Marionete Como Metafora Corpo Dançante

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN

124 125

ferro e madeira.
A atuação com os materiais, que se distinguem quanto aos
A marionete como metáfora
aspectos físicos, resulta em qualidades de interpretação cênicas
igualmente distintas. A matéria bruta também é suscetível à energia
do corpo dançante: um
atoral. Isso significa que o ator não se relaciona nesse processo como convite à percepção
um artesão, ou artista plástico, mas como ator e, por conseguinte,
entende a matéria como “teatral”. Sandra Meyer
Para Henrique Sitchin, Cia. Truks, “o processo de confecção
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
une o grupo em torno do objetivo final que é o espetáculo, e assim
os atores se situam como criadores não apenas na atuação em cena,
mas no espetáculo como um todo” (2009). Ou seja, a confecção
estreita o vínculo entre grupo e espetáculo, e entre ator e objeto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Ana Maria. O Ator e Seus Duplos. São Paulo: SENAC,


2001.
APOCALYPSE, Álvaro. Oficina de teatro de bonecos: um método
como outros. In: Mamulengo. Rio de Janeiro: Associação

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

Brasileira de Teatro de Bonecos (ABTB), v. 10, 1981.


VIVÁCQUA, Maria do C. Da manipulação. In: Mamulengo.
Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Teatro de Bonecos
(ABTB), v. 6, 1977.
FLASZEN, L.; POLLASTRELLI, C.; MOLINARI, R. (Org.). O
teatro laboratório de Jerzi Grotowski. 1959-1969. São Paulo:
Perspectiva, 2007.
STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Rio de
Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1989.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva,
2005.
STICHIN, Henrique. A possibilidade do novo no teatro de anima-
ção. São Paulo: edição do autor, 2009.
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
126 127

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

Página 125: Espetáculo Lês


Poupées (1997 – SP). Direção de
Marta Soares. Foto de Gil Grossi.

PáginaS 126 e 127: Espetáculo


Skinnerbox (2005 – SC). Grupo
Cena 11 Cia. de Dança. Direção
de Alejandro Ahmed. Foto de
Cristiano Prim.
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
128 129

vimento do ser vivo apresentaria variações, conforme a natureza. A


idéia de uma natureza inanimada surgiria somente no século XVI,
possibilitando a noção de corpo como máquina.
Contendo resquícios de uma visão mecânica de corpo herdada
do Iluminismo e, ao mesmo tempo, respondendo aos anseios pela
organicidade do gesto e por um viés abstracionista idealizado pela
arte no início do século passado, a marionete ainda persiste meta-
foricamente em nossos dias. No projeto das vanguardas do século
XX a associação da marionete ao corpo cênico propiciou a proble-
matização dos modos de representação do ator, especialmente, e
sob determinadas perspectivas, do bailarino, no momento em que
Resumo: O artigo propõe reflexões acerca da metáfora da marionete no campo da
dança. A associação com questões sobre o vivo/inanimado vem propiciando modos de
a arte questionava os referenciais vigentes de registro e de apreensão
percepção e organização do movimento em novas abordagens do corpo dançante. O do real. Para além das questões próprias do teatro de marionetes en-
texto destaca a presença desta metáfora na recente produção de dança contemporânea quanto gênero artístico, a marionete tornou-se referência para novas
no Brasil, com enfoque nas proposições desenvolvidas por duas companhias, Grupo abordagens do ator em cena. Mas como pensar, hoje, as imagens
Cena 11 Cia de Dança, de Florianópolis e a Cia Marta Soares, de São Paulo.
que a marionete nos incita? E mais especificadamente, na dança?
Palavras-chave: Dança; metáfora; marionete; percepção. Problematizada sobremaneira no teatro, proponho abordar
algumas questões que esta emblemática figura provoca ao ser trans-
Abstract: The article proposes reflections on the metaphor of the marionette in the field
of dance. The association with questions of the live/inanimate helps to provide ways of
portada para o corpo dançante. Passado o estado de fascínio e repulsa

