2.príncipe Drácula
2.príncipe Drácula
2.príncipe Drácula
me/SBDLivros
Copyright © 2017 by Kerri Maniscalco Publicado mediante acordo com a autora, aos cuidados de Baror International,
INC., Armonk, New York, U.S.A.
Todos os direitos reservados Design da capa por Jeff Miller. Faceout Studio Fotografia da capa © Carrie Schechter
Arte da capa © Shutterstock Capa © 2017 Hachette Book Group, Inc.
Tradução para a língua portuguesa © Ana Death Duarte, 2019
Fotografias gentilmente cedidas por Wellcome Library, Londres (p. 12,34,162, 188, 216, 238,280, 318, 344);
Sebastian Nicolay/Shutterstock (p. 44).
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Gerente Comercial
Giselle Leitão
Gerente de Marketing Digital Mike Amelia
Editores
Bruno Dorigatti
Raquel Moritz Editores Assistentes
Lielson Zeni
Nilsen Silva Designers Assistentes
Aline Martins / Sem Serifa
Arthur Moraes Revisão
Aline T.K Miguel
Jéssica Reinaldo Impressão e acabamento
Gráfica Geográfica
Produção em ebook
SBD-GD
Maniscalco, Kerri
Príncipe Drácula / Kerri Maniscalco; tradução de Ana Death Duarte. — Rio de Janeiro: DarkSide Books,
2019.
424 p. (Rastro de sangue; 2)
ISBN: 978-85-9454-166-6
Título original: Hunting Prince Drácula
1. Ficção norte-americana 2. Homicidas em série — Ficção 3. Vampiros — Ficção I. Título II. Duarte, Ana Death
19-0527
CDD 813.6
(2019)
Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua Alcântara Machado, 36, sala 601, Centro
20081-010 — Rio de janeiro — RJ — Brasil www.darksidebooks.com
SBD
Para minha mãe e meu pai, por me
ensinarem que inúmeras aventuras podem
ser encontradas entre as páginas dos livros.
WILLIAM SHAKESPEARE
1. FANTASMAS DO PASSADO
Expresso do Oriente, Reino da Romênia
1° de dezembro de 1888
osso trem seguia seu caminho, rangendo ao longo de trilhas congeladas em direção
às presas cobertas de branco dos Cárpatos. De nossa posição, nas cercanias de
Bucareste, capital da Romênia, os picos tinham a cor de machucados cuja coloração
se desvanecia.
A julgar pela pesada neve que caía, era bem provável que os picos estivessem tão gélidos
quanto carne morta. Que pensamento encantador para uma manhã tempestuosa!
Ele bateu o joelho na lateral do painel de madeira entalhada da minha cabine particular
mais uma vez. Cerrei os olhos, rezando para que meu companheiro de viagem voltasse a
dormir. Mais uma batida de suas longas pernas poderia desalinhar minha desgastada
compostura. Pressionei a cabeça junto ao assento de espaldar alto e aveludado,
concentrando-me no veludo macio em vez de cutucar a perna ofensora com meu alfinete de
chapéu.
Sentindo minha crescente irritação, o sr. Thomas Cresswell se mexeu e começou a
tamborilar seus dedos enluvados no peitoril da janela de nossa cabine. Minha cabine, na
verdade.
Thomas tinha seus próprios aposentos, mas insistia em passar todas as horas do dia em
minha companhia, temendo que um assassino fosse entrar no trem e colocar em ação a sua
carnificina.
Pelo menos foi essa a história ridícula que ele havia contado à nossa acompanhante de
viagem, a sra. Harvey. Ela era a encantadora mulher de cabelos prateados que zelava por
Thomas quando ele se recolhia em sua residência em Piccadilly, em Londres, e no momento
encontrava-se em seu quarto cochilo do dia, o que era um feito e tanto ao se levar em conta
que não muito tempo havia se passado desde a alvorada.
Meu pai havia adoecido em Paris e depositara sua confiança e minha virtude tanto aos
cuidados da sra. Harvey quanto de Thomas, o que dizia muitíssimo sobre quão enormemente
meu pai tinha meu amigo em sua estima, e como Thomas podia ser inocente e charmoso de
um jeito persuasivo quando o humor ou a ocasião assim pedissem. De súbito, minhas mãos
ficaram quentes e úmidas dentro de minhas luvas.
Fazendo com que essa sensação descarrilasse, meu foco deslizou dos cabelos castanho-
escuros de Thomas e sua impecável casaca para a cartola e o jornal romeno que ele colocara
de lado. Eu vinha estudando o idioma por tempo suficiente para discernir a maior parte do
que dizia o jornal. A manchete alardeava: TERIA O PRÍNCIPE IMORTAL RETORNADO?
Um corpo havia sido encontrado, estaqueado no coração, perto de Braşov — que era
exatamente o vilarejo para onde estávamos viajando —, levando os supersticiosos a
acreditarem no impossível: que Vlad Drácula, o príncipe da Romênia dado como morto havia
séculos, estava vivo. E à caça.
Tudo isso era uma tolice cujo propósito seria inspirar medo e vender jornais. Um ser
imortal jamais poderia existir. Homens de carne e osso é que eram os verdadeiros monstros, e
eles podiam ser eliminados com bastante facilidade. No fim das contas, até mesmo Jack, o
Estripador, sangrava, como todos os homens. Mesmo assim, os jornais clamavam que ele
vagava em busca de presas pelas ruas brumosas de Londres. Alguns até mesmo haviam dito
que ele seguira para os Estados Unidos.
Se ao menos isso fosse verdade...
Uma pontada de dor demasiadamente familiar atingiu meu âmago, roubando-me o
fôlego. Era sempre a mesma coisa quando eu pensava no caso do Estripador e nas memórias
que o episódio agitava dentro de mim. Quando eu fitava o espelho, via os mesmos olhos
verdes e lábios carmesins; tanto as raízes indianas de minha mãe quanto a nobreza inglesa de
meu pai eram visíveis nas maçãs do meu rosto. Meu semblante ostentava que eu ainda era
uma menina de dezessete anos e cheia de vida.
E, ainda assim, eu havia sofrido um golpe tão devastador na alma! Eu me perguntava
como conseguia aparentar tamanha plenitude e serenidade por fora, quando, por dentro, eu
me debatia em turbulência.
Meu tio havia sentido essa mudança em mim, notando os erros descuidados que eu havia
começado a cometer em seu laboratório forense nos últimos dias. O ácido carbólico que eu
me esquecera de usar quando estava limpando nossas lâminas. Espécimes que eu não havia
coletado. Um corte irregular em carne gélida, tão atípico para minha habitual precisão com
os corpos alinhados em sua mesa de exames. Ele não disse nada, mas eu sabia que ele estava
decepcionado. Meu coração deveria ficar endurecido diante da morte.
Talvez eu não fosse feita para uma vida de estudos forenses, afinal de contas.
Tac. Tac-tac-tac. Tac.
Cerrei os dentes enquanto Thomas seguia com seu tac-tac-tac acompanhando o
movimento ruidoso do trem. Como a sra. Harvey conseguia dormir com todo esse barulho
altíssimo era algo inacreditável. Pelo menos ele havia conseguido me içar daquele profundo
poço de emoções. Emoções que eram silenciosas e sombrias demais. Estagnadas e pútridas
como água pantanosa, com criaturas de olhos vermelhos à espreita bem lá embaixo. Uma
imagem muito adequada para o lugar ao qual estávamos nos dirigindo.
Logo todos nós haveríamos de desembarcar em Bucareste, antes de viajarmos de
carruagem pelo restante do caminho até o Castelo de Bran, lar da Academia de Medicina e
Ciências Forenses, ou lnstitutului Național Criminalistică şi Medicină Legală, como é chamado
em romeno. A sra. Harvey passaria uma ou duas noites em Braşov antes de viajar de volta a
Londres. Uma parte minha ansiava por retornar a Londres com ela, embora eu jamais fosse
admiti-lo em voz alta para Thomas.
Acima de nossa cabine particular, um lustre opulento oscilava em compasso com o ritmo
do trem, com seus cristais tilintando uns nos outros e acrescentando uma nova camada de
acompanhamento às batidas em staccato de Thomas. Afastando a incessante melodia de
meus pensamentos, fiquei observando enquanto o mundo lá fora passava em um borrão feito
de baforadas de vapor e ramos tremulantes de árvores. Galhos desprovidos de folhas eram
encapsulados em um branco cintilante, cujos reflexos brilhavam em contraste com o polido e
quase ébano azul de nosso trem de luxo, enquanto os vagões da frente faziam uma curva e
escavavam um caminho em meio à terra polvilhada pela geada.
Eu me inclinei mais para perto da janela, dando-me conta de que os galhos não estavam
cobertos de neve, mas sim de gelo. Eles captavam a primeira luz do dia e ficavam
praticamente em chamas sob o raiar do sol laranja-avermelhado. Era tão pacífico que eu
quase podia esquecer... Lobos! Eu me levantei de forma tão abrupta que Thomas deu um pulo
em seu assento. A sra. Harvey roncava sonoramente, e o ruído era similar a um rosnado.
Pisquei e as criaturas se foram, substituídas por galhos oscilantes enquanto o trem seguia
adiante de maneira ruidosa.
O que eu havia pensado serem presas brilhantes eram apenas os ramos invernosos das
árvores. Soltei o ar. Eu andava ouvindo uivos fantasmagóricos todas as noites. Agora via
coisas que não estavam lá durante a luz do dia também.
“Eu vou... me esticar um pouco.”
Thomas ergueu suas sobrancelhas escuras, imaginando — ou provavelmente apreciando,
pelo que eu conhecia dele — o porquê da minha flagrante dispensa de decoro, e inclinou-se
para a frente; mas, antes que pudesse se oferecer para me acompanhar ou acordar nossa
acompanhante, eu me apressei até a porta e a deslizei para abri-la. “Eu preciso de alguns
instantes”, disse. “Sozinha.”
Thomas me encarou pelo tempo de um longo batimento cardíaco antes de responder.
“Tente não sentir muito a minha falta, Wadsworth.” Ele se recostou, a expressão em seu rosto
ficando levemente séria antes que as feições assumissem novamente um ar travesso. “Embora
isso seja uma tarefa impossível. Eu, por exemplo, sinto falta por demais de mim mesmo
quando estou dormindo.”
“O que foi, querido?”, perguntou-lhe a sra. Harvey, piscando atrás de seus óculos.
“Eu disse que contar carneirinhos para pegar no sono é sempre bem-vindo.”
“Eu estava dormindo de novo?”
Aproveitando-me da distração, fechei a porta atrás de mim enquanto segurava minhas
saias. Eu não queria que Thomas lesse a expressão no meu rosto. Aquela que eu ainda não
havia dominado na presença dele.
Fiquei vagando pelo estreito corredor, mal absorvendo toda a grandiosidade enquanto
fazia meu caminho em direção ao vagão-restaurante. Eu não poderia permanecer aqui fora
desacompanhada por muito tempo, mas precisava escapulir. Nem que fosse apenas dos meus
próprios pensamentos e preocupações.
Na semana passada, eu tinha visto minha prima Liza subindo as escadas na minha casa.
Uma visão tão normal quanto qualquer outra, exceto pelo fato de que ela havia ido embora
para o interior semanas antes. Dias depois, algo um pouco mais sombrio ocorreu. Eu ficara
convencida de que um cadáver havia erguido a cabeça em minha direção no laboratório de
meu tio, encarando a lâmina em minha mão cheio de escárnio enquanto sua boca cuspia
vermes sobre a mesa de exames. Quando pisquei, tudo estava bem.
Eu havia trazido vários periódicos médicos para a viagem, mas, com Thomas me
estudando abertamente, não tinha tido oportunidade de fazer uma pesquisa sobre os meus
sintomas. Ele havia dito que eu precisava confrontar o pesar e o luto, mas eu ainda não estava
disposta a reabrir aquela ferida. Talvez um dia.
Poucas cabines adiante, uma porta se abriu, arrastando-me de volta ao momento
presente. Um homem de cabelos primorosamente penteados saiu do aposento, movendo-se
com rapidez pelo corredor. Seu terno era da cor de carvão e feito de um material fino, o que
era aparente pela forma como caía sobre seus largos ombros. Quando ele puxou um pente de
prata de sua casaca, eu quase soltei um grito. Algo em meu âmago se torceu tão
violentamente que meus joelhos se curvaram.
Não podia ser. Ele havia morrido semanas atrás naquele acidente horrível. Minha mente
conhecia a impossibilidade que eu tinha diante de mim, afastando-se a passos largos, com
seus cabelos perfeitos e roupas combinando, e, ainda assim, meu coração se recusava a ouvir a
razão.
Apanhei minhas saias cor de creme e saí correndo. Eu teria reconhecido aquele caminhar
em qualquer lugar. A ciência não tinha como explicar o poder do amor ou da esperança. Não
havia fórmula nem dedução para a compreensividade, e não importava o que Thomas tivesse
a dizer sobre ciência versus humanidade.
O homem inclinou o chapéu para os passageiros que estavam sentados para o chá. Eu
estava apenas parcialmente ciente dos olhares fixos e boquiabertos enquanto eu corria atrás
do homem, com meu próprio chapéu pendendo para um lado.
Ele chegou perto da entrada para a sala de charutos, parando por um instante para abrir
com tudo a porta externa que desembocava na passagem entre os vagões. A fumaça vazou da
sala e se misturou com uma rajada gélida de ar, e o cheiro foi forte o suficiente para revirar as
minhas entranhas. Estiquei a mão, puxando o homem e virando-o, pronta para lançar os
braços em volta dele e chorar. Os eventos do último mês foram apenas um pesadelo. Meu...
"Domnişoară?"
Meus olhos, se enchendo, arderam. O penteado e as roupas não pertenciam à pessoa a
quem eu achei que pertencessem. Limpei os primeiros sinais das lágrimas que deslizaram
pelas minhas bochechas, não me importando de borrar o kajal que eu havia começado a usar
em volta dos olhos.
Ele ergueu uma bengala com cabeça de serpente, passando-a para a outra mão. O homem
não estava nem mesmo segurando um pente. Eu estava perdendo a percepção do que era real.
Recuei lentamente, notando a conversa sussurrada vinda do vagão atrás de nós. Os tinidos
das xícaras de chá, os sotaques mesclados dos viajantes do mundo todo, tudo isso em um
crescendo que se acumulava dentro do meu peito. O pânico tornava a respiração mais difícil
do que o espartilho que comprimia minhas costelas.
Arfei, tentando inspirar uma quantidade suficiente de ar para aliviar meus nervos
confusos. O tumulto ruidoso e as risadas foram se elevando, chegando a um tom estridente.
Uma parte minha desejava que a cacofonia abafasse a pulsação que martelava em minha
cabeça. Eu estava prestes a vomitar.
“Está bem, domnişoară? Parece...”
Eu ri, não me importando com o fato de que ele havia se afastado bruscamente de meu
rompante repentino. Se é que existia algum poder superior, ele estava se divertindo à minha
custa. Por fim, entendi que “domnişoară” fora usado no lugar de “senhorita”. Esse homem não
era nem mesmo inglês. Ele falava romeno. E seus cabelos não eram nem um pouco loiros.
Eram castanho-claros.
“Scuze”, falei, forçando-me a sair do estado de histeria com um mísero pedido de
desculpas e uma tênue inclinação da minha cabeça. “Eu confundi o senhor com outra
pessoa.”
Antes que eu pudesse me envergonhar ainda mais, abaixei o queixo e rapidamente voltei
ao meu vagão. Mantive a cabeça baixa, ignorando os sussurros e as risadinhas, ainda que eu já
tivesse ouvido o bastante.
