Alfabetização Dilemas Na Prática Sonia Kramer LER 30jan 2021
Alfabetização Dilemas Na Prática Sonia Kramer LER 30jan 2021
Alfabetização Dilemas Na Prática Sonia Kramer LER 30jan 2021
Sonia Kramer
Professora do Departamento de Educação da PUC-Rio.
Apresentação
OS DILEMAS
Dilema 1 – O que caracteriza a alfabetização? A
mecanização ou a construção?3
3 Parte do conteúdo desse “dilema” foi apresentado em “Os diferentes significados da alfabetização” durante
o Seminário da Associação Mineira de Associação Educacional, em julho de 1985.
4 Revista Educação e Sociedade, especialmente a de nº 20; Cadernos Cedes nº 14, Cadernos de Pesquisa
da Fundação Carlos Chagas, especificamente a de nº 52: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, nº
151 são algumas publicações onde a diversidade pode ser nitidamente constatada.
5 É preciso explicitar que o significado do termo “método” aqui empregado não corresponde a “método
de alfabetização” (palavração, silabação, fonético, de contos, etc.), mas à metodologia, ao conjunto de
atitudes e procedimentos gerais que orientam e dão corpo ao trabalho realizado na sala de aula.
para que cada criança possa se expressar de forma a que todas as outras a
compreendam. Apenas o exemplo da cópia já seria suficiente para visualizar-
mos a superação da dicotomia tradicional versus novo: a cópia é essencial,
diz Freinet , mas a cópia da palavra com significado, dita pela criança, sua
conhecida ou que a criança irá conhecer naquele momento, e não a cópia de
uma palavra qualquer e sem sentido.
Outro aspecto que necessita ser revisto é a diretriz prática “tomar a realida-
de como ponto de partida; garantir o acesso a novos conhecimentos” (KRAMER,
1982), no sentido de entendê-la não como estratégia metodológica, mas como
a priori da prática pedagógica. No momento em que essa diretriz foi enuncia-
da, sua intenção maior era a de destacar a importância de entender a criança
como ser social que ela é, pertencente a uma classe social determinada, com
uma existência concreta, e não apenas comparável a padrões preestabelecidos
de uma criança universalmente concebida. Precisamos ter, no entanto, uma
posição crítica frente à idéia de que em todo e qualquer ato pedagógico cada
novo conhecimento deva necessariamente partir da experiência infantil numa
espécie de empiricismo grosseiro em defesa de que “nada há no intelecto que
não tenha antes passado pelos sentidos”.
No desenvolvimento de alguns estudos feitos na escola pública7 constata-se
como muitas professoras conjugam sua afetividade com a disciplina estabele-
cida na turma (entendida esta disciplina não só como manutenção da ordem,
mas também como organização para o trabalho) e conjugam-na, ainda, com
a ênfase que dão aos conteúdos).
Essa combinação é correspondida, por sua vez, por um entusiasmo mani-
festo pelas crianças por aprender, por adquirir os conteúdos. A realidade das
crianças é ponto de partida, aí, na medida em que as professoras observadas
têm um profundo conhecimento sobre as experiências das crianças no seu
cotidiano familiar, e esse conhecimento é necessário para que estabeleçam um
aponte com seus alunos, está presente também o sentimento tanto de valori-
zação dessa realidade e das aprendizagens, estas viabilizadas graças à atuação
sistemática e intencional das professoras na sala de aula. E a própria atuação
se beneficia e enriquece pelo conhecimento do universo cultural dos alunos.
A ultrapassagem da dicotomia se faz possível à medida que, de um lado,
se reconhece a valoriza o conhecimento já disponível pelos alunos e, de outro,
se busca a transmissão do conhecimento escolar superando o senso comum,
reelaborando-o, enfim. O “tomar a realidade...” se refere, então, à relação
estabelecida na prática pedagógica, e não apenas a uma etapa que inicia o
processo. Em certas circunstâncias, o próprio ensino é favorecido se, além da
relação, o trabalho for começado pelo conhecido (no caso da alfabetização, por
7 Tal como está relatado em André, M. e Kramer, S. – Alfabetização: um estudo sobre professores das
camadas populares in RBEP, nº 151, 1985.
tica que, partindo do fato de não haver correspondência direta entre sistema
fonológico e sistema ortográfico na língua portuguesa, entende o processo de
alfabetização como um “progressivo domínio de regularidades e irregularida-
des” (SOARES, 1985, p.21-22).