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

perceiving and organizing movement in new approaches to the dancing body. The text proporcionado pela evocação de sua figura em relação ao trabalho do
highlights the presence of this metaphor in recent contemporary dance productions in ator, nas primeiras décadas do século XX, a metáfora da marionete
Brazil, with a focus on the ideas developed by two companies, Grupo Cena 11 Cia de
Dança, from Florianopolis, and Cia Marta Soares, from Sao Paulo.
vem propiciando ainda reflexões acerca dos modos de percepção e
organização do movimento em novas abordagens do corpo.
Keywords: Dance; metaphor; marionette; perception. Neste artigo abordo a presença desta metáfora na recente pro-
dução de dança contemporânea no Brasil, destacando o enfoque
A marionete tem sido evocada como forma de reflexão sobre desenvolvido por duas companhias, Grupo Cena 11 Cia de Dança,
as relações sujeito-objeto, humano-inumano e vida-morte. Exímia de Florianópolis e a Cia Marta Soares, de São Paulo. O que parece
metáfora, alia-se à condição do inanimado, que, por sua vez, está interessar aos criadores destas duas companhias, Alejandro Ahmed
atrelada ao entendimento, próprio a cada contexto e época, dos e Marta Soares, respectivamente, ao margear tal metáfora, é a de
circuitos sensórios-motores do corpo em relação às forças gravi- problematizar a condição do sujeito na contemporaneidade. Ao
tacionais. Na antiguidade clássica, a metáfora sobre o movimento invés de evocar a figura literal da marionete, com suas aparentes
humano era a do ser vivo. Aristóteles diferenciou o movimento vivo formas de comando exterior, a discussão sobre as formas de con-
do movimento de uma marionete, pois a manipulação de cordas trole do corpo e sobre a potencia do inanimado atualiza-se na
do inanimado provocaria um movimento determinado. Já o mo- pesquisa corporal destes dois criadores em processos de percepção
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
130 131

e ação que problematizam as relações entre interior e exterior, a como elemento de desumanização ou desencarnação da figura do
fragmentação do corpo, bem como questões acerca da autonomia bailarino(a), mas como metáfora para pensar a noção de incorpo-
e da sobrevivência do vivo. Estas perspectivas se encontram nas ração (embodied), ou seja, de como um pensamento se torna corpo.
obras destes por meio de associações com a imagem da boneca, Um pensamento em ação, portanto.
em Les Poupées, criação de Marta Soares estreada em 1997, e de
robôs e próteses, como em Skinner Box, o espetáculo concebido A marionete: entre o corpo mecânico e o orgânico
por Alejandro Ahmed em 2005. A metáfora do inanimado é vista sob outro olhar nas vanguardas
Para aproximarmos a discussão aqui exposta da corporeidade artísticas do século XX, depois das experiências cênicas inspiradas
dançante, começaremos pelo sentido da metáfora, que em sua nos escritos de Heinrich Von Kleist (1777-1811). É quando a figura
etimologia nomeia um modo de conceber uma coisa em termos da marionete evoca um modelo de representação ideal do corpo,
da outra, sendo sua função primordial a compreensão. Trata-se então livre das fragilidades humanas. Em seu célebre artigo Sobre
de um transporte ou transferência de significado com base numa o Teatro de Marionetes Kleist imagina o encontro entre o narrador
analogia. Consideramos aqui a idéia de metáfora como instrumento e um bailarino da Ópera frente a um espetáculo de marionetes1. O
conceitual de investigação e expressão lingüística e comportamental. “transporte” da figura da marionete para a figura humana idealizado
Os conceitos estruturam nossa percepção e ação no mundo e estes por Kleist propõe um conceito mais abstrato de corpo, com linhas
processos de organização do pensamento são, em grande parte, puramente ideais que permitam visualizar o movimento e gesto
metafóricos e requisitam a participação do aparelho sensório-motor, sem o maneirismo expressivo da época. Ao contrário do homem,
não emergindo como produto de uma consciência separada. De que hesita frente a suas paixões, a marionete simboliza a possibi-
acordo com Lakoff e Johnson (1999), para compreender as coisas lidade de um corpo ajustado a leis universais. O ideal romântico

