037 - Histórias de Negros No Ceará
037 - Histórias de Negros No Ceará
037 - Histórias de Negros No Ceará
Organizadores:
Eurípedes A. Funes
Eylo Fagner Silva Rodrigues
Franck Ribard
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Histórias de Negros no Ceará [recurso eletrônico] / Eurípedes A. Funes; Eylo Fagner Silva Rodrigues; Franck Ribard (Orgs.)
-- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.
248 p.
ISBN - 978-65-5917-037-1
DOI - 10.22350/9786559170371
CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Sumário
Apresentação ............................................................................................................. 9
Os organizadores
1 ................................................................................................................................ 17
Fortaleza, uma cidade negra na “Terra da Luz”
Franck Ribard
Eurípedes A. Funes
2 ................................................................................................................................47
Do tribunal para além da justiça: tornando-se livre nos meandros das leis (1871 -
1884)
Eylo Fagner Silva Rodrigues
3 ............................................................................................................................... 82
“Precisa-se de um creado bom, livre ou escravo” O serviço doméstico em Fortaleza
em fins do século XIX
Juliana M. Linhares
4.............................................................................................................................. 107
Festas negras na Fortaleza do final do século XIX
Janote Pires Marques
5 .............................................................................................................................. 132
As brechas nas leis e as estratégias dos escravos para obterem sua liberdade
José Hilário Ferreira Sobrinho
6.............................................................................................................................. 148
“Uma conspiração de cozinha tantas vezes fataes a sala”: o motim dos pretos da
Laura em 1839
Jofre Teófilo Vieira
7 .............................................................................................................................. 172
“Antonio, cabra, filho de tapuia com mulato” Família Escrava, Família Mestiça –
Cariri Cearense (1850 - 1884)
Ana Sara Cortez Irffi
8 ............................................................................................................................. 197
Negros e mulatos senhores de cabedais na ribeira do Acaraú (sec. XVII E XVIII)
Raimundo Nonato Rodrigues de Souza
9.............................................................................................................................. 217
Líderes negros e o significado de liberdade no nordeste do Brasil no século XIX
Tshombe Miles
֎
Apresentação
Os organizadores
O recurso à Lei não era o único caminho, nem o mais provável para
o escravo buscar a sua liberdade, mesmo que precária. Num contexto mar-
cado pelo tráfico interprovincial, inúmeras fugas de negros receosos de
serem vendidos para o sul do país são registradas. Além da fuga, situações
inaceitáveis de crueldade motivaram os escravos a se voltarem contra os
responsáveis por seus maus-tratos e das suas condições miseráveis de
vida. Jofre Teófilo Vieira, no capítulo artigo, Uma conspiração de cozinha
tantas vezes fataes a sala”: o motim dos pretos da Laura em 1839, aborda
um caso emblemático: o famoso motim do brigue-escuna Laura Segunda,
que ia do Maranhão para Recife, com escala em Fortaleza, e teve sua rota
interrompida em Iguape (CE), em razão da revolta dos escravos que to-
maram o controle da embarcação. A repercussão do caso em que os
escravizados mataram o capitão e parte da tripulação, bem como o pro-
cesso e as sentenças pronunciadas, várias de morte, contra os líderes do
motim, tiveram um enorme impacto, num contexto histórico de revoltas
diversas no país e de um imaginário social marcado pelo espectro da re-
volução haitiana. Elementos apontados como a organização e a
colaboração no motim entre escravos crioulos, africanos (“Angola”, “Cabo-
Verde”, “Mina”), da equipagem e outros que estavam no barco como pas-
sageiros são instigantes e permitem ao autor refletir sobre as
características próprias do universo e da cultura dos trabalhadores marí-
timos, envolvidos nos seus deslocamentos em amplas redes de
comunicações e sujeitos, enquanto escravos, a condições de trabalho/vida
específicas nos barcos.
Os casos de revolta, em certo sentido extremos, mesmo se recorren-
tes, não correspondiam à realidade da maioria da população escrava do
Ceará que procurava — nas limitações impostas contra as quais lutavam
— buscar arranjos e negociar condições estáveis de existência. Nesse sen-
tido, o tema da família escrava, caro à historiografia sobre escravidão,
reveste-se de uma importância singular. O texto de Ana Sara Cortez Irffi,
“Antonio, cabra, filho de tapuia com mulato”. Família Escrava, Família
Mestiça – Cariri Cearense (1850-1884), que toma por espaço de estudo a
14 | Histórias de Negros no Ceará
Referência
FUNES, Eurípedes Antônio. Negros no Ceará. In: SOUSA, Simone de; GONÇALVES,
Adelaide [et al.]. Uma nova história do Ceará. 4. ed. Fortaleza: Edições Demócrito
Rocha, 2007.
֎
1
Franck Ribard 1
Eurípedes A. Funes 2
Já não se compra e nem se vende escravos e os que ainda existem captivos per-
tencem antes a classe dos creados domésticos do que a senzala dos captivos. O
Libertador – 28/09/1881.
Introdução
1
Professor Associado do Departamento de História da UFC.
2
Professor Associado do Departamento de História da UFC.
18 | Histórias de Negros no Ceará
A outra rua, mesmo que você não pise nunca, também é a cidade.
O esforço minucioso de decodificação e contextualização das evidên-
cias opacas fornecidas por diferente corpus documentais instiga o
historiador a formular novas inquietações e, com novos olhares, fazer ou-
tras leituras. Significa apontar a necessidade de rever pontos de vista
consagrados por uma visão excludente e preconceituosa sobre práticas e
concepções populares: ao invés de desqualificá-las como “rudes” ou ingê-
nuas, puras ou bárbaras, perigosas ou folclóricas — como fizeram
intelectuais e elites desde o século XIX — trata-se de empreender uma re-
leitura dos documentos, da cultura, sob novos pontos de vista. Significa,
literalmente, retomar temas e objetos históricos consagrados e inquiri-los
a partir de baixo: partir da consideração de que a história se produz no
interior de relações de dominação e resistência.
Sem dúvida, a melhor referência para iluminar a perspectiva teórica
aqui adotada parte do campo da História Social, na perspectiva de com-
preender os eventos passados, retomando sujeitos históricos muitas vezes
esquecidos ou deliberadamente obscurecidos às margens das páginas de
uma narrativa tomada como história oficial numa perspectiva tradicional
de uma genealogia histórica. Para Silvia Lara, tomando por base o pensa-
mento de E. P. Thompson,
O Ceará, mais feliz, quanto ao seu povoamento que outras antigas províncias,
hoje Estados, nem ao menos se deve queixar, como a Bahia, Rio de Janeiro,
Maranhão, Pernambuco, da mescla, tão condenada por muitos escritores, de
certos elementos etnológicos, como o negro boçal, extremamente ignorante e
supinamente fanático, que nos trouxe, com seus costumes e hábitos africanos,
o fetichismo dissolvente que por ai campeia na prática de cenas e cerimônias
ridículas e indecentes, cujo resultado tem sido e será sempre o afrouxamento
do verdadeiro sentimento moral, que só a educação e a instrução popular bem
ministradas poderão modificar e corrigir, no correr dos anos. (FUNES, 2007:
p. 103).
A resposta foram lágrimas dos mesmos escravos quer bem sabiam que não
tinham tido senhor, mas um verdadeiro pai.
Esta sena pathetica e commovedora enterneceu a todos os circunstantes.3
3
Jornal O libertador, Fortaleza, 31/07/1883, p. 3.
Franck Ribard; Eurípedes A. Funes | 23
Adeus, cativeiro.
Por todos os modos vai-se extinguindo na briosa Província do Ceará o triste
domínio do homem sobre o homem.
A escravatura decresce consideravelmente: as baixas na matricula geral de
escravos já encomodão os empregados do fisco.
A libertadora Cearense, dará o golpe d’estado primeiro que o governo.
E nos damos nossos pêsames aos negreiros por mais estas manumissões que
já passamos a registrar:
Diversas alforrias já publicadas até o numero 5 deste jornal – 41
Outras effectuadas pela Libertadora Cearense no dia 25 de marco – 35
Mas três manumissões realizadas no dia solenemente de sua inauguração pela
denotada Sociedade Libertadora Baturiense – 3.
Total 79. 4
4
Jornal O libertador, Fortaleza, 25/03/1881, p. 3.
24 | Histórias de Negros no Ceará
nação. Nação que deveria ser passada a limpo, descartando o borrão ene-
grecido que mancharia a bandeira, símbolo do mundo dos senhores, dos
proprietários, dos cidadãos livres, dos homens de bem daquela terra.
Lendo com vagar e percuciência histórica, depara-se com as artimanhas
do discurso abolicionista em tela. Os abolicionistas têm armas brancas, de
valores nobres, lavadas em um humanismo consciente da humanidade do
outro, do cativo. Em parte, são da ordem do discurso, que se engendra a
partir da razão, da lógica, à qual os versos parecem tingir de uma cor que
não a negra. A razão dos libertadores, além de ter sua cor declarada, tem
valor moral: é pura! A pureza de intenções, o heroísmo de agentes da his-
tória que lutam pela libertação daqueles tidos por despossuídos, de
condições morais e intelectuais para tomar as rédeas da própria história,
estariam do lado dos brancos de setores médios de Fortaleza, não mais
comprometidos, naquele momento, com a estrutura da escravidão no Ce-
ará. Embora alguns abolicionistas tenham sido proprietários e mesmo
negociantes de escravos até as vésperas da criação da Sociedade Cearense
Libertadora (RODRIGUES, 2018).
Os versos de Frederico Severo embalariam a campanha abolicionista
tal como vista pelos seus entusiastas, uma epopeia. Mas a ode aos brios
dos humanistas e filantropos excluía, com suas palavras-chave, os escra-
vizados da ordem moral, da razão, da nação e de sua própria história;
limitando-os a um lugar não metafórico, o negro borrão manchado, que
macularia e aviltaria a sociedade envergonhada de sua história e memória.
Esse olhar enviesado sobre o cidadão de descendência africana fica
evidente num artigo da revista do Phenix Caixeral, por ocasião da celebra-
ção do 13 de maio de 1888.
O dia de maior glória para o povo brasileiro, que viu coroados com a aquies-
cência de um governo feliz, as suas mais puras aspirações, os seus mais
ardentes anhelos ... No Ceará, principalmente, onde a campanha abolicionista
assumia as proporções grandiosas de uma epopéia homérica – o que lhe valeu
a legenda admirável de “Terra da Luz” – devemos conservar intactos as ale-
grias perenes da liberdade de uma raça imbecil, porém vigorosa como
elemento constitutivo do nosso progresso material. Relembremos dignamente
Franck Ribard; Eurípedes A. Funes | 25
este feito que significa o maior padrão da glória cearenses e que é um protesto
tácito e solene contra o definhamento progressivo de uma raça forte, e con-
servemos, na interioridade dos nossos corações, as recordações majestáticas
de um acontecimento supremo e inesprimível.5
Declaro que passei cartas de alforria aos meus escravos – Francisco e Maria,
mulatos, cazados e a Luiza, criola, solteira, e quando por qualquer motivo não
estejão validas as ditas cartas quero que lhes passem outras, vistas que pelos
bons serviços que me tem prestado h’e minha vontade que gozem de plena
liberdade como se nascessem de ventres livres, com a condição de que servi-
rão a sua senhora minha mulher até morrer e se neste tempo tornarem-se
ingratos para com a mesma de alguma forma, ella caçando-lhes a liberdade os
5
Revista Phoenix Caixeral. Fortaleza, n.º 33 de 05/1912, p. 2.
26 | Histórias de Negros no Ceará
Ingênuos.
Sobre as exigências da lei 2040 de 28/09/1871. Art. 1º (Segunda parte) fica
sujeito o ingênuo ao domínio do senhor da escrava, podendo este utilizar-se
dos serviços do menor até a idade de 21 anos.
Chegada a épocha em que o senhor perde sobre o ingênuo toda autoridade e
commando, este vendo-se, de momento, possuidor de uma faculdade de acção
que não esperava e cujo preço não avalia devidamente, converte-se em um
ente inútil para a civilização em vez de ser um cidadão educado que venha
prestar serviços ao seu paiz pelo bom emprego de suas atividades.
Foragido dos campos da escravidão, fica atordoado ao receber o gozo do di-
reito livre arbítrio e, não possuindo um meio de vida, descobre na ociosidade
que o inerva para o bem e impulsiona os maus instinctos que geraram-se na
condição da vida passada.6
6
Jornal O libertador, Fortaleza, 28/09/1881.
Franck Ribard; Eurípedes A. Funes | 27
7
Ibidem.
28 | Histórias de Negros no Ceará
8
CEARÁ. Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Arrolamento da População de Fortaleza, de 1887. Freguesia
de São José, 01/08/1887. Livro 383, p. 04.
Franck Ribard; Eurípedes A. Funes | 35
9
CEARÁ. APEC. Arrolamento da População de Fortaleza, de 1887. Loc. Cit.
36 | Histórias de Negros no Ceará
10
Jornal O Libertador, Fortaleza, 05/03/1887.
38 | Histórias de Negros no Ceará
1º. obedecer com boa vontade a deligencia a seu patrão em tendo que não illi-
cito ou contrario ao seu contracto.
2º. Zellar aos interesses do patrão e evitar qualquer danno a que estejam ex-
postas.
3º. responder pelas perdas e dannos que por culpa sua soffrer seu patrão.11
11
APEC. Governo da Província. Secretaria de Polícia. Projeto de Postura para o Serviço Doméstico, 1881.
Franck Ribard; Eurípedes A. Funes | 39
Art. 12º são justas as causas seguintes: 1º doença do creado que o prive de
prestar os serviços para que foi ajustado; 2º embriaguez; 3º recuza por parte
do creado de cumprir suas obrigações, ou impericia para o serviço ajustado;
4º negligencia ou desmazelo no serviço depois de advertido pelo patrão; 5º
sahida de caza sem licença ou ordem do patrão; 6º injuria, calumunia, ou qual-
quer outra ofensa criminosa feita ao patrão ou a qualquer pessoa da familia
desta; 7º a pratica de actos contrarios a lei, a moral e aos bons costumes; 8º
infidelidade; 9º excitar o creado discordia na família.12
12
APEC. Governo da Província. Secretaria de Polícia. Projeto de Postura para o Serviço Doméstico, 1881.
