Chacal - A Dourada Dor
Chacal - A Dourada Dor
Chacal - A Dourada Dor
Resumo: A proposta é fazer uma leitura do poema “Como é bom ser um camaleão”, de Muito
prazer, Ricardo, de 1971, primeiro dos 13 livros de Chacal, publicado sob a sombra do governo do general
Médici. A metáfora do poeta retorna no artigo “Alice e o camaleão”, de Elio Gaspari, em 2000: se lá, no
poema, o bicho designa o poeta sobrevivendo, aqui, no texto ensaístico, representa as metamorfoses
estratégicas pelas quais passou a ditadura brasileira. Quando, ao fim de seu livro, Chacal agradece a
“tensão dispensada”, está pondo em relevo a difícil arte de fazer poesia, jovem, bem-humorada, viajante,
desbundada – em tempos de horror: repressão, tortura e morte. A análise particular do poema há de
apontar possíveis conexões entre os discursos da poesia e da história.
*
Texto apresentado no Simpósio “Poemas de humor e dor: exercícios de crítica literária”, no IX Congresso de Estudos
Literários – Pensamentos, críticas, ficções, realizado na Ufes, de 20 a 23 de novembro de 2007.
1
O título da pesquisa é “Poesia e testemunho: humor e dor no Brasil – de 1964 ao contemporâneo”, vinculada ao
Grupo de Pesquisa “Poesia: suportes formais e sistemas de significação”.
2
CHACAL. Belvedere. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 7. (Coleção Ás de colete; 18)
3
CHACAL. Muito prazer. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997, p. 5. (Na p. 10, pode-se ler: “Na primeira edição do Muito
prazer [1971], por paranóia ou não, fui aconselhado a assinar Ricardo, meu nome cristão. Assim era a capa: Muito
prazer, Ricardo. Hoje as coisas aparentemente mudaram”.)
explicadinho / tudo muito mais asséptico / do que era quando eu nasci / hoje rodado sambado pirado /
descobri que é preciso / aprender a nascer todo dia” (Belvedere, 2002)
Décadas depois da estréia, o tom se mantém: o prazer dos intensos anos 70 se estende à bela
vista dos anos 2000. Estampa-se um nítido projeto de poesia como deleite, gozo, divertimento, celebração.
Será, no entanto, que, em pleno regime militar ditatorial, os versos do poeta se postaram à distância das
intempéries políticas? E se esta distância for mais uma tática – um tipo de resistência? Terá sido tal
procedimento uma opção do autor em pauta ou um modo estético geracional? Por fim, como o desbunde
contracultural – supostamente à margem tanto de valores ideológicos burgueses, caretas e conservadores,
quanto de atitudes típicas de um radical engajamento, bélicas e utópicas – expressou a história de seu
tempo? Estas e outras perguntas podem nos fazer entender mais que um poema, um livro ou a obra de um
poeta (o que não seria pouco).
Tomando a trajetória de Chacal como modelar de um certo tipo de pensar e criar poesia, partamos
de um poema de Muito prazer, Ricardo, para, em torno dele, desfiar considerações:
O poema, com 9 versos de 6 a 14 sílabas métricas e ocasionais rimas toantes, prima pela
coloquialidade, cujo ápice acontece no derradeiro verso, com a informal expressão “dar um rolé” – isto é,
dar uma volta, um passeio – ganhando uma versão sonoramente fechada, “rolê”. De resto, trata-se de um
texto bem à moda marginal, em que o pequeno afronta o monumento, o cotidiano impõe-se como topos, o
prosaico lirismo se faz com pitadas de pueril inocência, sem lances de engenhosas elipses nem visíveis
cálculos para os olhos do incauto leitor.
A singela fábula fala de um camaleão, que, curioso, fica a espiar o mundo; faminto, usa a “língua
comprida” para saciar-se; acuado, usa sua arma cromática e se disfarça; curioso e precavido, longe o
inimigo, sai “por aí”, livre, lépido e fagueiro. Tentando entender até que ponto um texto resiste às investidas
vampirescas do teórico que dele se alimenta, Barthes escreveu: “Se você mete um prego na madeira, a
madeira resiste diferentemente conforme o lugar em que é atacada: diz-se que a madeira não é isotrópica.