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

e agir no mundo categorizamos experiências, objetos e pessoas e de recuperação da originalidade perdida é invocado na figura da
estas categorias, antes de serem conceitos estabelecidos, emergem marionete, o grau sígnico mais puro da estrutura corporal. Mais do
diretamente de nossa experiência na interação de nossos corpos que a evocação de um novo modo de representação para o ator ou
com o ambiente. Esta visão de metáfora como estratégia cognitiva bailarino, a metáfora evoca um ideal de natureza humana original,
corrobora para o entendimento de cognição como ação incorpo- tão caro a pensadores como Rousseau. (GUINSBURG, 2001: 49).
rada, o que faz com que escolhas metafóricas não sejam somente O movimento mecânico não contaminado pelos acidentes de
figuras de retórica, mas, fundamentalmente, modos de agir no uma atuação psicológica e realista poderia restituir o ideal de graça
mundo (Nunes, 2009). e justeza. O gesto da marionete nunca seria afetado, pois a afeta-
Ao evocar figuras tais como marionete, robô ou boneca, a ção aparece “quando a alma (vis motrix) se acha em algum outro
dança vem investigando novos entendimentos sobre a relação ponto que não o centro da gravidade do movimento” (KLEIST
corpo-mente, oscilando entre a visão mecanicista e a organicista. apud GUINSBURG, 2001: 49). Os afetos tenderiam a criar uma
Do amplo estudo sobre a metáfora, interessa-nos captar as manei-
1
Escrito em 1810 para um diário berlinense – Berliner Abendblatter, fundado pelo
ras com que o inanimado norteia o conceito de corpo na obra de
próprio Von Kleist, o texto só teve repercussão no século XX, quando teóricos da
Ahmed e Soares, propiciado processos diferenciados de percepção modernidade encontraram eco nas suas reflexões sobre a natureza do movimento e a
e ação. A marionete, na produção destes artistas, funciona não expressão do corpo humano perdida. (GUINSBURG, 2001: 45).
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
132 133

distância entre o centro motor e o centro de gravidade. lei da termodinâmica2, o desenvolvimento da biologia e as teorias
Já a versão do diretor teatral Gordon Edward Craig (1872- evolucionistas re-introduzem a noção de tempo, irreversibilidade e
1966) deixava a ver a ambigüidade da metáfora da marionete, se seleção natural. No século XX as teorias sobre complexidade, siste-
atualização do mero autômato ou a concretização de um novo mas adaptativos e sistemas fora do equilíbrio chamaram a atenção
tipo de movimento do corpo humano, dotado de uma técnica para o fato dos organismos trocarem matéria e energia com seus
que respondesse as demandas de representação do início do século ambientes. Novas leis estabelecem evidências sobre a auto-organi-
XX. Craig não negava a figura humana em si mesma, mas acima zação dos organismos, desta forma enfraquecendo os argumentos
de tudo, a visão imprecisa de sua época em relação à atuação cênica das metáforas mecanicistas da natureza e da instrumentalidade do
e as vicissitudes do organismo. O status que o corpo adquire não corpo em relação ao movimento da alma, bem como rompe-se a
poderia estar mais à mercê de um espontaneísmo e da exacerbação hegemonia da visão newtoniana.
emotiva dos atores. À visão mecanicista herdada do renascimento somam-se outras
A marionete e sua obediência à lei da gravidade propõe uma analogias3. De máquina governada por leis universais imutáveis e
limpeza formal ao gesto cênico nunca antes evocada. A coluna fragmentado num conjunto segundo as leis da estática renascen-
vertebral é para o homem, assim como para a marionete, o cen- tista, o corpo começa a ser percebido, de fato, em movimento. Os
tro do corpo cênico que, suspensa sob fios, não se submete a seu estudos sobre o movimento humano até então partiam das leis
próprio peso e arbitrariedades, mas somente as leis mecânicas. A gerais da mecânica, a saber, a lei do menor esforço, da distribuição
ausência de consciência da marionete a dota de uma graça divina, dos esforços de acordo com as resistências a vencer, do relaxamento
original, visto que resta ao homem “não ter consciência nenhuma dos músculos e da inércia das massas.
ou a consciência infinita”, ou seja, aproximar-se “do manequim ou A noção de organismo se tornou, a partir do século XIX,