40 | Histórias de Negros no Ceará
Se, nos anos pós abolição, não houve nenhuma política pública por
parte das autoridades de inserção desta população de ex-escravos à socie-
dade fortalezense − condições de moradia e trabalho − uma grande parte,
foi abandonada à própria sorte e outra permaneceu com seus antigos do-
nos por não terem para onde ir.
Para James C. Scott as relações sociais devem ser observadas como
uma teatralização, onde os indivíduos se utilizam de diversas máscaras
para lidar com situações de poder (SCOTT, 2013). E é dessa forma que
compreenderemos as estratégias de sobrevivência dos negros e negras em
Fortaleza ao longo do Séc. XX.
Estratégias de sobrevivências por compreender que uma barreira so-
cial e racial foi construída historicamente na sociedade brasileira para
impedir que esta população alcançasse direitos básicos de cidadania. O Jor-
nal O libertador, que tinha sido porta voz do abolicionismo cearense, em
suas páginas do dia 08/06/1888 nos dá uma dimensão desta realidade vi-
venciada pelos afro-brasileiros:
42 | Histórias de Negros no Ceará
Pede-se ao Sr. Delegado de polícia que lance suas vistas para o não comporta-
mento que se observa em certos fragmentos do passeio público.
Pretos desconhecidos, vestidos de palitot, pensam que devem afrontar a soci-
edade e colocam-se nos portões do jardim não praticando atos poucos
decentes, como insultando e dirigindo chufas a pessoas que não ligam impor-
tância a canalha.
Esperando que a autoridade castigue os insolentes.13
Considerações finais
13
Jornal O libertador, Fortaleza, 08/06/1888.
Franck Ribard; Eurípedes A. Funes | 43
Negros que fizeram, com inúmeros outros, a história desta cidade e que con-
tribuíram para a manutenção de uma memória, que lutando contra a maré do
não reconhecimento e da denegação, sempre prezou pela conservação de laços
simbólicos, que os identificavam e afirmavam sua etnicidade e historicidade
(RIBARD, 2009: p. 17).
Referências
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FUNES, Eurípedes Antônio. Negros no Ceará. In: SOUSA, Simone de; GONÇALVES, Ade-
laide [et al.]. Uma nova história do Ceará. 4. ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha,
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46 | Histórias de Negros no Ceará
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ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
֎
2
A história não é apenas um objeto diante de nós, distante de nós, fora do nosso
alcance, é também suscitação de nós como sujeitos.
Maurice-Merleau Ponty.
1
Doutor em História Social. Membro do Grupo Trabalhadores Livres e Escravos no Ceará.
48 | Histórias de Negros no Ceará
2
Censo Demográfico de 1872. In: Revista do Instituto do Ceará, tomo XXV, 1911, p. 52.
Eylo Fagner Silva Rodrigues | 49
justiça, no qual os escravos dão a ver quão bem conheciam a Lei 2.040, na
medida em que acionavam dispositivos capitais para fundamentar seus
requerimentos visando à alforria, bem como pedidos de embargos contra
processos iniciados por seus senhores. Portanto, tal documentação deu
base para pensar a liberdade precária a partir da perspectiva dos libertos
e dos escravos em processo de libertação.
Diversas fontes concernentes a esses embates judiciais, travados no
Tribunal da Relação, tinham como pano de fundo o tema do
empobrecimento e das consequências negativas das secas na Província.
Aliás, este constituía o argumento mais recorrente de pequenos
proprietários – isto é, aqueles que geralmente possuíam um ou dois cativos
–, para tentar embargar a concessão de alforria a determinado(s)
escravo(s) ou mesmo para reescravizar pessoas já libertas.
De fato, as secas configuraram cenários diversos em matizes
ambientais e sociais, nos quais inúmeras trajetórias de vida foram
prejudicadas, quer pela concorrência de casos de (re)escravização, quer
por rompimentos abruptos de laços sentimentais de amizade ou amor
tecidos por trabalhadores cativos, traficados para o sudeste brasileiro.
Tanto assim que a intempérie de 1877-1879 se fez presente nos autos da
ação que a escrava Josefa moveu contra a sua proprietária, Raimunda
Carolina Torres. A senhora intentou reaver a escrava Josefa, alegando que
esta não teria cumprido o acordo, outrora firmado, de indenizá-la
mediante a importância de 650$000. Isso porque, dessa dívida, Josefa teria
quitado apenas a parcela de 400$000.
Josefa, diante das circunstâncias que a ameaçavam a retornar à
condição de cativa, deu início, por intermédio de seu curador, à “ação de
embargo de restituição” no Juízo de Direito da 1ª Vara, em Fortaleza. Num
dos documentos redigidos pelo seu curador, lê-se que
3
Arquivo Público do Estado do Ceará. Tribunal da Relação – Embargos de restituição da Fortaleza. Embargante: A
escrava Josefa, Caixa s/n, Pacote 48, nº 1530, 1880, p. 41.
4
APEC. Tribunal da Relação – Embargos de restituição da Fortaleza. Embargante: A escrava Josefa, Caixa s/n, Pacote
48, nº 1530, 1880, p. 38.
56 | Histórias de Negros no Ceará
5
APEC. Tribunal da Relação – Embargos de restituição da Fortaleza. Embargante: A escrava Josefa, Caixa s/n, Pacote
48, nº 1530, 1880, p. 45.
6
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel. Setor de Obras Raras – Lei 2.040. In: Actos do Poder Legislativo
de 1871, p. 149.
Eylo Fagner Silva Rodrigues | 57
7
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 7.
Eylo Fagner Silva Rodrigues | 59
ignorar que houvesse tal disposição de lei”.8 Nesse sentido, como advoga
seu representante,
occorreo [...] que sendo a supe reside n’um lugar mto pouco frequentado, ou
aliás deserto, onde nunca sahi, e vivendo no maior isolamento, n’uma idade
avancadissima, e sem pessoa que cure de seus interesses, nunca teve noticia
da obrigação, que lhe impunha aquelle Reg., de sorte que extincto o praso,
ficou obrigada a provar o seo dominio ou senhorio sobre a dita escrava por via
de acção ordinária [...].9
Esta fonte é bastante rica para refletir acerca da visão dos senhores
sobre o processo de manumissão dos escravos. Alguns senhores não se
incomodavam tanto com a ideia da abolição do elemento servil;
8
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 5.
9
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 2.
10
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 31.
60 | Histórias de Negros no Ceará
Perguntado se elle testemunha tinha tido noticia da nova Lei libertadora dos
ventres das escravas, bem como da obrigação de serem matriculados os
Eylo Fagner Silva Rodrigues | 61
escravos! Respondeu que não soube de haver essa obrigação, mas que teve
noticia daquela Lei.11
11
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 11.
12
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 5.
13
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 18.
62 | Histórias de Negros no Ceará
Não se pode negar que essa tese, vinda de uma proprietária, tinha
sua relevância e poderia influenciar, de algum modo, o juiz municipal
responsável por julgar a ação. Sabendo disso, a defesa das libertas tentou
amenizar o peso desse argumento, sugerindo
que a ignorancia de direito não se presume, nem se pode allegar, tanto mais
quando a lei de que se trata foi publicada pelos jornaes da provincia, e os
prasos para a matricula especial dos escravos, alem de muito extensos, foram
tambem repetidamente annunciados pela imprensa e por editaes.14
14
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 6.
Eylo Fagner Silva Rodrigues | 63
Quantas vezes depois de ferrar no somno era despertado por alguem que me
batia a porta aos murros; era o patrão politico que voltando do palacio do
governo, acordava-me para sellar a sua burra preta, que o conduziria a um
dos subúrbios de Fortaleza, onde veraneava com a familia. Estremunhado,
metia os pés da rede e sahia ao quintal a sellar a alimaria.
O animal, como para contrariar-me, logo que entrava no meu quarto em
procura da rua havia de exercer uma de suas funcções physiologicas. Quando
o excremento era solido ainda bem, mas quando liquido, era um desastre.
Sahido o patrão la ia eu lavar o quarto e suportar o resto da noite a fedentina
da urina da burra. Podia estar livre desses incommodos se fosse chamado para
esse serviço, como era de direito o moleque João, escravo, que dormia em um
visinho ao meu quarto; mas este áquella hora estaria na farra nos subúrbios
da cidade.
O captivo, estando podia sahir e refriar-se, ter uma pneumonia e morrer.
Era um prejuiso de dois a tres contos de réis, tanto valia um homem nos
cafezaes do sul. Eu morrendo, os patrões nada perderiam, viria outro creado
substituir-me (THEÓPHILO, 2006: p. 26-28).
15
APEC. Tribunal da Relação – Ação de escravidão. Apelante: D. Margarida Ferreira de Jesus. Apeladas: as escravas
Benedita e Damiana. Caixa 501, Pacote 71 A, nº 139, 1875, p. 23.
64 | Histórias de Negros no Ceará
não se limitam à forma codificada, processual, vez que se dão para além
dos processos e não se extinguem, objetivamente, com a sua conclusão.
Benedita e Damiana ganharam o processo e mantiveram a condição
de libertas. Esta era a parte que lhes coube, reconhecida pela sentença do
juiz da aludida querela; ou seja, era o que lhes dizia respeito no embate
judicial contra Margarida de Jesus. A liberdade mantida após a luta no
tribunal não deixou, por isso, de ser incerta: continuou exposta aos
mesmos riscos que matizavam a sociedade escravista. Todavia, o caso
suscitou um ganho político que não se limitou apenas às experiências
individuais dessas libertas. Outros escravos que estivessem pleiteando a
alforria na justiça, ou em qualquer outro espaço de luta, poderiam também
reivindicar essa conquista.
Se o status de pessoa livre na sociedade escravista era definido pela
escravidão (GENOVESE, 1979: p. 20) – inclusive, para os trabalhadores
livres pobres amiúde ameaçados de escravização – a liberdade deveria ser
buscada além dela mesma; no entanto, a manumissão, embora conseguida
dentro da legalidade encerrada pelo emancipacionismo do poder público,
já constituía um importante passo dado nesse sentido. Libertar-se nos
meandros das leis significava obter condição instável de liberto, pois não
foi possibilitado aos escravos nada além de uma liberdade precária.
Ademais, o Estado não se furtava a tentativa de definir os sentidos da
liberdade no bojo do processo da abolição, haja vista os combates aos
quilombos em todo o Império, que constituíam experiências de trilhar
caminho para a liberdade à revelia dos auspícios do poder público, isto é,
com certa autonomia.
Como não era conveniente, do ponto de vista hegemônico, nem para
o Governo, nem para a elite proprietária, que os escravos ensaiassem
meios autônomos de negar a escravidão, era preciso concorrer para que a
condição de liberto guardasse ranços do cativeiro. Assim, o ex-escravo,
exercitando a memória, passaria a conceber a sua nova situação civil em
analogia com o status anterior, de sorte a se reconhecer no mesmo lugar
social que sempre ocupou e deveria, desde essa ótica, continuar ocupando.
66 | Histórias de Negros no Ceará
ninguem aprecia ms do que nós a liberdade mas, em quanto não for abolida a
propriedade escrava, a philantropia a que se quer obrigar o senhor si é
philosophica, todavia não está na lei, cujo cumprimento deve ser o pharol dos
tribunais constituidos.
A isto accresce que nesta questão vê-se de um lado, duas donzellas, orphãos
de mãe e na companhia de um pae septuagenário, dignas de todos os respeitos
por suas virtudes, tanto ms apreciaveis quanto realçam na obscuride de
grande pobreza; e de outro – duas escravas prostituidas e concubinadas,
indignas por si das attenções e complacencia do egregio tribunal.
Si, pois, valem o direito e a moral, as appeladas esperam justiça de magistrados
que fazem a honra da sua classe, e.16
Está-se diante, mais uma vez, da retórica com a qual se lamenta uma
situação constituída, mas pela qual não se quer sacrificar o direito de
propriedade. Ademais, na interpretação do aludido advogado, mesmo
niveladas na pobreza, a moral seria um valor que diria respeito às
senhoras, não às cativas. Seria, aliás, um disparate postular, em juízo,
valores morais em escravas que mal teriam personalidade jurídica –
seriam indignas até da atenção daquela corte, pela condição de mulheres,
de negras, de ex-escravas e de pobres. Seguindo certa interpretação muito
16
APEC. Ação civil de liberdade. Apelantes: o juiz de Direito e as escravas Eufrazia e Theodora. Caixa 423, Pacote 32
A, nº 1582, 1880, p. 34-35.
68 | Histórias de Negros no Ceará
não havendo quem se diga, por qualquer meio ou modo, senhor das escravas
sinão as Embargantes, e não tendo aquellas sido alforriadas por ninguem, á
estas deve pelo menos a justiça attribuir-lhes licito interesse [destaque do
original] para matricular ditas escravas como suas.17
17
APEC. Tribunal da Relação – Ação civil de liberdade. Apelantes: o juiz de Direito e as escravas Eufrazia e Theodora.
Caixa 423, Pacote 32 A, nº 1582, 1880, p. 41.
Eylo Fagner Silva Rodrigues | 69
Desde que a desarrasoada obstinação das Embes não se apoia na lei, só pode
achar explicação no aproveitamento do dinheiro, producto da venda das
Embgdas como escravos: é esta sem duvida a mola real de tamanho esforço,
18
APEC. Tribunal da Relação – Ação civil de liberdade. Apelantes: o juiz de Direito e as escravas Eufrazia e Theodora.
Caixa 423, Pacote 32 A, nº 1582, 1880, p. 43.
70 | Histórias de Negros no Ceará
19
APEC. Tribunal Relação – Ação civil de liberdade. Apelantes: o juiz de Direito e as escravas Eufrazia e Theodora.
