual
cabe o mérito de ter expressado os próprios “princípios políticos” dos “pe¬
ríodos mais puros da Constituição Britânica”, os que depois se enraizaram
c prosperaram na América25 livre. Quem manifesta posições muito parecidas
com as de Fletcher é um seu contemporâneo e conterrâneo, James Burgh,
que também goza da estima dos ambientes republicanos à la Jefferson* e é
mencionado com simpatia por Thomas Paine, no opúsculo mais célebre da
revolução americana ( Common Sense) .
No entanto, à diferença dos outros autores, caracterizados como eles
pelo singular entrelaçamento de amor pela liberdade e legitimação ou reivin¬
dicação da escravidão, Fletcher e Burgh hoje estão praticamcnte esquecidos
e ninguém parece incluí-los entre os expoentes da tradição liberal. O fato é
que, ao ressaltar a necessidade da escravidão, eles pensam cm primeiro lugar
não nos negros das colónias, mas nos “vagabundos”, nos mendigos, na plebe
ociosa e incorrigível da metrópole. Devemos considerá-los iliberais por esse
motivo? Se assim fosse, o que distingue os liberais dos que não são seria a
condenação do instituto da escravidão não apenas a discriminação negativa
contra os povos de origem colonial.
A Inglaterra liberal nos coloca diante de um caso ainda diferente. Fran¬
cis Hutcheson, um filósofo moral com alguma visibilidade (é o “inesquecí¬
vel” mestre de Adam Smith28), por um lado manifesta críticas e reservas em
relação à escravidão à qual estão submetidos de maneira indiferenciada os
negros; por outro lado sublinha que, principalmente quando se lida com os
“níveis mais humildes” da sociedade, a escravidão pode scr uma “punição
útil”: ela deve scr o “castigo normal para aqueles vagabundos preguiçosos
'ÿ
Morgan, 1972, p. 11; cf. Marx, Engcls, 1955-89, vol. XXII, p. 750, nota 197.
,J
Marx, Engcls, 1955-89, vol. XXIII, p. 750, nota 197.
” Morgan, 1995, p. 325.
14 Bourne, 1969, vol. 1, p. 481; Lockc, 1976-89, vols. V-Vll, passim.
Jefferson, 1984, p. 1134 (carta a conde de Buchan, 10 de julho de 1803).
Jò
Morgan, 1995, p. 382; Pocock, 1980, p. 888.
17
Paine, 1995, p. 45 nota.
JI Smith, 1987,
p. 309 (carta a A. Davidson, 16 de novembro de 1787).
18 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
que, mesmo depois de ter sido justamente advertidos c submetidos à servi¬
dão temporária, não conseguem sustentar a si próprios e às suas famílias com
um trabalho útil” . Estamos na presença de um autor que, mesmo sentindo
o mal-estar pela escravidão hereditária e racial, reivindica por outro lado uma
espécie de escravidão penal para aqueles que, independentemente da cor da
pele, seriam culpados de vadiagem: é liberal Hutcheson?
Situado temporalmente entre Locke e Calhoun, e olhando para a rea¬
lidade aceita por ambos como óbvia e pacífica ou até celebrada como um
“bem positivo”, Adam Smith formula um raciocínio e expressa uma prefe¬
rência que merecem ser relatados por extenso. A escravidão pode ser mais
facilmente suprimida em um “governo despótico” do que em um “governo
livre”, cujos organismos representativos ficam exclusivamente reservados aos
proprietários brancos. Nesse caso, é desesperadora a condição dos escravos
negros: “toda lei é feita pelos seus donos, os quais nunca vão deixar passar
uma medida desfavorável a eles”. E, portanto: “A liberdade do homem livre é
a causa da grande opressão dos escravos [...]. E uma vez que eles constituem
a parte mais numerosa da população, pessoa alguma imbuída de humanidade
vai desejar a liberdade em um país no qual foi estabelecida esta instituição”30.
Pode ser considerado liberal um autor que, pelo menos em um caso concre¬
to, exprime a sua preferencia por um “governo despótico”? Ou, com uma di¬
versa formulação: é mais liberal Smith ou Locke e Calhoun que, juntamente
com a escravidão, defendem os organismos representativos condenados pelo
primeiro enquanto sustentáculo, no âmbito de uma sociedade escravista, de
uma instituição infame e contrária a todo o sentido de humanidade?
Na verdade, como havia previsto o grande economista, a escravidão é
abolida nos Estados Unidos não graças ao governo local, mas pelo punho de
ferro do exército da União e pela ditadura militar imposta por algum tempo.
Nessa ocasião, Lincoln é acusado pelos seus adversários de despotismo e de
jacobinismo: recorre a “governos militares” e “tribunais militares” e interpreta
“a palavra ‘lei’ “como a “vontade do presidente” e o habeas corpus como o
“poder do presidente de aprisionar qualquer um e pelo período de tempo que
lhe agradar” . Na formulação desse ato dc acusação, além dos expoentes da
Confederação secessionista, estão aqueles que aspiram a uma paz acordada, até
para voltar à normalidade constitucional. E aqui novamente somos obrigados
a nos colocar a pergunta: é mais liberal Lincoln ou os seus antagonistas do Sul,
ou os seus adversários que no Norte se pronunciam a favor do compromisso?
* Davis, 1971, p. 423-27; p. 42:
“Smith, 1982, p. 452-53, 182.
" Schlesinger Jr., (org.) 1973, p. 915-21.
/. O que é o liberalismo ? 19
Vimos Mill tomar posição a favor da União e condenar os “autodeno¬
minados” liberais que gritam escandalizados diante da firmeza com que ela
conduzia a guerra contra o Sul c controlava aqueles que, no próprio Nor¬
te, se inclinavam a aceitar a secessão escravista. Mas, veremos que, com o
olhar voltado para as colónias, o liberal inglês justifica o “despotismo” do
Ocidente sobre as “raças” ainda em “menoridade”, obrigadas a observar
uma “obediência absoluta”, de modo que possam ser postas no caminho do
progresso. É uma formulação que não iria desagradar Calhoun, que também
legitima e celebra a escravidão quando ele também se refere ao atraso e à
menoridade da população de origem africana: só na América, e graças aos
cuidados paternais dos patrões brancos, a “raça negra” consegue avançar
e passar da anterior “condição ínfima, degradada c selvagem” para a nova
“condição rclativamente civilizada” . Para Mill, “qualquer meio” é lícito
para quem assume a tarefa de educar as “tribos selvagens”; a “escravidão”
às vezes é uma passagem obrigatória para conduzi-las ao trabalho e torná-las
úteis à civilização e ao progresso {infra, cap. VII, § 3). Mas esta é também a
opinião de Calhoun, para o qual a escravidão é um meio inevitável para che¬
gar a civilizar os negros. Claro, diferentemente da eterna escravidão à qual,
conforme o teórico e político estadunidense, devem ser submetidos os ne¬
gros, a ditadura pedagógica de que fala Mill está destinada a se dissolver em
um futuro, embora remoto e problemático; o outro lado da medalha é que a
esta condição de falta de liberdade está explicitamente subjugado não apenas
um grupo étnico particular (o pequeno pedaço de África situado no coração
dos Estados Unidos), mas também o conjunto dos povos progressivamente
tomados pela expansão colonial c obrigados a sofrer o “despotismo” político
e formas de trabalho servil ou semi-servil. Exigir a “obediência absoluta”,
por um período de tempo indeterminado, de grande parte da humanidade é
compatível com a profissão de fé liberal ou é sinónimo de “autodenomina¬
do” liberalismo?
31
Calhoun, 1992, p. 473.
20 CONTRA- H ISTÓRI A DO LIBERALISMO
estatal e constituíram, por assim dizer, um só partido político. Antes da cri¬
se que leva à revolução americana, nos dois lados do Atlântico, os ingleses
se sentem súditos ou cidadãos orgulhosos de “um país, talvez o único, no
universo cm que a liberdade civil ou política é o verdadeiro fim e o objetivo
da Constituição”. Quem assim se expressa c Blackstone. Para confirmar a
sua tese ele remete a Montesquieu que fala da Inglaterra como sendo “uma
nação que tem como objetivo preciso da sua a liberdade polí¬
Constituirão
tica” (De I’csprit des lots, de agora em diante EL, XI, 5) . Sim, nem o liberal
francês tem dúvidas quanto ao fato de que “a Inglaterra é atualmente o país
mais livre do mundo, sem excluir república alguma”34, a “nação livre” por
excelência, o “povo livre” por excelência (EL, XIV, 13; XIX, 27).
Neste momento, nenhuma sombra parece pairar sobre as relações entre
os dois lados do Atlântico. Não há conflitos e nem poderia haver, pelo menos
para Montesquieu, pelo fato de que também na sua relação com as colónias
é o amor pela liberdade que caracteriza a Inglaterra:
“Se esta nação estabelecesse colónias longínquas, o faria para ampliar ainda mais
o próprio comércio do que o próprio domínio.
Uma vez que se deseja estabelecer em outros lugares o que está já consolidado
entre nós, ela daria aos povos das colónias a sua mesma forma de governo, e já que
esse governo carrega consigo a prosperidade, veríamos a formação de grandes povos
até nas florestas destinadas para a sua habitação” (EL, XIX, 27).
30
Potter, 1983, p. 115-16.
*' Burke, 1826, vol III, p. 123-24, 66 (- Burke, 1963, p. 142-43, 100).
“ Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 153.
"Burke, 1826, vol. III, pp 135.
40
Shain, 1994, p. 290.
41
Potter, 1983, p. 16.
22 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
troncos nos quais o partido liberal se dividiu retomam, um contra o outro,
a ideologia e a retórica que haviam caracterizado a auto-exaltação da nação
inglesa no seu conjunto como inimiga jurada da escravidão política.
A novidade consiste no fato de que, na onda da troca de acusações, jun¬
tamente com a política, irrompe pesadamente na polêmica também a outra
escravidão, aquela que ambas as partes haviam removido como elemento
incómodo da sua orgulhosa autoconsciência de membros do povo e do par¬
tido da liberdade. Para os colonos rebeldes o governo de Londres, que im¬
põe soberanamente a taxação a cidadãos ou súditos que inclusive não estão
representados na Câmara dos Comuns, comporta-se como um patrão em
relação aos escravos. Mas - objetam os outros - se for mesmo necessário falar
de escravidão, por que não começar a colocar em discussão aquela que se
manifesta de forma brutal e evidente exatamente onde com maior grandilo-
quência se aclama a liberdade? Já em 1764, Franklin, na época em Londres
para defender a causa dos colonos, deve enfrentar os comentários sarcásticos
dos seus interlocutores:
41
Franklin, 1987, p. 646-47.
41
Foncr, 2000, p. 54.
44 Boucher, rit. in Zimmer, 1978, p. 297.
I. O que é o liberalismo ? 23
Com tanta dureza não falam apenas as personalidades mais diretamente
envolvidas na polêmica e na luta política. É, particularmente, mordaz a inter¬
venção de John Millar, expoente de primeira linha do iluminismo escocês:
“É singular que os mesmos indivíduos que falam com estilo refinado dc liber¬
dade política e que consideram como um dos direitos inalienáveis da humanidade o
direito dc impor as taxas não tenham escrúpulo em reduzir uma grande quantidade
dos seus semelhantes a condições de serem privados não apenas da propriedade,
mas também de quase todos os direitos. Provavelmente, a sorte nunca produziu
uma situação maior do que esta para ridicularizar uma hipótese liberal ou mostrar
quanto a conduta dos homens, no fundo, seja pouco dirigida por algum princípio
filosófico”4S.
Millar é um discípulo de Adam Smith. O mestre, também, parece pensar
da mesma forma. Quando declara que ao “governo livre”, controlado pelos
proprietários de escravos, prefere o “governo despótico” capaz de cancelar
a infâmia da escravidão, fàz explícita referência à América. Posto em termos
imediatamente políticos, o discurso do grande economista significa: o despo¬
tismo acusado na Coroa é preferível à liberdade reivindicada pelos proprie¬
tários de escravos c que beneficia apenas uma restrita classe de fazendeiros e
patrões absolutos”.
Os abolicionistas ingleses pressionam mais. Conclamam na defesa das
instituições britânicas, ameaçadas pelos “modos arbitrários e desumanos que
prevalecem cm um longínquo país”. Arbitrários e desumanos a tal ponto
que, como mostra um classificado do “New York Journal”, uma mulher ne¬
gra e seu filho de três anos são vendidos separadamente no mercado, como
se fossem uma vaca c um bezerro. E, portanto, - conclui em 1769 Granville
Sharp - não podemos ser levados ao engano pela “grandiloqiiência teatral
e pelas declamações em honra da liberdade”, às quais recorrem os rebeldes
escravistas; contra eles é preciso defender com firmeza as livres instituições
inglesas*'.
Os acusados, por sua vez, reagem desmascarando a hipocrisia da Ingla¬
liberdade”, mas quem
terra: ela enaltece a sua “virtude” e o seu “amor pela
promoveu c continua a promover o comércio dos negros? É desta forma que
Benjamin Franklin argumenta, levantando uma motivação que depois se
45
Millar, 1986, p. 294 (- Millar, 1989, p. 239).
44
Sharp, cit. in Davis, 1975, p. 272-73, 386-87.
4T
Franklin, 1987, p. 648-49.
24 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
torna central no projeto inicial de Declaração de independência elaborado
por Jefferson. Eis como, na versão original desse documento solene, são acu¬
sados a Inglaterra liberal derivada da Revolução Gloriosa e George III. Este
promoveu uma guerra cruel contra o próprio gênero humano, violando os
mais sagrados direitos à vida e à liberdade das pessoas de um povo longínquo
que nunca lhe causou ofensa, tornando-as prisioneiras e transportando-as
como escravas para um outro hemisfério, ou condenando as a uma esquálida
morte durante o translado. Essa guerra de piratas, vergonha das potências
infiéis, c a guerra do rei CRISTÀO de Grã- Bretanha. Determinado a manter
aberto um mercado onde se vendem e compram HOMENS, ele prostituiu
o seu direito de veto ao reprimir qualquer tentativa legislativa que impedisse
ou limitasse esse execrável comércio” .
11
Burke, 1826, vol. Ill, p. 67-68 (- Burke, 1963, p. 101-102).
«Blackburn, 1990, p. 80.
M Drcschcr, 1987, p. 174, nota 34.
M Drcschcr, 1987, p. 170, nota 19.
26 CONTR A- H ISTÓ RI A DO LIBERALISMO
conhece: “Todo esse aumento da nossa riqueza deriva em grande parte do
trabalho dos negros nas plantações” . O Segundo, Malachy Postlethwayt,
empenhado em defender o papel da Royal African Company, a sociedade
que administra o comércio dos escravos, é ainda mais claro: “O comércio dos
negros e as naturais consequências que derivam disso podem ser certamente
avaliadas como uma inesgotável reserva de riqueza e de poder naval para esta
nação”; são “o princípio primeiro e o fundamento de tudo, a mola principal
que movimenta todas as rodas” ; o império britânico no seu conjunto não
passa de “uma magnífica superestrutura” daquele comércio . Enfim, o peso
político do instituto da escravidão. Embora obviamente inferior ao que exer¬
ce nas colónias americanas, certamente não é irrelevante na Inglaterra: no
Parlamento de 1790 havia duas ou três dúzias de membros com interesses
nas índias ocidentais5*.
Em conclusão. A troca de acusações entre colonos rebeldes c ex-pá-
tria-mãe, ou seja, entre os dois troncos do partido que até então havia
se vangloriado de ser o partido da liberdade, é uma recíproca, impiedosa
desmistificação. A Inglaterra que desponta da Revolução Gloriosa não se
limita a evitar a discussão sobre o comércio dos negros; não, esta conhece
agora um poderoso desenvolvimento c, por outro lado, um dos primeiros
atos de política internacional da nova monarquia liberal consiste em arran¬
car da Espanha o monopólio do comércio dos escravos. No lado oposto, a
revolução que eclode na outra margem do Atlântico em nome da liberdade
comporta a consagração oficial do instituto da escravidão e a conquista e o
exercício por longo tempo da hegemonia política por parte dos proprietá¬
rios de escravos.
Talvez, a intervenção mais articulada e mais sofrida no âmbito dessa po¬
lêmica veio de Josiah Tucker, “padre e tory, mas de resto uma boa pessoa e
um valioso economista”*0. Ele denuncia o papel proeminente da Inglaterra
no comércio dos negros: “Nós, os orgulhosos Campeões da Liberdade e os
declarados Advogados dos Direitos naturais da Humanidade, nos dedicamos
a esse comércio desumano e criminoso mais profundamente do que alguma
outra nação”. Mas, ainda mais hipócrita é o comportamento dos colonos
rebeldes: “Os advogados do republicanismo e da suposta igualdade da hu-
76
Dclanoc, Rostkowski, 1991, p. 39 (carta dc Washington ao amigo W. Crawford, 21 dc
setembro dc 1767).
77
Washington, 1988, p. 475-76 (mensagem presidencial dc 25 dc outubro de 1791).
n Dclanoc, Rostkowski, 1991, p. 50-52 (carta dc Washington a J. Duanc, 7 dc setembro
dc 1783).
79
Franklin, 1987, p. 1422.
" Franklin, 1987, p. 98.
" Burkc, cit. In Zimmcr, 1978, p. 294-95.
/. O que é o liberalismo ? 31
ficam a política da Coroa de “conciliação” não tanto com os colonos, mas
com os índios. Nesse contexto, cabe uma menção particular à figura do sim¬
pático legalista americano que já encontramos na roupagem de crítico do
singular zelo libertário exibido pelos “mais duros e cruéis patrões de escra¬
vos”. Para os mesmos ambientes leva a crueldade contra os índios: às vezes,
é com verdadeiro fervor religioso que são assassinados e se procura o seu
escalpo; eles se tornam até o alvo dos que se exercitam no tiro. Sim, são es¬
tigmatizados como selvagens. Mas - objeta Jonathan Boucher - ainda mais
selvagens “figuravam os nossos antepassados a Júlio César ou a Agrícola”"2.
Vimos Paine acusar o governo de Londres de buscar a aliança dos cortado¬
res de garganta índios. Na verdade - alerta um comandante inglês em 1783
- os próprios colonos já vitoriosos “se preparam para cortar a garganta dos
índios”. O comportamento dos vencedores - acrescenta um outro oficial
- é “humanamente chocante” . Trata-se de uma polêmica que dura por
muito tempo. No final do século XIX, um historiador descendente de uma
família de legalistas refugiado no Canadá assim argumenta: será que os colo¬
nos rebeldes pensavam em serem descendentes dos que haviam chegado na
América para escapar da intolerância c serem fiéis à causa da liberdade? Na
verdade, revertendo a política da Coroa inglesa que visava à conversão, os
puritanos deram início ao massacre dos peles-vermelhas, identificados com
os “canaanitas e amalecitas”, fadados ao extermínio nas páginas do Antigo
Testamento. Trata-se de “uma das páginas mais sombrias da história colonial
inglês”, às quais se juntam também aquelas, ainda mais repugnantes, escritas
durante a revolução americana, quando os colonos rebeldes se dedicam ao
“extermínio das seis nações” peles-vermelhas, fiéis à Inglaterra: “Com uma
ordem que, acreditamos, não tem precedentes nos anais de uma nação civil,
o Congresso determinou a completa destruição desse povo enquanto nação
[...], incluindo mulheres e crianças”*4-
Pelo menos na sua correspondência privada, Jefferson não tem dificulda¬
de em reconhecer o horror da guerra contra os índios. Mas, aos seus olhos,
responsável disso tudo é o próprio governo de Londres que atiçou essas “tri¬
bos” selvagens e sanguinárias: é uma situação que “nos obriga agora a per¬
segui-las c exterminá-las ou a empurrá-las para novos espaços fora do nosso
alcance”. Resta o fato de que “o tratamento brutal, c até o extermínio desta
raça na nossa América” devem ser postos na conta da Inglaterra; assim como
“tipo de culto que não convém a uma inteligência boa e honesta, cujo tributo é
feito por meio de sacrifícios humanos, corridas de homens nus nos templos, jogos c
•* Marx, Engcls, 1955-89, vol. XXIII, p. 779-80; cf. Sombart, 1987, vol. I, t. 2, p. 709.
•"Dcfoc, 1982, p. 69.
*' I-aboulayc, 1863, p. VIII; Guizot, 1850, p. 41 42.
34 -
CO NT RA HISTÓRIA DO LIBERALISMO __
danças carregadas dc obscenidades, que até hoje se observam nos povos da América
e da África ainda nas trevas do paganismo”.
“Estúpida é a convicção pela qual se imagina que o Deus bondoso não vai se
vingar disso, pois, isso seria contrário à bondade. Dc fato, a clemência para ser justa
tem seus limites, e onde as maldades passam da medida, a justiça emana quase ne¬
cessariamente a pena” .
“Os homens [ ...1 estio prontos a ter compaixão de quem sofre, e a considerar
pura aquela religião, e sinceros aqueles seus fiéis que têm condições de superar aque¬
la perseguição. Mas cu acho que as coisas estejam dc maneira bem diferente no caso
dos católicos, que são menos suscetíveis do que os outros de serem compreendidos
enquanto não recebem outro tratamento que não seja a crueldade dos seus príncipes
c das suas práticas que notoriamente lhes dedicam” .
-
wI.ockc, 1993b, p. 202 (- Lockc, 1977, p. 111 ).
Ucky, 1883-88, vol. 1, p. 296-97.
,7Ix)ckc, 1993b, p. 203 (= Lockc, 1977, p. 1 12).
38 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
“O americano esquece que os negros são homens; ele não estabelece com eles
nenhuma relação moral; para ele os negros não passam de objeto de lucro; [...] c o
excesso do seu estúpido desprezo por essa espécie infeliz é tal que, ao voltar a
Europa, ele se indigna ao vê-los vestidos como homens e postos ao seu lado”
Este império tão poderoso da opinião pública [...] oferece já o seu apoio aos
que na França e na Inglaterra atacam a escravidão dos negros e visam à sua abolição;
M
Malou ct, 1788, p. 152.
01
Baudry des Lozièrcs, 1802, p. 48, 156.
“07 Tucker, 1993-96, vol. V, p. 53.
Tucker, 1993-96, vol. V, p. 103 104.
“ Boucher, cit. in Zimmer, 1978, p. 296.
w Foncr, 2000, p. 60.
42 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
que, desde o início do debate sobre o novo ordenamento constitucional - faz
notar uma outra testemunha “havia vergonha de usar o termo ‘escravos’
que assim era substituído por uma circunlocução”"0. Quem mostra maior
ousadia - observa Condorcet em 1781 - são os “proprietários” de escravos:
esses são “guiados por uma falsa consciência [fausse conscience]”, que os tor¬
na impermeáveis aos “protestos dos defensores da humanidade” e “os leva a
agir não contra os próprios interesses, mas em sua vantagem”1".
Como se vê, apesar da opinião contrária de Arcndt, os “interesses de
classe”, em primeiro lugar dos que possuíam extensas plantações e um nú¬
mero relevante de escravos, jogam um papel importante, que não escapa aos
observadores do tempo. O fato é que Arendt em última análise acaba por
identificar-se com o ponto de vista dos colonos rebeldes, que mantinham a
boa consciência de serem campeões da causa da liberdade, removendo o fato
macroscópico da escravidão mediante os seus engenhosos eufemismos: no
lugar desses eufemismos entra agora a explicação “historicista”.
“Que a escravidão não teria durado muito tempo se fosse algo contra a natu¬
reza, é um discurso válido para as coisas naturais, que seguem a ordem imutável de
Deus: mas, o homem, ao qual foi dado a livre escolha do bem e do mal, transgride
muitas vezes a proibição e escolhe o pior contra a lei de Deus; e a decisão malvada
tem tanto poder nele que chega a ter força de lei e adquire mais autoridade do que a
própria natureza, de modo que não há impiedade nem maldade,(jx>r maior que seja,
que, por isso, não possa vir a ser considerada virtude c piedade”
"* Bodin, 1988, vol I, p. 239, 247, 240 (livro I, cap. 5).
"« Bodin, 1988, vol, I, p. 242 (livro I, cap. 5)
111
Bodin, 1988, vol, 1, p. 247 (livro I, cap. 5)
44 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
,lu
Montaigne, 1996, p. 272 (livro I, cap. 31 ).
'» Casas, 1981, cap. XII.
m Marx, F.ngcls, ( 1955-89), vol. XXIII, p. 750, nota 197.
Bodin, 1988, vol. I, p. 262 (livro I, cap. 5).
1,5
Tawncy, 1975, p. 513; ã mesma conclusão chegam Macphcrson ( 1982, p. 260) e Mor¬
gan (1995, p. 325).
114 Bodin, 1988, vol. I, p. 260 (livro I, cap. 5).
46 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
em escravos dos mendigos, Fletcher polemiza contra a Igreja, que, acusada
de se opor à sua reintrodução no mundo moderno, favoreceria assim a pre¬
guiça e a libertinagem dos vagabundos . Também nesse caso, o instituto da
escravidão é percebido em contradição não tanto com as novas forças sociais
e políticas, mas com um poder de origem pré-moderna. Esta consideração
pode ser utilizada também a propósito de Grotius, o qual desenvolve tam¬
bém uma polêmica, se não contra o cristianismo enquanto tal, em todo caso
contra as suas leituras em chave abolicionista:
Mas para poder ser explicado, antes de mais nada, esse paradoxo deve ser
exposto em toda a sua radicalização. A escravidão não é algo que permaneça
não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece
o seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso: “O total da po¬
pulação escrava nas Américas somava aproximadamente 330.000 no ano de
1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de
mais de 6 milhões nos anos ’50 do séc. XIX” . O que contribui de forma
decisiva para o crescimento desse instituto sinónimo de poder absoluto do
homem sobre o homem é o mundo liberal. Na metade do séc. XVIII a Grã
Bretanha é a que possui o maior número de escravos (878.000). Não há nada
de óbvio nesse dado. Embora o seu império seja de longe o mais extenso, a
Espanha segue a muita distância. Quem ocupa o segundo lugar é o Portugal,
que possui 700.000 escravos e que na verdade é uma espécie de semi-colônia
da Grã Bretanha: boa parte do ouro extraído pelos escravos brasileiros acaba
em Londres . Portanto, não há dúvida de que quem se destaca nesse campo
pela sua posição absolutamente eminente é o país que está ao mesmo tempo
na frente do movimento liberal e que conquistou o seu primado no comércio
e na posse dos escravos negros exatamente a partir da Revolução Gloriosa.
Por outro lado, é o próprio Pitt, o jovem, quem em sua intervenção em abril
de 1792 na Câmara dos Comuns sobre o tema da escravidão e do tráfico dos
negros, reconhece que “nenhuma nação na Europa [...] está tão profunda¬
mente mergulhada nessa culpa como a Grã Bretanha”*.
1 Blackburn, 1997, p. 3.
1
Blackburn, 1990, p. 5.
1 Pitt, cit. in Thomas, 1997, p. 237.
48 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
E tem mais. Com algumas diferenças nas colónias espanholas e portu¬
guesas sobrevive a “escravidão ancilar”, bem distinta da “escravidão sistémi¬
ca, ligada ao plantio c à produção das mercadorias”; c c este segundo tipo de
escravidão, que se afirma principalmentc no séc. XVIII (a partir da revolução
liberal de 1688-89) c que predomina nitidamente nas colónias inglesas, que
expressa mais plcnamcntc a desumanização dos que não passam de instru¬
mentos de trabalho e mercadorias, objeto regular de compra e venda no
mercado .
Nem se trata da retomada da escravidão própria da antiguidade clássi¬
ca. Certamente, já em Roma a escravidão- mercadoria havia alcançado uma
ampla difusão. Mesmo assim, o escravo podia ainda esperar que, se não ele
mesmo, os filhos ou os netos chegariam a conquistar a liberdade c até uma
posição social eminente. Agora, no entanto, a sorte deles se configura sem¬
pre mais como uma jaula da qual é impossível fugir. Na primeira metade do
séc. XVIII, numerosas colónias inglesas na América decretam normas que
tornam cada vez mais difícil a emancipação dos escravos*.
Os quaeres lamentam a introdução do que para eles parece um sistema
novo c repugnante: a escravidão a tempo determinado e as outras formas de
trabalho mais ou menos servil, em vigor até então, tendem a dar lugar à es¬
cravidão propriamente dita, à condenação perpétua e hereditária de um povo
inteiro, ao qual é negada qualquer perspectiva de mudança e melhoria, qual¬
quer esperança de liberdade . Até o ano de 1696, a Carolina do Sul declarava
cm um estatuto que não podia prosperar “sem o trabalho e as prestações de
negros c outros escravos”'. Ainda não estava bem definida a barreira que
separa servidão e escravidão, e este último instituto ainda não havia se ma¬
nifestado em toda a sua dureza. Mas está já em curso o processo que reduz
cada vez mais o escravo à mercadoria e afirma o caráter racial da condição
à qual ele está submetido. Um abismo intransponível separa os negros da
população livre: leis cada vez mais rigorosas proíbem e estigmatizam como
crime as relações sexuais e matrimoniais inter-raciais. Estamos já na presença
de uma casta hereditária de escravos, definida e reconhecível apenas pela cor
da pele. Neste sentido, aos olhos de John Wesley, a “escravidão americana” é
“a mais vil jamais aparecida sobre a face da terra” .
* Blackburn, 1990, p. 9
s Jordan, 1977, p. 123 c 399.
4 Zilvcrsmit, 1969, p. 66.
7
Jordan, 1977, p. 109
* Wilberforce, 1838, vol. I, p. 297 (carta dc W. Wilbcrforcc, 24 dc fevereiro de 1791 ).
II. Liberalismo e escravidão racial 49
A análise dos quaeres americanos e do abolicionista inglês é plenamente
confirmada pelos historiadores dos nossos dias: ao término de um uciclo de
degradação” em detrimento dos negros, com a mobilização da “máquina da
opressão” branca e a consolidação definitiva da “escravidão e discriminação
racial”, no final do séc. XVII observa-se nas “colónias do império britâni¬
co” uma “escravidão- mercadoria sobre base racial” ( chattel racial slavery),
desconhecida na Inglaterra clisabetiana (e também na antiguidade clássica),
mas “familiar aos homens que vivem no séc. XIX” e conhecem a realidade
do Sul dos Estados Unidos9. Portanto, a escravidão na sua forma mais radical
triunfa nos séculos de ouro do liberalismo e no coração do mundo liberal.
Quem reconhece isso é James Madison, proprietário de escravos e liberal (as¬
sim como outros numerosos protagonistas da revolução americana), o qual
observa que “o domínio mais opressor jamais exercido pelo homem sobre o
homem”, o domínio fundado sobre a “mera distinção de cor”, sc impõe “no
período dc tempo mais iluminado”10.
Formulado corretamente e em toda a sua radicalidade, o paradoxo dian¬
te do qual nos encontramos consiste nisso: a ascensão do liberalismo e a di¬
fusão da escravidão-mercadoria sobre base racial são o produto de um parto
gêmeo que apresenta, como veremos, características muito singulares.
9
Jordan, 1977, p. 98.
1
10
Farrand (org.), 1966, vol. 1, p. 135.
" Burke, 1826, vol. Ill, p. 54 (- Burke, 1963, p. 91).
50 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
ração que podemos encontrar, alguns decénios depois, em um fazendeiro
de Barbados: “Não há no mundo nações mais ciosamente agarradas à liber¬
dade daquelas onde vigora o instituto da escravidão” . Do lado oposto, na
Inglaterra, ao contrastar Burke e a sua política de conciliação com os colo¬
nos rebeldes, Josiah Turcker observa como “os campeões do republicanismo
americano” sejam ao mesmo tempo os promotores da “absurda tirania” que
eles exercem sobre os escravos: é “a tirania republicana, a pior de todas as
tiranias”1'.
Nos autores aqui citados está presente a consciência, mais ou menos
nítida e acompanhada por um diversificado juízo de valor, do paradoxo que
estamos investigando. E talvez só agora começa a perder a sua aura de impe¬
netrabilidade. Por que deveríamos nos surpreender que quem reivindica ou
quem participa em primeira linha da reivindicação do autogoverno e da “li¬
berdade” em relação ao poder político central sejam os grandes proprietários
dc escravos? Em 1839, um eminente expoente da Virgínia da época, observa
que a posição do proprietário de escravos estimula nele
“uma natureza c um caráter mais liberal (a more liberal caste of character), prin¬
cípios mais elevados, uma abertura maior da mente, um amor mais profundo c mais
fervoroso e uma consideração mais justa daquela liberdade, graças à qual ele chega a
ser tão aJtamente distinto” .
,s
Klein, 1989, p. 59-65; Blackburn, 1990, p. 39; 1997, p. 50-52.
'* Klein, 1989, p. 38-39; Elkins, 1959, p. 59.
17 Klein, 1989, p. 49 e 39.
52 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
“O general Winfield Scott, com seis mil homens e acompanhado pelos ‘voluntá¬
rios civis’, invadiu o território Cherokee, sequestrou todos os índios que encontrou,
e no meio do inverno os colocou em marcha em direção ao Arkansas e Oklahoma; os
‘voluntários civis’ se apropriaram do gado dos índios, dos seus bens domésticos c dos
seus instrumentos agrícolas c queimaram as suas casas. Aproximadamente quatorze
mil índios foram obrigados a atravessar a ‘trilha das lágrimas’, como depois foi cha¬
mada, c praticamcntc quatro mil morreram durante a viagem. Uma testemunha do
êxodo escreveu: ‘Ate mulheres de idade, aparentemente próximas da morte, segui¬
ram caminho com pesados fardos nas costas, ora por terras geladas ora por estradas
dc lama, com os pés descalços’”1*.
19
Marx, Engcls, 1955-1989, voi. XXIII, p. 281.
M
Jordan, 1977, p. 84-93.
II. Liberalismo e escravidão racial 55
“A conversão ao cristianismo não elimina obrigação alguma antes existente; [...]
o Evangelho continua a manter os homens na mesma condição e sujeitos às mesmas
obrigações civis nas quais os havia encontrado. As pessoas casadas não devem aban¬
donar o cônjuge nem o servo torna-se emancipado do seu dono”21.
“A razão quer que o poder do patrão não ultrapasse as coisas que fazem parte
do seu serviço; é necessário que a escravidão seja para a utilidade e não para os dese¬
jos do patrão. As leis do pudor fazem parte do direito natural c devem ser percebidas
por todas as nações do mundo” (EL, XV, 12).
M
Ramsay, cit in Davis, 1975, p. 387.
“ Adams,
Blackburn, 1990, p. 92 c 14.
” cit. in Davis, 1998, p. 50, nota 3.
62 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Independentemente até do problema da representação, a delimitação es¬
pacial da comunidade dos livres é percebida como uma exclusão intolerável.
Por outro lado os colonos, ao reivindicar a igualdade com a classe dominante
inglesa, aprofundam o abismo que os separa dos negros e dos peles-vcrme-
Ihas. Se em Londres se foz a distinção entre a área da civilização e a área da
barbárie, entre o espaço sagrado e o profano, contrapondo em primeiro lu¬
gar a metrópole às colónias, os colonos americanos são levados por sua vez a
localizar a linha de separação em primeiro lugar no pertencimento étnico e
na cor da pele: em base ao Naturalization Act dc 1790, só os brancos podem
se tornar cidadãos dos Estados Unidos33.
A passagem da delimitação espacial para a étnica e racial da comunidade
dos livres comporta efeitos combinados e contraditórios de inclusão e ex¬
clusão, de emancipação e des-emancipacâo. Os brancos, até os mais pobres,
entram também a fazer parte do espaço sagrado, eles também pertencem à
comunidade ou à raça dos livres, mesmo ocupando níveis inferiores. Desapa¬
rece a servidão branca, condenada pela boa sociedade de New York enquanto
“contrária [...] ao princípio de liberdade que este país estabeleceu com tanto
sucesso”. Mas a tendência a emancipar os brancos pobres é apenas a outra
face da ulterior des-emancipação dos negros: a condição do escravo negro
piora só pelo foto de não ser mais, como na América colonial, um dos diver¬
sos sistemas do trabalho não livre34. Na Virgínia (e nos outros estados) aos
veteranos da guerra de independência são concedidos, como reconhecimen¬
to da sua contribuição à causa da luta contra o despotismo, terras e escravos
negros35; as possibilidades de ascensão social dos brancos pobres coincidem
com a ulterior degradação e desumanização dos escravos negros.
41
Fredrickson, 1987, p. 6ss.
4*
Foncr, 2000, p. 112.
66 CONTRA- HISTÓRIA DO LIBERALISMO
norma constitucional que impõe a devolução dos escravos tugidos aos legíti¬
mos proprietários, com a indireta sanção do instituto da escravidão também
nos estados que formalmente eram livres. É um ponto sobre o qual chama a
atenção, satisfeito, um expoente do Sul: “Obtivemos o direito de recuperar
os nossos escravos em qualquer lugar da América onde possam procurar abri¬
go; é um direito que antes não tínhamos”44. Evidentemente, no conjunto
dos Estados Unidos é entrado em crise o princípio da inadmissibilidade e da
“inutilidade da escravidão entre nós” reafirmado cada vez mais, ao contrá¬
rio, no outro lado do Atlântico. Como se chega a tal resultado? Voltemos a
Burke. Ao afirmar que o “espírito de liberdade” e a visão “liberal” encontram
a sua encarnação mais acabada justamente nos proprietários de escravos das
colónias meridionais, ele acrescenta que os colonos fazem plenamente parte
da “nação em cujas veias corre o sangue da liberdade”, da “raça eleita dos
filhos da Inglaterra”: é uma questão de “genealogia”, contra a qual se reve¬
lam impotentes os “artifícios humanos”45. Como é possível observar, a deli¬
mitação espacial da comunidade dos livres, que é o princípio sobre o qual se
funda a Inglaterra liberal do final do séc. XVIII, parece chegar aqui ao ponto
de se transformar em uma delimitação racial. E, portanto, em Calhoun e nos
ideólogos do Sul escravista em geral, chega a realizar-se uma tendência já
presente em Burke. De espacial, a linha de demarcação da comunidade dos
livres passa a ser racial.
