Aula de Livros - Clara Dos Anjos, Lima Barreto

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CLARA DOS ANJOS (LIMA BARRETO)

AULAS DE LIVROS – Prof. Claudio


AUTOR 1- a busca por uma representação da realidade brasileira;
Negro, neto de escravizados pelos dois lados, filho de pai 2- a busca por uma linguagem mais próxima do coloquial.
tipógrafo e mãe professora, Lima Barreto nasceu em 13 de maio de
1881, data que anos mais tarde, em 1888, marcaria a abolição da OBRA
escravatura pela princesa Isabel. Clara dos Anjos” é um romance póstumo do escritor Lima Barreto.
De acordo com a professora titular no Departamento de Atuante na classe do pré-modernismo brasileiro, assim como do
Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), Global scholar realismo-naturalismo, o livro foi concluído em 1922 – ano em que o
na Universidade de Princeton dos Estados Unidos, e curadora autor faleceu – e publicado apenas em 1948. Tendo como cenário o
adjunta do Museu de Artes de São Paulo (MASP), Lilia Schwarcz, subúrbio carioca, a obra é uma feroz e áspera crítica contra o
como uma espécie de pressagio, a coincidência de datas marcou a preconceito social e racial – o qual era grandioso naquela época, e exista
literatura do escritor, afirmadamente negra. “Ele produzia uma até os dias atuais, embora mais discretamente. Com uma narrativa até
literatura negra, não por ser negro, mas por seus personagens serem mesmo exagerada, Lima Barreto conta em “Clara dos Anjos” a estória
negros. Desta forma, ele utiliza todo o tipo de termo para se referir da moça negra e pobre, discriminada como tantas outras iguais a ela
a eles: azeitona escura, azeitona clara, crioulo pardo, crioulo escuro, Brasil a fora.
moreno. Todos passavam por esta aquarela de cores”, disse. O ambiente e a vida das pessoas são retratados com riqueza de
Carioca dos subúrbios, que dizia pertencer ao centro, Lima detalhes para aproximar o leitor da realidade de cada personagem, seus
Barreto viu o preconceito e a discriminação ficarem latentes quando pensamentos, suas inquietações, suas vitórias e frustrações. O realismo-
ingressou na Escola Politécnica, destinada aos filhos das elites naturalismo que influenciava o autor pode transmitir ainda a impressão
brasileira. “A partir deste momento, ele passou a falar mais de que as ações dos personagens são produtos de suas características
frequentemente sobre a discriminação que sofria. Na coluna que hereditárias, do meio e do momento histórico em que vivem, mas deve-
assinava no jornal de estudantes, encontrou espaço para fazer suas se frisar que cabe sempre ao leitor aprofundar-se no livro e tentar
críticas e o manter o seu lugar de fala”, ressaltou. compreender o que o escritor quis transmitir.
“Em suas crônicas, descrevia situações cotidianas e, a todo o O romance narra a história da família de Joaquim dos Anjos,
momento, fazia o jogo de se incluir e se excluir, que expressa a sua carteiro, mestiço, de origem humilde.
subjetividade. Estava sempre em uma situação de urgência e Na casa de Joaquim dos Anjos, conversavam os amigos
desconforto, estava sempre num outro local, e não aquele a que ele Marramaque, padrinho de Clara dos Anjos (filha única de Joaquim) e
gostaria de estar”, completou Lilia, acrescentando que as poucas Lafões. Ao avistar a moça, o padrinho, pergunta-lhe quando se casaria.
imagens existentes de Lima Barreto representam um pouco a ideia Nesse momento, Lafões pergunta se poderia apresentar-lhes Cassi:
de um protagonista sem uma imagem a qual ele se reconhecesse. “um mestre do violão e da modinha”.
Lilia conta que a ideia de loucura - que entrou na vida de Lima Marramaque reage com violência:
com a doença de seu pai e permaneceu até quando ele próprio foi – Você se dá com semelhante pústula? É um sujeito que não pode
internado no manicômio, em 1914 - também esteve relacionada à entrar em casa de família.
humilhação e a invisibilidade. “Em sua primeira internação, foi
identificado como funcionário público, sendo da cor branca, talvez, Joaquim indagou-lhe o motivo:
para associar a cor a sua profissão. Já da segunda vez, em 1918, ele – Eu direi; daqui a pouco; eu direi por quê – fez Marramaque
entra como indigente, da cor parda. transtornado.
Em quatro anos, ele passou de branco para pardo”, comentou.
“Ainda hoje, a cor é uma demonstração muito clara de hierarquia A conversa dos amigos aguçou a curiosidade da moça:
no Brasil, este país que nos divide em cinco cores: branco, preto, Clara afastou-se com a bandeja e as xícaras, cheia de uma forte,
pardo, amarelo, indígena. Essas cores são, na verdade, cores sociais, tenaz e malsã curiosidade.
quanto mais invisíveis, mais escuro ou mais pardo”, criticou.