Caixa 423, Pacote 32 A, nº 1582, 1880, p. 48.
72 | Histórias de Negros no Ceará
moral – desde a ótica da moralidade cristã, haja vista, sobretudo, que uma
das raízes dessa corrente remete ao Velho Testamento e ao Evangelho
(BOBBIO, 2006: p. 26). Não é difícil identificar que, ao tentar desautorizar
a visão do direito que há por trás da defesa do jus à liberdade das
embargadas, as embargantes recorreram a um argumento moralista;
apesar de se arrogarem asseguradas pelo direito positivo, pela
racionalidade objetiva e supostamente inerente à prerrogativa legal do jus
de propriedade.
Releva ainda ponderar que, se tanto o direito natural, quanto o
positivo, foram apropriados para objetar propostas de resolução da
questão servil, as leis emancipacionistas, mesmo positivas, guardaram
certa carga de sentido moral, como, aliás, deu a ver o mais ilustre dos
abolicionistas, Joaquim Nabuco, para quem a Lei 2.040, particularmente,
provocou um impacto de ordem moral na sociedade brasileira (NABUCO,
2003: p. 119-120). Com efeito, como já se argumentou antes, a partir de
1871, quando passou aquela lei, os escravos motivaram-se a dar início a
muito mais processos na justiça contra os senhores. Em geral, o
requerimento funda-se numa lei positiva, mas, nas ações mais prolixas, no
sentido de uma crítica da sociedade escravista, observa-se toda uma
retórica eivada dos pressupostos jusnaturalistas. Aqui, uma vez mais, cite-
se Bobbio, para quem os direitos naturais são direitos históricos. E mais:
é patente, dentre outros, a centralidade do jus à liberdade (BOBBIO, 2004:
p. 02). Para Bobbio, os direitos naturais, a exemplo da liberdade,
constituem um limite ao poder do Estado, na medida em que antecede o
seu próprio surgimento. Por isso, os direitos naturais devem ser
considerados históricos, independentes de quaisquer constrangimentos
impostos pela vontade de outro indivíduo ou pela do Governo (Idem.,
Ibidem.: p. 49).
Dito isso, os processos aqui lidos, em geral, encerram longas disputas
em torno da liberdade. Estas que se dão, por sua vez, a partir de leituras
da Lei 2.040 e de concepções do Direito. Nesse ponto, deve-se ponderar
que a lei é uma abstração baseada na necessidade de mediação de diversos
Eylo Fagner Silva Rodrigues | 75
Referências
BOBBIO, N. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004.
______. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.
____. Ideologia e contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
BRÍGIDO, J. Ceará: homens e fatos. Rio de Janeiro: Typ. Besnard Frères, 1919.
________. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FORNER, E. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e
Terra; Brasília: CNPQ, 1988.
(Orgs.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São
Paulo: Annablume, 2006, p. 75-96.
FUNES, E. Nasci nas matas nunca tive senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas. São Paulo: USP, Tese de Doutorado, 1995.
_____. Negros no Ceará. In: SOUSA, S. de (Org.). Uma nova história do Ceará. 4ª ed.
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007, pp. 103-132.
GENOVESE, E. D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz
e Terra; Brasília, DF: CNPQ, 1988.
MATTOSO, K. M. de Q. Ser escravo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.
________. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Trad. Denise Bottman. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
֎
3
Juliana M. Linhares 1
Introdução
1
Mestre e doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail:
[email protected]
Juliana M. Linhares | 83
2
A lei Rio Branco ou Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, por exemplo, permitiu que escravos que não fossem
matriculados por seus senhores fossem considerados livres, aumentando consideravelmente o número de ações de
liberdade por esse motivo. A referida lei tornou legal algumas práticas já existentes como o pecúlio, possibilitando a
liberdade daqueles que já viviam “sobre si”.
84 | Histórias de Negros no Ceará
3
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP). Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Cearense, 3 de
abril de 1873.
4
Como exemplo, a seca que assolou a Província no final da década de 1870.
5
BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Cearense, 3 de abril de 1873.
Juliana M. Linhares | 85
6
BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Cearense, 7 de setembro de1879.
7
Não esqueçamos que o número de escravos em Fortaleza caiu nesse período em decorrência do tráfico
interprovincial e da seca de 1877, período em que os negociantes e compradores deram preferência à venda de
homens e mulheres jovens, ficando na capital, depois da seca, sobretudo, mulheres de mais idade, ligadas ao serviço
doméstico.
8
Interessante perceber que, no caso das ofertas de trabalho para cozinheiros e copeiros, as vagas são indicadas tanto
para homens quanto para mulheres.
86 | Histórias de Negros no Ceará
9
BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Pedro II, 10 de julho de 1874.
10
Idem, ibidem.
11
BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Pedro II, 8 de novembro de 1874.
Juliana M. Linhares | 87
que garante um bom trabalho por comodo preço. O valor do serviço passa
a ser um diferencial a mais no anúncio, principalmente se pensarmos
numa conjuntura onde havia um grande número de pessoas trabalhando
naquele tipo de serviço, como era o caso de Fortaleza.
Serviços como o de engomadeira, cozinheira, ama de leite e copeiro
se enquadravam em um amplo leque de especializações ligadas ao serviço
doméstico. Quanto mais especialista fosse um criado, mais cara seria a sua
mão de obra. Para os escravizados, esses saberes e habilidades
significariam mais renda no caso do ganho ou aluguel.
A historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias fala sobre esta questão
em São Paulo, mais sobre o “mito da dona ausente”. Eram mulheres bran-
cas empobrecidas, que evitavam o espaço da rua, tomado como impróprio.
Para a autora, havia algumas saídas para aquelas desafortunadas: as op-
ções eram os seminários ou o serviço doméstico como agregadas (DIAS,
1995: p. 98). No final do século XIX, a sociedade se transformava e Dias
afirma que:
preocupação? Por que aqueles que trabalhavam nos serviços da casa foram
alvo de tanta discussão por parte de políticos e da sociedade?
Art. 1º. É considerado creado ou creada, para todos os effeitos desta postura,
quem quer que sendo de condição livre, tiver ou tomar mediante salario, a
ocupação de moço de hotel, caza de pasto ou hospedaria, ou de cozinheiro,
copeiro, cocheiro, hoteleiro ou de ama de leite, ama seca, lacaio e em geral a
de qualquer serviço domestico.12
12
CEARÁ. Arquivo Público do estado do Ceará (APEC). Fundo: Câmara Municipal. Ala 02. Estante: 01. Prateleira: 02.
Caixa 40. Série: Projeto de posturas para o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
Juliana M. Linhares | 89
Este estado [situação] pede remédio especial, como foi especial a philantropia
que o determinou, creando-se consequentemente vantagens e vínculos jurídi-
cos entre o amo e o servo, o locador e o locatário, dignos de um povo que, á
seus próprios esforços, instituio aquelle regimem do trabalho livre.14
13
CEARÁ. BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Pedro II, 7 de abril de 1887.
14
Idem, ibidem.
90 | Histórias de Negros no Ceará
15
CEARÁ. BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Pedro II, 16 de junho de 1887.
16
CEARÁ. BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Pedro II. 16 de junho de 1887.
17
CEARÁ. BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Pedro II. 16 de junho de 1887.
Juliana M. Linhares | 91
18
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara Municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
19
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara Municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
92 | Histórias de Negros no Ceará
20
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara Municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
21
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara Municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
Juliana M. Linhares | 93
Os registros de criados
Art 5º. Quem tomar um creado devera escrever na caderneta o seu contrato e
no caso de sahida do creado devera certificar na mesma caderneta o motivo
da sahida e o procedimento do creado durante o tempo de serviço.
§ 1º o contracto devera ser feito pela seguinte forma: “tomei hoje ... por ....
mezes para meu serviço como .... a ... registrado sob o nº ... pelo salário mensal
de ... data e assignatura.
§ 2º o contracto podera ser feito por tempo indeterminado, mas em qualquer
caso sera logo transcripto no livro dos certificados.
Art 4º. Ninguem podera tomar a seu serviço creado ou creada que não esteja
inscripto no registro e não possua a caderneta de que trata o artigo
antecedente com o certificado de seu procedimento passado pela ultima pessoa
a quem tiver servido.22
22
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
23
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894. Para Maria Izilda Matos, “a ampliação do campo de ação da
medicina, e em particular da higiene, influencia diretamente a cidade e as casas, e nestas o trabalho doméstico”. Ver:
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. Cit., p. 126.
Juliana M. Linhares | 97
Art 11º nenhum patrão que tenha contractado os serviços do creado por tempo
indeterminado podera despedil-o sem previo aviso de dez dias exceto se
houver justa causa. Tambem não podera despedil-o sem previo aviso de dez
dias, exceto se houver justa causa. Tambem não podera despedil-o antes do
fim do prazo de um contracto, excepto se igualmente houver justa causa.
Art 12º são justas as causas seguintes: 1º doença do creado que o prive de
prestar os serviços para que foi ajustado; 2º embriaguez; 3º recuza por parte
do creado de cumprir suas obrigações, ou impericia para o serviço ajustado;
4º negligencia ou desmazelo no serviço depois de advertido pelo patrão; 5º
sahida de caza sem licença ou ordem do patrão; 6º injuria, calumnia, ou
qualquer outra ofensa criminosa feita ao patrão ou a qualquer pessoa da
familia desta; 7º a pratica de actos contrarios a lei, a moral e aos bons
costumes; 8º infidelidade; 9 º excitar o creado discordia na familia.24
24
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
98 | Histórias de Negros no Ceará
Candida [...] 12 para 13 annos de idade [...] disse que era maltratada pela mu-
lher de Octaviano [...] Não tem o corpo da infeliz uma pollegada onde não haja
sicatriz velha ou nova! O vestido com que fugiu está a largar os pedaços [...]
Maria [...] 22 annos de idade [...] tem, alem de muitas sicatrizes antigas, um
olho perdido em conseqüência de pancadas que lhe deu seu proprio amo [...].25
Art 28º o creado que sem justa causa abandonar a casa de seu patrão sem o
previo aviso de dez dias ou antes do findo o prazo de seu contracto sofrera de
multa a importancia correspondente ao salario de um mez. Si o contracto for
por tempo indeterminado e mais tres dias de prisão e si o contracto for por
tempo certo sofrera de multa a importancia correspondente ao salario do
tempo que falta para findar o seu contracto e mais tres dias de prisão.26
25
CEARÁ. BPGMP. Setor de Microfilmes. Fortaleza. Jornal Libertador. 6 dez. 1886. Obs.: na edição seguinte (p. 2), o
nome é corrigido: Octaviano Ambrosio da Silva Machado.
26
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara Municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data: 1881-1894.
27
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
Juliana M. Linhares | 99
28
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
29
CEARÁ. APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará (1823-1889). Ala 4. Estante 4. Prateleira 21. Nº novo do livro:
5. Nº antigo do livro: 71. Matrícula dos criados. Data: 1887, p. 4.
100 | Histórias de Negros no Ceará
30
CEARÁ. APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará (1823-1889). Ala 4. Estante 4. Prateleira 21. Nº novo do livro:
5. Nº antigo do livro: 71. Matrícula dos criados. Data: 1887, p. 14.
31
CEARÁ. APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará (1823-1889). Ala 4. Estante 4. Prateleira 21. Nº novo do
livro: 5. Nº antigo do livro: 71. Matrícula dos criados. Data: 1887, p. 14.
Juliana M. Linhares | 101
Rita havia sido contratada para todo o serviço da casa, que envolvia
a parte externa e interna, exceto engomar. Um caso interessante, pois ha-
via, geralmente, uma diferenciação sobre o trabalho na rua e no interior
das casas. A quantia acertada pelo serviço foi quatro mil réis, o tempo era
indeterminado; mas Rita deve ter encontrado melhores ofertas, já que pe-
diu demissão da casa do senhor Antonio Paulino dois meses depois. Rita
Maria recebeu então o seguinte certificado:
32
CEARÁ. APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará (1823-1889). Ala 4. Estante 4. Prateleira 21. Nº novo do
livro: 5. Nº antigo do livro: 71. Matrícula dos criados. Data: 1887, p. 15.
102 | Histórias de Negros no Ceará
33
CEARÁ. APEC. Fundo: Câmara municipal. Ala 2. Estante: 1. Prateleira: 2. Caixa 40. Série: Projeto de posturas para
o serviço doméstico. Local: Fortaleza. Data 1881-1894.
34
CEARÁ. APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará (1823-1889). Ala 4. Estante 4. Prateleira 21. Nº novo do
livro: 5. Nº antigo do livro: 71. Matrícula dos criados. Data: 1887, p. 15v.
35
CEARÁ. APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará (1823-1889). Ala 4. Estante 4. Prateleira 21. Nº novo do
livro: 5. Nº antigo do livro: 71. Matrícula dos criados. Data: 1887, p. 9v.
Juliana M. Linhares | 103
36
CEARÁ. APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará (1823-1889). Ala 4. Estante 4. Prateleira 21. Nº novo do
livro: 5. Nº antigo do livro: 71. Matrícula dos criados. Data: 1887, p. 15.
104 | Histórias de Negros no Ceará
Considerações finais
Referências
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas de escravidão
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras,1990.
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Criadas para servir: domesticidade, intimidade e retribui-
ção. In: ______; GOMES, Flávio (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da
pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 377-418.
DIAS, Maria Odila L. da S. Quotidiano e poder. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
FUNES, Eurípedes. “Negros no Ceará”. In: SOUZA, Simone de (Org.). Uma nova história
do Ceará. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2000.
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Ja-
neiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
HAHNER, June Edith. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil − 1870/1920. Brasília,
DF: EdUnB, 1993. 428 p.
֎
4
1
Doutor em Educação Brasileira e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:
[email protected]
108 | Histórias de Negros no Ceará
2
Área entre a Estação (Ferroviária) Central de Fortaleza (atual Estação Professor João Felipe) e o mar; próxima ao
que seria hoje o Bairro Moura Brasil.
