Minayo Saúde e Doença Como Expressào Cultural

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Saúde: concepções e políticas públicas

Saúde e doença como expressão cultural

Maria Cecília de Souza Minayo

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AMÂNCIO FILHO, A., and MOREIRA, MCGB., orgs. Saúde, trabalho e formação profissional
[online]. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997. 138 p. ISBN 85-85471-04-2. Available from SciELO
Books <http://books.scielo.org>.

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SAÚDE:
CONCEPÇÕES Ε POLÍTIC
SAÚDE Ε DOENÇA C O M O EXPRESSÃO CULTURAL

Maria Cecília de Souza Minayo

Concepções e representações como integrantes da realidade social

Pretendo discutir a questão da representação social de saúde e doença,


apresentando alguns elementos conceituais para refletir sobre o assunto, não do
ponto de vista histórico, mas do ponto de vista social, entendendo concepção
social como a idéia que fazemos a respeito de qualquer fato ocorrido em so-
ciedade e vivenciado pelo indivíduo.
O homem é um ser que, ao mesmo tempo, cria cultura e simboliza suas
vivências, sendo capaz de expressá-las. A expressão dessas vivências é que constitui
a representação social, que possui sempre elementos conscientes e inconscientes.
Assim, não preciso, necessariamente, elaborar ou redefinir a idéia que tenho de
mulher, de trabalho, de religião, de espaço, de tempo. Ela está presente e é histórica
e socialmente construída. A idéia de tempo que atualmente possuímos, por exem-
plo, corresponde à concepção dominante de que tempo é dinheiro, tempo se gasta,
se aproveita, se desperdiça.
Nós marcamos e dividimos o tempo, espaçamos o dia diferentemente da so-
ciedade da Idade Média ou de uma sociedade primitiva. Nós nos localizamos e nos
organizamos de uma dada forma, concebemos o espaço econômico de uma
certa maneira, e assim por diante. Segundo Marx (1980), essas idéias, con-
cepções ou representações não são necessariamente conscientes. Em uma so-
ciedade dividida em classes, elas são construídas pelas classes dominantes. No
entanto, essas concepções, marcadas pela ideologia dominante, são reinterpre¬
tadas em cada segmento específico da sociedade. Por exemplo, a idéia que eu
possa ter de vida e morte - embora contenha elementos gerais das idéias domi-
nantes - possivelmente não será idêntica àquela que possuem os componentes
da classe trabalhadora pobre, porque cada elemento da nossa representação social é
reinterpretado pelo grupo a que pertencemos, pela vivência que temos na so¬
ciedade. Da mesma forma, essa reinterpretação terá um viés cultural de gênero, de
idade, de pertinência a determinado país, grupo étnico etc.
A concepção, a visão de mundo é, pois, composta das idéias dominantes em
determinada sociedade. Weber (1974) afirma que, em qualquer sociedade, haverá
sempre idéias dominantes. Desse modo, seria impossível viver o capitalismo sem a
idéia de espaço e de tempo dominantes na sociedade. Embora se possam reinter¬
pretar de alguma forma, essas concepções são uma mistura das idéias filosóficas de
nosso tempo, uma mistura do próprio senso comum que é elaborado através da ex-
periência dos diversos grupos sociais, vivenciadas no plano das contradições. Por
isso nossas representações sociais, nossas concepções sociais são capazes de revelar
a natureza contraditória da sociedade em que vivemos, do grupo social que
freqüentamos e, de certa forma, representamos.
Do ponto de vista mais geral, a representação social não é meramente uma
opinião, a opinião a integra. A maneira como se constrói um hospital ou um centro
de saúde, de certa forma, cristaliza uma representação social própria de saúde e
doença. Num hospital em que a enfermaria de pediatria só possui espaço para a cri-
ança sozinha, desacompanhada da mãe, está-se expressando um tipo de concepção
de saúde e doença que pode ser resolvida apenas por intervenções médicas. Ou
seja, na concepção dominante, saúde e doença são algo organicamente localizado,
a ser tratado por meio de um medicamento, de uma cirurgia. Esse é o modelo
biomédico dominante em nossa sociedade.
Thomaz (1963), renomado fenomenologista, afirma o seguinte: " O problema
das idéias que a gente tem, o problema das questões que a gente pensa é que
aquilo que a gente pensa é real nas suas conseqüências." Chamo a atenção para isso
porque, em determinadas correntes de pensamento, há uma tendência a valorizar,
isoladamente, ora a idéia, ora o fato material. Parto do princípio de que uma con-
cepção social ou uma representação social é capaz de revelar a natureza contra-
ditória da realidade: ela une a base material e a idéia que vigora na sociedade. Se a
idéia influencia a base material, esta, por sua vez, também repercute na elaboração
das concepções vigentes.