Personagem ambivalente, ambíguo e contraditório, Lima No segundo capítulo, o leitor é apresentado à figura de Cassi Jones
Barreto também acumulou desafetos, entre eles, o escritor Machado de Azevedo Batista...
de Assis e modelo institucional que defendia. “Penso que não é Filho legítimo de Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de
possível escolher o projeto de Lima ou o de Machado de Assis, pois Azevedo.
são projetos distintos. Lima afirmava que em um país pobre era (…)
preciso fazer uma literatura pobre, uma literatura que lidasse com Um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento,
as especificidades de onde ele morava, as especificidades do povo”, insignificante de rosto e de corpo; (…) mas com os aperfeiçoamentos
explicou Schwarcz. exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas
A última vez que Lima Barreto foi visto, de acordo com relatos, com seu irresistível violão.
foi durante o centenário da independência do Brasil, no Rio de
Janeiro. “Ele não gostou, disse que a mania de patriotada e o Apenas no terceiro capítulo temos uma descrição de Clara. Mulata
estrangeirismo tinham invadido os brasileiros, e foi visto vagando clara, com cabelos lisos...
pelas ruas do Centro da cidade”, disse Lilia. Habituada às musicatas dos pais e dos amigos, crescera cheia de
Para finalizar, Lilia Schwarcz diz que Lima se confunde com a vapores de modinha e enfumaçara sua pequena alma de rapariga
história do Brasil e também com a história de seus personagens: pobre e de cor.
“ele é Clara dos Anjos, Policarpo Quaresma, Isaias Caminha, e
também não é, nesta fronteira porosa entre ficção e não ficção”, Finalmente, Lafões conseguiu convencer Joaquim a aceitar Cassi
explicou. “As histórias de Lima são de muitos brasileiros. São de em sua casa, para a ocasião do aniversário de Clara. Na festa, Cassi foi
famílias negras, afrodescendentes, que foram encontrando frestas e apresentado por Lafões, aos donos da casa e à Clara.
provando que a verdadeira libertação, a verdadeira abolição da Ninguém lhe notou o olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que
escravatura, se fazia pela educação, e não pela letra morta da lei”, deitou para os seios empinados de Clara.
concluiu Schwarcz.
Lima Barreto morreu em 1922, por um colapso cardíaco, Durante a festa, Cassi olhava a todo tempo para Clara.
consequência da bebida. Marramaque. que não gostava do rapaz, também o encarava. Cassi
Lima Barreto é considerado um dos mais importantes autores percebeu e prontamente antipatizou com o velho.
pré-modernistas. Descrever as mazelas sociais sem floreios, num A festa correu bem. Ao final, após todos irem embora, dona
tom preciso e objetivo. Apesar de, em sua época, na ter sido Engrácia, mãe de Clara, pediu ao marido que Cassi não mais fosse a
reconhecido, hoje, sua obra é estudada e valorizada. casa deles. O marido que também não gostara do jeito do rapaz,
Os autores dessa época ainda eram muito influenciados pelas concordou com a esposa.
estéticas anteriores, mas duas inovações devem ser mencionadas: Clara, ouvindo tudo do quarto, “pôs-se, em silêncio, a chorar”.
Cassi retornou à casa de Joaquim, mas não foi tão bem recebido —Então, você não me conhece mais, "seu canaia"? Então você não
como da primeira vez. Cassi decidira, então, eliminar todos os "si" lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você...
obstáculos à sua aproximação de Clara. Decidiu ir à casa de Lafões Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira
averiguar o porquê da implicância com ele. Confirmou a suspeita de vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de
que a implicância partia do padrinho de Clara, Marramaque. Cassi casa em adiantado estado de gravidez.
tratou de se justificar, dizendo que a implicância era sem motivo,
Lafões, por sua vez, afirmou que o velho implicava, pois era poeta e O filho que a negra tivera estava preso, com menos de dez anos e a
tinha natural aversão aos modistas. jovem vivia largada.