3
O PÃO... da Padaria Espiritual. Jornal. Fortaleza, 24 dez. 1896. Edição fac-similar. Fortaleza: Edições UFC/Academia
Cearense de Letras/Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1982, p. 3.
4
A palavra “negro(a)(s)”, utilizada neste texto, como nome ou adjetivo, segue a noção proposta por Ribard (2002:
p. 136), ou seja, “não como categorias designando conjuntos populacionais homogêneos meramente marcados
pelas idéias de raça ou de cor e sim muito mais como referenciais definindo categorias identitárias alimentadas de
maneira interna e externa à própria comunidade e associadas a valores e representações que mudam seguindo os
contextos históricos situacionais”.
Janote Pires Marques | 109
5
A coroação de um rei e de uma rainha negros existiu oficialmente na Irmandade do Rosário de Fortaleza até meados
de 1873, ano em que a confraria teve seus estatutos modificados e transformados em uma nova Lei. (Cf. CEARÁ.
Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel – BPGMP, Resolução nº. 1538/1873, 1874).
Janote Pires Marques | 113
Por esse tempo, ainda não havia maiores restrições quanto aos locais
de apresentação, desde que se pagassem as taxas e fosse autorizado pela
polícia. Geralmente, os congos dançavam em frente à Igreja do Rosário de
Fortaleza e depois se dirigiam a determinadas casas de família, onde ence-
navam reminiscências da história africana e, também, recebiam em troca
alimentos, bebidas e até mesmo algum dinheiro. (NOGUEIRA, 1980: p. 3).
Entretanto, a associação de festas populares à baderna e à desordem
motivaram a iniciativa pessoal de alguns chefes de polícia para reprimir
manifestações, como os congos, bumba-meu-boi e sambas. Foi o caso de
Joaquim Pauleta de Bastos Oliveira. Nomeado para chefe de polícia do Ce-
ará, em setembro de 1885, passou a exigir dos delegados e subdelegados
da província um “profundo respeito a lei” a fim de garantir o bem-estar
das respectivas localidades, a manutenção da ordem pública, a segurança
individual da propriedade, prevenir e reprimir crimes. Sobre tudo isso, o
Dr. Pauleta exigia “pontualmente o conhecimento de qualquer ocurrencia
com declaração das providencias tomadas.”7
6
CEARÁ. Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), 1868, livro nº 2, fl 14 v.
7
CEARÁ. APEC, 1885, livro nº. 336, fl. 10v. e 11.
114 | Histórias de Negros no Ceará
logo que foi nomeado para o cargo, distribuiu um ofício chamando a aten-
ção do delegado e subdelegados:
Fortaleza - Chamo a sua atenção para a frequencia dos factos criminozos que
se dão em sambas, renovo-lhe as recomendações desta chefia de policia no
sentido de serem efficazmente prohibido taes divertimentos salvo o caso de
prévia licença. Joaquim Pauleta Bastos de Oliveira.8
8
CEARÁ. APEC, 1885, livro nº. 336, fl. 18 v.
118 | Histórias de Negros no Ceará
9
Utilizamos a palavra “elite” aqui para nos referirmos a uma minoria (não necessariamente unitária ou monolítica)
que, por várias formas, foi detentora de certo poder (político, econômico, intelectual), em contraposição a uma
maioria (incluindo os negros) que dele foi privada ou que, pelo menos, teve dificultado o seu exercício. Para um
estudo sistemático das elites, ver o livro organizado por Heinz (2006), publicação na qual se faz um balanço dos
estudos historiográficos de elites e das metodologias empregadas, bem como traz estudos monográficos de vários
autores sobre diversos grupos de elites de diferentes locais e em diversos momentos históricos.
Janote Pires Marques | 121
10
CEARÁ. BPGMP, Constituição, 16 fev. 1882, p. 1.
11
CEARÁ. BPGMP. Resolução nº. 1818, 1879.
122 | Histórias de Negros no Ceará
criar sua cultura, como faziam os cativos sambistas ao fugir para cantar,
tocar ou dançar em sambas, desafiando os senhores, as posturas e a polí-
cia. Como defende João José Reis, para o escravo sobreviver foi precisa
muita luta. “E se viver é lutar, sobreviver e ainda criar uma cultura com
expressão de liberdade que a cultura negra possui, é lutar dobrado” (REIS,
1983: p. 108).
A resistência podia assumir uma infinidade de formas simbolizadas
nas festas, que eram espaços para trocar ideias, tecer acordos, fazer críticas
sociais por meio das letras das músicas. Mas, apesar dos múltiplos signifi-
cados (interligados, vale ressaltar) que poderiam assumir para seus atores,
essas festas foram instrumentos para a ocupação e apropriação de espaços
em Fortaleza.
De acordo com Michel de Certeau (1994: p. 201-202), “espaço é um
lugar praticado. Assim, a rua geometricamente definida por um urba-
nismo é transformada em espaço por pedestres”. Dessa forma, lugares
“controlados” (como praças, ruas, terrenos, Igreja do Rosário e adjacên-
cias) pelas autoridades e que eram alvos da reurbanização pela qual
passava Fortaleza em fins do século XIX eram, também, transformados em
espaços apropriados pelos atores das festas negras. Na Praça de Pelotas,
durante o período natalino, havia uma parte cercada que se tornava terri-
tório dos congos, impregnada de símbolos e imagens que remetiam a uma
África distante; ali, os congos assumiam o controle e praticavam uma cul-
tura negra em Fortaleza. A festa não apenas tornava o espaço da praça
território dos congos, mas permitia que, através dela, a territorialidade
fosse efetivamente exercida.
Por outro lado, a conquista desse território12 não se dava sem a dis-
puta com outros sujeitos ou grupos sociais, como aqueles que atacavam
“as propriedades dos moradores da Praça de Pelotas”13 ou um grupo de
rapazes que tinha “o habito de arremessar pedras e areia contra os carros
12
As noções de “território”, como segmento do espaço, via de regra delimitado, que resulta da apropriação e controle
por parte de um determinado agente social; e de “territorialidade”, como a forma (ação) de controle do território,
aparecem aqui a partir de Rosendhal (1996) e de Silva; Souza (2006).
13
APEC, 1890, livro nº. 265, fl. 34.
124 | Histórias de Negros no Ceará
14
APEC, 1890, livro nº. 265, fl. 56.
15
BPGMP, Libertador, 7 dez. 1883, p. 3.
16
Segundo Menezes (1992, p. 39), a companhia de trens (bondes) que fazia a linha de Pelotas era a “Ferro Carril
Cearense”, inaugurada em junho de 1879. Em 1895, essa Companhia possuía mais de 11 quilômetros de linha e servia
diversos pontos da cidade e “arrabaldes”.
Janote Pires Marques | 125
DESORDENS
No domingo a tarde no Alto do Pajehú houve um grande rolo entre varias pra-
ças do 15º de Infantaria, as quaes se achavam em um samba, onde são
frequentes as desordens. Da lucta resultou o ferimento grave de um soldado.
O criminoso fugiu e occultou-se no sitio de Elias Ferreira Gomes. O Sr. Joa-
quim Nogueira chamou 2 praças que passavam para prenderem-no, mas elles
reccusaram-se. Felizmente nessa occasião tambem passava o cabo da policia
Abel Rodrigues Pimentel, que ajudado por 4 emigrantes conseguirão a captura
do delinquente. O Sr. Comandante do 15 apenas teve conhecimento do facto e
expediu uma força commandadea por um official a fim de prender os desor-
deiros, porem todos já se tinham dispersado. Em casa d’esse Bento Rodrigues
ha constantemente samba.17 (BPGMP, Cearense, 9 ago. 1877, p. 3).
17
CEARÁ. BPGMP. Cearense, 9 ago. 1877, p. 3.
18
CEARÁ. APEC, 1890, livro nº. 265, fl. 9 v.
126 | Histórias de Negros no Ceará
19
CEARÁ. BPGMP, A Republica, 22 dez. 1898, p. 4.
Janote Pires Marques | 127
Referências
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Cearense. Compromisso da Irmandade da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
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Janote Pires Marques | 129
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1885. Ala 3, estante 44, livro nº. 336, fls. 10v e 11 (7 out. 1885), 18v (03 nov. 1885).
______. APEC, Fundo Secretaria de Polícia do Ceará. Registro de Officios a diversas auto-
ridades. 1890. Ala 2, estante 27, livro nº. 265, fls. 09 (11 jan. 1890), 34 (2 jun. 1890),
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ção nº. 1538, de 23 de agosto de 1873 (Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário da Capital). In: Colleção de actos legislativos da Provincia do Ceará pro-
mulgados pela respectiva Assemblèa no anno de 1873. Fortaleza: Typographia
Constitucional, 1874.
______. Setor de Obras Raras. Resolução nº. 1833, de 15 de setembro de 1879. Approva
posturas da camara municipal da Fortaleza. In: Colleção de actos legislativos da Pro-
vincia do Ceará, promulgados pela respectiva Assemblèa no anno de 1879. Fortaleza:
Typographia Brazileira, 1879.
______. Núcleo de Microfilmagem, rolo nº. 319. A Republica. Jornal. Fortaleza, 22 dez.
1898.
______. Núcleo de Microfilmagem, rolo nº. 84. Cearense. Jornal. Fortaleza, 9 ago. 1877.
______. Núcleo de Microfilmagem, rolo nº. 315. Constituição. Jornal. Fortaleza, 16 fev.
1882.
______. Núcleo de Microfilmagem, rolo nº. 189. Libertador. Jornal. Fortaleza, 07 dez. 1883.
130 | Histórias de Negros no Ceará
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VELHO, Gilberto. Entrevista. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 28, 2001.
֎
5
1
Graduado em Ciências Sociais e Mestre em História Social pela UFC. Professor do curso de Serviço Social da
UniAteneu.
José Hilário Ferreira Sobrinho | 133
para que isso seja realizado, é necessário todo um jogo político, como nos
diz Genovese: “[...] no mundo ocidental moderno classe alguma poderia
governar por muito tempo sem alguma capacidade de apresentar-se como
a guardiã dos interesses e das aspirações dos governados” (GENOVESE,
1987: p. 48).
Essa ambivalência presente na lei é o ponto essencial para compre-
ender a preservação e legitimação desse direito positivo nas sociedades
modernas. E que fora muito bem utilizado pelas classes dirigentes para se
instalar no poder e ditar, em parte, as regras que de forma lenta (não sem
conflito) foram substituindo alguns direitos costumeiro, transformando-
os em direito positivo, um dos grandes instrumentos de legitimação da
sociedade moderna. Thompson nos mostra muito bem como isso foi pos-
sível: “A condição prévia essencial para a eficácia da Lei, em sua função
ideológica, é de que mostre uma independência frente a manipulações fla-
grantes e pareça ser justa. Não conseguirá parecê-lo sem preservar sua
lógica e critérios próprios de igualdade; na verdade, às vezes sendo real-
mente justa” (THOMPSON, 1987: p. 354).
É minha intenção utilizar aqui essas reflexões, cruzando-as com
nosso objeto de estudo, pois acredito que possibilitará um maior esclare-
cimento das Ações Cíveis e de Liberdade, muito usadas no Brasil do século
XIX pelos escravos e por entidades negras religiosas (irmandades) na ob-
tenção de alforrias. E isso só era possível através da acumulação de um
pecúlio, que o escravo deveria obter a partir do seu valor estipulado pelo
senhor, ou que as irmandades, através de ações comunitárias, juntariam
até conseguir o valor estimado, e assim comprar a alforria.
A introdução nas pesquisas da experiência enquanto categoria de
análise veio enriquecer a produção historiográfica, na medida em que
abriu espaço para novos enfoques sobre a participação de determinados
grupos sociais ou indivíduos na História. Tal procedimento possibilitou
perceber e resgatar, de um silêncio imposto, vozes que até então não eram
escutadas. Assim, partindo de uma nova perspectiva metodológica, de um
134 | Histórias de Negros no Ceará
A Consciência
15. 09.1867
2
Barril em que, antigamente, transportavam-se, para despejo, materiais fecais. 2. Criado ou escravo que fazia esse
transporte (SEISÍNIO, 1997: p. 307).
136 | Histórias de Negros no Ceará
Pedidos
Chama-se a attenção da Polícia, ou de quem competir, para acabar com o cos-
tume que tem pretos, de andarem antes das nove horas da noite visitando as
ruas com os “tigres”, nas cabeças; de sorte que não se pode andar mais nas
ruas ou depois das oito horas, nem tão pouco as famílias estão nas calçadas:
pois isto não é insupportável? Por mais de uma vez já tenho encontrado-me os
tais “tigres”, dos quais sou obrigado a fugir sem poder tomar respiração por
causa do mau cheiro.
E assim espera-se que será extinto de todo este costume, por que não só serve
de obstáculo ao transito público como também incomoda as famílias.
Um da venta grande.3
3
CEARÁ. Biblioteca Pública Menezes Pimentel (BPMP). Setor de microfilmes – A Consciência, nº 147, Ano IV,
Fortaleza, 1867, p. 3.
José Hilário Ferreira Sobrinho | 137
Pedro II
11/12/1867
No termo de lavras, comarca do Iço, alguns escravos com armas nas mãos ten-
taram pugnar por sua liberdade, viram frustrada os planos pelas medidas de
repressão tomadas pelo delegado de policia. Essa tentativa parece uma conse-
qüência das idéias emancipadoras apresentadas no parlamento pelo ministério
actual, e que repercutiram nos nossos sertões. Felizmente não houve desgraça
a lamentar-se, segundo consta de um oficio de Exmo. Presidente da Província
ao chefe de Policia, publicado em Progressista de 7 do corrente.4 (grifo meu)
4
CEARÁ. BPMP. Setor de microfilmes – Pedro II, nº 274, Ano XXVIII, Fortaleza, 1867, p. 1.
