A Separação Entre Ser e Dever Ser Na Filosofia Do Direito de Hebert Hart PDF
A Separação Entre Ser e Dever Ser Na Filosofia Do Direito de Hebert Hart PDF
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PALAVRAS-CHAVE: Hart Filosofia analítica do direito Lei de Hume Ser Dever ser.
CONTENTS: 1 Introduction 2 The separation of law and morals 3 Hume´s law in Hart 4
Peremptory and content-independent reasons 5 Third reading 6 Conclusion 7 References.
La separación entre ser y deber ser en la filosofía del derecho de Herbert Hart
CONTENIDO: 1 La separación entre el derecho y la moral 2 El contenido mínimo del derecho
natural 3 La Ley de Hume en Hart 4 Razones peremptorias e independientes de contenido 5
Tercera lectura 6 Conclusión 7 Referencias.
PALABRAS CLAVE: Hart Filosofía analítica del derecho Ley de Hume Ser Deber ser.
1 Introdução
1 As filosofias da linguagem, de Oxford, mais influenciadas por J. L. Austin, e de Cambridge, in-
fluenciadas por Wittgenstein, “reconheciam a grande variedade de tipos de discurso humano e
de comunicação significativa entre os homens, reconhecimento que levava à convicção de que
perplexidades filosóficas anteriores poderiam frequentemente ser resolvidas não pela constru-
ção de alguma teoria geral, mas pela discriminação e caracterização dos diferentes modos em
que a linguagem humana é utilizada, alguns deles refletindo diferentes formas de vida humana.
Segundo essa concepção da filosofia, o erro que cegara muito da filosofia anterior, e mais recente
e notavelmente do Positivismo Lógico dos anos pré-guerra, fora o de supor que havia apenas
algumas formas de discurso (discursos empíricos de asserções factuais (empirical fact-stating) ou
asserções de verdades definicionais ou logicamente necessárias) que eram significativas, descar-
tando como sem sentido, ou como meras expressões de sentimentos, todos os outros usos da lin-
guagem que, como no caso das asserções metafísicas ou dos julgamentos morais, não poderiam
ser mostradas como sendo formas disfarçadas ou complexas de alguns dos tipos privilegiados de
discurso” (HART, 2010, p.3).
monta à Lei de Hume2, segundo a qual é ilegítima qualquer passagem do ser (ou
não ser) para o dever ser (ou não dever ser). Esta lei opera como uma barreira lógica
à derivação de enunciados normativos a partir de enunciados factuais ou vice-versa.
Evidentemente, a proposta teórica de Hart, influenciada pelo utilitarismo positivista,
busca respeitar os limites impostos pela Lei de Hume. Com efeito, o que se pretende
debater nesse artigo é se Hart consegue respeitá-la.
Ao corretamente identificar que o direito deve ser explicado levando-se em con-
sideração o ponto de vista interno, Hart teria avançado muito na compreensão do
fenômeno jurídico. Contudo, ao manter-se como observador externo, Hart situou-se
numa posição instável, que acaba por prejudicar a sua proposta de separar o direito
da moral. Em outras palavras, uma vez identificado que o ponto de vista interno é
aquele que vê nas regras razões para o agir, Hart deveria ter explicado quais são
essas razões e não apenas ter verificado sua existência. A proposição que enuncia
a existência de algo, como a existência de uma razão para o agir, é uma proposição
de fato. Afirmar que dela se extrai uma razão para o agir, isto é, um dever, é retirar
um enunciado normativo de um enunciado fático, o que é vedado pela Lei de Hume.
Neste artigo, portanto, pretendo expor o argumento de Hart em favor da separa-
ção entre o direito e a moral e algumas críticas que foram dirigidas a esse argumen-
to. Minha conclusão é que a separação entre o direito e a moral não se sustenta nos
termos defendidos por Hart, paradoxalmente, por ofensa à Lei de Hume3.
O artigo está dividido em seis partes, incluindo esta introdução. Inicialmente,
abordo textos mais antigos de Hart para expor como ele entendia a separação entre
o direito e a moral. Nessa parte, exploro seu artigo O positivismo e a separação entre
o direito e a moral e o capítulo IX, Direito e Moral, de O Conceito de Direito. Uma vez
2 A Lei de Hume decorre da seguinte observação de David Hume: “Em todo sistema de moral que até
hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar,
estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quan-
do, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não
é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa
mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa
uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso
que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova
relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes”. (HUME, 2000, p. 509). Para mais sobre
a Lei de Hume, vide HUDSON, 1969 e NORTON; TAYLOR, 2009.