Não era apenas por Marrameque que Cassi era visto como má Cassi se viu acuado e amedrontado. O dono da taverna, entretanto,
companhia. Sua família era ciente de seus mal feitos. Tratavam-no com acabou com a confusão e dissipou a multidão. Cassi sentiu-se aliviado
desprezo e indiferença. Sobre ele, diz o pai: por poder finalmente partir:
—Você queria, Augusto, que eu, chefe de família, que prezo a Logo que se viu livre do perigo, Cassi respirou, compôs a
honra das filhas dos outros como a das minhas, deixasse semelhante fisionomia, apalpou o dinheiro na algibeira e fez de si para si:
miserável sentar-se ao meu lado? Se não o pus de todo para a rua, foi —Acontece cada uma! Para que havia de dar esta negra...
devido à mãe Felizmente, foi em lugar que ninguém me conhece; se fosse em outro
qualquer — que escândalo! Os jornais noticiariam e... Não passo mais
O jovem modinheiro era acusado de desvirtuar jovens donzelas e por ali e ela que fosse para o diabo! ... Fico com o dinheiro em casa.
depois abandoná-las a sua própria sorte. Em um dos casos, a mãe de Nenhum pensamento lhe atravessou a cabeça, considerando que
uma das jovens se matara após saber da desgraça com sua filha. um seu filho, o primeiro, já conhecia a detenção...
Cassi vivia com medo do pai e evitava ficar em casa. Mal
amanhecia e ia para rua. Não trabalhava e apenas sustentava-se É no capítulo X que Clara descobre que fora abandonada por Cassi.
vendendo galos para rinhas. Após vários dias sem visita-la, a jovem começa a desconfiar que o
Todos os esforços e atenções de Cassi voltavam-se para encontrar namorado a deixara após desgraçá-la. A confirmação veio, no capítulo
meios de seduzir suas vítimas. Jovens suburbanas pouco instruídas as XI, quando Praxedes trouxe a notícia da morte de Menezes:
quais era muito fácil enganar. Clara era a mais nova pretensão do rapaz —Vossas Excelências hão de me perdoar. Não podia deixar de vir
que procurava uma forma de se aproximar da jovem, apesar do até aqui. Sabia de dois amigos íntimos do doutor Meneses; um era o
obstáculo criado pela antipatia do padrinho por ele. Senhor Cassi, mas este está fora...
Clara, ingênua, e de pouco convívio social, via em Cassi alguém Clara espantou-se:
capaz de amá-la e no padrinho, sempre disposto a contar um mal-feito —Está fora!
do rapaz, um inimigo. —Ué, Clara! — fez Dona Engrácia, — Que espanto!
Cassi arrumou um jeito de entrar em contato com Clara: por meio —Não, porque ainda há dias "Seu" Meneses disse a papai que
de um dentista, alcoólatra e muito endividado, que tratava de Clara. estivera com ele — fez Clara disfarçando.
Apesar de contrariado (pois também sabia da fama de Cassi), o pobre —Deve ser há algum tempo, minha senhora — aventou Praxedes,
dentista não teve como recusar e acabou entregando a carta do jovem à com toda a delicadeza de voz; — porque há bem quinze dias que
Clara. A jovem acabou confessando à dona Margarida: embarcou para São Paulo, em Cascadura. Eu até me despedi dele...
—Mas este sujeito é um tipo indigno.
—Não, para mim. Estou crente que... Clara, logo que pode, correu para o quarto para chorar: perguntava-
—Dizem tão mal dele... se como faria para esconder a gravidez agora que Cassi a abandonara.
—É porque ele se deixou apanhar, enquanto outros há por aí que... Decidiu por fim pedir um abortivo a dona Margarida.
Ele confessa que está arrependido do que fez, e agora quer se empregar A alemã pressionou a jovem que acabou confessando o que se
e casar-se comigo. passara. Comunicaram à mãe, dona Engracia e as três decidiram que
Dona Margarida e Clara iriam à casa de Cassi.
Quando a mãe e o pai souberam, trataram de pedir conselho a Ao conversarem com Salustiana, mãe de Cassi, foram humilhadas
Marramaque. O velho mais uma vez se posicionou contra Cassi. Clara quando disseram que Cassi deveria casar-se com clara:
revoltou-se contra o padrinho e relatou ao namorado tudo o que se —Ora, vejam vocês, só! É possível? É possível admitir-se meu filho
passara. casado com esta...
Tempo depois, o velho foi misteriosamente assassinado, espancado
na rua. Ao saber da morte do padrinho, Clara desesperou-se. Logo Pouco depois, o pai de Cassi entrou em casa. Clara correu a ele
passou a desconfiar de Cassi: pedindo-lhe ajuda:
Clara, logo que soube do assassínio do padrinho, ficou fora de si. —Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma
Lembrou-se das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho, nas espécie de autoridade sobre "ele"... Já o amaldiçoei... Demais, "ele"
cartas que lhe escrevia (…). Por aí e por outras pequenas fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma
circunstâncias, atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e como que das suas ignóbeis perversidades... (…) Não te posso fazer nada...
se julgava também sua cúmplice. Veio-lhe um medo daquele cantador Perdoa-me, minha filha! Cria teu filho e me procura se...
meloso, dengoso (…). Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a
cadeira e os olhos se foram tornando inchados.