138 | Histórias de Negros no Ceará
Ação de Liberdade
Diz Clara Maria da Conceição, escrava que foi doseu Joaquim da Frota Vascon-
celos, por seu criador, que tendo sido espellido desde maio do anno próximo
passado para fora de casa do supp.do, e que desde essa data a supp.e, se tem
conservado em abandono, vivendo, como liberta sustentando-se e a treis filhos
ingênuos, do socorros publicos e fruto de seu trabalho, e em caza pela supp.e
Allugada, sem que o mesmo supp.do tenha manifestado desejo de manter a
supp .e no cativeiro, facto este, público e notório, que cabe plenamente debaixo
da sanção do art. 76 do regulamento nº 5135 de 13 novembro de 1872, pois que
residindo o supp.do e sendo conhecido nesta cidade, jamais, desde aquella
dacta manter a supp.e em sujeição, e manifestou querer mante-la sob sua au-
toridade. [...] 5
Clara é uma dentre muitas escravas que tem consciência do seu papel
na sociedade escravista. E de como funcionava a relação paternalista entre
o senhor e os seus escravizados. E esta consciência não se limitava a sua
condição de cativa. O que sua ação de liberdade demonstra, a partir dos
argumentos apresentados, é que por mais que as relações paternalistas
5
CEARÁ. Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Ações Civeis 1879. Proc.10. Pac.28. Nº425 do Archivo.
José Hilário Ferreira Sobrinho | 139
cativo tivesse ciência de algum direito. Usava-se isso como forma de levar
o escravo a pensar que dependia dos senhores para ser livre. Pois era dos
senhores a última palavra. E aqui a relação paternalista exercia sua função.
Chalhoub chama a atenção para o fato de o “paternalismo, como
qualquer outra política de domínio, [possuir] uma tecnologia própria, per-
tinente ao poder exercido em seu nome: rituais de afirmação, práticas de
dissimulação, estratégia de estigmatização de adversários sociais e políti-
cos, eufemismo e, obviamente, um vocabulário sofisticado para sustentar
e expressar todas essas atividades” (CHALHOUB, 2001: p. 95). A partir
dessa definição, podemos perceber que as práticas dos proprietários de
escravos se encaixam bem aqui.
Contudo, alguns direitos consuetudinários foram tornando-se legais
a partir da segunda metade do século XIX − algo que até aquela data esteve
muito presente nas relações entre senhores e cativos, como um “costume
comum” (Idem). Para Manuela Carneiro da Cunha, a transformação de
um costume em lei nada mais era do que uma questão política:
Pedro, cabra, com sincoenta e tantos anos de idade, altura regular, secco de
corpo, rosto descarnado, pouca barba, algua coisa calvo, pernas finas, rendido
de uma verilha; fugiu em outubro do anno próximo passado, da Villa do Porto
Alegre, província do Rio Grande do Norte: consta que dito escravo morasse na
cidade do Iço, de uma carta falsa em nome de seo Sr. Que é o abaixo assignado,
concedendo-lhe licença para andar tirando esmollas afim de ser liberto, e na
posse desse documento apariceu no sitio Roncador do termo da Barbalha, ha-
vendo toda desconfiança axar-se dito escravo oculto naquelle ou neste termo.
Quem opegar, ou delle der noticia no Escritório da Typographia do Araripe
será pago de seo trabalho. Crato 15 de Janeiro de 1856. Pelo Pe. Leite Pinto;
Antº Glz de Olivª.6 (grifo meu)
6
CEARÁ. BPMP. Setor de microfilmes. Jornal O ARARIPE, 26 de janeiro de 1856. Nº 30, Fortaleza, p. 4.
142 | Histórias de Negros no Ceará
O Comercial
03/09/1857
O abaixo assinado faz ciência aos habitantes desta cidade, que não façam ne-
gocio algum com seos escravos relativamente a obras de marcineiros, sem o
consetimento do seo senhor, que há poucos dias entrou no conhecimento q’al-
gumas pessoas tem comprado ou mandado fazer peças de súbito valor, e por
attenção tem deixado de proceder contra taes indivíduos, que estes abusos tem
o annunciante sofrido enorme prejuízos: por isso faz o presente amenção para
evitar qualquer occasião de incommodos e não se chamem depois de ignoran-
cia. Ceará 20/8/1857.8
7
CEARÁ. BPGMP. Setor de microfilmes – Jornal O Cearense – Ano XXXI, Nº 23, 18 de março de 1877.
8
CEARÁ. BPGMP. Setor de microfilmes – O Comercial nº 268, Ano V, 3 de setembro de 1857, p. 4.
José Hilário Ferreira Sobrinho | 143
Diz o escravo Ângelo, por seo curador abaixo assignado, que, achando-se de-
positado a quantia de 150$000#, que o supplicante julga sufficiente para a
servir de indenização ao seo senhor pela sua alforria, vem requerer à V.S. que
, na forma da lei, . Digne-se mandar convidar o seo senhor, Francisco Cabral
de Maria Agnior, morador no lugar – Mulungú, deste Termo, afim de asceitar,
como, como preço a indenização, à que tem direito, como senhor do suppli-
cante, a quantia que este offerece para sua libertação.
E. R. M.
Sobral 10 de Março de 1883
O Curador Antonio Ibiapaba.9
9
CEARÁ. APEC. Ações Cíveis 1883 – Nº 388 do archivo / Pacote:28 – Proc. 11
144 | Histórias de Negros no Ceará
E. R. M.
Sobral 17 de Março de 1883
O curador
Antonio Ibyapina10
Uma questão interessante, para o leigo que não possui algum conhe-
cimento sobre o assunto, é que quando não havia algum acordo entre a
10
CEARÁ. APEC. Ações Cíveis 1883 - Nº 353 do registro - Proc. - 12 / Comarca de Sobral - Pacote 28.
José Hilário Ferreira Sobrinho | 145
Diz a escrava Genoveva, por seo curador abaixo assignado, que, não tendo o
seo senhor, Manoel Ferreira da Pontes, acceitado a quantia que a supplicante
offerceo como indenização de sua alforria vem requerer a V.S. que, sollicitada
a devida venia, digne-se mandar citar o seo referido senhor para no logar, dia
e hora, por V.S. dignado, vir nomear e escolher louvados e arbitradores, afim
de resolver-se por meio do arbitramento o preço, que deva servir de indeniza-
ção ao seo senhor, pela libertação da supplicante [...]
P. e V.S. Deferimento
E.R.M
Sobral 5 de Abril de 1883
O curador11
11
Arquivo Público do Estado do Ceará. Ações Cíveis – Proc. 12. Nº 353 do Registro.
146 | Histórias de Negros no Ceará
Referências
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José Hilário Ferreira Sobrinho | 147
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dução Denise Bottmann. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1987.
֎
6
1
O presente artigo faz parte da dissertação intitulada – Uma tragédia em três partes: o motim dos pretos da Laura
em 1839 – defendida em 2010 no Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC).
2
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Jofre Teófilo Vieira | 149
3
BRASIL. Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Rio de Janeiro. Jornal Pedro II, Fortaleza (CE), nº 274, p. 1.
4
CEARÁ. Relatório do presidente da província do Ceará, João Antonio de Miranda, 1º de agosto de 1839, p. 5.
Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil/provincial>.
150 | Histórias de Negros no Ceará
A realização do motim
5
MARANHÃO. Biblioteca Pública Benedito Leite (BPBL). Setor de Microfilmes. Chronica Maranhense, São Luís (MA),
nº 149, 4 de julho de 1839, p. 601.
6
Loc. Cit., p. 601-2.
Jofre Teófilo Vieira | 151
Sahio para Pernambuco o Brigue Escuna Brazileiro Laura 2ª, Mestre Franco
Ferra. da Silva, e Proprietario, José Ferra. da Silva & Irmão. Tripulação 14 pes-
soas, com Malla para o Correo, Carga Diverços Generos. Passageiro Luiz
Felicianno Prates e os negros Escravos Molato Agosto escravo de Carvo Sobri-
nho, escravo Damazo de Wensesláu Bernardino Freire, Juvita [Jovito] escravo
de Manoel da Silva Sardinha, Luiz escravo de Anto das Neves Marques, João
Escravo de Guilherme Secharff, Benedicto escravo de Anto Gonçalves Ma-
chado.8
7
Segundo Freire Alemão “este lugar é chamado o Cajueiro do Ministro porque neste lugar havia um rancho antigo e
em frente dele um vasto cajueiro. Quando os ouvidores ou ministros da justiça andavam em correição, o dono do
sítio mandava preparar o rancho e limpar o cajueiro por baixo, donde ficou o nome de Cajueiro do Ministro
(ALEMÃO, 2006: p. 53).
8
MARANHÃO. Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Sessão de Documentos Avulsos. Partes do Registro
do Porto de São Luiz do Maranhão ao Presidente da Província, Ofícios, 1835-1840. Registro do brigue-escuna Laura
Segunda, 1º de maio de 1839.
152 | Histórias de Negros no Ceará
9
BRASIL. FBN. Diário de Pernambuco, Recife (PE), nº 140, 02 de julho de 1839, p. 04.
10
CEARÁ. Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Fundo: Governo da Província. Série: Correspondência
Expedida. Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará dirigida o Ministério da Justiça,
1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, João Antonio de Miranda, ao ministro da justiça,
Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque, nº 16, 20 de junho de 1839, fl. 75.v.
11
MARANHÃO. BPBL. Chronica Maranhense, nº 149, 04 de julho de 1839, p. 602.
Jofre Teófilo Vieira | 153
12
MARANHÃO. APEM. Partes do Registro do Porto de S. Luiz do Maranhão. Registro do brigue-escuna Laura
Segunda, 1º de maio de 1839; APEC. Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará
dirigida o Ministério da Justiça, 1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, João Antonio de
Miranda, ao ministro da justiça, Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque, nº 16, 20 de junho de 1839.
154 | Histórias de Negros no Ceará
13
Para Peter Linebaugh e Marcus Rediker, os navios (ligados ao comércio atlântico) devem ser entendidos como
locais privilegiados de contato entre homens de diversas partes que se influenciavam mutuamente, isto é, como
espaços sociais onde foram travadas diversas relações. (LINEBAUGH; REDIKER, 2008: p. 162).
14
CEARÁ. APEC. Fundo: Chefatura de Polícia. Série: Correspondência Expedida. Livro de Registro de Ofícios do Chefe
de Polícia a diversas Autoridades desta Província, 1842-1843, Livro nº 405. Registro nº 136, 28 de agosto de 1842, fl.
19.
15
Loc. Cit. Registro nº 149, 9 de setembro de 1842, fl. 20.v.
Jofre Teófilo Vieira | 155
“O horroroso attentado”
advertiu dizendo “o que elles merecião, era... muito açoite!” e por recla-
mações parecidas, “o contra-mestre tinha dado com uma colher á cara do
marujo Hilario”, que levou a “uma dessas conspirações de cosinha tantas
veses fataes á sala”, afinal, “os negros começaram a resmungar; e sempre
foi de máo augúrio, nos ergástulos, o captivo remungar” (SANTOS, 2009:
p. 158).
O desejo de vingança contra os maus-tratos, a falta de comida e a
violência com que eram tratados foram o combustível da conspiração, que
teve Constantino como um dos líderes e a ele aderiram, inicialmente, An-
tonio Angola, Bento Angola, Hilário e João Mina. Constantino era um preto
baiano de 34 anos. Sua condenação à pena de morte revela que ele foi con-
siderado “um dos cabeças” do motim e um dos principais responsáveis
pelas mortes.
Formulado o plano de ação, logo decidiram colocá-lo em prática, a
fim de se tornarem os “senhores” da embarcação. A estratégia foi esperar
a substituição do marujo Bernardo por José Mina no leme, o capitão se
recolher a seu camarote e alguns passageiros irem dormir. Depois desce-
ram ao porão e abriram uma caixa pertencente ao marujo Maia, que
continha aguardente, e logo repartiram entre si. Devidamente “espiritua-
lizados”, estavam preparados para o combate (Idem, ibidem: p. 159).
Cada um ficou incumbido de uma tarefa. Hilário “teve ordem de ir
tomar a faca ao marinheiro Bernardo”, enquanto “Constantino e João-
mina atacaram o capitão em seu camarote. Septe facadas já lhe tinhão
dado, quando elle se refugiou no leme”. Foi então que Bento Angola gritou:
“venha a fisga, e o infeliz lançou-se ao mar!”. Luiz Cabo-Verde ficou
encarregado do contramestre e, com uma estaca de madeira, o matou;
também foi o responsável pela morte do prático Felippe, assassinado a
cacetadas e cujo corpo, com o auxílio de Hilário, foi jogado no mar. Antonio
Angola “deu com um páo n’um dos marujos, e o matou”, enquanto
novamente Hilário jogava um corpo no mar, agora o do marujo Maia, que
“Bento tinha morto dentro de um bóte”. Por fim, Benedicto, que “foi o
Jofre Teófilo Vieira | 157
Tendo obtido, com mil astucias, que o deixassem ir dormir em uma cabana,
deixando a roupa em penhor, d’alli fugio, indo denunciar os criminosos, que
no dia 13 forão presos pela justiça, na estrada do Aracaty, por denuncia tam-
bem de Bernardo, enviado á villa para comprar vinho, em companhia de um
vigia, que elle, antes de tudo, fez prender (SANTOS, 2009: p. 163).
Tudo indica que foi a denúncia de Bernardo que fez com que os pri-
meiros negros fossem presos, já próximos da vila de Cascavel, pois
Um soldado do quarteirão, que tinha ido levar officios ao juiz de paz de Casca-
vel, avisando-o do que se passava, tratava que o marujo branco, que ia no
barulho dos ditos negros, contava que do Ministro para diante tinhão morto
um dos que ião no rancho dos taes (Id., ibidem: p. 156).
O julgamento
Rua Major Facundo, Travessa das Trincheiras, onde já havia inúmeros cu-
riosos. Os cativos foram mantidos durante todo o tempo no quartel de 1º
linha,16 onde se situava a cadeia.