Eu precisava me recompor antes de encontrar Thomas novamente. Eu havia fingido que
não, mas vi a preocupação enrugando sua testa. A dose extra de cautela na forma como ele
me provocava ou me irritava. Eu sabia precisamente o que ele estava fazendo a cada vez que
ele me incomodava. Depois do que minha família havia passado, qualquer outro cavalheiro
teria me tratado como se eu fosse uma boneca de porcelana, facilmente fraturada e
descartada por estar quebrada. Thomas, contudo, não era como os outros rapazes.
Cheguei rapidamente à minha cabine e endireitei os ombros. Estava na hora de vestir a
carapaça fria e indiferente de uma cientista. Minhas lágrimas haviam secado e meu coração
agora era um punho fechado e sólido dentro do meu peito. Inspirei e exalei o ar. Jack, o
Estripador jamais voltaria. Essa era uma declaração tão real quanto qualquer outra.
Não havia nenhum assassino como ele neste trem. Um outro fato. O Outono do Terror
havia acabado no mês passado.
Certamente, não havia lobos caçando ninguém no Expresso do Oriente.
Se eu não tomasse cuidado, em seguida eu começaria a acreditar que Drácula havia se
erguido.
Eu me permiti respirar fundo mais uma vez antes de abrir a porta com um puxão, banindo
todos os pensamentos sobre príncipes imortais da minha cabeça, e entrei na cabine.
2. AMADA IMORTAL
Expresso do Oriente, Reino da Romênia
1º de dezembro de 1888
homas manteve o foco teimosamente fixo na janela, seus dedos cobertos pelas luvas
de couro ainda tamborilando naquele ritmo irritante. Tac. Tac-tac-tac. Tac.
A sra. Harvey descansava os olhos novamente, o que não era nenhuma surpresa.
A suave respiração nasalada indicava que ela havia adormecido de novo nos poucos instantes
em que me ausentei. Mirei meu companheiro, mas ou ele estava alegremente desatento, ou
provavelmente fingia estar, enquanto eu me sentava de fininho no assento em frente ao dele.
Seu perfil era um estudo de linhas e ângulos perfeitos, todos cuidadosamente virados para o
mundo invernal lá fora. Eu sabia que ele podia sentir minha atenção nele, sua boca curvada
demais enquanto se deleitava com pensamentos sem importância.
“Você precisa continuar com essa maldita batida, Thomas?”, perguntei. “Isso está me
deixando tão maluca quanto um daqueles desafortunados personagens de Poe. Além do mais,
a pobre sra. Harvey deve estar sonhando com coisas terríveis.”
Ele voltou sua atenção para mim, seus profundos olhos castanhos assumindo ares
pensativos por um momento. Aquele exato olhar — cálido e convidativo como uma faixa de
luz do sol em um dia fresco de outono — que era sinônimo de problemas. Eu podia
praticamente ver a mente dele devaneando sobre coisas impudicas enquanto um lado de sua
boca se repuxava para cima. Seu sorriso torto era um convite a pensamentos que minha tia
Amélia teria achado completamente indecentes. E a forma como seu olhar recaiu sobre os
meus lábios, contemplando-os, me dizia que ele sabia disso. Insolente.
“Poe? Então você arrancará o meu coração e o colocará debaixo de sua cama, Wadsworth?
Devo admitir que não é a maneira ideal de ir parar em seu quarto.”
“Você parece terrivelmente certo de sua habilidade de encantar outra coisa além de
serpentes.”
“Admita. Nosso último beijo foi um tanto estimulante.” Ele se inclinou para a frente, seu
belo rosto se aproximando demais do meu. De que adiantava ter uma acompanhante? Meu
coração acelerou quando notei minúsculos pontos em suas íris. Eram como pequenos sóis
dourados que me atraíam para dentro deles com seus raios encantadores. “Não vá me dizer
que não gosta da ideia de um outro beijo.”
Meu olhar varreu as feições cheias de esperança dele. A verdade era que, apesar de todas as
coisas sombrias que haviam ocorrido no mês anterior, eu realmente gostava da ideia de ter
um outro encontro romântico com Thomas, o que, de alguma forma, parecia uma traição ao
meu período de luto.
“Primeiro e último beijo”, eu o lembrei. “Foi a adrenalina passando pelas minhas veias
depois de quase morrer nas mãos daqueles dois rufiões. E não os seus poderes de persuasão.”
Um sorriso malicioso ergueu plenamente os cantos de sua boca.
“Se eu encontrar uma pitada de perigo para nós, isso a deixaria tentada de novo?”
“Sabe, eu gostava mais de quando você não estava falando.”
“Ah”, Thomas recostou-se, suspirando, “de uma forma ou de outra, você gosta de mim.”
Fiz o melhor que pude para esconder um grande sorriso. Eu deveria saber que o patife
encontraria uma maneira de desviar nossa conversa para tais assuntos impróprios. Na
verdade, fiquei surpresa por ele ter demorado tanto para ser vulgar. Nós havíamos viajado de
Londres a Paris com meu pai, para que ele pudesse nos ver entrar no impressionante Expresso
do Oriente, e Thomas havia sido um agradável cavalheiro pelo caminho todo. Eu mal o havia
reconhecido quando ele conversou agradavelmente com meu pai enquanto eles comiam
pãezinhos de minuto e bebiam chá.
Se não fosse pela inclinação travessa nos lábios dele quando meu pai não estava olhando,
ou as linhas familiares de seu maxilar teimoso, eu teria afirmado que ele era um impostor.
Não havia forma possível de aquele Thomas Cresswell ser o mesmo rapaz irritantemente
inteligente de quem eu tinha vindo a gostar muito naquele último outono.
Coloquei uma mecha dos meus cabelos escuros feito um corvo para trás da orelha e olhei
para fora da janela novamente.
“Então o seu silêncio significa que você está considerando um outro beijo?”
“Você não consegue deduzir a minha resposta, Cresswell?” Eu o encarei com uma
sobrancelha erguida em desafio, até que ele deu de ombros e continuou a bater os dedos
enluvados no peitoril da janela.
Aquele Thomas também havia conseguido persuadir o meu pai, o formidável lorde
Edmund Wadsworth, a permitir que eu estudasse com ele na Academia de Medicina e
Ciências Forenses, na Romênia, fato este que eu ainda não havia conseguido destrinchar
muito bem na minha mente. Era quase fantástico demais para ser verdade. Até mesmo
enquanto eu já estava sentada em um trem, a caminho da tal academia.
Minha última semana em Londres tinha sido cheia de ajustes em vestidos e arrumação de
baús, o que resultou em tempo de sobra para que eles dois se tornassem ainda mais próximos.
Quando meu pai anunciou que Thomas me acompanharia até a academia junto com a sra.
Harvey devido à sua doença, eu praticamente engasguei com a minha sopa enquanto Thomas
piscava por cima da dele.
Eu mal tive tempo para dormir à noite, quem diria ponderar sobre o relacionamento de
camaradagem que estava surgindo entre meu enfurecedor amigo e meu geralmente austero
pai. Eu estava ansiosa para deixar a casa terrivelmente silenciosa que começava a ficar
abarrotada com os fantasmas do meu passado recente. Um fato do qual Thomas estava bem
ciente.
“Sonhando com um novo escalpelo ou este olhar tem o simples propósito de me
embevecer?”, quis saber Thomas, resgatando-me de meus pensamentos sombrios. Seus lábios
se contorceram com a cara feia que eu fiz, mas ele era esperto o bastante para não terminar
de abrir aquele sorriso. “Ah, um dilema emocional, então. Meu predileto.”
Eu o encarei enquanto ele observava cuidadosamente a expressão que eu estava tentando,
com muito esforço, controlar: as luvas de cetim nas quais eu não conseguia parar de mexer, a
forma rígida como eu estava sentada em nossa cabine, que não tinha nada a ver com o fato de
o espartilho estar espremendo a parte de cima do meu corpo, nem com a mulher mais velha
que ocupava a maior parte do meu assento. O olhar compenetrado dele, sincero e cheio de
compaixão, fixou-se no meu próprio. Eu podia ver promessas e desejos pregados em suas
feições, seus sentimentos intensos o suficiente para me fazer tremer.
“Nervosa em relação às aulas? Você encantará todos eles, Wadsworth.”
Era um alívio suave que Thomas às vezes entendesse errado a completa verdade das
minhas emoções. Ele que acreditasse que meu tremor fosse completamente motivado pelo
nervosismo por causa das aulas, e não por seu crescente interesse em um noivado. Thomas
havia admitido seu amor por mim, mas, como vinha acontecendo com muitas coisas
recentemente, eu estava incerta em relação à realidade de tudo aquilo. Talvez ele só se
sentisse em dívida comigo, por pena, depois de tudo que havia ocorrido.
Toquei nos botões na lateral de minhas luvas. “Não. Na verdade, não.”
Ele arqueou uma sobrancelha, mas não disse nada. Voltei minha atenção para a janela e
para o mundo desolador lá fora. Desejei ficar perdida no nada por mais um tempinho.
Segundo a literatura que eu havia lido na grande biblioteca de meu pai, nossa nova
academia ficava localizada em um castelo um tanto macabro, no topo da frígida cadeia
montanhosa dos Cárpatos. Bem longe de casa e da civilização, caso algum dos meus novos
colegas de classe não me acolhesse muito bem. Certamente que o fato de ser mulher seria
visto como uma fraqueza em meio aos colegas do sexo masculino... E se Thomas abandonasse
nossa amizade assim que chegássemos lá?
Talvez ele descobrisse como era realmente estranho uma moça abrindo os mortos e
arrancando seus órgãos como se fossem sapatos novos prestes a ser experimentados. Isso não
havia importado quando ambos éramos aprendizes do meu tio, em seu laboratório. Porém, o
que os estudantes na prestigiada Academia de Medicina e Ciências Forenses pensariam disso
poderia não ser assim tão progressista.
Escrutinar corpos mal era considerado apropriado para um homem fazer, quem dirá uma
moça de berço nobre. Se Thomas me deixasse sem amigos na academia, eu afundaria em um
abismo tão profundo que provavelmente jamais sairia dele.
A respeitável moça de sociedade que havia em mim odiava admitir isso, mas os flertes dele
me mantinham flutuando em um oceano de sentimentos conflituosos. A paixão e a irritação
eram o fogo, e esse fogo estava vivo e crepitante de poder. O fogo respirava. O pesar pelo luto
era um tonel de areia movediça; quanto mais eu lutasse contra ele, mais para o fundo eu era
empurrada. Eu preferiria muito mais ficar em chamas a ser enterrada viva. Embora o mero
pensamento de estar em uma situação comprometedora com Thomas fosse o bastante para
que o calor subisse ao meu rosto.
“Audrey Rose”, começou Thomas, mexendo nos punhos de sua casaca, e então passou a
mão por seus cabelos escuros, um gesto realmente estranho para o meu normalmente
arrogante amigo. A sra. Harvey agitou-se, mas não acordou, e, pelo menos uma vez na vida,
eu realmente gostaria que isso tivesse acontecido.
“Sim?” Eu me sentei ainda mais ereta, forçando a estrutura do meu espartilho a agir como
se fosse uma armadura. Thomas dificilmente me chamava pelo meu primeiro nome, a menos
que algo horrível estivesse prestes a acontecer. Durante uma autópsia ocorrida há alguns
meses, havíamos travado uma batalha de inteligência — a qual eu achei que tivesse vencido
na época, mas agora não estava tão certa disso — e eu havia permitido que ele fizesse uso do
meu sobrenome. Um privilégio que ele também me concedeu, e algo de que eu me arrependia
sempre que ele me chamava de Wadsworth em público. “O que foi?”
Fiquei observando enquanto ele respirava fundo algumas vezes, minha atenção vagando
para o terno feito com primor. Ele estava bastante bem-vestido para a nossa chegada. O terno
de um azul muito escuro era feito sob medida para o seu corpo, de um jeito que faria
qualquer um parar para admirar tanto a vestimenta quanto o jovem que a preenchia. Estiquei
a mão para mexer nos meus botões, e então me contive.
“Tem algo que venho querendo lhe dizer”, ele falou, empertigando-se em seu assento.
“Eu... apenas acho justo revelar antes de chegarmos.”
Ele bateu o joelho no painel de madeira mais uma vez, e hesitou. Talvez já estivesse se
dando conta de que sua associação comigo lhe causaria um problema mais adiante. Eu me
preparei para isso: o corte do cordão que me prendia à sanidade. Eu não pediria que ele
permanecesse meu amigo enquanto passássemos por tudo aquilo. Não importava se isso
fosse me matar. Concentrei-me na minha respiração, contando os segundos a cada fôlego que
tomava.
Vovó dizia que a frase “Renomado por sua teimosia” deveria ser inscrita nos túmulos de
todos os Wadsworth. Eu não discordava dela. Ergui o queixo. O barulho das rodas agora
pontuava cada batimento amplificado do meu coração, bombeando adrenalina em minhas
veias. Engoli em seco diversas vezes. Se Thomas não falasse logo, eu temia vomitar em cima
dele e de seu belo terno.
“Wadsworth. Eu estou certo de que você... Talvez eu devesse...” Ele balançou a cabeça, e
então riu. “Você realmente me possuiu. Em seguida estarei escrevendo sonetos e fazendo
olhos de corça.” A vulnerabilidade deixou suas feições de maneira abrupta, como se ele tivesse
impedido a si mesmo de cair de um penhasco. Ele pigarreou, com a voz muito mais suave do
que havia saído um momento antes. “Mas não é exatamente hora para isso, considerando que
minha notícia é levemente... surpreendente.”
Franzi as sobrancelhas. Eu não fazia ideia do rumo que isso estava tomando. Ou ele
declararia nossa amizade inquebrantável ou a deixaria de lado para todo o sempre. Eu me vi
agarrada à beirada de meu assento, com as palmas de minhas mãos mais uma vez
umedecendo as luvas de cetim.
Ele se endireitou no assento, como que se preparando. “Minha mãe era...”
Alguma coisa grande caiu contra a porta de nossa cabine, e a força do impacto quase
rachou a madeira. Pelo menos soou como tal; a porta pesada estava fechada para conter o
ruído de coisas batendo no vagão-restaurante ali perto. A sra. Harvey, que Deus a abençoe,
ainda estava em seu sono profundo.
Eu não me atrevia a respirar, esperando que mais sons viessem em seguida. Quando isso
não aconteceu, oscilei alguns centímetros para a frente, esquecendo-me por completo da
confissão não dita de Thomas, meu coração espancando o peito no dobro da velocidade
normal. Imaginei cadáveres voltando à vida, derrubando a porta com a esperança de beber
nosso sangue e... não. Forcei minha mente a pensar de forma clara. Vampiros não existiam.
Talvez fosse simplesmente um homem que tivesse bebido demais e houvesse tropeçado
diante da porta. Ou talvez um carrinho de sobremesa ou de chá tivesse saído do controle de
um dos empregados. Até considerei a possibilidade de que uma moça houvesse perdido o
equilíbrio com o movimento do trem.
Soltei o ar e me recostei. Eu precisava parar de me preocupar com assassinos caçando pela
noite. Estava ficando obcecada, transformando cada sombra em um demônio sugador de
sangue, quando tudo não passava de uma simples ausência de luz. Mas, no fim do dia, eu era
exatamente como o meu pai.
Um outro objeto bateu com tudo nas paredes do lado de fora de nossa cabine, seguido de
um grito abafado, e, depois, nada. Os pelos na minha nuca ficaram eriçados, erguendo-se e se
afastando da segurança da minha pele, enquanto os roncos da sra. Harvey se juntavam ao
clima ameaçador.
“Que diabos, em nome da rainha, está acontecendo?”, sussurrei, amaldiçoando a mim
mesma por ter colocado meus escalpelos em um baú que eu não tinha como alcançar
prontamente.