Certo dia, Cassi resolve vender todos os seus galos de briga e
depositar o dinheiro na caixa econômica. Quando estava no centro da Voltando para casa, Clara sentia-se humilhada, sentia-se
cidade, na Rua do Ouvidor, Cassi sentiu-se diminuído diante de jovens diminuída.
tão mais bem vestidos, instruídos e inteligentes que eles. Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona
Na "cidade", como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha
inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes e da mãe.
a conversar sobre coisas de que ele não entendia e a trocar pilhérias; Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara
em face da sofreguidão com que liam os placards dos jornais, tratando e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento
de assuntos cuja importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não de desespero:
suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses —Mamãe! Mamãe!
pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o —Que é minha filha?
nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que —Nós não somos nada nesta vida.
lhe pareciam rainhas e princesas (…)
ANÁLISE
No centro, Cassi deparou-se com uma negra desgrenhada e suja que Concluído em 1922, ano da morte de Lima Barreto, o romance
o acusava, que saíra de uma taverna: Clara dos Anjos é uma denúncia áspera do preconceito racial e
social, vivenciado por uma jovem mulher do subúrbio carioca.
O grande historiador e crítico literário Sérgio Buarque de colaborador dos jornais, que os seus companheiros e amigos de
Holanda, já apontava, escrevendo sobre Clara dos Anjos, que é boêmia literária, poetas e literatos, improvisavam do pé para a
muito difícil “escrever sobre os livros de Lima Barreto sem incorrer mão, quase sempre sem dinheiro para um terno novo.
um pouco no pecado do biografismo”. Poucos escritores brasileiros Envelhecendo e ficando semi-inutilizado, depois de dois ataques de
foram tão obsessivos na investigação da temática do preconceito apoplexia, foi obrigado a aceitar aquele humilde lugar de contínuo,
quanto Lima Barreto. Mulato, nasceu em 1881, mesmo ano em que para ter com que viver. Os seus méritos e saber, porém, não
o também mulato Machado de Assis introduzia o Realismo na estavam muito acima do cargo. Aprendera muita coisa de ouvido e,
literatura nacional com a publicação de Memórias Póstumas de de ouvido, falava de muitas delas. (…)
Brás Cubas e Aluísio Azevedo inaugurava a Naturalismo no Brasil Tendo vivido em rodas de gente fina — como já vimos — -, e
com o romance O Mulato. Não são apenas coincidências. A questão não pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo sonhado
do preconceito contra a mestiçagem, já denunciada no obra de outro destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto o seu
Aluísio Azevedo, será fundamental no pensamento nacional entre a aleijamento — Marramaque era naturalmente azedo e
implantação do Naturalismo e a do Modernismo, em 1922, ano da oposicionista."
morte de Lima Barreto. Até por razões pessoais, e por viver
exatamente nesse período, sempre retratando-o de forma crítica e Lima Barreto denuncia, na figura de Marramaque, a influência
até ressentida, o autor de Clara dos Anjos seria o escritor que mais das rodas literárias, grupos fechados que abundam no Brasil; a
sentiria (na pele) o preconceito e o retrataria com tintas mais ácidas cultura da oralidade, dos que aprendem “muita coisa de ouvido e,
na nossa literatura. É ainda Sérgio Buarque de Holanda que melhor de ouvido, falava de muitas delas”, tendo um cultura superficial, de
resume como essa temática se apresenta em Clara dos Anjos: verniz; e o azedume dos que não conseguem brilhar nas “rodas de
“Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma pobre mulata, gente fina”.
filha de um carteiro de subúrbio, que apesar das cautelas excessivas
da família, é iludida, seduzida e, como tantas outras, desprezada, CLARA: A “NATUREZA ELEMENTAR”
enfim, por um rapaz de condição social menos humilde do que a Clara era a segunda filha do casal, “o único filho
sua. É uma estória onde se tenta pintar em cores ásperas o drama de sobrevivente…os demais…haviam morrido.” Tinha dezessete
tantas outras raparigas da mesma cor e do mesmo ambiente. O anos, era ingênua e fora criada “com muito desvelo, recato e
romancista procurou fazer de sua personagem uma figura apagada, carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida,
de natureza "amorfa e pastosa", como se nela quisesse resumir a uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a
fatalidade que persegue tantas criaturas de sua casta: "A priori", diz, Clara bordados e costuras.”