O juiz de paz de Fortaleza concordou com a formação da culpa reali-
zada pelo seu colega do Aquiraz e levou ao conhecimento do juiz de Direito
da capital, João Paulo de Miranda, o processo movido contra os cativos:
Antonio Angola, Benedicto, Bento Angola, Constantino, Hilário, João Mina,
José Mina, Luiz Aracati e Luiz Cabo-Verde, pelos assassinatos do capitão
Francisco Ferreira da Silva, do prático Fellipe, do contramestre Joaquim
Gonçalves da Silva, dos marujos Maia e daquele não-identificado e do pas-
sageiro Luiz Feliciano Prates.
Presos em 13 de junho e remetidos a Fortaleza depois do dia 20, os
cativos foram levados a julgamento no dia 18 de julho, “que foi extraordi-
nariamente concorrido”.
No júri, os negros, ao serem interrogados, confessaram novamente o
crime. Em sua defesa, os amotinados alegavam a fome e os maus-tratos
que passavam a bordo. Longe do argumento de vingança, buscavam mos-
trar que agiram daquela forma porque não tiveram alternativa.
Os cativos do Laura Segunda, ao falarem da fome e dos maus-tratos
que sofreram, buscavam demonstrar que foi o capitão Francisco Ferreira
e seus oficiais que romperam com os termos das “relações de trabalho”
estabelecidas a bordo; estas, no modo de ver dos escravos, estavam
baseadas em direitos e deveres de ambas as partes, mas não iguais, sendo
que, alimento era um “direito” deles e um “dever” do capitão os alimentar
suficientemente. As “relações de trabalho” aludidas pelos cativos estariam
fundamentadas numa prática cotidiana, ou seja, no espaço de negociação
entre senhores e cativos. Nesse sentido, percebe-se que os pretos da Laura
estavam transpondo para o mar a noção de uma economia moral17
16
Forte de Nossa Senhora da Assunção, atual 10ª Região Militar de Fortaleza.
17
Edward Palmer Thompson compreendia que a multidão inglesa (homens e mulheres) do século XVIII tinha uma
economia moral, baseada no costume. Que era sempre acionada de forma legitimadora quando a multidão estava
imbuída da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais (THOMPSON, 1998).
160 | Histórias de Negros no Ceará
18
CEARÁ. APEC. Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará dirigida o Ministério da
Justiça, 1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, João Antonio de Miranda, ao ministro da
justiça, Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque, nº 16, 20 de junho de 1839, fls. 75.v. e 76.
Jofre Teófilo Vieira | 161
19
Por morte natural, José Alípio Goulart diz que: “o antigo direito português indicava aquela decorrente de pena
capital executada por enforcamento ou decapitação” (1971: p. 143).
162 | Histórias de Negros no Ceará
negociantes inglezes da praça, por saber fallar a lingua, que tanto prezão.
Albuquerque, presidente do conselho de sentença intercedeu por elle”
(SANTOS, 2009: p. 166). José Mina, além de ter sido um trabalhador cativo
especializado, no caso, na faina marítima, não se configurava como um
marujo qualquer, pois seus conhecimentos náuticos permitiam estar no
leme da embarcação, ou seja, dar-lhe direção. Associado a isso, o fato de
saber falar inglês o transformava numa aquisição bastante valiosa. Na eco-
nomia das perdas, seis cativos eram mais do que suficientes para saciar a
fome senhorial por justiça.
A segunda possibilidade de análise da sentença concerne aos escravos
acusados. Dos nove acusados, cinco são africanos e quatro, crioulos. Os
condenados à forca foram três africanos e três crioulos. O único absolvido
das acusações era africano, José Mina. Com isso, salienta-se o medo do
negro escravo, seja ele africano ou crioulo, na década de 1830. O que os
registros criminais dos anos de 1830 indicam é que as ações repressivas e
de vigilância contra os negros, fossem livres ou escravos, principalmente
após o Levante dos Malês na Bahia, em 1835, foram maiores, independen-
temente de sua origem. Em decorrência do movimento de 1835, os cativos
foram vistos como elementos potencialmente perigosos.
O medo também vinha de longe, em especial da região caribenha. A
Revolução do Haiti, realizada pelos negros escravos liderados por Tous-
saint L’Ouverture contra os franceses em prol da independência, tornou-
se um dos grandes marcos da história dos negros da América e povoou o
imaginário das elites do continente americano, com o medo de que uma
nova rebelião desse porte pudesse reaparecer. Para João José Reis, cada
rumor de revolta constituía um verdadeiro pesadelo para as elites senho-
riais, pois o medo do haitianismo sempre retornava (REIS, 2003: p. 534).
Para os demais que não foram responsabilizados pelo motim, sabe-
se que Damazo “morreo de doença na villa do Cascavel” (NOGUEIRA,
1894: p. 50). A sua morte, após poucos dias de desembarque, sugere que
ele talvez já estivesse doente antes mesmo de chegar em terra ou a doença
164 | Histórias de Negros no Ceará
tenha se manifestado logo depois de deixar o Laura; mas, o quer que fosse,
parece tê-la contraído a bordo.
Já Manoel e Elias, ao longo dos meses, foram entregues aos seus pro-
prietários. Dos registros não se têm notícias. No dia 30 de setembro de
1839, ainda estavam em poder das autoridades cearenses: Jovito, “mulato,
q diz ser escravo de Manoel da Silva Sardinha do Maranhão”; Agostinho,
“mulato, que diz ser escravo de Manoel Francisco, morador na Província
de Pernambuco”, e Phillipe, “crioulo, que diz ser escravo de Antonio Pedro
dos Santos, do Maranhão.”20
O único sobrevivente branco, o marujo português Bernardo, acabou
ficando na cidade, onde foi trabalhar como catraieiro no porto de Forta-
leza. Não há muitas informações a seu respeito, mas se sabe que foi casado
com Francisca Bernardina e que faleceu em Fortaleza no ano de 1893.
20
BRASIL. FBN. Desesseis de Desembro, Fortaleza (CE), nº 128, 26 de outubro de 1839, p. 560-561.
Jofre Teófilo Vieira | 165
de punição mostram que foi uma das mais duras e o seu efeito, prolongado
e presente na capital cearense.
Não há registros informando como Luiz Aracati cumpriu sua pena.
Conforme sua sentença, ele deveria “soffrer 450 açoites, que lhe serão da-
dos na conformidade do referido artigo [60]” e andar com “uma argola de
ferro no pescoço, e nesta uma haste com uma cruz na extremidade pelo
tempo de 6 annos” (Apud NOGUEIRA, 1894: p. 46).
Luiz Aracati teve que cumprir sua pena em Fortaleza, onde ficou por
muito tempo vagando e, “esmolando a caridade publica!” (Idem, Ibidem:
p. 46). Isso permitiu ao cativo se relacionar com diversas pessoas e deixar
bem viva a memória do motim. A sua punição teve uma dupla face: ao
mesmo tempo em que mostrava a força e o rigor da repressão, sua pre-
sença não deixava que o ato de rebeldia contra os maus-tratos e a luta em
prol da liberdade realizada no Laura Segunda fossem esquecidos. Pelo con-
trário, a figura de Luiz Aracati estaria sempre associada ao motim;
portanto, à luta contra as péssimas condições a que os escravos eram sub-
metidos e pela sempre desejada liberdade.
Para a execução das galés perpétuas de Luiz Cabo-Verde não há ou-
tras informações, além dos procedimentos legais, que permitem refletir
sobre como foi realizada. O que se sabe é que o escravo foi enviado para
Fernando de Noronha junto com sua carta-guia, em uma embarcação da
marinha de guerra que, ao sair de Fortaleza, o conduziria até Recife e de
lá, um navio, também da marinha de guerra, levaria o condenado até o seu
destino final. A imposição da pena a Luiz Cabo-Verde leva a uma consta-
tação: foi a que menor efeito produziu. Porque o cativo não pertencia a
nenhum senhor residente em Fortaleza, e muito menos no Ceará, o que
significa dizer que ele não tinha vínculo nenhum nessa província.
As execuções da pena capital tinham uma importância muito maior
que as demais penas, porque ocasionavam diretamente a morte de uma
pessoa. Sempre tratada com muito cuidado e bastante atenção pelas auto-
ridades, a pena última tinha seu ritual de execução revestido de uma
simbologia destinada a transmitir o poder e a força das classes dirigentes
166 | Histórias de Negros no Ceará
21
Ofício do juiz municipal interino, Francisco Fideles Barroso, ao presidente da província do Ceará, João Antonio de
Miranda, 14 de outubro de 1839 (Apud NOGUEIRA, 1894: p. 53).
22
CEARÁ. Biblioteca Pública Governador Meneses Pimentel (BPGMP), Ceará. Setor de Microfilmes. Correio da
Assembleia Provincial, Fortaleza (CE). Supplemento ao nº 93, outubro de 1839.
Jofre Teófilo Vieira | 167
efeitos dos rumores, o governo não pensou duas vezes e expediu ordem de
transferência da data, passando-a para o dia 22 de outubro.23
No Código Criminal de 1830, o artigo 38 indicava que a execução da
“pena de morte será dada na forca” e os avisos ministeriais instruíam para
que ela fosse “levantada somente quando fôr necessaria, afim de que não
esteja continuadamente ás vistas do público” e é ao “Juiz Municipal que
compete mandar levantál-a”.24 A forca deveria ser demolida tão logo aca-
basse a execução (GOULART, 1971: p. 145).
Quanto aos condenados, o artigo 40 dizia: “o réo, com o seu vestido
ordinario, e preso, será conduzido pelas ruas mais publicas até a forca”
acompanhado pelo juiz municipal, o seu escrivão e a força policial requisi-
tada, onde seriam precedidos pelo porteiro, que ia lendo em voz alta a
sentença que seria executada. Ao juiz, cabia presidir a execução até o seu
fim, e ao escrivão, passar a certidão de todo o ato, a qual se juntava ao
processo respectivo (PESSOA, 1882: p. 21).
Na manhã do dia 21 de outubro, os condenados foram ao oratório, no
mesmo local onde estavam presos, no quartel de 1ª linha, sendo assistidos
pelo padre Manoel Severino Duarte e Frei Antonio do Coração de Maria.
Na manhã do dia 22, às sete horas, saíram do quartel dirigindo-se ao
Largo do Paiol da Pólvora, passando pelas principais vias públicas como
recomendava o Código Criminal. Não foram localizados registros do tra-
jeto percorrido pelos cativos do Laura Segunda; somente para o escravo
José, supliciado meses depois. O percurso parece ter sido o mesmo, já que
eles ficaram presos no mesmo local e foram enforcados na mesma praça:
Rua da Boa Vista, passando pela Praça Conselheiro José de Alencar, onde
ficava o prédio da Câmara Municipal, e o Mercado Público; depois dobra-
riam à direita, na Rua das Hortas, para, em seguida, entrarem na Rua das
Palmas até alcançarem a Praça do Paiol da Pólvora.
23
Ordem do dia – Palácio do Governo do Ceará, 18 de outubro de 1839, Manoel Moreira da Rocha, Ajudante de
Ordens do Governo, (Apud NOGUEIRA, 1894: p. 54).
24
Os avisos ministeriais são: Aviso de 17 de junho de 1835; Aviso de 30 de junho de 1836 e Avisos de 4 e 6 de agosto
de 1836 (CORDEIRO, 1861: p. 20).
168 | Histórias de Negros no Ceará
Mandou adiante cada um dos seus companheiros, deu préssa aos retardata-
rios, e depois, impavido, trepando, como pelas vêrgas da Laura, sacudido,
olhando em derredor, para que vissem bem aquillo... poz o baraço e atirou-se
ao espaço! (2009: p. 167).
O espetáculo de terror foi encerrado com Bento, pois “foi com rasão
o ultimo, porque foi o primeiro na perversidade [...] tinha, portanto,
incontestavel direito a sellar com a morte o epilogo da tragedia do mar”
(NOGUEIRA, 1894: p. 56).
O último ato da tragédia do mar para as autoridades estava ali encer-
rado, com o espetáculo do terror salutar. Uma clara demonstração de força
da classe senhorial, que, através do ato público, reforçava seu poder.
Jofre Teófilo Vieira | 169
25
CEARÁ. APEC. Livro de Registro da Correspondência da Presidência da Província do Ceará dirigida o Ministério da
Justiça, 1835-1843, Livro nº 30. Ofício do presidente da província do Ceará, João Antonio de Miranda, ao ministro da
justiça, Francisco Ramiro de Assis Coelho, nº 30, 6 de novembro de 1839, fl. 81.v.
170 | Histórias de Negros no Ceará
Referências
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taleza: Museu do Ceará; Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006.
COSTA, E. V. da. Coroas de Glória e Lágrimas de Sangue. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
FERREIRA SOBRINHO, J. H. “Catirina minha nega, Teu sinhô ta te querendo vende, Pero
Rio de Janeiro, Pero nunca mais ti vê, Amaru Mambirá”: O Ceará no tráfico interpro-
vincial – 1850-1881, 2005, p. 172. Dissertação de Mestrado em História Social,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), 2005.
FROTA, D. J. T. da. História de Sobral. 2º ed. Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1974.
REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Edição revista
e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SILVA, L. G. A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (sécs.
XVII ao XIX). Campinas, SP: Papirus, 2001.
֎
7
1
Professora Adjunto do curso da Universidade Federal do Ceará. Contato: [email protected].
Ana Sara Cortez Irffi | 173
2
Departamento Histórico Diocesano Padre Gomes (DHDPG), Livro S/N, registro nº 24.
3
DHDPG, Livro S/N, registro nº 297.
Ana Sara Cortez Irffi | 179
4
DHDPG, Livro S/N, registro nº 328.
5
CEARÁ. APEC. Fundos de Manumissão - FM, Ano 1882, registros nº 7 e 8.
6
CEARÁ. Arquivo do Fórum do Crato - AFC. Inventário de Tenente Coronel José Geraldo Bezerra de Meneses, Pasta
255, Ano 1857.
7
DHDPG, Livro S/N, registros nº 230 e 296.
8
CEARÁ. APEC. FM, Ano 1882, registros nº 09 e 10.