Concepções sociais de saúde e doença

Do ponto de vista da saúde-doença, embora esse binômio acompanhe nossa


existência desde que o homem é um ser social, pensar esse fenômeno como um
fato social, como uma questão de interesse maior para a sociedade, é um enfoque
recente para o qual tem sido decisiva a contribuição de sociólogos e antropólogos.
Significa refletir que a doença, além de ser um fato biológico, é uma realidade
construída tanto historicamente, como dentro da expressão simbólica coletiva e in-
dividual do sujeito. O antropólogo Lévy-Strauss (1970) chama a atenção para isso ao
afirmar que a dor que sentimos, o esforço que julgamos passível ou não de reali-
zação é muito mais função de uma criação social do que de uma realidade do nosso
corpo. Isto é, o corpo é capaz de executar determinados atos que a sociedade jul-
gue que ele é capaz de fazer. Esse mesmo enfoque é dado quando ele aborda o
problema do racismo, ao dizer que a questão da cor - como elemento importante
para avaliar a capacidade de um ser humano - também é uma realidade construída.
Portanto, em que sentido se pode pensar o fenômeno saúde e doença do
ponto de vista mais geral e, depois, pensá-lo mais especialmente para a sociedade?
Pelo fato de saúde e doença estarem vinculadas a duas questões fundamentais para
todos nós - a vida e a morte - , poderíamos dizer que a concepção de saúde e
doença é particularmente reveladora do grupo social. Ela mostra, de forma muito es-
pecial, como o indivíduo se situa na sociedade e como esta se situa em relação ao
indivíduo. Ou seja, construímos um discurso social-histórico sobre saúde e doença,
um discurso social-histórico sobre o corpo e um discurso sobre a vida e sobre a
morte. Saúde e doença, portanto, não são apenas efeitos biológicos, mas também
acontecimentos culturais historicamente construídos de diferentes formas em
diferentes sociedades.
Nossa sociedade capitalista, marcada pela desigualdade, tem uma concepção
de saúde e doença que expressa a natureza contraditória da própria sociedade. De
modo geral, pode-se dizer que o tema da doença costuma ser tratado, algumas
vezes, a partir do indivíduo e de causas endógenas a seu organismo e psiquismo, e outras,
a partir da própria sociedade, do ambiente, das condições de vida e trabalho.
Quando proveniente do indivíduo, a idéia de doença inclui questões como, por
exemplo, o fatalismo. Muitas vezes, é explicada também de forma transcendental
e não apenas pela ótica social. Nessa visão de fatalidade, de desperdício da saúde
pelo sujeito, atribui-se a ele, quase sempre, a culpa pelos problemas que o acometem.
A explicação pelo enfoque mais social da saúde inclui, particularmente, a
questão do modo de vida como algo externo que provoca a doença. Por esse ân-
gulo, concebe-se a poluição atmosférica, a violência, o estresse, o ritmo de trabalho
e o ambiente familiar como elementos prejudiciais à saúde.
Existe aí uma contradição: a saúde é fator, é função do indivíduo, mas o
modo de vida é de tal forma 'adoecedor' que prejudica a saúde das pessoas. Atual-
mente, existe uma tendência a explicar a saúde como um bem que o indivíduo
pode perder; bem cujo capital inicial é devido a uma infância bem nutrida; e a
doença, por sua vez, como resultante do modo de vida. Pensando, porém, de forma
dialética, há sempre uma ligação entre o indivíduo e a sociedade, entre o indivíduo