"estão condenadas, e tudo e todos parecem condenar os seus O autor reitera sempre a personalidade frágil da moça – sua
esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social." É “alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer
claro que os traços singulares, capazes de formar um verdadeiro perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a
"caráter" romanesco, dando-lhe relevo próprio e nitidez hão de animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua
esbater-se aqui para melhor se ajustarem à regra genérica. E Clara cor” – como resultado de sua educação reclusa e “temperada” pelas
dos Anjos torna-se, assim, menos uma personagem do que um modinhas:
argumento vivo e um elemento para a denúncia.” “Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos
Assim, Clara dos Anjos é protagonista e narradora da estória. fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes
Trata-se de uma jovem ingênua, frágil e mulata. Seu pai, Joaquim disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer;
dos Anjos, é um carteiro honesto, de bom coração, mas pobre. Nada limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus
disso seria problema ou empecilho para a felicidade da família, se afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda
Clara não se envolvesse com o mau caráter Cassi Jones. Cassi é um entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas
rapaz branco, malfeitor e ignorante, que usa o sobrenome por por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da
supostamente ter descendido de um nobre inglês. Para se ter ideia morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado
da condição do rapaz, seu próprio pai havia cortado relações com de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.”
ele por causa das muitas aventuras que acabaram com vários
casamentos e desonraram diversas donzelas – em um dos casos, a Essa “natureza elementar” de Clara se traduzia na ausência de
mãe de uma das moças se suicidou, e seu marido passou a distribuir ambição em melhorar seu modo de vida ou condição social por
anonimamente dossiês sobre Cassi pelo Rio de Janeiro. meio do trabalho ou do estudo:
“Nem a relativa independência que o ensino da música e piano
MARRAMEQUE E AS RODAS LITERÁRIAS lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O
Poeta modesto, semiparalisado, Marramaque frequentara uma seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser
pequena roda de boêmios e literatos e dizia ter conhecido Paula Nei ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir
e ser amigo pessoal de Luís Murat. função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. (…)
A descrição dessa figura revela a crítica de Lima Barreto a Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo
vários aspectos da vida literária brasileira: de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma
"Embora atualmente fosse um simples contínuo de ministério, moça ou a uma mulher.”
em que não fazia o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido
a seu estado de invalidez, de semi-aleijado e semiparalítico do lado A descrição de Clara reforça os malefícios da formação
esquerdo, tinha, entretanto, pertencido a uma modesta roda de machista, superprotetora, repressiva e limitadora reservada às
boêmios literatos e poetas, na qual, a par da poesia e de coisas de mulheres na nossa sociedade. Ecoa, portanto, a descrição de Luísa,
literatura, se discutia muita política, hábito que lhe ficou. (…) do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, ou a Ana Rosa
A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns eram de O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Todas são, na verdade,
estimáveis. Mesmo alguns de rodas mais cotadas procuravam a herdeiras diretas da figura de formação débil, educada nas leituras
dele. dos romances românticos, que é Emma Bovary, criada por Gustave
Quando narrava episódios dessa parte de sua vida, tinha Flaubert no romance inaugural do Realismo, Madame
grande garbo e orgulho em dizer que havia conhecido Paula Nei e Bovary (1857).
se dava com Luís Murat. Não mentia, enquanto não confessasse a
todos em que qualidade fizera parte do grupo literário. Os que o CASSI JONES: O CORRUPTOR
conheciam, daquela época, não ocultavam o título com que Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim passa a receber
partilhava a honra de ser membro de um cenáculo poético. Tendo em casa o pretendente de Clara, Cassi Jones de Azevedo, que
tentado versejar, o seu bom senso e a integridade de seu caráter pertencia a uma posição social melhor. Assim o descreve Lima
fizeram-lhe ver logo que não dava para a coisa. Abandonou e Barreto:
cultivou as charadas, os logogrifos, etc. Ficou sendo um hábil “Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco,
charadista e, como tal, figurava quase sempre como redator ou sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse
conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também os animais da predileção de Cassi, os galos de briga, são
por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as apresentados com visível má vontade: ‘horripilantes galináceos’ de
melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de ‘ferocidade repugnante’.”
capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do
Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas O DESFECHO
roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Convencida pela
descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da vizinha, dona Margarida, que procurara na tentativa de conseguir
Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada um empréstimo e fazer um aborto, ela confessa o que está
ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo acontecendo à sua mãe. É levada a procurar a família de Cassi e
ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito pedir “reparação do dano”. A mãe do rapaz humilha Clara,
exatamente ao meio — a famosa "pastinha". Não usava topete, nem mostrando-se profundamente ofendida porque uma negra quer se
bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os casar com seu filho. Clara “agora é que tinha a noção exata da sua
aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente
encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.” nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu
algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as
O padrinho Marramaque, que já lhe conhecia a fama, tenta outras; era muito menos no conceito de todos.”