Mas, entre os dois tipos de delimitação não há uma barreira intransponí¬
vel. Em 1845 John O’Sullivan, o popular teórico do “destino manifesto” e
providencial que dá asas à expansão dos Estados Unidos, procura contornar
com um argumento muito significativo as preocupações dos abolicionistas
com a introdução da escravidão no Texas (arrancado do México e prestes a
ser anexado à União): é justamente a momentânea extensão que cria as con¬
dições para a abolição da “escravidão de uma raça inferior em relação a uma
raça superior” e, portanto, que “torna provável o definitivo desaparecimento
da raça negra das nossas fronteiras”. No tempo oportuno, os ex -escravos
serão empurrados ainda mais para o Sul, no “solo receptáculo” adequado a
eles: na América Latina, a população de sangue misturado, que se formou
a partir da fusão dos espanhóis com os nativos, poderá acolher também os
negros46. A delimitação racial da comunidade teria então dado o lugar à deli-
64
Finkdman, 1985, p. 28.
45
Burkc, 1826, vol. III, p. 66 c 124 (- Burke, 1963, p. 100, 142-43).
•
O’Sullivan, 1845, p. 7-8.
II. Liberalismo e escravidão racial 67
mitaçâo territorial; o fim da escravidão teria determinado ao mesmo tempo o
fim da presença dos negros na terra da liberdade. Para essa direção indicava,
não obstante as gritas de alarme dos abolicionistas, a concentração dos escra¬
vos em uma área próxima de territórios fundamentalmente alheios à área da
civilização e da liberdade.
Por algum tempo, Lincoln sonha com a ideia de deportar dos Estados
Unidos para a América Latina, após a sua emancipação, os negros conside¬
rados afinal também por ele alheios à comunidade dos livres47. Neste senti¬
do, depois de se defrontar por décadas, no decorrer da guerra de Secessão,
se enfrentam não mais a causa da liberdade e a da escravidão, e sim, mais
exatamente, duas diversas delimitações da comunidade dos livres: as partes
contrapostas se acusam uma à outra de não saber ou de não querer delimitar
com eficácia a comunidade dos livres. Para aqueles que agitam o fantasma da
contaminação racial como consequência inevitável da abolição da escravidão,
Lincoln responde colocando em evidência que nos Estados Unidos a maioria
dos “mulatos” é o resultado das relações sexuais dos patrões brancos com as
escravas negras: “a escravidão é a maior fonte de mistura” ( amalgamation ).
Pelo resto, ele não tem “intenção alguma de introduzir igualdade política c
social entre as raças brancas e negras” ou de reconhecer ao negro o direito
de participar à vida pública, de ocupar funções públicas ou assumir o papel
de juiz popular. Lincoln se declara consciente, assim como qualquer outro
branco, da diferença radical entre as duas raças e da supremacia que cabe aos
brancos48.
A crise dá um passo decisivo em direção ao ponto de ruptura depois da
sentença da Corte Suprema sobre o caso Dred Scott no verão de 1857: “à
semelhança de um objeto comum de mercadoria e propriedade”, o legítimo
proprietário de um escravo negro tem direito de levá-lo consigo em qual¬
quer lugar da União49. Compreendc-se, então, a reação de Lincoln: o país
não pode ficar permanentemente dividido “metade escravo e metade livrenS0;
contrariamcnte à Inglaterra do caso Somerset, o norte dos Estados Unidos
não pode arvorar-se em terra dos livres, cujo ar é “muito puro” para ser res¬
pirado por um escravo.
A passagem da delimitação espacial para a racial da comunidade dos li¬
vres torna já impossível remover a realidade da escravidão. À condenação
44
Smith 1981, p. 98-99 (= Smith, 1977, p. 80-81 ) (livro I, cap. 8).
44 Millar, 1986, p. 296 c 250 (= Millar, 1989, p. 240 c 214).
1,7
Hofstadtcr (org.) 1958 82, vol. II, p. 319-320.
II. Liberalismo e escravidão racial 73
Nas dccadas seguintes, no decorrer da luta primeiro política e depois tam¬
bém militar contra o Norte, o Sul escravista pode contar com muitos amigos
na Inglaterra liberal. Poucos anos antes da guerra de Secessão, os argumentos
dos ideólogos do Sul encontram explicitamente eco em Benjamin Disraeli.
Tendo como pano de fundo a abolição da escravidão nas colónias inglesas e
francesas, ele a define um assunto de “ignorância, injustiça, espírito confuso,
desperdício e devastação com raros paralelos na história da humanidade” .
Por outro lado, se na América tivessem se misturado com os negros, os bran¬
cos “teriam sofrido uma deterioração tal que os seus estados provavelmente
acabariam por ser reconquistados pelos aborigines”**. A abolição da escravidão
nos Estados Unidos não teria favorecido essa mistura, conferindo a ela uma
nova dignidade? Mais tarde, a batalha desesperada da Confederação scccssio-
nista suscita um profundo eco empático em destacados expoentes culturais e
políticos da Inglaterra liberal, o que suscita a indignação de J. S. Mill.
Em conclusão, antes cm ocasião do caso Somerset, depois da revolução
americana e por fim da guerra de Secessão, o mundo liberal apresenta-se pro¬
fundamente dividido em relação ao problema da escravidão. Como orientar-
se nessa aparente babel?
M
Disraeli, 1852, p. 325 (cap. 18).
•» Disraeli, 1852, p. 496 (cap. 24).
" Hume, 1987, p. 383 (- Hume, 1971, vol. II, p. 786).
74 CONTRA HISTÓRIA- DO LIBERALISMO
do princípio da “inutilidade da escravidão entre nós”, as posições manifes¬
tadas por Fletcher deixam de existir ou de serem aceitas como liberais. É
verdade, revelam-se duras de morrer. Ainda em 1838, um liberal alemão
menciona o “conselho insinuado mais do que claramente pronunciado, que
queria encontrar remédio ao perigo iminente [representado por uma difícil
questão social] com a introdução de uma verdadeira escravidão dos operários
defábrica”71. Mas, trata-se de uma sugestão repelida com desdém: a linha de
demarcação do “partido” liberal resulta já traçada há muito tempo.
De forma análoga se pode argumentar em relação a Calhoun. Para este,
é o Norte que se torna culpado de traição dos princípios liberais que haviam
inspirado a revolução americana. Sim, “a defesa da liberdade humana contra
as agressões de um poder despótico foi sempre particularmente efícaz nos
estados nos quais a escravidão doméstica se afirmou”; no âmbito da União,
é o Sul que se levanta “com mais força ao lado da liberdade”, é “o primeiro
que percebe e é o primeiro que contrasta as usurpações do poder”72. É no
Sul que o liberalismo encontra a sua expressão mais autêntica e mais madura.
O termo “liberal” - alerta John Randolph of Roanoke, às vezes definido o
“Burke americano” - que originariamente indicava “um homem agarrado a
princípios amplos e livres, um devoto da liberdade”, acharia o seu significado
autêntico deformado se fosse utilizado para designar os que flertam com o
abolicionismo73.
Um liberal hodierno poderia ser tentado a se livrar da presença inco¬
moda, no âmbito da tradição de pensamento à qual se vincula, de um autor
como Burke, que celebra a intensidade particular do espírito liberal e do
amor pela liberdade nos proprietários de escravos, ou de um autor como
Calhoun, que ainda na metade do séc. XIX enaltece aquele “bem positivo”
que é a escravidão. Acontece, então, que tanto um como o outro acabam for¬
malmente inscritos no partido conservador. Mas, essa operação revela ime¬
diatamente a sua inconsistência. A categoria ‘conservador’ é um formalismo,
uma vez que pode subsumir conteúdos entre eles sensivelmente diferentes:
trata-se de ver o que se entende por conservar e guardar; e não há dúvida de
que Burke e Calhoun querem ser os guardiões vigilantes das relações sociais e
das instituições políticas derivadas respectivamcnte da Revolução Gloriosa e
da revolução americana, ou seja, de duas revoluções eminentemente liberais.
Não teria sentido considerar liberais Jefferson e Washington e não Burke
T|
Mohl, 1981, p. 91.
71
Calhoun, 1992, p. 468 c 473.
’* Randolph, cit. in Kirk, 1978, p. 63 c p. 43 (para a definição de “Burke americano").
II. Liberalismo e escravidão racial 75
que, ao contrário dos primeiros, não é proprietário de escravos e que, quan¬
do celebra o “espírito de liberdade” e a ênfase “liberal" do Sul escravista,
pensa exatamente em personalidades como os dois estadistas virginianos. Por
outro lado, ainda em 1862 lorde Acton cita por extenso c implicitamente as¬
sina o texto do whig inglês que, longe de excluir os proprietários de escravos,
confere a eles um lugar privilegiado no âmbito do partido da liberdade74.
Seria também ilógico excluir de tal partido Calhoun, que não cansa de
reafirmar o seu apego aos organismos representativos e ao princípio da limi¬
tação do poder. Se depois, indo para além do significado meramente formal
do termo, por conservadorismo viesse a ser entendido o apego acrítico a uma
sociedade pré-moderna c pré-industrial, caracterizada pelo culto do pedaço
de terra e da comunidade, dificilmente tal categoria poderia servir para ex¬
plicar as posições de Calhoun. Uma vez garantidos os direitos da minoria,
ele não tem dificuldade para ampliar o sufrágio e até introduzir o “sufrágio
universal” masculino; por outro lado, juntamente com os organismos repre¬
sentativos, ele celebra o desenvolvimento das “manufaturas”, da indústria
e do livre comércio75. Talvez, a categoria de conservadorismo poderia valer
para Jefferson. Este, localiza nos camponeses “o povo eleito Deus”, as¬
socia as “grandes cidades” às “pragas” de um corpo humano e, em 1812,
em ocasião da guerra com a Inglaterra, acusa esta de ser um instrumento
de “Satanás”, pelo fato de obrigar a América a abandonar o “paraíso” da
agricultura e se dedicar às “indústrias manufatureiras”, de modo a enfrentar
a prova das armas (infra, cap. VIII, § 16). E a categoria de conservado¬
rismo, quem sabe, poderia valer para Washington: ele também olha com
preocupação à possibilidade que os americanos possam se tornar “um povo
manufatureiro”, no lugar de continuar a ser “cultivadoresÿda terra e evitar
assim o flagelo da “plebe tumultuada das grandes cidades” . Em particular,
contra Jefferson parece polemizar Calhoun, quando rejeita a tese pela qual
a manufatura “destrói o poder moral e físico do povo”: na realidade trata-se
de uma preocupação tornada cada vez maisÿobsoleta pela “grande perfeição
da maquinaria” introduzida pela indústria . Enfim, se parte integrante do
liberalismo é a aceitação do free trade, é evidente que nessa tradição Ca-
7
Hume, 1987, p. 386 (- Hume, 1971, vol. II, p. 790).
* Smith, 1982, p. 456.
4
9 Blackstonc,
.
vol. I, p. 412-13 (livro I, cap. 14).
1979, .w..
10Drcscher, 1999, p. 401.
" Calhoun, 1992, p. 474.
82 CONTRA- H ISTÓ RI A DO LIBERALISMO
elas oferecem o espetáculo “o mais horrível c o mais repugnante da miséria”:
de um lado os enfermos sem condição de trabalhar e que esperam a morte,
de outro mulheres e crianças amontoadas “como suínos na lama do seu chi¬
queiro; é difícil não pisar em algum corpo seminu”. Enfim, os relativamente
mais “afortunados”, os que estão em condição de trabalhar: ganham pouco
ou nada e se alimentam também das sobras das casas senhoriais .
Mas, por quanto sejam horríveis, a miséria e a degradação não repre¬
sentam o aspecto mais significativo das casas de trabalho. No início do séc.
XVIII, Defoe menciona com simpatia o exemplo “da workhouse de Bristol,
transformada em terror para mendigos a tal ponto que agora ninguém arrisca
se aproximar da cidade” . De fato, a casa de trabalho será mais tarde descri¬
ta por Engels como uma instituição total: “Os paupers vestem o uniforme
da casa e estão sujeitos ao arbítrio do diretor sem a menor proteção”; para
que “os pais ‘moralmente degradados’ evitem influenciar os seus filhos, as
famílias são separadas; o homem é posto em uma sala, a mulher em outra,
os filhos cm uma terceira”. A unidade familiar é rompida, mas pelo resto,
todos ficam amontoados às vezes com até doze ou dezesseis em um quarto
e contra todos é praticado todo tipo de violência que não poupa velhos nem
crianças e que comporta atenções particulares para as mulheres. Na prática,
os internados das casas de trabalho são tratados como “objetos de desprezo
e horror colocados fora da lei e da comunidade humana”. Explica-se então
o fato, sublinhado por Engels, que, para escapar das “bastilhas da lei dos po¬
bres” ( poor-law bastiles) - como haviam sido batizadas pelo povo - “frequen-
temente os internados das casas de trabalho se tornavam intcncionalmente
culpados de um delito qualquer para entrar na prisão”14. Até, - acrescentam
historiadores dos nossos dias - “numerosos indigentes preferiam morrer de
fome c de doença” no lugar de submeter-se a uma casa de trabalho .
Leva a pensar no suicídio ao qual ffequentemente recorriam os escravos
para escapar da sua condição. Olhando bem, a lei de 1834, que recolhe nas
casas de trabalho os que pediam assistência, confere alguma razão a Calhoun
e àqueles que indicavam na escravidão a única solução possível para o pro¬
blema da pobreza. Ao lutar pela nova legislação, Nassau W. Senior, que é o
inspirador dela, denuncia nestes termos a mortal contradição da normativa
vigente até então, que permitia ao pobre receber um mínimo de assistência
11
Tocqucvillc, 1951, vol. V, t. 2, p. 97.
13 Dcfoc, 1982, p. 77.
14 Marx, Engcls, 1955-89, vol. II, p. 496 97.
“ Barrct-Ducrocq, 1991, p. 94.
III. Os servos brancos entre metrópole e colónias 83
mesmo continuando a ter a sua vida normal: “O trabalhador deve ser um
agente livre sem os riscos da livre ação, deve ser livre da coerção e no entan¬
to usufruir ao mesmo tempo da subsistência assegurada ao escravo”. Mas é
totalmente absurda a pretensão de “unir as vantagens inconciliáveis da liber¬
dade e da escravidão”: impõe-se uma escolha'6. Argumentando desta forma,
o influente economista e teórico liberal, interlocutor e correspondente de
Tocqucville, acaba por reconhecer a natureza substancialmente escravista das
relações vigentes no interior das casas de trabalho.
Emanada em 1834, a nova legislação chega a coincidir com a emancipação
dos negros nas colónias. Entende-se, então, a ironia de um lado dos teóricos
do Sul escravista nos Estados Unidos, por outro das massas populares inglesas
em relação a uma classe dominante que, enquanto se gabava de ter abolido a
escravidão nas colónias, a reedita de maneira diferente na própria metrópole.
“Qual é o empresário que terá sobre os seus operários um poder (hold) igual ao
que eu pratico sobre os meus? Qual é o patrão que pode reduzir os próprios ope¬
rários, quando ociosos ( idle), a uma condição próxima da inanição, sem temer que
saiam? Qual o patrão que tem homens que nunca podem se embriagar sem que ele
mesmo o decida? E qual é o operário que, longe de poder aumentar o próprio salário
“Os soldados vestem uniformes: por que não deveriam usá-los os pobres? Se
quem defende o país os veste, por que não deveriam também usá-los os que por
ele são sustentados? Não só a força dc trabalho que reside permanentemente, mas
também os trabalhadores eventuais deveriam vestir o uniforme quando estão na
casa, para a boa ordem c a facilidade de serem separados c reconhecidos, e ao mesmo
tempo pela limpeza”34.
Por outro lado, é significativa a maneira pela qual Lockc descreve a “prá¬
tica corrente na disciplina militar”:
*J
Collcy, 2002, p. 314.
III. Os servos brancos entre metrópole e colónias 89
radoxal continuaram a ser submetidos isso mesmo quando essa disciplina
havia sido abolida pelas tropas indianas .
No exército as relações de poder reproduzem as existentes na sociedade.
A figura do soldado tende a coincidir com a do servo. No início do see. XVIII
Defoc observa: “Qualquer homem deveria desejar carregar o mosquete antes
que morrer de fome. [...] É a pobreza que torna os homens soldados, que
leva as multidões nos exércitos” . No final do século Townsend reafirma que
“a indigência e a pobreza” podem empurrar “as classes inferiores do povo a
enfrentar todos os horrores que os esperam no oceano tempestuoso ou sobre
o campo de batalha”4S. Quer dizer, nas palavras de Mandeville, “as durezas
e o peso da guerra, tudo o que suporta pessoalmente, recaem sobre os que
sustentam qualquer coisa”, isto é, sobre os servos habituados a trabalhar e
a sofrer “de maneira semelhante aos escravos”**. Neste sentido, a figura do
oficial tende a coincidir com a do senhor, c declarado e até ostentado é o
desprezo que os oficiais-senhores têm cm relação à tropa: nas palavras de
um soldado simples, esta era “como a classe mais ínfima de animais, digna só
de ser governada com o gato de sete rabos” , ou seja, com o chicote capaz
de infligir as punições mais sádicas, as que normalmente são reservadas aos
escravos desobedientes.
“ Collcy,
44
2002, p. 314 16.
Defoc, 1982, p. 84 85.
45 Townsend, 1971, p. 35.
44
Mandeville, 1988, vol. 1, p. 119.
4' Collcy, 2002, p. 314.
44
Dcfoe, 1982, p. 84.
90 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO _
idade de onze anos49. Em alguns casos, até, quem corre esse risco sào crianças
de idade inferior: em 1833 a pena capital é aplicada a um pequeno ladrão de
nove anos, embora a sentença acabou não sendo executada .
Ainda mais significativa do que o agravamento das penas é a criminaliza-
ção de comportamentos até então totalmente lícitos. A cerca e a apropriação
privada das terras comuns chegam a alcançar um grande desenvolvimento;
e o camponês ou o homem do povo que demora a se aperceber da nova
situação torna-se um ladrão, um criminoso a ser enquadrado nos rigores da
lei. Pode parecer um comportamento arbitrário e brutal. Mas, não é assim
que pensa Locke. Ao legitimar a apropriação por parte dos colonos das ter¬
ras deixadas incultas pelos índios, o segundo Tratado sobre ogoverno assume
ao mesmo tempo clara posição a favor das cercas na Inglaterra. “No início
todo o mundo era América” (TT, II, 49); e as terras comuns são uma espé¬
cie de resíduo daquela condição originária e selvagem que, sucessivamente,
trabalho, apropriação privada e dinheiro contribuem para superar. Trata-se
de um processo que se manifesta em larga escala no outro lado do Adântico,
mas que não está ausente também na Inglaterra: “também entre nós uma
terra deixada inteiramente no estado natural, não feita frutificar pelo pasto, o
cultivo ou a plantação, é chamada de deserto ( wast), como de fato é, e a sua
utilidade é pouco mais do que nada”, até que intervenham a benéfica cerca e
a apropriação privada (TT, II, 42).
Juntamente com a espoliação contra os índios e os camponeses ingleses,
Locke justifica também a legislação terrorista em defesa da propriedade:
“O homem tem direito de matar um ladrão que não lhe tenha causado lesão
alguma e que, em relação à vida, não tenha passado da manifestação de um desenho
para reduzi-lo com a força em seu poder, de modo a levar dinheiro ou outra coisa”
(IT, II, 18).
41
Thom pson, 1989.
52Assim o historiador do direito Leon Radzinowicz, cit. in Thompson, 1989, p. 29.
“Harris, 1963, p. 211,214.
M Losurdo 1992, cap. V, § 8.
92 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
“Se alguém por culpa própria, cumprindo um ato merecedor da morte, chegou a
comprometer (forfeited) a própria vida, aquele para o qual a deu cm penhor (forfeited)
pode, uma vez capturada, poupá-la e reduzir o homem a seu serviço (service). Nem
por isso lhe causa um mal, porque o culpado, quando sentir que a dureza da sua escra¬
vidão ( the hardship of his Slavery) supera o valor da sua vida, poderá opor-sc à vontade
do patrão e assim procurar a morte, conforme o seu desejo” (TT, II, 23).
A teoria da guerra colonial como guerra justa (por parte dos europeus) c
a teoria da escravidão penal legitimam e estimulam a deportação respectiva-
mente dos escravos negros e dos scmi-escravos brancos dos quais tem neces¬
sidade o desenvolvimento das colónias. Na véspera da revolução americana,
só em Maryland havia 20 mil servos de origem criminal. Nas palavras de
Samuel Johnson, estamos na presença de “uma raça de detentos, c eles de¬
veriam ficar contentes por tudo o que lhe oferecemos para escapar da forca”.
É dessa forma que é alimentada uma fonte inesgotável de força de trabalho
imposto* .
6. Os servos a contrato
“A última classe composta por homens que possuem só os seus braços pode ter
necessidade da escravidão regulada pela lei para escapar da escravidão da necessidade.
Por que limitar a liberdade natural? Quero vender o meu tempo c os meus serviços
de toda espécie (não a minha vida) por um ano, dois anos etc., como acontece na
América inglesa. A lei cala a respeito, e ela não deve falar se não para impedir os abu¬
sos deste instituto perigoso para a liberdade. Assim, não será possível comprometer-
se a servir por mais de cinco anos”60.
“Vocês podem jogá-las cm uma casa de inspeção e depois fazer o que bem en¬
tenderem. Poderiam permitir, sem remorso, aos pais de dar uma espreitada por trás
da cortina no lugar do mestre [...]. Poderiam manter separados por de zessete ou
dezoito anos os vossos jovens alunos homens e mulheres”67.
“Uma casa de inspeção, à qual fosse entregue um grupo de crianças desde o nas¬
cimento, permitiria um bom número de experimentações [...). O que vocês acham
dc um internado fundado sobre esse princípio?”69
44
Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 56 (= Bentham, 1983, p. 76).
47
Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64-65 (- Bentham, 1983, p. 98).
44
Jefferson, 1984, p. 1450 c 1485-87 (carta a A. Gallatin, 26 dc dezembro de 1820, c a
J. Sparks, 4 dc fevereiro dc 1824).
46
Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64 (- Bentham, 1983, p. 98).
III. Os servos brancos entre metrópole e colónias 97
dc toda espécie. Quanto aos órfãos, é possível se livrar deles de modo muito
simples: nas portas das casas de trabalho há anúncios que promovem a sua
venda. Em Londres, o preço dc meninos e meninas colocados assim no mer¬
cado é sensivelmente inferior ao dos escravos negros _na América; nas regiões
rurais a mercadoria em questão é ainda mais barata” .
Sobre essa massa de miseráveis pesa uma legislação que certamentc não
é caracterízada por garantias. Havia mandatos em branco, que permitiam
à polícia prender ou revistar uma pessoa a seu bel-prazer. Eliminado da
quarta emenda da Constituição americana, este “intolerável instrumento de
opressão”, para retomar a definição do liberal francês Laboulaye em 1866,
continua a subsistir por muito tempo na Inglaterra. O próprio Smith, não
conseguindo justificá-lo, procura minimizá-lo. Admira-sc pelo fato de que a
“gente comum”, no lugar de defender a livre circulação c o comércio da for¬
ça de trabalho, manifesta toda a sua indignação “contra os mandatos gerais
de prisão {general warrants), prática sem dúvida abusiva, mas que não parece
capaz de determinar uma opressão geral” .
A própria pena de morte é infligida não só com grande facilidade, mas
também com algumas arbitrariedades. Com a publicação em 1723 do Black
Act - os Blacks provavelmente eram ladrões dc cervos - em alguns casos não
há necessidade de recorrer a um processo formal para cominar a pena capital,
pois esta entrega ao carrasco também os que ajudaram de qualquer maneira
o ladrão a escapar da justiça™.
Sem perturbar-se, Mandeville reconhece que é cancelada a “vida de cen¬
tenas, de milhares até, de miseráveis delinquentes, quotidianamente enforca¬
dos por alguma inépcia” 4; a execução torna-se muitas vezes um espetáculo
de massa com finalidades pedagógicas™. O liberal inglês exorta os magis¬
trados a não se deixar estorvar nem por uma “comoção” fora de lugar nem
por dúvidas c escrúpulos excessivos. Certamente, os ladrões poderiam ter
cometido o roubo levados pela necessidade: “o que podem ganhar hones-
“Para pressionar a uma decisão rápida, os operários recorrem sempre aos meios
mais clamorosos c às vezes às violências e às ofensas mais impressionantes. São de¬
sesperados e agem com a loucura c os excessos de homens desesperados que devem
morrer de fome ou obrigar os seus patrões a aceitar as suas solicitações”86.
,s
Smith, 1981, p. 83-84 (« Smith, 1977, p. 67) (livro I, cap. 8).
84
Smith, 1981, p. 84-85 (=ÿ Smith, 1977, p. 68) (livro I, cap. 8).
Smith, 1981, p. 145 (- Smith, 1977, p. 128-29) (livro I, cap. X, 2).
III. Os servos brancos entre metrópole e colónias 101
esta consideração passa em segundo plano cm relação à necessidade de evi¬
tar reuniões, “conversações”, agregações que tendem a serem sinónimos de
“conspiração contra o Estado”.
Com o intuito de criminalizar desde a origem qualquer associação popu¬
lar, a classe dominante recorre a métodos ainda mais sumários, que podemos
descrever com as palavras de Constant: é “o horrendo expediente de enviar
espiões e atiçar os espíritos ignorantes e propor- lhes a revolta para depois
podê-la denunciar”. Os resultados não faltam: “Os miseráveis seduziram os
que tiveram a desventura de ouvi-los e provavelmente acusaram também os
que não conseguiram seduzir”. E sobre ambos se abate a justiça"*.
90
Townsend, 1971, p. 35.
91
In Marx, Engcls, 1955-89, vol. XXIII, p. 643.
*’ Young, cit. in Tawney, 1975, p. 514.
93
Destutt de Tracy, cit. in Marx Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 677.
"Sidney, 1990,,p. 89, 103.
91
Cf. Losurdo, ;2002, cap. 12, §4.
III. Os servos brancos entre metrópole e colónias 103
Sul, James Harry Hammond, dedica-se a evidenciar o quanto de escravis¬
ta continua a subsistir na Inglaterra. Ele envia uma carta aberta a Thomas
Clarkson, o venerável patriarca do abolicionismo inglês, colocando o dedo
sobre a praga da condição operária no país que se orgulha de ter abolido a
escravidão nas suas colónias:
Locke não hesita em afirmar que “entre alguns homens c outros há uma
distância maior que entre alguns homens e alguns animais”: para entender
bastaria comparar de um lado o “palácio de Westminster” e a “Bolsa” e do
outro os “hospícios de mendicância” e o “manicômio”97. Imperceptívcl e
evanescente é a linha que separa mundo humano c mundo animal: “Sc com¬
pararmos o intelecto e as habilidades de alguns homens e de alguns animais,
encontraremos uma diferença tão pequena que será difícil dizer que as do
homem são mais claras e mais extensas”9*.
96
Clarkson, cit. in Davis, 1986, p. 233-34.
v?
I-ockc, 1971, p. 804 805 (livro IV, cap. XX, 2) , 807 (livro IV, cap. XX, 5).
*ÿ
Lockc, 1971, p. 760 (livro IV, cap. XVI, 12).
104 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Também Mandcville, ao condenar a difusão da instrução entre as cama¬
das populares, compara o trabalhador assalariado a um “cavalo”: “Ninguém
se submete voluntariamente aos seus iguais c se o cavalo soubesse tudo o
que um homem sabe, eu certamcnte não gostaria de ser o seu cavaleiro””. É
uma metáfora que volta também em ocasião da polêmica contra a excessiva
generosidade da qual na Inglaterra daria prova o patrão rico em relação ao
servo:
“Um homem pode ter vinte e cinco cavalos nos seus estábulos sem que seja
julgado um louco sc isto estiver de acordo com as suas propriedades; mas se tiver um
só cavalo c o alimenta muito para mostrar assim a sua própria riqueza, terá só a fama
de louco cm troca de todos os seus esforços”100.
“Os infelizes destinados aos trabalhos pesados, produtores dos prazeres alheios,
que recebem apenas o essencial para sustentar os seus corpos sofridos e necessitados
de tudo, esta imensa multidão de instrumentos bípedes, sem liberdade, sem morali¬
dade, sem faculdades intelectuais, dotados apenas de mãos que ganham pouco c dc
uma mente carregada com mil preocupações que serve só para sofrer, [...] são estes
que vocês chamam de homens? São considerados civilizados ( policés), mas alguma
vez viu-se um só desses que fosse capaz dc entrar em sociedade?”101
104
Smith, 1981, p. 782 , 784 (- Smith, 1977, p. 770, 772), (livro V, cap. I, parte 111,
art. 2).
105 1
Lockc, 1979, p. 685, 692 (§§ 6, 8).
Sieyès, 1985, p. 89, 75.
107
Mandeville, 1988, p. 31 1 16 (- Mandeville, 1974, p. 1 16- 19).
106 CONTRA HISTÓRIA DO __
LIBERALISMO
escravos: “Não temos dúvidas de que eles constituem a parte mais feliz da
nossa sociedade. Sobre a face da terra não há ser mais feliz que o escravo
negro nos Estados Unidos”
Em conclusão. Não só é muito difícil definir livre a condição dos servos
brancos na Europa, mas a imagem que deles nos transmite o pensamento li¬
beral da época não é muito diferente da imagem do escravo negro no Sul dos
Estados Unidos. Tem razão, então, o governador da Carolina do Sul quando
zomba da hipocrisia e da polidez dos abolicionistas? Seria uma conclusão
precipitada. Somos, portanto, obrigados a refletir ulteriormente sobre as ca-
racterísticas da sociedade que veio se formando nos dois lados do Atlântico e
sobre as categorias mais apropriadas para compreende -la.
1
Cf. Losurdo, 1993, cap. Ill, § 3.
108 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
fiança”. Entre os “mil exemplos” que poderiam ser apresentados, podemos
citar o de dois jovens irlandeses “detentos por um ano inteiro na expectativa
que os juízes se dignassem ouvir o seu depoimento”. Podemos então nos
ater à conclusão insuspeita de Tocqueville: estamos na presença de leis con¬
solidadas pelo “hábito” e que, no entanto, podem parecer “monstruosas”;
elas “previram tudo para o beneficio do rico c praticamente nada para a ga¬
rantia do pobre”, de cuja liberdade “dispõem a baixo preço”2.
Vamos deixar, por enquanto, as populações de origem colonial c as ca¬
madas mais pobres da comunidade branca, às quais são negados não apenas
os direitos políticos mas também as “liberdades modernas”. Concentremos
exclusivamente a nossa atenção sobre a classe dominante, ou seja, sobre os
proprietários brancos e homens. Neste âmbito, vigora a plena igualdade civil
e política? A dúvida torna-se legítima. Pensemos na cláusula constitucional
dos “três quintos”, pela qual, ao calcular o número das cadeiras reserva¬
das aos estados do Sul, se levava parcialmente cm consideração também a
quantidade dos escravos. Longe de ser um particular insignificante, trata-se
de uma cláusula que desempenha um papel muito importante na história
dos Estados Unidos: “quatro votantes do Sul” acabavam exercendo “mais
poder político do que dez votantes do Norte”; explica-se assim a “dinastia
virginiana” que por muito tempo consegue manter a presidência do país\
Por isso Jefferson é apelidado de “presidente negro”4 pelos seus adversários:
havia chegado ao poder graças ao cálculo, no resultado eleitoral, dos negros
que, no entanto, continuavam a ser seus escravos. Na véspera da guerra de
Secessão, Lincoln proclama polcmicamcntc “uma verdade que não pode ser
negada: em nenhum estado livre um branco é igual a um branco dos estados
escravistas”5. É uma tese reafirmada, em 1864, por um liberal francês (Edou¬
ard Iÿaboulaye). Com a cláusula dos três quintos é como se a Constituição
americana se dirigisse assim à população do Sul:
“uma vez que vocês têm escravos, vos será permitido eleger um deputado com
dez mil votos, enquanto aos yankees [do Norte], que vivem do seu trabalho, serào
necessários trinta mil votos; a conclusão para quem vive no Sul é que eles constituem
uma raça particular, superior, que se trata de grandes senhores. O espírito aristocráti¬
co tem sido desenvolvido, fortalecido pela Constituição”6.
7
Jefferson Davis, cit. in Hofstadter (org.), 1958-82, vol. 11, p. 399-400.
* Zilvcrsmit, 1969, p. 10- 1 1 c 7.
110 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Não há dúvida: sobre a sua legítima “propriedade” o patrão de escravos
exerce um poder absoluto, porem, não ao ponto de poder livremente colocar
em discussão o processo de reiíicação e de mercantilização já consolidado.
Neste caso, prevalecem as exigências da comunidade de manter clara e firme
a barreira entre raça dos senhores c raça dos servos. Vamos dar a palavra a
Tocqueville: “sob penas severas é proibido ensinar aos escravos a ler e escre¬
ver”9. Claramente, a proibição visa excluir a raça dos servos de toda forma de
instrução, considerada uma fonte de grave perigo não apenas porque susce¬
tível de alimentar esperanças e pretensões inadmissíveis mas porque objetiva
facilitar entre os negros aquela comunicação de idéias e sentimentos que
deve ser obstaculizada de qualquer maneira. No entanto, em caso de violação
de tal norma, os atingidos em primeiro lugar são os proprietários brancos,
que ficam com a sua liberdade negativa gravemente limitada. As proibições
que atingem os escravos não livram os seus patrões. Depois da revolta de Nat
Turner, em Geórgia, é crime até fornecer a um escravo papel e material para
escrever10.
Particularmente significativa é a legislação que proíbe as relações sexuais
e os matrimónios entre raças. Mais tarde, em 1896, ao sancionar a legitimi¬
dade constitucional da normativa relativa à segregação racial no seu conjun¬
to, a Suprema Corte estadunidense admite que o favorecimento dos “matri¬
mónios entre as duas raças” poderia violar “em sentido técnico” a freedom
of contract, mas sai do impasse acrescentando que o direito de legislação de
cada estado em tal matéria é “universalmente reconhecido”11. Na verdade,
não faltavam as oposições. Significativa é a norma emanada na Virgínia no
inicio do século XVIII, pela qual a punição não era só para os responsáveis
diretos da relação sexual ou matrimonial; “penas extremamente rigorosas”
poderiam ser aplicadas ao sacerdote culpado de ter consagrado a ligação fa¬
miliar inter-racial12. Portanto, junto com a “liberdade de contrato” era de
qualquer maneira atingida a própria liberdade religiosa.
O poder absoluto mantido sobre os escravos negros acaba levando con¬
sequências negativas e até dramáticas também para os brancos. Tomemos a
Pensilvânia das primeiras décadas do século XVIII: o negro livre surpreen¬
dido a violar a proibição de miscegenation (como era chamada mais tarde)13,
9
Tocqueville, 1951, vol. I,t. l,p. 377 (DAI, cap. II, 10).
10
Genovese, 1998a, p. 24.
" Plessy versus Ferguson, cit. in Hofstadter (org.), 1958-82, vol. Ill, p. 56.
'•'Klein, 1989, p. 51 e 234-35.
'* O termo é cunhado no final de 1863: cf. Wood, 1968, p. 53ss.
IV Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX? 111
corre o risco de ser vendido como escravo. Isso traz consequências muito
penosas também para a mulher branca, obrigada a sofrer a separação forçada
do seu parceiro e a terrível punição aplicada a ele. Vejamos agora o que acon¬
tece na Virgínia colonial logo depois da Gloriosa Revolução. Com base em
uma norma de 1691, uma mulher branca e livre que tenha tido um filho de
um negro ou de um mulato pode ser condenada a cinco anos de servidão e,
sobretudo, é obrigada a ceder o filho à paróquia, que depois o vende como
servant, deixando-o nesta condição por trinta anos14. Há mais. Barreiras pra-
ticamente intransponíveis se erguem no reconhecimento da prole derivada
da eventual relação do proprietário com uma das suas escravas. O pai en-
contra-sc diante de uma alternativa dramática: ou sofrer junto com a sua
família efetiva o exílio da Virgínia ou consentir que o filho seja escravo junto
com a mãe15. Mais sumária é, por outro lado, a legislação de New York que
transforma automaticamente cm escravos todos os filhos nascidos de mãe
escrava16. Estamos, assim, na presença de uma sociedade que até sobre os
seus membros privilegiados exerce uma repressão tão dura, em parte jurídica
e em parte social, de modo a sufocar os sentimentos mais naturais: como foi
justamente observado, ao escravizar “os próprios filhos c os filhos dos seus
filhos”, de fato, “os brancos escravizam a si mesmos”17.