Ao pensar em formas de articulação entre estudos de natureza tão diversas,
me deparo com a necessidade de mais uma perspectiva de análise da alfabeti-
zação – a perspectiva pedagógica. Mas de que forma uma perspectiva sobre os
mecanismos escolares e a ação pedagógica pode ajudar a encontrar uma maior
compreensão sobre a alfabetização? Trazendo pontos de interseção e confluên-
cia para as abordagens que vêm se desenvolvendo, uma perspectiva pedagógica
da alfabetização deve dar conta de sistematizar e explicitar os mecanismos
presentes na relação pedagógica que se desenvolve entre professores (aqueles
que pretendem ensinar) e alunos (os que pretendem aprender)8. Como?
Explicitando relações de poder e autoridade, disciplina e afetividade, papéis
assumidos (e atribuídos) por professor, alunos, equipes da escola e famílias,
ênfases dadas na prática à assimilação dos conteúdos, ao espírito crítico e à
socialização. Extrapolando estereótipos de “professor tradicional” e “professor
novo”, ampliando nossa compreensão sobre as formas de ensinar para além
das metodologias, dos métodos de alfabetização e das cartilhas. Possibilitando,
enfim, que sejam encontradas respostas substantivas para, entre outras, as
seguintes questões: “como a professora trabalha cotidianamente a significação
ou a importância que tem a leitura para as crianças?”; “em que medida a fun-
ção social atribuída pela professora à leitura-escrita influencia no processo de
alfabetização?”; “o que faz a professora a despeito do método de alfabetização
empregado (nas suas entrelinhas) e que favorece a aprendizagem da leitura e
da escrita por parte das crianças?”9
A revelação da dinâmica e das relações existentes na sala de aula seria útil
para nos explicar os fatores que fazem com que, frente a duas turmas diferen-
tes, o professor passe a ter atuação diversa; porque um método produz resul-
tados diversos quando aplicado por vários professores; como decidir, escolher
entre estratégias distintas. Sabemos que há muitos trabalhos sobre a relação
professor-aluno, as etapas da alfabetização, a interferência da expectativa do
professor no desempenho do aluno... No entanto, os estudos tomam cada um
dos aspectos e os submetem a uma análise parcial, seja de cunho lingüísti-
co, psicológico, psico ou sócio lingüístico. Ou, por outra, tratam dos fatores
externos ao contexto escolar, procedendo a análises de cunho sociopolítico e
econômico. Interessa, aqui, compreender os mecanismos e processos que se
8 É claro que na relação pedagógica o professor também aprende e os alunos também ensinam. Refiro-me
aqui aos conhecimentos escolares sistematizados de que dispõe o professor no início do processo, e que
Saviani (1980) denominou de síntese precária.
9 A relevância dessas e outras questões, de forma inicial ainda, está descrita em André, M. e Kramer, S.
– já citado.
10 Mantive aqui a forma “do professor” usada na versão original do texto. Nos últimos anos, tenho me
referido a professores/as.
11 O depoimento foi colhido durante a pesquisa “Um estudo de caso sobre a alfabetização de crianças das
camadas populares”. PUC/CNPq, 1985. Relatório Parcial (mimeo.). (Grifos nossos).
Finalmente, cabe enfatizar que o exercício desse papel profissional é, por sua
vez, determinado por uma série de fatores que passam pela formação escolar
anterior desse professor, pelas suas condições objetivas de trabalho (inclusive as
salariais e trabalhistas) e pelas formas com que a escola concreta em que atua
assume, junto com ele, a tarefa de alfabetizar, fornecendo-lhe o apoio adminis-
trativo e pedagógico necessário. Quanto a este último aspecto, é de fundamental
importância a formação em serviço, como procuro demonstrar ao final do texto.
Procurei, até aqui, tratar de algumas questões polêmicas que têm estado
presentes em muitos debates, pesquisas e análises sobre a prática pedagógica,
especialmente a da alfabetização. Foram apresentadas sob a forma de dilemas,
porque têm sido, em geral, compreendidas de maneira dicotomizada – em que
pese a intenção explícita de diversos autores (Saviani, Libaneo, Rodrigues)
– de abordá-las e explicitá-las dialeticamente. A tentativa empreendida no
decorrer deste trabalho foi o de relativizar as “dicotomias”, e o fiz motivada
principalmente pelo fato de que só é possível, no discurso acadêmico, opor
conteúdo/forma, resultado/processo, fatores psicológicos/lingüísticos, papel
do professor/papel do aluno no discurso acadêmico e teoricista que supõe
uma prática, mas não a vive.
Na prática realizada na escola e na sala de aula, a professora-alfabetizadora
se defronta, sim, com dilemas, mas a dificuldade não está na escolha de um
entre diferentes pólos de uma dicotomia. A dificuldade se coloca justamente
porque é preciso dar conta de ambos (conteúdo e método, produto e processo,
fatores de várias naturezas) pois eles se constituem em aspectos intrinseca-
mente relacionados do ato pedagógico.