Thomas levou um dedo aos lábios e depois apontou para a porta, impedindo quaisquer
movimentos meus. Nós nos sentamos enquanto segundos se passavam em um silêncio
doloroso. Cada tique do relógio parecia um mês agonizante. Eu mal conseguia aguentar.
Meu coração estava prestes a romper os limites de seu confinamento. O silêncio era mais
assustador que tudo, transformando os segundos em minutos. Nós estávamos ali sentados, a
atenção fixa na porta, esperando. Fechei os olhos, rezando para que eu não estivesse
vivenciando acordada mais um pesadelo tenebroso.
Um grito lacerou o ar, gelando meus ossos por inteiro.
Esquecendo-se do que era apropriado, Thomas esticou a mão para mim do outro lado da
cabine, e a sra. Harvey por fim se mexeu. Quando Thomas segurou minhas mãos nas dele, eu
soube que não se tratava de um fruto da minha imaginação. Alguma coisa sombria e muito
real estava no trem conosco.
3. MONSTROS E RENDAS
Expresso do Oriente, Reino da Romênia
1º de dezembro de 1888
sse mesmo pensamento também havia passado pela minha cabeça. Estávamos a
bordo de um trem em movimento. A menos que alguém houvesse saltado do vão
entre um dos vagões e disparado floresta adentro, o assassino ainda estaria aqui.
Desfrutando o espetáculo.
Eu me levantei e olhei de relance ao meu redor, registrando cada face e catalogando-as
para futuras referências. Havia uma mistura de pessoas jovens e idosas, simples e
espalhafatosas. Homens e mulheres. Minha atenção foi fisgada por uma pessoa — um rapaz
que tinha por volta da minha idade e cabelos tão pretos quanto os meus — que se mexia,
puxando o colarinho de seu fraque e alternando o olhar entre o cadáver e as pessoas que o
cercavam.
Ele parecia estar a ponto de desmaiar. Seu nervosismo poderia ser devido à culpa ou ao
medo. Ele parou de se movimentar por tempo suficiente para que nossos olhares se
encontrassem, e seus olhos cheios de lágrimas perfuraram os meus. Havia algo em relação a
ele que levou minha pulsação a ficar extremamente acelerada mais uma vez. Talvez ele
conhecesse a vítima que eu tinha aos meus pés.
Meu coração golpeou com tudo o meu esterno na mesma hora em que o condutor do
trem apitou um aviso estridente para que voltássemos às nossas cabines. Nos segundos que
haviam se passado enquanto eu fechava os olhos e recobrava minha compostura, o rapaz
nervoso se fora. Fitei o lugar onde ele havia estado antes de se afastar. Thomas se mexeu,
roçando o braço no meu com sutileza.
Estávamos em pé diante do corpo, ambos em silêncio com nossos próprios pensamentos
tumultuosos enquanto absorvíamos a cena. Olhei para a vítima de relance, meu estômago se
retorcendo.
“Ele já havia falecido na hora em que abrimos a porta”, disse Thomas. “Sutura alguma
teria remendado o coração dele para que ficasse inteiro novamente.”
Eu sabia que Thomas estava certo, ainda que eu jurasse ter visto tremeluzir os olhos da
vítima. Inspirei fundo para desanuviar a minha mente. Pensei mais uma vez no artigo do
jornal.
“O assassinato em Braşov também foi um empalamento”, falei. “Eu duvido muitíssimo
que se tratem de dois crimes distintos. Talvez o assassino de Braşov estivesse viajando para
outra cidade, mas se deparou com uma oportunidade tentadora demais para ser ignorada.”
Mas por que escolher esta pessoa para assassinar? Será que ele já era um alvo antes mesmo
de embarcar?
Thomas vigiava a todos com seu olhar contemplativo, calculista e determinado.
Enquanto o corredor esvaziava, eu podia inspecionar o falecido em busca de pistas.
Implorava a mim mesma para que eu visse a verdade que tínhamos diante de nós sem ser
varrida para dentro de outra fantasia com um cadáver que voltava à vida. A julgar por sua
aparência, a vítima não podia ter mais de vinte anos. Que perda sem sentido! Ele estava bem
vestido, com sapatos engraxados e um terno imaculado. Os cabelos castanho-claros tinham
sido cuidadosamente penteados para um dos lados e arrumados à perfeição com o uso de
uma pomada.
Ali perto, uma bengala com cabeça de serpente, adornada com uma joia, fitava desatenta
os passageiros que ainda permaneciam ali, olhando com cobiça para seu antigo dono. Aquela
bengala era impressionante. E familiar. Meu coração deu uma pancada no peito quando meu
foco se voltou para cima, para o rosto dele. Cambaleei para junto da parede. Eu não havia
prestado atenção durante o caos inicial, mas esse era o homem que, mais cedo, eu achara ser
outra pessoa. Não podia ter sido mais de dez ou vinte minutos atrás.
Era incompreensível como ele passara de vivo, e dirigindo-se à sala de charutos, para
morto, do lado de fora da minha cabine. Especialmente porque ele se parecia tanto com...
Fechei os olhos, mas as imagens presas ali eram piores, então encarei o ferimento de
entrada e me concentrei no sangue que estava coagulando e esfriando.
“Wadsworth? O que foi?”
Pousei uma mão em minha barriga, tentando ganhar tempo.
“A morte nunca é algo fácil, mas existe alguma coisa... definitivamente pior quando
alguém jovem é levado por ela.”
“A morte não é a única coisa a ser temida. Assassinatos são piores.” Thomas examinou
meu rosto e depois olhou de relance para o corpo, com suas feições adquirindo ares mais
suaves. “Audrey Rose...”
Eu me virei e rapidamente desviei o olhar para que ele não pudesse acrescentar palavras à
minha aflição. “Veja o que você consegue deduzir, Cresswell. Eu preciso de um minuto.”
Atrás de mim, pude sentir Thomas se aproximando, demorando-se por tempo o suficiente
para que eu soubesse que ele estava escolhendo suas próximas palavras com extremo cuidado,
e tentei não ficar tensa. “Você está bem?”
Nós dois sabíamos que sua pergunta ia além do falecido que jazia aos meus pés. Parecia
que eu poderia ser jogada no sombrio poço sem fundo das minhas emoções a qualquer
segundo. Eu precisava controlar as imagens que me assombravam tanto de dia quanto de
noite. Fiquei cara a cara com ele, tomando cuidado para manter a firmeza em minha voz e em
minha expressão.
“É claro que sim. Só estou me recompondo.”
“Audrey Rose”, disse Thomas, baixinho, “você não tem que...”
“Eu estou bem, Thomas”, falei. “Eu simplesmente preciso de um pouco de silêncio.”
Ele franziu os lábios, mas honrou minha vontade e não me pressionou em relação ao
assunto. Eu me curvei para baixo uma vez mais, estudando o ferimento e ignorando a
inquietante semelhança do falecido com o meu irmão. Eu precisava reencontrar meu
equilíbrio. Localizar aquela porta que dava para as minhas emoções e vedá-la até que minha
inspeção estivesse terminada. Então eu poderia me trancar em meus aposentos e chorar.
Alguém arquejou quando eu desabotoei parte da camisa da vítima para avaliar a estaca. As
civilidades eram claramente mais importantes do que descobrir quaisquer pistas, mas eu, com
razão, não me importava com isso. Esse jovem merecia algo melhor.
Ignorei as pessoas que permaneciam no corredor e fingi que estava sozinha no laboratório
de meu tio, cercada pelos jarros que exalavam cheiro de formaldeído, cheios de amostras de
tecidos. Até mesmo na minha imaginação, os espécimes animais piscavam para mim com
seus olhos mortos e leitosos, julgando cada movimento que eu fazia.
Flexionei as mãos. Foco.
O ferimento no peito da vítima era ainda mais horrível visto de perto. Pedaços de madeira
haviam se soltado, causando uma aparência de arbustos de sarça e seus talos espinhosos. O
sangue seco estava quase preto em volta da estaca. Também notei duas linhas de um
carmesim escuro que haviam escapado de sua boca. Não era de surpreender. Tal ferimento
claramente causara uma forte hemorragia interna.
Se seu coração não tivesse sido perfurado, provavelmente ele teria se afogado em sua
própria força vital. Era uma forma excepcionalmente horrenda de morrer.
Um cheiro pungente, que não tinha nada a ver com o forte odor metálico de sangue,
pairava em volta da vítima. Eu me inclinei por cima do corpo, tentando localizar o odor
ofensivo, enquanto Thomas mirava os passageiros remanescentes que nos cercavam. Saber
que ele poderia coletar pistas com os vivos da mesma forma como eu poderia adivinhar
informações com os mortos me tranquilizava.
Alguma coisa estava escapando dos cantos dos lábios do falecido, chamando a minha
atenção. Pelo amor da Inglaterra, eu esperava que não fosse algo que a minha mente houvesse
conjurado. Eu quase tropecei e caí em cima da vítima ao me aproximar ainda mais.
Certamente havia algo de volumoso e esbranquiçado enfiado em sua boca. Parecia ser de
natureza orgânica, talvez algo como uma raiz. Se eu apenas pudesse alcançar...
“Senhoras e senhores!” O condutor do trem colocou as mãos em concha ao redor da boca,
gritando do fim do corredor. Seu sotaque indicava que ele era francês, o que fazia sentido,
visto que havíamos partido de Paris. “Por favor, retornem às suas cabines. Os membros da
guarda real precisam que a área fique livre de... contaminação.”
Nervoso, ele olhou de relance para o homem uniformizado que estava ao seu lado, que,
por sua vez, olhava com cara feia para a multidão, até que todos voltaram para seus aposentos
particulares, como sombras se afundando na escuridão.
O guarda parecia ter por volta de vinte e cinco anos de idade. Seus cabelos eram mais
pretos do que uma noite sem estrelas e estavam grudados com laquê em sua cabeça. Todo
cheio de ângulos, linhas robustas e feições incisivas. Embora ele nunca alterasse sua
expressão apática, a tensão se revolvia dentro dele como um arco estirado o suficiente para
atirar e matar. Notei a presença de músculos firmes sob suas roupas e calos em suas mãos —
que, surpreendentemente, estavam sem luvas —, enquanto ele as erguia e gesticulava para
que partíssemos. Ele era uma arma afiada pelo reino da Romênia, pronta para ser usada
contra qualquer ameaça que fosse percebida.
Thomas inclinou-se para mim, perto o bastante para que seu hálito fizesse cócegas na pele
do meu pescoço.
“Estou vendo que ele é um homem de poucas palavras. Talvez seja porque o tamanho da...
arma dele seja tão intimidante.”
“Thomas!”, sussurrei com severidade, horrorizada com sua indiscrição.
Ele apontou para a gigantesca espada que pendia do quadril do rapaz, a diversão gravada
em suas feições. Certo, então. Minhas bochechas ficaram quentes enquanto Thomas fazia tsc,
tsc.
“E você diz que sou eu que tenho a mente enfiada nos bueiros. Que escandaloso da sua
parte, Wadsworth. Em que você estava pensando?”
O guarda enviou um olhar severo para Thomas, e seus olhos se arregalaram por um breve
instante antes que ele voltasse a retesar seu maxilar.
Direcionei meu olhar entre ambos enquanto eles mediam um ao outro, dois lobos alfa
circulando e tentando abocanhar a posição de domínio em uma nova alcateia.
Por fim, o guarda inclinou levemente a cabeça. Sua voz era grave e estrondosa como um
motor movido a vapor. “Por favor, voltem aos seus quartos, Alţetă."
Thomas ficou imóvel. Essa era uma palavra com a qual eu não estava familiarizada, visto
que eu havia apenas recentemente começado a estudar romeno, então eu não fazia ideia de
como o guarda o havia chamado. Talvez fosse algo tão simples quanto “senhor” ou “seu tolo
arrogante”.
Qualquer que fosse o insulto, meu amigo não permaneceu paralisado de surpresa por
muito tempo. Ele cruzou os braços enquanto o guarda avançava. “Eu acho que nós vamos
ficar aqui e inspecionar o corpo. Somos muito bons nisso de arrancar segredos dos mortos.
Quer ver?”
O olhar do guarda voltou-se frouxamente para mim, sem dúvida pensando que uma moça
em um adorável vestido seria o completo oposto de útil. Pelo menos em termos de ciência ou
investigação amadora.
“Isso não é necessário. Vocês podem ir embora.”
Thomas se endireitou por completo, exibindo sua altura impressionante, e encarou o
rapaz. Ele também não tinha deixado de notar a intenção por trás da análise do guarda. Nada
de bom jamais saía de sua boca quando ele assumia essa postura. Arrisquei-me à indecência e
peguei em sua mão. O guarda curvou o lábio, mas não me importei.
Não estávamos mais em Londres, cercados de pessoas que poderiam nos ajudar a sair de
situações problemáticas caso Thomas irritasse a pessoa errada ao usar seu charme
costumeiro. Acabar em algum calabouço empoeirado da Romênia não estava nos meus
planos para esta vida. Eu havia visto o interior frio e sombrio de Bedlam, um horrível hospício
em Londres cujo nome se tornara sinônimo do caos, e eu podia imaginar muito bem o que
poderíamos encontrar aqui. Eu queria estudar cadáveres, e não diferentes espécies de ratos
em alguma cela subterrânea e esquecida. Nem aranhas. Um filete de medo deslizou pela
minha coluna só de pensar nisso. Eu preferiria enfrentar minhas assombrações a ficar presa
com aranhas em algum lugar pequeno e escuro.
“Vamos, Cresswell.”
Os rapazes continuaram encarando um ao outro por um segundo, uma discussão
silenciosa ocorrendo em suas posturas rígidas. Eu queria revirar os olhos diante das atitudes
ridículas de ambos. Eu nunca tinha entendido por que os homens precisavam cavar pequenos
lotes de terra e erigir castelos para regerem sobre eles. Toda essa postura de dominação em
relação a cada centímetro de espaço deve ser uma tarefa exaustiva.
Por fim, Thomas cedeu. “Muito bem.” Ele apertou os olhos para mirar o guarda. “Qual é o
seu nome?”
O guarda abriu o lampejo de um sorriso cruel. “Dăneşti.”
“Ah, Dăneşti. Isso explica as coisas, não?”
Thomas girou nos calcanhares e desapareceu para dentro de sua própria cabine,
deixando-me sozinha para pensar não somente no corpo que estava do lado de fora da minha
porta, como também na estranha aura que nos havia envolvido desde que entráramos na
Romênia. Quem era o jovem guarda ameaçador e por que o nome dele evocou tamanha
irritação em Thomas? Mais dois guardas reais flanquearam Dăneşti, que parecia estar no
comando, enquanto ele ladrava ordens em romeno e bracejava em direção ao corpo com
movimentos precisos.
Tomei isso como um sinal para ir embora dali. Fechei a porta da minha cabine e me
detive. A sra. Harvey estava deitada, seu peito subia e descia em um ritmo constante que
indicava sono profundo. Mas não fora a posição dela que me alarmara. Havia um pedaço de
pergaminho amassado no meu assento. Eu poderia ver coisas fantasmagóricas de vez em
quando, mas eu tinha certeza de que não havia nenhum pergaminho aqui antes de
descobrirmos o corpo do lado de fora da minha porta.
Calafrios tomaram a liberdade de rastejar pela minha pele. Olhei de relance ao redor da
cabine, mas não havia ninguém ali além da minha acompanhante adormecida. Recusando-
me a permitir que o medo me sobrepujasse, marchei até onde o papel estava e o alisei até que
abrisse por inteiro. Nele estava a imagem de um dragão, cuja cauda se enrolava em seu
maciço pescoço. Uma cruz formava a curva de sua espinha. Eu quase a confundi com
escamas.