e a qualidade de vida. A própria 'biologia' trabalhada pela sociedade cria, como
diria Marx, uma 'segunda natureza'.
Cabe então indagar: - Que modo de vida externo é esse que parece capaz
de neutralizar o sujeito da ação? Do ponto de vista das classes médias, Herslish
(1983) detecta a explicação do modo de vida como algo fetichizado, concebido
como fora de nós, a-histórico, que nos prejudica como se fôssemos vítimas incapazes
de mudar a realidade. Ε uma explicação bastante positivista e estática da doença.
Na nossa sociedade capitalista, desigual, injusta e iníqua, para pensar saúde e
doença, têm-se que assumir as contradições geradas pelas desigualdades econômi-
cas, políticas, sociais e ideológicas, que se expressam nas concepções e práticas de
saúde e doença. Nessa sociedade contraditória, saúde e doença são pensadas,
em primeira instância, como fatores de produção, e o sistema de saúde é organi-
zado de forma a tornar o indivíduo produtivo. Assim, se uma pessoa tiver uma
crise depressiva ou algum outro problema de ordem emocional, ao solicitar um
atestado médico num posto de saúde, para não ter descontado um dia do
salário, possivelmente não obterá o documento. Isto porque não tem uma
doença localizada no corpo. Certamente, dirão: "Você pode trabalhar, isso é
problema da sua cabeça, você tem que reagir".
A concepção de doença é a localizada no corpo, uma concepção biomédica
e que se encontra vinculada à questão da produção. A morte é pensada como uma
parada de funcionamento do organismo, e a vida equivale a ter saúde, isto é, ao
bom funcionamento de todos os órgãos do corpo. Grosso modo, a concepção
biomédica reduz a doença e a saúde ao contorno biológico individual, separando o
sujeito de seu contexto integral de vida.
Quando uma pessoa procura o médico, este não quer saber de que ambi-
ente ela vem, que problemas enfrenta. Importante é localizar a doença, en-
tendida como uma especialidade, e o corpo doente é encarado como espaço da
doença, e não como espaço da vida. Em última instância, vai-se cada vez mais
sofisticando uma linha de especialização (e de fragmentação) que concebe a
doença por meio das mensagens infracorporais fornecidas pelos exames. A saúde
seria o reverso, seria o corpo em perfeito funcionamento. Para a visão domi-
nante, o importante é o cuidado médico fragmentado, localizado, capaz de in-
tervir e consertar 'a máquina produtiva'.
Essa concepção médica é a mesma tanto para a classe dominante quanto
para a classe trabalhadora, até para seus estratos mais baixos. Mas a classe domi-
nante usa outros recursos, tem seus cuidados para proteger aquele 'capital inicial',
aquela acumulação primitiva de saúde que daria sustentação ao corpo. Ela está mais
vinculada a uma visão global, que inclui lazer, cuidados corporais, assistência aos
sofrimentos emocionais, potencialização do espaço e do tempo de vida. Os cui-
dados médicos para a classe dominante incluem um leque de possibilidades que
não estão disponíveis para outros grupos.
A classe dominante está mais preocupada em analisar o modo de vida en-
quanto opressor por si mesmo, sem sujeitos: "Estamos numa sociedade na qual a
violência, o ambiente poluído, as relações estressantes não têm jeito, os conflitos são
muitos, nós somos vítimas". É como se houvesse algo externo prejudicando, mas
algo que não tivesse solução.
A doença como metáfora