afastá-lo de Clara quando percebe seu interesse. Na festa de O autor representa, na figura de Clara e no seu drama, a
aniversário da afilhada, provoca Cassi e deixa claro que ele não é condição social da mulher, pobre e negra, geração após geração. No
bem-vindo ali e que seria melhor que se retirasse. Cassi vinga-se de final do romance, consciente e lúcida, Clara reflete sobre a sua
modo violento: junta-se a um capanga e ambos assassinam situação:
Marramaque. Clara, que já suspeitava das ameaças do rapaz ao “O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar
padrinho, passa a temê-lo, mas ele consegue seduzi-la, o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona
principalmente ao confessar seu crime, dizendo que matou por amor Margarida, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se
a ela. contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra
Malandro e perigoso, Cassi já havia se envolvido em a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às
problemas com a justiça antes, mas sempre fora acobertado pela sua outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o
família, especialmente sua mãe, que não queria que fosse preso. admitiam...”
Assim, conseguia subornar a polícia e continuar impune, mesmo
depois de ter levado a mãe de uma de suas vítimas ao suicídio e da E, na cena final, ao relatar o que se passara na casa da família
perseguição da imprensa. de Cassi Jones para a sua mãe, conclui, em desespero, como se
O exagero narrativo de Lima Barreto torna-se patente ao falasse em nome dela, da mãe e de todas as mulheres em iguais
descrever a figura do sedutor. Branco, sardento e de cabelos claros, condições: “— Nós não somos nada nesta vida.”
é a antítese de Clara. Como o apontou Lúcia Miguel Pereira: “Até

EXERCÍCIOS
01. (UFPR) No romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto, o narrador a) Clara dos Anjos é um romance memorialístico, no qual os
tece considerações generalizantes a respeito da sociedade de sua acontecimentos rememorados permitem compreender a origem da
época, ao mesmo tempo em que narra a vida da protagonista, de sua família da protagonista; Fogo Morto é um romance intimista que dá a
família e a malandragem de Cassi Jones. conhecer a vida de um núcleo familiar aristocrático ao longo da
A respeito de aspectos da construção de Clara ou de fatos de que ela década de 1930.
participa, assinale a alternativa correta. b) Os pontos de vista narrativos desses romances diferem um do
outro, porque, em Clara dos Anjos, o narrador participa da trama
a) A afirmação “é próprio do nosso pequeno povo fazer uma como personagem, narrando acontecimentos de que participou,
extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e enquanto, em Fogo Morto, o narrador é onisciente, dedicando-se a
socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas investigar a alma dos personagens.
agruras de sua existência” (capítulo I) explica a frequência de Clara a c) Nos dois romances, as mulheres pobres não recebem educação
igrejas e templos de diferentes religiões. formal e são submetidas a uma rotina de violência familiar. Seu
b) A frase “A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por destino é o enlouquecimento, como acontece com Marta e Neném em
qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, Fogo Morto, ou a insubmissão, como acontece com Clara dos Anjos,
especialmente as mulheres” (capítulo VII) alude às provocações que que abandona a casa dos pais.
Clara desferia contra suas vizinhas. d) Nos dois romances, a cultura popular aparece representada pela
c) A ponderação “Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem música, que agrada a diferentes personagens: em Clara dos Anjos, a
que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, modinha aproxima Cassi Jones da família de Clara; em Fogo Morto,
para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o as histórias cantadas por José Passarinho ecoam o sofrimento dos
emprego que demos a nossa existência” (capítulo VIII) refere-se à personagens.
cena da morte de Clara. e) Nos dois romances, observa-se a geografia suburbana, com favelas
d) O comentário “O seu ideal na vida não era adquirir uma construídas em torno da linha férrea, com aglomerados humanos
personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro miscigenados e também com o subemprego dos personagens, como o
marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, carteiro Joaquim dos Anjos e o seleiro José Amaro.
quando casada. Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida”
(capítulo VIII) prenuncia as dificuldades que Clara enfrentou no seu 03. (UFU)
casamento com Cassi. A muito custo, devido às insistências de Dona Margarida, consentira
e) A análise “A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era em ajudá-la nos bordados, trabalhados para fora, com o que ia
errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua ganhando algum dinheiro. Não que ela fosse vadia, ao contrário, mas
honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos.
ao vivo, com exemplos, claramente...” (capítulo X) denuncia a frágil Parecia tolo a uma moça ou a uma mulher.
educação recebida por Clara como responsável pelo seu destino. BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Tecnoprint/Ediouro,
s/d, p.72.