Talvez Thomas houvesse feito esse desenho, mas eu teria notado enquanto ele o estivesse
fazendo, não?
Desabei no assento, tentando decifrar esse quebra-cabeça, desejando voltar ao tempo em
que tudo que me preocupava era o incessante tac-tac-tac de Thomas. Ao que parecia, eu não
podia ter certeza de nada. Do lado de fora da minha cabine, ouvi o cadáver sendo arrastado
pelo corredor abaixo. Eu tentava não pensar em como os guardas estariam destruindo
quaisquer pistas que pudessem estar ali enquanto os sons de seus sapatos deslizavam sobre o
tapete, dispersando-se até sumirem.
Se um outro alguém que não fosse Thomas tivesse criado a imagem do dragão, como ele
havia entrado de fininho na minha cabine e desaparecido sem que eu ou Thomas o
houvéssemos notado era outro mistério.
Um mistério que me dava calafrios até o âmago.
5. AULAS SOBRE OS STRIGOI
Cercanias de Braşov, Transilvânia, Romênia
1º de dezembro de 1888
Clarence — com frequência chamada de Growler, algo como “rosnadora”, por causa
de todo o barulho que fazia — era tão confortável quanto qualquer carruagem
poderia ser enquanto se movia aos solavancos por horas sobre um terreno irregular,
subindo pelas montanhas e pelas colinas escarpadas que davam para Bucareste.
Por pleno tédio, eu me encontrava hipnotizada pelo movimento dos cordões de franjas
douradas que prendiam as cortinas de cor púrpura. Havia dragões dourados bordados no
tecido, com seus corpos sinuosos e elegantes. A sra. Harvey, que estava milagrosamente
acordada pela última meia hora mais ou menos, resmungou quando passamos por um declive
particularmente grande na estrada e puxou sua coberta de volta para cima.
Quando ela retirou um frasco de seu manto com forro de pele e sorveu um gole e tanto
dele, minhas sobrancelhas praticamente se juntaram às raízes dos cabelos de tanto que as
ergui. O líquido transparente pingou na sra. Harvey, preenchendo o pequeno espaço com um
cheiro acre que só podia ser de algo alcoólico e forte. Suas bochechas assumiram um tom
vibrante de vermelho enquanto ela limpava o que havia espirrado, e depois ela ofereceu o
frasco entalhado para mim. Balancei a cabeça em negativa, incapaz de impedir que meus
lábios se contorcessem para cima. Eu gostava imensamente dessa mulher.
“Tônico para viagens. Para os males causados pelo movimento do trem", disse ela. “Ajuda
quando se tem uma constituição frágil. E quando o clima está miserável."
Thomas bufou, mas notei quando ele verificou se o tijolo colocado para aquecer os pés
dela ainda emanava calor. A neve caía com mais intensidade conforme subíamos mais alto
nas montanhas, e nossa carruagem estava um tanto gélida.
“A sra. Harvey também faz uso de seu tônico para viagens antes de se retirar para o quarto.
Algumas noites, depois de voltar do laboratório do dr. Wadsworth, encontro biscoitos
fresquinhos no vestíbulo," disse ele. “Com pouca recordação por parte dela sobre a maneira
como eles foram feitos.”
“Oh, calado”, disse ela, não com grosseria. “Este tônico me foi receitado para a viagem.
Não saia por aí espalhando meias verdades, isso é impróprio. Eu sempre me lembro de ter
feito as minhas fornadas e depois só dou uma beliscadinha nelas. E eu faço aqueles biscoitos
porque alguém tem um amor e tanto por doces. Não permita que ele negue isso, srta.
Wadsworth.”
Eu ri, enquanto a simpática idosa tomava outro gole de seu “tônico para viagens” e se
ajeitava embaixo de suas cobertas de lã, as pálpebras já caindo de sono. Estava explicada sua
habilidade inspiradora de dormir durante a maior parte dessa jornada. Ela se daria muito bem
com a minha tia Amélia. Ela também gostava bastante de tomar uns golinhos relaxantes
antes de deitar.
Thomas esticou as pernas, avançando um pouco os limites do meu assento, embora, pelo
menos dessa vez, ele parecesse não se dar conta de sua transgressão. Ficou quieto durante a
maior parte da viagem, o que não era típico dele. Viagens não lhe apeteciam, e essa parte de
nosso trajeto não o ajudava nem um pouco a se sentir melhor. Talvez eu precisasse dar a ele
um pouco do tônico da sra. Harvey também, o que poderia oferecer a ambos, um pouco de
paz antes de chegarmos à academia.
Eu o estudei enquanto ele estava preocupado com outra coisa. Seus olhos estavam
vidrados e distantes... Ele estava ali comigo, ainda que sua mente não estivesse nem um
pouco perto de mim. Estava sendo particularmente difícil, para mim, não pensar na vítima do
trem. Ou no estranho desenho do dragão. Eu queria falar com Thomas a respeito disso, mas
não na frente de nossa acompanhante. A última coisa de que a pobre sra. Harvey precisava
era ser exposta a mais alguma situação assustadora. Agora há pouco, quando havíamos
parado para dar água a nossos cavalos e para fazer um lanche rápido, ela mal comeu, e se
encolhia ligeiramente a cada ruído que vinha das cozinhas atarefadas da estalagem.
Thomas fitava o bosque e a neve que caía lá fora. Eu queria contemplar as imensas
árvores, mas estava receosa com as imagens que minha mente poderia conjurar. Animais se
movendo a passos largos pelo matagal, cabeças decapitadas e presas em estacas. Ou outros
ardis e ilusões horrendos.
“Não está se sentindo bem?”
Ele voltou sua atenção para mim.
“Esse é seu jeito de dizer que não estou com a melhor das aparências?”
Sem querer, baixei o olhar para sua casaca, cujo tom escuro, o mesmo de seu colete,
destacava bem suas feições, embora eu tivesse a sensação de que ele estava bastante ciente
disso. A forma como seu olhar demorou-se contemplando meus lábios confirmou o
pensamento.
“Sua mente parece não estar aqui, é só isso.”
Eu não me dei ao trabalho de ressaltar que a nossa Growler alugada estava congelante e
que, se ele não estava com febre, deveria vestir seu sobretudo em vez de usá-lo como
cobertor. Deixando essa observação de lado, dei de ombros e passei a ignorá-lo. Ele se mexeu
para a frente, desviando seu foco da sra. Harvey.
“Você não notou?” Ele batucou os dedos ao longo de sua coxa. Eu poderia ter jurado que
ele estava criando alguma saga épica usando código Morse, mas não o interrompi. “Eu não
fumo um cigarro há dias. Acho essa energia nervosa em excesso... um incômodo.”
“Por que não tenta dormir, então?”
“Estou pensando em coisas mais intrigantes que poderíamos fazer para passar o tempo em
vez de dormir, Wadsworth. Braşov ainda está a horas de distância.”
Soltei um suspiro pesado. “Eu juro que se você sugerir algo um pouco menos repetitivo,
eu o beijaria só pelo estímulo intelectual.”
“Eu estava falando de algo completamente diferente. Algo sobre mitos e lendas e outros
tópicos dignos de nota para ajudar em seus estudos de romeno. Foi você que presumiu que eu
estivesse falando de beijos.” Ele se recostou com um largo sorriso de satisfação no rosto, e
recomeçou sua inspeção da floresta enquanto passávamos devagar por ela. “Isso me leva a
ponderar sobre a frequência com que você tem pensado nisso.”
“Você descobriu meu segredo. Eu penso nisso constantemente.” Eu não abri sequer um
leve sorriso, gostando da confusão que transparecia nas feições dele enquanto tentava
discernir em silêncio se eu estava sendo sincera. “Você deveria dizer algo digno de nota.” Ele
piscou como se eu tivesse falado em um idioma que ele não conseguisse identificar. “Difícil
de acreditar, eu sei,”
“Eu, nobre espécime que sou, ia lhe contar sobre os strigoi. Mas eu gosto mais de
desencavar seus segredos. Vamos ouvir mais sobre os seus pensamentos.”
Ele se permitiu analisar por completo a minha pessoa, parecendo arrancar mil detalhes
com isso. Um sorriso lentamente curvou seus lábios.
“A julgar pela forma como você se empertigou e pela leve inalada de ar, eu diria que você
está pelo menos considerando me beijar neste momento. Muito atrevido da sua parte,
Wadsworth. O que sua tia devota diria disso?”
Mantive a atenção travada em seu rosto, evitando o desejo de olhar de relance para sua
boca tagarela.
“Conte-me mais sobre os strigoi. O que são eles?”
“Strigoi, como em ‘dói’, não ‘boi’”, disse Thomas, em seu romeno perfeito, “são mortos-
vivos que assumem a forma daqueles em quem você confia. Aqueles que você ficaria
muitíssimo feliz em convidar à sua casa. Então eles atacam. Geralmente é na forma de um
parente que acabou de falecer. É difícil para nós nos afastarmos daqueles que amamos”, ele
acrescentou baixinho, como se soubesse quão fundo aquelas palavras poderiam me cortar.
Eu tentei, sem sucesso, não me lembrar da forma como os membros de minha mãe
haviam se contorcido quando a eletricidade serpeou por seu corpo. Será que eu a teria
acolhido de bom grado, vinda dos Domínios da Morte, por mais assustada que eu estivesse? A
resposta me perturbava. Eu não acreditava que houvesse qualquer limite incapaz de ser
cruzado por alguém ao se tratar de seus entes queridos. A moral se desfaz perante a dor no
coração. Algumas fissuras dentro de nós permanecem para sempre irreparáveis.
“Deve haver alguma explicação para isso”, falei. “Eu duvido muito que Vlad Drácula tenha
se erguido de seu túmulo. Mortos-vivos não passam de histórias góticas contadas para
assustar e entreter.”
Thomas fixou seu olhar no meu. Nós dois sabíamos que as histórias e a realidade às vezes
colidiam, e os efeitos eram devastadores.
“Eu concordo com você. Infelizmente, alguns aldeões não pensam assim. Quando um
strigoi é avistado, a família inteira, ou qualquer um que tenha sido afetado, viaja até o local do
túmulo do ofensor para escavá-lo e retirar o cadáver de lá, arrancando o coração em
apodrecimento e queimando-o ali mesmo. Ah...”, disse ele ainda, inclinando-se para a frente,
“eu ia quase esquecendo. Assim que eles terminam de queimar o ‘monstro’ morto-vivo, eles
consomem suas cinzas. É a única forma de se certificar de que o strigoi não voltará nem
habitará um outro hospedeiro.”
“Isso me parece um pouco... exagerado”, falei, torcendo o nariz.
Um largo sorriso se abriu lentamente no rosto de Thomas. “Os romenos nunca fazem
nada sem convicção, sem apostar seu coração inteiro nisso, Wadsworth. Seja ir para a guerra
ou lutar por amor.”
Pisquei diante da sinceridade contida em seu tom de voz. Antes que eu pudesse fazer
algum comentário, o condutor assoviou para os cavalos e puxou as rédeas, fazendo com que a
carruagem parasse. Eu me endireitei no assento, o coração martelando enquanto
pensamentos sobre bandos de ladrões e assassinos andarilhos assolavam a minha mente.
“O que está acontecendo? Por que paramos?”
“Eu posso ter esquecido de mencionar...”, Thomas fez uma pausa e calmamente vestiu o
sobretudo que ele vinha usando como coberta sobressalente, antes de ajustar o tijolo
aquecido sob os meus pés, “que vamos mudar para uma carruagem mais apropriada.”
“O que você...?”
Cavalos relinchando e sinos badalando interromperam a minha pergunta. Thomas espiou
pela janela comigo, nossas respirações criando espirais opacas. Ele limpou a janela com a
manga do sobretudo e observou a minha reação com um hesitante sorriso no rosto.
“Surpresa, Audrey Rose. Ou, ao menos, eu espero que seja uma agradável surpresa. Eu não
sabia ao certo se...”
Um magnífico trenó puxado por cavalos deslizou e parou ao nosso lado, com seus
vermelhos apagados, tons de ocre e pálidos azuis em uma homenagem aos ovos romenos
pintados. Dois grandes cavalos puro-sangue brancos cheiravam o ar, baforando e formando
pequenas nuvens na frente deles enquanto pisavam na neve. Eles usavam coroas de plumas
brancas de avestruz, apenas levemente murchas devido ao clima desagradável.
"Você... você fez isso?”
Thomas olhou de relance para mim e então para o trenó, mordendo o lábio.
“Eu achei que você fosse gostar.”
Ergui uma sobrancelha. Gostar disso? Era uma cena saída de um conto de fadas. Eu estava
completamente encantada.
“Eu adorei!”
Sem pensar duas vezes, destranquei a porta e aceitei a mão que o condutor estirava em
minha direção, deslizando pelo metal liso do degrau antes de me endireitar. As rajadas de
vento vinham com ferocidade, mas eu estava tão fascinada que mal pude notá-las. Segurei
rapidamente o meu chapéu e mirei, maravilhada, a vista espetacular que eu tinha diante de
mim. O condutor do trenó sorriu enquanto eu me afastava da lateral protetora da Growler e
penetrava totalmente na tempestade.
Bem, pelo menos achei que ele havia sorrido. Eu não tinha como dizer com certeza, já que
a maior parte de seu rosto corado e de seu corpo estava coberta para protegê-lo das
intempéries. Ele acenou quando Thomas veio se postar ao meu lado, inspecionando tanto o
trenó quanto o condutor daquele jeito calculado dele.
“Parece-me um meio de transporte bem razoável. Em especial se considerarmos que essa
tempestade aparentemente não cederá tão cedo. Nós devemos chegar a nosso destino em um
tempo recorde. E só sua expressão já fez com que tudo valesse a pena.” Eu me virei para
Thomas, com os olhos marejados de gratidão, e observei o pânico tomar conta dele enquanto
eu sorria de maneira desembaraçada. Ele enfiou a cabeça de volta na carruagem e bateu
palmas. “Sra. Harvey. Está na hora de acordar. Permita-me ajudá-la a descer.”
Uma brisa gélida escolheu aquele momento para abrir seu caminho, como que à faca, pelo
bosque, fazendo com que os galhos das árvores assoviassem. Enterrei o rosto na pele que
revestia meu manto invernal. Estávamos na parte mais densa da floresta, rodeados pelos
picos beligerantes das montanhas. Embora ainda houvesse algumas poucas horas de luz do
dia pela frente, a escuridão tecia seu caminho ao nosso redor. Essa elevação se mostrava tão
temperamental quanto Thomas.
Ele fez um movimento na direção dos nossos baús enquanto ajudava nossa acompanhante
a descer da carruagem. Ela fez uma cara feia para a neve e sorveu um gole de seu tônico.
Thomas acompanhou meu olhar viajando de uma árvore que rangia para a próxima.
Havia algo de estranho em relação a este bosque; ele parecia vivo, com o espírito de algo que
não era nem bom nem mau. Mas havia uma aura antiga, aura esta que falava em sussurros
sobre guerras e derramamento de sangue.
Nós estávamos bem no coração do território de Vlad, o Empalador, e era como se a terra
quisesse nos dar um aviso: respeitem este solo ou sofram as consequências.
Provavelmente se tratava de um truque da luz, mas as poucas folhas remanescentes
pareciam ter a cor de feridas secas. Eu me perguntava se a folhagem havia crescido
acostumada com o gosto de sangue depois que dezenas de milhares de vidas haviam sido
perdidas ali. Um pássaro guinchou acima de nós, e eu prendi um fôlego de ar fresco.
“Fique tranquila, Wadsworth. A floresta não tem presas.”