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

de Deus” (KLEIST apud GUINSBURG, 2001: 51). uma chave racional para interpretação da natureza, da vida e da
Na perspectiva proposta por Von Kleist, ao ajustar-se a leis linguagem. Um modelo fundador que não se restringe a simples
universais, leis estas hegemônicas na época do escritor, a marionete descrição classificatória de órgãos ou organismos biológicos e
escapa à condição antropomórfica. As descobertas científicas e as botânicos, mas torna-se essencialmente um suporte de noções
forças sociais surgidas no início do século XX, intensificadas no (SCHLANGER, 1971: 114). Como figura de racionalidade uni-
transcorrer do mesmo, contudo, colocaram em crise as categorias versal, o organismo do século XIX é entendido por meio de uma
universais estáveis, re-inserindo a sociedade em parâmetros de devir unidade global, que garante a convivência harmônica do vivo, do
e de instabilidade. A própria noção de equilíbrio frente as forças universo ao indivíduo.
gravitacionais, abordado por Kleist, em seus constantes ajustes 2
A termodinâmica, ramo da física surgido no início do século XIX, fundamenta as
auto-cambiáveis e suas micro percepções, permitem a proposição atitudes voltadas para o dispêndio e conservação das energias dos corpos e não somente
de novas metáforas para o entendimento do corpo. Neste sentido, sobre sua ordenação mecânica.
nem marionete nem manipulador, em seus acordos, escapam das
ambigüidades e singularidades da corporeidade contemporânea.
3
O uso do termo mecanicismo, segundo Meijer (2001: 47), expandiu-se em várias
áreas do conhecimento e no senso comum e explicita a idéia de que a mecânica “é
A visão mecanicista de mundo persistiu hegemonicamente até a teoria para tudo”, uma extensão da organização da máquina para a explicação do
o século XIX, quando os conceitos de entropia postulados pela 2a universo e do vivo.
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
134 135

A negação da mecanização da natureza transformaria a teoria A boneca que dança: modelo da mecânica orgânica
da criatividade e da emoção. Contudo, ainda que a ciência e a A dança também não se eximiu do fascínio pelo automatismo,
arte apontassem para a limitação da visão mecânica da natureza, a incorporando-o tanto como temática quanto elemento de constru-
metáfora do corpo como autômato ou máquina teve uma sobre- ção técnica. Um dos últimos balés do gênero romântico, Copélia
vida extraordinária nas artes, e chega ao século XX com diferentes narra a história da bailarina mecânica idealizada pelo inventor de
atualizações. As metáforas subjacentes à noção de corpo derivam autômatos, Dr Coppelius4. A história de amor não perpetua mais
de contextos históricos, culturais e sociais e a relação entre o saber o amor impossível de seres do mundo real e do sobrenatural, mo-
artístico e outros saberes. Entre o corpo observado e manipulado tivações comuns aos balés desde a Renascença, mas o incomum
enquanto instrumento e o corpo vivido enquanto organismo há triângulo afetivo formado pela jovem Swanilda, o noivo Franz e a
modos distintos de se perceber as relações entre o corpo, a mente, boneca mecânica do Dr Coppelius. Inspirado no conto “O homem
o cérebro e o ambiente. de areia”, escrito em 1817 por Ernest Theodor Amadeus Hoffmann
A noção de organismo e de organicidade, contudo, não pode (1766-1822), Copélia repete as relações de amor de um jovem
ser entendida longe de sua oposição à noção de máquina e de por uma boneca, que, assim como outros autômatos, tornam-se
mecanismo, pois ambas são figuras de organização e harmonia recorrentes na narrativa fantástica do século XIX5.
do universo e do homem. (SCHLANGER, 1971: 59). As idéias A bela Olímpia, a boneca criada pelo velho relojoeiro Spallan-
mecanicistas e organicistas do final do século XIX oscilavam entre zani, é capaz de esconder o seu maquinismo de corda através de
a noção introspectiva de inconsciente e as teorias sobre os reflexos, uma dança com perfeita regularidade rítmica, encantando o jovem
ambas recém surgidas, e, portanto, entre a espontaneidade e o auto- Natanael. Contudo, o horror e a perversidade do conto de Hoffman
matismo do corpo. Neste contexto, a marionete, assim como o foi desaparecem praticamente no balé coreografado por Saint-Léon