Para esclarecer ulteriormente o entrelaçamento entre poder absoluto de
cada proprietário sobre o gado humano que ele possui e a sua submissão ao
“povo dos senhores” do qual é membro, pode ser feita uma última conside¬
ração. Já nos ocupamos da norma em vigor na Virgínia, pela qual era despro¬
vido de sentido definir e tratar como “infâmia” o assassinato do escravo por
parte do proprietário. Contudo, em não poucos estados, por uma legislação
que continuará a vigorar ainda depois da segunda guerra mundial ( infra, cap.
X, § 5), é culpado de “infâmia” o branco que mantenha relações sexuais com
uma negra. Quer dizer, ao proprietário é permitido chicotear e bater na sua
escrava até provocar a morte - o sagrado direito de propriedade; mas ele só
expondo-se a diversos riscos pode manter relações sexuais com ela - tão forte
é o controle que a classe dos proprietários e a comunidade dos livres exerce
sobre os seus membros. Para além da norma jurídica, o que leva a fazer res¬
peitar a proibição de miscegenation são, em meados do século XVIII, bandos
21
Jordan, 1977, p. 108.
22 Jordan, 1977, p. 112.
21 Beaumont, 1840, p. 230.
24 Fogcl, 1991, p. 342.
25
Jordan, 1977,p. 395.
114 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
o presidente dos Estados Unidos (Andrew Jackson) autoriza o ministro dos
Correios a bloquear a circulação de todas as publicações críticas em relação
ao instituto da escravidão; junto com a mordaça imposta aos abolicionistas,
a Câmara dos representantes adota a resolução para impedir o exame das
petições anti-escravistas .
A repressão pode chegar a formas mais drásticas. Em 1805, ao denunciar
os escritos que poderiam disseminar um efeito incendiário sobre os escravos,
o Sul da Carolina emana normas que estabelecem a condenação à morte,
por traição, dos que de qualquer maneira se tenham manchadosda culpa
por terem estimulado ou apoiado uma revolta servil. A Georgia ' procede
analogamente. Ao terror do alto se entrelaça o terror de baixo. Se no Norte
assume formas menos cruéis (visa impedir reuniões c destruir os meios de
propaganda ou propriedade dos “agitadores”), no Sul a violência contra os
abolicionistas configura-se como um pogrom que não hesita a torturar e eli¬
minar fisicamente os traidores e os seus colaboradores, gozando da total im¬
punidade”. A situação do Sul nos anos que antecedem a guerra de Secessão
foi assim descrita por Joel Poinsett, uma importante personalidade política
da União, em uma carta escrita por ele no final de 1850:
M Beaumont, 1840, p. 3.
”u Tocqueville, 1951, vol. V, t.l, p. 247.
Stevenson, 1996, p. 275; Davis, 1997, p. 35.
r Dew, cit. in Hofstadter (org), 1958-82, vol. II, p. 319.
38 Linvack, 1961, p. 97e67.
w Delanoí-Rost kowski, 1991, p. 74-75 c 124.
IV Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX? 117
excluem de maneira explícita os “paupers” e os “vagabundos” do elenco dos
“habitantes livres” (art. IV). Mas a verdade é que, examinando a sociedade
no seu conjunto, as demarcações principais são a linha de cor e, no âmbito
da comunidade negra, a linha que separa os escravos propriamente ditos dos
outros, dos negros “livres”, que na realidade vivem o pesadelo de serem
deportados ou por sua vez vir a ser escravizados. Por outro lado, a absoluta
centralidade da linha de cor estimula, como observa o ideólogo sulista das
três castas, o “espírito de igualdade” no âmbito da comunidade branca, ao
desaparecerem rapidamente as discriminações mais odiosas .
Neste sentido, pode-se falar de “castas”, como fazem historiadores emi¬
nentes do instituto da escravidão . Mas, a constatação do enrijecimento na¬
turalista e racial das relações entre as classes sociais nos diz ainda pouco sobre
a natureza do regime político vigente no âmbito da sociedade aqui investiga¬
da. Às vezes, partindo sobretudo da história do Sul da África, no intuito de
esclarecer o entrelaçamento de liberdade (para os brancos) e de opressão (para
as populações coloniais), se chegou a falar de “liberalismo segregacionista” .
Trata-se de uma categoria que exclui completamente do campo de atenção as
práticas de expropriação, deportação c aniquilamento postas em ato contra as
populações nativas da África austral ou os ameríndios. Mesmo em relação aos
negros c outros grupos étnicos, tal categoria parece referir-se só ao período
seguinte à abolição da escravidão. Além do adjetivo, é descabido também
o substantivo. Por um lado a comunidade branca se livra da discriminação
censitária, insistentemente recomendada e até considerada insuperável pelos
expoentes do liberalismo clássico. Por outro lado os proprietários-cidadãos
estão submetidos a uma série de obrigações que dificilmente poderiam ser
incluídos no âmbito da liberdade moderna, teorizada por Constant.
Outras vezes, no lugar de “liberalismo segregacionista”, prefcrc-sc falar,
em referência aberta aos Estados Unidos anteriores à guerra de Secessão, de
“republicanismo aristocrático” ( aristocratic republicanism) . Nesta definição
ficam completamente na sombra a natureza tanto da aristocracia dominante
como da plebe por ela oprimida e a relação entre classes sociais c grupos ét¬
nicos. Contudo, o substantivo permite dar um passo à frente: não estamos na
presença de proprietários interessados só na fração da sua esfera privada; eles
conduzem também uma rica vida política. Enquanto é objeto de uma fruição
,u
Dew, cit. in Hofscadtcr (org.), 1958-82, vol. II, p. 320.
41
Van den Berghe, 1967, p. 6 c 10; Blackburn, 1990, p. 62, 205 c 425.
41Jaflc, 1997, p. 150.
«Fogel, 1991, p. 413.
118 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
não generalizada, a “liberdade moderna” está longe de ser o único objetivo
ao qual aspiram os protagonistas da revolução e os Padres Fundadores dos
Estados Unidos. Para Hamilton é clara a “distinção entre liberdade e escravi¬
dão”: no primeiro caso “um homem é governado por leis às quais ele deu o
seu consenso”; no segundo “é governado pela vontade de um outro”44. Ou,
nas palavras de Franklin, sofrer uma taxação de um corpo legislativo no qual
não se é representados significa ser considerados e tratados como um “povo
subjugado” . Ficar excluídos das decisões políticas, ser submetidos a normas
impostas do exterior, por razoáveis e liberais que sejam, é já sinónimo de
escravidão política ou, pelo menos, constitui o seu início.
De fato, Calhoun, o autor do qual partimos quando nos colocamos a
pergunta crucial (O que é o liberalismo?), mais do que de liberalismo faz
profissão de democracia; é membro influente do partido democrático dos
Estados Unidos. A categoria de liberalismo deveria unificar os dois países
anglo-saxões, mas Calhoun define a Constituição do seu país “democrática,
em contraposição à aristocracia e à monarquia”, e portanto em contrapo¬
sição à Grã-Bretanha, onde permanecem os “títulos nobiliares” e as outras
“distinções artificiais”, abolidas na república norte-americana4*. Claro, não
se trata da democracia sem adjetivos, como leva a pensar o título do livro de
Tocqueville que, como veremos, ao se expressar assim, acha que pode fazer
abstração da condição dos pcles-vermelhas e dos negros. Menos ainda trata-
se da “democracia da fronteira” que um ilustre historiador estadunidense
homenageia, propenso à hagiografia*'; sem considerar o resto, a definição
sugerida por ele evoca, de maneira reticente e acrítica, só a progressiva ex¬
pansão dos colonos brancos pafa o Oeste e portanto só a relação entre duas
das “três raças” de que, como veremos, fala A democracia na América.
Calhoun preocupa-se em distinguir a democracia, da qual quer ser o teó¬
rico, da “democracia absoluta”, culpada por querer pisotear os direitos dos
estados e dos proprietários de escravos4". Estamos nos antípodas, portanto,
da “democracia abolicionista” cara, ao contrário, a um eminente historiador
estadunidense e apaixonado militante afro-americano49. Mas, então, como
definir uma democracia que, longe de querer abolir ou também só remover
ou ocultar a escravidão, a celebra como um “bem positivo”? Às vezes, tem
Entre os hebreus, assim como entre outras nações, encontramos o caso dc ho¬
mens que se venderam (did sell themselves), mas trata-se evidentemente de servidão
(drudgery), não de escravidão (slavery). A pessoa vendida (the Person sold) não está
sujeita a um poder absoluto, arbitrário e despótico: o senhor não tem em momento
algum o direito de matar quem depois de um tempo deverá libertar do seu serviço.
O senhor dc um servo como esse estava tão longe de possuir um poder arbitrário
sobre a sua vida que nem podia mutilá-lo a seu bel-prazcr, uma vez que a perda dc
um olho ou dc um dente rendia para aquele servo a recuperação da liberdade (Êxo¬
do, XXI) (TT, II, 24).
“Os que eram ricos no tempo dos patriarcas, assim como os que são ricos hoje
nas índias Ocidentais, compravam servos e servas ( men and maidservants) c, seja
pela proliferação (increase) destes últimos seja pelas novas aquisições, chegavam a
possuir famílias amplas e numerosas” (TT, I, 130).
59 Mandeville,
1988, vol. II, p. 259 (Quinto diálogo).
60
Mandeville, 1988, vol. I, p. 119; Mandeville, 1988, vol. 1, p. 302 (- Mandeville, 1974,
p. 106).
*' Blackstone, 1979, vol. I, p. 411 12 (livro I, cap. 14).
•
124 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
possibilidade dc dispor dos filhos deles como uma res nullius, nas casas de
trabalho, no exército, nas prisões, no recrutamento dos servos enviados a
colonizar as colónias. Quem chama a atenção sobre a “escravidão inglesa”
e sobre os “escravos brancos”, em 1834, é Wakefield , o economista que já
encontramos. Nesse momento autores das mais diversas orientações políticas
comparam os escravos do outro lado do Atlântico aos operários que penam
na Inglaterra: os anti- abolicionistas, que ecoam o discurso à la Calhoun;
as correntes mais ou menos radicais que aspiram a uma emancipação do
trabalho de forma mais geral; os observadores mais destacados que se limi¬
tam a registrar o fato, como o economista acima citado. E a comparação é
instituída sem se concentrar exclusivamente sobre o espectro da morte por
inanição que incumbe a todo momento sobre o operário inglês. Ccrtamcntc,
é um aspecto que não pode ser ignorado: não são poucos os pobres que, para
escapar à inanição cometem algum crime na esperança de poder sobreviver
como deportados ou “escravos de galés” . Mas, uma atenção não menos im¬
portante é dedicada à violação da liberdade mais propriamente liberal ou da
“liberdade moderna”. Para maior clareza, deixemos as cidades e os centros
urbanos c vamos ouvir o protesto dos camponeses:
“Falando em termos gerais, já que toda regra tem suas exceções, as classes pri¬
vilegiadas dos nossos distritos rurais fazem de tudo para serem odiadas pelos seus
vizinhos mais pobres. Elas cercam as terras comuns [...]. Constroem prisões e as
lotam. Inventam novos crimes e novas punições para os pobres. Interferem nos ma¬
trimónios dos pobres, impondo alguns c impedindo outros. Trancam os miseráveis
nas casas de trabalho, separando marido e mulher, isolando-os de dia e prendendo-
os dc noite. Amarram o pobre ao carro [como um boi]. Controlam os bares, proí¬
bem os jogos do bilhar, condenam as lojas de cerveja, fazem intervenção nas festas
populares, procuram dc toda maneira restringir ulteriormente o pequeno espaço de
diversão do pobre” .
“Do garoto ou do homem pobre inglês espera-se que ele se lembre sempre da
condição na qual Deus o colocou, exatamente como do negro espera-se que se lem¬
bre da pele que Deus lhe deu. Em ambos os casos a relação é a que subsiste entre um
superior e um inferior perpétuo, entre um chefe c um dependente: maior que
possa ser, gentileza ou bondade nenhuma pode alterar essa relação” .
44
Wakefield, 1967, p. 42.
47 Lorimcr, 1978, p. 101-102.
64 Cannon, 1984, p. 172.
49
Lorimcr, 1978, p. 104.
126 CONTRA- H ISTÓ RI A DO LIBERALISMO
nhecido cahier de doléances elaborado pelos camponeses lamenta o fato de
que também nessa circunstância o aristocrático recorre a uma cortina para se
proteger de qualquer “olhar vulgar”70. Quando depois Sénior visita Nápoles,
fica intrigado com a mistura das classes: “Nos climas mais frios, as classes
inferiores permanecem em casa; aqui vivem na rua”. Pior, elas sào tão pouco
distantes das classes superiores que chegam a morar nos subterrâneos dos
palácios senhoriais. Resultado: “Não é mate possível escapar da vista nem do
contato com uma repugnante degradação” .
” Senior,
71
Wakefield, 1967, p. 45.
cit. in Brogan, 1991, p. 52.
71
Smith 1981, p. 98 (- Smith, 1977, p. 80) (livro I, cap. 8).
71
Mandcville, 1988, vol. II, p. 258-59, 261-62 (Quinto diálogo).
74
Mandcville, 1988, vol. I, p. 302 (- Mandcville, 1974, p. 105-106).
TV. Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX? 127
tem necessidade. De alcance bem maior são as intervenções levantadas por
outros expoentes da tradição liberal. Com a finalidade de reproduzir uma
raça possivelmente perfeita de operários dóceis e de instrumentos de trabalho
pode ser até útil o universo de concentração das “casas de trabalho”. Confi¬
nando aqui também os filhos dos delinquentes e dos “suspeitos”, se poderia
produzir - observa Bentham - uma “classe indígena” ( indigenous class), que
se destacaria pela sua laboriosidade e senso de disciplina. Sc depois, se pro¬
movessem matrimónios precoces no interior dessa classe, segurando a prole
como aprendizes até alcançar a maior idade, eis que as casas de trabalho c
a sociedade viriam a dispor de uma reserva inesgotável de força-trabalho de
primeira qualidade. Ou seja, por meio de “a mais gentil das revoluções”, a
sexual , a “classe indígena”, prolongando-se hereditaríamente de geração
em geração, se transformaria em uma espécie de raça “indígena”.
Em uma revolução também “gentil” pensa Sieyès, e sempre com a fina¬
lidade de produzir uma classe ou raça de trabalhadores a mais dócil possível.
Como Bentham, também o liberal francês se abandona a uma utopia (ou
distopia) eugenética. Imagina um “cruzamento” (croisement) entre macacos
(por exemplo o orango) e “negros”, para a criação de seres domesticáveis e
aptos ao trabalho servil: “as novas raças de macacos antropomorfos”. Dessa
forma os brancos, que permanecem no alto da hierarquia social como diri¬
gentes da produção, poderiam dispor tanto dos negros, como instrumentos
auxiliares de produção, como dos verdadeiros escravos, que seriam exata¬
mente os macacos antropomorfos:
“Por quanto extraordinária, por quanto imoral esta idéia possa aparecer à pri¬
meira vista, meditei nela longamente, c não vão encontrar outra saída em uma grande
nação, sobretudo nos países muito quentes ou muito frios, para conciliar os diretores
dos trabalhos com os meros instrumentos de trabalho” .
75
Bentham, cit. in Himmeltàrb, 1985, p. 78-83.
'•Sieyès, 1985, p. 75.
128 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
vista resulta problemático o papel da medicina. Em 1764, Franklin escreve a
um médico:
UA metade das vidas que vocês salvam não é digna de ser salva, porque é
inútil, enquanto a outra metade nem mereceria ser salva porque pérfida. A vossa
consciência nunca vos acusa desta guerra permanente contra os planos da Previ¬
dência?77
Décadas mais tarde, Tocqueville auspicia a possibilidade de livrar-se final¬
mente da “canalha penitenciária” como dos “ratos”, quem sabe até por meio
de um incêndio colossal . O liberal francês “sonha com o genocídio”?™ A
afirmação é exagerada. Resta a dura polêmica contra uma “caridade bastar¬
da” que ameaça a ordem: “É a filantropia de Paris que nos mata”*°.
Uma conclusão de caráter geral se impõe. A tentação eugcnética perpas¬
sa em profundidade a tradição liberal. Não é um acaso que a disciplina que
leva esse nome recebe o seu batismo na Grã Bretanha e alcança depois uma
extraordinária fortuna nos Estados Unidos .
E, tal como para os Estados Unidos, também para a Grã Bretanha somos
obrigados a nos colocar um problema crucial: trata-se de uma sociedade libe¬
ral? Mesmo depois da abolição da escravidão nas colónias propriamente ditas,
não se pode falar, para os habitantes do Reino Unido, de uma fruição genera¬
lizada da liberdade liberal por excelência, isto é, da liberdade moderna.
Desta, certamente, não gozam os irlandeses, submetidos permanente¬
mente - reconhece Tocqueville - a “medidas de exceção” c à mercê dos
“tribunais militares” c de uma gendarmaria numerosa e odiosa: a Castlebar,
com base no Insurrection Act, “todo homem surpreendido sem passaporte
fora da sua casa depois do pôr-do-sol é deportado" . Na imprensa do tempo,
71
Franklin, 1987, p. 803 (carta a J. Fothcrgill dc 1764).
n Tocqueville, 1951, vol.VIII, t. 1, p. 173-74 (carta a G. dc Beaumont, 22 dc novembro
dc 1836).
* Pcrrot, 1984, p. 38.
“ Tocqueville, 1951, vol. IV, t. 1, p. 38.
" Cf. Losurdo, 2002, cap. 19, § 1; cap. 23, § 2.
" Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p. 128-29, 169
IV Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX? 129
a condição dos irlandeses é muitas vezes comparada com a dos negros do
outro lado do Atlântico. Na opinião formulada cm 1824 por um rico merca¬
dor inglês, discípulo de Smith c fervoroso quaere e abolicionista (James Cro¬
pper), os irlandeses encontram-sc em uma condição pior que a dos escravos
negros*'. Em todo caso, os irlandeses representam para a Inglaterra o que os
negros são para os Estados Unidos, trata-se de “dois fenômenos da mesma
natureza”*4: a opinião expressa por Beaumont encontra uma confirmação
indireta em Tocquevillc. Conforme a Democracia na América sabemos da
total surdez da magistratura, monopolizada pelos brancos, diante das justas
reivindicações dos negros. Impõe-se uma conclusão, sugerida também por
um testemunho recolhido no Maryland: “A população branca e a população
negra estão em um estado de guerra. Elas nunca vão se misturar. É necessá¬
rio que uma das duas ceda o lugar para a outra”"' . Uma observação análoga
ouve o liberal francês na ilha subjugada e colonizada pela Inglaterra: wPara
dizer a verdade, não há justiça na Irlanda. Quase todos os magistrados do
país estão em guerra aberta contra a população. Desta forma, a população
não chega a ter a idéia de uma justiça pública”"6. Em um caso como no ou¬
tro, um pilar do Estado de direito, a magistratura, está em guerra contra uma
parte significativa da população.
Nos dois lados do Atlântico para perpetuar a opressão respectivamente
dos negros e dos irlandeses contribuem as normas que impedem ou obs-
taculizam o acesso à instrução e proíbem o matrimónio com os membros
da casta superior. Também na Irlanda a miscegenation é um crime punido
com grande rigor: com base em uma lei de 1725, um sacerdote culpado de
celebrar clandestinamente um matrimónio misto pode até ser condenado à
morte . E também na Irlanda procura-se obstaculizar o acesso da população
nativa à instrução. Sobre este ponto podemos concluir dando a palavra a um
historiador liberal e anglo-irlandês do séc. XVIII: a legislação inglesa visa a
espoliar os irlandeses da sua “propriedade” e “indústria”, visa a “mantê-los
em condições de pobreza, a quebrar neles qualquer germe de empreendi¬
mento, a degradá-los ao status de uma casta servil que nunca poderia esperar
elevar-se ao nível dos seus opressores”**.
,0°
Marx, Engcls, 1955-89, vol. XXIII, p. 756, 758.
IV. Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII e XIXP 135
No lugar dc “individualismo proprietário” parecem mais apropriadas as
categorias que, em relação à Inglaterra do tempo, udlizam alguns autores
liberais de grande destaque no séc. XIX. Aos olhos dc Constant “a Inglater¬
ra, no fundo, não passa de uma grande, opulenta e vigorosa aristocracia”1"1.
Não é diferente a avaliação formulada por Tocqueville nos anos 30: “Não
só a aristocracia aparece estabelecida mais solidamente do que nunca, mas
a nação deixa o governo, sem aparentes sinais dc desaprovação, nas mãos
de um grupo restrito de famílias”, dc uma “aristocracia”, que é em primei¬
ro lugar aquela fundada sobre o “nascimento” ; claramcnte, estamos na
presença dc uma “sociedade aristocrática”, caracterizada pelo domínio dos
“grandes senhores” . De resto, é o próprio Disraeli quem acusa o partido
whig, há muito tempo no domínio do país emanado da Gloriosa Revolução,
por ter visado a instaurar uma aristocracia e uma oligarquia no modelo de
Veneza104.
101
Constam, 1830, vol. I, p. 23.
,w
Tocqueville 1951, vol. XIII, t. 2, p. 327 (carta a L. de Kergorlay, 4 dc agosto de
1857).
103
Tocqueville, 1951, vol. I, t. 2, p. 113- 14 (La dctnocrazia in America, livro II, dc agora
cm diante DA2-, cap. II, 5).
"* Disraeli, 1982, p. 323-24 (livro VII, cap. 4).
105 Constant, 1957, p. 155, 150-51 (- Constant, 1969, p. 41, 36).
104
P-
Tocqueville 1951, vol. XIII, t. 2, p. 333 (car ta a L. dc Kergorlay, 27 dc fevereiro dc
1858).
136 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
formas de liberdade”; não se deve confundir ua concepção democrática e,
ouso dizer, a concepção justa de liberdade”, com a “concepção aristocrática
de liberdade”, entendida não como “direito comum”, mas como “privilé¬
gio”. É esta última visão que prevalece na Inglaterra, tal como “nas socieda¬
des aristocráticas” cm geral, com a consequência de que não há lugar para
a “liberdade em geral” . A democracia na América registra c sustenta a
observação de um cidadão estadunidense que tem viajado longamente pela
Europa: “Os ingleses tratam os servos com uma superioridade c um abso¬
lutismo que não deixam de nos impressionar” . Não é que esteja ausente
o pathos da liberdade naqueles que se comportam como patrões absolutos.
Ao contrário:
“Pode ate acontecer que o amor pela liberdade seja tanto mais forte em alguns
quanto menos existam garantias de liberdade para todos. A exceção neste caso é
tanto mais preciosa, quanto mais é rara.
Esta concepção aristocrática da liberdade produz, naqueles que foram educados
desta maneira, um sentimento exaltado do seu valor individual e um gosto apaixo¬
nado pela independência”
,or
Tocqueville, 1951, vol. 11, t.l, p. 62.
Tocqueville, 1951, vol. 1, 2, p. 185 (DA2, cap. Ill, 5).
,w
Tocqueville, 1951, vol. II, t. l,p.62.
"“Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 357 (DAI, cap. II, 10).
Tocqueville, 1951, vol. I, t. 2, p. 21 22 (DA2,cap. I, 3).
IV. Eram liberais a Inglaterra e os Estados Unidos nos séculos XVIII e XIX? 137
falar de sociedade liberal para a Inglaterra da mesma forma que Burkc fala de
sociedade liberal para a Virgínia e para a Polónia do seu tempo. Um ponto
essencial resta firme: muitas vezes excluídas da fruição dos direitos civis e da
liberdade negativa, na própria Inglaterra, por reconhecimento indireto mas
tanto mais significativo de Tocqueville, as classes populares continuam a ser
separadas da classe ou casta superior por um abismo que leva a pensar no
abismo vigente em um Estado racial.
Nesse sentido pode-se dizer que, por algum tempo, também a sociedade
derivada na Inglaterra da Gloriosa Revolução se configura como uma espccie
de “democracia para o povo dos senhores”, à condição, claro, de entender
esta categoria em um sentido não puramente étnico. Também neste lado do
Atlântico uma barreira intransponível separa a comunidade dos livres e dos
senhores da massa dos servos, não por acaso comparados por Locke aos “in¬
dígenas”. E, longe de contentar-se com a liberdade negativa, a aristocracia
dominante cultiva ideais de participação ativa na vida pública, cultiva ideais
“republicanos”. Nisso se apóiam alguns respeitados analistas hodiernos, que
a tal respeito falam de visão “neo-romana” ou de “momento maquiavelia-
no”"2. E novamente nos deparamos no perigo da involuntária transfigura¬
ção: as duas categorias apenas examinadas colocam em evidência o pathos
da participação livre c igualitária na vida pública, mas acabam por silenciar
as macroscópicas cláusulas de exclusão que tal pathos pressupõe. O ideal de
uma rica vida política, de tipo “neo-romano” ou “maquiaveliano” está bem
presente em um autor como Fletcher, que por um lado se declara “republi¬
cano por princípio”, por outro teoriza a escravidão contra os vagabundos.
A esses ambientes pode ser associado também Locke. Ele se pronuncia a
favor da escravidão negra nas colónias e da servidão ou semi-servidão para os
trabalhadores assalariados na metrópole; ao mesmo tempo, com o olhar vol¬
tado para a aristocracia, ele desenvolve um pathos do Commonwealth e da
civitas, que ecoa os modelos republicanos da antiguidade: esta, pelo menos,
é a opinião de Josiah Tucker, que localiza c denuncia cm Locke um “whig
republicano” e escravista
Mas, talvez, o autor que na Inglaterra expressa melhor o ideal da “de¬
mocracia para o povo dos senhores” é Sidney. Nele, é fortíssima a insistência
sobre a igualdade dos homens livres: “a igualdade na qual os homens nas¬
ceram é tão perfeita que ninguém suportará uma sua limitação a menos que
também outros não façam a mesma coisa”. Sem apelação é a condenação da
1
Voltaire, 1964, p. 246 (X carta).
2 Voltaire, 1964, p. 239 (VIII carta).
* Helvétius, 1967-69, vol. VIII, p, 86 (seção II, cap. 19); pela crítica a Helvétius, cf. Di¬
derot, 1994, p. 862.
4 Diderot, 1963,
p. 41, s.t. Représentants.
140 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
menos de dez anos depois, ao propor reservar os organismos representativos
para os “grandes proprietários” , ele mostra que ainda olha com grande in¬
teresse para as instituições políticas existentes no outro lado da Mancha. Elas
têm o mérito, também para Condorcet, de ter realizado, embora de forma
nem sempre adequada, os princípios da limitação do poder monárquico, da
liberdade de imprensa, do habeas corpus, da independência da magistratura6.
De fato, dois anos antes da tomada da Bastilha e da irrupção das mas¬
sas populares na cena política, o modelo inglês parece triunfar também na
França: apoiados por um amplo consenso popular, os Parlamentos dos no¬
bres desafiam o absolutismo monárquico: o “anti-absolutismo parlamentar”
ou o “liberalismo aristocrático” torna-se o porta-voz de uma “reivindicação
liberal” muito difundida'. Apanágio de uma nobreza que, em virtude tam
bém da venalidade dos cargos, se abre à burguesia, os Parlamentos franceses
por algum momento parecem destinados a inaugurar a instauração de uma
monarquia constitucional e a desenvolver uma função análoga à da Câmara
dos Pares e da Câmara dos Comuns na Inglaterra. Não é um acaso que eles
se inspiram em Montesquieu, já presidente do Parlamento de Bordeaux e
grande admirador do país derivado da Gloriosa Revolução.
Para essa ocasião clamorosamente perdida olha com pesar Burkc, quan¬
do pronuncia o seu duro requisitório contra uma revolução rápida e infe¬
lizmente degenerada. Se esta tivesse sido contida na fase em que a luta era
dirigida pelos Parlamentos,
10
Burkc, 1826, vol. V, p. 13-14.
11 Burkc, 1826, vol. V, p. 18 19.
142 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
menos depois de 1848 faz uma exaltação do período em que o movimen¬
to é conduzido pelos Parlamentos, todos orientados a derrubar “o antigo
poder absoluto” e “o velho sistema arbitrário” e a conquistar a “liberdade
política”, no âmbito de uma luta promovida e dirigida não pelas “classes
baixas” mas pelas “mais altas”1*. Certamente, ao contrário de Burke, que
tende a pensar a agitação parlamentar cm base ao modelo da “denomina¬
da” Gloriosa Revolução, Tocqueville faz questão de evidenciar que já nessa
fase, não obstante as aparências, estamos na presença de uma autêntica
revolução:
“Não se deve pensar que o Parlamento apresentasse estes princípios como sen¬
do uma novidade; ao contrário, os extraia muito engenhosamente dos abismos da
antiguidade da monarquia [...]. É um espetáculo estranho ver idéias apenas nascidas
enxovalhadas com panos antigos”13.
“Os habitantes das colónias do Sul são mais fortemente agarrados à liberdade
que os do Norte. Assim foram todos os antigos Estados, assim foram os nossos
antepassados góticos, assim foram os poloneses da nossa era, e assim serão todos
os patrões de escravos que não sejam escravos eles mesmos. Nestes povos a supe¬
rioridade do império combina com o espírito da liberdade, o fortifica ou o torna
invencível”1*.
“valorosos americanos, que preferiram ver suas mulheres ultrajadas, seus filhos
trucidados, suas casas destruídas, seus campos devastados, suas cidades incendiadas,
e que preferiram derramar o seu sangue e morrer, no lugar de perder parte da sua
liberdade por menor que fosse”14.
44
Diderot, 1994, p. 895.
45 Raynal, 1981, p. 257.
44
Cf. Losurdo, 1983, p. 90-91.
,r
Clavièrc, Brissot, 1996, p. 324-25.
150 CONTRA- HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Da mesma forma feia Condorcet: os colonos rebeldes são os “amigos
da liberdade universal”4*; portanto, pode-se partir do pressuposto de que a
mancha da escravidão vai ser rapidamente lavada:
51
Malouet, 1788, p. 27, 33-34; cf. Biondi, 1973, p. 23-28.
M
Barnave, 1960, p. 13, 18, 35.
ssBarnave, 1960, p. 28-29.
*•Cf. os artigos 44-46 de Code Noir in Sala-Molins, 1988, p. 178-83.
V A revolução na França e em Santo Domingo... 153
“A Assembléia nacional declara que cia não teve a menor intenção de inovar
nenhum setor do seu comércio com as colónias; ela coloca os colonos c as suas pro¬
priedades sob a proteção especial da nação; declara criminoso contra a nação todo
aquele que viesse a tramar para atiçar levantes contra eles”.
Trata-se de uma polemica que, para além dos colonos franceses, atinge também
os Estados Unidos, como é confirmado por uma ulterior posição de Mirabeau:
“Eu não vou degradar nem esta assembléia nem a mim mesmo procurando de¬
monstrar que os negros têm direito à liberdade. Voccs decidiram tal questão quando
declararam que todos os homens nascem e permanecem iguais e livres; e não é desta
parte do Atlântico que solistas corruptos ousarão sustentar que os negros não são
homens"5’.
"
63
Foncr, 2000, p. 73.
Grcgoirc, 1997, 42-43.
64 Bcnot, 1992, p.&
“ Jordan, 1977, p. 454-55.
156 CONTRA- H ISTÓRI A DO LIBERALISMO
república e o “senado comum que os representa” concordam em abolir a
escravidão; é um “ato de justiça” imposto pela “humanidade” mas também
pela “honra”. Nesta última observação está já implícito um forte alerta:
“Como ousar, sem envergonhar-se, reivindicar estas declarações dos direitos,
estes baluartes invioláveis da liberdade, da segurança dos cidadãos, se todos
os dias tomamos a liberdade de violar os artigos mais sagrados?”
Alguns anos mais tarde, a distância passa a ser mais explícita, embora ela
continue a se manifestar em termos cautelosos: em relação à revolução fran¬
cesa a americana apresenta-se “mais tranquila”, mas também “mais lenta”
e “mais incompleta”. Sim, antes ou depois, também a segunda acabará por
fazer prevalecer na sua universalidade o princípio da liberdade e da igualdade;
mas, no entanto, continuam a enfurecer os “delitos cuja avidez conspurca
os territórios da América, da África ou da Ásia”, a “desfiguração sanguinária
pelos homens de uma outra cor”, o comércio dos negros entre os dois lados
do Atlântico, a tragédia da África e o “vergonhoso banditismo que a corrom¬
pe e a despovoa há dois séculos”; é mérito, ao contrário, da mais avançada
cultura francesa tratar como “amigos [...] aqueles mesmos negros que os seus
estúpidos tiranos desdenhavam de incluir entre os homens” .
Vimos Condorcet denunciar a “corrupção geral” da Holanda e Inglater¬
ra como sociedades escravistas. Essa denúncia tende cada vez mais a atingir
também o país derivado da terceira revolução liberal. O Terror já ameaça
o próprio Condorcet, que mesmo assim reconhece na França revolucionária o
país chamado a acabar com
“aquela política astuta e falsa que, esquecendo que todos os homens tem direi¬
tos iguais cm virtude da sua própria natureza, queria por um lado medir a extensão
dos direitos a serem concedidos em base à grandeza do território, do clima, do ca¬
ráter nacional, da riqueza do povo, do grau de perfeição do comércio c da indústria;
por outro lado queria subdividir de maneira desigual estes mesmos direitos entre
diferentes classes de homens, atribuindo-os ao nascimento, à riqueza, à profissão, c
criando assim interesses contrários e poderes opostos, para depois estabelecer entre
eles um equilíbrio que toma-se necessário só por essas instituições e que não chega
a corrigir as perigosas influências64.
“A república do Haiti, só pelo fato de existir, poderá ter uma grande influência
sobre o destino dos africanos no novo mundo [...]. Uma república negra no meio
do Atlântico é um farol elevado, para o qual dirigem o olhar os opressores enrubes¬
cendo e os oprimidos suspirando. Olhando-o a esperança sorri para cinco milhões de
escravos espalhados nas Antilhas e no continente americano”74.
77
Schoelcher, 1998, p. 312-13.
Schoelcher, 1948, p. 75.
~
“
Schoelcher, 1948, p. 97.
Benot, 1988, p. 40.
" Sir Thomas Aston, cit. in Hill, 1961,p. 188.
160 CONTRA- HISTÓRIA O LIBERALISMO __
vamentc a assimilação aos “nossos bens” e, em contraposição à “verdadeira
liberdade” cara ao expoente já conhecido do proto-liberalismo inglês, reivin¬
dicaram uma liberdade totalmente diferente, que exigia a intervenção do po¬
der político para liquidar a servidão nas suas diversas formas e promover de
alguma maneira a emancipação das classes subalternas. É o que acontece na
França, graças também ao contexto historicamente favorável já analisado. Na
metrópole, ao primeiro início liberal da revolução segue-se imediatamente a
revolta dos servos dos campos (com o fim, selado na noite de 4 de agosto de
1789, do sistema feudal) e, sucessivamente, a agitação das massas populares
urbanas. O segundo início liberal, que deveria ter consagrado o autogoverno
dos proprietários de escravos, acaba por estimular a revolução dos próprios
escravos. Estes conseguem a emancipação e, mais tarde, chegam a bloquear
a terrível máquina de guerra da França napoleônica.
Uma dialética análoga manifesta-se na América Latina. Inicialmentc, o
movimento independendista e a revolução se configuram como reação às
reformas da Coroa espanhola, que “invertem a velha política de segregação
dos índios e solicitam a sua assimilação falando espanhol e trajando-se à eu-
ropéia”. Essas medidas de integração não tardam a suscitar a hostilidade da
elite crioula. Esta se professa c é liberal, lê Locke, Montesquieu, Adam Smi¬
th, procura entrar cm relação com Jefferson, protesta contra as interferências
do governo central e contra os obstáculos levantados por ele ao desenvolvi¬
mento da indústria local, aspira a seguir o exemplo da revolução americana .
Tal como para os colonos ingleses do Norte, também para os crioulos lati¬
no-americanos, o escravo, enquanto propriedade privada do fazendeiro, não
tem acesso à esfera pública; nos diversos manifestos, que sinalizam o início
da guerra de independência contra a Espanha, não há nenhuma tomada de
posição a favor da abolição da escravidão .
Por outro lado, se os colonos ingleses haviam rechaçado com indignação
a tentativa de Ixmdres de bloquear a sua expansão para além do Allegheny
c haviam proclamado orgulhosamente que não queriam ser tratados como
negros, de maneira análoga os crioulos latino-americanos reivindicam a sua
igualdade em relação à classe dirigente da península e a sua superioridade em
relação aos índios e, obviamente, aos escravos deportados da África. Por isso
lembram a Madrid que eles são os descendentes dos conquistadores e, em
última análise, os artífices da grandeza do império espanhol. Somos levados
M
Franklin, 1987, p. 407, 760.
“ Blackburn, 1990, p. 345-7; Langlley, 1996, p. 194.
** Bolívar, s. d., vol. 1, p. 168 c vol. III, p. 680.
r Bolívar, s. d., vol. I, p. 170.