“Obrigada pelo lembrete, Cresswell”, respondi de um jeito doce. “O que eu faria sem
você?”
Ele se virou para mim, com a expressão mais séria que eu já tinha visto tomando seu rosto.
“Você sentiria terrivelmente a minha falta e sabe disso. Assim como eu sentiria a sua falta de
formas que eu não consigo nem imaginar, caso nos separássemos.”
Thomas pegou a sra. Harvey pelo braço, guiando-a para a frente, enquanto o condutor do
trenó nos convidou a sentar. Fiquei ali parada por um momento, com o coração acelerado.
Suas confissões eram feitas de uma forma tão direta que me deixavam aturdida a cada vez
que as recebia.
Permitindo-me um momento para estabilizar meus batimentos cardíacos, fiz carinho no
macio e aveludado focinho do cavalo que estava mais próximo de nós antes de subir no trenó.
Este não era totalmente fechado como nossa carruagem, mas, no pequeno espaço, encontrei
mais cobertas do que jamais havia visto antes. Podíamos não ter um teto coberto, mas não
congelaríamos com todas essas peles de animais à disposição para nos enrolarmos. A sra.
Harvey entrou cambaleando no trenó e se espremeu junto a uma das extremidades, deixando
o restante do assento disponível para nós, enquanto arrumava os aquecedores para os pés.
Meu corpo ficou paralisado quando me dei conta de quão perto um do outro Thomas e eu
teríamos que nos sentar. Eu esperava que o diretor não fosse estar parado do lado de fora da
academia aguardando nossa chegada; não seria nem um pouco decente ser encontrada
aninhando-me ao lado de Thomas, mesmo com uma acompanhante. Como se esse mesmo
pensamento tivesse percorrido a mente maculada de Thomas, ele mostrou o lampejo de um
sorriso travesso e ergueu a beirada de um grande cobertor forrado com pele, dando tapinhas
no espaço ao lado dele. Trinquei o maxilar.
“O que foi?” ele me perguntou, fingindo inocência, enquanto eu arrumava as peles ao meu
redor, colocando um bom volume delas entre nós e dando uma ênfase dramática na criação
de uma barreira fofinha. Como era previsível, a sra. Harvey já estava pegando no sono. Eu me
perguntava se Thomas teria feito algum tipo de barganha para que ela estivesse presente
apenas em termos físicos. “Estou simplesmente sendo um cavalheiro, Wadsworth. Não há
necessidade de me atravessar com esse seu olhar que mais parece uma lança.”
“Eu achei que, por causa do meu pai, você quisesse se comportar.” Ele levou uma das mãos
ao coração.
“Você me machuca assim. Seu pai não ficaria com raiva se eu a deixasse morrer congelada?
O calor corporal é cientificamente a melhor maneira de ficar aquecido. Na verdade, existem
estudos que sugerem que tirar as roupas totalmente e pressionar pele com pele é o modo
mais certeiro de evitar a hipotermia. Caso você seja vítima disso, usarei todas as armas
necessárias para salvá-la. É o que qualquer cavalheiro decente faria. Parece-me
tremendamente valoroso, se quer saber.”
Minha mente traiçoeira vagou para a imagem de Thomas sem suas vestimentas, e isso
arrancou um largo sorriso de meu companheiro, como se ele compartilhasse dos meus
pensamentos escandalosos. “Talvez eu deva escrever para o meu pai e descobrir o que ele
acha dessa teoria”, sugeri.
Thomas bufou e envolveu seus ombros com o cobertor, parecendo um selvagem rei das
feras saído de algum poema de Homero. Eu me aninhei em uma pele bem grande, inspirando
o cheiro do couro curtido do animal, e tentei não vomitar. Podia não ser a mais aromática das
viagens, mas pelo menos nós chegaríamos à academia antes da meia-noite. Eu havia
aguentado cheiros piores enquanto estudava cadáveres pútridos com meu tio. Um pouco de
pele grosseira dificilmente seria algo árduo demais para lidar por mais algumas horinhas.
Por mais estranho que fosse pensar nisso, eu sentia falta do leve cheiro da decomposição
misturada à formalina da maioria das manhãs. Eu mal podia esperar para chegar à academia e
estar cercada por estudos científicos novamente. Um novo ambiente poderia me curar do que
quer que eu estivesse sofrendo. Pelo menos eu tinha esperanças de que isso fosse acontecer.
Eu não poderia dar continuidade às minhas práticas forenses se eu tivesse medo de cadáveres
reanimados.
Olhei de relance para as peles acinzentadas, e uma constatação fez com que eu franzisse
os lábios e fechasse a cara.
“Não é estranho ter tantas peles de lobo assim?”
Thomas deu de ombros. “Os romenos não gostam muito de lobos grandes.”
Antes que eu pudesse pedir para ele esclarecer a colocação, o condutor carregou os
últimos de nossos baús e acomodou-se no trenó. Ele disse algo apressadamente em romeno e
Thomas respondeu, antes de voltar a se inclinar para mim, sua respiração me causando
arrepios. Estremeci com o estímulo inesperado.
“Próxima parada, Castelo de Bran. E todos os adoráveis canalhas que lá estudam.”
“Nós estamos prestes a estudar lá”, eu o lembrei.
Ele afundou em seu cobertor, falhando miseravelmente na tentativa de esconder seu
sorriso. “Sei disso.”
“Como você sabe tão bem o romeno?”, perguntei. “Eu não sabia que você era fluente em
alguma outra coisa além de sarcasmo.”
“Minha mãe era romena”, disse Thomas. “Ela costumava nos contar todos os tipos de
histórias folclóricas quando éramos mais novos. Aprendemos o idioma desde que nascemos.”
Franzi o cenho. “Por que não mencionou isso antes?”
“Sou cheio de surpresas, Wadsworth.” Thomas puxou seu cobertor para cima da cabeça.
“Espere por uma longa vida desvendando deleites desse tipo. Isso mantém o mistério e a
centelha vivos.”
Com um estalar das rédeas, nós estávamos em movimento, deslizando pela neve enquanto
novos flocos ficavam para trás em alta velocidade. O vento gélido fazia minhas bochechas
arderem, forçando as lágrimas a caírem em filetes brilhantes, mas eu não conseguia deixar de
observar a floresta passando em lampejos através dos meus olhos semicerrados. De vez em
quando eu jurava que alguma coisa nos acompanhava logo ali, no interior dos limites do
bosque, mas estava ficando escuro demais para que eu pudesse ter certeza.
Quando escutei um uivo baixo, foi difícil saber se seria o vento ou uma alcateia faminta
correndo atrás de sua próxima refeição. Talvez o assassino, em carne e osso, e os fantasmas
das vítimas de Vlad Drácula não fossem as únicas coisas a inspirar medo e com as quais eu
teria que me preocupar neste país.
O tempo passava em minutos congelados e céus que escureciam. Viajando, subíamos as
elevações íngremes das montanhas e descíamos para os vales menores. Fizemos uma parada
em Braşov, onde Thomas ajudou a sra. Harvey a conseguir um quarto em uma taverna —
depois de um grande debate sobre a questionável adequabilidade de chegar à academia sem
uma acompanhante — e nos despedimos dela. Em seguida, prosseguimos a escalada, a partir
do vilarejo, em direção ao topo da maior montanha que eu já tinha visto na vida.
Um tempo depois, quando por fim chegamos ao cume, a lua havia se erguido por
completo no céu. Sob o luar, eu conseguia discernir as paredes claras do castelo torreado que
uma vez havia sido o lar de Vlad Țepeș. Uma floresta que era um verdadeiro breu cercava o
castelo, uma fortaleza natural para outra feita pelo homem. Eu me perguntava se fora ali que
Vlad havia adquirido a madeira necessária para as vítimas que ele havia empalado.
Sem me preocupar com o que era apropriado ou não, fui alguns centímetros mais para
perto de Thomas, absorvendo sua calidez por diversos motivos. Eu não tinha pensado nisso
antes, mas Braşov ficava muito perto de nossa academia. Quem quer que houvesse
assassinado aquela primeira vítima havia escolhido um lugar próximo ao castelo de Drácula.
Eu esperava que isso não fosse um sinal de que assassinatos piores estariam por vir.
“Parece que alguém deixou a luz acesa para nós.” Thomas balançou a cabeça em direção
aos lampiões que brilhavam, e que, para mim, poderiam estar proclamando que aqueles eram
os portões do covil de Satã.
“Parece... aconchegante.”
Serpeando em nosso caminho ao longo da trilha estreita que saía do bosque e cruzava o
pequeno gramado, nós fizemos, por fim, uma abençoada parada do lado de fora do castelo.
Feixes de luar chegavam aos pináculos e deslizavam pelo telhado, fazendo com que as
sombras do trenó e dos cavalos adquirissem formas sinistras. Esse castelo era esquisito de um
jeito assustador, e eu nem mesmo havia colocado os pés dentro dele ainda.
Por um momento, eu ansiava por me esconder sob as peles de animais e viajar de volta
para a fortificada e colorida cidade cujas luzes piscavam como vaga-lumes no vale abaixo de
nós.
Talvez viajar de volta para a Inglaterra com a sra. Harvey não fosse uma coisa tão horrível
assim. Eu poderia encontrar minha prima no interior. Passar um tempo juntas, conversando
e costurando itens para nossos enxovais, poderia ser agradável. Liza transformava até mesmo
as tarefas mais mundanas em uma grande aventura romântica, e eu sentia muita falta dela.
Uma pontada de saudade de casa me atingiu por dentro, e eu me esforcei para não me
dobrar ao meio. Isso foi um erro. Eu não estava pronta para ser jogada nessa academia
construída para rapazes. Corpos cobrindo mesas e anfiteatros cirúrgicos. Tudo isso era um
lembrete do caso que eu não conseguia superar. Um caso que havia destruído meu coração.
“Você deixará todos eles deslumbrados, Wadsworth.” Thomas apertou a minha mão com
gentileza, e então a soltou. “Eu mal posso esperar para ver você ser mais brilhante do que
todos. Inclusive mais brilhante do que eu mesmo. Embora você deva ser gentil comigo. Finja
que sou maravilhoso.”
Coloquei meu nervosismo de lado e sorri. “Uma tarefa monumental, mas vou tentar pegar
leve com você, Cresswell.”
Eu saí do trenó com uma força renovada e segui meu caminho pelos largos degraus de
pedra, enquanto Thomas pagava o condutor e solicitava que nossos baús fossem trazidos para
cima. Esperei que ele chegasse até mim, segurando minhas saias acima da neve que se
acumulava, não querendo cruzar aquele lúgubre limiar sozinha. Nós estávamos aqui.
Enfrentaríamos meus demônios juntos.
Uma gigantesca porta de carvalho era flanqueada por dois lampiões, com uma imensa
aldrava disposta ao centro. Era como se os corpos de duas serpentes no formato de um C se
tornassem um rosto taciturno.
Thomas abriu um sorriso suave ao olhar para a aldrava. “Acolhedor, não?”
“Esta é uma das coisas mais medonhas que eu já vi em toda a minha vida.”
Enquanto eu erguia a coisa temerosa, a porta se abriu com um rangido, revelando um
homem alto e magro cujos cabelos grisalhos caíam como uma cortina mais ou menos na
altura de seu colarinho, e que exibia uma carranca encovada. O fogo crepitava atrás dele,
colocando tons de dourado ao redor do rosto esguio... A pele escura reluzia com uma fina
camada de suor que ele não se dera ao trabalho de limpar.
Eu não me atrevi a adivinhar o que ele estivera fazendo.
“As portas se trancarão em dois minutos”, disse ele, com um carregado sotaque romeno.
Seu lábio superior curvou-se, como se ele soubesse que eu estava lutando contra a premência
sussurrante de dar um passo para trás. Eu poderia ter jurado que seus dentes incisivos eram
afiados o bastante para penetrar na pele. “Sugiro que vocês entrem logo e fechem as bocas
antes que algo desagradável entre voando. Nós temos um pequeno problema com
morcegos.”’
6. AGRADÁVEL COMO UM CADÁVER APODRECIDO
Institutului Național Criminalistică şi Medicină Legală
Academia de Medicina e Ciências Forenses, Castelo de Bran
1º de dezembro de 1888
echei a boca com um estalo, mais por causa do choque diante do acolhimento
odioso do que para atender à ordem recebida.
Que homem terrivelmente rude! Ele inspecionou Thomas com um sorriso
condescendente no rosto. Afastei minha atenção dele, temendo que eu fosse me transformar
em pedra se o encarasse demais. Era bem provável que ele descendesse dos míticos Górgones.
Ele certamente era tão charmoso quanto a Medusa — e, eu me dei conta, era exatamente ela
que a aldrava da porta me levara a evocar.
Cruzamos a entrada e esperamos em silêncio enquanto o homem andou até uma criada e
começou a lhe dar instruções em romeno. Meu amigo alternava o peso de seu corpo entre os
pés, mas continuava calado, o que era tanto um pequeno milagre quanto uma bênção.
Olhei de relance ao meu redor. Estávamos em uma câmara de recepção semicircular,
como um vestíbulo, onde vários corredores escurecidos estendiam-se tanto para a nossa
direita quanto para a nossa esquerda. Logo em frente, uma escadaria simples dividia-se em
duas, desembocando nos níveis superior e inferior. Uma imensa lareira projetava-se da
escada, mas até mesmo a atmosfera convidativa da madeira crepitante não conseguia me
impedir de ficar arrepiada. O castelo parecia resfriar-se em nossa presença. Eu achei que
houvesse sentido uma rajada de vento ártico entrando pelas vigas do teto. A escuridão reinava
nas áreas em que a lareira não alcançava, pesada e densa como um pesadelo do qual seria
impossível acordar.
Eu me perguntava onde eles mantinham os corpos que iríamos estudar.
O homem ergueu a cabeça e seu olhar encontrou o meu, como se ele tivesse ouvido meus
pensamentos novamente e desejasse zombar de mim. Eu esperava que a trepidação não fosse
transparecer nas rachaduras da minha armadura maculada. Engoli em seco, soltando o ar no
instante em que ele desviou o olhar.
“Eu tenho a mais estranha sensação em relação a ele”, sussurrei.
Thomas permitiu que seu foco vagasse para o homem e para a criada, que concordava
com o que quer que ele estivesse dizendo.
“Esta sala é igualmente encantadora. Os candeeiros são todos dragões. Veja aqueles dentes
cuspindo chamas. Aposto que o próprio Vlad os encomendou.”
Tochas estavam acesas e espaçadas uniformemente por todo o vestíbulo. Vigas de madeira
escura decoravam as bordas do teto e das portas, lembrando gengivas enegrecidas. Eu não
conseguia evitar o sentimento de que este castelo gostava de devorar sangue fresco tanto
quanto seu antigo ocupante gostava de derramá-lo. Era um cenário péssimo para qualquer
academia, ainda mais para um lugar voltado ao estudo dos mortos.
Os odores de limão e antisséptico sobrepujaram os de pedra molhada e parafina. Materiais
de limpeza para dois propósitos vastamente diferentes. Eu notei que o chão no vestíbulo
estava molhado por causa da entrada de outros alunos que, eu presumia, houvessem chegado
da tempestade lá fora.
Asas bateram próximo aos tetos cavernosos, atraindo minha atenção para cima. Havia
uma janela arqueada disposta bem no alto na parede, e, de onde eu estava, era possível notar
as teias de aranha. Eu não avistei nenhum morcego, mas visualizei olhos vermelhos brilhando
em minha direção. Eu esperava evitar ver tais criaturas durante o tempo que passaria aqui. Eu
sempre tivera medo daquelas asas que pareciam feitas de couro e de seus dentes afiados.