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

os autômatos no século XVII e XVIII, se constitui como metáfora (1821-1870). Ao invés da ambigüidade provocada pela figura me-
ideal para problematizar os processos de representação no teatro, cânica, é a mimetização do movimento autômato que é evidenciada
onde alcançou extrema visibilidade, e na dança. por meio da técnica do balé6. No conto de Hoffman, interpelado
Menezes (1994) salienta que a influência das inovações tec- pelo amigo Siegmund sobre a estranheza causada pela figura rígida
nológicas e as conquistas científicas do período das vanguardas se e sem vida da falsa jovem, Natanael, cego de amor, limita-se a co-
dá no campo imaginário, enquanto temática, e vezes na realização mentar que o “espírito poeticamente organizado só se desdobra nos
técnica. Diferentemente dos europeus (dadaísmo, futurismo), o seus iguais”, pois as palavras e ações de Olímpia, longe das conversas
movimento de vanguarda russo de vertente construtivista instaura
a máquina como elemento técnico na elaboração das obras. Incor- 4
Coppelia foi criada originalmente como ópera pelo francês Léo Delibes (1836-1891)
e coreografada em 1870 por Arthur Saint-León.
poradas no processo de criação, e não como “fetiche tecnológico”,
as metáforas se inserem como método de organização de técnicas 5
O Conto de Hoffman gera uma leitura psicanalítica através de Freud, pela obra “O
e linguagens artísticas, a exemplo do ator biomecânico concebido Estranho” (1919).
por Meyerhold. Neste sentido, a metáfora da marionete, na dança, 6
A relação mecanicista entre o vivo e o não vivo ainda se atualiza no século XIX com
caminhou no século XX do imaginário da cena à formas de orga- o balé Quebra nozes, com a figura de Dosselmayer, mágico e relojoeiro, e mais tarde
nização técnica do corpo. com Petrouska, obra prima russa.
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
136 137

triviais dos espíritos humanos vazios, seriam “genuínos hieróglifos reforçou práticas e teorias sobre gestualidade e corporeidade pau-
do mundo interior do amor e do conhecimento elevado da vida tadas na noção de organismo. Nesta perspectiva, o corpo era visto
espiritual” (HOFFMAN apud CALVINO, 2004). A semelhança como fonte de verdade interior, retorno à natureza e busca de uma
das marionetes de Kleist, a boneca de Hoffman aproxima a figura anterioridade a toda convenção social e cultural. O final do século
do inanimado de um ideal de elevação humana. A dança evoca a XIX evidencia o desenvolvimento das grandes cidades, das grandes
potência do inanimado através da figura da boneca, como a ma- massas e de leis que melhor poderiam governar a era industrial. O
rionete será mais comumente transportada para o teatro. homem civilizado se percebe cada vez mais distante do contato
O modelo mecânico aliado ao orgânico também faz parte do com os ritmos naturais de seu corpo e a incorporação do mito da
imaginário da dança do século XX. Oskar Schlemmer (1888-1943) máquina pelo ideário romântico é ao mesmo tempo símbolo do
valoriza a superioridade da mecânica sem alma da marionete pela engenho humano e de sua degradação. A utilização da máquina
infalível capacidade de trabalho da máquina. O tipo de organicidade como expressão máxima da pujança tecnológica se conflitava com
da sua mecânica forma uma “metafísica”, representação de uma o medo do desconhecido e da desumanização (NUNES, 2009).
categoria não-natural ou sobre-natural (SCHLEMMER, 1978: Em carta aberta enviada pela dançarina moderna Mary Wig-
66). Fundada sobre a mecânica do corpo, a dança matemática de man (1886-1973) à bailarina Anna Pavlova, a crítica à dança clássica
Schlemmer representa também o movimento sob leis espaciais e se enuncia por meio da metáfora da marionete. Wigman descreve
configurações visuais. Em seu texto Ballet Mecânico (1927), Sch- a aura da célebre bailarina russa como sendo falsa, pois fruto de
lemmer interroga se é reservada a sua época “mecanizar” o balé (grifo uma “reprodução técnica e da rede de experiências de ‘marionetes
do autor). A precisão das proporções humanas, alvo de artistas como humanas’, submetida à pressão de uma concorrência terrível e
Albrecht Dürer e Leonardo da Vinci, é descrita como o resultado movida por um desejo estrito de fama”.7 Aos princípios do balé

