Parte 1 - Introdução Ao Kemetismo

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PARTE 1: INTRODUÇÃO AO KEMETISMO

 
Egiptosofia: um pouco sobre Kemet
De acordo com o historiador grego Heródoto, os antigos egípcios eram
“escrupulosos além de toda a medida em matéria de religião.” Não há dúvidas sobre
o enorme débito que nós ocidentais temos em relação a esta antiga civilização, a
qual poderíamos considerar como uma das bases filosóficas, culturais e ontológicas
da nossa atual sociedade. E em se tratando de abordar especificamente o campo de
estudo do simbolismo e do metafísico que, ainda presentes, se preservam no
Ocidente, como um fio de Ariadne, conservando intacta a continuidade
“subterrânea” dessa influência desse povo “misterioso” e fascinante.

Sinesio, filósofo neoplatonista líbio, que morou muitos anos da sua vida em
Alexandria; discípulo de Hipátia (a qual considerava-a carinhosamente como sua
mãe), antes de tornar-se bispo gnóstico, escreveu que “as origens da nossa época
atual encontram-se no próprio Egito.”

Com a chegada da “egitomania”, fenômeno conhecido no Ocidente que surgiu na


virada do século XX pelo crescente e midiático interesse dos europeus e
estadunidenses sobre a cultura egípcia, a mídia, inspirada pelas novas descobertas
arqueológicas de tumbas e múmias, abraçava essa campanha da egiptomania,
produzindo um verdadeiro impacto no mundo ocidental. Poderíamos rapidamente
sincronizar alguns elementos dessa influência egípcia no desenvolvimento posterior
do cristianismo e, naturalmente, também no nosso cotidiano. Margaret Bakos,
egiptóloga brasileira que em seu livro “O Egito no Brasil”, apresenta a ideia de como
a influência egípcia no cotidiano brasileiro, a partir do fenômeno da egiptomania,
traz consigo uma re-elaboração e re-interpretação de elementos da antiga civilização
ao longo dos séculos, onde aparece em diferentes contextos. Além dos símbolos
egípcios no uso de logotipos, marcos comemorativos, arquiteturas, etc., também
outro fator importante presente se encontra no imaginário popular, lugar do
inconsciente, do senso comum sempre vivo nas massas. São vistos nos fenômenos
de vida (batismo), em ritos de passagem, e na morte (funerais), na literatura, no
cinema, na música e na dança, além do boom da Nova Era. Assim, Kemet é um
lugar ainda muito vivo no nosso inconsciente coletivo e que perdurará por muitos
séculos.

No século XIX, com o boom esotérico de dezenas de ordens iniciáticas surgindo no


continente europeu, oriundas de tradições que mesclavam taoísmo, tantrismo,
xamanismo, gnose, mistérios helênicos, cabalistas, tinham como seu principal foco,
as tradições herméticas do Antigo Egito. Porém, se observarmos bem de perto, a
tradição egípcia permanece ainda hoje, mesmo sob o véu oculto das inúmeras
subtradições ocidentais, como a Qabbalah esotérica, a Alquimia, o Hermetismo, o
Gnosticismo, as ordens co-maçônicas, Rosacrucianismo, Sufismo e tradições
neopagãs. Poderia-se, certamente, questionar sobre a origem de cada uma destas,
no entanto, refletidas em suas essências primordiais, direta ou indiretamente estão
relacionadas de alguma forma com o pensamento egípcio tradicional.
Assim, portanto, a egitomania acabou servindo por um lado, no campo de
exploração comercial e, por outro, no principal canal de acesso aos mistérios
esotéricos - por mais que ambos os campos fossem, de alguma forma, exagerados,
distorcidos e seletivos nas suas abordagens. Este impacto foi significativo para a
construção da imaginação cultural da grande maioria das culturas ocidentais.