A criada fez uma mesura com um leve movimento de cabeça e andou depressa até o
corredor mais afastado, à esquerda. “Nós não estávamos esperando uma esposa. A senhora
pode ficar lá, dois andares acima, à esquerda.”
O homem me dispensou com um leve movimento de seu pulso. A princípio eu havia
pensado que ele fosse velho por causa de seus cabelos. Agora eu podia ver que seu rosto quase
não tinha rugas e era bem mais jovem do que eu havia pensado. Provavelmente tinha a idade
do meu pai, não passando dos quarenta anos.
“Os alunos de estudos forenses ficam na ala leste. Ou, eu deveria dizer, os alunos que
estão tentando conseguir um lugar em nosso programa forense. Venham”, ele acenou para
Thomas, “eu mesmo estou me dirigindo até lá. Vou lhe mostrar seus aposentos. Você poderá
visitar sua esposa assim que as aulas tiverem terminado.”
Thomas ficou com aquele brilho irritante nos olhos, mas essa batalha não era dele. Dei
um pequeno passo à frente e pigarreei. “Na verdade, nós dois estamos no programa forense. E
eu não sou esposa dele. Senhor.”
O homem nojento parou abruptamente. Ele girou nos calcanhares, devagar, e as solas de
seus sapatos soltaram um guincho bem agudo. Ele estreitou os olhos como se fosse
impossível acreditar que tivesse me ouvido direito. “Perdão?”
“Sou a srta. Audrey Rose Wadsworth. Acredito que a academia tenha recebido uma carta
de recomendação de meu tio, dr. Jonathan Wadsworth, de Londres. Eu venho treinando
como aprendiz dele faz um tempo. Tanto eu quanto o sr. Cresswell estávamos presentes na
análise dos assassinatos de Jack, o Estripador. Nós ajudamos meu tio e a Scotland Yard na
investigação forense. Estou bem certa de que o diretor recebeu a carta. Ele respondeu.”
“É mesmo?”
A forma como ele falou fez parecer que não se tratava de uma pergunta, mas eu fingi não
notar.
“É sim.”
Vi a expressão abandonar o rosto do homem. Uma veia em seu pescoço saltou como se ela
pudesse me estrangular e arrancar minha vida. Embora não houvesse antecedentes de
mulheres estudando medicina ou ciências forenses, ele claramente não era o tipo progressista
que gostaria de ter seu clube dos meninos invadido por mulheres e suas rendas. Mulheres que
obviamente não sabiam que seus devidos lugares eram dentro de casa, e não em um
laboratório médico. Quanto atrevimento presumir que eu estava lá somente porque Thomas
havia me levado! Eu esperava que ele não fosse um professor. Estudar com ele seria uma
tortura perversa que eu gostaria de evitar.
Empinei o queixo, recusando-me a desviar de seu olhar fixo. Ele não me intimidaria. Não
depois do que eu havia passado com Jack, o Estripador nesse último outono.
Ele ergueu uma sobrancelha, avaliando-me. Tive a impressão de que poucas pessoas,
fossem homens ou mulheres, alguma vez já o haviam desafiado. “Ah, pois bem, eu não achei
que você fosse seguir em frente com sua ideia. Seja bem-vinda à academia, srta. Wadsworth.”
Ele tentou sorrir, mas parecia que havia engolido um morcego.
“O senhor mencionou alguma coisa sobre concorrer a um lugar no programa?”, perguntei,
ignorando suas feições amargas. “Estávamos com a impressão de que já havíamos sido
aceitos.”
“Sim. Bem. Que pena. Temos centenas de estudantes que desejam estudar aqui”, disse ele,
erguendo seu próprio queixo com certa arrogância. “Nem todos são admitidos. A cada
período, nós recebemos candidatos em um curso de avaliação que determinará quem
realmente se tornará aluno daqui.”
Thomas recuou um passo. “Nossos lugares não estão garantidos?”
“De modo algum,” O homem abriu um sorriso cheio. A visão era verdadeiramente terrível.
“Vocês têm quatro semanas para provar seu valor. Ao final deste período experimental,
decidiremos quem será plenamente admitido como aluno.”
Senti um nó na barriga. “Se todos os alunos passarem no curso de avaliação, todos serão
aceitos?”
“Há nove de vocês desta vez. Somente dois chegarão até o fim. Pois bem. Você pode me
acompanhar, srta. Wadsworth. Seus aposentos ficam no terceiro andar, na torre da ala leste.
Sozinha. Bem, não totalmente. Nós acomodamos cadáveres sobressalentes naquele andar.
Eles não devem incomodá-la... muito.”
Apesar de nossas novas circunstâncias, eu consegui abrir um sorrisinho. Os mortos eram
como livros que tanto eu quanto meu tio gostávamos de ler. Eu não tinha medo de passar um
tempo sozinha com cadáveres, examinando-os detalhadamente em busca de pistas. Bem...
não até recentemente. Meu sorriso se desvaneceu, mas eu mantive o tremor bem trancado
dentro de mim. Eu tinha esperança de conseguir controlar minhas emoções, e estar tão perto
dos corpos poderia muito bem ser a minha cura.
“Eles podem ser mais agradáveis do que muita gente.”
Thomas fez um gesto obsceno por trás das costas do homem, e eu quase me engasguei
com uma risada repentina quando ele girou, olhando feio.
“Como disse, sr. Cresswell?”
“Se insiste em saber, eu diria que você é um...”
Balancei de leve a cabeça, na esperança de conseguir transmitir a Thomas a mensagem de
que ele devia parar de falar. A última coisa de que nós precisávamos era fazer deste homem
um inimigo ainda maior.
“Eu peço desculpas, senhor. Eu perguntei...”
“Dirija-se a mim como diretor Moldoveanu, ou você será enviado de volta a qualquer que
seja o esgoto de nobres de onde vocês dois vieram. Eu duvido que algum de vocês dois vá
conseguir chegar até o fim deste curso. Nós temos pupilos que estudam durante meses e
ainda assim não são aceitos. Digam-me... Se vocês são tão bons no que fazem, onde está Jack,
o Estripador, hum? Por que vocês não estão em Londres, caçando-o? Será que é porque vocês
têm medo dele, ou vocês simplesmente saíram correndo quando tudo ficou difícil demais?” O
diretor aguardou um segundo, mas eu duvidava que ele realmente esperasse uma resposta de
algum de nós. Ele balançou a cabeça, com uma expressão ainda mais incomodada do que
antes. “Seu tio é um homem sábio. Eu acho altamente suspeito que ele não tenha resolvido
esse crime. O dr. Jonathan Wadsworth desistiu do caso?”
Uma lasca de pânico dilacerou minhas entranhas, perfurando cada órgão de meu corpo
em uma tentativa de fugir, quando me deparei com o olhar alarmado de Thomas. Nunca
havíamos contado a meu tio sobre a verdadeira identidade de Jack, o Estripador, embora eu
soubesse que ele tinha boas suspeitas.
Thomas cerrou os punhos nas laterais de seu corpo, mas manteve a boca encrenqueira
fechada. Ele entendeu que eu seria punida pela insubordinação, a dele ou a minha própria.
Sob circunstâncias diferentes, eu poderia ter ficado impressionada com isso. Essa era a
primeira vez, desde que eu conseguia me lembrar, que Thomas se conteve.
“Eu não achei que vocês teriam uma resposta. Pois bem. Sigam-me. Seus baús estarão
esperando por vocês em seus aposentos. A ceia já foi servida. Vocês tomarão o café da manhã
imediatamente ao nascer do sol, ou perderão essa refeição também.” O diretor Moldoveanu
começou a caminhar em direção ao vasto corredor da ala leste, e depois parou um pouco.
Sem se virar, ele disse: “Sejam bem-vindos ao Institutului National de Criminalisticã si
Medicina Legalã. Por ora”.
Fiquei imóvel por alguns segundos, o coração martelando o meu peito. Era ridículo que
esse homem odioso fosse nosso diretor. Os passos dele ecoavam na sala cavernosa tal qual
gongos da morte marcando a hora do terror. Inspirando fundo, Thomas voltou seu olhar para
o meu. Seriam quatro longuíssimas e torturantes semanas.
Depois de deixar Thomas na porta de seus aposentos, subi a escadaria austera localizada ao
fim do longo e largo corredor que o diretor havia apontado, Os degraus eram feitos de
madeira escura e as paredes eram de um branco sombrio, sem nenhuma das tapeçarias
carmesins pelas quais havíamos passado nos corredores inferiores. Sombras estiravam-se
entre candeeiros mal colocados e pulsavam junto com meus movimentos, o que me lembrava
de quando eu caminhara pelos desolados corredores do Bedlam.
Ignorei o completo temor no meu peito, relembrando os pacientes daquele hospício e a
maneira calculista como alguns deles espreitavam por trás das barras enferrujadas. Como este
castelo, aquele edifício me lembrava um organismo vivo. Um edifício que tinha uma
consciência, ainda que lhe faltasse um senso de certo e errado. Eu me perguntava se eu
simplesmente estava precisando de um banho quente e de uma boa noite de sono.
Pedras e madeira não eram como ossos e carne.
Moldoveanu havia dito que meus aposentos ficavam na primeira porta à direita, e depois
saiu marchando sabe Deus para onde. Talvez para ir dormir de cabeça para baixo nas vigas do
teto, junto com o restante de sua espécie. Pode ser que eu tenha murmurado isso, fazendo-o
se virar e me encarar. As coisas estavam começando de um jeito formidável.
Eu me deparei com o pequeno patamar que continha meus aposentos e uma segunda
porta pouco mais de um metro adiante, antes de a escadaria continuar para cima. Não havia
nenhuma tocha acesa no final do corredor, e a escuridão era opressora. Fiquei ali, paralisada,
convencida de que as sombras estavam me observando tão atentamente quanto eu as fitava.
Minha respiração saía em rápidas e pequenas espirais brancas. Presumi que o frio fosse,
em parte, devido ao fato de o castelo estar localizado no alto das montanhas, e em parte por
causa dos corpos que estavam sendo armazenados ali em cima.
Talvez fosse isso o que me chamava na escuridão. Por um momento eu cerrei os olhos, e
as imagens dos cadáveres se erguendo das mesas de exame, os corpos parcialmente
apodrecidos, em estado de putrefação, invadiram os meus sentidos, Independentemente do
fato de ser mulher ou homem, se algum dos meus colegas de classe sequer suspeitasse que eu
tinha medo dos cadáveres, toda a academia riria de mim.
Sem me preocupar muito mais com isso, empurrei a porta e a abri, passando os olhos pelo
lugar e contemplando os arredores. A primeira olhadela sugeriu que o aposento servia como
sala de estar ou de recepção. Como no restante do castelo, as paredes eram brancas e
contornadas com madeira de um marrom bem carregado, quase preto. Fiquei abismada com
quão escuro o lugar parecia, apesar das paredes claras e de uma chama que crepitava na
lareira.
Estantes de livros ocupavam a menor das paredes e, à esquerda, havia a entrada do que eu
presumia ser meu quarto de dormir. Cruzei rapidamente a sala de estar, mobiliada com um
canapé de brocado, e inspecionei o que era de fato o meu quarto, confortável e feito para um
acadêmico diligente. Eu tinha uma mesinha de escritório com uma cadeira do mesmo estilo,
um armário bem pequeno, uma cama de solteiro, um criado-mudo e um baú, tudo feito de
um carvalho bem escuro que provavelmente tinha sido retirado da floresta que nos cercava.
A imagem de corpos sendo perfurados com estacas negras passou rapidamente pelos
meus pensamentos antes que eu pudesse impedir. Esperava que nenhuma daquelas peças de
madeira tivesse sido reutilizada no castelo. Eu me perguntava se a pessoa que havia empalado
aquele homem na cidade havia se servido dos galhos daqui também.
Forcei os meus pensamentos a se afastarem da vítima no trem e daquela do jornal. Não
havia nada que eu pudesse fazer para ajudar. Por mais que eu ansiasse.
Depois de uma olhadela para a segunda porta — sem dúvida o quarto de banho que o
diretor Moldoveanu havia indicado estar anexo aos meus aposentos —, voltei minha atenção
para a sala de estar. Avistei ali uma pequena janela perto das vigas expostas, cuja vista dava
para a vasta cordilheira dos Cárpatos. Daqui, as montanhas eram todas brancas e irregulares,
como se fossem dentes quebrados. Uma parte de mim desejava se arrastar até a janela e
contemplar o mundo invernal que se estendia lá fora, ignorante da minha propensão às
perturbações.
Eu mal podia esperar para pedir água quente para o lavatório e tirar a sujeira da viagem de
mim. Antes, porém, eu precisava encontrar uma forma de falar com Thomas. Eu ainda não
tinha tido oportunidade de mostrar a ele a ilustração de dragão que eu havia encontrado, e
ficaria louca se não discutisse logo esse assunto. Isso sem falar que eu estava especialmente
curiosa quanto à sua estranha reação ao nome de Dăneşti e queria questioná-lo sobre isso.
Toquei no pergaminho que eu tinha em meu bolso, certificando-me de que ele era real, e
não fruto da minha imaginação. Eu ficava aterrorizada com a possibilidade de que esse
pergaminho pudesse estar ligado ao assassinato no trem. Eu não me atrevia a ponderar sobre
qual seria a mensagem que ele pretendia passar ao ser deixado em minha cabine. Ou sobre
quem poderia ter andado furtivamente por lá sem o meu conhecimento.
Fiquei em pé diante da lareira, permitindo que o calor atingisse meus ossos enquanto eu
considerava um plano. Desde que havíamos entrado no castelo, Moldoveanu em momento
algum declarou que tivéssemos um toque de recolher. Ou que não poderíamos ficar andando
pelos corredores. Poderia ser algo bem escandaloso caso fosse descoberto, mas eu poderia
descer de fininho até os aposentos de Thomas em...
O ranger das tábuas do assoalho, em algum lugar ali dentro dos meus aposentos, fez com
que meu coração quase saísse pela boca. Fui dominada por imagens de assassinos andando
sorrateiramente pelos vagões de um trem e deixando bilhetes enigmáticos com figuras de
dragões. Ele estava aqui. Ele havia nos seguido até este castelo e agora ele me empalaria
também. Eu tinha sido uma tola de não confidenciar tudo a Thomas enquanto a sra. Harvey
dormia. Respire, ordenei a mim mesma. Eu precisava de uma arma. Havia um grande
candelabro do outro lado do cômodo, mas estava longe demais para apanhá-lo sem ser vista
por quem quer que pudesse estar à espreita no quarto de dormir ou no quarto de banho.
Em vez de me aproximar demais daqueles aposentos sem uma arma, eu peguei um livro
grande das estantes, preparada para atingir a cabeça de alguém com ele. Nocautear a pessoa,
ou pelo menos deixá-la aturdida, era o melhor que eu poderia fazer. Minha atenção vagou
pelos arredores da sala. Ela estava vazia. Completa e totalmente desprovida de qualquer coisa
viva, como eu já havia observado. Uma análise rápida do quarto de dormir me mostrou o
mesmo resultado. Eu não me dei ao trabalho de olhar o quarto de banho, que parecia
pequeno demais para conter alguma ameaça real, de toda forma. Os rangidos provavelmente
vinham dos habitantes do castelo. Soltei um suspiro e coloquei o livro de volta no lugar. Este
seria realmente um inverno temeroso.
Fiquei grata pela lareira, que aliviava meu nervosismo. Mesmo no espaço confinado, o
calor me fazia sentir como se estivesse em uma ilha nos trópicos, em vez de estar em uma
torre solitária em um gélido castelo, ouvindo coisas não tão aterrorizantes quanto a minha
própria imaginação.