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

de uma harmonia matemática, onde cabe ao corpo representar a clássico, que conformariam para Wigman uma dança de “boneca”,
“imagem originária e o modelo da mecânica orgânica” com a com- esta propõe, a partir dos princípios de Rudolf Laban (1879-1958),
plexidade mecânica de suas articulações e de seus órgãos motores uma dança centrada no ser humano, em sua diferença.
feitos de carne e sangue (SCHLEMMER, 1978: 65). É neste contexto que os estudos do movimento de Laban con-
Seguindo a linha metafórica concebida por Kleist, Schlemmer tribuem para repensar a relação entre a dança e as leis da gravidade,
apresenta a possibilidade do autômato executar os movimentos im- quando aproxima o peso à memória corporal, fazendo da questão
possíveis ao ser humano, acreditando que existe um meio caminho do peso do corpo e do seu deslocamento o centro de seu modo de
entre uma marionete absolutamente inumana e a silhueta humana pensar o movimento (SUQUET, 2008: 528). A forma com que
natural (VACCARINO, 2001: 4). Na redução da arte ao essencial e cada indivíduo organiza sua postura para adaptar-se às leis da gravi-
ao elementar, rechaça-se do mundo da representação o sentimento, dade seria variável e tributária de pressões mecânicas e psicológicas
cuja manifestação serviria a elevação pessoal, a flexibilização do inscritas culturalmente. Esta gestão complexa da verticalidade,
corpo e às finalidades pedagógicas, mas, salienta Schlemmer, sem para Laban, dependeria de uma atitude interior – vezes consciente
interessar absolutamente a arte. 7
"L´aura de Pavlova este done une fausse aura, fruit d´une reproduction technique et
Simultâneo à exaltação dos elementos mecânicos, o renasci- de la chaîne d´experiences de "marionnettes humaines", soumises à la pression d´une
mento do corpo na Europa no final século XIX, por outro lado, concurrence terrible et agitèes par le seul désir de renommée." (LAUNAY, 1996: 161).
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
138 139

e vezes inconsciente – e determinaria as qualidades dinâmicas do diferença, tão temida por Kleist e Craig, será a mola mestra do
movimento e a constituição de uma individualidade. surgimento de uma corporeidade singular na dança surgida no
A postura ereta alia problemas mecânicos da locomoção a século XX.
elementos psicológicos e expressivos, antes mesmo de qualquer A marionete, metáfora para as relações entre sujeito-objeto,
proposição intencional do sujeito. Como alerta Hupert Godard humano-inumano e vivo-inanimado tem mantido um vigor na
(s/d: 13), “a relação ao peso, à gravidade, já contém um humor, mais recente produção de dança contemporânea no Brasil. Sendo a
um projeto sobre o mundo”. O pesquisador francês chama de gestão do equilíbrio e a relação com o peso/gravidade intrínsecas à
“pré-movimento” a essa atitude em relação ao peso e a gravidade, criação em dança, a metáfora do inanimado aparece como ignição
“que existe antes mesmo de se iniciar o movimento, pelo simples para outras estratégias de percepção e ação do corpo.
fato de estarmos de pé” (GODARD, s/d: 13). É especificamente
este processo antecipador do movimento que vai produzir a carga O corpo em situação de risco e crise: experiências com o
expressiva do movimento a ser executado, sendo que o sistema inanimado
dos músculos gravitacionais é o que assegura nossa postura, cuja Alejandro Ahmed, desde o início de sua atuação como coreógrafo
manifestação escapa em grande parte aos processos conscientes e do Grupo Cena 11 Cia de Dança, em 1994, vem desenvolvendo uma
da vontade. Além de manter-nos em pé, estas cadeias musculares pesquisa relacionada a criação e adaptabilidade de ações, nomeado
registram nossos estados afetivos e emocionais, proporcionando pelo mesmo como “Percepção física”. Ahmed propõe aos integrantes
uma singularidade própria a cada indivíduo, tão temida por en- de seu grupo, na maioria de seus espetáculos, a exemplo de “Skinner
cenadores como Craig. Godard atribui aos gestos e seus fluxos de Box” (2005), aproximações com figuras inanimadas que necessitam
organização gravitacional, com suas dimensões projetivas e afetivas, do comando humano para mover-se, tais como robôs, bem como a

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

o fator que diferencia o homem da máquina. Para Godard (s/d), presença de próteses a estender as ações do corpo. São três os parâ-
Kleist descreveu perfeitamente este fenômeno em seu texto Sobre o metros que orientaram a pesquisa deste trabalho: controle e comuni-
Teatro de Marionetes. Uma vez suspensas por um fio, sem contato cação, sujeito e objeto, homem e máquina. Outro aspecto identifica
com o chão, a marionete não tem que dar conta de seu próprio peso, a poética do grupo em seus modos singulares de organização e mo-
seus segmentos obedecem somente às leis mecânicas. Diferente do vimentação. Os integrantes se lançam ao ar horizontalmente e caem
homem, elas não são atormentadas pela hesitação afetiva, ou seja, ao chão em queda repentina, cedendo sem esforço ou temeridade ao
não se submetem às vicissitudes do pré-movimento, na constante empuxo da gravidade, ou caem num feito mata-borrão. De acordo
mediação entre o centro motor do movimento e o centro da gravi- com Ahmed, o comportamento de risco proposto pelo Cena 11 in-
dade, cuja tensão expressa a carga afetiva do gesto. E é exatamente vestiga estratégias que não as habituais para “evitar danos utilizados
o bom domínio da organização gravitacional que propicia aos quando um corpo cai de maneira consciente”, como expressões de
bailarinos atingir dimensões artísticas mais plenas. medo ou amenização do golpe pela reação imediata dos membros,
Neste sentido, sendo a negociação com a gravidade dependente promovendo uma espécie de “autonomia do corpo involuntário” de
de fatores conscientes e inconscientes, os fluxos de intensidade do um “corpo sujeito-objeto” (AHMED, 2006: 105). Tal qual objetos
corpo e do movimento produzirão sentidos diversos, ainda que inanimados, a reação não reflexiva ao impacto e a entrega ao chão
o vocabulário gestual seja específico, como no caso do balé. Esta dos dançarinos do Cena 11 subverte a defesa súbita e instintiva do
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
140 141