162 CONTRA- H ISTÓRI A DO LIBERALISMO
rais”, que devem sancionar “os direitos do homem, a liberdade de agir, de
pensar, de folar e de escrever” , além da “divisão e o equilíbrio dos poderes,
a liberdade civil, de consciência, de imprensa”, enfim, “tudo o que de subli-
me há na política”; celebra a “Constituição britânica” e, sobretudo, a ame¬
ricana, a “mais perfeita das Constituições” . No entanto, quando reivindica
não apenas a liberdade mas a “liberdade absoluta dos escravos”, Bolívar toma
de foto as distâncias dos Estados Unidos onde, também no Norte, os negros
ficam reclusos cm uma casta que não é a dos homens realmente livres. E este
distanciamento da república norte-americana é confirmado pela ulterior ob¬
servação, em base à qual “é impossível ser livres e escravos ao mesmo tempo”.
Mas, acima de tudo, é significativo um outro elemento: a revolução de baixo
dos escravos, que nos Estados Unidos constituía um pesadelo generalizado,
torna-se objeto de explícita celebração. Bolívar não apenas evoca a “história
dos hilotes, de Espártaco e de Haiti” , mas, define a identidade venezuelana
e latino-americana de uma maneira sobre a qual vale a pena refletir:
“Leve-sc em conta que o nosso povo não é europeu nem nortc-amcricano; mais
do que uma emanação da Europa, ele é uma mistura de Africa e de América, porque
a própria Espanha deixa de ser Europa pelo seu sangue africano, as suas instituições
c o seu caráter. É impossível determinar exatamente à qual família humana perten¬
cemos. A maioria dos indígenas foi aniquilada, os europeus se misturaram com os
americanos e os africanos, c estes com os índios e os europeus. Nascidos todos do
seio de uma mesma Mãe, os nossos pais, diferentes por origem c sangue, são estran¬
geiros uns aos outros e todos diferem visivelmente pela cor da pele. Essa diversidade
comporta uma consequência da maior importância.
Os cidadãos da Venezuela gozam todos, graças à Constituição, intérprete da
Natureza, de uma perfeita igualdade política”91.
“Encontrei nos Direitos dos estados o único contrapeso válido da vontade so¬
berana. Encheu-me de esperança a secessão, vista não como a destruição mas como
a redenção da democracia [...]. Portanto, achei que vocês estavam combatendo as
batalhas da nossa liberdade, do nosso progresso, da nossa civilização; e pela causa
derrotada cm Richmond sofro mais profúndamente do que tenha me alegrado pela
causa vitoriosa em Waterloo”1M.
104
Acton, 1985-88, vol. I, p. 257-58.
Lieber, cit. in Freidcl, 1968, p. 255.
,0*
Disraeli, 1852, p. 324 e 327 (cap. 18).
107
Lieber, cit. in Freidcl, 1968, p. 125.
168 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
“Mas introduzi-la cm novos estados, difundir esta peste horrível sobre uma
superfície da terra que ate agora foi imune, impor todos os crimes c todas as misérias
que acompanham a escravidão a milhões de homens das futuras gerações (patrões ou
escravos), que disso poderiam ser poupados, é um crime contra o gênero humano, c
isso parccc-me aterrador e sem saídas”108.
Mas isso não pode durar para sempre. É inadmissível que “nas cláusulas
dc algum contrato possa ser contida a eliminação do direito e do dever que a
geração presente tem de impedir a difusão do mais horrível de todos os males
sociais sobre milhões e milhões de homens das gerações futuras” . Apaixo¬
nada é a condenação da escravidão, e, todavia, talvez seja necessário tolerar
por algum tempo a manutenção c até a extensão desse instituto. O motivo
emerge de uma carta enviada ao economista inglês Sénior: a divisão do país
que talvez mais do que qualquer outro encarna a causa da liberdade “abriria
uma grave ferida em toda a raça humana, atiçando a guerra no coração dc um
grande continente de onde ela tem sido abolida há mais de um século”
Tocqueville está disposto a sacrificar a causa da abolição da escravidão ao
objetivo dc salvar a unidade e a estabilidade dos Estados Unidos.
Mesmo fortemente estimulado primeiro pela guerra dos Sete anos e a
perda dc grande parte das colónias e depois pela revolução de Santo Domin¬
go, na própria França o radicalismo abolicionista dura uma breve estação.
Logo após o Termidoro, e na realidade já no momento da sua preparação,
“A menos que a potência de Deus vos tenha dado forças para ser como Athana¬
sius contra ntundum, não vejo dc que maneira vós possais levar adiante o vosso glo¬
rioso plano contra essa execrável infâmia, que é o escândalo da religião, da Inglaterra
e da natureza humana. A menos que Deus não vos tenha elevado para esta grande
causa, sereis vencidos pela opressão dos homens e dos demónios; mas se Deus está
convosco, quem pode estar contra vós? Será que, colocados todos juntos, eles são
mais fortes que Deus? Oh, nunca canseis das vossas boas ações. Continueis cm nome
dc Deus e apoiados pela Sua potência, ate que seja eliminada a escravidão americana,
a mais vil jamais aparecida sobre a face da terra”122.
“Não conheço outro governante que não seja Deus, não conheço outra lei senão
a lei da Justiça natural [...]. Não tenho medo dos homens. Posso ofendê-los. Não mc
preocupo em nada do seu ódio e da sua esdma. Mas eu nunca devo ousar violar a lei
eterna de Deus. Não devo ousar violar as Suas leis aconteça o que acontecer”12*.
125
Sharp, cit. in Davis, 1975, p. 387-90, 395.
'*•Parker, cit in Commager, 1978, p. 212.
,,T
Sharp, cit in Davis, 1975, p. 401.
,,â
Parker, cit in Commager, 1978, p. 207.
_ V A revolução na França eem Santo Domingo... 175
aberto e declarado: “Há normas tão malvadas que violá-lasÿé dever de todo
homem”; “rebelião contra os tiranos é obediência a Deus”
A Constituição federal, que obriga a União no seu conjunto a defender
os estados escravistas contra uma eventual revolução dos escravos, parece a
Garrison como um “acordo com o Inferno” c um “pacto com a Morte”;
em 1845, um outro abolicionista estadunidense, Wendell Phillips, chama
a atenção sobre o açambarcamcnto por parte dos proprietários de escravos
dos cargos públicos mais importantes e sobre a triplicação dos escravos que
aconteceu a partir da publicação da Constituição federal, que é portanto
designada como uma “Convenção a favor da escravidão” ( Pro -Slavery Com¬
pact); não é mais lícita a coexistência entre estados escravistas e estados livres,
a menos que estes últimos não queiram se tornar “cúmplices da culpa e co-
responsáveis do pecado da escravidão” . Compreendcm-se então as mani¬
festações de praça em que se queima a Constituição americana. Nos anos que
antecedem a guerra de Secessão, quando por um momento tem a ilusão de
que o Sul está para ceder, Parker exulta nestes termos: “O Demónio está em
grande cólera porque sabe que o seu tempo está no fim”
A partir dessa visão, nenhum compromisso é possível. E Garrison o diz
de maneira explícita. A sua polêmica assume tons aparentemente ameaçado¬
res contra os defensores do instituto da escravidão e os seus cúmplices, mas
é também sem apelação a condenação dos teóricos da “abolição graduar e
da “moderação” e até daqueles que no Norte dão amostra de “apatia” ou
de escasso entusiasmo em relação à “bandeira da emancipação”132 e da luta
contra a escravidão, este “crime odioso aos olhos de Deus” . Radicalismo
abolicionista e fúndamentalismo cristão se entrelaçam, como resulta do ape¬
lo à cruzada contra “os governos deste mundo”, que “nos seus elementos
essenciais, pela maneira como são atualmente administrados, são todos Anti-
Cristo”. Trata-se ao contrário de realizar
“Somos levados a crer que a escravidão está quase extirpada pelo fato de que
nada sabemos dela nesta parte do mundo, mas, ainda nos nossos dias, ela é pratica-
me n teuniversal. Uma pequena parte da Europa ocidental é a única parcela do globo
que está imune, e trata-se de muito pouco em relação aos amplos continentes nos
quais a escravidão ainda predomina”141.
,u
Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 209 (DAI, cap. II, 5).
180 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
causa das “instituições liberais” e do Self-Government, a “grande missào” dc
difundir a liberdade no mundo. “Todo americano” deve sempre ter presente
a grandeza dos princípios e dos textos constitucionais do seu país; diversa-
mente se assemelharia ao “missionário que pretende converter o mundo sem
ter consigo a Bíblia e o Livro das Orações”
Se para o autor liberal é o texto sagrado da liberdade, para os radicais
Garrison e Phillips a Constituição estadunidense, que sanciona escravidão
e Estado racial, é um instrumento de Satanás. Para além do peso muito di¬
ferente atribuído ao problema da escravidão, deparamo-nos diante de duas
contrapostas delimitações da geografia política, do campo dos amigos e dos
inimigos. Não obstante a polêmica e o conflito sobre a escravidão, os dife¬
rentes expoentes do liberalismo continuam a se reconhecer como membros
do mesmo partido e da mesma comunidade dos livres. Desse âmbito, ao con¬
trário, são substancialmcnte excluídos os negros, que à distância de décadas
Jefferson e Lincoln querem deportar da União e que não por acaso, mesmo
depois da emancipação primeiro no Norte e depois no Sul, não chegam a
gozar nem da igualdade política nem da civil. Montesquieu, Tocqucville,
para não falar dc Lieber e Acton, podem até criticar a escravidão, resta o fato
de que os seus interlocutores não são os escravos negros mas os seus patrões.
Estes últimos são chamados a dar prova de sensibilidade moral e de coerên¬
cia política c portanto consentir com a eliminação dc uma mancha que pesa
sobre a credibilidade da comunidade dos livres enquanto tal.
Muito diferente é a atitude de Condorcet. Eis em que termos dirige-se,
em 1781, aos escravos negros:
“Caros amigos, embora eu não seja da mesma cor de vocês, sempre vos con¬
siderei como meus irmãos. A natureza vos formou para ter o mesmo espírito, a
mesma razão, as mesmas virtudes dos brancos. Eu falo aqui só dos brancos da Eu¬
ropa; porque, cm relação aos brancos das colónias, não quero cometer a ofensa de
compará-los a vocês [...]. Sc formos procurar um homem nas ilhas da América, não
o encontraríamos entre as populações brancas"145
,M
Lieber, 1859, p. 264,21.
Condorcet, 1968, vol. VII, p. 63.
V. A revolução na França e em Santo Domingo... 181
çào o radicalismo. Pode parecer discutível utilizar essa categoria a propósito
de um autor que recomenda o método mais gradual possível no processo de
abolição da escravidão. Mas, não é esse o ponto essencial. O próprio Marat,
ainda em 1791, propõe “preparar gradualmente a passagem da escravidão à
liberdade”. E, todavia, já nessa época, condenando sem apelação “a barbárie
dos colonos”, não é a eles que se dirige para realizar a desejável mudança c
nem exatamente à Assembléia nacional que, estipulando um pacto com os
escravistas, tem pisoteado os direitos do homem e “os fundamentos sagrados
da Constituição” . Os interlocutores reais tendem a ser os próprios escra¬
vos negros, como ficará claro no decorrer da sucessiva evolução de Marat.
No tocante a Condorcct, apesar do caráter gradual do seu abolicionismo,
ele direciona para os brancos escravistas a carga de desumanização posta em
marcha por eles contra os negros.
Trata-se de uma atitude que pode amadurecer também a partir de uma
consciência profundamente cristã. Assim expressa-se Garrison, em 1841, a
propósito dos proprietários de escravos:
“Com eles não é lícita nenhuma associação, política ou religiosa: eles são os
ladrões mais vulgares e os piores bandidos (melhor pensar cm algum acordo com
os detentos de Botany Bay e da Nova Zelândia) [...]. Não podemos reconhecê-los
como membros da cristandade, da república, da humanidade”147.
144
Cf. “I.’Ami du Pcuplc”, 18 dc maio dc 1791, in Bcnot, 1988, p. 120-21.
Garrison, cit in Mcrriam, 1969, p. 209.
Stockdale, cit. in Geggus, 1982, p. 127.
,4*
Raynal, 1981, p. 202-203.
182 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
tradição liberal, podemos nos deparar, com Smith, na evocação de uma di¬
tadura do alto que ponha fim ao escândalo de um instituto que mancha a
comunidade dos livres, nunca no auspício de uma revolução de baixo. Co¬
nhecemos a simpatia e a admiração com a qual Grégoire e Schoelcher olham
para Toussaint Louverture e o Haiti. São dois nomes de pessoa e de lugar
que não aparecem em Tocqueville. Em relação a Santo Domingo ele limita-
se a mencionar a “sangrenta catástrofe que encerrou a sua existência” . Pa¬
radoxalmente, a ilha deixa de existir no mesmo momento em que ela acaba,
pela primeira vez no continente americano, com o instituto da escravidão!
Enfim, Diderot evoca uma observação de Helvétius: “Qual a razão da
extrema potência da Inglaterra? O seu governo”. Em seguida, a esta ava¬
liação, acrescenta uma peÿunta polêmica: “Mas, qual a razão da pobreza
da Escócia e da Irlanda?” O julgamento da metrópole não pode vir mais
separado do das colónias e semi-colônias. A Inglaterra c os Estados Unidos,
os lugares sagrados da liberdade aos olhos de Tocqueville, são ao mesmo
tempo, do ponto de vista de autores como Diderot e Schoelcher, os respon¬
sáveis do despotismo mais feroz e mais bárbaro. Mesmo quando critica a
escravidão, a tradição liberal não coloca em discussão a identificação do Oci¬
dente com a civilização e do mundo colonial com a barbárie. É diferente a
posição do radicalismo, que localiza e denuncia a barbárie em primeiro lugar
nos responsáveis e nos cúmplices daquela que é a mais macroscópica violação
dos direitos e da dignidade do homem.
Herdeiros do radicalismo podem ser considerados Marx e Engels. Para
o primeiro cm particular, não é apenas epistemológica e politicamente arbi¬
trário ignorar a realidade político-social das colónias, mas é justamente daqui
que é necessário partir para compreender, como veremos, a “barbárie” da
sociedade burguesa.
,so
Tocqueville, 1951, vol. IV, t. 1, p. 278.
Diderot, 1994, p. 895.
V. A revolução na França e em Santo Domingo... 183
passa por cima da escravidão infligida às populações coloniais ou de origem
colonial: só a essa condição Montesquieu, Blackstone e os revolucionários
americanos podem apontar como modelo de liberdade a Inglaterra ou os
Estados Unidos.
Isso vaie também para Tocqueville. Ele descreve com lucidez e sem in¬
dulgências o tratamento desumano imposto aos peles-vermelhas e negros.
Os primeiros são obrigados a sofrer os “males terríveis” que acompanham
as “emigrações forçadas” (isto é as sucessivas deportações impostasÿpelos
brancos) e chegam a estar perto de serem cancelados da face da terra . Em
relação aos segundos, se deixarmos de lado os estados propriamente escra¬
vistas do Sul: qual é a situação vigente nos outros? Além das duras condições
materiais dc vida, da “existência precária e miserável”, da miséria desesperada
e de uma mortalidade mais elevada do que entre os escravos ' ‘ , sobre o negro
livre em teoria pesa também a exclusão da fruição dos diretos civis (além dos
políticos): ele é submetido à “tirania das leis” e à “intolerância dos costumes”
(supra, cap. II, § 7). E, portanto, mesmo prescindindo do Far West e do
Sul, até para os estados livres não se pode falar de democracia nem a rigor
de governo da lei. Mas, não é essa a conclusão à qual chega Tocqueville, que
celebra a democracia, “viva, ativa, triunfante” que ele vê em ato nos Estados
Unidos:
“I-á vereis um povo cujas condições são mais iguais do que as existentes entre
nós; onde a organização social, os costumes, as leis, tudo é democrático; onde tudo
emana do povo e a ele retorna, e onde, no entanto, cada indivíduo goza dc uma
independência mais completa, dc uma liberdade maior que em algum outro tempo
ou em algum outro lugar da terra”,M.
*** Tocqueville, 1951, vol. I, t.l, p. 367 e nota 41 (DAI, cap. II, 10).
lS4
Tocqucville, 1951, vol. III, t. 3, p. 174 (Discurso na Assembléia constituinte, 12 de
setembro dic 1848).
184 CONTRA- H ISTÓ RI A DO LIBERALISMO
nhecer quais os seus costumes. Poderia parar aqui”. É apenas para evitar uma
possível decepção do leitor que ele fala das três “raças”: “Estes argumentos
que tocam o meu objeto, não são sua parte integrante: referem-se à Amé¬
rica, não à democracia, e eu quis retratar principalmente a democracia”
Pode-se definir a democracia e enaltecer a liberdade concentrando a atenção
exclusivamentc sobre a comunidade branca. Se, ao contrário, considerarmos
arbitrária essa abstração e levarmos em conta o entrelaçamento entre escravi¬
dão e liberdade evidenciado por acreditados estudiosos estadunidenses, não
podemos deixar de nos admirar da ingenuidade epistemológica mais do que
política de Tocqueville: ele celebra como lugar de liberdade um dos poucos
países do Novo Mundo em que vigora e prospera a escravidão-mercadoria
sobre base racial e que, na época da viagem do liberal francês, tem como pre¬
sidente Jackson, proprietário de escravos e protagonista de uma política de
deportação e dizimação contra os peles-vermelhas; um presidente, além do
mais, que, bloqueando a difusão postal do material abolicionista, golpeia a
liberdade de expressão também de setores não insignificantes da comunidade
branca.
Essa ingenuidade encontra a sua complementação cm um liberal discí¬
pulo de Tocqueville, isto é, em Édouard Laboulaye. Ele, também, à França
das intermináveis convulsões revolucionárias contrapõe os Estados Unidos:
aqui - observa ele em 1849 na aula inaugural (publicada de modo autónomo
no ano seguinte) de um curso dedicado exatamente à história daquele país
- uma Constituição caracterizada por uma extraordinária “sabedoria” c pela
recusa de qualquer elemento “demagógico” permite gozar a tranquilidade e,
ao mesmo tempo, a maior liberdade e “a mais absoluta igualdade política”,
uma igualdade “completa, absoluta, seja nas leis como nos costumes”
Do problema das relações entre as três raças de que fala Tocqueville outra
coisa não resta senão a celebração dos extraordinários sucessos obtidos por
“uma nação de raça européia”, por esta “forte raça de emigrantes” ou por
este “povo de puritanos”, em outras palavras, pela “raça americana”; em¬
bora estejamos na presença de uma vicissitude que acontece no outro lado
do Atlântico, ela reveste de glória a “nossa raça” (européia e branca) no seu
conjunto \ Trata-se de uma visão reafirmada dez anos depois, no âmbito de
155
cqueville, 1951, vol. I, t. l,p. 331 (DAI, cap. II, 10).
Toc
154
La boulaye, 1850, p. 10-11.
Laboulaye, 1850, p. 6, 9 10, 17.
V A revolução na França e em Santo Domingo... 185
um ensaio emocionado publicado em ocasião da morte de Tocqueville: a ho¬
menagem dedicada ao autor de A Democracia na América amalgama-sc com
a homenagem à “bela Constituição federal que há setenta anos protege a
liberdade dos Estados Unidos . Estamos na véspera da guerra de Secessão.
Mas, também a sua eclosão não parece estimular em Laboulaye ulteriores re¬
flexões: resta o fato de que nos Estados Unidos vigora “a liberdade completa,
franca, sincera”; o sangrento conflito em curso demonstra a “coragem” de
“um povo livre que sacrifica tudo à manutenção da unidade” do país
Só na reconstrução da história da América do período colonial, Labou¬
laye sente-se obrigado a enfrentar o tema da escravidão. Mesmo atenuada
pelas referencias ao “clima” (que tornava intolerável o trabalho para os bran¬
cos mas não para os negros), às circunstancias históricas (no período em que
recrudescia, “o comércio dos negros era considerado uma obra piedosa”) c
às características peculiares do povo submetido à escravidão (trata-se sempre
de uma “raça eternamente de menor idade”)100, a condenação desse instituto
é nítida. No primeiro volume, cujo Prefacio data de 1855, podemos ler:
,s*
Laboulaye, 1863 b, p. 187.
"•Laboulaye, 1863 a, p. VIII-IX.
140
Laboulaye, 1866, vol. 1, p. 420-22.
161
Laboulaye, 1866, vol. I,p. 431.
laboulaye, 1866, vol. I, p. VI.
M Laboulaye,
1866, vol. I, p. 425 27, 430.
186 CONTRA - HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Mas, mesmo criticadas, essas pesadas interferências sobre a liberdade in¬
dividual dos proprietários brancos não ofuscam em nada o quadro que já
conhecemos.
Em 1864, Laboulaye denuncia o privilégio que a cláusula constitu¬
cional dos três quintos reconhece à “raça particular, superior” constituída
pelos “grandes senhores” do Sul, que são os proprietários de escravos ( su¬
pra, cap. IV, § 1 ). Mas, se as coisas estão assim, se a desigualdade carac-
teriza as relações entre as próprias elites, se até no âmbito da comunidade
branca há uma privilegiada “raça particular”, que sentido tem a afirmação
pela qual o que caracteriza os Estados Unidos é “a mais absoluta igualda¬
de política”? Laboulaye não sente a necessidade de rever as suas posições.
Ao contrário, não hesita em reafirmá-las no Prefácio ao terceiro volume,
que continua a celebrar a revolução americana como a única autentica-
mente democrática.
Como das colónias propriamente ditas, assim se faz abstração também
da Irlanda. Em ocasião da sua viagem ao outro lado da Mancha, Tocqueville
visita a ilha infeliz, da qual descreve sem indulgências a desesperada situação.
Não se trata só do feto que “a miséria é horrível”; o que aqui é negada c a
própria liberdade liberal, esmagada pelos “tribunais militares” e por uma
“numerosa gendarmaria odiada pelo povo”. Neste ponto, acontece uma
comparação entre Inglaterra e Irlanda: “As duas aristocracias de que falei têm
a mesma origem, os mesmos costumes, quase as mesmas leis. E, no entanto,
uma deu por séculos aos ingleses um dos melhores governos do mundo, a
outra aos irlandeses um dos mais detestáveis que se possa imaginar . Trata-
se de uma declaração espantosa: não apenas o leitor não é informado que a
aristocracia dominante na Irlanda é ela mesma inglesa ou de origem inglesa,
mas fica com a impressão de estar diante de dois países diferentes, não diante
de duas regiões de um único Estado, submetido à autoridade de um mesmo
governo e de uma mesma Coroa.
É possível então compreender a conclusão admirada de Tocqueville:
“Vejo o inglês seguro sob a proteção das suas leis” . Claramcntc, o irlandês
não é subsumido na mesma categoria de “inglês”, mas tal ausente subsunção
não parece constituir um problema, não arranha o julgamento lisonjeiro so¬
bre o país visitado, apontado como modelo de liberdade.
144
Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p. 94, 128, 133.
165 Tocqueville, 1951 , vol. V, t. 2, p. 91 .
V A revolução na Françae em Santo Domingo... 187
14. A questão colonial e o diferente desenvolvimento
do radicalismo na França, Inglaterra e Estados Unidos
-
* Bentham, 1838-43, vol. IV,
r‘
p. 447.
Bentham, 1838-43, vol. IX, p. 63.
* Bentham, 1838-43, vol. I, p. 143.
Bentham, 1838-43, vol. I, p. 312-13.
188 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
missão hereditária dessa peculiar propriedade, e da qual poderia se beneficiar
uma décima parte dos escravos possuídos peio defunto. O apelo aos patrões
para dar prova de flexibilidade é a outra face da condenação indignada de
qualquer iniciativa vinda de baixo:
,72
Bcntham, 1838-43, vol. I, p. 346.
V A revolução na França e em Santo Domingo... 189
ou para usar as palavras indignadas dc uma revista inglesa da época: “o inútil
e injustificado massacre de homens, mulheres e crianças indefesas” . Sofrem
a deportação na Austrália e são enviados em direção a uma sorte horrível, às
vezes morrendo de chicotadas aplicadas sem limites, os membros das associa¬
ções operárias, dos clubes de orientação mais ou menos jacobina, os cartistas
envolvidos na luta para a expansão do sufrágio, para não falar dos “dissiden¬
tes irlandeses”, que “entre os séculos XVIII e XIX tiveram na Austrália a sua
Sibéria oficial”. Ao todo, “entre 1800 e 1859, foram deportados represen¬
tantes de quase todos os movimentos radicais existentes na Grã Bretanha”
Obviamentc, a repressão atinge os círculos que consideram legítima ou até
invocam a revolução violenta dos escravos negros . É de 1798 a publicação
nos Estados Unidos dos Alien and Sedition Acts, que comportam graves res¬
trições das liberdades constitucionais, conferem ao Presidente uma margem
muito ampla de decisão c golpeiam de maneira particular os seguidores das
idéias suspeitas de serem influenciadas pela revolução francesa. Por outro
lado, sabemos já da violência sobretudo de baixo à qual são expostos os abo¬
licionistas.
E, no entanto, nem o Terror na França nem a repressão na Inglaterra e
nos Estados Unidos são suficientes para explicar a fraqueza do radicalismo
no outro lado da Mancha ou do Atlântico. É preciso aprofundar a análise.
Na Inglaterra a eclosão da guerra permite à classe dominante apresentar
como obrigação patriótica a luta contra o fanatismo revolucionário que
enfurece na França e que ameaça alastrar-se na Irlanda, com o risco mortal
para o Império britânico. Em relação aos Estados Unidos, é interessante
ver o debate que, na véspera da guerra contra a Inglaterra deflagrada em
1812, envolve dois notórios representantes do Sul. O primeiro, Randolph,
declara-se contrário à abertura das hostilidades: grávida de perigos é a situ¬
ação na frente interna, onde os “infernais princípios da liberdade francesa”
correm o risco de provocar a revolta dos, escravos; certamente, “a revolução
francesa chegou a contaminar até eles” . Calhoun, ao contrário, não sente
essas preocupações: certamente, é necessário prestar atenção aos humores
dos escravos, mas felizmente “mais da metade deles nunca ouviu falar da
revolução francesa”
,T*
O texto, retirado dc “Sherwin’s Weekly Political Register” de 18 dc agosto de 1819, é
reportado cm Casana Testore, Nada, 1981, p. 226-28.
•'* Hughes, 1990, p. 175, 226, 230, 244.
175 Blackburn, 1990, p. 325-26.
,7*
Randolph, cit. in Kirk, 1978, p. 167-68.
1992, p. 293.
190 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Isto é, o radicalismo, ao reconhecer o direito dos escravos negros ou dos
semi-escravos irlandeses de pegar em armas contra os seus patrões, constituía
uma séria ameaça à estabilidade dos Estados Unidos e à integridade territo¬
rial do Reino Unido de Grã Bretanha e Irlanda. Mas é também o peso me¬
nor da questão colonial ou das populações de origem colonial que explica a
maior difusão do radicalismo na França. Quando eclode a revolução negra de
Santo Domingo, os ambientes radicais de Paris não têm dificuldade alguma
em reconhecer e legitimar o acontecido: mesmo correndo o risco de perder
as colónias remanescentes, como não cansam de alertar os anti-abolicionis-
tas, não se trata de uma tragédia irreparável. Diferente é a situação para a
Inglaterra e os Estados Unidos.
A revolução negra de Santo Domingo suscita uma onda de indignação
em ambos os países. “Um Estado negro no arquipélago ocidental” - escreve
The Times- “é radicalmente incompatível com o sistema inteiro da coloniza¬
ção européia”. E, portanto: “Nesta área a Europa vai recuperar, obviamente,
a influência e o domínio que ela justamente reivindica em virtude da sabedo¬
ria superior e das capacidades superiores dos seus habitantes”' . Os Estados
Unidos não apenas se recusam a reconhecer o país nascido da revolução
negra, mas fazem de tudo para isolá-lo, enfraquecê-lo, derrubá-lo.
Quem se destaca nessa operação é Jefferson. À primeira vista ele parece o
mais próximo ao radicalismo. Em janeiro de 1793, sem se deixar impressio¬
nar pelo ato de acusação lançado pelo seu ex-secretário particular contra os
jacobinos (fala-se em relação a Paris, de “ruas [...] literalmente vermelhas de
sangue”), ele continua a defender com paixão a “causa” da revolução france¬
sa: “No lugar de vê-la fracassar, preferiria ver a metade da terra desolada. Se
permanecessem só um Adão e uma Eva em cada país, mas livres, seria melhor
do que o cenário atual”. Além do mais, Jefferson contrapõe positivamente a
França aos Estados Unidos, onde os anglófilos consideram a Constituição de
1787, com os amplíssimos poderes conferidos ao Presidente e ao executivo,
como um primeiro passo cm direção à instauração da monarquia
Mas, o quadro muda nitidamente depois da revolução de Santo Do¬
mingo. Sabemos que Jefferson interpreta de modo radical o princípio da
igualdade, contudo sempre no âmbito da comunidade branca. Ele nunca
acreditou na possibilidade de uma convivência cm bases igualitárias entre
brancos e negros: esta constituiria um desafio injustificável às “distinções
IT"
Gcggus, 1982, p. 136-37.
”* Jefferson, 1984, p. 1 004 (carta a W. Short, 3 de janeiro de 1793); a respeito, cf. Elkins,
McKitrick, 1993, p. 316-17.
V A revolução na França e em Santo Domingo... 191
reais instituídas pela natureza” e acabaria por desaguar “no extermínio ( ex¬
termination ) de uma das duas raças” . Quando na ilha do Caribe eclode o
conflito entre proprietários brancos e escravos negros, a simpatia do estadis¬
ta norte-americano volta-se para os primeiros; agora, é profunda a angústia
pela “tempestade revolucionária que está varrendo o globo”. Daqui, o apoio
ao exército invasor enviado por Napoleão, e esse apoio não é interrompido
diante de práticas revoltantes, como a introdução de cães adestrados para
dilacerar os negros e a organização em volta desse evento de espetáculos de
massa, emocionantes e instrutivos ao mesmo tempo
,w
Arcndt, 1986, p. 85-88,92.
VI
Vimos que a tradição liberal está perpassada por duas macroscópicas cláu¬
sulas de exclusão. Na realidade existe uma terceira, contra as mulheres, que
no entanto apresenta características peculiares. Quando pertencem às classes
superiores, elas continuam fazendo parte, embora em função subalterna, da
comunidade dos livres: considerem-se em particular as proprietárias de es¬
cravos. O movimento de emancipação feminina chegará a conquistar uma
base social de massa só mais tarde, no momento em que nele podem parti¬
cipar as mulheres anteriormente reclusas em uma condição de escravidão ou
confinadas nos níveis inferiores de uma sociedade de casta. O que explica o
desenvolvimento do liberalismo nos séculos XVIII e XIX é cm primeiro lugar
a luta travada por um lado pelas máquinas bípedes da metrópole, por outro
pelos escravos e pelas populações coloniais ou de origem colonial.
Em ambos os casos, mais do que pela obtenção de objetivos particula¬
res, os excluídos protestam pelo fato de que a eles é negada a dignidade de
ser humano. Trata-se de uma luta pelo reconhecimento (no sentido expli¬
cado por Hegel cm um celcbérrimo capítulo da Fenomenolojjia do espírito).
O negro acorrentado retratado pela propaganda abolicionista, reivindica a
liberdade realçando, na escrita que cerca a imagem, que ele também é um
“homem”. Por outro lado Toussaint Louverture, protagonista da revolução
de Santo Domingo, invoca “a adoção absoluta do princípio pelo qual ne¬
nhum homem, vermelho, negro ou branco que seja, pode ser propriedade
do seu semelhante” . Acentuações semelhantes ecoam na Paris que se seguiu
6 Bcntham,
1840, vol. I, p. 509-21; o texto aqui citado é retomado depois com alguma
modificação cm Bcntham, 1838-43, vol. II, p. 49Iss.
r
Bcntham, 1840, vol. I, p. 524-25.
* Malouet, cit. in Baccquc, Schmalc, Vovclic (org.), 1988, p. 104-107.
198 CONTRA- HISTÓ RI A DO LIBERALISMO
Randolph, que também nessa ocasião se inspira explicitamente no liberal
inglês . Nascidos na esteira da revolta contra os presumidos “direitos im¬
prescritíveis dos reis”, invocados pela Coroa Britânica, os Estados Unidos
correm o risco agora de sucumbir à loucura dos “imprescritíveis direitos dos
escravos negros” . De maneira análoga, Calhoun chama a atenção sobre os
“frutos venenosos” daquele “lugar da Declaração da nossa independência”,
que poderia conferir a todos os homens “o mesmo direito à liberdade e à
igualdade”: daqui partem os abolicionistas para desencadear uma luta fanáti¬
ca contra a escravidão negra e as “instituições do Sul”, por serem “ultrajantes
em relação aos direitos do homem” .
Em relação à Inglaterra, Disraeli com o olhar voltado principalmente
para as colónias em 1880 define como um “não senso” os “direitos do ho¬
mem”12. A luta pelo reconhecimento conduzida pelas populações coloniais
ou de origem colonial revela-se partieularmente longa e complexa: ela conse¬
guirá resultados decisivos só no século XX. Convém, agora, voltar a atenção
para a luta conduzida pelas máquinas bípedes na metrópole capitalista e no
âmbito da comunidade branca.
9
Randolph, cit. in Kirk, 1978, p. 63-66.
10
Randolph, cit. in Kirk, 1978, p. 177.
"11 Calhoun, 1992, p. 568-69, 464.
Disraeli, 1976, vol. II, p. 80 (cap. 73).
VI. A luta pelo reconhecimento dos instrumentos de trabalho na metrópole... 199
Pelo menos em relação à França, o quadro começa a mudar de maneira
sensível a partir da revolução. Por algum tempo Sieyés fala indiferentemente
dos trabalhadores assalariados como do conjunto das “máquinas de traba¬
lho” c das “máquinas bípedes” ou como da “multidão sempre criança” .
Mas, depois de 14 de julho de 1789, enquanto já se discute sobre a publica¬
ção da Declaração dos direitos do homem, ele sente uma nova necessidade,
a necessidade de uma maior “clareza de linguagem”. Eis então distinguir
entre “direitos naturais e civis” ou “direitos passivos” de um lado, e “direitos
políticos” ou “direitos ativos” de outro. Os primeiros, que comportam a
proteção da “pessoa”, da “propriedade”, da “liberdade”, competem a todo
homem. A ex-máquina bípede vê agora reconhecida a dignidade não apenas
de homem mas também de cidadão, embora de um “cidadão passivo”, excluí¬
do da participação na vida política, como são as “mulheres”, as “crianças”,
os “estrangeiros” .
Estamos na presença de uma novidade relevante. Tal como por muito
tempo “trabalho livre” tem sido um oxímoro, pelo fato de que na realidade
trabalho era sinónimo de servitus, assim por tanto tempo resultou como oxí¬
moro a categoria de “cidadão passivo”: aquele que é submisso à necessidade
do trabalho e portanto à servitus é por definição excluído do grupo dos
homens livres, que gozam da liberdade e da cidadania na plenitude da sua
extensão. Para Locke não faz sentido reconhecer os direitos políticos àqueles
que, como sabemos, são “tornados escravos” da indigência, da necessidade,
do trabalho e da servidão nisso implícita, e que nem fazem parte da socieda¬
de civil, cujo objetivo é a defesa da propriedade. Da mesma forma argumenta
Blackstone: o direito de voto não pode ser ampliado para “pessoas indigen¬
tes”, que por essa razão “estão sob o domínio imediato de outros”'5. Algu¬
mas décadas depois também Constant recorre à mesma motivação quando
exclui o trabalhador assalariado do gozo dos direitos políticos: ele não tem
“renda necessária para viver independente de qualquer vontade alheia” e “os
proprietários são donos da sua existência porque podem negar-lhe o traba¬
lho” . É partieularmente interessante ver a evolução do primeiro grande
teórico da cidadania passiva. Ainda em setembro de 1789, Sieyès não hesita
em definir “forçado” o trabalho da “multidão sem instrução”, que portanto
é “destituída de liberdade”'7. Não tem sentido colocar-se o problema de
“A maioria dos operários, que na França ganham penosamente a vida, não tem
outro descanso além da hora das refeições, e não se compreende porque os crimi¬
nosos punidos pela sociedade despertem um interesse tão forte até abandonar-se a
exclamações de ternura e até chegar ao ponto de derramar lágrimas frente à idéia de
infligir a eles uma privação sofrida por todos os trabalhadores honestos” .
“o último refúgio que o homem possa ocupar entre a miséria e a morte. Toda¬
via, os seres infelizes que ocupam tais cubículos suscitam a inveja de alguns seus se¬
melhantes. Embaixo das suas miseráveis residências encontra-se uma fileira de caver¬
nas às quais leva um corredor semi-subterrâneo. Em cada um desses lugares úmidos
e repugnantes estão amontoados caoticamente doze ou quinze criaturas humanas”.
“Difundir entre as classes operárias [...] alguma noção, entre as mais elemen¬
tares c mais certas, da economia política que os leve a compreender, por exemplo,
o que de permanente e necessário há nas leis económicas que regem o nível dos
salários; porque essas leis, sendo de qualquer maneira de direito divino, enquanto
derivam da natureza do homem e da própria estrutura da sociedade, são postas fora
do alcance das rcvoluçõcs”4S.
4V
Burke, 1826, vol. V, p. 183-84 (- Burkc, 1963, p. 268).
M
Tocqucville, 1951, vol. XVI, p. 240 (discurso na Académic des Sciences Morales et
Politiqucs, 3 de abril de 1852).