3 Ressalto que, historicamente, a Lei de Hume foi utilizada em favor do positivismo e contra o jusnatura-
lismo. A acusação era de que os jusnaturalistas extrairiam deveres de fatos. Os deveres seriam os deve-
res morais e, consequentemente, jurídicos, que seriam extraídos da natureza humana, que seria um fato.
apresentados seus argumentos em favor da distinção entre ser e dever ser, desen-
volvo duas leituras críticas à teoria hartiana. Na primeira leitura, trato da regra de
reconhecimento e da forma como ela pode gerar obrigações jurídicas. Na segunda
leitura, trato do ponto de vista interno e de como ele pode gerar obrigações jurídi-
cas. O argumento desenvolvido nessa parte do artigo gira em torno da dificuldade
que Hart possui em lidar com o fenômeno da normatividade jurídica, dificuldade
esta que acabará em violações à Lei de Hume. Na sequência, apresento a emenda
que Hart adicionou à sua teoria, as razões peremptórias e independentes de conteúdo,
que o autor introduz em seu Essays on Bentham, dos anos 1980. Ofereço, ainda, uma
terceira leitura, averiguando se a teoria de Hart, uma vez incrementada pela noção
de razão peremptória e independente de conteúdo, ofende a barreira lógica estabe-
lecida pela Lei de Hume. Concluo, por fim, no sentido de que nem com o incremento
das razões peremptórias e independente de conteúdo a teoria hartiana oferece uma
resposta satisfatória à Lei de Hume.
A segunda crítica que se faz para abandonar a distinção entre ser e dever ser no
campo jurídico e, assim, propor uma conexão necessária entre o direito e a moral,
refere-se menos a um argumento intelectual e mais a um apelo contrário à experi-
ência nazista. Insistindo que leis injustas ainda assim são leis, os positivistas foram
acusados pelas atrocidades do nazismo (DIMOULIS, 2006, p. 257-274).
Hart concorda com Austin no sentido de que seria puro nonsense dizer que se
as leis humanas conflitassem com os princípios da moral, então elas deixariam de
ser leis. Austin e Bentham defendiam que, se as leis atingissem um determinado
grau de iniquidade, haveria uma clara obrigação moral de resistir-lhes e de deixar
de lhes obedecer. A iniquidade da lei, entretanto, não retiraria seu status de “lei”. E
mais, abrir mão do reconhecimento de que uma lei possa ser iníqua nos retiraria a
possibilidade de uma das mais fortes críticas morais às leis, qual seja, que as leis
podem ser perversas demais para serem obedecidas.
A terceira crítica à distinção é relacionada ao debate entre cognitivismo e não-cogni-
tivismo na moral. O positivismo é confundido com uma teoria moral na qual proposições
sobre o que é o caso (enunciados de fato) seriam de tipo radicalmente diferente de
declarações sobre o que deveria ser (proposições de valor) (HART, 2010, p. 90). As va-
riantes dessa teoria moral são o que Hart chama de não-cognitivismo, onde julgamentos
sobre o que deveria ser, as proposições de valor, são, ou têm como elementos essenciais,
expressões de sentimento, emoção ou preferências subjetivas e não podem ser demons-
tradas racionalmente. Ainda, no não-cognitivismo estaria presente a discussão sobre a
racionalidade dos meios contra a irracionalidade dos fins, isto é, “podemos descobrir e
discutir racionalmente quais os meios adequados para determinado fins, mas os fins não
são passíveis de descoberta ou debate racional” (HART, 2010, p. 91).
O cognitivismo, por sua vez, sugere que as distinções entre o que é e o que de-
veria ser, fato e valor, meios e fins, cognitivo e não cognitivo estão erradas. Quando
o cognitivista reconhece os últimos fins morais dos seres humanos, estaria se dando
conta, de forma racional, de algo imposto pela natureza do mundo em que vivemos.
Hart questiona: se aceitarmos o cognitivismo, o que aconteceria com a distinção
entre o que o direito é o que ele deveria ser? E sua resposta é que não aconteceria
nada. Poderíamos demonstrar racionalmente que certa lei iníqua é iníqua, mas isso
não retiraria seu caráter de lei (tampouco faria com que normas com todas as quali-
ficações morais para serem leis o fossem).