corpo cotidiano em situação similar. promover alterações através de uma força externa (as peças
artificiais), tal qual se fosse uma marionete. Essa poderia
Das relações entre queda e recuperação do equilíbrio (fall and ser uma explicação de por que os dançarinos prolongam
recovery) criada por Dóris Humphrey nos anos 40, passando pelas limites e usam extensões: pernas e braços metálicos, bogo-
trocas corporais da improvisação de contato desenvolvida por Steve bol, patins, separador bucal, botas, joelheiras, proteções,
Paxton nos anos 70, o consentimento da perda do equilíbrio na roupas, animações etc. Essas próteses criam outras rela-
ções, que organizam os esforços de uma outra maneira.
queda do corpo tem sido matéria de interesse de muitos criado- Andar numa perna-de-pau, por exemplo, altera o eixo de
res na contemporaneidade. A ideia de inflectir o funcionamento equilíbrio. Mudando isso, o corpo passa a aprender algo
reflexo do corpo fora de seu eixo vertical, ligados aos mecanismos novo, fruto de sua interação com o artefato. Depois de
tanto utilizar a prótese, o corpo do dançarino adquiriu a
de sobrevivência, especialmente nos momentos de queda, requer variação do movimento, corporificando-a. Ampliou, desse
acolher e desdobrar horizontalmente o corpo para minimizar o modo, o seu repertório de ação. Pôde, então, abrir mão
impacto ao chão. Paxton entende ser possível “treinar o consciente do acessório. (SPANGHERO apud NORA, 2004: 39)
para permanecer aberto aos momentos críticos em que se desenca-
deia o reflexo”, para que esse se dissocie do medo (SUQUET Apud Em Les Poupées, solo de dança da paulista Marta Soares criado
COURTINE, 2008: 534). Desta forma, a consciência se torna em 1997, o ponto da partida para a investigação sobre o inanimado
uma parceira frente ao desconhecido, ampliando as capacidades é a obra do artista plástico alemão Hans Bellmer (1902-1975). As
perceptivas do corpo em movimento. bonecas de Bellmer dialogaram com questões ligadas aos movi-
Ao abordar a obra do grupo Cena 11 Cia de Dança, a pesqui- mentos dadaísta e surrealista, ao regime nazista, aos experimentos
sadora Maíra Spanghero retoma a condição mor da relação entre psicanalíticos, além dos contos de E.T.A. Hoffman, cujos enredos
marionete e manipulador. Para manter-se de pé e movimentar-se, originaram obras clássicas, como o balé Copélia.