Esfreguei os dedos em pequenos círculos ao redor de minhas têmporas. Lembranças dos
momentos finais de Jack, o Estripador, naquele maldito laboratório quando ele ligava o
interruptor... Eu parei por aí. A dor e a mágoa precisavam me libertar de seu abraço teimoso.
Eu não podia continuar fazendo isso comigo mesma noite após noite. Jack, o Estripador
nunca haveria de voltar. Seus experimentos tinham acabado. Assim como sua vida.
O mesmo era verdade em relação a este castelo. Drácula não mais vivia.
“Tudo é tão malditamente difícil”, falei para mim mesma enquanto caía no canapé. Pelo
menos eu achava que estivesse sozinha, até que alguém refreou a risada, engasgando-se,
detrás de uma porta fechada. Minhas bochechas ficaram vermelhas enquanto eu segurava o
grande candelabro e seguia apressadamente até o quarto de banho parcamente iluminado.
“Olá? Quem está aí? Eu exijo que você se apresente imediatamente.”
"Imi pare rău, domnişoară.” Uma jovem criada levantou-se abruptamente de perto da
banheira, pedindo desculpas enquanto seu pano de limpeza afundava dentro de um balde.
Olhos cinzentos me fitavam. Ela trajava uma blusa de camponesa branca enfiada dentro de
uma saia de retalhos, com um avental bordado. “Não foi minha intenção ouvir o que você
dizia às escondidas. Meu nome é Ileana.”
Seu sotaque era suave e convidativo, uma insinuação de verão sussurrando em uma
desolada noite de inverno. Os cabelos pretos estavam trançados e enrolados sob a touca de
criada, e seu avental estava sujo de cinzas, provavelmente da lareira, cujo fogo ardente ela
estivera atiçando antes que eu entrasse no quarto.
“Por favor, não se preocupe em me chamar de ‘senhorita’. Audrey Rose, ou simplesmente
Audrey, está ótimo.” Olhei de relance para o quarto de banho, que havia sido recentemente
limpo. As chamas líquidas eram refletidas em cada uma das superfícies escuras, fazendo-me
lembrar de sangue derramado sob o luar. Como os fluidos corporais das vítimas do evento
duplo de Jack, o Estripador. Engoli em seco e afastei a imagem de minha mente. O castelo
estava criando o caos na minha memória já mórbida. “Você foi designada para esta torre?”
A cor irrompeu em sua pele enquanto ela assentia, notável até mesmo sob camadas de
cinzas e outras sujeiras.
“Sim, domnişoară... Audrey Rose.”
“Seu inglês é excelente”, eu elogiei, impressionada. “Espero melhorar o meu romeno
enquanto estiver aqui. Onde você aprendeu o inglês?”
Fechei a boca de imediato depois de fazer essa pergunta. Era algo terrivelmente rude de se
comentar, Ileana simplesmente sorriu.
“A família da minha mãe passou o conhecimento do idioma a cada um de seus filhos.”
Isso era uma coisa estranha para uma família pobre de Braşov, mas eu deixei passar. Não
desejava insultar ainda mais uma nova amiga em potencial. Eu me peguei mexendo nos
botões na lateral das minhas luvas e parei.
Ileana ergueu um balde sobre os largos quadris e balançou a cabeça em direção à porta.
“Se eu não terminar de acender as lareiras nos quartos dos rapazes, ficarei tremendamente
encrencada, dom... Audrey Rose.”
“É claro”, falei, torcendo as mãos. Eu não tinha me dado conta de quão solitária eu era
sem Liza, e de como eu queria uma amiga. “Obrigada pela limpeza. Se você deixar alguns
materiais aqui, eu posso ajudar.”
“Ah, não. O diretor Moldoveanu não aprovaria. Eu devo cuidar dos quartos quando
estiverem desocupados. Eu não estava esperando sua chegada por mais algum tempo.” Meu
rosto deve ter exibido desapontamento, enquanto a expressão no rosto dela ficava mais
suave. “Se você quiser, posso trazer o café da manhã aqui para cima, nos seus aposentos. Eu
faço isso para a outra moça que está aqui.”
“Há uma outra moça hospedada aqui durante este inverno?”
Ileana assentiu devagar, e seu sorriso foi se alargando para igualar-se ao meu. “Da,
domnişoară. Ela é a protegida do diretor. Você gostaria de conhecê-la?”
“Isso seria incrível”, falei. “Eu adoraria.”
“Precisa de ajuda para trocar de roupa para dormir?”
Assenti, então Ileana começou a remover meu espartilho. Assim que ela o havia tirado e
eu estava apenas em minha camisola, agradeci a ela.
“Eu continuo a partir daqui.”
Ileana abriu a porta com o quadril e depois me desejou boa noite em romeno. “Noapte
bună.”
Olhei de relance para o quarto de banho, dando-me conta de que ela também havia
enchido a banheira com água quente. O vapor erguia-se em caracóis, convidando-me a
entrar. Mordi o lábio, contemplando o banho quente. Imaginei que seria impróprio demais
entrar nos aposentos de Thomas assim tão tarde da noite, e eu não queria ficar arruinada aos
olhos da sociedade por causa da minha impaciência. O desenho do dragão ainda estaria ali
pela manhã...
Tirei minhas roupas de baixo, sentindo a calidez da água, e também a da amizade, entrar
em meus ossos cansados.
Talvez as próximas semanas não fossem ser tão horrendas quanto eu havia pensado.
7. LENDAS POPULARES
Camere din turn
Aposentos da torre, Castelo de Bran
2 de dezembro de 1888
“Pelo som, parece que uma pequena horda de elefantes está atacando o salão do refeitório”,
eu falei para Anastasia enquanto nos demorávamos um pouco do lado de fora das portas. Pés
batiam no chão e tampas retiniam, o som de conversas despreocupadas soava como um
zumbido acima do ruído geral.
“Eles certamente agem como se fossem um bando de animais.”
A ansiedade se contorcia enquanto abria caminho pelos corredores das minhas entranhas.
Espiei para dentro das grandes portas de carvalho. Uns poucos rapazes estavam sentados às
mesas, e outros estavam em fila para coletar bandejas de café da manhã ao longo da ampla
parede dos fundos, mas Thomas não estava entre eles. Eu não fazia a mínima ideia de como
tão poucos homens podiam ser capazes de fazer tanto barulho em um espaço tão grande. O
salão do refeitório era suficientemente vasto, com o teto como o de uma catedral, totalmente
branco, e as paredes com as mesmas bordas de madeira escura que compunham o restante do
interior do castelo.
Meus pensamentos voltaram-se para os contos de fadas e lendas folclóricas. Eu entendia
como um castelo feito este poderia ser inspirador para escritores como os Irmãos Grimm. Era
certamente escuro o bastante para evocar uma atmosfera macabra. Eu tentei não pensar em
meu pai e em minha mãe. Em como eles costumavam ler aquelas histórias para mim e para
Nathaniel antes de irmos dormir. Eu precisava escrever logo para o meu pai; eu esperava que
ele estivesse se sentindo melhor. Sua recuperação tinha sido lenta, mas constante.
De repente, dei um pulo para junto da parede, alarmada por estar sonhando acordada, e
chocada porque alguém não apenas havia esbarrado em mim como também deu risada, como
se isso não fosse uma afronta para com uma moça.
Anastasia soltou um suspiro. “Srta. Wadsworth, permita-me apresentar-lhe o professor
Radu. Ele dará aulas sobre o folclor local para preencher o currículo de seu curso de
avaliação.”
“Oh, querida. Eu não a vi aí.”
O professor Radu mexia em um guardanapo e, sem querer, deixou cair um pedaço de pão
de sua bandeja. Eu me curvei para pegá-lo ao mesmo tempo em que ele também o fez, e
nossas cabeças se entrechocaram.
Ele nem mesmo piscou. Seu crânio devia ser feito de granito. Massageei o que viria a se
tornar um galo logo mais, contraindo-me com o latejar.
"Imi pare rău. Eu realmente lhe peço desculpas, srta. Wadsworth. Espero que eu não tenha
derramado meu mingau nesse seu adorável vestido.”
Olhei para baixo de relance, aliviada porque não havia nenhum mingau nas minhas saias.
Com uma das mãos, eu lhe ofereci o pão caído, e, com a outra, sondei mais uma vez, com
cautela, como estava o machucado que se formava sob a linha dos meus cabelos. Eu esperava
que a colisão tivesse incutido mais bom senso em mim, em vez do contrário. Certamente doía
o bastante para fazer com que eu me perguntasse a respeito.
“Por favor, não se incomode, professor”, falei. “A única coisa que está danificada é o seu
pão, eu receio. E talvez sua cabeça, graças à minha.”
“Eu não sei ao certo se estava tudo bem com ela, para começo de conversa”, sussurrou
Anastasia.
“Hummm... O que foi?”, quis saber Radu, cujo foco passou rapidamente do pão para
Anastasia.
“Eu disse que tenho certeza de que ainda está delicioso”, ela mentiu.
Arrancando o pão sujo de meus dedos como uma pessoa apanharia uma uva de uma
videira, ele deu uma mordida nele. Eu esperava que meus lábios não estivessem se curvando
como os de Anastasia; eu não queria revelar a repulsa que revirava meu estômago.
"Langoşi cu brânză” disse ele enquanto mastigava o pão, com as sobrancelhas erguidas,
apreciando-o. “Massa frita com queijo feta. Você deveria experimentar um pedaço. Aqui...”
Antes que eu pudesse recusar educadamente a oferta, ele pressionou um pedaço do pão
nas minhas mãos, esmagando-o ao apertar meus dedos, todo animado. Fiz o melhor que pude
para sorrir, embora minhas luvas tivessem absorvido um pouco de gordura. “Obrigada,
professor. Se nos der licença, nós vamos encontrar os outros estudantes.”
O professor Radu endireitou seus óculos sobre o nariz, deixando uma mancha turva de
gordura em uma das lentes.
“O diretor não lhe contou?” Ele nos olhou com atenção, e depois fez um estalo com a
língua. “Todos estão saindo agora. Alguns irão visitar Braşov, se vocês quiserem se juntar a
eles. Vocês não vão querer descer pela montanha sozinhas, vão? O bosque é cheio de criaturas
que pegam crianças das trilhas e mastigam a carne de seus ossos.” Ele sugou a gordura dos
dedos no que foi uma demonstração dos modos medievais. “Lobos, na maior parte das vezes.
Entre outras coisas.”
"Lobos estão comendo estudantes?”, perguntou-lhe Anastasia, cujo tom indicou que ela
não acreditava nem um pouco nisso. “Não posso acreditar que meu tio nem me avisou!”
“Oh! Pricolici! Esse será o primeiro mito a ser discutido na sala de aula”, disse ele. “Tantos
rumores folclóricos e lendas a serem examinados e discutidos...”
A menção a lobos que agarravam crianças fez cair a temperatura do meu sangue em
alguns graus. Talvez eu tivesse, de fato, visto sinais deles quando estava no trem, e depois
novamente no bosque aqui perto.
“O que é um prico...?”
“Pricolici são os espíritos de assassinos que voltam na forma de enormes lobos mortos-
vivos. Embora alguns também acreditem que eles sejam lobos e que se tornam strigoi quando
mortos. Eu realmente espero que vocês gostem da aula. Agora lembrem-se de permanecer na
trilha e não se aventurem no bosque, não importa o que virem. Muitos, mas muitos perigos
gloriosos existem por lá!”
Ele se afastou, trôpego, cantarolando uma melodia alegre para si mesmo. Por um breve
instante eu me perguntei como seria a sensação de ser assim tão perdido, sonhando
acordado, viajando na ficção. Então eu me lembrei das visões fantásticas que minha mente
havia produzido ao longo das últimas semanas e censurei a mim mesma.
“Por que eles estão ensinando folclore e mitologia quando o curso só tem quatro semanas
de duração?”
“É tudo parte do mistério que vocês têm que desvendar, imagino.” Anastasia ergueu um
dos ombros. “Embora meu tio acredite que a ciência explica a maioria das lendas.”
Uma declaração com a qual eu muito concordava, por mais que eu odiasse concordar com
alguma coisa que Moldoveanu dissesse. Fiquei observando o professor derrubar seu café da
manhã novamente.
“Eu não consigo acreditar que ele comeu aquele pedaço de pão”, declarei. “Tenho certeza
de que havia um inseto morto grudado nele.”
“Ele não parecia se importar com isso”, disse Anastasia. “Talvez ele goste do acréscimo de
proteína.”
Eu me encolhi quando o professor esbarrou em um outro aluno, um jovem corpulento e
de cabelos loiro-escuros, com um maxilar quadrado demais para que fosse considerado
bonito.
"Ai grijă, bătrâne” o gigante sibilou para Radu antes de abrir caminho com o ombro e
entrar no salão do refeitório, derrubando para o lado um aluno menor sem pedir desculpas.
Bruto nojento. Meu romeno era decente o bastante para que eu soubesse que ele havia
dito para o homem olhar por onde andava.
“Aquele espécime encantador é da nobreza romena”, disse Anastasia quando o rapaz loiro
desapareceu pelo salão adentro. “Os amigos dele são um pouco melhores.”
“Eu mal posso esperar para conhecê-los”, falei em um tom seco. Depositei o pedaço de
pão ensopado de gordura em um latão de lixo e limpei a mancha nas minhas luvas. Eu
precisaria pegar um outro par antes de partir. “Por que você acha que os estudantes estão
viajando até o vilarejo?”
“Eu não sei, nem me importo com isso.” Anastasia empinou o nariz com ares de falsa
realeza. “Você não vai me ver saindo com esse tempo coberto de neve. Eu duvido que os
outros irão se aventurar para longe de seus aposentos também. Oh! Eu pretendia perguntar a
Radu se eu poderia assistir às aulas dele.” Ela mordeu o lábio. “Você se importaria se eu a
encontrasse depois? Vai ficar aqui?”
“Se não formos forçados a ir, então não vejo por que eu sairia. Eu preferiria explorar o
castelo. Vi uma sala de taxidermia na qual eu adoraria dar uma olhada.”
“Extraordinar!”, exclamou Anastasia, beijando minhas bochechas. “Vejo você em breve,
então.”
Risadas ruidosas ecoavam de dentro do salão enquanto eu observava Anastasia ir correndo
atrás de nosso professor. Por mais que eu desejasse não fazer isso sozinha, estava na hora de
enfrentar meus medos e me apresentar para os meus colegas de classe. Aos poucos. Por ora eu
mostraria o rosto, e faria as coisas sem pressa a partir disso. Além do mais, não era como se eu
não conhecesse ninguém. Com certeza Thomas apareceria logo, logo.
Com a cabeça erguida, entrei no salão do refeitório. Cinco fileiras de longas mesas
continham alunos curiosos, que foram ficando em silêncio conforme eu fazia meu caminho
até a extremidade oposta do salão. Havia três rapazes acomodados em uma das mesas, sendo
um deles o jovem rude e corpulento do corredor.
Em outra mesa estavam dois rapazes de cabelos castanhos que não se davam ao trabalho
de erguer os olhares, nem de relance, de seus livros. Provavelmente eram os italianos, cuja
pele tinha um intenso bronzeado, como se eles fossem nativos de um lugar próximo ao
oceano. Um deles era o estudante menor em quem o bruto havia esbarrado sem pedir
desculpas.
Um rapaz esguio, a pele de um escuro marrom-amarelado, estava sentado em frente a um
garoto que usava óculos e tinha espessos cachos ruivos. Eles atacavam suas refeições, mas
ergueram os olhos para olhar, embasbacados, para mim.