Um argumento mais elaborado para recusar o não-cognitivismo, ao qual os po-
sitivistas estariam vinculados, teria sido apresentado por Lon Fuller. Na descrição de
Hart, Fuller defenderia que, em casos da zona de penumbra, nós estaríamos diante
de situações em que “a inclusão do novo caso sob o âmbito da norma ocorre como
uma elaboração natural da norma” (HART, 2010, p. 92). Nesse sentido, em Fuller, o
que o direito é e o que deveria ser se confundiriam ao se desdobrar racionalmente
o conteúdo de uma norma.
Hart rejeita o argumento de Fuller sob o raciocínio de que (i) a confusão não
necessariamente resulta num deveria moral, i.e., o desdobramento natural da norma
poderia resultar em interpretações que levassem a atrocidades, tais quais o nazis-
mo; e (ii) é excepcional e raro nos vermos diante de uma situação na qual “uma for-
ma de decidir um caso nos é imposta como a única elaboração natural ou racional
de determinada norma” (HART, 2010, p. 95). Em resumo, o argumento de Hart para
insistir junto com os utilitaristas na separação entre ser e dever ser e defender a ine-
xistência de uma relação conceitual necessária entre o direito e a moral é que saber
onde acaba o direito e começa a moral permite a tomada de decisão de forma mais
livre e consciente, mesmo quando na zona de penumbra. A frase resume o ponto:
mínimo de cooperação dada voluntariamente por aqueles que consideram ser seu in-
teresse submeter-se às regras, e mantê-las, seria impossível a coerção dos outros que
não se conformassem voluntariamente com tais regras” (HART, 2007, p. 209). Em outras
palavras, o direito depende da obediência voluntária daqueles que veem nele uma ra-
zão para obedecer-lhe, e a razão da obediência é, por sua vez, dependente da existência
de conteúdo mínimo das regras jurídicas que possibilitem a sobrevivência individual.
Dado o objetivo de viver, Hart formula cinco truísmos, “generalizações óbvias
respeitantes à natureza humana e ao mundo em que os homens vivem” (HART, 2007,
p. 209) que nos fornecem o conteúdo mínimo que o direito deve ter para ser viá-
vel. São eles: (i) vulnerabilidade humana; (ii) igualdade aproximada; (iii) altruísmo
limitado; (iv) recursos limitados; e (v) compreensão e força de vontade limitadas.
Os truísmos e seus desdobramentos em termos de conteúdos mínimos de direito
natural são explorados tanto em O conceito de direito, quanto em O positivismo e a
separação entre o direito e a moral.
O que nos importa aprofundar, contudo, é como Hart entende não cair em con-
tradição ao defender, por um lado, esse conteúdo mínimo e, por outro, a separação
entre ser e dever ser, entre o direito e a moral. Aparentemente, Hart estaria propon-
do que dada a natureza humana (enunciado de ser), o direito deve conter certas
características para ser viável (enunciado de dever ser). Nesse sentido, haveria uma
conexão necessária entre o direito e a moral. Seu contra-argumento é simples: as
coisas são assim, mas poderiam ter sido diferentes. Hart repete essa frase diversas
vezes ao longo da explicação dos truísmos. A respeito da vulnerabilidade huma-
na, por exemplo, os homens poderiam possuir uma estrutura física que os tornas-
se virtualmente imunes a ataques de outros homens ou simplesmente não ter os
membros necessários para que desferissem ataques. Caso a natureza humana fosse
dessa forma, o truísmo deixaria de ser verdadeiro, e assim, o conteúdo mais básico
de qualquer arranjo jurídico e moral, não matarás, desapareceria.
Assim, os truísmos, embora truísmos, são contingentes e, dessa forma, o conte-
údo mínimo do direito natural também. Daí não haver conexão necessária entre o
direito e a moral.
demos que a distinção não é irrelevante e a sua análise mais detida pode levar a
conclusões alarmantes.
Um dos meios pelos quais a Lei de Hume opera na teoria jurídica é no que tange
à normatividade do direito4. A questão a saber é se as obrigações jurídicas são deri-
vadas de razões ou de fatos. Se derivadas de fatos, há transgressão à Lei de Hume,
já que de fatos (enunciados de ser), surgem deveres (enunciados de dever ser). Se as
obrigações jurídicas forem derivadas de razões, há uma conexão necessária entre o
direito e a moral, já que a normatividade do direito, aquilo a partir do qual o direito
busca fornecer razões para a ação, está ancorada em outras razões de natureza mo-
ral. O desafio de Hart, portanto, é construir uma teoria que não derive o direito do
fato, mantendo, ao mesmo tempo, a separação entre o direito e a moral. O argumen-
to defendido neste artigo é que Hart não responde satisfatoriamente a esse desafio.