*' Tocqueville, 1951, vol. XVI, p. 256.
“Tocqucville, 1951, vol. V, t. 2, p. 91.
*» Marx, Engels, 1955-89, vol. I, p. 590.
210 CONTRA- HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Unidos, à mesma conclusão chega também Tocqueville; mas, é só para o
primeiro que esse fato tem relevância política. E como os dois autores do
Manifesto do partido comunista, também o liberal francês compara ao escravo
o operário da época, obrigado a sofrer na fábrica uma “estreita dependência”
e fora dela uma miséria degradante c opressiva; e mais uma vez ele considera
tudo isso alheio à esfera política propriamente dita.
Portanto, são a drástica restrição do político c a consequente exclusão do
seu próprio âmbito da dimensão mais profunda da totalidade social que suscitam
as críticas de Marx. Do ponto de vista da sociedade e da teoria política burguesa
- observa ele já nos escritos juvenis - as relações sociais “têm somente um signi¬
ficado privado, nenhum significado politico’*' . Na sua forma mais desenvolvida,
o Estado burguês limita-sc “a fechar os olhos e a declarar que certas oposições
reais não têm caráter político, que elas não o incomodam”. Uma vez considera¬
dos sem relevância política, as relações burguesas sociais e de poder na fábrica e
na sociedade podem se desenvolver sem dificuldades ou estorvos externos .
Para além da miséria, a própria realidade da fabrica - ressalta o Manifes¬
to do partido comunista - evidencia o “despotismo” que incumbe sobre os
operários, “organizados militarmente” e, “como soldados simples da indús¬
tria [...] à vigilância de toda uma hierarquia de sub-oficiais e de
oficiais” . A conclusão de Tocqueville tem apenas mais nuances; mas agora
o despotismo é localizado e denunciado não nessa realidade, mas nas tenta¬
tivas do poder político de modificá-la ou de aliviá-la. Contra a pretensão de
colocar “a previdência e a sabedoria do Estado no lugar da previdência e da
sabedoria dos indivíduos”, o liberal francês proclama que “não há nada que
autorize o Estado a interferir na indústria”' : é o célebre discurso do 12 de
setembro de 1848, pronunciado para que a Assembléia Constituinte venha
a rejeitar aquela reivindicação do “direito ao trabalho”, que fora já sufocada
no sangue das jornadas de junho. Tocqueville avança até o ponto de atribuir
às “doutrinas socialistas” a regulamentação e redução do horário de traba
lho (“le travail de douze Jieures”), que se tornam assim o objeto de uma
condenação sem apelação . E, igualmente, como expressão de socialismo e
despotismo é liquidada qualquer medida legislativa voltada a
das “classes inferiores” mediante a contenção do nível dos aluguéis .
aliviaria
miséria
M
Tocqueville, 1951, vol. II, t. l,p. 174 (AR, livro II, cap. 12).
*»
Burkc, 1826, vol. V, p. 183-84 (= Burkc, 1963, p. 268 69).
46Burkc, 1826, vol. V, p. 79-80 (- Burke, 1963, p. 193).
t:
Cf. Losurdo, 1991, cap. 3, § 1; cap. 7, § 6.
“Tocqueville, 1951, vol. III, t. 2,p. 117.
m Barnave, cit. in Furct, Richer, 1980, p. 168.
VI. A luta pelo reconhecimento dos instrumentos de trabalho na metrópole... 213
dência individual”, estimulando a “subjugação da existência individual ao
corpo coletivo” . Embora com linguagem diferente, reapresenta-se a argu¬
mentação de Barnave: a generalização dos direitos políticos tem um efeito de
nivelamento e homogeneização contra a liberdade do indivíduo. Mais tarde
Guizot declara que lutar por uma sociedade onde tudo gira em torno da
“ordem”, do “bem-estar” e de uma justa “repartição dos frutos do trabalho”
significa esquecer “o desenvolvimento da vida individual, da vida interior” e
aspirar a um “formigueiro”' .
É um refrão que encontra enorme fortuna depois do 1848. Quan¬
to mais a luta pelo reconhecimento se desenvolve enquanto luta pela
conquista dos direitos políticos e dos económicos c sociais, tanto mais
o movimento popular e socialista é acusado de não compreender e até
de querer pisotear a autónoma dignidade do indivíduo. Ao repelir as
reivindicações emanadas da revolução de fevereiro, Tocqucvillc expressa
toda a sua repugnância diante do surgimento no horizonte do espectro
de uma “sociedade nivelada”71 ou de uma “sociedade de abelhas c de
castores”, constituída “mais por animais sabidos do que por homens li¬
vres e civis” . E John S. Mill acrescenta: “Hoje os indivíduos se perdem
na multidão [...]. O único poder que merece de ser chamado assim é
o das massas, e dos governos que se tornam expressão das tendências c
dos instintos das massas” . Portanto, com uma inversão de posições em
relação a Burke, agora o liberalismo acusa as correntes mais radicais não
mais de individualismo, mas de desprezo das razões do indivíduo. A essa
acusação Tocqucville procura dar um fundamento cpisteniológico: atri¬
buindo “uma existência separada à espécie” (espèce) e engrandecendo “a
noção de gênero” {£cnre)y radicalismo e socialismo não passam de uma
aplicação à política da “doutrina dos realistas” de escolástica memória;
assim, conseguem “o desprezo dos direitos particulares” e a desvalori¬
zação do indivíduo enquanto tal . Mas, qual é o valor dessa construção
teórica? É interessante ver de que maneira Tocqucville rejeita as propos¬
tas de reforma do sistema penitenciário promovidas em primeiro lugar
pelo movimento radical c socialista:
" Dockòs, 1989, p. 85 nota (é uma afirmação que, com alguma diferença, se encontra
tanto cm Dupont dc Nemours como cm Robespierre).
w Laboulaye, 1866, vol. III, p. 319.
218 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
mo c socialismo. Embora com uma visão diferente e contraposta, também
Oscar Wilde conecta os dois termos: “o individualismo é o que queremos
alcançar por meio do socialismo”*0.
Por outro lado, para confirmar o caráter ambíguo do individualismo da
tradição liberal, convém observar que ela, ao criticar a revolução francesa e o
perigo de subversão representado pelo movimento operário e socialista, gosta
de contrapor positivamente o campo à cidade. O que se compreende mui¬
to bem para um teórico da partnership organicista como é Burke que, com
plena coerência, celebra a “classe agrícola, a menos inclinada de todas para a
sedição”’1. Tendo o olhar sempre voltado para a revolução francesa e para o
papel desempenhado nela por Paris, Constant evidencia o perigo dos “artesãos
amontoados na cidade””. Mas, o motivo da desconfiança ou da hostilidade
contra a cidade, que mesmo assim é o lugar privilegiado para o desenvolvimen¬
to do indivíduo, perpassa em profundidade a tradição liberal. Para Mandeville,
“Londres é uma cidade muito grande para a nação”, e é aqui que se manifes¬
tam fenômenos preocupantcs de insubordinação social. Mais tranquilizadoras
são as áreas rurais, onde, “desde a primeira infância”, é possível confiar nos
“pobres simplórios camponeses”, que no entanto brilham por “inocência e
honestidade” e que, “desde a primeira infância”, podem ser educados ao valor
da obediência à autoridade e do respeito do costume e da tradição” .
Alguma saudade desse mundo pode ser também sentida em Tocquevil-
le, quando ele, em 1834, descreve a condição do pobre no Antigo Regime:
caracterizada, como era, por desejos “limitados” e pela tranquila indiferença
em relação a “um futuro que não lhe pertencia”, a sorte dele “era menos
lamentável da dos homens do povo dos nossos dias”; acostumados desde
sempre à própria condição, os pobres do Antigo Regime “gozavam daquela
espécie de felicidade vegetativa da qual para o homem civilizado resulta tão
difícil compreender o fascínio que negar a sua existência”*4.
Com a retomada da revolução na França, contra os que procuram “su¬
blevar a população operária das cidades”, Tocqueville conclama a apostar
sobre os “habitantes dos campos [que] são repletos de bom senso e, até
hoje, de firmeza”**. O primeiro a aproveitar essa recomendação é o próprio
®°
Cf. Losurdo 2002, cap. 33, § 1 (no que diz respeito a Nietzsche); Laurent, 1994, p.
66 (por Wildc).
” Burkc, 1826, vol. VIII, p. 400.
VJ Constant, 1957, p. 1151 (- Constant, 1970, p. 104).
v> Mandeville, 1988, vol. I,p. 269, 306-307 (- Mandeville, 1974, p. 71, 111-12).
** Tocqueville, 1951, vol. XVI, p. 121.
M Tocqueville, 1951, vol. XV, t. 1, p. 242 (carta a F. de Corcelle, 3 de abril de 1848).
VL A luta pelo reconhecimento dos instrumentos de trabalho na metrópole... 219
Tocqueville, que assim descreve a maneira como ele organiza as eleições na
sua cidade natal:
96
Tocqueville, 1951, vol. XII, p. 1 14.
w Bentham, 1838-43, vol. II, p. 501.
" Palmerston, cit. in Marx, Engels, 1955-89, vol. IX, p. 361.
220 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERAI.ISMO
9. As críticas ao liberalismo como reação anti-moderna?
” Constant, 1980.
Constant, 1980, p. 494, 499; Constant, 1957, p. 1143 (- Constant, 1970, p. 95).
_ VI. A luta pelo reconhecimento dos instrumentos de trabalho na metrópole... 221
não passa de uma reedição da pré-moderna “Igreja de Estado”. E tal como
o velho dissenter lutava para que fosse respeitada a espontaneidade do au¬
têntico sentimento religioso, assim o novo “dissenter em relação às leis para
os pobres reafirma que a caridade será sempre tanto mais extensa e benéfica,
quanto mais será voluntária”. Se o velho dissenter negava a qualquer auto¬
ridade o direito de impor leis à sua consciência religiosa, o novo “ dissenter
cm relação à caridade institucionalizada objeta que ninguém tem o direito
de interferir entre ele e o exercício da sua religião e recusa com desdém “a
interferência do Estado no exercício de um dos mais importantes preceitos
do Evangelho”10 . Em última análise, a reivindicação dos direitos económi¬
cos e sociais, que devem ser sancionados no plano legal, em nome de valores
morais e religiosos como a compaixão e a solidariedade humana, nada mais é
do que pretensão em ressuscitar uma religião de Estado! E os profetas desta
religião de Estado remeteriam também a um mundo pré-moderno. No final
do século XIX, Lccky acusa os sindicatos e o movimento operário de aspirar
a uma “organização industrial” semelhante à da Idade Média ou da idade
dos Tudor ; os sindicatos - acrescenta Pareto alguns anos mais tarde - têm
a pretensão de gozar e gozam de uma espécie de “imunidade medieval”
Para lorde Acton, ainda antes dos sindicatos voltados a reivindicar presumi¬
dos direitos económicos e sociais, é o próprio sufrágio universal que constitui
um fenômeno de regressão pré-moderna: ele é “absolutista e retrógrado”,
pelo fato de favorecer a dilatação do Estado e o despotismo, já felizmente
superados pelo liberalismo . Em conclusão, mais do que de antiguidade
clássica como cm Constant, jacobinismo, socialismo e até a própria democra¬
cia radical são acusados de cultivar nostalgias do Antigo Regime, trate-sc da
Idade Média ou da monarquia absoluta.
Essa última idéia encontra a sua expressão mais acabada em Tocqueville,
pelo qual, com o seu pathos estatalista, radicalismo, jacobinismo e socialismo
se colocam cm linha de continuidade com o estatalismo, “a
administrativa” e a “tutela administrativa” do Antigo Regime . Mas, trata- '
101
Spenccr, 1981, p. lr
101 Lccky, 1981, vol. I, p. 218; vol. II, p. 373.
,M
Parcto, 1999, p. 14 , 24.
104
Acton, 1985-88, vol. III, p. 554-55.
105 Tocqueville, 1951, vol. II, t. I,p. 107, 115 (AR, livro II, cap. 2-3).
222 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO __
“idênticos, considerados de um ponto de vista superior”. Ao citar o mote de
Luís XIV (Vétat e’est moi!), a revista observa que “a liberdade revolucioná¬
ria [...] combina com essa centralização, com esse despotismo burocrático,
com essa tutela, mediante os comissários ministeriais, das províncias c das
comunidades, com essa hobbesiana onipotência governativa” . Tocqueville
insiste sobre o papel revolucionário que, ainda antes de 1 789, desempenham
a figura do “intendente” e a “administração pública”, que de fato tem já
expulsado a nobreza . À mesma conclusão chega a mencionada revista, que
aponta e denuncia na figura do “funcionário” o protagonista do cancelamen¬
to das “liberdades locais” e de todos os organismos intermediários suscetí¬
veis de competir com o “poder estatal” . Para Tocqueville, “entre todas as
sociedades do mundo, as que vão ter mais dificuldades do que as outras para
escapar de um governo absoluto vão ser exatamente as sociedades nas quais
a aristocracia não existe mais e não pode mais existir”'09; é exatamente esse
o fio condutor da condenação que o órgão da nobreza prussiana pronuncia
da revolução francesa.
Logo após a publicação do Antigo Regime e a revolução, ao expressar
o seu consenso e também a sua admiração, Lieber observa que o livro no
seu conjunto é “um ininterrupto comentário histórico” à análise por ele de¬
senvolvida das “tendências políticas galicanas” . Naturalmente, não falta
o elemento ufanista. Mas, precisa compreender o ponto de vista do liberal
alemão-americano. Em 1849, ele havia ressaltado a continuidade de Luís à
revolução de 1789 e desta até Napoleão Bonaparte c à revolução de 1848:
trata-se de uma história toda atravessada pelo ideal da “igualdade” c da “con¬
centração” c “centralização do poder”, da “organização” c da generalizada
“interferência do poder público”, com o consequente inevitável sacrifício da
liberdade, do “individualismo” e do princípio da “limitação do governo”,
que estavam ao contrário no centro das preocupações e das aspirações da
“raÿa britânica”, ou da “raça anglicana”, isto é, da Inglaterra e Estados Uni¬
dos . Estamos - repito - em 1849; e nesse momento Tocqueville limita-sc a
acusar o socialismo: embora “em muitos pontos” ele tivesse uma orientação
diferente do “Antigo Regime”, no entanto herdava “a opinião pela qual a
única sabedoria é no Estado”. Mas, a parcial e limitada linha de continuidade
1,1
Tocqueville, 1951, vol. III, t. 3,p. 173; Robespierre, 1912-67, vol. IX, p. 501-502.
IW Lieber, 1859, p. 51, 326; a
respeito das relações com Bcrthold Georg Niebuhr, cf.
também Lieber, 1837.
224 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
sancionados também pela ONU) c moderna, ao contrário, a visào, presente
também em Tocqueville, da miséria de massa como um dado de natureza
que remeteria à Providência, mais do que a determinadas relações político-
sociais. E, por outro lado, sempre com relação ao liberal francês, é difícil con¬
ciliar a condenação do jacobinismo e do socialismo, como movimentos que
se colocam em continuidade com o Antigo Regime, com a denúncia alarma¬
da e apocalíptica da “nova raça” de ideólogos e agitadores delirantes' M, que
fariam cair sobre a “civilização européia”, até sobre a civilização enquanto
tal, um perigo sem precedentes
"* Tocqueville, 1951, vol. XIII, t. 2, p. 337 (carta a L. de Kergorlay, 16 dc maio de 1858).
"‘Tocqueville, 1951, vol. III, t. 3, p. 292.
1,6
Mandeville, 1988, vol. I, p. 305-306 (- Mandeville, 1974, p. 110).
Burke, 1826, vol. VII, p. 380.
_ VI. A luta pelo reconhecimento dos instrumentos de trabalho na metrópole... 225
que nesses anos proíbem e punem as coalizões operárias ele se inspira no
princípio da liberdade de comércio, que não tolera nenhum obstáculo. O
fato é que, reprimido no direito de organização autónoma é o trabalhador
assalariado, não reconhecido na sua autónoma subjetividade e dignidade e
degradado a instrumentum vocale.
Mais sofrida é a posição de Smith. Ele reconhece que é a tentativa deses¬
perada para contrastar as coalizões de fato, com as quais os patrões rebaixam
os salários, e para escapar ao perigo de morte por inanição que estimulam
a formação das coalizões operárias. E, no entanto, é necessário prevenir e
reprimir esses “monopólios ampliados”"*, de maneira a fazer prevalecer as
razões não apenas do mercado mas também do indivíduo: precisa “permitir
a cada um alcançar autonomamente o seu próprio interesse pessoal em um
plano liberal de igualdade, de liberdade e de justiça”" ; “em conformidade
com o sistema da liberdade natural”, todo homem deve poder levar adiante
c colocar em concorrência “o seu trabalho ou o seu capital”, sem obstáculo
*
algum ; em caso algum pode ser tolerada a “violação da liberdade natural
e da justiça”'".
Por outro lado, em defesa da liberdade do indivíduo se manifesta a lei
Le Chapelier, que na França de 1791 proíbe as coalizões operárias: em nome
de “presumidos interessescomuns”, elas violam a liberdade de trabalho que
compete a cada indivíduo . E, a essa lei se remete Tocqueville que, depois
de 1848, assim condena o movimento operário c socialista: se “a revolução
tem varrido todos os estorvos que obstaculizavam a liberdade do cidadão,
isto é, as corporações e as associações de ofícios” ( les maítrises, les jurandes),
os socialistas se propõem a rcintroduzir esse entulho, embora “com outros
trajes”"3.
Talvez Marx tivesse os olhos voltados para o liberalismo do seu tempo,
além dc pensar na revolução francesa, quando acusa a lei Le Chapelier de
ter proibido as “associações operárias de qualquer tijjo” com a desculpa de
representarem a “restauração das guildas medievais” . O motivo que retrata
os sindicatos como resíduo ou reminiscência da Idade Média ou do Antigo
Regime, alastra-se amplamente na segunda metade do século XIX. Na In-
,íS
Lecky, 1981, vol. I, p. 218-19.
IM Spencer, 1981, p. 512-13, 25.
*r Lieber, cit. in Frcidcl, 1968, p. 194.
Laboulaye, 1863 a, p. 25-26, 310.
Mill, 1972, p. 144 (- Mill, 1981, p. 121); Smith, 1981, p. 100 (- Smith, 1977, p.
81-82) (livro I,cap.8).
VI. A luta pelo reconhecimento dos instrumentos de trabalho na metrópole... 227
midade em 1871. E, no entanto: “o que o governo de Gladstone oferecia com
a mão direita o retirava com a esquerda”. Em base a uma nova norma, embo¬
ra não fosse possível processar os sindicatos enquanto tais, eram os operários
separadamente que acabavam sendo arrastados para o tribunal: “‘Observar c
pressionar’, isto é, qualquer ação que visava a intimidar os operários que iam
para o trabalho durante a greve tornou-sc ação ilegal mesmo quando realiza¬
da por uma única pessoa”. Essa norma é cancelada por Disraeli em 1875
Em relação à França, a lei Le Chapelier é abolida só em 1887 . Por trás do
reconhecimento pleno da legitimidade das coalizões c organizações operárias
operam as gigantescas lutas culminadas na Comuna de Paris. Estamos, por¬
tanto, além de 1870, a data que marca, para Hayek, o início do “declínio da
doutrina liberal” . Quem se expressa nesses termos é um autor que não por
acaso parece colocar tudo em discussão: para ele, ao liquidar com a “determi¬
nação da concorrência dos preços” da força-trabalho c ao querer “interferir no
jogo” livre do mercado, os sindicatos minam as raízes do sistema liberal, c é
“um claro dever moral do governo” impedir que isso aconteça
A Comuna de Paris representa um divisor de águas na Europa, mas não
no outro lado do Atlântico. Publicado cm 1890, o Sherman Antitrust Act é
“aplicado acima de tudo, e com muita eficácia, contra os operários”, culpa¬
dos de se reunir em “monopólios” sindicais, pouco respeitosos da iniciativa
e da liberdade individual. Perfeitamente respeitosos das regras do mercado
e da liberdade individual foram ao contrário considerados por muito tempo
os assim chamados yellow-do# contracts, em base aos quais, no momento do
contrato, operários e empregados se comprometiam (eramÿobrigados a se
comprometer) a não aderir a nenhuma organização sindical
140
Trevelyan, 1942, p. 482-84.
1,1
Hirschman, 1983, p. 124.
IU Hayek, 1988, p. 149.
"* Hayek, 1988, p. 163; 1986, p. 516.
S
,M
Nevins, Commagcr, 1960, p. 311; Conner, 1983, p. 10.
228 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
destruir o equilíbrio da natureza, cancelando a “pressão pacífica, silenciosa,
incessante da fome” e favorecendo o crescimento de uma superpopulação
ociosa e supérflua. Deixada a si mesma, sem as intervenções artificiais de le¬
gisladores movidos por uma falsa compaixão, a natureza voltaria a estabelecer
o seu equilíbrio, assim como acontece em uma ilha habitada apenas por ca¬
bras c cachorros: a luta pela sobrevivência seleciona os elementos mais fortes
e vitais, condenando ao seu destino os outros . Desde o início, a tendência
a naturalizar o conflito social c a apresentar a riqueza e o poder das classes
dominantes como uma expressão de uma imutável lei natural (nesteÿsentido
Burke fala de “aristocracia natural”, consagrada pela “Natureza”'*1) com¬
porta um elemento social darwinista ante litteram. Conhecemos as críticas
dirigidas por Franklin aos médicos pela sua dedicação a salvar vidas que “não
são dignas de serem salvas”. A “doença” que elas sofrem é a manifestação
da cólera divina pela intemperança, a preguiça e outros vícios”, c é justo tjue
isso tudo receba uma “punição” prevista pela natureza e pela Providência
Não sc deve obstaculizar o desígnio superior divino, principalmcnte se forem
alvejadas as populações coloniais. Isso não vale só para os peles-vermelhas.
Também a terrível carestia, que na metade do século XIX dizima a população
irlandesa já duramente provada pelo saque e a opressão dos colonizadores in¬
gleses, aparece aos olhos de sir Charles Edward Trevelyan (encarregado pelo
governo de Londres de acompanhar a situação) como a expressão da “Provi¬
dência onisciente”, que assim resolve o problema da superpopulação
Mas, o elemento social darwinista acentua-se uma vez que as classes
populares, sacudindo a tradicional subalternidade, entram diretamente na
cena política para fazer prevalecer as suas razões. Nos Estados Unidos, de¬
pois da abolição da escravidão, o paternalismo dá lugar rapidamente a uma
atitude explicitamentc violenta em relação aos negros, submetidos ao ter¬
ror que incumbe exatamente sobre quem ousa desafiar a supremacia branca.
Algo dc análogo acontece na Europa. Contra a nova situação, obtida na luta
pelo reconhecimento, amplos setores da classe dominante reagem agitando
ameaçadoramente a lei da seleção natural, que condena os incapazes a uma
morte precoce.
À reivindicação dos direitos económicos e sociais os setores mais con¬
servadores do movimento liberal respondem com um liberalismo radical e
“A reforma sanitária não é uma coisa totalmentc boa quando permite aos mem¬
bros fracos c doentes da comunidade, que em um estágio diferente da sociedade
teriam morrido na infância, crescer e multiplicar-sc, perpetuando um tipo enfraque¬
cido c a mancha de uma doença hereditária”141.
1
Haync, cit. in Langley, 1996, p. 141.
234 CONTRA- HISTÓRIA DO LIBERALISMO
pode ser útil só como lixeira na qual deportar e depositar os negros. Para essa
mesma operação, isto é, para “o desaparecimento definitivo da raça negra
dos nossos territórios”, John O’Sullivan, o teórico do “destino manifesto”,
pensa principalmente no continente latino-americano: “As populações es-
pano-índio-americanas do México, da América central e da América do Sul,
oferecem o terreno propício para absorver aquela raça [...]. Aquelas mesmas
populações tem já sangue misturado e híbrido” ( mixed and confused blood)2 .
Para Elam Lynds, pai do “sistema penitenciário” então vigente e persona¬
lidade de destaque, “cujos talentos práticos são universalmente reconheci¬
dos”, - a definição é de Tocqueville - “os espanhóis da América do Sul”
constituem “uma raça mais próxima do animal feroz e do selvagem do que
do homem civilizado”' . A categoria tradicionalmente utilizada para definir os
peles-vcrmelhas é agora utilizada também para as populações que cometeram
o erro de se misturar com eles.
Enquanto no âmbito do Commonwealth inglês os colonos brancos
conseguem o reconhecimento do direito ao autogoverno, os povos latino-
americanos, excluídos da comunidade branca e da comunidade dos livres
propriamente dita, entram a fazer parte do mundo colonial. Explica-se assim
a doutrina Monroe: reinterpretada e radicalizada cm 1904 por Theodore
Roosevelt, esta confere um “poder de polícia internacional” à “sociedade
civilizada” no seu conjunto c, cm particular, aos Estados Unidos, no tocante
à América Latina*.
Para conseguir o reconhecimento, nenhuma grave dificuldade encon¬
tram os colonos brancos do Império britânico. Aprendida a lição implícita
na revolução americana, o governo de Londres decide seguir depois a po¬
lítica de “conciliação” sugerida anteriormente por Burke nas relações com
os povos “em cujas veias escorre o sangue da liberdade”. Assim, a partir da
segunda metade do século XIX, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, África do
Sul conseguem uma ampla autonomia no âmbito do Commonwealth, para
depois se aproximar da plena independência. É um princípio consolidado
- observa John S. Mill cm 1861 - que, pelo menos no plano da política in¬
terna, as “colónias de raça européia” têm pleno direito ao autogoverno' .
Como no caso dos Estados Unidos, o autogoverno dos colonos pode
também comportar um drástico agravamento da condição dos povos colo-
1
O’Sullivan, 1845, p. 7.
J
Lynds, cit. in Tocqueville, 1951, vol. V, t. 1, 63 64.
4
Roosevelt, cit. in Martin, Royot, 1989, p. 1'79.
5 Mill, 1972, p. 378 (- Mill, 1946, p. 285).
VII. 0 Ocidente e os bárbaros 235
niais ou dc origem colonial, agora submetidos ao controle exclusivo e sem
interferências dos seus diretos opressores. Conhecemos a observação de Smith
relativa às consequências catastróficas que podem ter, para os escravos ne¬
gros, “livres” organismos representativos monopolizados ou controlados
pelos proprietários de escravos. À distância de algumas décadas, em 1841,
James Stephen, um dos protagonistas da luta que alguns anos antes havia
levado à abolição da escravidão nas colónias inglesas, manifesta-se a favor
do firme controle por parte da Coroa: “Os direitos políticos nas mãos de
um grande corpo de proprietários de escravos são os piores instrumentos de
tirania jamais forjados para a opressão da humanidade” .
A pertinência desse alerta é tragicamente confirmada pelos desdobra¬
mentos sucessivos. Em 1864, em relação à Nova Zelândia, que há alguns
anos pode contar com o “governo responsável”, isto é, em última análise,
com o autogoverno da comunidade branca, o Times observa:
Por outro lado, na Inglaterra de 1840 é lorde John Russel, uma perso¬
nalidade de destaque, quem manifesta o mal-estar pela vigência de um “novo
sistema de escravidão”. Este, inicialmente encontra a resistência do movi¬
mento abolicionista, neste momento ainda bastante forte; mas, em virtude
também da fraqueza já examinada do abolicionismo dc inspiração cristã, a
necessidade dc importar da África e da Ásia servos a contrato e na realidade
força- trabalho mais ou menos forçada acaba impondo-se rapidamente .
'ÿ
Tocqucville, 1951, vol. III, t. l,p. 92,97.
15
Tinker, 1974, p. 176-79.
16 Drcschcr, 1999, p. 432.
17 Cf. Tinker, 1974, p. VII; Drcschcr, 1999, p. 421.
238 CONTRA- HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Já presente nas colónias inglesas, essa força-trabalho servil propaga-se
também nos Estados Unidos. Os que constroem a impérvia linha de ferro,
destinada a consolidar nos Estados Unidos a conquista do Far West, são
os cerca de 10.000 coolies importados da China ; nas palavras de Engels,
procura-se suprir a escravidão negra com a “escravidão camuflada de coolies
indianos e chineses” .
É a confirmação da tese cara a Calhoun da inseparabilidade entre tra¬
balho e escravidão? Na América do Norte, antes de ser posta na sombra
e depois definitivamente suplantada pela mais rentável escravidão negra,
havia continuado a subsistir por muito tempo em algumas partes, também
depois da Gloriosa Revolução, a escravidão indiana. Ainda em 1 767, Sharp,
o abolicionista que já conhecemos, sente-se obrigado a denunciá-la; no
tocante à Virgínia, é só em 1808 que a Corte Suprema sanciona a ilegali¬
dade20. A partir da revolução americana, o servo a contrato ou o escravo
branco a tempo determinado é totalmente substituído pelo escravo negro
e este, por sua vez, depois do final da guerra de Secessão, dá lugar ao coolie
proveniente da China ou da índia, um outro escravo a tempo determinado,
embora desta vez a cor da pele seja amarela. Em 1834, o mesmo ano da
abolição da escravidão nas colónias inglesas, o liberal Wakefield reconhece
que os “escravos amarelos” começam a tomar o lugar dos “negros”, assim
como estes últimos haviam substituído os escravos “vermelhos” (índios)21.
Na realidade, a escravidão ou semi-escravidâo “vermelha” terá um novo
surto, na segunda metade do século XIX, no Texas e na Califórnia arranca¬
das ao México ( infra, cap. IX, § 2).
Naturalmente, a Calhoun se pode objetar com razão que a semi-cscra-
vidão ou a escravidão a tempo determinado não é a mesma coisa que a es¬
cravidão perpétua e hereditária, mas vejamos o ulterior desenvolvimento da
argumentação do teórico do Sul escravista. Em toda “sociedade rica e civi¬
lizada” uma parte da população vive do “trabalho da outra”. É uma relação
claramente conflituosa: a melhor maneira de regulamentá-la acontece quan¬
do “o trabalho da raça africana se desenvolve sob o comando, como acontece
entre nós, da raça européia”22.
Está claro: a liberdade “vale só para seres humanos na plenitude das suas
faculdades”, e ela não pode ser reivindicada por menores de idade ou pelas
“sociedades atrasadas nas quais a própria raça pode ser considerada de me¬
noridade”23. Não é diferente a orientação dc Lecky que, no início do século
XX, celebra assim a glória do Reino Unido:
“Na história do mundo nada c mais admirável do fato de que, sob a bandeira
destas duas pequenas ilhas, tenha vindo a crescer o maior c mais benéfico despotismo
do mundo, que abarca quase duzentos e trinta milhões de habitantes sob o direto
governo britânico e mais de cinquenta milhões sob o protetorado britânico”24.
“Entre os trezentos c sessenta e sete milhões de súditos que vivem fora das ilhas
britânicas, não são mais do que onze milhões ou um entre trinta c quatro, os que
vivem alguma forma dc autogoverno, no tocante à legislação e à administração. A
liberdade política, e a liberdade civil que dela depende, simplesmente, não existem
para a grande maioria dos súditos britânicos”32.
“Uma vez proibida momentaneamente a posse da terra, que fazer? Precisa co¬
locá-los artificialmente na posição em que se encontra naturalmentc o trabalhador
“A raça européia recebeu do céu ou adquiriu com seus esforços uma superio¬
ridade tão incontestável sobre todas as outras raças que formam a grande família
humana, que o homem colocado por nós, em virtude dos seus vícios e da sua igno¬
rância, no último degrau da escala social ainda é o primeiro diante dos selvagens”35.
Nesse texto, assim como na descrição que o Antigo Testamento faz dos
habitantes abusivos de Canaan, são confundidos totalmente com a natureza
as populações destinadas a serem subjugadas ou canceladas pelo povo eleito,
ou, nas palavras de Tocqueville, pelo “grande povo, que Deus quer instalar
com as suas mãos sobre uma terra predestinada” ' . Esse desígnio providen¬
cial fica tanto mais claro porque se trata, em última análise, de um deserto.
É um tema sobre o qual A democracia na América volta repetida mente: “À
perfeição das nossas artes, ele [o pelc-vcrmelha] quer contrapor só os recur¬
sos do deserto”44. É particularmentc significativa uma expressão: “Os índios
habitavam sozinhos o deserto do qual hoje são expulsos...” ; o deserto deixa
'
“Embora o grande país fosse habitado por numerosas tribos de indígenas, pode-
se afirmar que no momento da descoberta não passava de um deserto. Os índios
o ocupavam, mas não o possuíam, uma vez que só com a agricultura o homem se
apropria do solo e os primeiros habitantes da America do Norte viviam dos produtos
da caça”46.
4*
Tocqueville, 1951, vol. I, t. l,p. 25 (DAI, cap. 1,2).
4*Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 25 (DAI, cap. 1, 2).
w Parrington, 1969, vol. II, p. 566-67.
" Gossett, 1965, p. 243.
246 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
devastador do álcool cm uma população destinada a ser eliminada da face da
terra ( supra, cap. I, § 5).
A atitude de Tocqueville é mais sofrida. Ele não fecha os olhos dian¬
te do horror que está acontecendo. E, no entanto, por dolorosa que
possa ser, a tragédia dos peles-vermelhas expressa de um lado o pro¬
gresso da civilização, de outro um misterioso desenho providencial, de
qualquer forma inexorável:
“Em geral, a sua boca era demasiadamente grande, a expressão da sua figura
era ignóbil e malvada [...]. A sua fisionomia manifestava aquela profunda depravação
que pode derivar só de um prolongado abuso da civilização, e não obstante continu¬
avam selvagens. Aos vícios que haviam assimilado de nós mesclava-se algo de bárbaro
e de incivil, que os tornava cem vezes mais repugnantes [...]. Os seus movimentos
eram rápidos e desordenados, a sua voz aguda c desafinada, os seus olhares inquietos
e selvagens. No primeiro contato seríamos tentados a ver em cada um deles apenas
um bicho das florestas ao qual a educação podia ter conferido alguma aparência de
humanidade, c no entanto permanecera um animal”.
50
Tocqueville, 1951, vol. I, t. 1, p. 25 (DAI, cap. I, 2).
Tocqueville, 1951, vol. V, t. 1, p. 73-76, 223-25; cf. também p. 343-44.
" Tocqueville,
M 1951, vol. I, t. l,p. 430.
VII. O Ocidente e os bárbaros 247
uma vez, acaba por emergir o processo de desumanização dos nativos, redu¬
zidos, mais do que à barbárie, à natureza inanimada.
“Neste momento estou muito ocupado com os nossos negócios na África, que
assumem uma importância maior a cada dia. A guerra tornou-se para nós e vai ficar,
enquanto nào tivermos disputas na Europa, o lado secundário. Hoje, o mais impor¬
tante é a colonização, é como atrair e principalmentc fixar na Argélia uma grande po¬
pulação europeia de trabalhadores. Temos já 100.000 cristãos na África, sem calcular
o exército. Mas eles se estabeleceram quase todos nas cidades, que se tornam grandes
e bonitas, enquanto os campos ficam desertos. É impossível ocupar-sc da colonização
na África sem pensar nos grandes exemplos fornecidos nesse campo pelos Estados
Unidos. Mas como estudá-los? Será que foram publicados nos Estados Unidos livros
ou documentários de qualquer tipo que possam nos iluminar nesse ponto e que nos
façam conhecer de que maneira acontecem as coisas? Poderiam ser encontradas essas
indicações nos relatórios oficiais ou de algum outro tipo? Tudo o que podereis nos
conseguir a respeito será recebido por nós com grande gratidão”53.
“Tenho ouvido freqiicntcmcnte na França homens, que respeito muito mas que
nào apoio, achar condenável o fato de queimar as colheitas, esvaziar os silos c afinal
apropriar-nos dos homens desarmados, das mulheres e das crianças.
Trata-se, na minha opinião, de necessidades desagradáveis, mas às quais será
obrigado a se submeter qualquer povo que queira travar guerra contra os árabes”55.
“Ele é o primeiro que tenha conseguido aplicar por toda a parte c ao mesmo
tempo o tipo de guerra que, aos meus olhos como aos seus, é o único tipo de guerra
possível na África; ele praticou esse sistema de guerra com uma energia e um vigor
inigualáveis”56.
14
Num artigo publicado no u Moniteur algérien" de 25 de dezembro de 1843 (Tocque
villc, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 227, nota do organizador A. Jardin).
” Tocqueville, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 226-27.
“ 'ÿ
Tocqueville, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 299.
Tocqueville, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 316.
M Tocqueville, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 227.
w Tocqueville, 1951, vol. Ill, t. l,p. 230 nota.
VII. O Ocidente e os bárbaros 249
Enfim, aos árabes rebeldes deve ser obstruída de qualquer maneira a
possibilidade de se agregar ou se instalar em alguma parte:
“Não obstante o gosto que eles mostram pela vida nómade, eles têm necessi¬
dade de alguns lugares estáveis; é da mais alta importância impedir que eles possam
estabelecer um sequer; considero úteis todas as expedições que têm por objetivo
ocupar ou destruir as cidades já existentes e as cidades nascentes”60.