02. (UFPR) A respeito dos romances Clara dos Anjos, de Lima
Barreto, e Fogo Morto, de José Lins do Rego, assinale a alternativa Em relação às personagens D. Margarida e Clara, é correto afirmar
correta. que:
a) Dona Margarida é caracterizada, no romance, como alguém 06. (UFPR) Considere o seguinte trecho do romance Clara dos Anjos,
indiferente aos sofrimentos de Clara dos Anjos, tornando-se, a cada de Lima Barreto:
dia, uma triste senhora, muito apática e distante dos compromissos e
dos relacionamentos familiares. Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande
b) Dona Margarida, sogra de Clara dos Anjos, sempre se compadeceu parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os
da nora, menina simples e pobre, tratando, desde sempre, de ajudá-la olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras
financeiramente, ensinando-a ganhar seu próprio dinheiro com inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.
pequenos trabalhos de agulha. (Clara dos Anjos, p. 38.)
c) Dona Margarida, personagem secundária do enredo de Lima
Barreto, tem enorme influência no desenvolvimento emocional e Com base no trecho selecionado e na leitura integral do romance
psíquico de Clara dos Anjos, incentivando-a, inclusive, a se casar com Clara dos Anjos, de Lima Barreto, assinale a alternativa correta.
o aventureiro Cassi Jones. a) O narrador é imparcial ao descrever os cenários do subúrbio e de
d) Dona Margarida pode ser considerada uma personagem oposta à outros pontos da cidade, demonstrando neutralidade na constatação
protagonista Clara dos Anjos, uma vez que é uma mulher mais das diferenças entre as regiões.
objetiva e pragmática frente à vida, menos sonhadora e mais realista b) O subúrbio é descrito ora de modo realista, ora de modo idealizado,
diante dos relacionamentos humanos. contribuindo para a construção de uma visão, por vezes, romantizada
da pobreza.
Leia o trecho a seguir: c) O narrador disseca com rigor quase sociológico os problemas
Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que políticos da época, citando fatos e personagens históricos reais que se
tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção misturam à narrativa.
exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida d) O romance apresenta o ambiente do subúrbio aliando a descrição
irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos pormenorizada do espaço físico à caracterização dos personagens que
da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça o habitam.
como as outras; era muito menos no conceito de todos. Bem fazia e) Os vários bairros e personagens que estão nos arredores da linha
adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!... férrea do trem urbano são descritos como um conjunto indiferenciado,
A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela como se cada bairro não tivesse sua característica própria.
devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de
moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com Leia o fragmento, a seguir, retirado do livro Clara dos Anjos, de Lima
exemplos, claramente... O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles Barreto, e responda às questões de 07 a 10.
homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente
de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, Cassi Jones, sem mais percalços, se viu lançado em pleno Campo
uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela de Sant’Ana, no meio da multidão que jorrava das portas da Catedral,
como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, cheia da honesta pressa de quem vai trabalhar. A sua sensação era que
como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassi estava numa cidade estranha. No subúrbio tinha os seus ódios e os
e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este seus amores; no subúrbio, tinha os seus companheiros, e a sua fama
ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte, era apontado; no
fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que subúrbio, enfim, ele tinha personalidade, era bem Cassi Jones de
elas o admitiam... Azevedo; mas, ali, sobretudo do Campo de Sant’Ana para baixo, o
Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central,
Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha acabava a sua fama e o seu valimento; a sua fanfarronice evaporava-
e da mãe. se, e representava-se a si mesmo como esmagado por aqueles “caras”
Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se todos, que nem o olhavam. [...]
sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande Na “cidade”, como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de
acento de desespero: — Mamãe! Mamãe! inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes
— Que é minha filha? a conversar sobre cousas de que ele não entendia e a trocar pilhérias;
— Nós não somos nada nesta vida. em face da sofreguidão com que liam os placards dos jornais, tratando
de assuntos cuja importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não
04. Lima Barreto, autor pré-modernista, apresenta inovações estéticas suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses
ao lado de elementos conservados de movimentos anteriores. A pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o
leitura do trecho do romance Clara dos Anjos nos permite verificar nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que
que o autor apresenta como inovação temática: lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o bárbaro que viu, no
A) O protagonismo do excluído, representado por Clara, retratada, Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo aquele
embora de forma determinista, com suas subjetividades. conjunto de coisas finas, de atitudes apuradas, de hábitos de polidez
B) As descrições horrendas expressionistas presentes nas referências e urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade
desrespeitosas dos passageiros do bonde. de medíocre suburbano, de vagabundo doméstico, a quase cousa
C) A personificação do ambiente, presente na imagem do bonde, alguma.
representação metonímica dos passageiros que a olhavam. BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Garnier, 1990. p. 130-
D) Os diálogos vazios de reflexão, típicos de uma abordagem 131.
dadaísta, preocupada em definir e não em criticar.