Nas duas subseções a seguir, exponho dois argumentos que podem prejudicar
a tese hartiana de que existe uma separação entre ser e dever ser, entre o direito
e a moral. Veremos que a dificuldade de Hart é dupla. Ao longo da explanação,
para esclarecer o argumento, recuperarei Kelsen, para traçar um paralelo entre as
teorias dos dois autores.
4 “As leis buscam afetar ou modificar as condutas das pessoas, e geralmente fornecendo-lhes razões
para a ação. Chamaremos esse aspecto do direito seu caráter normativo” (MARMOR, 2011, p. 1).
5 A tese da norma fundamental não é livre de contradições (BOBBIO, 2006, p. 201) e a própria ideia de
que ela seria pressuposta ou meramente hipotética é relativizada por seu autor. Ao reconhecer que a
validade da norma fundamental depende de sua eficácia, Kelsen sai da esfera do dever ser e cai na do
ser, migrando para a sociologia e, com isso, minando a pureza de sua teoria.
direito e as obrigações que dele seguem estão alicerçados nessas razões e não na
mera existência da regra de reconhecimento.
Nessa segunda leitura, Hart não transgrediria a Lei de Hume, já que alicerça
a normatividade do direito em razões e não em fatos. Seus críticos, contudo, dirão
que as razões que Hart nos oferece são insuficientes para uma boa compreensão do
funcionamento do direito.
Um aspecto precisa ser clarificado antes. A normatividade jurídica para Hart é
diferente da normatividade para Kelsen. Neste, como dito, a normatividade jurídica
se assemelha à normatividade moral, ambas geram obrigações genuínas. Na leitura
de Raz, enunciar a existência de uma norma jurídica para Kelsen (enunciar sua va-
lidade) significa não só anunciar seu pertencimento a dado sistema jurídico, como
também reconhecer sua força normativa, já que a força normativa de uma norma
específica é decorrente da normatividade que a norma fundamental confere ao sis-
tema como um todo (RAZ, 2009, p. 311).
Nas leituras de Raz e Marmor6, em Hart temos situação diferente, já que há uma
diferença quanto à natureza entre o dever moral e o dever jurídico. Hart propõe uma
explicação sociológica da normatividade do direito. Quando falamos de uma obriga-
ção jurídica, estamos basicamente descrevendo uma realidade social complexa, uma
vez que as obrigações jurídicas são decorrentes da prática de aceitação das regras so-
ciais (MARMOR, 2011, p. 70). Por outro lado, quando falamos de uma obrigação moral,
estamos expressando julgamentos sobre como as coisas devem ser. Essa distinção fica
explícita quando Hart defende Austin e Bentham quanto às leis injustas, ou seja, afir-
ma que, embora sejam leis, elas podem ser perversas demais para serem obedecidas.
É que o positivismo de Hart parece nos fornecer somente uma descrição do que
se deve observar quando uma população segue uma regra, nomeadamente, que as
pessoas exibem uma certa regularidade comportamental acompanhada por algumas
crenças e atitudes que elas compartilham sobre essa regularidade. O ponto de vista
hermenêutico7 inaugurado por Hart permite ver que as pessoas compartilham crenças
e atitudes, mas não vai além disso. O projeto filosófico de Hart busca fornecer uma des-
crição da natureza do direito e, para tanto, não pode ir além da descrição da prática de
aceitação de crenças e atitudes que formam as regras, que, por sua vez, são normativas.
6 MacCormick oferece uma leitura de Hart que aproxima a obrigação moral da jurídica. Vide o capítulo
6 de seu H. L. A. Hart. A leitura mais positivista de Raz e Marmor, contudo, explicita melhor a distinção
que queremos enfatizar entre Kelsen e Hart.
as normas que fazem com que eles (os juízes) aceitem a força vinculante da
regra de reconhecimento não são elas mesmas parte do direito. Do ponto
de vista do estudo do direito, a regra última é a regra de reconhecimento
que ordena os juízes a aplicarem as regras aprovadas pelo Parlamento.
(RAZ, 2009, p. 311)
Os juízes podem ter razões morais, políticas, religiosas ou mesmo jurídicas para
usar a regra de reconhecimento. Da mesma forma, os cidadãos comuns podem ter
razões de diversas ordens para usar as regras como razões para demandar a confor-
midade alheia. Fato é que essas razões, por normativas e vinculantes que sejam, não
integram o direito. Ao teórico hartiano do direito, essas razões não importam para
que seja explicado o funcionamento de determinado sistema jurídico8.