Gostaria de reforçar que a concepção de doença (não de saúde) observada


na classe dominante, bem como a maneira de tratá-la, é a mesma que se aplica à
classe trabalhadora. É a doença biomédica, localizada nos órgãos e, particularmente,
aquela que busca mensagens infracorporais. Penso que a forma mais concreta dessa
'ideologia da doença' se expressa por meio das chamadas 'doenças-metáforas', que
simbolizam fortemente o tipo de sociedade em que ocorrem, inclusive pela falsa
idéia de que elas ultrapassam a questão de classe. A Aids, o câncer e, nas sociedades
mais antigas, a sífilis são doenças que, para a sociedade, atingiram indiscriminada-
mente todas as classes. Não é bem verdade, mas, como elas alcançam também a
classe dominante, tornam-se muito chocantes para a sociedade, que imediatamente
reage frente a elas. Numa perspectiva sociológica, elas apareceriam como uma
espécie de anomalias sociais e indicariam desordens, desvios, devassidão, limite e
incapacidade do ser humano diante do mal. São doenças que remetem à morte,
e, diante delas, a sociedade reflete sobre o seu próprio desaparecimento. Isso se
expressa de forma muito particular nas teorias milenaristas e nas religiões e
crenças populares.
Segundo Sontag (1984), "essas doenças-metáforas fazem com que nos en-
contremos com a nossa concepção arcaica e moderna de mal". Trememos diante
delas porque assinalariam um limite humano, nos colocariam o desafio da própria
capacidade de sobrevivência. São, portanto, metáforas da sociedade, metáforas
muito fortes de tudo aquilo que, também individualmente, se acha colocado
para nós. Para o sistema médico, em especial, elas também expõem o desafio e
o limite de suas potencialidades. Contraditoriamente, porém, ao mesmo tempo
em que se depara com o limite, o sistema médico dominante reforça uma
ideologia muito própria, que é a de vencer a doença. Essa sensação de onipotência
é uma concepção do médico em relação à sua função e em relação à saúde e
doença na sociedade. Ou seja, ante o desafio, a corporação reafirma a ideologia de
que um dia a morte será vencida.
O que é interessante em relação a essas doenças-metáforas é que elas se con-
trapõem a doenças muito próprias das populações trabalhadoras e de baixa renda.
Sabemos que hoje, no Brasil, a Aids mata muito menos que a fome, pois a mortali-
dade infantil, tendo a desnutrição como causa associada, é muito grande. Por ano,
são registrados 650 mil novos casos de malária, 250 mil novos casos de hanseníase,
a desnutrição ameaça a vida de cerca de trinta por cento das crianças brasileiras.
Mais de um milhão de acidentes de trabalho e doenças profissionais atingem os
brasileiros anualmente, com cerca de cinco mil mortes por essa causa. No entanto,
elas não mobilizam, não são contempladas por nenhum discurso político em favor
da saúde.
A contradição é que a doença, enquanto expressão das condições adversas
de vida e trabalho, é discriminada inclusive pelo próprio sistema médico, que se
abstém de enfrentá-la. As enfermidades próprias do trabalho, da desnutrição, da
fome, que atingem desde as camadas mais pobres até o operariado, ficam de certa
forma subsumidas no quadro geral de preocupações da sociedade.
Recordo que, num curso de especialização ministrado no Acre, deparei-me
com um mural de informações repleto de dados sobre Aids, embora a incidência da
doença naquele estado fosse nula na época. Um dos exercícios realizado no curso
foi estabelecer um quadro epidemiológico da região, ainda que de modo superficial.
No trabalho, foi observado o elevado número de acidentes de trânsito e a altíssima
incidência de malária. Diferentemente da Aids, esses agravos à saúde não haviam
recebido nenhum destaque.
Nosso imaginário social é marcado por essas doenças que aparecem de forma
muito gritante, fazendo com que sejam encaradas como prioritárias, mesmo não
constituindo um problema local, isto é, uma situação de fato.