“A fusão dessas duas populações é uma quimera que pode ser sonhada só por
quem não conhece o lugar. É, portanto, possível c necessário que na África haja
duas legislações nitidamente distintas porque estamos diante de duas sociedades cla¬
ramente separadas. Quando lidamos com os europeus, absolutamente nada impede
tratá-los como se fossem únicos; as regras elaboradas para eles devem ser sempre
aplicadas unicamente a eles”63.
60
Tocqueville, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 230.
61
Tocqueville, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 229.
62
Tocqueville, 1951, vol. V, t. 2, p. 216.
"Tocqueville, 1951, vol. III, t. l,p. 275.
250 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
“Senhores, só a força e o terror funcionam com essa gente [...]. No outro dia
foi cometido um assassinado na rua. Trouxeram-me um árabe que era suspeito. Fiz o
interrogatório e depois mandei cortar-lhe a cabeça. Podem ver a sua cabeça na porta
de Constantina”64.
Tocqueville não parece acusar emoções. Reafirma a idéia das duas legisla¬
ções: no tocante aos processos criminais contra os “indígenas”, “se acharmos
as nossas formas muito lentas (o que não acredito), para eles poderiam se es¬
tabelecer conselhos de guerra”. E também para os “processos civis” jjode-se
tranquilamente conservar o “procedimento de exceção” já em vigor .
Além do plano jurídico, os árabes devem ser discriminados também no
campo económico: “Deixem entrar livremente na França todos os produtos
da Argélia, sobretudo os que nascem não da indústria indígena mas da indús¬
tria colonial”46. Só nessas condições as colónias francesas no Norte da África
podem desenvolver-sc como o modelo americano:
“Não é fácil injetar nos europeus o desejo dc abandonar a sua pátria, pelo fato
de morarem felizes e gozarem de direitos e dc alguns bens caros a cies. Por isso, é
ainda mais difícil lançá-los em um país, onde desde o início encontram um clima
tórrido c insalubre c um inimigo formidável, que os ronda incessantemente para
subtrair as suas propriedades ou a sua vida. Para atrair habitantes para um país como
esse, é necessário em primeiro lugar oferecer a eles grandes possibilidades de ganhar
fortuna; cm segundo lugar, precisa que eles encontrem condições sociais de acordo
com seus hábitos e suas preferências”67.
“Em algumas localidades, no lugar dc reservar aos europeus as terras mais fér¬
teis, melhor irrigadas, as mais favoráveis possuídas pelo domínio público, as entrega¬
mos aos indígenas [...]. Após traições c revoltas, muitas vezes, os indígenas têm sido
recebidos por nós com uma singular longanimidade; não faltam os que, depois de
nos abandonar para sujar as mãos com o nosso sangue, receberam de volta, graças
à nossa generosidade, os seus bens, a sua honra c o seu poder. Há mais. Em muitos
lugares onde a população civil europeia está mesclada com a população indígena há
queixas, não sem alguma razão, dc que gcralmcntc o indígena é protegido melhor,
enquanto o europeu consegue justiça mais dificilmente”7".
74
Tocqueville 1951, vol. Ill, t. 1, p. 380-82.
7‘
Tocqucvillc, 1951, vol. V, t. 2, p. 216.
'•Bugeaud, cit. in Iÿcostc, Nouschi, Prcnant, 1960, p. 314.
” Bugeaud, cit. in Tocqucvillc, 1951, vol. Ill, t. 1, p. 227 (nora do organizador A. Jardin ).
••Tocqucvillc 1951, vol. III, t. I,p. 321-22.
Tocqucvillc, 1951, vol. XV, t. l,p. 220 (cartaaF.dc Corccllc, 11 dc outubro dc 1846).
VII. O Ocidente e os bárbaros 253
Parece estarmos diante das lamúrias e dos protestos dos colonos ameri¬
canos contra o governo de Londres, ou dos plantadores do Sul dos Estados
Unidos contra as ameaças de interferência do governo federal. E, de fato,
Tocqueville desenvolve ulteriormente o seu ato de acusação contra o poder
político e militar. Não se trata apenas da destinação das terras:
“ Tocqueville, 1951, vol. XIII, 1. 1, p. 193, 199 (carta dc 22 dc junho c dc 8 de julho dc 1830).
“Tocqueville, 1951, vol. III, t. I,p. 324.
"•Tocqueville, 1951, vol. XIII, t. 2, p. 86 (cartaa L. dc Kergorlay, 23 de maio dc 1841)
w Cf. Chevallier, Jardin, 1962, p. 12-13.
VIII
Autoconsciência, falsa consciência,
conflitos da comunidade dos livres
1
Hume 1983, vol. VI, p. 84 c vol. V, p. 372.
3 Smith 1981, p. 794(- Smith, 1977,p. 782) (Livro V, cap. 1, parte III, 3).
VIII. Autoconsciência, falsa consciência, conflitos ia comunidadedoslivres 257
restrições impostas na Inglaterra, por causa da guerra, à liberdade individual e
lamenta o fato de que “o governo liberal desta nação livre é apoiado pela espada
mercenária de camponeses e vassalos ( boors and vassals) alemães”4. E novamente
a profissão de fé liberal por um lado critica a dilatação indevida do poder da Co¬
roa, por outro toma as distâncias das classes subalternas, submetidas ao trabalho
e portanto servis. Compreende-se então o desdém do whig inglês cm relação aos
que, em nome de uma autodenominada e “indiscriminada” liberdade, gostariam
de recorrer aos “braços servis” de escravos ou dc escravos emancipados, para
reprimir a revolta de colonos que, por serem proprietários de escravos, cultivam
dc maneira particularmente forte aquele amor da liberdade que deve residir em
todo ânimo que não seja servil. E comprcendc-sc também porque já em 1790,
em virtude do redimensionamento do peso político da nobreza, a “liberdade”
dos franceses aparece ao estadista inglês contaminada dc “rudeza e vulgarida¬
de”: esta “não é liberal” (is not liberal) . Ao contrapor-se a tudo o que é vulgar
c plebeu, “liberal” tende a ser sinónimo dc “aristocrático”; e, de feto, nos pro¬
prietários de escravos da Virgínia o “alto espírito aristocrático” resulta estrita¬
mente entrelaçado com um “espírito de liberdade”, que se distingue pelo seu
caráter “mais nobre c mais liberal”6. Enquanto homenageia o “governo liberal
desta livre nação”, Burkc dcdara-sc membro do “partido aristocrático”, o par¬
tido “vinculado com a propriedade sólida, permanente e de longa duração”, e
sente-se comprometido em lutar com todas as suas energias por “estes princípios
aristocráticos e os interesses destes”7.
No decorrer da revolução americana, juntamente com a celebração que
já conhecemos do “sistema político liberal”, em Washington pode-se ler a
celebração dos cultores das “artes liberais”, em contraposição aos “mecâ¬
nicos”, aos imigrados de modesta condição social provenientes da Europa .
Mas é acima de tudo esclarecedor o discurso de John Adams. Para que possa
rcalizar-sc uma liberdade ordenada, no exercício do poder não podem estar
os “mecânicos” e a gente comum “carente de qualquer conhecimento no
âmbito das ciências e das artes liberais”; ao contrário, “devem estar os que
receberam uma educação liberal, o grau normal de erudição nas artes e nas
ciências liberais”; e estes são “os bem nascidos e os ricos” .
4
Burke 1826, vol. III, p. 153.
s Burkc 1826, vol. V, p. 155-56 (- Burke, 1963, P-“248).
4
Burkc 1826, vol. III, p. 54 (- Burkc, 1963, p. 91).
1
7
Burkc, 1958-78, vol. VII, p. 52-53 (carta a W. Weddell, 31 de janeiro de 1792).
* Washington, 1988, p. 397 (carta a M.J.G. La Fayette, 28 de maio dc 1788), 455 (partes
do primeiro esboço do discurso de posse do presidente, abril dc 1789).
* Adams, cit. in Mcrriam, 1969, p. 132.
258 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Também na França o partido liberal, que vem se constituindo, dcfine-se
seja no decorrer da polêmica contra a monarquia absoluta seja, e talvez acima
de tudo, contra as massas populares e a sua vulgaridade. A atenção dirige-
se ao Terceiro estado, àqueles ambientes onde “certo conforto permite aos
homens receber uma educação liberal”' . Quem se expressa assim é Sieyès,
que depois desempenha um papel importante em ocasião do 18 de Brumá¬
rio de 1799. O que sela o golpe de Estado é a “Proclamation du général en
chef Bonaparte”, que anuncia a “dispersão dos facciosos”, isto é, da agitação
popular e plebéia, e o triunfo das “idéias conservadoras, tutelares, liberais”
( idées conservatrices, tutélaires, liberates). A linguagem com a qual nos depa¬
ramos não é a invenção de um general, embora genial. Nesse momento ele
goza do apoio dos ambientes liberais da época. É a eles que remete a adje-
tivação apenas vista. Constant, que mais tarde, como sabemos, declara-se
membro do “partido liberal”, já em 1797 fora recomendado por Talleyrand
a Napoleão como homem “apaixonado pela liberdade” e “republicano ina¬
balável c liberal” . No ano seguinte, Constant havia sublinhado o mérito do
Diretório por ter “proclamado a sua inabalável ligação ao sistema conserva¬
dor”'2. Enfim, assim que se consome o golpe de Estado, ele homenageia o
“gênio tutelar da França que, a partir do 9 Termidoro, protegeu-a de tantos
perigos” . Sinónimo de “aristocrático” em Burke, agora “liberal” é sinóni¬
mo de “conservador” (c “tutelar”). O fato é que, para Constant (assim como
para Madame de Staél), a causa do liberalismo encontra a sua expressão na
“gente respeitável” ( honnêtcsgcns) ou - precisa Necker cm uma carta à filha
- na “gente de bem” e abastada (jjens de bien: cf. infra, cap. X, § 1 ).
Tal como na Inglaterra e na América, também na França propendem a
definir-se liberais as classes proprietárias, orgulhosas da sua condição c do seu
espírito não servil. Fato este que é ulteriormente confirmado, ainda depois
da metade do século XIX, pela posição de Tocqucvillc: quem pode rcalmcntc
defender a causa da liberdade contra o governo “iliberal” de Luís Bonaparte
não é o “povo propriamente dito, com a sua educação incompleta”, e sim, os
“proprietários”, os “burgueses”, os “homens de cultura”, “em uma palavra,
todos aqueles que receberam uma educação liberal .
10
Sieyès, 1985, p. 133.
"Guillcmin, 1958, p. 178.
11 Guillcmin, 1958, p. 194-95.
14
Constant, 1988, p. 46.
'•Constant, cit. in Guillcmin, 1958, p. 60, 183, 271.
14
Tocqucvillc, 1951, vol. VII, p. 144-45.
VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidade dos livres 259
Impulsionada também pelas lutas populares, a dicotomia liberal/servil
tende progressivamente a perder a sua conotação de classe para referir-se
apenas às ideologias políticas. Mas, nos momentos de luta aguda o signifi¬
cado originário volta a emergir com toda a sua carga discriminadora: para
Tocqueville, como veremos, aquele que quisesse conferir um conteúdo social
ao ideal de liberdade é “feito para servir”!
No interior das classes proprietárias podem desenvolver-se c se desen¬
volvem conflitos até ásperos: em polêmica com Burke, que tem suspeitas
de escasso patriotismo e até de tendências subversivas em relação à riqueza
não enraizada na terra c no solo pátrio, Mackintosh declara que “o interesse
comercial ou financeiro tem menos preconceitos, é mais liberal c mais inteli¬
gente do que a nobreza terreira” {landed gentry)16. De maneira análoga, na
França Sieyès vê a “educação liberal” encarnar-se no Terceiro estado, não em
uma aristocracia acostumada a procurar na Corte “os favores da servidão” .
Os alertas para não discriminar e para não provocar conflitos entre os dife¬
rentes tipos de propriedade se fazem mais frequentes. Para o anti-jacobino
Jean Joseph Mounier, além dos Estados Unidos, a que difundiu “na França
as idéias de liberdade” foi a Inglaterra, vista no entanto como o país no qual
“uma educação liberal sem provas genealógicas confere a qualidade de gen-
tlmen
Resta o fato de que o termo “liberal” nasce de uma auto-designação
orgulhosa, que ao mesmo tempo tem uma conotação política, social c até
étnica. Estamos na presença de um movimento e de um partido que visa
reunir as pessoas dotadas de uma “educação liberal” e autenticamcntc livres,
isto é, o povo que tem o privilégio de ser livre, a “raça eleita”, - nas palavras
de Burke - a “nação em cujas veias escorre o sangue da liberdade”. Tudo
isso não é surpreendente. Como já foi esclarecido por eminentes estudiosos
das línguas indo-européias, “livres” é uma “noção coletiva”, é um sinal de
distinção que compete aos “bem nascidos” e só a eles. Por isso, fora da co¬
munidade dos livres c dos bem nascidos, a servidão ou a escravidão não ape¬
nas não é excluída mas é até pressuposta. Aos olhos de Cícero, na frente dos
liheri populi está Roma, que implementa a escravização em massa dos povos
derrotados e considerados indignos da liberdade . De maneira análoga, na
Inglaterra liberal do século XIX, uma canção muito popular (Rule Britan-
16
Mackintosh 1989, p. 136-37.
17 Sieyès, 1985, p. 171.
"'* Cf.
Mounier, 1801, p. 31, 36-37, 50.
Losurdo, 2002, cap. 33, § 2.
260 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
nia) enaltece assim o Império que recentemente tem arrancado da Espanha
o Asicnto, o monopólio do comércio dos negros: “Este foi o seu privilegio
divino, /que os anjos cantaram em coro: /Oh Britânia, comanda às ondas,
/nunca os ingleses serão escravos”.
” Mill,
34
1972, p. 213-15 (- Mill 1946, p. 62-64).
Mill, 1972, p. 129 (- Mill, 1981, p. 103).
,l
Bcntham, 1838-43, vol. I, p. 577.
H Mill, 1963-91, vol. XII, p. 365 (carta a
J. P. Nichol, 21 dc dezembro de 1837); a res¬
peito veja-sc Sullivan, 1983, p. 606.
37 Villari, 1984,
p. 151 (carta dc J. S. Mill a P. Villari, 1 1 dc junho dc 1862).
* Mill, 1972, p. 213-15 (- Mill, 1946, p. 61-64).
” Mill, 1972, p. 213 (- Mill, 1946, p. 61 ).
30 Cobden, cit. in
Hinde, 1987, p. 25-26.
262 CONTRA- H ISTÓ RI A DO LIBERALISMO
Unidos, fazem parte do mundo colonial. Enfim, os que se destacam muito
negativamente, para Senior, são também os napolitanos: “Nunca encontrei
um povo tão detestável; são sujos e doentios, e o seu semblante é igualmente
malévolo” e, acima de tudo, nenhuma barreira procura separar a plebe das
classes superiores .
17
Mill, 1963-91, vol. XV, p. 528 (carta a E. Chadwick, 13 dc março dc 1857).
“ Marx, Engcls, 1955-89, vol. XXIX, p. 56 (carta a Marx, 23 dc maio dc 1856).
** Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 3, p. 496 (carta a G. dc Beaumont, 17 de agosto de 1857).
40
Tocqueville, 1951, vol. XVIII, p. 424 (carta a A. de Circout, 25 de outubro de 1857).
41 Macaulay, 1986, p. 301-303.
_ VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidade dos livres 265
descreve com eficácia de que maneira age o governador da índia, Warren
Hastings, quando, em um momento difícil para a Inglaterra, já empenhada
na luta contra os colonos americanos rebeldes e os seus aliados franceses, ele
é chamado a enfrentar a população nativa da colónia:
A ameaça à comunidade dos livres vem das colónias, mas pode insurgir
na própria metrópole. Ao longo do tempo resta um enigma a condição das
classes populares, que frequentemente a elite dominante tende a aproximar
aos “selvagens”. A aproximação torna-se efetiva identificação nos períodos
de revoltas c revoluções. E tal como para a barbárie externa, assim para a in¬
terna o remédio é a ditadura. Montesquieu não tem dúvidas sobre o fato de
que é parte do “costume dos povos mais livres existentes na terra” o de “co¬
locar por um tempo um véu sobre a liberdade, tal como sc encobrem as está-
44
Constam, 1957, p. 1147-48 (- Constant, 1970, p. 101).
44
Boissy d’Anglas, cit. in Lefcbvrc, 1984, p. 35.
** Tocquevillc, 1951, vol. VI, t. 2,p. 70 (carta a N. W. Senior, 21 dc fevereiro de 1835).
4r Tocqueville, 1951, vol. XVI, p. 132.
268 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO ___
po, as leis a favor dos pobres terminariam por transformar os “proletários”
nos beneficiários efetivos da terra e os “proprietários” em simples “empre¬
gados deles”48.
Mais oscilante revela-se John S. Mill. Por um lado ele reafirma as posições
já vistas: “todo direito ao voto” nas mãos de quem não paga taxas “é uma
violação do princípio fundamental de um governo livre”; atribuir os direitos
políticos e portanto a participação ao poder legislativo a cidadãos pobres, não
sujeitos à imposição fiscal, “é a mesma coisa que permitir às pessoas mexer
no bolso do próximo por motivos que gostamos de chamar públicos”4*. Por
outro lado, o liberal inglês de esquerda expressa uma posição mais flexível:
T6
Tocqueville, 1951, vol. VI, t. 2, p. 101 (carta a N. W. Senior, 10 de abril de 1848).
VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidadedoslivres 275
na primeiríssima etapa da revolução; e deve ser acrescentado que por al¬
gum tempo é na verdade a “inoculação americana”, e portanto uma doença
proveniente do outro lado do Adântico, que é considerada responsável do
transplante e da difusão contagiosa de ideias caracterizadas por abstrato e
insano extremismo’ . A denúncia da doença e o diagnóstico cm chave psi-
copatológica do adversário podem ocorrer em direção contraposta. Visto
que se desenvolve o movimento abolicionista, torna-se um lugar comum
nos Estados Unidos condená-lo enquanto expressão de espírito iliberal, de
fanatismo e de loucura. Mas, no momento da revolta dos colonos ingleses
na América, podemos ver Josiah Tucker convidar o governo de Londres para
que aceite e até favoreça a secessão, de modo a evitar o “contágio” de “uma
louca e fanática liberdade”, que ao mesmo tempo enfurece contra os escravos
ou servos da gleba, o contágio de um “republicanismo” que certamente é
“americano”, mas que se conecta em última análise com Locke c com a “seita
lockcana” e que pode contar com as simpatias do próprio Burkc .
Após o 1848, depois do enésimo retorno da revolução e com palavras
de ordem ainda mais radicais, a tendência a alertar contra a doença que se
propaga na França chega a uma drástica acentuação. Ao evidenciar a conso¬
lidação nos Estados Unidos do governo da lei e das instituições liberais, A
democracia na América atribui à história e à geografia muito mais peso do
que o Antigo regime e a revolução. Por que na França se impõe a ditadura
militar de Napoleão Bonaparte?
77
Aulard, 1977, p. 19, nora 1.
79
Tucker, 1993-96, vol. rV, p. 65, 100, 140; vol. V, p. 72.
79
Tocqucvillc, 1951, vol. I, t. 2, p. 274 (DA2, cap. Ill, 22).
“ Tocqucvillc, 1951, vol. I, t. 2, p. 270 (DA2, cap. Ill, 22).
276 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
maneira sumária e inapelável “desejo sublime” da liberdade e vulgar indife¬
rença em relação a ela, “almas nobres” e “almas medíocres”. Para confirmar a
deriva antropológica que se manifesta com o 1848, pode-sc indicar a extensa
carta (um pequeno ensaio) enviada por Tocqueville vinte anos antes ao ami¬
go Beaumont. A história da Europa é interpretada aqui de maneira tão unitá¬
ria que a terminologia torna-se reversível: fala-se de “Comunas” a propósito
da França e de “Terceiro estado” a propósito da Inglaterra. Nos dois países
a vitória da burguesia realiza-se com diferentes modalidades, que no entan¬
to são a “consequência necessária do estado de coisas”, isto é, da diferente
configuração das relações de força entre os sujeitos político-sociais em luta .
Estatalismo c despotismo são a doença hereditária do país a partir dos quais
depois aparecem jacobinismo e bonapartismo? Na realidade, a Inglaterra não
apenas consegue constituir um forte aparelho estatal e militar antes da Fran¬
ça, mas sofre na época dos Tudor um despotismo sem limites: “Não conheço
na história um tirano mais completo que [...] Henrique VIII”; as Comunas,
“que nunca haviam negado a vida de um homem à vontade do rei”, acabam
agora “condenando sem sequer ouvir”. Manifesta-se um terror pior que o
jacobino, como mostram “os bills de conviction, invenção diabólica que nem
o Tribunal revolucionário chegou a exumar”. E, no entanto, trata-se sempre
de uma revolução que desempenha um papel positivo; amadurece o “primei¬
ro fruto da civilização”, pelo fato de que, mesmo no seu terrível absolutismo,
na Inglaterra o poder monárquico ataca os “vícios do sistema feudal” e dobra
a “liberdade oligárquica”. É uma tendência de caráter geral, mas em país ne¬
nhum “o despotismo revelou-se tão terrível”. Ao contrário da França, a ilha
do outro lado da Mancha é caracterizada e abençoada pela evolução gradual
da história? A carta-ensaio que estamos analisando polemiza explicitamentc
com a tese conforme a qual a Constituição inglesa teria passado “através
de estágios sucessivos c regulares, antes de chegar ao ponto em que hoje se
encontra”, de modo que ela deveria ser considerada como “um fruto amadu¬
recido século após século”. Na realidade - observa Tocqueville - a partir de
Henrique VIII, “vejoo povo inglês mudar quatro vezes de religião seguindo
a vontade do patrão” .
NaturaJmente, a carta-ensaio de 1828 poderia ser desvalorizada como
sendo “juvenil”. Mas, também nos anos seguintes, se há contraposição entre
França c Inglaterra, é muitas vezes em detrimento desta última, que conti-
*•Mill, 1963-91, vol. XX, p. 319-63; Mill, 1983, p. 397 (livro II, cap. 5).
" Morris,
Mill, 1963-91, vol. I, p. 267 (= Mill, 1976, p. 209).
“ 1992, vol. II, p. 87.
*•Liebcr, 1859, p. 55, nota 1.
VIII. Autoconsciência, falta consciência, conflitos da comunidade doslivres 279
8. A “doença” como sintoma de degeneração racial
M
Tocqueville, 195 1, vol. VIII, t. 3, p. 229 (carta a G. dc Beaumont, 6 de agosto dc 1854).
** Tocqucvillc, 1951, vol. I, t. l,p. 391 (DAI, cap. II, 10).
Tocqucvillc, 1951, vol. VII, p. 159 (carta a T. Sedgwick, 14dc agosto de 1854).
*’ Tocqucvillc, 1951, vol. VII, p. 177, 182 (cartas a T. Sedgwick, 29 dc agosto e 14 dc
outubro de 1856).
VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidade doslivres 281
a iminente guerra civil, imputando-a à presença crescente de grupos étnicos
tradicionalmente desprovidos das qualidades políticas e morais atribuídas aos
anglo-americanos.
Esse tipo de explicação resulta evidentemente impossível quando se
analisa um país etnicamente homogéneo. Ou devemos supor que essa ho¬
mogeneidade é apenas uma aparência? Quem responde a essa pergunta de
modo decisivamente afirmativo é Gobineau. Mas, vejamos qual é o seu
ponto de partida. Ele concorda plenamente com o impiedoso diagnóstico
psicopatológico do povo francês formulado por Tocqueville. Precisa tomar
consciência da doença secular que torna impossível o funcionamento de
“instituições livres” e que, em nome da “pública utilidade” ou daquela
“monstruosidade” que é o presumido “direito social”, promove incessan¬
temente “a absorção dos direitos privados no único direito de Estado”.
Estamos na presença de “um povo pelo qual a centralização absoluta cons-
titui o máximo do bom governo” . Como é possível observar, ecoam os
mesmos motivos ideológicos e até a mesma linguagem que temos ouvido
de Tocqueville, Lieber e John S. Mill.
Há, no entanto, uma novidade. A doença agora tem uma precisa base
étnica. Na França e no resto do mundo ela é veiculada por não-arianos. Pela
importância dessa novidade, é exagero afirmar que Gobineau é “muito menos
distante do seu temporâneo mentor c superior Alexis de Tocqueville do que
se possa pensar”". Mas, por outro lado, não há dúvidas de que nos movimen¬
tamos em um ambiente cultural e político onde não há poucos elementos de
contato e de comunhão. Em estreita relação epistolar e intelectual entre eles,
Tocqueville e Lieber estão plenamente de acordo no diagnóstico da doença
que infesta a França e que, em virtude dos fluxos migratórios, corre o risco
de ter uma influência nefasta nos Estados Unidos. Avançando mais na linha
da interpretação em chave étnica da história, o segundo contrapõe ao espírito
gregário e servil dos “celtas” o sentimento cioso da própria individualidade
dos “teutônios”. Estes últimos são a vanguarda do Ocidente, ou da “porção
caucásico-ocidental da humanidade”. Talvez - conclui Lieber - por questão
de brevidade se poderia falar de “cis- caucasianos”, enquanto a expressão de
“jaféticos” apresenta a dificuldade de ser muito ampla . Como se pode ob¬
servar, estamos no limiar da mitologia ariana: “jaféticos” são os descendentes
101
Gobineau 1997, p. 367 (cap. Ill, 1).
,0J
Sidney, 1990, p. 103, 167; Hume, 1983-85, vol. I, p. 160.
103 Mill, 1972, p. 213 (= Mill, 1946, p. 61).
VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidade dos livres 283
No final do século XIX o mito genealógico teutônico alcança uma gran¬
de fortuna. Sobre a imagem da França, não obstante a estabilização obtida
com a Terceira República, pesa a lembrança da Comuna de Paris e do inter¬
minável ciclo revolucionário atrás dela; sobre a imagem da Itália pesa a praga
do banditismo no Sul e a posição geográfica, não propriamente nórdica,
particularmente das suas regiões meridionais. O Segundo Reich parece ao
contrário associar-se sem problemas à Inglaterra e aos Estados Unidos no
gozo dos organismos representativos, do ordenamento liberal e do desenvol¬
vimento económico. Agora, celebrados como a vanguarda da comunidade
dos livres, são estes três países, na condição dos povos que encarnam melhor
a causa da liberdade. Já em 1860, lorde Robert Cecil (futuro marquês de
Salisbury e futuro primeiro ministro) contrapõe “aos povos dos climas meri¬
dionais, os de ascendência [...] teutônica” ; em 1899, Joseph Chamberlain
(ministro das colónias) chama oficialmente Estados Unidos c Alemanha a
estreitar, juntamente com o seu país, uma aliança “teutônica” . Trata-se de
um ordenamento aceito no outro lado do Atlântico por Alfred. T. Mahan,
o grande teórico da geopolítica, uma vez que ele também se pronuncia pela
unidade da “família teutônica”, dos povos pertencentes ao “mesmo tronco”
germânico. O almirante apenas mencionado está cm ótimas relações com
Theodore Roosevelt que, indo ainda mais além, na celebração dos “povos
germânicos” e “teutônicos’, entoa um hino à “coragem guerreira dos altivos
filhos de Odino” . Esse clima ideológico estimula a rcinterpretação da ca¬
tegoria de “anglo-saxões”, que agora tende a incluir também a Alemanha (o
lugar do qual parte a grande aventura da emigração da estirpe da liberdade,
cujo mérito foi ter se levantado primeiro contra o despotismo romano c de¬
pois contra o despotismo papal).
uNa raiz não existe apenas uma questão de filosofia social; na raiz existe uma
questão de biologia. A este respeito há abundantes provas fornecidas pelos matri¬
mónios mistos, no que tange às raças humanas, e dos cruzamentos, no tocante aos
animais”110.
1,1
Tocquevilie, 1951, vol IX, p. 280 (carta a A. de Gobineau, 24 de janeiro de 1857).
m Lecky 1883 88, vol. II, p. 380.
177
Spencer, cit. in Gossett, 1965, p. 151-52.
IM Spencer, 1996, p.
154-55 (carta a E. Cazcllcs, 3 de maio de 1871 ).
'** Tocquevilie, 1951, vol. IX, p. 305 (carta de 21 de março de 1859).
'“Cf. Losurdo, 2002, cap. 20, § 1.
VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidade dos livres 287
11. Remoção do conflito, busca do agente patogênico
e teoria do complô
Ainda que rejeite a fácil solução ariana, nem por isso Tocqueville é menos
obcecado que Gobineau pelo problema da individuação do agente patogênico
que ataca um organismo social sadio em si. Após 1848 não há dúvidas: o veícu¬
lo da “doença” revolucionária”, da “doença permanente”, o “vírus de uma es¬
pécie nova e desconhecida” que não pára de enfurecer na França é constituído
por uma “nova raça” (race nouvelle): “estamos sempre na presença dos mes¬
mos homens, embora as circunstâncias sejam diferentes” . Precisa acrescentar
que tal “vírus” ou tal “raça” tem se propagado ameaçadoramente no mundo
inteiro. Sim, após ter feito a sua aparição na França, estes “revolucionários de
uma espécie desconhecida [...] têm formado uma raça que se perpetuou e se
difundiu em todos os lugares civilizados da terra, onde tem conservado a mes¬
ma fisionomia, as mesmas paixões, o mesmo caráter”
Salta novamente aos olhos a passagem da “doença” ou do “vírus” para
a “raça”. Assim também cm Constant: “frios no seu delírio”, os intelectuais
subversivos, estes “prestidigitadores da sedução” (jongleurs de sédition), não
cansam de minar não apenas uma determinada sociedade, mas “as próprias
bases da ordem social”. São “seres de uma espécie desconhecida” (êtrcsd’une
espèce inconnue), constituem jaté uma “nova raça” (race nouvelle), uma “raça
detestável” (detestable race) '. Em um crescendo, a explicação de tipo an¬
tropológico tende a se tornar uma explicação de tipo racial (é sintomática a
passagem da categoria de espèce à de race). Neste ponto desponta a idéia de
uma solução radical. Desta “raça detestável” constituída por agentes pato-
gênicos não se pode desejar senão a “extirpação” : é a condição preliminar
para reestabelecer a saúde e a salvação da sociedade.
Nem em Constant nem em Tocqueville o termo “raça” tem uma real
conotação étnica. E, no entanto, a recorrência dele é o sintoma de uma ten¬
dência para caracterizar propriamente com a raça os intelectuais portadores
do vírus da subversão. Burke se lança decididamente mais adiante. Para além
de um setor social bem determinado (os intelectuais não-proprietários, não
vinculados à terra e destituídos de raízes), a “intoxicação” ideológica da qual
sc torna culpada o radicalismo remete a um bloco social que começa a
1,1
Tocqueville, 1951, vol. II, t. 2, p. 348-49; vol. XIII, t. 2, p. 337-38.
Tocqueville, 1951, vol. II, t. 1, p. 208 (AR, livro III, cap. 2).
*" Guillcmin, 1958, p. 13-14, 84, 194; Constant, 1988, p. 44.
1,4
Guillemin, 1958, p. 13-14.
'“Burke, 1826, vol. VII, p. 135.
288 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
revelar uma dimensão étnica. O que explica a catástrofe da revolução fran¬
cesa é agora a aliança entre duas ordens sociais sensivelmente diferentes: de
um lado os “intelectuais politiqueiros” ( political men of Utters), do outro os
“novos ricos”, os grandes da finança. Compreendem-se bem as razões dessa
aliança à primeira vista tão estranha. O que as duas partes têm em comum é
o ódio do cristianismo: “anos atrás a camarilha literária formou algo de pare¬
cido com um verdadeiro plano para a destruição da religião cristã” . Mas,
se a irreligiosidade e o ateísmo dos intelectuais influenciados pelo iluminismo
são notórios, não se deve perder de vista o fato de que “os hebreus da Bolsa”,
já alheios por motivos religiosos e ideológicos à cristandade, têm também
um interesse material no seu enfraquecimento ou na sua esperam
destruirão:
hipotecar as “receitas pertencentes ao arcebispo de Cantuária” .
O ataque à Igreja é também o ataque à “propriedade fundiária das institui¬
ções eclesiásticas”, à propriedade terreira enquanto tal. É sinistro o programa dos
revolucionários: “Proclamaremos a absoluta inutilidade da Câmara dos Lordes,
aboliremos os bispos, venderemos as terras da Igreja aos judeus e especulado¬
res” . O que visa destruir uma sociedade, que tem os seus pilares no cristianis¬
mo e na aristocracia terreira, é a aliança entre os intelectuais subversivos reunidos
na “Sociedade pela Revolução” e o “púlpito do Velho Gueto” (the pulpit of the
Old Jewry), voltados a falsificar o verdadeiro significado da Gloriosa Revolução
e a difundir os “espúrios princípios revolucionários do Velho Gueto”1**. Como
se vê, Burke não cansa dc insistir no papel dos hebreus. Essas duas componentes
do bloco revolucionário são entrelaçadas por meio de múltiplas afinidades: para
além do ódio contra a Igreja e a nobreza agrária e cristã o que joga um papel
importante é também o seu fundamental alheamento à nação; sim, também a
ordem intelectual é fúndamentalmente apóiida, uma vez que mostra “apego ao
seu país” só até quando ele adere aos seus “volúveis projetos”
Mas, de onde a subversão extrai a sua força de choque? Para abater a
ordem existente não bastam os intelectuais e usurários. Na realidade, parte
integrante, embora subalterna, do ataque subversivo é a “Taberna”, a plebe
bêbada e sanguinária. De que modo consegue ser constituída e soldada essa
união anti-natural, que Burke repetidamente denuncia como o bloco social
entre “Velho Gueto” e “Taberna de Londres” ? Quem consegue transfor-
“Para mim c uma reflexão bastante melancólica pensar que a vossa nação incor¬
porou a escravidão de tal maneira que esta cresce juntamente com aquela [...]. Na
prática, não há antecedentes de uma abolição da escravidão por iniciativa do patrão.
Esta foi abolida só graças ao esforço de um poder que dominava ao mesmo tempo
171
Cf. Losurdo, 1992, cap. Ill, § 6.
Lecky, 1981, vol. II, p. 321-22.
174
Hayek, 1969, p. 263-64, 445.
I7Í
Hayek, 1990, p. 110; a referência crítica é a Hobhouse, 1977.
174
Mises, 1922, p. 3.
_VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitosda comunidade dos livres 299
do Termidoro, aquele que opõe resistência à virada dirigida a restabelecer nas
colónias, se não é a escravidão, o regime de supremacia branca, é rotulado
de “africano” . Nos Estados Unidos nos anos 1820 do século XIX, polemi¬
zando contra as tendências abolicionistas, Randolph declara que_o termo “li¬
beral” já corre o risco de tornar-se sinónimo de “aliança negra” . A polêmi¬
ca contra os Black Republicans ou os “republicanos negros” torna-se depois
o fio condutor da luta contra as tendências abolicionistas que começam a se
coagular no partido republicano de Lincoln, como emerge particularmente
do debate que, poucos anos antes da guerrade Secessão, contrapõe o futuro
presidente ao senador Stephen A. Douglas . Nos anos seguintes quem grita
para a traição é, entre outros, Lecky. O breve período de democracia inter-ra-
cial e multi-étnica que o Sul conhece, a Reconstrução, é para ele o triunfo do
“voto negro” c a dissolução da “influência da propriedade e da inteligência”,
é o advento, “sob a proteção das baionetas do Norte”, de “uma orgia odiosa
de anarquia, violência, corrupção desenfreada, de roubalheira explícita, os¬
tentada, insultante, raramente vistas no mundo”
Ate agora nos concentramos nos desafios que podem ser lançados à co¬
munidade dos livres pelos bárbaros das colónias ou da metrópole, e sobre
as situações de crise aguda que podem despontar dentro de cada país. Mas,
quais são as relações entre os diversos países nos quais se articula a comuni¬
dade dos livres? Justamcntc porque tende a remover e a colocar fora dela a
génese do conflito, ela acaba por apresentar-se como a comunidade da paz,
surda aos atrativos da guerra e das aventuras bélicas, que seriam um resíduo
pré-moderno, c toda dedicada à produção, à troca e ao gozo tranquilo dos
bens que constituem a civilização. George Washington manifesta a esperança
de que o desenvolvimento do “livre comércio” (Jree commerce) c da civiliza¬
ção, “em uma época tão iluminada e liberal”, possa fazer parar “as devasta¬
ções e os horrores da guerra” para unir a humanidade “com elos fraternos
ao estilo de uma grande família” . Sim - reafirma Constant - na “época do
“Nós somos a comunidade mais agressiva e combativa que tenha existido des¬
de a época do império romano. Após a revolução de 1688, gastamos mais de mil e
quinhentos milhões [de esterlinas] em guerras, nenhuma das quais foi combatida nas
nossas praias, ou em defesa dos nossos lares e das nossas casas [...]. Esta propensão
bélica foi sempre reconhecida, sem exceção, por todos aqueles que estudaram o
nosso caráter nacional”183.
IU
Constant, 1957, p. 993-94 (- Constant, 1961, p. 21-23).
“* Cobden, cit. in Pick, 1994, p. 33.
184Washington. 1988, p. 401 (carta a M. J. G. La Fayette, 19 de junho de 1788).
_ VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidade dos livres 301
Mas, o desenvolvimento da expansão colonial da Europa, e em primei¬
ro lugar da Inglaterra, que agora atinge também um país de antiquíssima
civilização como a China, torna problemático o uso da categoria de opera¬
ção de polícia. Por outro lado, reconhecer a realidade da guerra pode de¬
sempenhar uma função positiva também no plano da política interna, pode
servir a colocar na sombra o conflito social que se agrava e a contrastar a
ideologia vulgarmente hedonista, na onda da qual sc desenvolve a agitação
radical e socialista. A tensão ideal que preside a guerra é assim contraposta
à mesquinharia das reivindicações materiais, avançadas pelo movimento de
protesto popular: “As massas querem tranquilidade e ganho”, e portanto
a paz, mas o mérito da guerra reside no fato de colocar em crise essa visão
fílistéia da vida - observa Burckhardt que a esse respeito cita o mote de
Heráclito (“a guerra é a mãe de todas as coisas boas”) . Para Tocquevil-
le, a guerra e “os grandes acontecimentos” podem ser um antídoto útil à
“nossa medíocre sopa democrática e burguesa” (que é o produto de cultura
do sensualismo e hedonismo socialista) . A democracia na América afirma
com força: “Não quero absolutamente falar mal da guerra; a guerra abre
quase sempre a mente de um povo c eleva o seu ânimo” . Quando depois
comporta um avanço do Ocidente e portanto da causa da civilização, a
guerra revela toda a sua nobreza e beleza. Tocqueville se expressa em ter¬
mos líricos sobre a primeira guerra do ópio, em uma carta cujo destinatário
é o liberal inglês Reeve. Este, por sua vez, em ocasião da guerra da Criméia
(na qual a Inglaterra faz aliança com a França bonapartista), sempre no
curso da correspondência com o liberal francês, se expressa com uma gran-
diloqúência não menos enfática:
1,5
Burckhardt, 1978, p. 150, 118-19.
184 Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 1, p. 421 (carta a G. dc Beaumont, 9 dc agosto dc
184°>
ur Tocqueville, 1951, vol. 1, t. 2, p. 274 (DA2, cap. Ill, 22).
'** Reeve, citado cm Tocqueville, 1951, vol. VI, t. l,p. 150.
302 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
14. A autoconsciência orgulhosa da comunidade dos livres
e o emergir do upatriotismo irritável*’
“Não é verdade que, tal como os reis, também as nações sejam afetadas por
aversões, predileções, rivalidades e desejos de injustas posses? Será que não acontece
que as assembléias populares sejam muitas vezes tomadas por impulsos de raiva, res¬
sentimento, ciúme, avidez e outras paixões desenfreadas e até violentas?191
“Vai até se exigir que dois povos devam necessariamente viver em paz um com
o outro, pelo fato de ter instituições políticas análogas? Que são abolidos todos os
motivos de ambição, de rivalidade, de ciúme, todas as más lembranças? As institui¬
ções livres tornam até mais vivos esses sentimentos”194.
100 Tocqueville, 1951, vol. VII, p. 147 (carta a T. Sedgwick, 4 de dezembro de 1852).
201 Tocqucvillc, 1951, vol. III, t. 3, p. 249.
306 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
de “uma categoria de criminosos políticos”202. Duro e até cínico mostra-se
Tocqueville em relação a um dos protagonistas da revolução nacional hún¬
gara: mais do que agitar-se para salvar a de Kossuth”, teria sido melhor
fazer dela tranqúilamente um “tambor”
Para além da recusa do radicalismo, o que motiva essa atitude é também
o “patriotismo irritável”, a preocupação de caráter chauvinista, como emerge
particularmente da furiosa polêmica de Tocqueville contra “os nossos im¬
becis agentes diplomáticos” na Alemanha, culpados por não se contrapor
com maior decisão e eficácia à perspectiva da “unificação política” do país.
Certamente, “a paixão da população por essa idéia parece ser sincera c pro¬
funda”; mas. “nada seria mais temível para nós do que um acontecimento
como esse” . Mas, dessa forma, não se desprezaria o princípio liberal do
autogoverno e do consenso dos governados como critério de legitimidade
de todo governo? É um problema que Tocqueville não se coloca. Ele auspi¬
cia “a vitória dos princípios” e do exército prussiano, de maneira também a
pôr fim a uma “descentralização excessiva” que favorece o pulular de “focos
revolucionários”20*.
Em relação à Itália, a preocupação chauvinista deveria desempenhar um
papel mais modesto; e, no entanto, cm setembro de 1848, o liberal francês,
na qualidade de ministro do Exterior, sintetiza a sua posição nestes termos:
“manutençãoÿdos antigos territórios [...], mudanças reais c consideráveis das
instituições” . Como é possível observar, não há espaço para a reivindicação
da unidade nacional. E o princípio do consenso dos governados? Após ter
convidado a organizar “uma manifestação romana ” a favor do restabeleci¬
mento do poder temporal do papa, Tocqueville continua assim:
“Na minha opinião, isto é indispensável. E, para obter este resultado, mesmo
não tendo a realidade, é preciso absolutamente produzir pelo menos a aparência.
É o único meio para conectar a expedição a uma das principais finalidades que nós
sempre lhe atribuímos e em relação à qual a Assembléia Nacional sempre manteve
firme posição, a de socorrer a vontade real e os desejos subliminares das populações
romanas"™7.
31}
Sandoz (org.), 1991, p. 216-19.
311 Sandoz (org.), 1991, p. 623-24.
3M Jefferson, 1984, p. 1272-73 (carta a Madame dc Staèl, 24 de maio dc 1813).
,,s Jefferson, 1984, p. 1357 (carta a W. Short, 28 de novembro de 1814).
*'•Jefferson, 1984, p. 1366 (carta a M. J. G. La Fayette, 14 dc fevereiro de 1815).
VIII. Autoconsciência,falsa consciência, conflitos da comunidade dos livres 309
O segundo conflito é o que explode com a guerra de Secessão. Manifes¬
ta-se novamente a dialética que já conhecemos. O fato de que por décadas
os dois antagonistas tenham se considerado membros do povo eleito da li¬
berdade, longe de atenuar a aspereza do embate, a alimenta ainda mais: uns
e outros estão convencidos de combater uma guerra santa; apelam para a
Sagrada Escritura e a metade dos seus textos de propaganda têm eclesiásticos
como autores
O primeiro grande conflito sobrevive ao segundo, colocado na sombra
no final do século XIX pela elevação da maré chauvinista, que atinge os Es¬
tados Unidos no seu conjunto, sem excessivas distinções entre Norte e Sul.
Em 1889, Kipling observa impressionado que em São Francisco a celebra¬
ção de 4 de julho é ocasião de discursos oficiais contra o que os americanos
definem de “nosso inimigo natural”, representado pela Grã Bretanha e pela
sua “cadeia de fortalezas pelo mundo” . Na realidade, também esse anta¬
gonismo vai esmorecendo, porque está amadurecendo uma situação interna¬
cional totalmente nova. Mais do que nunca lançados na expansão colonial e
mais do que nunca deslumbrados com a idéia da missão de liberdade que se
atribuem cm concorrência entre si, entre os séculos XIX c XX, os diferentes
centros nacionais da comunidade dos livres se movimentam em rota de co¬
lisão. É nesse contexto que podemos colocar o terceiro grande conflito na
história do liberalismo, o conflito que, a partir da primeira guerra mundial,
estabelece particularmente a contraposição entre a Inglaterra (e os Estados
Unidos) de um lado, e do outro a Alemanha, a recruta mais nova e ambiciosa
da comunidade dos livres, que já no final do século XIX começava a cultivar,
ela também, a idéia de um império pela liberdade, na frente da
cruzada pela abolição da escravidão nas colónias
A leitura aqui sugerida do terceiro grande conflito pode gerar surpresa.
O que obstaculiza a compreensão desse acontecimento é a teleologia ne¬
gativa, que tende a ler a história da Alemanha no seu conjunto como uma
série de etapas que conduzem necessariamente ao horror do Terceiro Rcich.
Na realidade, na véspera da primeira guerra mundial, a Alemanha certamcn-
te não era menos “democrática” que os Estados Unidos, onde enfurecia a
opressão racial, ou Grã Bretanha, que ignorava totalmente o sufrágio univer¬
sal masculino (sobre o qual sc fundava a eleição do Reichstag) e que exercia
,,T
Genovese, 1998 b, p. 74-75.
m Kipling, cit. in Gossett, 1965, 322.
«* Cf. Losurdo, 2002, cap. 17, § 3
310 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
um domínio imperial em escala planetária, e até na própria Europa, contra a
Irlanda. Acima de tudo, não se deve esquecer que, entre os séculos XIX c XX,
também em terra inglesa e americana, a Alemanha era considerada para todos
os efeitos um membro do clube exclusivo dos povos livres.
E, mais uma vez, manifesta-sc a dialética que já conhecemos. Os que
se enfrentam cm uma guerra total, que exige a mobilização da cultura além
dos exércitos, são antagonistas que anteriormente haviam se reverenciado
uns aos outros como membros da grande família teutônica ou ariana, unida
pela custódia ciosa da autonomia individual c pelo amor ao autogoverno e à
liberdade.
IX
Espaço sagrado e espaço profano
na história do liberalismo
1. Historiografia e hagiografia
' Wcber,1995,
1 Furet,
1968, p. 276.
p. 98.
312 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
“Até agosto dc 1914, não tivessem existidos correio c policiais, um inglês cor¬
reto c observante das leis poderia transcorrer a vida sem quase perceber a existência
do Estado. Poderia morar onde e como lhe agradasse. Não tinha número oficial nem
carteira de identidade. Podia viajar ao exterior ou deixar o seu país para sempre sem
ter necessidade de passaporte ou de autorizações dc qualquer tipo; podia trocar o seu
dinheiro em qualquer outro tipo de moeda sem restrições nem limites {...]. Diver¬
samente do que acontecia nos países do continente europeu, o Estado não obrigava
seus cidadãos a prestarem serviço militar [...]. O cidadão adulto era deixado livre"*.
3
Taylor, 1975, p. 1-2.
4
Gray, 1989, p. 56.
5 Taylor, 1975, p. 4.
IX. Espaço sagrado e espaço profano na históna do liberalismo 313
ser, sempre nas palavras de Taylor, protagonista da “única insurreição nacio¬
nal ocorrida em um país europeu no decorrer da primeira guerra mundial,
irónico comentário à pretensão britânica de combater pela liberdade” e de
representar a causa da liberdade*.
No tocante à Inglaterra propriamente dita: não sei se Cobden “perce¬
bia” que o Estado controlava a sua correspondência, mas certamente o Esta¬
do percebera que ele era um cidadão sem dúvida “ajuizado e observante das
leis”, mas que tinha por defeito o fato de ser suspeito de simpatias cartistas .
E ainda mais facilmente “percebia-se” do Estado o movimento cartista e
operário em geral, enfrentado com a repetida suspensão do habeas corpus e o
recurso à prática dos agentes provocadores, o que suscitava horror nãoÿ ape¬
nas no liberal Constant, mas também cm um “estatalista” como Hegel . Na
Inglaterra da época agia ativamente “uma inteira subclasse de informadores e
espiões da polícia” . È até equivocada a contraposição com o “continente” a
propósito do alistamento obrigatório: este havia já feito a sua irrupção algu¬
mas décadas antes nos Estados Unidos, no decorrer da guerra de Secessão c
para impô-lo Lincoln não havia hesitado em fazer marchar sobre Nova York
um corpo de armada'0. O alistamento obrigatório não é uma prática imposta
de fora, do Continente, ao mundo liberal!
A historiografia propende a se dissolver na hagiografia. Recorro a esse
termo, atribuindo-lhe um significado técnico: trata-se de um discurso todo
centrado sobre o que para a comunidade dos livres é o restrito espaço sagra¬
do. É suficiente introduzir mesmo sumariamente na análise o espaço profano
(os escravos das colónias e os servos da metrópole), para dar-se conta do
caráter inadequado e desviante das categorias (absoluta prevalência da liber¬
dade individual, anti-estatismo, individualismo) normalmcntc utilizadas para
delinear a história do Ocidente liberal. A Inglaterra dos séculos XVIII e XIX
é o país da liberdade religiosa? A propósito da Irlanda, o liberal Beaumont,
companheiro de Tocqucvillc durante a viagem na América, fala de “uma
opressão religiosa que supera qualquer imaginação”. Estamos na presença
de um povo não apenas privado da sua “liberdade religiosa”, mas obriga¬
do a financiar com o dízimo, não obstante a terrível miséria em que vive, a
opulenta Igreja anglicana que o oprime. A opressão, as humilhações, os so-
A
Taylor, 1975, p. 71.
7
Hindc, 1987, p. 1 1 1 .
1
Cf. Losurdo, 1991, cap. V, § 8.
9
Hughes, 1990, p. 55.
10
Cf. losurdo, 1996, cap. 11, § 5.
314 CONTRA- H ISTÓ RI A DO LIBERALISMO
frimentos impostos pelo “tirano” inglês a esse “povo escravo” mostram que
“nas instituições humanas está presente um grau de egoísmo e de loucura,
cujos limites é impossível definir” .
Mas, vamos nos concentrar na metrópole. Ao celebrar o individualismo
e o anti-estatismo atribuídos à tradição liberal, Hayek faz uma homenagem
a Mandeville, para o qual “o exercício arbitrário do poder por parte do go¬
verno seria reduzido ao mínimo”12. Na realidade, o autor aqui elevado a
modelo não apenas não se deixa impressionar pelo espetáculo das centenas
ou milhares de miseráveis “cotidianamente enforcados por alguma idiotice”,
mas invoca processos sumários e uma aceleração das condenações à morte;
exige a intervenção do Estado até na vida privada desses miseráveis, aos quais
desde a infância deve ser imposta a observância do preceito dominical (supra,
cap. Ill, § 8). Está claro: o que suscita a atenção de Hayek não são as colónias
nem os servos da metrópole.
E, no entanto, as contam continuam não fechando, mesmo querendo con¬
siderar inofensiva essa desatenção. É particularmente ilustrativo o que acontece
nas colónias inglesas na América que depois se tornam os Estados Unidos. A
força-trabalho servil, semi-servil e livre aflui do outro lado do Atlântico con¬
forme modalidades e regras fixadas pelo poder político, que desempenha um
papel decisivo também na delimitação da área progressivamente aberta à colo¬
nização. A escravidão ou a marginalização c a degradação impostas aos negros
acabam alvejando a “liberdade moderna” dos próprios brancos, e atingindo-a
de maneira tão pesada que a escolha errada do parceiro sexual ou matrimonial
corre o risco de transformar o responsável em um “infame”, em um traidor
do próprio país e da própria raça! A população branca no seu conjunto e os
próprios proprietários de escravos são submetidos a uma série de normas, que
interferem pesadamente até na esfera mais íntima da vida privada. O poder po¬
lítico vigia atentamente para que não haja miscegenation e, sobretudo, para que
o fruto eventual dessa infeliz mistura não consiga a libertação e não ameace
com a sua presença espúria a pureza da comunidade dos livres; é crime ensi¬
nar ou até fornecer material para a escrita aos escravos; a administração postal
impede a circulação de material mesmo sendo apenas vagamente crítico em
relação ao instituto da escravidão; no Sul um clima de terror incumbe sobre os
cidadãos suspeitos de alimentar idéias abolicionistas.
Não se trata apenas da questão racial e da sombra pesada que ela projeta
sobre os direitos civis da própria comunidade branca. Considere-se um Esta-
11
Beaumont, 1989, vol. I, p. 331; vol. II, p. 306, 201.
11 Hayek, 1988, p. 280.
IX. Espaço sagrado e espaço ptvfano na historiado liberalismo 315
do-chave da história da revolução e da república norte-americana: “No século
XIX, a Pensilvânia era conhecida pela severidade das suas leis sobre a impieda¬
de, a irreverência e a não observância das festas comandadas”13. Independen-
temente da proibição de miscegenation, que permanece em vigor até depois da
metade do século XX, a liberdade sexual sofre nos Estados Unidos restrições
cm grande parte alheias à desprezada e “estatista” Europa continental. Eis o
quadro traçado em 2003 por um conceituado cotidiano estadunidense:
uAté 1961 todos os cinquenta estados tinham leis que baniam a sodomia [...].
O número se reduziu a 24 estados em 1968 e hoje chegou a 13 [...]. A maioria dos
estados que ainda têm leis contra a sodomia proíbem o sexo anal ou oral entre adul¬
tos consensuais, independentemente do seu sexo e do tipo da sua relação”14.
“O fator principal que levou à Revolução, e mais tarde à guerra de 1812, foi a
incapacidade da pátria- mãe em compreender que os homens livres, que avançavam
na conquista do continente, deveriam ser incentivados nesta obra [...]. A expansão
dos destemidos, aventureiros homens da fronteira, era para os estadistas de Londres
causa dc ansiedade mais do que de orgulho, e o famoso Quebec Act de 1774 cm
parte foi desenhado com a finalidade de manter permanentemente a Leste dos Alle-
24
Roosevelt, 1901, p. 246-47.
24Calloway, 1995.
24Litwack, 1961, p. 249,73.
v Stuart, 1988, p. 167ss.
LX. Espaço sagrado e espaço profano nahistória do liberalismo 319
suas formas mais duras, do povo dos senhores28. Em 1803, Napoleão coloca
em liquidação a Louisiana. Mesmo estando já em vigor, a escravidão ainda
não tem uma forma nitidamente racial. Existem vinte mil mestiços; são livres
para todos os efeitos, alguns exercem profissões liberais, podem também che¬
gar a ser muito ricos e fazer parte assim da elite dominante. A passagem aos
Estados Unidos comporta a consagração do autogoverno local e do poder,
em última análise, dos proprietários brancos (franceses e anglo-amcricanos).
Disso deriva a piora das condições não apenas dos escravos (a libertação
torna-se mais difícil), mas, sobretudo, dos homens livres de cor. Diminui o
seu número em cifra absoluta e, ainda mais nitidamente, em percentual (é
desencorajada a sua migração enquanto é encorajada a dos brancos). Atin¬
gidos por uma série de discriminações, os homens livres de cor se orientam
para constituir uma casta intermediária mais próxima dos escravos do que
dos livres propriamente ditos. Também na Louisiana anexada aos Estados
Unidos ocorre um parto gêmeo de livres organismos representativos e de
escravidão-mercadoria em base racial.
Uma nova considerável extensão do território dos Estados Unidos acon¬
tece algumas décadas depois com a drástica amputação do México. Sabemos
já da introdução da escravidão negra no Texas. Mas, ainda mais significativa
é a tragédia que se abate sobre os índios seja no Texas como na Califórnia.
Submetidos ao trabalho forçado e a uma escravidão mal camuflada, os seus
filhos tomam-se para todos os efeitos res nullius; são particularmente apete¬
cíveis as garotinhas pelo fato de que, como esclarece um jornal local, podem
servir “ao trabalho e ao prazer”29. Mas isso é apenas um capítulo de uma
horrível vicissitude de conjunto: “a degradação e a aniquilação dos índios da
Califórnia representam uma das páginas mais vergonhosas da história ame¬
ricana, uma vergonha impossível de cancelar para a honra e a inteligência
dos Estados Unidos. Não se tratou de uma guerra, mas de uma espécie de
esporte popular”30.
" Stannard,
Crcagh, 1988, p. 248-49; Zitomcrsky, 2001, p. 77-84.
29
2001, p. 232-35.
30
Washbum, 1992, p. 219
320 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
dos colonos brancos de livrar-se do estorvo constituído pelo poder central,
eclesiástico ou monárquico que fosse. Em 1537, Paulo III declarou que os
sacramentos deveriam ser recusados aos que, negando a humanidade dos
índios, os reduziam à escravidão. “Interferências moralistas” foram pratica¬
das também pela Coroa espanhola e portuguesa. Aparecia, assim, a “tensão
contínua entre escravidão e ideais cristãos”. Mas os colonos, para os quais o
trabalho forçado era uma necessidade inevitável, respondiam expulsando os
jesuítas do Brasil ou provocando verdadeiras “insurreições coloniais”31. Por
outro lado, as primeiras revoltas dos escravos negros tendem a fazer apelo à
Coroa e buscar no poder central um contrapeso ao despotismo dos donos
locais32.
No tocante à América inglesa, convém levar em consideração a revolta
que se desenvolveu na Virgínia um século antes da revolução americana e di¬
rigida por Nathaniel Bacon. Enquanto de um lado alvejavam “os privilégios
da camarilha governativa”, por outro lado os rebeldes “exigiam terra sem
consideração alguma pelos direitos e as necessidades dos índios confinantes”,
os quais em alguns casos são até exterminados33. Estão presentes in nucc os
conflitos que depois se manifestam na revolução americana: de um lado a po¬
lêmica contra a prepotência e as interferências do governo central, do outro
a reivindicação de uma liberdade total na relação com os “selvagens”. E, de
fato, quando lemos no Manifesto de Bacon a denúncia que ele faz da colisão,
no decorrer da luta contra os campeões da liberdade, entre o governador da
Virgínia e os “bárbaros” e sanguinários índios34, somos levados a pensar na
Declaração de Independência.
Sabemos que contra a política de emancipação dos escravos recriminada
ao poder público central, também os colonos franceses e ingleses agitam
a bandeira do auto- governo e da independência e da imitação do modelo
estadunidense. Mas é principalmente significativo o que acontece na África
austral. Também neste caso, nas colónias controladas pelos holandeses ou
pelos ingleses, o desenvolvimento do auto-governo da sociedade civil vem
acompanhado com a emergência e a consolidação da escravidão racial: no
final do século XVIII eclodem as revoltas que, em nome da liberdade e da
luta contra o despotismo, denunciam as interferências do poder central e a
sua pretensão de limitar o direito dos patrões de punir os seus escravos35.
41
Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 751-52, 779-81 c passim.
324 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
57
Raynal, 1981, p. 19, 32.
*•Tocqueville, 1951, vol. XV, t. 2, p. 54 (carta a F. de Corcellc, 13 de maio de 1852).
59
Tocqueville, 1951, vol. VI, t. 2, p. 199 (carta a N. W. Senior, 8 de março de 1857).
60
Macaulay, cit. in Borsa, 1977, p. 146.
*' Hugo, cit. in Wang, Ye, Wang, 2003, p. 9-10 (carta ao capitão Butler, 25 de novembro
de 1861).
* Bagehot, 1974 , p. 197.
IX. Espaço sagrado e espaço profano na história do liberalismo 329
xões nos anos cm que na China são recebidos com respeito e benevolência os
missionários da Europa cristã e na França Luís XIV revoca o edito de Nantes
e retoma a perseguição contra os hugonotes, Bayle e Leibniz chegam a uma
reflexão radical: c uma desgraça o fato de que a relação entre China e Europa
seja marcada pela unilateralidade; seria totalmcnte benéfica a presença na
Europa de missionários chineses . Mais tarde, a História de Raynal-Diderot
atribui a um Espártaco negro a tarefa de fazer avançar a causa da liberdade,
quebrando os grilhões da escravidão e pondo um fim à barbárie, da qual são
protagonistas os europeus. Mas, esse esforço de lançar sobre a Europa um
olhar por assim dizer do exterior, reconhecendo as contribuições das diversas
culturas para a causa do avanço da civilização, não sobrevive à marcha irresis¬
tível do expansionismo colonial. Alcançado o triunfo planetário, o Ocidente
liberal pensa que pode identificar-se de modo permanente com a causa da
civilização e da liberdade. A partir dessa absoluta c imutável superioridade
podemos ver uma elite exclusiva, a restrita comunidade dos livres, formular
de maneira explícita a pretensão, ate então desconhecida e inaudita, de exer¬
cer uma ditadura planetária sobre o resto da humanidade.
“Vós sois orgulhosos das vossas luzes, mas para que servem, c dc que utilidade
seriam elas para o hotentote? [...]. Se, ao desembarcar nas suas terras, vós tivésseis
proposto de levá-lo a uma vida mais civilizada, para costumes que vos parecem pre¬
feríveis aos dele, poderíeis ser desculpados. Mas chegastes para subtrair-lhe o país.
Aproximaste -vos da sua cabana para cxpulsá-lo, para substituí-lo, até, ao animal que
trabalha sob o chicote do agricultor”64.
-' Morgan,
1
1995,
p. 386.
Engels, 1955-89 , vol. XIII, p. 516 e vol. XII, p. 552.
Marx,
Marx, 1955-89, vol. XXIII, p.
Engels, 788, 779.
IX. Espaço sagrado c espaço profano na historiado liberalismo 333
7. Oscilações e limites do modelo marxiano
'ÿ
Marx, Engcls, 1955 89, vol. VII, p. 209 10.
n Marx, Engcls, 1955 89, vol. XXIII, p.
753.
••Marx, Engcls, 1955-89, vol. III, p. 510-11.
” Marx, Engcls, 1955-89, vol. VII, p. 209.
"* Marx, Engcls, 1955-89, vol. II, p. 124.
334 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
a emancipação da sociedade civil da política, da própria manifestação de um
conteúdo universal”7’.
Aparece com clareza a interligação de emancipação e des-emancipação.
A “vida mais potencializada” infundida na propriedade significa também o
processo de autonomia da propriedade de gado humano em relação aos con¬
troles mesmos vagos da Igreja e da Coroa, com o consequente delinear-se
da escravidão-mercadoria sobre base racial; c significa também o desapare¬
cimento das restrições impostas pela Coroa à expansão dos colonos, que
agora pode acontecer sem incómodos, sem preocupar-se de maneira alguma
com os terríveis custos humanos aplicados aos peles-vermelhas. No tocante
à Inglaterra, à cerca das terras comuns segue-se depois em 1834 a nova lei
que, eliminando qualquer forma de assistência, coloca os pobres diante desta
alternativa brutal: ou a morte por inanição ou a internação em uma institui¬
ção total.
Mas, não se deve perder de vista que não estamos na presença de uma
autonomização da propriedade enquanto tal; à “vida mais poderosa” da pro¬
priedade dos colonos corresponde a agonia de uma outra forma de proprie¬
dade. É um gigantesco processo de expropriação (justificado e teorizado seja
por Locke como por Tocqueville) que se desencadeia não apenas contra os
povos coloniais (na América ou a Irlanda), mas também contra os campo¬
neses ingleses. As mesmas razões, que me levaram a considerar inadequada
ou desviante a categoria de “individualismo proprietário”, levam-me agora
a tentar precisar a análise de Marx. O processo que estamos pesquisando
é a autonomização da propriedade dos que já gozam do reconhecimento,
dos que aspiram a configurar-se como a comunidade ou a casta dos homens
livres. Por outro lado, a que se livra das amarras do controle da Coroa e da
Igreja não é só a propriedade burguesa, mas também a tradicional proprie¬
dade da nobreza: na Inglaterra derivada da Gloriosa Revolução a aristocracia
terreira consolida a fruição de determinados privilégios (lembre-se do direito
à caça), fortalece o controle que exerce sobre a magistratura (lembre-se dos
juízes de paz) e consagra o seu poder político nos organismos representativos
e em primeiro lugar na Câmara dos Lordes.
Com Marx poderíamos dizer que “a revolução política é a revolução
da sociedade civil”80; mas, deve acrescentar-se que a sociedade civil pode ser
por sua vez hegemonizada pela burguesia ou pela aristocracia terreira, ou
"
11
Marx, Engcls, 1955-89, vol. I, p. 352.
Marx, Engcls, 1955-89, vol. I, p. 356.
336 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
bcmos que com a revolução americana abre-se o capítulo mais trágico da
história dos peles-vermelhas, e que o período entre Gloriosa Revolução e
revolução americana marca o emergir de uma escravidão-mercadoria sobre
base racial com uma dureza sem precedentes. Em relação à Inglaterra, é o
próprio Marx quem chama a atenção sobre as consequências nada positivas
do “golpe de Estado” de 1688-89 contra os camponeses ingleses e contra a
população irlandesa.
Mais discutível ainda é a sucessiva identificação da revolução política com
a revolução burguesa. Esta última categoria é por um lado muito estreita c,
por outro, muito ampla. Em relação ao primeiro aspecto, dificilmente podem
ser subsumidas na categoria de revolução burguesa a Gloriosa Revolução e
a revolta parlamentar que na França antecedem as reviravoltas iniciadas cm
1789, para não falar das lutas contra o absolutismo monárquico, dirigidas
de forma explícita pela nobreza liberal, que se desenvolvem na Suécia e em
outros países. Por outro lado, a categoria de revolução burguesa é muito
ampla: subsume tanto a revolução americana que marca a implementação do
Estado racial quanto à revolução francesa c à revolução de Santo Domingo,
que comportam a completa emancipação dos escravos negros.
O modelo que aqui sugiro é diferente. Faz coincidir a “revolução po¬
lítica” enquanto “revolução da sociedade civil”, da qual fala Marx, com a
revolução liberal propriamente dita. Certamente, para poder promover a
sua emancipação do poder absoluto, a sociedade civil deve ter alcançado
algum desenvolvimento. Analisadas no seu momento inicial, as revoluções
que ocorrem nos Países Baixos, na Inglaterra, na America, na França e na
América Latina não são muito diferentes umas das outras: todas são revo¬
luções liberais. O que as diferencia nitidamente são três fatores: a diferente
configuração da sociedade civil; os conflitos sociais, políticos e ideológicos
que se desenvolvem no seu âmbito (lembre-se, no tocante à França, da luta
entre nobreza c burguesia); a irrupção na luta dos servos e dos escravos. A
partir do emergir desse último fator, a luta para a emancipação da sociedade
civil conduzida pelas classes proprietárias se entrelaça com a luta que contra
elas conduzem os que não querem ser mais considerados como objeto de
propriedade e que aspiram a obter o reconhecimento.
Também a revolta secessionista do Sul escravista apresenta-sc como uma
revolução liberal: é uma nova luta para o autogoverno da sociedade civil,
como a que sancionara a independência dos Estados Unidos. Era um país
liberal a Confederação? Se considerarmos liberal o Estado racial nascido da
guerra de independência contra a Inglaterra c por muito tempo dirigido
por proprietários de escravos, não se entende porque esse reconhecimento
IX. Espaço sagrado e espaço profano na história do liberalismo 337
deva ser negado à Confederação. E, no entanto, mais do que no plano con¬
ceituai, a solução do problema deve ser procurada no âmbito histórico. No
momento em que se impõe no mundo liberal o princípio da “inutilidade da
escravidão entre nós”, deixa de ser liberal um autor como Fletcher, que re¬
comendava a escravidão também para os vagabundos brancos. À distância de
quase um século da primeira, o modelo liberal conhece uma segunda virada:
agora é a condenação da escravidão hereditária enquanto tal que se impõe
como elemento constitutivo da sua identidade.
Após o fim da guerra de Secessão e da abolição da escravidão, o Estado
racial continua amplamente a subsistir. E novamente põe-se a pergunta: os
Estados Unidos, onde enfurecem a discriminação e a opressão contra os ne¬
gros e as práticas de genocídio contra os índios, são um país liberal? O prin¬
cípio da igualdade racial torna-se um elemento constitutivo da identidade li¬
beral só a partir da metade do século XX. O Estado racial continua a subsistir
ainda por algumas décadas na África do Sul; mas este, embora historicamente
tenha se inspirado na Inglaterra, no tocante ao autogoverno e aos organis¬
mos representativos (c ao Sul dos Estados Unidos), no que diz respeito às
relações entre as raças, é já considerado alheio ao mundo liberal.
X
Liberalismo e catástrofe do século XX
1
A respeito cf. Losurdo, 1993, cap. 1, § 7 (cm relação ao voto plural) e passim.
340 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
intransigência e busca a prova da força. Ao longo do tempo, assistimos assim
a uma sucessão de golpes de Estado que, pelo menos antes de desaguar na
instauração de uma ditadura aberta, podem contar com o apoio ou a simpatia
de expoentes rcnomados do mundo liberal. Tendo a participação ativa de
Sieyès, o 18 de Brumário de Napolcão suscita o “entusiasmo” de Madame de
Staél, como resulta da carta que o pai lhe envia alguns dias depois: “Você me
retrata com cores vivas a parte que está assumindo no poder e na glória do
seu herói” . Para a mudança olha com confiança também Constant, que trin¬
ta anos depois vai lembrar que na véspera ficou em contatos cotidianos com
Sieyès, “o verdadeiro autor do 18 de Brumário”, isto é, “o principal motor”
das novidades que se desenhavam no horizonte*. Já em 1795 Constant escla¬
recera que precisava ir além do Termidoro: a taxação que continuava a pesar
sobre a propriedade era excessiva, em vantagem dos pobres que já se confi¬
guravam como “uma casta privilegiada”4. Na realidade, naquele momento,
conforme diversos testemunhos (inclusive o de Madame de Staél), o eleito
conjunto de carestia e inflação reduzia “a última classe da sociedade à con¬
dição mais miserável”, infligindo-lhe “males inauditos” , até à “inanição”ft.
E, no entanto, para o liberalismo da época não havia dúvidas: os perigos que
a propriedade corria legitimavam o golpe de Estado. Após a homenagem já
vista às “idéias conservadoras, liberais, tutelares”, nos dias imediatamente
seguintes, o novo poder se apressa a cancelar qualquer sinal de imposto pro¬
gressivo. Em 24 de dezembro de 1799, no mesmo dia em que Bonaparte
torna-se Primeiro Cônsul, Constant ingressa no Tribunato, mas para ele Ma¬
dame de Staél almeja uma carreira política ainda mais ambiciosa, à sombra
daquele - escreve Necker para a filha no final de 1800 - que promete ser “o
protetor de toda a gente de bem” . O significado das esperanças iniciais c das
sucessivas decepções dos ambientes liberais fica bem esclarecido por Guizot
em 1869: ao cumprir a tarefa de “pôr fim à anarquia”, a “ditadura” de Na¬
polcão foi “natural, urgente”, até “salutar e gloriosa”; contudo, ao contrário
das expectativas, “este regime acidental e temporário” se transformou em
“um sistema de governo dogmático e permanente”’.
9
Marx, Engcls, 1955-89, vol. XVII, p. 278.
,0
Disraeli, 1852, p. 554-56 (cap. 27).
11 Cf. Ixjsurdo, 1993, cap. 2, § 1; cap. 3, § 1.
Tocqueville, 1951, vol. VI, t. 2, p. 108 (carta a N. W. Senior, 8 dc março de 1849).
'* É o que resulta de uma conversação dc 25 dc maio dc 1848, transcrita por N. W. Senior:
cf. Tocqueville, 1951, vol. VI, t. 2, p. 242-43.
342 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Após a eclosão da revolta operária, Tocqueville não apenas é favorável à
transmissão dos poderes de estado de sítio a Cavaignac, mas recomenda fuzi¬
lar no lugar quem fosse surpreendido “em atitude de defesa” . A repressão
sangrenta das jornadas de junho não basta a acalmar a angústia; eis então o
apelo a uma “reação enérgica e definitiva a favor da ordem” ', chamada a
acabar com o caos revolucionário e anárquico não apenas na França mas tam¬
bém no conjunto da Europa. Em todo caso, “a França pertence àquele que
estabelecerá a ordem”14 e que porá fim às “loucuras de 1848”' . Após mais
de um ano de distância da desesperada revolta operária, quando já a impie¬
dosa repressão parece ter afastado para sempre o perigo jacobino e socialista,
o liberal francês considera ainda necessária a mão de ferro: precisa avançar
“até à reação”; não podemos nos contentar com “paliativos”; para varrer não
apenas a Montanha, mas também “todas as colinas em volta”, é preciso colo-
car-se “corajosamente à frente de todos os que querem restabelecer a ordem,
seja qual for sua matiz”; não se deve sequer hesitar diante de “um remédio
[...] heróico”'*. Indiretamente, aqui é sugerida a necessidade de medidas de
exceção com a suspensão das liberdades constitucionais. Se como historiador
não cansa de condenar o Terror jacobino, como político Tocqueville não
hesita em invocar o “terror” para destroçar “o partido demagógico” {supra,
cap. VIII, § 15). Nesses anos, saltuariamente, algum arrepio percorre a auto¬
consciência liberal: talvez corram o risco de se diíundir na Europa os méto¬
dos impiedosos aos quais ela recorre para subjugar os bárbaros nas colónias.
Embora manifestando o seu aplauso claro pela impiedosa energia com a qual
é conduzida a conquista da Argélia, Tocqueville se deixa escapar uma excla¬
mação: “Deus nos preserve de ver a França conduzida por um dos oficiais
do exército da África” . De fato, Cavaignac, o iniciador da “nova ciência”
chamada a liquidar a qualquer custo a resistência dos árabes torna-se depois
o protagonista da sangrenta e impiedosa repressão que se abate sobre os
bárbaros da metrópole, os operários parisienses que se levantam para reivin¬
dicar o direito ao trabalho e à vida. Mas a ele, não obstante o alerta anterior,
Tocqueville fornece um apoio constante e sem vacilações.
Mais tarde, a partir da Comuna de Paris dissemina-se em todo o Oci¬
dente liberal a tendência a recolocar cm discussão não apenas as concessões
“A medida mais degradante foi tomada ao ordenar para ‘andar de rastos’ a todo
indiano que tivesse dc percorrer um determinado beco da cidade onde uma doutora
missionáría, a senhorita Sherwood, fora agredida durante os motins. A humilhação
de ter de se arrastar sobre as quatro patas para voltar para casa ou dela sair - no beco
de foto morava muita gente - não podia ser esquecida nem perdoada”35.