8 A normatividade em Hart é menos forte do que em Kelsen; a razão para obedecer às regras do sistema
jurídico é praticamente ignorada por Hart. Talvez por isso, Hart use a palavra regra, enquanto Kelsen
usa a palavra norma. Esse ponto pode ser exemplificado com a relação muito menos problemática que
Hart tinha em reconhecer o direito nazista. Como visto, para ele, a lei nazista era lei, mas não teríamos
razão para obedecê-la, Teríamos, inclusive, uma razão moral para desobedecê-la. Kelsen lida muito
pior com o nazismo, já que a lei nazista está amparada numa norma fundamental, que gera deveres
de obediência. A saída de Kelsen é seu relativismo: o nazismo só é significativo para aqueles que
reconhecem sua norma fundamental. O reconhecimento de determinada norma como fundamental,
contudo, está no âmbito dos juízos morais de cada um.
Em síntese, nas formulações mais antigas de Hart, à forma como o direito busca
orientar condutas, não importam as razões subjacentes ou últimas. Para além da
incompletude apontada por Finnis, em última análise, isso implica na derivação de
fórmulas eminentemente normativas, típicas ao ponto de vista interno, das práti-
cas sociais, que, em Hart, são fatos. Veremos a seguir como mais tardiamente Hart
emenda sua teoria para buscar uma razão que justifique a normatividade jurídica.
casos, aquele que comanda pretende que suas “expressões de intenção sejam toma-
das como razões para que sejam cumpridas” (HART, 2001, p. 254).
Hart afirma que as razões peremptórias e independentes de conteúdo podem
ser encontradas em diversas transações normativas interpessoais. O ato de pro-
meter seria um exemplo. Podemos prometer que iremos fazer diversas coisas em
diferentes circunstâncias. Porém, o que faz com que mantenhamos uma promessa é
justamente a compreensão de uma promessa como uma razão peremptória e inde-
pendente de conteúdo para que se faça algo.
Voltando ao direito, os comandos postos pelo soberano podem não ser aceitos
como razões peremptórias, podendo ser simplesmente desobedecidos ou obedeci-
dos em função do medo da sanção após completa deliberação sobre os prós e os
contras. Ou podem ser aceitos como razões peremptórias, de modo que os coman-
dados obedeçam sem deliberar sobre os méritos, a partir de seu ponto de vista,
daquilo que são comandados a fazer. Mais ainda, o comandante pode ter razões para
acreditar que seus comandos serão amplamente reconhecidos como razões peremp-
tórias antes mesmo de emaná-los. Essa simpatia ao reconhecimento dos comandos
como razões peremptórias é “uma atitude distintamente normativa e não um mero
hábito de obediência” (HART, 2001, p. 256) e, na visão de Hart, constitui o núcleo de
todo um grupo de fenômenos normativos, incluindo as noções gerais de autoridade,
legislação e law-making.
Ao longo da explicação, Hart deixa claro que aqueles que reconhecem os co-
mandos como razões peremptórias podem fazê-lo por diversas outras razões (ulti-
mate reasons) que podem ser morais, religiosas e etc., ou mesmo nenhuma razão,
além do mero desejo de agradar ou ter uma satisfação em ver que suas vontades se
identificam com as do comandante. Essas outras razões, contudo, não são necessárias
à descrição da atitude normativa.
As razões peremptórias e independentes de conteúdo formam a ideia de auto-
ridade prática. Quando temos uma autoridade prática, suas expressões de intenção
sobre as ações dos outros são aceitas como razões peremptórias e independentes
de conteúdo para a ação. O reconhecimento geral dos comandos como razões pe-
remptórias para a ação equivale à existência de uma regra social, que, por um lado,
significa que o comandante deve ser obedecido e, por outro, confere ao comandante
os poderes jurídicos para que, ao emanar comandos, crie obrigações para seus sujei-
tos (HART, 2001, p. 258).
Sabemos que Hart rechaça a compreensão do direito como comandos de um
aplicadas, podem só querer falar numa forma estritamente técnica (technically con-
fined way). “Eles falam como juízes, a partir de uma instituição em que eles estão
vinculados (committed) como juízes em manter” (HART, 2001, p. 266). Eles podem
combinar a isso razões morais, especialmente quando concordam com o conteúdo
das leis, mas isso não é necessário.