A concepção de saúde-doença das camadas populares

Com relação às camadas populares (consideradas aqui como o conjunto da


população de baixa renda), a concepção de saúde e doença, de acordo com o ex-
posto anteriormente sobre representação social, é contraditória. Numa primeira
instância, ela também assume a questão da produção. Um estudo que realizei junto
a seis favelas do Rio de Janeiro sobre representações sociais, saúde e doença de-
monstrou que os moradores entrevistados expressavam a concepção dominante
nesse campo, ou seja, doença como impossibilidade de trabalhar, de realizar os
afazeres rotineiros e cotidianos.
As pessoas diziam que, quando ficam "perrengues" e não conseguem trabalhar,
" a gente fica quieto, fica parado", E, se perguntadas quando percebem que uma
criança está doente, a reflexão é mais ou menos na mesma linha: pela falta de ativi-
dade, pelo fato de a criança ficar quieta, calada, parar de brincar. A representação
social de saúde e doença, portanto, está muito ligada à atividade física e à capaci-
dade para trabalhar.
Essa equivalência da doença ao não-trabalho ou à não-atividade não é natu-
ral, mas socialmente construída de acordo com a ideologia de que nosso corpo é
feito para produzir. Produção essa que, para a classe trabalhadora, tem um valor es-
tipulado sob a forma de salário. É uma equivalência construída com base na reali-
dade social, pelo modo de produção vigente. Os trabalhadores sabem disso na
própria carne: se não trabalham, não têm o que comer. Saúde, doença e trabalho
constituem, portanto, uma interdependente e cotidiana relação, que pode ser
traduzida pela própria concepção da vida.
A classe dominante possui uma dissimetria em relação à linguagem médica.
Não sabe, nem tem necessidade e capacidade para conhecer termos médicos. Mas,
se uma enfermeira, por exemplo, 'traduz' determinado vocábulo técnico em lin-
guagem coloquial, qualquer membro da classe média ou das elites é capaz de en-
tender do que se está falando, porque a visão de mundo é semelhante.
Essa dissimetria da linguagem pode ser considerada para os estratos da classe
dominante, mas, para a classe trabalhadora, não se resume apenas ao problema de
linguagem. Há uma oposição de valores que está muito mais ligada à categoria de
vida, à própria expressão que a classe possui de saúde e doença.
Ao mesmo tempo em que a classe trabalhadora usa a não-atividade para falar
de doença, ela utiliza, ainda que erroneamente, expressões anátomo-fisiológicas
para falar sobre o assunto, de certa maneira copiando o discurso médico. Sabe
nome de remédio, repete nome de doenças e reinterpreta diagnósticos feitos pelo
médico. Isso já foi observado e pesquisado também por Boltanski na França (1984).
Por outro lado, essa classe tem um outro código de leitura de seu corpo, de seus
valores, de sua vida, e isso coloca os médicos em xeque. Sobretudo porque a
doença é explicada por meio de condições existenciais ou, às vezes, de inter-
venções sobrenaturais. Na verdade, quando está falando de doença, a população
está se referindo a um conjunto de situações infelizes na sua vida, enquanto ao
médico interessam, para diagnóstico, os sintomas que configurem a doença en-
quanto ente biofisiológico.
Há, pois, duas concepções em jogo: uma hegemonica, a médica; a outra,
que vem tentando se expressar. Muitas vezes, os médicos vão dizer: "É preciso edu-
car a população para, pelo menos, entender e saber tratar as doenças". Mas não
basta educar a população neste sentido de intervenção. É preciso entender como
ela vê a questão, qual o seu código, sem perder de vista que nas concepções sociais
de saúde e doença existe bom senso tanto da parte do médico quanto da popu-
lação. Seria importante para o médico perceber o grau de bom senso contido nas
queixas do paciente, porque esse discurso diferenciado é uma linguagem de uma
classe que expressa conflitos reais, que se forma nas condições de vida e que con-
densa vários tipos de experiências. É agir de maneira preconceituosa considerar que
a classe trabalhadora não sabe explicar sua doença e saúde. Sua linguagem própria
reflete o saber da experiência e, inclusive, contém muitos elementos do esquema
médico dominante. A população pobre que vai aos centros de saúde, aos hospitais,
desconcerta o médico, porque questiona o seu saber, relativiza-o e o combina com
muitas outras crenças e práticas. Desconcerta-o também porque traz para o campo,
dito científico, a eficácia simbólica já tratada e creditada pela antropologia (Lévy-
Strauss, 1970: Douglas, 1970; Minayo, 1994).
Para essa classe, o médico é um intermediário de suas carências, e a passivi-
dade diante do sistema médico é uma forma de resistência. A mãe que leva o filho
ao médico freqüentemente está dizendo alguma coisa e é preciso entender isso.
Ao solicitar um remédio, ela também está expressando o seu pedido de socorro
e de mediação. É dessa forma que exprime suas necessidades, insegurança e im-
potência. Mas, por outro lado, ela busca outros meios, como a 'medicina caseira'
e as práticas terapêuticas religiosas. Para a população pobre, não existe a menor
contradição entre ir ao médico e, logo em seguida, procurar uma rezadeira. Ela
acredita no médico, mas não totalmente, assim como também não acredita total-
mente no padre ou na rezadeira. Ela combina as formas, porque esses 'espe-
cialistas' lhe dão respostas diferentes.
O que se observa nessas camadas populares é que elas não restringem a
doença ao ponto de vista biomédico, mas têm uma concepção de saúde e doença
muito mais ampla. Relacionam a questão da infelicidade, do modo de viver, com a
ecologia ao se referirem ao ar impuro, à vala negra, às mudanças no tempo, assim
como ao mau-olhado, à 'coisa feita' ou a outras interferências. Elas reclamam da ali-
mentação, do salário, das condições de trabalho, e assim todo o chamado conceito
ampliado de saúde transparece na fala de qualquer pessoa dos estratos populares.