E) A idealização da raça, uma vez que está presente na obra uma ideia, 07. (UEL) Assinale a alternativa correta quanto à posição do narrador.
a defesa de uma tese sobre negras e mulatas. a) O narrador mostra-se compadecido da situação de Cassi Jones, que
é focalizado, tal qual Clara dos Anjos, como uma vítima indefesa das
05. Lima Barreto é amplamente reconhecido por suas duras críticas perversidades sociais que deixam de reconhecer os talentos dos
ao preconceito racial. Assinale a alternativa em que o trecho suburbanos.
destacado do texto retrata teor crítico de sua escritura em relação ao b) O narrador ressalta como Cassi Jones estava também sujeito às
olhar lançado pela sociedade às mulheres mulatas e negras: hostilidades sociais suficientemente fortes para submetê-lo a conflitos
A) “A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea”. íntimos, arrependimentos e remorsos tão próximos da infâmia sentida
B) “Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia por Clara ao final do romance.
com que elas o admitiam...”. c) O narrador antecipa, nessa passagem, o processo de redenção de
C) “Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que Cassi Jones, que, ao se aperceber do desdém que o rebaixava, inicia
tinha presenciado e no vexame que sofrera”. uma nova trajetória em busca do perdão de Clara dos Anjos e da
D) “O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres...”. correção de seus deslizes morais.
E) “Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se d) O narrador demonstra-se solidário com o sentimento de Cassi
sentara e abraçou muito fortemente sua mãe”. Jones, por ser o violeiro objeto de exclusão naquela área mais
sofisticada da cidade, o que conduz à identificação de afinidades entre IV. Cassi, ao compreender a complexidade das injustiças sociais que
narrador e personagem seja no plano artístico seja no plano moral. se abatem contra ele e os demais suburbanos, acirra o espírito
e) O narrador flagra Cassi Jones no momento em que constata o combativo, assim como os heróis modernistas.
sentimento de se ver deslocado naquela região da cidade, tão
contrastante com o prestígio, com o reconhecimento e com as Assinale a alternativa correta.
vantagens usufruídas pela personagem no subúrbio. a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
08. (UEL) Sobre as referências aos termos “fama” e “personalidade”, c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
que aparecem duas vezes cada um no fragmento, assinale a alternativa d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
correta. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
a) O apego à fama evidencia que Cassi era inocente em sua vida
amorosa e que o conceito de si mesmo como um artista o eximia de 10. (UEL) Com base no trecho e no romance, considere as afirmativas
culpa nos relacionamentos com as moças virgens. a seguir.
b) As referências à personalidade de Cassi demonstram como a I. A frase “Não era nada” estabelece conexão entre Cassi e o desfecho
personagem era espontânea no subúrbio enquanto no centro da cidade vivido por Clara, embora os motivos dessas avaliações tenham
sobressaía sua artificialidade. graus de relevância e sentidos diferentes para cada personagem.
c) As alusões à fama correspondem à “rusticidade” atribuída pelo II. Clara e Cassi são superprotegidos por suas mães; contudo, Clara é
narrador aos modos com que a personagem circula pelos dois mantida em sua ingenuidade, sem exposição à realidade,
ambientes da cidade. enquanto Cassi é acobertado a cada maldade cometida.
d) A fama da personagem remete ao orgulho de seu desempenho III. O assassinato de Marramaque afeta Clara e Cassi sob perspectivas
social no subúrbio, o que lhe garantia, lá, imunidade à condição de diferentes: Clara sofre com a morte do padrinho, enquanto Cassi
“humilde” e “medíocre”. é o mentor daquele crime.
e) O termo “personalidade” significa que a determinação da IV. A ideia de “polidez” acentua diferenças entre Clara e Cassi:
personagem para preservar, longe do subúrbio, seus valores éticos era enquanto ele ostenta essa qualidade no subúrbio e no centro, ela,
a causa de seus infortúnios. como autêntica suburbana, é tosca, carente de lapidação.

09. (UEL) Com base no trecho e no romance, acerca das relações Assinale a alternativa correta.
entre personagens e os estilos de época, considere as afirmativas a a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
seguir. b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
I. Clara, ao nutrir ilusões quanto às intenções amorosas de Cassi, c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
aproxima-se da condição sonhadora de personagens femininas d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
românticas. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
II. Clara, ao entregar-se a Cassi e ao ceder às suas investidas sexuais,
exibe a dificuldade de resistir aos instintos, como ocorre com
personagens femininas naturalistas.
III. Cassi, ao recorrer a falsas promessas e fugir das responsabilidades
com Clara, destoa da caracterização afetiva e moral dos heróis
masculinos românticos.

GABARITO: 01. E. 02. D. 03. D. 04. A. 05. B. 06. D 07.E 08.D 09.D 10.D

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