O texto tampouco é isotrópico: as margens, a fenda, são imprevisíveis. Do mesmo modo que a física (atual)
precisa ajustar-se ao caráter não-isotrópico de certos meios, de certos universos, assim é necessário que a
análise estrutural (a semiologia) reconheça as menores resistências do texto, o desenho irregular de seus
veios”5. Trocando em miúdos: não exijamos de um texto aquilo que ele não quer, ou não pode, nos dar.
Chacal não é Cabral.
O que o poema, queira ou não, sempre nos faz ver é o tempo em que acontece. Para tanto, não
precisa ser engajado, nem explicitar marcas de qualquer ideologia, tampouco funcionar feito um panfleto
distribuído em via pública. Qualquer poema já traz – sob a forma de pílulas homeopáticas contidas no
recipiente maior do livro – todos os traços na linguagem mesma em que se mostra: o vocabulário, o corte
dos versos, um certo jargão e, sobretudo neste exemplar, a pitada alegórica que dele se desentranha. É
pela via alegórica que o ingênuo poema de Chacal ganha alguma densidade e sai do lugar de mera piada
para ocupar outro posto: o de espia do mundo.
O mundo que o poema (o camaleão, o poeta) espia é o Brasil militarizado, sob a égide de generais,
arenas, dops, doi-codis, sni’s. Amedrontados, os cidadãos, em especial nos contextos urbanos, viviam
tensos, à flor da pele, na corda bamba: estávamos, em 1971, no auge da belicosidade do governo de
Garrastazu Médici, que, então, “não se limitou à repressão. Distinguiu claramente entre um setor
significativo mas minoritário da sociedade, adversário do regime, e a massa da população que vivia um dia-
a-dia aceitável nesses anos de prosperidade econômica. A repressão se dirigiu ao primeiro grupo, enquanto
a propaganda se destinou a pelo menos neutralizar o segundo” 6. Conjunturas econômicas bem favoráveis
explicam, sem que nenhuma fé transcendental seja invocada, o propagado milagre de Delfim. O que pouco
se propagou foi que este aparente milagre estava, na verdade, concentrando renda e acumulando capital
para os do topo da pirâmide, enquanto, cá em baixo, a população trabalhadora e a classe média mal se
4
CHACAL. Muito prazer. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997, p. 25.
5
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 50.
6
FAUSTO, Bóris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2002, p. 267.
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davam conta da crescente perda de poder aquisitivo e do incrível aumento das desigualdades sociais 7. Se,
na economia, o país se mascarava próspero, na condução política o regime se fazia de chumbo. Quem
imaginaria, em 1971, os rumos do Estado brasileiro? Que ventos levariam o país – e para onde?
Elio Gaspari, no artigo “Alice e o camaleão”, aponta instigantes hipóteses de leitura, partindo da
notícia dada pelo Jornal do Brasil no dia 31 de dezembro de 1978: “Regime do AI-5 acaba à meia-noite de
hoje”. O baixo impacto da notícia deveu-se ao fato de ser aquela uma “morte anunciada”: desde outubro de
1978 uma emenda constitucional já decretara o fim do famigerado AI-5. Mas mais que um desinteresse
ideológico coletivo – que a paulatina normalização democrática teria se encarregado de nutrir – o que
ocorreu foi que o regime ditatorial iniciado em abril de 1964 “foi desmontado aos poucos, com tamanha
precisão que até hoje não se pode dizer quando acabou. Talvez o certo seja dizer que não foi desmontado.
Foi camaleonicamente transformado”8. A precisão do processo, sob a capa da pacificação civil do país,
garantiria a segurança e a imunidade dos “camaleões fardados”.
Episódios como (a) a posse de Tancredo Neves, e a seguir a de Sarney, em 1985; (b) a demissão
de um general quatro estrelas (Ednardo d’Avilla Mello) responsabilizado pela morte do metalúrgico Manuel
Fiel Filho, em 1976; (c) a demissão do general linha-dura Silvio Frota, em 1977; e (d) a Constituição Cidadã,
de 1988, são tomados por Gaspari como emblemáticos de momentos em que o “conceito” pleno de
ditadura, de fato, se vê abalado. A prevista (e) revogação do AI-5, em 31/12/78, seria o corolário de um
processo de metamorfose que o regime autoritário, camaleônico, se impôs, governo a governo. Da tomada
do poder, em 64, ao endurecimento de 69-73 (Médici), passando pela distensão de 74-78 (Geisel) e pela
abertura de 79-84 (Figueiredo), até chegar aos civis Tancredo e Sarney (85-89) e à esperada eleição direta
de Collor (90-92), o Brasil foi sendo pintado por cores as mais distintas. No período mais negro desse arco
multicromático estava nosso poeta, Chacal, em 1971, lançando mão, então, da mesma imagem – mas para
fim diverso – do camaleão. O livro, apesar dos pesares, chamava-se Muito prazer, Ricardo.