A saúde coletiva enquanto conceito contraditório

O conceito de saúde coletiva (que hoje fundamenta a própria política de


saúde) enfoca a saúde sob um prisma abrangente, que inclui trabalho, lazer, ali-
mentação, condições de vida, indo ao encontro tanto da fala experiencial,
vivida, da classe trabalhadora, como da fala mais organizada dos sindicatos, que
expressam o pensamento mais elaborado, via intelectuais orgânicos dessa classe.
O que se percebe no movimento da saúde coletiva é o seu caráter minoritário, de
resistência, diante da visão medicalizada que entende o setor como o conjunto
de instituições e práticas curativas, haja vista a baixa remuneração dos que atuam
nos programas preventivos e de atenção básica e a alta proporção do orçamento
voltada para as atividades curativas.
É importante observar, porém, que, do mesmo modo, o modelo filosófico da
saúde coletiva apenas toca na questão cultural das representações e da fala dos
diferentes grupos sociais para considerá-las integrantes do paradigma de saúde e
doença. Essas concepções, formadas pela experiência de vida, são parte do
esquema que produz a cura dentro da realidade social.
As camadas populares invocam Deus na saúde e na doença, mas isso não
significa que elas expliquem a doença apenas por meio da religião. Não existe essa
oposição. A etiologia popular explica saúde e doença por condições de vida, por
questões emocionais, salariais, religiosas. Quando fala em Deus, é sua forma de
chamar a atenção para alguma coisa que o sistema de saúde não capta. Isto porque
a doença é algo mais integral, dá em gente, e gente não é só corpo, gente é muito
mais que isso: é parte de um ecossistema integrado e um sistema social carregado
de contradições e possíveis consensos (Minayo, 1988).
O grande desafio da saúde coletiva é essa concepção mais abrangente que
integra as políticas sociais, as condições de vida e também a sensibilidade para a ri-
queza e a diversidade cultural.

Referências Bibliográficas

Boltanski, L. As Classes Sociais e o Corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1984.


Douglas, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1970.
Herslish, C. Santé et Maladie. Paris: La Haye Mouton, 1983.
Lévy-Strauss, C. Magia e religião. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1970.
Marx, Κ. A ideologia alemã. In: Obras Escolhidas. 2.ed. São Paulo: Alfa e Ômega, 1980.
Minayo, M. C . S. Uma concepção popular da etiologia. Cadernos de Saúde Pública,
4(4):363-381,1988.
Minayo, M. C . S. Representações da cura no catolicismo popular. In: Alves, P. C. &
Minayo, M. C. S. (Orgs.) Saúde e Doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro:
Ed. Fiocruz, 1994.
Sontag, S. A Doença como Metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
Thomaz, W. & Znarniecki, C. The polish peasant in Europa and America. In: Sociological
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Weber, Μ. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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