Podemos perceber, por exemplo, que este fenômeno da egitomania está presente
até os dias atuais sob diversas formas tal como na literatura, arquitetura, arte,
cinema, política e até na religião. Muitos elementos da cultura egípcia acabaram se
tornando, ou melhor, transformaram-se, em outra representação simbólica, com
ícones característicos e emblemáticos. Damos como exemplo, a significativa imagem
da múmia - sugerindo o estranho interesse dos estadunidenses pelos mortos-vivos -,
as tumbas e sarcófagos, que fazem alusão direta, única e exclusivamente aos ricos
tesouros e bens materiais; as pirâmides, no sentido de reforçar essa ideia central da
vida além-túmulo, o que poderíamos chamar de f​ uturocentrismo​; sem contar as
tramas dinásticas de faraós, reis e rainhas, que recordam em muito as histórias de
bastidores das atuais cortes da elite; entre outros.

Embora a antiga civilização egípcia tenha “desaparecido” na linha do tempo, os


“antigos mistérios”, ao que parece, foram na verdade, ocultados sob finas camadas
de véus, sobrepostos sobre cada uma das tradições que ali no Egito sobrevieram,
como gregas, romanas, persas, gnósticas, neoplatônicas, cabalistas e sufis. Tais
escolas de conhecimento hermético resistiram ao tempo, assim como as pirâmides e
seus textos, não sendo apagadas, mas codificadas à posteridade. Esse eclipse da
tradição hermética foi, deveras, necessário para a sua própria sobrevivência. Apesar
de os mistérios terem sofrido um processo de fragmentação, em razão do novo
fenômeno da ocidentalização, podemos vislumbrar o seu conteúdo essencial, como
se sopra o pó de um velho livro guardado há milênios. A sua essência permanece
viva e latente até os dias de hoje. Seus inimigos implacáveis, os “homens de negro”
como os chama Jacques Bergier, nada podem fazer, quer gostem ou não.

Resta-nos dar uma resposta a uma indagação que um estudante incauto faria a si
mesmo: por que estudar velhas tradições, escondidas e sopradas pelos ventos do
deserto? Qual é o propósito de abarcar um estudo sistemático de uma civilização
que sequer sua língua é falada atualmente? Talvez sim, estiver certo tal
questionamento...

Por várias razões, há de supor que esta tradição, assim como tantas outras, sequer
registradas nos anais da pré-história humana, fosse importante para perdermos
tempo com seus estudos. Poderíamos apenas citá-la como já bem os fazem nos
livros escolares de História, e nada mais. Porém, as atuais condições morais,
históricas, sociais, culturais, nos permitem reavaliar determinadas passagens e
rediscutir alguns valores que parecem terem permanecido esquecidos ao longo do
trajeto da experiência humana coletiva. Como a grande massa de conteúdo
significativo da cultura egípcia foi sistematizada e registrada ao longo de seus mais
longínquos milênios da nossa própria história, por que não buscarmos ali uma fonte,
ou o fio de Ariadne perdido no tempo? Não será válida esta procura pelo verdadeiro
tesouro perdido - não aqueles outros tesouros que os aventureiros sempre buscaram
-, que também não deixaria de ser, uma grande busca pela verdade? Não disse o
historiador uruguaio Eduardo Galeano que o mundo é construído por histórias, e que
estas histórias são contadas por outras pessoas, multiplicando-as? Se não
conhecermos o nosso passado, com certeza não poderemos pensar num futuro
melhor.

Agora, se ignoramos o passado, de forma proposital, na tentativa de camuflar as


origens da nossa civilização atual, o que poderia nos suceder à frente? É o que
parece que estamos fazendo hoje, nos concentrando unicamente numa espécie de
futurocentrismo​. E é essa visão semidistorcida sobre o Antigo Egito que nossos olhos
ocidentais, judaico-cristãos costumam observar quando estudamos povos antigos.
Ignorar o passado também pode representar uma zona de conforto… não querer
saber significa não ter que refletir sobre nada, e por conseguinte, continuar no
mesmo caminho, pois toda mudança gera desconforto.

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