180 | Histórias de Negros no Ceará
Dessa forma, é possível que a estabilidade de sua união seja fruto das
relações forjadas por cerca de 27 anos de convívio com uma mesma pro-
prietária. Considerando-se, assim, essas relações como de longa duração,
dadas as condições a que os escravos estavam submetidos; e, também,
porque, como afirma Robert Slenes (1988: p. 192), as relações de 40 anos
eram raras em qualquer sociedade com altos índices de mortalidade.
Se havia certa permissividade nas uniões entre escravizados de
mesmo dono para sacramentar o casamento, em contrapartida, as uniões
entre cativos de senhores diferentes parecem não ter tido maior incentivo
por parte destes. Em sua análise, Robert Slenes (1999: p. 75) afirmou que
“os senhores de escravos em Campinas praticamente proibiam o casa-
mento formal entre escravos de donos diferentes ou entre cativos e
pessoas livres”.
Os cinco casos registrados no Cariri – num universo de 463 unidades
familiares – confirmam a dificuldade da realização desse tipo de matrimô-
nio. Entretanto, algumas dessas uniões se mostravam bastante
duradouras, como a do casal Manoel e Anna – ele escravo de Antonio Leite
Rabelo e ela, de Anna Maria do Espirito Santo –, que registraram em ba-
tismo nos anos de 1873, 1874, 1876 e 1877, quatro filhos.9 Em casos como
esse, “não é difícil imaginar as complicações que podiam surgir quando
esse tipo de união ocorria: residências diferentes, separação forçada, con-
flitos sobre tratamento humano e direitos de propriedade” (SCHWARTZ,
1998: p. 313). É provável que, por essa razão, esse tipo de união fosse bem
menos frequente. Muito embora, em alguns casos as relações se mostras-
sem duradouras.
Em todos os casos dos casais classificados como famílias endogâmi-
cas, as suas idades não apresentavam grandes disparidades, chegando a
uma média de diferença de dois a três anos, sendo o homem, geralmente,
o cônjuge mais velho. Contudo, os dados do Cariri diferem muito dos re-
sultados encontrados para regiões ao sul do Brasil, como os observados
9
DHDPG, Livro S/N, registros nº 76, 140, 194 e 240, respectivamente.
Ana Sara Cortez Irffi | 181
por Florentino e Góes (1997) para as áreas rurais do Rio de Janeiro entre
1790 e 1830. Em análises que levavam em conta origens interétnicas, per-
ceberam que mulheres mais jovens, especialmente africanas, uniam-se a
homens muito mais adiantados em idade que elas. Contudo, o que se in-
fere para o interior sul cearense é que o maior equilíbrio entre o número
de homens e mulheres pode ter facilitado uniões mais equitativas, pelo
menos em relação à idade.
No entanto, se os escravizados tinham opções de cônjuges de mesma
idade e os casamentos com cativos de outros donos não estavam de todo
vetados, o que poderia explicar uma cifra tão baixa de matrimônios lega-
lizados? Slenes (1999: p. 90) enfatiza que, para São Paulo, “a política de
incentivar uniões ‘legítimas’ se traduzia, em parte, em reformas visando
simplificar as exigências burocráticas da Igreja, e, portanto, o custo do ca-
samento religioso”. Esse custo, a que se refere o autor, diz respeito à
exigência de uma “farta documentação”, bem como ao pagamento das pro-
visões, que terminava por excluir os casais pobres desse sacramento.
No Cariri, ao contrário, a exigência da documentação não se apresen-
tava como problema, mesmo porque, no sertão, viver junto era prática
comum em todos os segmentos sociais. Quanto ao custo do casamento le-
gal, parecia ser o maior entrave à legalização das uniões cativas, pois os
escravos, por sua situação, não tinham condições de arcar com a despesa;
a cobrança recaía nos senhores, cabendo-lhes decidir se pagavam e permi-
tiam o casamento ou não.
De acordo com a notícia postada no jornal O Araripe, no Cariri eram
cobrados 10 mil réis em selos para que fossem feitos casamentos de escra-
vos.10 Dessa maneira, mesmo se existisse o desejo de sacramentar a união
para muitos cativos, estes nem sempre dispunham de economias para tal
feito e preferiam esperar a iniciativa de seus donos, o que nem sempre
acontecia. Esse fato pode explicar o alto número de mães solteiras nos do-
cumentos, as chamadas famílias matrifocais. Este número se sobrepunha
10
CEARÁ. Biblioteca Pública Menezes Pimentel (BPGMP). Setor de Jornais Microfilmados. O Araripe, rolo 5, sábado,
12 de setembro de 1857, n º 109, p. 4.
182 | Histórias de Negros no Ceará
11
Quanto às famílias incompletas, são admitidas as unidades matrifocal e monoparental. A categoria que reúne
indivíduos viúvos somente foi encontrada nos documentos elaborados pela Junta de Classificação. Contudo, algumas
referências foram percebidas dos casais, antes da morte de um dos cônjuges, nos registros de batismos e inventários
post-mortem.
12
CEARÁ. APEC. FM de Milagres, Ano 1883, registros nº 21.
Ana Sara Cortez Irffi | 183
13
CEARÁ. APEC, FM, Ano 1882, registros nº 25 a 29, 32 a 36, 38 a 40, 42 a 51, 54 a 57, 59 a 62, 64 a 80, 82 a 88, 90
e 348.
14
CEARÁ. APEC. FM, Ano 1882, registro nº 25.
15
CEARÁ. APEC. FM, Crato, Ano 1882, registro nº 45 e DHDPG, registros nº 84, 133, 176 e 273.
16
CEARÁ. APEC. FM, Crato, Ano 1882, registro nº 26.
17
CEARÁ. APEC. FM, Crato, Ano 1882, registro nº 29.
Ana Sara Cortez Irffi | 185
18
DHDPG, Livro S/N, 76, 140, 194 e 240.
19
DHDPG, Livro S/N, 118.
20
DHDPG, Livro S/N, 213.
21
Dentre os casamentos mistos avaliados, uma média de 50% corresponde a matrimônios entre uma escrava e um
homem de condição social livre e a outra parte corresponde aos casos de homens cativos casados com mulheres
livres.
188 | Histórias de Negros no Ceará
22
CEARÁ. AFC. Inventário de João Pinheiro de Mello, Caixa 16, Pasta 545, Ano 1873. Lista de matrícula anexa ao
documento. Rofino é o cativo de número 456 neste registro.
Ana Sara Cortez Irffi | 189
Preso nos sertões, sem aguada, sem estrada, isolados nas fazendas, o fazen-
deiro e o vaqueiro conservaram as mesmas práticas da cultura lusa aliada ao
indígena e à africana, através da mestiçagem que se processou, ao mesmo
tempo em que retemperaram a energia do tipo surgido desse caldea-
mento, dotado de resistência e audácia, frugal, lutador e devotado a terra,
indiferente ao que se passa além das lides das suas vaquejadas (ALVES, 1958:
p. 71).
uma família mista, por questões de condição social; porém, também era
mestiça, emergida da mistura étnica.
Essa mestiçagem ficava evidente nos anúncios de fugas veiculadas
pelo jornal O Araripe, periódico editado na cidade de Crato entre os anos
de 1855 e 1864. Ao apresentar os cativos Antônios, o redator do jornal re-
gistrou suas origens étnicas:
23
CEARÁ. BPGMP. O Araripe, rolo 5, sábado, 10 de novembro de 1855, n º 19, p. 4 [grifo meu].
Ana Sara Cortez Irffi | 191
Fonte: Elaborado pela autora com base nas informações da AFC – Inventários post-mortem, Cariri 1810 – 1884.
termos podiam ser empregados para dar a ideia de “um escravo que nas-
ceo na casa do seo senhor” (BLUTEAU, 1718: p. 613) ou mesmo de um PT
indivíduo nacional.
Na segunda metade daquele século, o número de crioulos diminuiu
substancialmente em relação a outras modalidades de tons de pele. Pretos,
pardos, caboclos e cabras se configuraram como designações mais especí-
ficas dos cativos. Conforme Karasch (2000: p. 37), à medida que os
escravizados se tornavam nacionais, os senhores mudavam a maneira de
classificá-los: os africanos eram designados pelo local de origem, enquanto
os nascidos no Brasil, pela cor. Ainda conforme a autora:
Durante parte do século XIX, o termo cabra parecia estar muito mais
associado aos escravizados. O registro oficial que existia sobre esse grupo
da sociedade era a referência aos cativos de nação cabra que povoavam os
inventários dos senhores do Cariri, o que, de fato, mascarava a construção
social dessa categoria. Com o passar do tempo, os homens de cor interna-
lizavam, ou lhes era imposta, essa identidade. De modo que isso
independia de sua condição de livres ou cativos.
Antes de 1884, porém, trabalhadores livres e pobres e escravizados,
em geral compreendidos na categoria de cabras, existente no Cariri, eram
identificados por essas características. Segundo Alemão (2007: p. 39, grifo
do autor), nas comemorações religiosas, preenchendo o
corpo da Igreja havia mais de mil mulheres pela maior parte cabras: ou ma-
melucos [...]. De tarde houve processão, q’ vi passar pela nossa rua, da janella
= Erão oito ou dez pequenos andores, pobres, mas enfeitados com certa ele-
gância = e o palio acompanhou a processão = algúas irmandades e mta. gente
de casaca com tochas = seguia música e algúa tropa = e por fim grande nº de
Ana Sara Cortez Irffi | 193
cabras de camisas por cima das seroulas, mas limpas, o q’ nos parece corres-
ponder as mulheres de lençol na Igreja.
Referências
ALADRÉN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do Sul – Alforria e inserção social de
libertos em Porto Alegre, 1800 – 1835. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
ALEMÃO, F. Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão. Crato – Rio de Janeiro, 1859 –
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BLUTEAU, R. Vocabulário Português e Latino. 1718. In: BRASIL. Arquivo Público Nacional,
Rio de Janeiro, 4 vol. CD – ROM, Vol. 1.
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Brasileira de História. São Paulo, v. 8, nº 16, mar/ago, 1988.
FUNES, E. “Nasci nas matas, nunca tive sinhô”: História – Memória dos mocambos do
Baixo Amazonas. São Paulo: USP, tese de doutorado, 1995.
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1790 - 1850. Rio De Janeiro: Paz e Terra, 1997.
KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808 - 1850). São Paulo: Companhia
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METCALF, A. Vida Familiar dos Escravos em São Paulo no Século Dezoito: O Caso de
Santana de Parnaíba. Estudos Econômicos: vol. 17, nº2, p. 229 – 243, mai/ago, 1987.
196 | Histórias de Negros no Ceará
SLENES, R. Lares negros, olhares brancos: Histórias da Família escrava no Século XIX.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8, nº 16, mar/ago, 1988.
֎
8
1
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará e Professor Adunto da Universidade Estadual Vale
do Acaraú – UVA.
198 | Histórias de Negros no Ceará
neste sentido, nomear as pessoas como negros, cafuzos, pardos, pretos e cri-
oulos era uma forma de afastá-los dos brancos. Em diversas situações, muitos
pardos e mulatos, livres ou forros, foram dessa forma empurrados para longe
da condição da liberdade, apartados de um possível pertencimento ao mundo
senhorial. Podiam ter nascidos livres e até possuir escravos, mas estavam de
certo modo, identificados como o universo da escravidão (LARA, 2007: p. 144).
regional com gados, couros e sebos. As alianças com nativos e outros ses-
meiros eram fundamentais para a obtenção da terra, devido ao trâmite
processual para concessão desta. Os serviços prestados por Felipe, Jerô-
nimo, Bernardo e Francisco Dias, bem como por seus pais, no processo de
expansão, conquista e colonização do território da Coroa e a aquisição de
escravos, fortaleceram suas famílias e parentes, tendo assim fortes argu-
mentos para requererem mercê.
Os negros partícipes do processo de reconquista e ocupação da capi-
tania do Ceará não foram contemplados apenas com terras, mas com
diversos títulos militares, o que os diferenciava dos outros negros livres,
libertos e escravos. Felipe Coelho de Morais, Francisco Dias de Carvalho,
Bento Coelho de Morais, Manoel Dias de Carvalho e outros seus parentes,
por exemplo, eram reconhecidos como: capitão, ajudante, tenente-coro-
nel, coronel das entradas ao sertão. Para José Eudes Gomes, as concessões
diferiam das doações de sesmaria de caráter hereditário, enquanto as pa-
tentes:
2
Tabela elaborada por Eurípedes Antonio Funes, (2007) a partir de dados da Revista do Instituto do Ceará (RIC),
Tomo XXIX e do texto de CHANDLER (1973: p. 41).
Raimundo Nonato Rodrigues de Souza | 201
[...] na segunda metade do século XVIII, esse tipo de crítica começou a se fazer
mais presente: vários letrados e diversas autoridades coloniais manifestavam
preocupação como número excessivo de escravos, condenava o modo como os
senhores governavam seus cativos e mostravam-se incomodados com os pe-
cados e vícios que acompanhavam o domínio escravista [...] (LARA, 2007: p.
15).
[...] sua preocupação maior não era com a escravidão propriamente dita, já
que não havia como interferir no poder dos senhores sobre seus cativos,
3
Este “Mappa da população da capitania do Ceará extrahido dos que derão os cappitães-mores em ano de 1813”.
Arquivo da Biblioteca Nacional, sector de Manuscritos, Ceará, II, 32, 23, 3. Transcrição cedida por Paulo Henrique de
Souza Martins e em CHANDLER (1973: p. 41).
202 | Histórias de Negros no Ceará
Sesmarias de Negros
4
Data de Sesmaria do tenente Manoel Dias de Carvalho e Félix Coelho de Moraes. IN: Datas de sesmarias, vol. 2, n°.
100, p. 57. In: CEARÁ. Arquivo Público do Estado do Ceará - APEC. (Org.) Datas de sesmarias do Ceará e índices das
datas de sesmarias. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006 (Coleção Manuscritos).