No entanto, há situações concretas na escola em que os problemas apare-
cem como dilemas e os professores/educadores tentam inutilmente dirimi-los
como se fossem oposições, ou seja, optam por um pólo em detrimento do outro
como se fossem contrários. No sentido de tornar mais claro esse ponto, apre-
sento a seguir alguns exemplos referentes: à seleção e dosagem dos conteúdos;
à avaliação de desempenho; à escolha e utilização de cartilhas; à relação entre
professores e especialistas no interior da escola.
séria reflexão crítica sobre o projeto pedagógico que se tem para a escola e,
mais especialmente, para a alfabetização. Enfim, com base nessa discussão, é
possível que se chegue a compreender que a avaliação deve acontecer ao longo
de todo o processo, e não apenas no momento final; que se deve avaliar todos
os elementos envolvidos na aprendizagem da leitura/escrita, e não, apenas e
simplesmente, os alunos; e que nesse processo concorrem, simultaneamente,
os conteúdos assimilados e os processos desenvolvidos.
E as cartilhas? 12
Outro tema que suscita intensos debates é o das cartilhas, e aqui en-
contramos, também, uma gama muito variada de polêmicas em jogo; (i)
uns indagam se é apropriado fazer uso de cartilhas ou se o melhor não
seria a produção direta dos textos pelas crianças. (ii) outros divergem sobre
a cartilha que seria mais adequada: aquela concebida para ser utilizada
nacionalmente, com palavras e conteúdos que dessem conta do caráter
universal da língua, ou aquela concebida a partir dos conteúdos culturais
adstritos a uma região? (iii) aqueles que produzem cartilhas têm outra or-
dem de dificuldades: como escolher os fonemas e estabelecer a ordenação
e a seqüência? Como decidir sobre que palavras utilizar, seja de acordo
com sua abrangência, seja segundo sua significação? Que método adotar
(analítico, sintético, analítico-sintético)? Que tipo de instrução será dada
aos professores? (IV) já aqueles que alfabetizam crianças (ou adultos) per-
guntam-se sobre os critérios que devem empregar na escolha e utilização
dos livros didáticos.
A análise de tais questões escapa aos limites deste texto. Cabe, no entan-
to, fazer alguns comentários sobre certos aspectos pedagógicos envolvidos.
A questão (i) – utilização de cartilhas pré-confeccionadas versus textos
produzidos na sala de aula – está discutida implicitamente no primeiro
“dilema” apresentado neste trabalho, à medida que se refere à pretensa
dicotomia produto/processo. Ora, por que negar às crianças (de qual-
quer classe social...) o acesso a livros didáticos (cartilhas, no caso) de boa
qualidade e que tragam o conhecimento da área organizado e estruturado
adequadamente? Por outro lado, por que negar às crianças o direito de
produzir seus próprios textos com base em suas experiências concretas,
sistematizando seu cotidiano e refletindo sobre ele? A opção por uma das
posições de forma rígida traz riscos, bastante sérios: o risco da cartilha-
12 Ver, entre outro, Oliveira, J.B.O. – Cartilhas de alfabetização e a regionalização do livro didático – e
Silva, T.R.N. – O livro didático; reflexão sobre critérios de seleção e utilização – ambos em Cadernos de
Pesquisa, SP., nº 144, fev., 1983., p. 95-101. O texto de Silva, em especial, levanta questões de extrema
relevância.
13 Na maioria das vezes, os limitados recursos técnicos e financeiros existentes tornam muito difícil a pro-
dução local de cartilhas. Mesmo que essa fosse a melhor e exclusiva opção (e procuro mostrar que não
é), as condições concretas disponíveis, de certa forma, condicionam sua baixa qualidade.
Enfim...
Minha intenção neste texto foi relativizar dualismos que têm sido muito
freqüentes nas discussões teóricas desenvolvidas sobre a alfabetização. A par-
tir daí, procurei levantar certos aspectos referentes à atuação dos professores
e aos problemas concretos por eles enfrentados na prática de sala de aula.
Tentei mostrar, também, de que maneira alguns destes problemas da prática
da alfabetização estão implicitamente relacionados com as querelas teóricas.
A estratégia adotada foi a de organizar as várias temáticas em “dilemas”,
de um lado porque elas têm sido muito polarizadas na discussão acadêmica e,
de outro lado, a fim de provocar o debate e (quem, sabe?) fazer avançar nosso
conhecimento e nossa prática.
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Paulo, 1980. (Este artigo foi incluído no livro do autor Escola e Democracia, Cortez, 1983).
__________. Escola e democracia – para além da teoria da curvatura da vara. Revista ANDE,
3, São Paulo, 1982, (Este artigo foi incluído no livro do autor Escola e Democracia, (op.cit.)).
__________. Sobre a natureza e a especificidade da educação. Em aberto, INEP 22 jul. –
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