“Todo domingo, cada cidade e cada distrito eram obrigados a levar um deter¬
minado número de pessoas aos quartéis gerais do Commissaire. Eram arrebanhadas
com a força: os soldados empurravam a gente na floresta. Os que se recusavam eram
abatidos: as suas mãos esquerdas eram cortadas e levadas como troféus ao Com¬
missaire [...]. Essas mãos, as mãos de homens, mulheres e crianças eram alinhadas
diante do Commissaireÿ7.
“ Office
34
Litwack, 1998, p. 467.
d’information, 1991, p. 3.
“ Tinker,
Brcchcr, 1965, p. 89
9-90.
“ Toibin, 2004, p. 53.
1974, p. 364
"
X. Liberalismo e catástrofe doséculo XX 347
A imposição do trabalho forçado às vezes se entrelaça com as práticas de
genocídio, às vezes dá lugar a elas. No final do século XIX, Theodore Roo¬
sevelt lança um alerta de caráter geral às “raças inferiores” ( inferior races):
se alguma delas viesse a agredir a raça “superior” ( superior), esta seria auto¬
rizada a reagir com “uma guerra de extermínio” {a war of extermination),
chamada a “matar homens, mulheres e crianças, exatamente como se fosse
uma Cruzada” .
Na realidade, há raças das quais se deseja o desaparecimento independen¬
temente do seu comportamento concreto. Franklin saúda como sendo um
desenho providencial o massacre que o rum disseminado pelos conquistado¬
res está provocando entre os peles-vermelhas. Mas, conforme uma acusação
formulada pelos legalistas refugiados no Canadá, os colonos rebeldes pro¬
movem diretamente o aniquilamento de inteiros grupos étnicos. Em 1851,
enquanto enfurece a caça a cada membro dos pclcs-vcrmclhas, o governador
da Califórnia sentencia:
Nos anos que antecedem a eclosão da Segunda guerra dos Trinta Anos,
acumula-se um gigantesco material explosivo. No final do século XIX, à for¬
mação na Europa da Liberty and Property Defense League corresponde nos
Estados Unidos a formação das White Leagues (e do Ku Klux Klan); trata-se
dc bloquear ou de fazer recuar as duas lutas pelo reconhecimento que já
conhecemos: do outro lado do Atlântico a revanche da supremacia branca
alcança o seu triunfo já a partir de 1877; na Europa a Liga pela Defesa da
Liberdade e da Propriedade deverá esperar até 1922 para conseguir, na Itália,
a sua primeira vitória. À persistente inquietação dos servos ou ex-servos na
metrópole e dos escravos e semi-escravos coloniais ou de origem colonial e à
crescente agressividade dos ambientes sociais e políticos que se sentem amea¬
çados por essas duas agitações, se somam, no âmbito da comunidade dos
livres e da estirpe tcutônica (anteriormente celebrada no seu conjunto como
o povo ou a raça eleita da liberdade), contradições que tendem a assumir
uma forma antagónica. E, mais ainda, esses múltiplos conflitos são ulterior-
mente exacerbados por um clima ideológico caractcrizado pela afirmação de
tendências (socialdarwinismo, leitura em chave racial da história e teoria do
complô) presentes desde o início no âmbito da tradição liberal, mas que ago¬
ra encontram uma resistência cada vez mais fraca, tornando assim impossíveis
uma compreensão racional e uma limitação do conflito. Não é por acaso que
“Notícias dos linchamcntos eram publicadas nas folhas locais e vagões suple¬
mentares eram acrescidos aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenien¬
tes de localidades a quilómetros de distância. Para poder assistir ao linchamento, as
crianças das escolas podiam ter o dia livre. O espetáculo podia incluir a castração, o
esfolamento, a assadura, o enforcamento, os golpes de arma de fogo. Os souvenires
para compradores podiam incluir os dedos das mãos c dos pés, os dentes, os ossos e
até os genitais da vítima, assim como postais ilustrados do evento”74.
74
Woodward, 1998, p. 16.
74
Brown, 1975, p. 30.
'•MacLcan 1994, p. 184.
77
Fletcher M. Green, cit. in Woodward, 1963, p. 207.
71
Van den Bcrghc, 1967, p. 13; Dyer, 1980, p. XIII.
X. Liberalismo e catástrofe do século XX 355
Se depois considerarmos a regra pela qual no Sul dos Estados Unidos
bastava uma só gota de sangue impuro para ser excluídos da comunidade
branca, uma conclusão se impõe: WA definição nazista de um hebreu nun¬
ca foi tão rígida como a norma definida ‘the one drop rule’, prevalente na
classificação dos negros nas leis sobre a pureza da raça no Sul dos Estados
Unidos”79.
Mais. De “ Nazi Connection" ou de “herança americana” presente no
nazismo têm falado recentemente dois estudiosos estadunidenses para ex¬
plicar a parábola da eugenética, esta “ciência”, nascida na Inglaterra libe¬
ral e difundida de modo maciço no outro país clássico dessa tradição de
pensamento, que alcança os seus máximos triunfos no Terceiro Reich*0! A
esse respeito verifica-se até um paradoxo. Desaparecidas com a Alemanha
hitleriana, as medidas eugenéticas continuam a sobreviver por algum tempo
nos Estados Unidos. Vejamos a situação em 1952: “Atualmente uns trinta
Estados da União proíbem o ‘matrimónio inter racial’. Em quase todos os
Estados o cruzamento racial é um delito de traição, em muitos é um crime
de menor gravidade”. São considerados elemento de contaminação não ape¬
nas os “negros”, mas também, neste ou naquele Estado, os “mulatos”, os
“indianos”, os “mongóis”, os coreanos, “membros da raça malês”, chineses,
toda “pessoa de origem negra ou indiana até a terceira geração incluída”,
isto é, toda “pessoa que tem 1/8 ou mais de sangue negro, japonês ou chi¬
nês” ou também “que tem 1/4 ou mais” de “sangue kanaka (hawaiano)”*'.
Quem traz esses dados é um estudioso estadunidense, que depois é obrigado
a tirar uma amarga conclusão a propósito do “racismo” (e do nazismo): “O
monstro que chegou a se lançar livremente sobre o mundo é em grande
parte nossa criação, e estejamos ou não dispostos a enfrentar a realidade, nós
todos, individual c coletivamente, somos responsáveis pela forma horrenda
que ele assumiu” .
Enfim o genocídio. Um eminente estudioso como Tzvctan Todorov de¬
finiu o aniquilamento dos peles-vermelhas, cujo capítulo final se consome
antes nas colónias inglesas e depois nos Estados Unidos, como o “maior
genocídio da história da humanidade” ‘ . Outros autores, a propósito da tra¬
gédia dos nativos na América, na Austrália ou nas colónias inglesas cm geral,
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Acton, John E. E. D., lorde, 14 c n, 15, 306n, 313, 314n, 342n
75 cn, 166, 167 en, 177, 180, 221 Benot, Yves, 151n, 154n, 155n, 157n,
e n, 297, 322, 347 e n 159n, 181n, 291n
Adams, John, 61 e n, 257 e n Bentham, Jcremy, 85 c n, 86 c n, 95 c n,
Agrícola, Gneo Giulio, 31 96 c n, 127 c n, 187, 188 e n, 192,
Allbnso X, rei da Espanha, 50 193n, 196 c n, 197, 204 e n, 208,
Aqbar, imperador Mogul da índia, 239 215 c n, 219 c n, 261 c n
Arblaster, Anthony, 90n Berghe, Pierre L. van dcn, 117, 119,
Arendt, Hannah, 39 e n, 40-42, 194 c 321,354, 388
n, 353 e n Berlin, Isaiah, 98 e n
Arístótelcs, 35, 42, 43, 138, 198 Beveridge, Albert J., 350 c n
Aston, Thomas, sir, 159n Bicberstcin, Johannes Rogalla von, 290,
Atanásio, (Athanasius), Santo, 172 384
Aulard, François-Alphonsc, 275n Biondi, Carminclla, 152n
Biondi, Jcan-Pierrc, 153n
Babeuf, François-Nod, chamado Gracchus, Bismarck, Otto von, 144 e n, 295 e n,
148 en 365
Bacon, Nathaniel, 320 e n Black, Edwin, 355n
Baecque, Antoine de, 147n, 197n Blackburn, Robin, 25n, 26n, 47n, 48n,
Bagchot, Walter, 328 e n 51n, 61n, 62n, 64n, 71n, 117n,
Bailyn, Bernard, 320n 161n, 165n, 173n, 189n
Baylc, Pierre, 329 Blackstone, William, 20 e n, 59 e n, 60-
Barnavc, Antoine Pierre-Joscph-Marie, 61, 69, 80 e n, 81 c n, 101 c n, 123 e
152, 153 e n, 157, 212, 213 3 n, 215 n, 177, 183, 199 c n, 200 c n, 204
Barret- Ducrocq, Françoisc, 82n Bodin, Jean, 42 e n, 43 e n, 44 e n, 45
Barruel, Augustin, 290 en
Baudry des Lozières, Louis-Narcissc, Boissy d’Anglas, François Antoine, 267
41n, 154 c n en
Beaumont, Gustave de, 113 e n, 115, Bolívar, Simón, 161 e n, 163 e n
1 16n, 128n, 129 e n, 210n, 211, Bonno, Gabriel, 140n, 145n
392 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Borsa, Giorgio, 328n, 365n Cannon, John, I25n
Boucher, Jonathan, 2 In, 22 e n, 28 e n, Carlos, Magno, imperador do Sacro
31 c n, 41 e n Império Romano, 239
Boulainvilliers, Hcnri, conde de, 201 Carlyle, Thomas, 76, 77, 367
Bourne, Henry Richard Fox, 17n, 27n Casana Testore, Paola, 189n
Bowman, Shearer Davis, 50n, 32 In Casas, Bartolomé de las, 45 e n, 328
Boyer, Jean Pierre, 165 Cassagnac, Adolphe-Granier de, 169,
Brecher, Michael, 346n 341
Brinkley, Joel, 315n Castcl, Robert, 356n
Brissot dc Warville, Jacqucs-Pierrc, 147 Cavaignac, Jean- Baptiste, 211, 266, 342
cn, 149n, 151, 154, 159 Gazelles, E., 286n
Brogan, Hugh, 84n, 126n, 262n Cecil, Robert, marquês de Salisbury,
Brown, John, 176, 193 283
Brown, Richard Maxwell, 366n César, Caio Júlio, 31
Buchan, condc de, 17n Chadwick, Edwin, 264n
Buckle, George E., 290n Chamberlain, Joseph, 235n, 283 c n
Bugcaud, Thomas, 248, 252 e n Chevallier, Jean- Jacques, 254n
Burckhardt, Jacob, 301 c n, 348 e n Childc, Eduard V., 168n
Burgh, James, 17, 60, 73, 138 Cicalese, Maria Luisa, 388
Burke, Edmund, 21 c n, 25, 30 e n, 49 Cicero, Marco Túlio, 259
e n, 50, 66 e n, 71 e n, 72, 74 e n, Circout, Adolphe de, 264n
76, 95, 98n, 104 c n, 136-138, 140 Clarkson, Thomas, 103 e n
e n, 141 c n, 142, 143 c n, 144, 145, Clavière, Étienne, 147 e n, 149n
177 e n, 196 c n, 197, 198, 200 e Cobden, Richard, 261 c n, 300 e n, 313
n, 203, 207 e n, 209 e n, 212 e n, Colley, Linda, 88n, 89n
213, 218 c n, 220, 224 e n, 228, Commager, Henry S., 29n, 87n, 174n,
234, 256, 257 e n, 258, 259, 271 175n, 176n, 227n, 238n, 243n
e n, 274, 279, 282, 287 e n, 288 e Condorcct, Marie- Jean-Antoinc Caritat,
n, 289 c n, 290 e n, 296 e n, 297, marquês dc, 28 e n, 40 e n, 42 c n,
302, 350 140, 146n, 1 50 c n, 155, 156n, 1 57,
Butler, capitão, 328n 177, 180 en, 181, 196
Conner, Valerie Jean, 226
Calhoun, John C., 13 c n, 14 e n, 15, 16 Constant, Benjamin, 98 e n, 101 e n,
e n, 18, 19, 66, 68, 69 e n, 70 c n, 109, 117, 135 e n, 145 c n, 199 c
73, 74 e n, 75 c n, 76n, 77, 81 c n, n, 201 e n, 202 e n, 204, 212, 213 e
82, 84, 87 c n, 115, 118 c n, 124, n, 217, 218 e n, 220 c n, 221, 230,
132, 152, 165, 166, 169, 176 e n, 255 e n, 258 e n, 267 e n, 268, 287
177, 189 en, 198 e n, 216, 236 e n, e n, 294 e n, 299, 300 e n, 303, 313,
238 c n, 240, 322 340
Calloway, Colin G., 3 In, 318n Conway, Moncure D., 349n
Cam, 55, 282, 321,324 Corcelle, Frandsque dc, 21On, 218n, 251 n,
Cannadine, David, 132n, 283n 252n, 277n, 306n, 307n, 328n
índice de nomes 393
Cortes, Hernán, 348 Dupont dc Nemours, Picrrc-Samuel, 217n
Costa, Emilia Viotti da, 171n Dyer, Thomas G., 283n
Cranston, Maurice, 16n
Crawford, William, 30n Eggleston, Edward, 35 In
Creagh, Ronald, 319n Eichmann, Adolf, 356
Croce, Benedetto, 343 Einaudi, Luigi, 343 e n
Cropper, James, 129 Elkins, Stanley M., 5 In, 190n, 345n,
353n
Darwin, Charles Robert, 229 Engels, Friedrich, 17n, 26n, 32n, 33n,
Davidson, Archibald, 17n 45n, 54n, 82 c n, 95n, 98n, 102n,
Davis, David Brion, 1 5n, 18 n, 23n, 24n, 134n, 182, 196 e n, 200n, 204, 209
26n, 28n, 57n, 60n, 61n, 64n, 80n, e n, 210, 219n, 225n, 238 c n, 264
85n, 87n, 103n, 116n, 129n, 166n, c n, 270 e n, 27 In, 294n, 295n,
171n, 173n, 174n, 292n, 320n 317n, 323n, 332n, 333n, 334n,
Davis, Jefferson, 109 e n, 353n 335n, 34 In
Davis, Mike, 356n
Defoe, Daniel, 33 c n, 82 c n, 89 e n Farrand, Max, 49n
Delanoe, Nelcya, 30n, 1 16n Favilli, Paolo, 343n
Deslozières, Louis Narcisse Baudry, 154 Fay, Bernard, 147n, 150n
Destutt de Tracy, Antoine-Louis-Claude, Filipe II, rei da Espanha, 27, 33, 311,
conde de, 102 c n 316
Dew, Thomas R., 72, 105 e n, 116n, Filmer, Robert, 256
1 17n Finkelman, Paul, 38n, 42n, 66n, 69n,
Diderot, Denis, 139 e n, 140n, 146 e n, 175n
149, 151n, 177, 181, 182 e n, 326, Fitzhugh, George, 70 e n, 76 e n, 77
329 Fletcher ofSaltoun, Andrew, 16, 17,45-46,
Diodati, condc, 147n 60, 73, 74, 77, 137-138, 169, 337
Disraeli, Benjamin, 73 e n, 76n, 130, Fogcl, Robert William, 113n, 1 17n
1 35 c n, 166, 167 n,
e 198 c n, 227, Foner, Eric, 22n, 24n, 4 In, 62n, 65n,
240, 283, 284 e n, 286 e n, 290 c n, 87n, 93n, 114n, 155n, 191n, 315n
291 c n, 341 e n, 348 c n Fothergill, John, 128n, 228n
Dockès, Pierre, 154n, 217n Fourier, Charles, 193
Domingos de Gusmão, São, 327 Franklin, Benjamin, 22 c n, 23, 25, 30 e
Douglas, Stephen A., 299 n, 69 c n, 79, 87 e n, 102, 1 18 e n,
Douglass, Frederick, 115 c n 128 c n, 161 c n, 174, 228 c n, 245,
Dred, Scott, 67 260 e n, 347, 351
Drcschcr, Seymour, 25n, 27n, 28n, 29n, Franklin, John H., 345n
60n, 8 In, 169n, 170n, 178n, 237n Fredrickson, George M., 32n, 65n,
Duane, James, 30n 119n, 320n, 321n, 351n, 355n
Du Bois, William E. B., 118n Frcidel, Frank, 16n, 167n, 226n, 244n, 269n
Dumont, Étienne, 208 n Furet, François, 15n, 140n, 144n, 212n,
Dunn, Richard S., 26n 31 1 c n
394 CONTRA HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Gallatin, Albert, 96n Hastings, Warren, 265
Garrison, William Llyod, 175 e n, 180, Hauptman, Laurence M., 353n
181 en, 322 Hayek, Friedrich August von, 227 c n,
Gauthier, Florence, 169n, 195n, 299n 298 cn, 314 en, 348 c n, 350
Gee, Joshua, 25 e n Hayne, Robert Y., 233 e n
Gcertz, Clifford, 352n Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 39,
Gcggus, David, 7 In, 18 In, 190n 91, 195,313
Genovese, Eugene D., 76n, 1 lOn, 309n, Helvétius, Claude Adrien, 139 e n, 182
320n, 321n Henrique VIII, rei da Inglaterra, 276
George III, rei da Inglaterra, 24, 29, 38, Heráclito, 301
39, 322 Hill, Christopher, 26n, 28n, 32n, 159n,
Giorgio V, rei da Inglaterra, 285 297n
Gladstone, William, 14-15, 227 Himmelfarb, Gertrude, 86n, 127n
Gobineau, Arthur de, 281 e n, 282 e n, Hinde, Wendy, 26 In, 313n
283, 284 e n, 285 e n, 286n, 287, Hirschman, Albert O., 227n
330, 331 Hitler, Adolf, 354
Goethe, Johann Wolfgang, 193 Hobhouse, Leonard Trelawncy, 298 e n
Gossett, Thomas F., 52n, 67n, 245n, Hobson, John A., 235 e n, 240 e n, 241
286n, 309n e n, 349n, 350
Gray, John, 312 c n, 372 Hocquellet, Richard, 1 59n
Green, Fletcher M., 354n Hofstadter Richard, 67n, 72n, 105n,
Green, Thomas Hill, 297 e n, 298 109n, I lOn, 116n, 117n, 175n, 229n,
Grcgoire, Henri, 155 e n, 157 e n, 158n, 230n, 320n, 343n, 344n, 347n
164, 182 Holmes, Oliver Wendell, 245
Grimal, Henri, 235n Horsman, Reginald, 347n
Grimstcd, David, 114, 372 Howell, George, 297n
Grozio, Ugo, 33, 34 e n, 35, 38, 39, 42- Hughes, Robert, 90n, 92n, 98n, 189n,
46, 52-55, 57, 81, 88, 94, 123, 145 235n, 313n, 356n
Guilherme III d’Orange, rei da Hugo, Vitor, 194, 328 c n
Inglaterra, 141, 298 Huizinga, Johan, 316 e n
Guillemin, Henri, 202n, 258n, 287n, Humboldt, Alexander von, 32n
340n Humboldt, Wilhelm von, 193
Guizot, François, 33n, 142 e n, 169, Hume, David, 73 e n, 81 e n, 178 e n,
213 en, 271 e n, 340, 350n 256 e n, 282 e n
Husserl, Edmund, 352
Hagan, William T., 353n Hutcheson, Francis, 17-18, 73
Halévy, Elie, 186n, 215n Hutchinson, Thomas, 22
Hamilton, Alexander, 118 c n, 131, 266
e n, 303 c n Jackson, Andrew, 51, 114, 184, 245,
Hammond, James Harry, 103 353, 388
Hanke, Lewis, 34n Jacquin, Philippe, 347n, 356n
Harris, R. W, 90n, 91n Japhet, 281
índice de nomes 395
Jaffe, Hosea, 117n, 119n, 375n Lanjuinais, Victor, 272
Jardin, André, 248n, 251n, 252n, 254n, Las Casas, Bartolomé de, 328n
272n Laubcr, Almon Whcclcr, 238n
Jefferson, Thomas, 17 c n, 24-25, 31 e Laurent, Alain, 218n
n, 32, 51, 60, 63-64, 72-75, 96 c Le Chapelier, Isaac-René-Guy, 225, 227
n, 108 e n, 109 e n, 138, 146 e n, Lecky, William E. H., 37n, 129n, 221,
155, 164 e n, 177, 179-180, 190 e 226 c n, 229 e n, 239 e n, 241, 262
n, 191, 216, 234, 243, 262 e n, 303 e n, 268 e n, 271 e n, 279 e n, 286 e
c n, 305, 308 e n, 324, 351, 356 n, 298 e n, 299 c n
Jennings, Francis, 24n, 28n, 108n, 1 19n Lee, Robert E., 116n
Jernegan, Marcus W, 92n, 93n Lefebvrc, Georges, 267n
Jesus Cristo, 175, 290, 308 Leibniz, Gottfried Wilhelm, 327 c n,
Johnson, Samuel, 22, 49, 92 e n, 322 329
Johnson, Walter, 360 Lence, Ross M., 14n
Jordan, Winthrop D., 48n, 49n, 54n, Lieber, Francis, 16, 167 e n, 179, 180 e
1 13n, 1 14n, 155n, 164n, 191n, n, 222, 223n, 226 e n, 244 c n, 247,
325n 260n, 271 e n, 278, 279 e n, 281 e
José 11 d’Asburgo-Lorena, imperador da n, 282, 342n
Áustria, 144 Lincoln, Abraham, 18, 67, 68n, 108 c n,
166, 179-180, 243, 269 e n, 299 c
Kaneko, Kentaro, 279n, 284n n, 313, 322
Kant, Immanuel, 149, 192 Litwack, Leon F., 63n, 115n, 116n,
Kergorlay, Louis-Paul -Florent, 135n, 318n 346n, 359n
224, 254n Locke, John, 13, 15 c n, 16, 17 c n, 18,
Kipling, Rudyard, 309 e n 20, 27-29, 33, 35-37 e n, 38-39,
Kirk, Russell, 68n, 74n, 189n, 198n, 41-45, 52-55 e n, 56-57, 73, 76-77,
299n 83 c n, 84 e n, 87- 88, 90-92, 94-95
Kissinger, Henry, 283 n e n, 84 e n, 98-99 e n, 101-103 e n,
Klein, Herbert S., 51n, llOn, 111 n 105 e n, 120-123, 131, 133, 137-
Kossuth, Lajos, 306 138, 144, 151, 160, 177, 198-200,
Kraditor, Ailccn S., 175n 239, 244-245, 256, 262, 266, 269,
Kiihl, Stefàn, 355n 275, 298, 324, 333-334, 357
Logan, Rayford W., 345n
Laboulaye, Edouard, 33n, 97 e n, 108, Lorimer, Douglas A., 124n, 125n
184-186n, 217, 226 c n, 271 e n Losurdo, Domenico, 76n, 91n, 102n,
Lacoste, Yves, 252n 107n, 128n, 149n, 192n, 193n,
La Fayette, Maric-Joseph, marquês de, 196n, 201 n, 212n, 218n, 228n,
71n, 75n, 155, 257n, 300n, 308n 229n, 240n, 259n, 277n, 286n,
Lamorcière, Louis Juchault de, 211, 298n, 304n, 313n, 324n, 339n,
251 34 ln, 343n, 352n
Langley, Lester D., 160n, 161n, 164n, Louverture, Toussaint, 149, 155, 159,
166, 233n 182, 195 en, 216
396 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Lovejoy, Arthur O., 260n Mill, John Stuart, 15 c n, 19, 73, 85 c
Luís XIV, rei da França, 57, 152, 187, n, 193 c n, 194, 213 c n, 214 c n,
222, 329 216 c n, 217, 226 c n, 234 c n, 239
Lynds, Elam, 234 c n e n, 240 e n, 241, 242, 260, 261 c
n, 262, 263 e n, 264 c n, 268 e n,
Macaulay, Thomas Babington, 131 c n, 270 c n, 271, 278 c n, 281, 282 c
202 e n, 264 e n, 265 c n, 328 c n, n, 294 c n, 302 c n, 330, 332, 339,
349 c n, 350 348 cn
MacArthur, Arthur, 286 Millar, John, 23 e n, 40 c n, 72 e n, 80 c
Mackay, Thomas, 343n n, 177, 178 cn
Mackintosh, James, 259 Mirabcau, Honoré-Gabriel de Riqueti,
MacLean, Nancy, 354n 54, 153, 154n
Macpherson, Crawford B., 45n, I33n Miscs, Ludwig von, 298 e n, 343, 344n,
Madison, James, 24, 29, 49, 164, 165n, 350
262n, 303n Mohl, Robert von, 74n
Mahan, Alfred Thayer, 283 e n Monroe, James, 51, 234
Maine, Henry S., 297 e n, 343 Montagu, M. F. Ashley, 355n
Mallet du Pan, Jacques, 340n Montaigne, Michel de, 45 c n, 328
Malouet, Picrrc-Victor, 15, 41n, 147 e Montesquieu, Charles- Louis de Sécndat
n, 148, 151 c n, 152 c n, 153, 154 c de, 20 c n, 56-60, 140, 142, 144,
n, 169, 197 c n, 291 e n 145, 151, 157, 160, 177, 180, 183,
Malthus, Thomas R., 84 c n, 127, 208 244, 265-267, 282, 283
cn Monypcnny, Wiliam F., 290n
Mandevillc, Bernard de, 89 e n, 97 e n, Moore jr., Barrington, 317n
98 c n, 99 e n, 101, 102, 104 c n, Morgan, Edmund S., 17n, 24n, 45n,
105 e n, 122 c n, 123 c n, 126 cn, 46n, 332n
198, 200, 218 cn, 224 en, 314 Morison, Samuel E., 303n
Marat, Jean- Paul, 181, 202 Morris, James, 278, 345n
Marshall, Thomas Humphrey, 85n Morton, Nathaniel, 244
Martin Jean-Pierrc, 234n Mounicr, Jean Joseph, 259 e n
Marx, Karl, 17n, 26n, 32n, 33n, 45n, 54 Mussolini, Benito, 343-344
e n, 82n, 95 e n, 98n, 102n, 134n,
144n, 182, 196n, 200n, 209 e n, Nada, Narciso, 189n
21On, 219 c n, 225n, 238n, 264n, Napoleão 1 Bonaparte, imperador da
270n, 27 In, 294, 295n, 317n, França, 91, 158, 169, 191, 220,
323n, 332n, 333n, 334 e n, 335 e n, 222, 231, 258, 275, 277, 278, 308,
336, 341 e n, 359 319, 340
Mazzini, Giuseppe, 270 e n Napoleào III (Carlos Luís Napoleão)
McKitrick, Eric, 190n Bonaparte, imperador da França,
Melon, Jcan-François, 151 215, 258, 272, 273, 277-278, 286,
Mcrcier, Louis-Sébasticn, 326 e n. 341,358
Merriam, Charles Edward, 18 In, 257n Ncckcr, Jacques, 258, 340 c n
índice de nomes 397
Nevins, Allan, 87n, 227n, 238n, 243n Quinet, Edgar, 326, 327n
Nichol, John Pringle, 26 ln
Niebuhr, Barthold Georg, 223 c n Radzinowicz, Leon, 91 n
Nietzsche, Friedrich, 102, 217 e n Raffles, sir Thomas Stamford, 32
Noé, 55, 324 Ramsay, David, 61 e n
Noer, Thomas J., 235n, 236n, 324n Ramsay, James, 173
Nolte, Ernst, 28 ln Randolph, John, 68 c n, 74 e n, 189 c n,
Nouschi, André, 252n 198 e n, 299 e n
Raynal, Guillaume Th., 149n, 150, 181
O’Sullivan, John, 66 e n, 68, 234 e n, 326 e n, 328n, 329 e n
Otis, James, 61 Reeve, Henry, 213n, 301n, 330n
Renan, Ernest, 286, 348 e n
Pagden, Anthony, 36n Rcvans, John, 129n
Paine, Thomas, 17 e n, 29 e n, 31, 71, Rice, C. Duncan, 87n
146, 147n Richet, Denis, 15n, 140n, 144n, 212n
Pakcnham, Thomas, 130n Robespierre, Maximilicn, 148 e n, 149,
Palmer, Robert R_, 133n, 144n 201, 202n, 217n, 223 e n
Rochau, Ludwig August von, 230 e n
Palmerston, Henry John Temple,
Rogalla von Biebcrstein, Johannes, 290
visconde de, 219 e n
Romilly, Samuel, 91
Pareto, Vilfredo, 221 e n, 343 e n
Roosevelt, Theodore, 234 e n, 283, 317,
Parker, Theodore, 68 e n, 174 e n, 175 e
318n, 343, 347 en, 354
n, 1 76 e n, 192
Rostkowski, Joelle, 30n, 1 16n, 368n
Parrington, Vernon L., 245n
Rousseau, Jean-Jacques, 142, 201 e n, 230
Paulo de Tarso, 35, 54 Royot, Daniel, 234n
Paulo HI, papa, 320 Russel, lord John, 237
Pearson, Charles Henry, 347n Ryerson, Egerton, 31n
Perrot, Michelle, 128n
Pction, Alexandre Sabès, chamado, 161 Saint-Simon, Claude Henry de Rouvroy
Phillips, Wendell, 175 c n, 180, 191 dc, 193
Pick, Daniel, 300n Sala-Molins, Louis, 57n, 152n
Pitt, William, o jovcm, 47 e n, 172, 192 Salandra, Antonio, 343
Plessy, Homer A., 110 Salbstein, Michael C. N, 13 ln
Pocock, John G. A., 17n, 137n, 138n Salisbury, Robert Arthur Talbot Cecil,
Poinsett, Joel, 114 marquês de, 283
Poliakov, Léon, 285n, 324n Salvadori, Massimo L., 70n
Post, C. Gordon, 14n Sandoz, Ellis, 308 n
Posdcthwayt, Malachy, 26 e n Sartori, Giovanni, 14n
Potier, Jean Pierre, 225n Scheel, Wolfgang, 222n
Potter, Janice, 21n Schlcsinger jr., Arthur M., 18n
Prcnant, André, 252n Schmale, Wolfgang, 147n, 197n
Proudhon, Pierre-Joseph, 214, 215n Schmid, Thomas, 356n
398 CONTRA-HISTÓRIA DO LIBERALISMO
Schodcher, Victor, 158, 159n, 177, Sparks, Jared, 96n, 294n
182 Espártaco, 43, 151, 162, 181, 329
Schroder, Hans Christoph, 316n Spence, Jonathan D., 327n, 328n
Scott, Dred, 67 Spencer, Herbert, 220, 221n, 226 e n,
Scott, Winfield, 52 229 c n, 268 e n, 279 c n, 284 e n,
Sedgwick, Théodore, 168n, 271n, 286 e n, 297 e n, 300, 303, 343,
280n, 305n 349 e n, 350
Sénard, Auguste-Marie- Jules, 211 Spini, Giorgio, 316n
Senior, William Nassau, 82, 83 c n, 126 Staèl- Holstein, Annc-Louisc-Germaine
e n, 129n, 168, 262n, 267, 274n, Necker (Madame de Staèl), 145 e
328n, 341n n, 258, 308n, 340 e n
Sepulveda, Juan Ginés de, 34 Stannard, David E., 319n, 356n
Seymour,Charlcs,6 Duque dc Somerset, Stephen, James, sir, 235
125 Stevenson, Brenda E., 116n
Shain, Barry Alan, 21n Stockdale, Pcrcival, 181 e n
Sharp, Granville, 23 e n, 87, 173, 174 Strong, Josiah, 350 c n
e n, 238 Stuart, Reginald C., 159, 318n
Sherman, William Tecumsch, 347 Sullivan, Eileen P., 26 In
Short, William, 190n, 308n Sumner, William Graham, 229 e n
Sidney, Algernon, 102 e n, 131 e n, 137
en, 138 cn, 143, 144n, 282 e n Tácito, Cornélio, 35
Sicyès, Emmanucl-Joseph, 94 e n, 95 e Talleyrand - Périgord, Charles- Maurice,
n, 104 e n, 105 c n, 127 c n, 198, duque dc, 258
199 e n, 200n, 201, 204, 258 c n, Tawncy, Richard H., 102n, 386n
259 cn Taylor, Alan J. P., 312 e n, 313 e n
Skinner, Quentin, 137n Thiers, Adolphe, 169 e n
Slotkin, Richard, 68n, 166n, 192n, Thomas, Hugh, 16n, 47n
243n, 351n Thompson, Edward P, 87n, 90n, 91n, 97n
Smith, Adam, Thun-Hohcnstein, L. von, 208n
Smith, James Morton, 17 e n, 18 e n, Tilly, Charles, 315n, 317n
23, 45, 49, 72 e n, 73, 79-80 e n, Tinker, Hugh, 236n, 237n, 346n
81 c n, 97 e n, 100 e n, 102, 105 c Tocqucvillc, Alexis de, 11 c n, 63 e n,
n, 123, 126 e n, 129, 154 e n, 160, 81, 82n, 83, 84 e n, 85n, 107, 108
177-178 e n, 182, 225 e n, 226 e c n, 110 e n, 113, 115, 116 c n,
n, 235, 256 e n, 269, 270, 293 e n, 118, 121 cn, 128 en, 129 e n, 135
294, 298 e n, 136 e n, 137, 141, 142 c n,
Smith, John, 171 144, 159, 167, 168 e n, 170 e n,
Sombart, Werner, 33n 177, 179 c n, 180, 182 e n, 183 e
Somerset, Charles Seymour, 6° duque n, 184 e n, 185, 186 e n, 193 e n,
dc, 125 203 c n, 204 c n, 205 e n, 206 e n,
Somerset, James, 59, 60, 67, 71, 73 207 c n, 208 e n, 209 e n, 210 e n,
Sonthonax, Léger Felicité, 157 c n 211,212en, 213c n, 214 c n, 215
Índice de nomes 399
e n, 216 c n, 217, 218 c n, 219 e n, Vovclle, Michel, 147n, 197n
221 e n, 222 e n, 223 e n, 224 c n, Wakefield, Edward Gibbon, 96, 97n,
225, 230, 234 e n, 237 e n, 241 e 124n, 125 c n, 126n, 238 e n
n, 242 e n, 243, 244 c n, 245 e n, Walker, Francis C, 243 e n
246 e n, 247 e n, 248 e n, 249 e n, Walker, William, 165, 166n, 304
250 c n, 251 e n, 252 e n, 253 e n, Wallenstein, Immanuel, 27n, 99n, 316n
254 c n, 258 c n, 259, 262, 263 e Wallon, Hcnri Alexandre, 169, 388
n, 264 c n, 266, 267 e n, 268 c n, Wang, Lou, 328n
269 e n, 270 e n, 271 e n, 272 e n, Wang, Nora, 328n
273 c n, 274 e n, 275, 276 e n, 277 Washburn, Wilcomb E., 319n
e n, 280 c n, 281 e n, 283, 284 e Washington, George, 16, 24, 30 c n,
n, 285, 286, 287 e n, 293, 294 e 36, 39, 44, 45, 61, 71 c n, 74, 75 e
n, 300, 301 c n, 302 e n, 304 c n, n, 107, 116, 243, 251, 255, 257 e
305 c n, 306 c n, 307n, 313, 327 e n, 299 e n, 300 e n, 322, 329, 358
n, 328 e n, 330 e n, 331 e n, 332, Weber, Max, 311 e n
334, 341 en, 342 c n, 344 e n, 348, Weddell, William, 257n
350, 353, 356 Wesley, John, 48 e n, 172 e n
Todorov, Tzvetan, 355 c n Wiener, Joel H., 148n
Toibin, Colm, 346n Wilberforcc, Robert Isaac, 48n
Toynbee, Arnold, 243 c n Wilberforcc, William, 87, 172 e n, 173
Townsend, Joseph, 89 e n, 101, 102n, Wilde, Oscar, 218 cn
200 e n, 227, 228n Wilkes, John, 145
Treitschke, Heinrich von, 230 e n, 231 e n Williams, Eric, 50n, 92n, 95n, 119n,
Trevelyan, Charles Edward, sir, 228, 356 165n, 172n, 235n, 349n
Trevelyan, George M., 130n, 227 Williams, John Sharp, 35 ln
Tucker, George, 51 Williamson, Joel, 11 ln, 112n
Tucker, Josiah, 26n, 27n, 41 e n, 49n, Wills, Garry, 108n
76 c n, 120 e n, 137 c n, 138 c n, Wolf, Eric R., 26n
275 e n, 322 Wood, Forrest G., 110n
Tudesq, André-Jean, 169n Wood, Gordon S., 320n, 353n
Tupac, Amaru, 161 Woodward, C. Vann, 354n, 359n
Turner, Frederich Jackson, 118n
Turner, Nat, 110 Ye, Xin,328n
Young, Arthur, 102 e n, 178
Van den Berghe, Pierre L., 117n, 1 19n,
32 ln, 354n Zilversmit, Arthur, 29n, 48n, 71n,
Venturi, Franco, 145n 109n, llln, 1 12n, 115n
Vcrri, Pietro, 145 Zimmer, Anne Y., 21n, 22n, 28n, 30n,
Villari, Pasquale, 26 ln 31n, 41n
Viotti da Costa, Emilia, 368 Zitomcrsky, Joseph, 319n
Voltaire, François-Marie Arouct, 28 e n, Zuccarelli, François, 153n
139 en, 327n Zuckerman, Michael, 164 e n, 191n
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