5
Data de sesmaria de Estavão Velho de Moura e seus companheiros. In: Data de Sesmaria, vol. 1, n°. 13, p. 33. In:
CEARÁ. APEC. (Org.) Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expres-
são Gráfica / Wave Média, 2006 (Coleção Manuscritos).
Raimundo Nonato Rodrigues de Souza | 205
6
1684, Novembro, 16, Lisboa. CONSULTA do conselho ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre o requerimento de João
Martins, homem preto, em que pede o posto de mestre de Campo da gente preta que foi de Henrique Dias, na
capitania de Pernambuco. In: CTA: AHU CL_CU_015, cx. 13, D. 1314. Disponível em: www.unb.br. Acesso em
01/09/2014.
7
Data de sesmaria do cel. Antônio de Albuquerque da Câmara e o Rdo. vigário Paulo da Costa e seus trinta
companheiros, vol. 1, n°. 1682, 26, p. 59. In: CEARÁ. APEC. (Org.) Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas
de sesmarias: digitalização dos volumes editados nos anos de 1920 a 1928. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expressão Gráfica
/ Wave Média, 2006 (Coleção Manuscritos).
206 | Histórias de Negros no Ceará
foram: uma, em 1682, junto com mais 24 sesmeiros; outra, em 1683, com
mais nove sesmeiros, e a terceira com outros cinco sesmeiros.
Nesses três pedidos, consta um familiar de Felipe Coelho, denomi-
nado Manoel Dias de Carvalho, que conseguiu nove sesmarias, sendo oito
na ribeira do Acaraú. Seu cunhado, João Fernandes de Sousa, e sua sobri-
nha, Ana Maria de Jesus, adquiriram uma sesmaria, entre o rio Mundaá e
o Aracatiaçu, junto a outras nove pessoas, no ano de 1694.
Como se percebe nas solicitações coletivas, o número de requerentes
variava muito. Nas datas coletivas, algumas tinham mais de 10 sesmeiros;
em outras, os requerentes se associavam a um parente, pessoas de status
superior, como militares de alta patente ou cabedais, dispostos a investir
na empreitada. No primeiro caso, temos dois irmãos, Francisco Dias de
Carvalho e Bernardo Coelho, que solicitaram “seis legoas de terra come-
çando do rio e barra do Ceará pela costa abaixo poderá haver seis legoa
athe a testada do capitão Phelipe Coelho devoluta e desacupadas [...] e oito
legoas cortando pera o sertão.”8 Noutra petição, dois parentes dos conces-
sionários acima, Felipe Coelho de Morais e Jerônimo Coelho, solicitaram,
em 1682, “quatro legoas de terras de comprido com outras tantas de
largo.”9 Todos justificaram a prestação de serviços, aumento das rendas
reais com o criatório e o povoamento. Em relação ao único pedido indivi-
dual, nos setecentos, este foi concedido ao capitão Felipe Coelho com a
extensão de dez léguas em quadro. Essa sesmaria nunca foi registrada nem
prescrita, devido a este cultivá-la, e seus familiares estarem ali estabeleci-
dos, com moradia.
Os sesmeiros negros, na sua aquisição de terras, geralmente ocupa-
vam a gleba recebida. Eram pequenas as prescrições, quando ocorriam,
como sucedeu a Pedro de Mendonça de Morais, que afirmou em outra
8
Carta de sesmaria de Francisco Dias de Carvalho e Bernardo Coelho, Vol. 1, n°. 24, 1681, p. 55, CD. 1. In: CEARÁ.
APEC. (Org.) Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização dos volumes editados nos
anos de 1920 a 1928. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006 (Coleção Manuscritos).
9
Data e sesmaria do capitão Philipe Coelho de Moraes e Hieronimo Coelho, vol. 1, n°. 25, 1682, p. 57, CD. 1. n°. 24,
1681, p. 55, CD. 1. In: CEARÁ. APEC (Org.). Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização
dos volumes editados nos anos de 1920 a 1928. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006
(Coleção Manuscritos).
Raimundo Nonato Rodrigues de Souza | 207
carta, escrita em 1722, que ele tinha conseguido uma sesmaria em 1708 e
não pôde cumprir com a obrigação de registrar a data. Por isso, informou
que, “por o suplicante andar nas campanhas ocupado no serviço de sua
majestade, as não o povoou no termo da ley.”10
O mesmo Pedro, com seus irmãos, contestou junto ao governo de
Pernambuco a doação de duas léguas de terra ao vigário do Ceará, Padre
João Leite de Aguiar, em 1697. Alegavam que os capitães-mores não po-
diam conceder sesmarias a partir do Alvará de 1695 e que a concessão
apresentava outra irregularidade – a concessão de terras já ocupadas com
atividades agropastoris e povoadas. Informavam que as duas léguas de
terra, dadas ao vigário, faziam parte da sesmaria concedida, em 1680, ao
capitão Felipe Coelho de Morais, em cujo terreno se estabeleceram desde
1666, com suas criações e lavouras, e o povoou com sua família. O gover-
nador de Pernambuco acatou as alegações e determinou a nulidade da
doação ao padre João Leite.
Os sesmeiros que não registraram nem cultivaram as terras com ati-
vidades pastoris tiveram a prescrição delas. Em outras terras, somente os
herdeiros ou os compradores cumpriram a legislação de mandar registrar.
Ressalta-se que a sesmaria do Riacho Caracu não foi registrada no prazo
devido, conforme documento de 1744; no qual se lê que,
10
Carta de sesmaria do tenente geral Pedro Mendonça de Morais, Vol. 11, n°. 99, 1722, p. 157, CD. 2. In: CEARÁ. APEC
(Org.). Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização dos volumes editados nos anos
de 1920 a 1928. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006 (Coleção Manuscritos).
208 | Histórias de Negros no Ceará
11
Registro de data e sesmaria de Pedro Rodrigues de Oliveira e seus companheiros, vol. 1, n°. 09, p. 21. CD. 1. In:
CEARÁ. APEC (Org.). Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização dos volumes
editados nos anos de 1920 a 1928. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006 (Coleção
Manuscritos).
12
Registro de data e sesmaria de Pedro Rodrigues de Oliveira e seus companheiros, vol. 1, n°. 09, p. 22. CD. 2. In:
CEARÁ. APEC (Org.). Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização dos volumes
editados nos anos de 1920 a 1928. (2 CD-ROM). Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006 (Coleção
Manuscritos).
210 | Histórias de Negros no Ceará
13
As áreas territoriais utilizadas acima, como a ribeira do Ceará, incluem os pedidos feitos na ribeira do Curu. Da
mesma forma utilizo com o Aracatiaçu a utilizar os pedidos feitos na região do rio Mundaú. Em relação ao Coreaú,
utilizei os pedidos na serra da Ibiapaba, excluindo as aldeias jesuíticas.
Raimundo Nonato Rodrigues de Souza | 211
14
Geraldo Nobre transcreveu o documento de doação da capela de Santo Antônio conforme registrada no Livro de
Notas do Tabelião da Vila de Fortaleza [1734-1735].
Raimundo Nonato Rodrigues de Souza | 213
Considerações finais
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֎
9
Tshombe Miles 1
1
Professor associado de Black and Latino Studies na Baruch College, City University of New York, nos EUA.
218 | Histórias de Negros no Ceará
[...] direcionar ideias e aspirações de suas classes, embora não portassem ne-
nhum status formal ou emprego como “intelectuais”. A ação social constitui o
que é indispensável para suas atividades. Os intelectuais orgânicos não apenas
analisam e interpretam o mundo; eles organizam e difundem ideias por meio
da contestação social. (LIPSITZ, 1988: p. 9).2
2
A partir de: “direct the ideas and aspirations of their class even though they hold no formal status or employment
as ‘intellectuals’. Social action constitutes the indispensable core of their activity. Organic intellectuals not only ana-
lyze and interpret the world; they originate and circulate their ideas through social contestation”.
Tshombe Miles | 219
direito de votar ou assumir cargos públicos, que lhes haviam sido negados
(ASSUNÇÃO, 1999).
Na primeira metade do século XIX, a população afrodescendente livre
participou ativamente de movimentos de escravizados e libertos, como a
revolta dos malês, de 1835 (REIS, 1995). Ao contrário da monarquia espa-
nhola, a coroa portuguesa entregou o Brasil por meio de acordos, sem
batalhas. Em muitas colônias espanholas, as elites foram forçadas a abolir
a escravidão e reconhecer direitos aos seus cidadãos, sem distinção de et-
nia ou raça, para garantir a vitória contra o governo real espanhol. As elites
dependiam do apoio das classes populares e, em muitos aspectos, dos es-
cravizados para os embates pró-independência. E mesmo que a escravidão
não tivesse sido abolida, muitos escravizados tiveram sua liberdade con-
cedida durante as guerras de independência. Em outras palavras, as elites
espanholas tiveram que ceder quanto à escravidão. Além disso, ao longo
dessas guerras, as populações de ancestralidades africana e indígena pu-
deram negociar em prol de mais autonomia e oportunidades para tornar
suas vidas melhores.
No Brasil, a monarquia foi bem recebida por grande parte da elite,
vista como uma força estabilizadora para a sociedade. Os membros da elite
nutriam amplo apoio à escravidão, assim como às hierarquias e às divisões
existentes à época no Brasil, e não tinham interesse em implementar os
ideais radicais dos jacobinos da Revolução Francesa. Na verdade, viam tais
ideias como perigosas (ASSUNÇÃO, 1999). No império, contudo, as forças
do governo central precisaram intervir diversas vezes para reprimir insur-
reições que contavam com o apoio de elites locais. Em todos os casos, as
revoltas foram derrotadas pelas forças imperiais; contudo, vencer a Balai-
ada se mostrou particularmente difícil.
3
Nessa época, era comum que homens afrodescendentes livres se referissem a si mesmos como homens de cor.
224 | Histórias de Negros no Ceará
4
No Brasil, não era incomum que afrodescendentes pudessem ter escravos afrodescendentes. Isso é encontrado com
frequência em documentos históricos, embora sejam poucos os registros de estudos sobre a relação entre negros
donos de negros. Sabe-se que, em partes de África, praticava-se a escravidão, mas a dinâmica era completamente
diferente, pois não se baseavam em noções de inferioridade racial. A relação entre negros livres e seus escravos no
Brasil era complexa, distinta daquela entre brancos que tinham escravos negros, particularmente entre libertos que
possuíam escravos.
Tshombe Miles | 225
para que Raimundo Gomes e outros rebeldes não definissem quais aliados
eram estrategicamente mais importantes: as elites liberais ou os escravos.
Analisando casos históricos, como a Revolução Haitiana e movimentos in-
dependentistas como dos EUA, evidencia-se o quão fundamental para a
vitória é firmar alianças com escravos. Documentos mostram que havia,
de fato, entre quilombolas maranhenses, interesse em participar do movi-
mento. Antes mesmo da eclosão da Balaiada, escravos já se revoltavam
contra a sociedade dominante. Os quilombos eram, por definição, comu-
nidades à margem, à revelia da lei, que lutavam por liberdade.
Infelizmente, os líderes balaios reconheceram a importância de unir ho-
mens escravos e livres quando era tarde demais.
Balaiada no Ceará
5
Consultado no Arquivo Público do município de Granja (CE), na caixa 40.
6
A partir do original: “Multitudes of Indians inhabit Ceará, in a state of semi-barbarism. As a general rule they are
idle and vicious, living chiefly upon indigenous fruits or those which are cultivated with scarcely any trouble-but
seeking occasional plunder”.
7
O hino completo pode ser consultado na página 334 do documento “Noticia Historico-Chorographica da Comarca
de Granja”, disponibilizado online pelo Instituto do Ceará: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-
apresentacao/RevPorAno/1912/1912-NoticiaHistorico-chorographicadaComarcaGranja.pdf
Tshombe Miles | 231
8
Consultado no Arquivo Público do município de Granja (CE), na caixa 40.
232 | Histórias de Negros no Ceará
Nascimento dependia das elites, pois, quando tentou agir de forma inde-
pendente na greve dos catraieiros, ele e seus apoiadores foram
violentamente esmagados. Não teve a mesma agência ou independência
filosófica ou política que Cosme, capaz de comandar um grupo de três mil
escravos. Dragão do Mar liderou e teve o apoio das classes populares, mas
não organizou esse apoio para transformar a sociedade.
A Balaiada também dependeu bastante da linguagem do liberalismo.
Todos os seus manifestos reforçavam os ideais da elite branca dos bem-te-
vis. Ao contrário dos haitianos, não expropriaram a linguagem da Revolu-
ção Francesa. Não se tornaram “jacobinos pretos” (JAMES, 1989).9 Foi no
final que radicalizaram, lutando por justiça social. Não apenas queriam
acabar com a escravidão, como queriam acabar com a hierarquia e a opres-
são raciais, mas quando se afastaram do projeto elitista já era tarde.
No tempo de Dragão do Mar, a elite era uma geração de reformado-
res. Ao contrário da Balaiada, acabar com a escravidão carregava outro
significado. Dragão do Mar representava um novo e higienizado líder ne-
gro contra a escravidão, sem inclinações radicais. Ele não era chamado de
“cabra”; tornara-se um pardo respeitado que ajudou a consolidar os ideais
de democracia racial e progresso para uma nova geração de brasileiros.
O “progresso” estava lentamente acontecendo no Brasil, porém sem
lidar com desigualdade ou qualquer outro dos ideais da Balaiada, apesar
da ilusão de justiça social embutida na linguagem de igualdade. O fim da
escravidão permitiu ao Brasil criar um mito de liberdade e igualdade, como
no restante das Américas. Porém, abolir a escravidão não trouxe igualdade
racial em nenhum lugar da diáspora africana. No Ceará, após a abolição,
como pudemos ver, a greve liderada por Dragão do Mar dirigiu-se contra
as mesmas elites que antes defendiam a abolição, mas que não defenderam
igualdade racial.
9
Segundo James (1989), “jacobinos pretos” é uma referência aos escravos na Revolução Haitiana, que usaram a
retórica do pensamento liberal da Revolução Francesa em seus próprios termos.
Tshombe Miles | 245
Considerações finais
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֎
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