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

uma marionete precisa se adaptar ao eixo gravitacional e, para isso, Bellmer fotografava as bonecas em um processo de montagem,
necessita da ação do titeriteiro, que sustenta o suporte-controlador desmontagem e reconstrução. Ao mostrar fragmentos e entranhas
onde os fios se conectam, acima da sua cabeça. No caso do homem, do corpo aparentes, Bellmer desarticulava o corpo e o expunha em
há uma auto-organização constante do peso do corpo em oposição seu avesso, invertendo as relações já instituídas entre o interior e o
à força atrativa da gravidade, cujos pés, em contato com o solo, re- exterior, problematizando o que chamava de “inconsciente físico”
cebem a carga de peso de todo o corpo. Por meio de forças internas da matéria. Em Les Poupées Marta Soares explora as questões do
e externas, respectivamente, homem e marionete necessitam realizar feminino, da fragmentação do corpo e da multiplicidade do sujeito
acordos com a gravidade para produzir movimento. contemporâneo. Soares segue a lógica de Bellmer quando desloca
Mas, para simular as marionetes, conclui Spanghero, os intér- e retorce o centro de gravidade de seu corpo e inverte as funções e
pretes do Cena 11 não podem sofrer a mesma ação exterior que o posições originárias dos membros superiores e inferiores do corpo.
desta figura inanimada. Tal qual as imagens das meninas/bonecas de Bellmer, a criação co-
reográfica de Soares transita entre a marionete e a escultura, postas,
No humano, o mover-se ocorre através de um acordo entre
contudo, em movimento. O corpo distorcido de Soares, diferente
força interna e força externa, enquanto que na marionete
não existe a força interna. Se não há como desprover o do balé mecanicamente ritmado da boneca Copélia, disfigura a
corpo humano de forças internas, então uma solução seria noção de organismo, libertando a anatomia, seja humana ou inu-
MÓIN-MÓIN MÓIN-MÓIN
142 143

mana, das proporções e funções pré-estabelecidas pela natureza. LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the Flesh, the
Inventa, então, “anagramas do corpo”, como propunha Bellmer embodied mind and its challenge to western thought. New York:
(MORAES, 2002: 67). Basic Books, 1999.
No texto “Ator e a Supermarionete” (1908) Gordon Craig afir- MENEZES, Philadelpho. A crise do passado. Modernidade, vanguar-
ma veementemente que o corpo humano falhou como instrumento da e experimentação. São Paulo: Experimento, 1994.
da arte teatral. Craig supunha que, para criar uma obra de arte, seria MORAES, Eliana Robert. O corpo impossível. A decomposição da fi-
preciso servir-se de materiais que apresentem certezas. A arte não gura humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: FAPESC/
admitiria acidentes e a natureza do homem tenderia a instabilidade, Iluminuras, 2002.
com sua escravidão à emoção e espontaneidade das sensações do NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. São Paulo:
corpo. Craig idealizava um ator que unisse uma natureza generosa a Anna Blume/UDESC, 2009.
uma alta inteligência, onde esta governaria a natureza das paixões e SCHLANGER, Judith. Les metaphors de l’organisme. Paris: Éditions
o pensamento o movimento do corpo. O corpo, como previu Craig, L’Harmattan, 1971.
“tende à independência” e não a ordem e certezas. SCHLEMMER, Oskar. Théâtre et abstration (L’Espace du Bauhaus).
Não seria mesmo o corpo, inevitavelmente, esta matéria instá- Lausanne: Éditions L’Age d’homme,  1978.
vel, tão temida pelo encenador? Não seria esta a condição própria SPANGHERO, Maíra. Sobre a vontade de ultrapassar. IN: NORA,
humana e a razão de ser da arte conectar-se com os paradoxos, Sigrid (Org.). Húmus 1. Caxias do Sul: Lorigraf Gráfica e
ambigüidades e vicissitudes deste corpo/mente? São estes estados de Editora, 2004, p. 31-41.
ambiguidade e incertezas que são perscrutados por criadores como __________________. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo: Itaú
Alejandro Ahmed e Marta Soares, provocando novas abordagens Cultural, 2003.

Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas


Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas

da metáfora da marionete por meio do corpo dançante. SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção.
IN: COURTINE, Jean-Hacques (Org.). História do Corpo
Referências Bibliográficas 3. As mutações do olhar: Século XX. RJ: Vozes, 2008.
VACCARINO, Elisa Guzzo. La marionnette qui danse. Alternatives
AHMED, Alejandro; COLLAÇO, Gabriel. Autoria no corpo in- théâtrales 80. Objet-Danse. Institut Internatinal de la Ma-
voluntário. In: MEYER, Sandra; TORRES, Vera; XAVIER, rionnette. Éditions Lansman. Bruxelles, n. 80, p. 4-8, 2001.
Jussara. Tubo de Ensaio. Experiências em dança e arte contem-
porânea. Florianópolis: Edição dos autores, 2006.
CALVINO, Ítalo (Org.). Contos fantásticos do século XIX: O fantástico
visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
GODARD, Hupert. Gesto e percepção. In: PEREIRA, Roberto.
SOTER, Silvia (Orgs.) Lições de Dança 3. Rio de Janeiro:
UniverCidade Editora, s/d.
GUINSBURG, J. Da cena em cena. Ensaios de teatro. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2001.

Você também pode gostar