Do livro, o próprio autor vai comentar, com algum humor triste, na reedição de 1997: “no verão de
72, Hendrix, Joplin, Jim Morrison, Brian Jones já viam, desmedidos, a grama crescer pela raiz. As flores no
cabelo murchavam e Lennon desacordava do sonho. No Brasil, a Lei do Cão vigorava. Tortura e morte eram
a ordem do dia. A juventude variava entre a luta armada e o trio elétrico. Pela sete, Torquato Neto
desgovernava a navilouca, acendendo o gás. Da ECO, no Campo de Santana ao Píer em Ipanema eu fazia
circular 100 cópias mimeografadas desse Muito prazer. Era o primeiro torpedo, meu cartão de visita” 9. O
futuro bacharel em Comunicação (pela UFRJ, em 77) certamente não desconhecia as agruras – políticas,
econômicas, culturais – pelas quais passava o país. Nem então, nem depois, sua poesia egóica quis servir.
Orlando Tacapau, de Preço da passagem (1972), talvez se horrorizasse ao ouvir autotelismo,
intransitividade, finalidade sem fim, estética kantiana etc. A revolução, para a tribo e a trip de Chacal, era a
vida, o corpo, o movimento. No píer, nas dunas da Gal, na ilha do Posto 9, sem patrulhas, a ordem do dia
indicava:
Rápido e rasteiro
aí eu paro
tiro o sapato
e danço o resto da vida.10
A sutil ambigüidade do segundo “dançar” – que, além do dionisíaco “bailar”, permite os carregados
sentidos de “sair-se mal”, “ser preso”, “ser morto” – deste poema nos faz retornar ao outro, “como é bom ser
um camaleão”:
7
“Outro aspecto negativo do ‘milagre’, que perdurou depois dele, foi a desproporção entre o avanço econômico e o
retardamento ou mesmo o abandono dos programas sociais pelo Estado. O Brasil iria notabilizar-se no contexto mundial
por uma posição relativamente destacada pelo seu potencial industrial e por indicadores muito baixos de saúde,
educação, habitação, que medem a qualidade de vida de um povo.” (FAUSTO, Bóris. op. cit., p. 267.)
8
GASPARI, Elio. “Alice e o camaleão”. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloísa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura
em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 12.
9
CHACAL. Muito prazer. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997, p. 9.
10
CHACAL. Muito prazer. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997, p. 27. (Este poema entrou na antologia Os cem melhores
contos brasileiros do século. Organização: Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.)
3
se o inimigo espreita, me finjo de pedra
verde, cinza ou marrom.
e, quando de tardinha o sol esfria,
dou um rolê por aí.
Feito um breve périplo pela nossa história (com ares de “história antiga” para as novas gerações),
podemos afirmar que o camaleão de Chacal, com todos os trocadilhos, é um animal político. Para
sobreviver, se camufla: ora se protege das forças naturais (sol e fome), ora se esconde do “inimigo [que]
espreita” (medo e terror); quando as condições favorecem, curte a liberdade de ir e vir. Chacal nem adere
ao discurso do milagre nem se engaja na luta armada. Seu barato, seu desbunde, sem culpa, é o prazer, o
muito prazer juvenil do sexo, drogas e rock-’n’-roll. O “inimigo” do poema bem pode ser a “ditadura” e seus
tentáculos: censura, repressão, torturas, assassinatos – mas também, sem dúvida, o “inimigo” é a caretice,
a chatice, o sistema, a burguesia, as instituições, “anel de grau, hipocrisia, paletó e gravata, carreirismo,
eficiência, prepotência, dinheiro no banco”11 etc.