Hart admite que sua posição abre espaço para a crítica de que estaria a defen-
der algo paradoxal, já que se pode concluir que “enunciados judiciais dos deveres
jurídicos dos sujeitos não precisam ter diretamente nada a ver com as razões para
o agir dos sujeitos” (HART, 2001, p. 267). Reconhece também que, ao tratar da acei-
tação por parte dos juízes da autoridade da legislatura como significando somente
que eles aceitam as leis (enactments), como estabelecendo razões para a correta
adjudicação e aplicação do direito de modo a fornecer-lhes razões peremptórias e
independentes de conteúdo à sua ação de aplicar o direito, isso significaria reduzir
(whittle down) a noção de aceitação dos enactments do Parlamento como razões
para o agir a algo muito diferente do que fora apresentado quando Hart tratava dos
comandos como razões peremptórias e independentes de conteúdo para que se faça
o que o comandante requer.
A despeito dessas legítimas objeções, Hart mantém seu ponto de vista de que as
razões peremptórias não necessitam de complementação por parte de outras razões
últimas. Ele reconhece que pode não dar conta de toda complexidade que envolve o
assunto e admite que a crítica de reduzir (whittle down) a aceitação a algo diferente
do que havia apresentado é razoável. No entanto, ao introduzir a complexidade
das sociedades modernas, com agências especializadas de aplicação e enforcement
do direito, temos uma institucionalização das práticas e uma institucionalização do
reconhecimento da autoridade do comandante como definidor de critérios (standar-
ds) públicos de adjudicação oficial. Essa institucionalização do reconhecimento por
parte dos juízes será geralmente acompanhada de uma aceitação full-blooded por
parte dos demais cidadãos. Em ambos os casos, contudo, não é necessário que haja,
apesar de geralmente haver, uma crença na legitimidade moral da legislatura.
5 Terceira leitura
A partir da noção de razão peremptória e independente de conteúdo, podemos
extrair uma terceira leitura da normatividade em Hart, complementar às já ofereci-
das. O ponto de vista interno é partilhado por aqueles que reconhecem nos comandos
da autoridade prática razões peremptórias e independentes de conteúdo para o agir.
No caso dos juízes, oficiais aos quais basta recorrer para que seja verificada a
existência de determinado sistema jurídico, eles aceitariam as leis aprovadas pelo
Parlamento a partir de sua posição institucional de juízes. Lembrando: eles podem
explicar ou justificar a aceitação das leis emanadas pelo Parlamento dizendo que (i)
eles simplesmente desejam continuar numa prática já estabelecida ou (ii) que eles
juraram, quando tomaram posse, continuá-la ou (iii) que eles concordaram tacita-
mente em mantê-la quando aceitaram o cargo de juiz.
Essa terceira leitura, contudo, não livrará Hart da acusação de burlar a lei de
Hume. E seu maior crítico, nesse sentido, será o jusnaturalista, John Finnis:
6 Conclusão
A separação entre ser e dever ser toca diversos pontos da teoria hartiana e não
só a distinção estrita entre o direito e a moral, como ele havia proposto. Sua maior
contribuição à teoria e à filosofia do direito, o ponto de vista interno, é o que motiva
a maior parte das críticas de violação da Lei de Hume.
Passamos por três leituras possíveis da teoria de Hart e, em nenhuma, vislum-
bramos uma resposta satisfatória às críticas que lhe são dirigidas. A insistência em
não querer aprofundar o que justifica as práticas lhe rende a infeliz posição de violar
correntemente a separação entre ser e dever ser.
Hart até emenda sua teoria, oferecendo as razões peremptórias e independen-
tes de conteúdo, mas vimos que elas não passam no teste pois, ao fim e ao cabo, são
fundadas nas práticas (e não em razões).
Uma vez que se admite que os conceitos jurídicos são normativos, é difícil negar,
como Hart negou, que eles sejam morais também. Ao reconhecer a normatividade a
partir do ponto de vista interno e, ao mesmo tempo, tentar preservar a distinção en-
tre o pensamento jurídico e o moral, “Hart fica num meio-termo instável e insupor-
tável” (SHAPIRO, 2011, p. 111). Como vimos na concessão final de Hart, parte dessa
instabilidade pode ser explicada pela disputa entre cognitivismo e não cognitivismo
moral, que, assim como a separação entre ser e dever ser, remonta a Hume.
7 Referências
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