No poemão marginal, escrito nos setenta, tem de tudo um muito: desde poemas e poéticas mais
programaticamente vinculados a questões de ordem ideológica ou mesmo de ordem estética (herdeiros
cepecistas ou vanguardistas12), até, antípodas, obras que sem-cerimônia se fizeram ao sabor do miúdo, do
rolê, do improviso, do relaxo, do gesto, da viagem, do desbunde, do assistemático. Obviamente, neste
poemão e em cada um de seus polimétricos versos estão incorporados, siameses, valores estéticos e
ideológicos.
Cabe, creio, a certa crítica brasileira olhar, sem benevolência mas com instrumentos apropriados, e
ver que os referidos valores estão em todo lugar, lá em Mallarmé e em Manoel de Barros, em João Cabral e
em John Lennon13. Categórico e generoso, em já clássico texto, Benjamin dirá: “A luta de classes, que um
historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as
quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser
representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da
confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas
questionarão sempre cada vitória dos dominadores”14.
Entre “essas coisas espirituais e refinadas” que a luta de classes traz à tona, colocaria sem temor a
arte (em particular, a poesia). Para lidar com o camaleão inimigo que “espreita”, o poeta tem de se
transformar num camaleão que “espia”, com humor e astúcia. Nem toda testemunha se veste de herói, de
mártir. Basta a dor de fingir-se pedra quando o inimigo espreita. Uma dor disfarçada de esperteza. Uma dor
dourada, feliz – nem “verde, cinza ou marrom”.
Fique, pois, do debate uma idéia nuclear: a figura do camaleão no artigo de Gaspari se refere às
artimanhas que o regime ditatorial teve de engenhar para se perpetuar no poder, a balas e atos
institucionais, e dele se retirar, duas décadas após o golpe, sem que houvesse maiores abalos nem caça
aos culpados: o camaleão-Estado venceu.
A figura do camaleão no poema de Chacal aponta para um tipo de resistência pouco considerada
nos ensaios crítico-teóricos acerca da poesia marginal: o disfarce, como resistência. Com facilidade, esse
disfarce pode se confundir com “alienação” ou “covardia”, ao não reconhecer ou não enfrentar o inimigo.
Mas fingir-se de pedra na presença do inimigo é já, de algum modo, reconhecê-lo e enfrentá-lo. A arte do
fingimento como tática de sobrevivência: o camaleão-Poeta também venceu.
A longa tirania do Estado brasileiro se fez camaleônica e fez com que tantos cidadãos, para
sobreviverem, de modo semelhante, se transformassem. Outros tantos não quiseram, ou não puderam,
adotar tal estratégia – e sucumbiram. Sem perpetuar a culpa de ter sobrevivido à barbárie, o poema de
Chacal (um poema qualquer) pode sempre nos recordar que “assim como as flores dirigem sua corola para
o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da
história”15. O tempo não pára nem retorna, mas saber ler o passado pode impedir – ou dificultar – que flores
murchem prematuramente. Se nada obstruir o encontro do “passado” com o “sol”, a história se fará, com
certeza, mais digna, e não precisaremos mais temer o inimigo. Quando este utópico encontro se der, a
alegria há de chegar e com ela poderemos – livres de dor, culpa e ressentimento – “dar um rolê por aí”.
11
CACASO. “Tudo da minha terra”. Não quero prosa. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Editora da
UFRJ, 1997, p. 35. Antes, neste preciso ensaio, Cacaso já dissera: “A poesia de Chacal é uma poesia da carência e da
precariedade; é isso que sua utopia do descompromisso e da pureza está querendo dizer, e é também isso que explica
seu conteúdo ético e normativo. Chacal pratica e propõe uma poética da ética” (p. 27).
12
Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960-1970. 3. ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992. [1980]
13
Exercício crítico, por exemplo, que Fernanda Teixeira de Medeiros fez em “Play it again, marginais” (Poesia hoje.
Organização: Célia Pedrosa, Cláudia Matos, Evando Nascimento. Niterói: EDUFF, 1998, p. 53-68) e que Vinicius
Dantas não quis fazer em “A nova poesia brasileira e a poesia” (Novos Estudos Cebrap, n. 16. São Paulo: Cebrap, dez.
1986, p. 40-53).
14
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história
da cultura. Obras escolhidas, vol 1. 5. ed. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 223.
15
BENJAMIN, op. cit., p. 224.
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