Minhas bochechas ficaram quentes enquanto o som de minhas saias farfalhando se erguia
acima dos sussurros aqui e ali. Pelo menos eu tinha Thomas. Mesmo se precisássemos
batalhar por nossos lugares na academia, poderíamos lutar juntos. E poder compartilhar os
infortúnios com Anastasia também era algo pelo qual eu esperava ansiosamente.
Um dos meninos à mesa do Grandalhão falava abafando um riso alto, e depois assoviou
como se eu fosse um cachorro qualquer que ele estivesse chamando. De todos os... Eu parei
de andar e voltei um olhar severo e cheio de ódio para ele, cortando com precisão seu sorriso
afetado.
“Alguma coisa engraçada?”, perguntei, notando o silêncio que recaía sobre eles, como
soldados que houvessem sido chamados para a guerra. Quando ele não me respondeu, eu
repeti as palavras no meu melhor romeno, com minha voz soando alta na quietude repentina.
Os lábios do rapaz se contorceram bem levemente enquanto eu o analisava. Seus cabelos
eram de um tom mais escuro que os cabelos de Thomas, e seus olhos ostentavam uma
nuance mais intensa de castanho. Suas feições azeitonadas eram atraentes, de um jeito
normalmente apreciado nos heróis sombrios. Ele era bruto, embora eu presumisse que ele
pertencesse a algum escalão qualquer, com base no que Anastasia havia mencionado.
O Grandalhão, que estava ao lado do rapaz de cabelos escuros, deu uma risada
dissimulada e curvou o lábio superior. Eu tinha a sensação de que essa era sua expressão
normal, graças à genética, e que ela não deveria me deixar ofendida. Que infelicidade para os
pais dele.
Esperei que o rapaz de cabelos escuros se desviasse do meu olhar, mas ele teimosamente
fixou os olhos em mim. Um desafio para medir com que facilidade eu cederia, ou então uma
espécie de flerte, não me importava. Eu não iria tolerar ser incomodada e assediada só por ser
uma mulher.
Todos nós estávamos aqui para aprender. Era ele quem tinha um problema, não eu.
Talvez estivesse na hora de os pais ensinarem seus filhos a se comportar na presença das
moças. Eles não nasciam superiores, por mais que a sociedade falsamente os condicionasse a
pensar como tal. Aqui, nós éramos iguais.
“E então?”
“Estou decidindo, domnişoară.” Ele arrastou preguiçosamente o olhar para baixo, para
cada centímetro de meu corpo, inspecionando-me com atenção, e então tossiu em sua mão,
sem dúvida sussurrando algo impróprio, visto que o Grandalhão caiu na gargalhada.
Um rapaz mais esguio e mais pálido estava sentado do outro lado dele, alternando o olhar
entre o jovem de cabelos escuros e eu, e depois olhando para as mãos, franzindo a boca. Havia
algo na estrutura óssea deles que me levava a pensar que eram parentes. Contudo, as feições
deste último eram muitíssimo diferentes. Ele voltou por um breve instante a atenção ao seu
redor, como se fosse uma mosca pousando em diferentes lugares, e que depois sairia
zumbindo, fora de alcance. Ele me parecia tão familiar...
Fiquei ofegante quando o reconheci. “Você. Eu conheço você.”
Ele estivera no mesmo trem em que Thomas e eu havíamos viajado. Eu tinha certeza
disso. Ele era o passageiro nervoso que eu queria interrogar. Ele se mexeu em seu assento,
encarando os veios da madeira, ignorando-me por completo. Sua pele parecia ficar mais
sombreada diante do meu olhar.
A essa altura, eu quase havia me esquecido daquele irritante rapaz de cabelos escuros, e
por pouco deixei de ver o fogo que incendiava seus olhos, quando reuni minhas saias e me
dirigi a uma mesa só para mim.
8. VILÃO COM ROSTO DE HERÓI
Sală de mese
Salão do refeitório, Castelo de Bran
2 de dezembro de 1888
ocê realmente faz as entradas mais triunfais, Wadsworth. Metade dos rapazes
daquela mesa agora querem se casar com você. Eu terei que trabalhar dobrado nas
minhas habilidades de espadachim para defender sua honra.”
Respirei fundo enquanto Thomas se acomodava no assento à frente do meu, seu prato
contendo um amontoado de delícias de diferentes regiões, provavelmente com o propósito
de agradar aos estudantes de toda a Europa. E doces. A sra. Harvey estava certa quanto ao
gosto de Thomas por sobremesas. Eu havia ficado tão distraída com o rapaz que eu tinha
certeza de ter avistado no trem que não reparei em Thomas perto do bufê.
“Eu não acredito que isso seja exatamente verdade. Acabei de fazer inimigos, foi isso o que
aconteceu.” Roubei um pão de seu prato, depois que ele havia passado uma porção generosa
de creme nele. “De qualquer forma, sinto repulsa por todos os rapazes daquela mesa,
Cresswell. Ainda não há necessidade de trocar seu escalpelo por uma espada de esgrima.”
“Ora, tenha cuidado. Você declarou esses mesmos sentimentos encantadores em relação a
mim. Eu sinto ciúmes com uma certa facilidade. Quero duelar, não destruir a academia nem
queimá-la até só restarem suas fundações. Embora isso talvez fosse melhorar a atitude de
Moldoveanu, para falar a verdade. Promete que vai me visitar na minha cela?”
Eu sorri, apesar do assunto, e analisei o rosto de Thomas. “Você sabe que ninguém
conseguiria me irritar tanto quanto você, Cresswell. Esperemos que eles pensem duas vezes
antes de zombar de mim novamente.”
“Eu tenho certeza de que essa não será a última vez que você vai ser provocada.” Thomas
abriu um largo sorriso enquanto cobria um outro pãozinho com creme. “Os homens gostam
da caçada. Você agora provou que não é facilmente conquistada, o que a torna um desafio
interessante. Por que você acha que há tantas cabeças presas na parede? Exibir os troféus de
nossos feitos é como dizer: ‘Eu sou forte e viril. É só olhar para aquela cabeça de cervo no
escritório. Não apenas eu o cacei, como também preparei a armadilha e o atraí para o meu
covil. Eis aqui um pouco de conhaque, vamos bater nos nossos peitos e atirar em alguma
coisa’.”
“Então você está dizendo que gostaria de me prender em uma armadilha e pendurar
minha cabeça decepada acima da cornija da lareira? Isso é tão romântico! Conte-me mais.”
Alguém pigarreou, interrompendo-nos. “Vocês se importariam se eu me sentasse aqui? Vă
rog?”
Mesmo sentado, Thomas de alguma forma conseguiu enviar um olhar de superioridade
para o rapaz de cabelos escuros que, de maneira rude, havia rido de mim antes — e que agora
estava parado, em pé, ao lado de nossa mesa. Não havia nada de leve na expressão de Thomas
agora.
“Se você prometer que será gentil.” Lentamente, Thomas empurrou sua cadeira para trás,
cujas pernas guincharam no chão em protesto. Ele não havia se movido o bastante para
permitir que o rapaz viesse ficar entre nós dois. Fui lembrada de como ele era alto e tinha as
pernas compridas, e de como isso podia ser usado como mais uma arma em seu arsenal. “Eu
odiaria ver a srta. Wadsworth embaraçá-lo. Novamente.”
A tensão emanava dele em ondas densas, tão sombrias e turbulentas que eu quase fui
puxada por elas. Eu nunca havia visto Thomas mostrar emoções assim tão fortes antes, e
achava que alguma outra coisa poderia estar se passando com ele, além de ter tomado para si
a minha irritação. Talvez Thomas já tivesse encontrado o jovem de cabelos escuros e o
encontro não fora muito positivo.
Não era preciso muito esforço para deduzir que isso não acabaria bem. A última coisa de
que eu ou ele precisávamos era que Thomas fosse expulso por... o que quer que ele estivesse
prestes a fazer. Naquele momento, cada pedacinho dele era um vilão com rosto de herói.
“Em que podemos ajudá-lo, senhor...?” Permiti que a pergunta pairasse no ar.
Como se o Inferno não estivesse se abrindo ao seu redor, o rapaz moveu-se em um ângulo
bem íntimo na minha direção, e reconsiderei quem estava correndo o risco de ser expulso da
academia: poderia muito bem ser Thomas quem me impediria de dar um merecido tapa no
rapaz.
“Eu peço desculpas pelo meu comportamento anterior, domnişoară”, disse ele, com um
sotaque suave e cantado. “Eu também peço perdão por meus companheiros. Andrei”, ele
apontou para o bruto, que assentiu secamente em resposta, “e Wilhelm, meu primo.”
Minha atenção vagou de volta para o rapaz de aparência doentia do trem. A cor de
Wilhelm estava ainda mais escura do que antes. Um tom de pele tão peculiar. Ele parecia ter
borrões de terra avermelhada no rosto. Eu nunca tinha visto uma erupção cutânea tão
horrível assim. Gotinhas de suor marcavam a linha de sua testa.
“Seu primo não parece estar bem”, disse Thomas. “Talvez você devesse ir cuidar dele em
vez de estar aqui falando conosco.”
Observamos enquanto Wilhelm erguia um grande manto preto em volta de seus ombros e
seguia, meio curvado, em direção à porta. Eu precisava falar com ele, descobrir o que ele
poderia saber em relação à vítima do trem.
O rapaz de cabelos escuros entrou em meu campo de visão.
“Permite-mi să mă prezint. Hummm... permita-me que eu me apresente adequadamente.”
Ele me ofereceu um sorriso tímido, que desvaneceu um pouco enquanto eu mantinha
neutra a minha expressão. Se ele achava que podia me cativar ajustando seu charme a um
nível excessivamente alto, ele estava bem enganado. O rapaz empertigou-se, e certa postura
militar recaiu sobre ele tal qual um manto de veludo sendo acomodado em seu devido lugar.
“Meu nome é Nicolae Alexandru Vladimir Aldea. Príncipe da Romênia.”
Thomas soltou uma bufada, mas o jovem príncipe manteve seu olhar travado no meu.
Certifiquei-me de que a surpresa não transparecia em minhas feições, pressupondo que ele
houvesse lançado seu título na esperança de ver a reação que iria obter dos demais rapazes e
mulheres.
Minha suspeita foi confirmada quando seu sorriso ficou hesitante e depois foi
desaparecendo completamente, quanto mais tempo eu permanecia sem reagir. Eu não me
permitiria ser tratada tão mal para depois ficar toda embasbacada. Seu título provavelmente
podia comprar muita coisa, mas não poderia comprar meus afetos.
O salão inteiro ficou em silêncio como se estivéssemos em uma missa, enquanto eles
esperavam que eu me pronunciasse. Ou que fizesse uma reverência. Eu possivelmente estava
quebrando todos os protocolos ao não me levantar de imediato e fazer uma mesura. Abri um
sorriso doce e me inclinei na direção dele.
“Eu até diria que foi um prazer conhecê-lo, sua alteza, mas fui educada de modo a não
proferir inverdades.”
Para não ser totalmente inapropriada, ofereci uma leve inclinação de cabeça e me levantei.
A expressão no rosto do príncipe Nicolae era excepcional. Como se eu tivesse tirado a luva e o
houvesse estapeado na frente de todas essas testemunhas. Eu quase lamentei por ele.
Provavelmente era a primeira vez que alguém o ofendia assim tão cruelmente. O que será que
ele faria com alguém que não aceitasse todas as suas palavras principescas?
“Sr. Cresswell”, assenti na direção de Thomas. “Eu o encontro lá fora.”
O menino de cachos ruivos, que estava sentado ali perto, balançou a cabeça enquanto eu
recolhia minhas saias. Eu não saberia dizer se ele estava impressionado ou com repulsa por
causa da minha audácia. Sem olhar para trás, eu saí do salão. Sons clangorosos de garfos se
chocando contra os pratos, mesclados com a profunda risada de Thomas, acompanharam-me
até o corredor, onde eu me permiti dar uma risadinha. Até mesmo os irmãos italianos haviam
tirado os olhos de seus estudos, olhos tão arregalados que pareciam placas de Petri.
Minha satisfação foi interrompida rapidamente quando notei o diretor Moldoveanu
parado diante da entrada, uma veia pulsando na testa. Ele moveu-se rapidamente na minha
direção, e eu jurava que uma grande fera alada espreitava logo atrás, com suas garras
raspando a pedra. Pisquei. Era apenas a sombra dele, que parecia gigantesca por causa da luz
da tocha.
“Tome cuidado com os inimigos que arranja, srta. Wadsworth. Eu odiaria que mais
tragédias atingissem a sua já fragmentada família. Pelo que entendi, o nome e a linhagem dos
Wadsworth estão quase apagados da existência.”
Encolhi-me alguns centímetros. Meu pai havia publicado um obituário um tanto vago em
relação à morte de meu irmão; ainda assim, o diretor parecia, pelo tom de sua voz, desconfiar
de algo indevido. Ele me inspecionou com atenção, o lábio repuxado no que era ou um
sorriso ou um risinho de escárnio.
“Eu me pergunto quão forte seu pai permaneceria caso algo terrível acontecesse com sua
prole remanescente. O ópio é um hábito desagradável. É bem difícil se recuperar dele por
completo. Mas eu tenho certeza de que você está ciente disso. Você até parece ser inteligente.
Para uma moça. Eu espero ter sido claro.”
“Como foi que você...?”
“É meu dever desenterrar todo pedacinho de informação sobre meus alunos em potencial.
E estou realmente me referindo a cada migalha de informação. Não cometa o erro de
acreditar que seus segredos permanecerão ocultos. Eu descubro os mistérios tanto dos
mortos quanto dos vivos. E eu acredito que a verdade gera um bom lucro quando é
descoberta.”
Uma escorregadia espiral de medo revirou-se nos meus intestinos. Ele estava me
ameaçando, e não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso. Ele ficou me encarando
por mais um tempo, como se pudesse me olhar com desprezo pelo simples fato de eu existir,
e então entrou marchando no salão do refeitório. Despenquei tão logo ele chegou à
extremidade mais afastada do local.
“O café da manhã está encerrado”, ele anunciou. “Vocês podem fazer o que desejarem pelo
restante do dia.”
Corri rapidamente até o meu quarto para pegar o casaco de inverno e um novo par de
luvas, ansiosa para ir para longe deste maldito castelo e seus ocupantes miseráveis.
9. CIDADE DA COROA
Potecă
Trilha em meio ao bosque, Braşov
2 de dezembro de 1888
Príncipe Pomposo talvez não seja seu maior admirador, Wadsworth.” Thomas me
cutucou com o ombro, fracassando terrivelmente em esconder seu prazer por meu
novo inimigo mortal. “Assim que Moldoveanu saiu, ele até mesmo quebrou um
prato na parede e cortou os dedos. Espirrou sangue nos ovos. Muito dramático.”
"Parece que você está com um pouco de ciúmes por não ter pensado em quebrar a louça
primeiro.”
Escorreguei em um paralelepípedo gélido e Thomas me equilibrou, deixando meu braço
pender devagar e ficando a uma distância quase respeitável de mim. A animação estava
presente em cada um de seus movimentos. Ele foi praticamente aos pulinhos até Braşov,
também conhecida como a Cidade da Coroa, de acordo com o seu falatório incessante.
Eu estivera observando enquanto Wilhelm saía correndo às pressas do castelo,
cambaleando um pouco aqui e ali, e me apressara a buscar Thomas. Eu desejava falar com o
rapaz e perguntar o que ele tinha visto no trem, embora ele parecesse determinado a fugir de
mim a todo custo. O fato de estar evitando-me fazia com que ele parecesse ainda mais
culpado.
A pele de Wilhelm parecia um pouco... Eu não sabia ao certo o quê. Parecia que o tom
original havia sido quase que totalmente substituído por placas escuras. Como se a febre
tivesse trazido um profundo rubor à sua pele. Eu poderia ter jurado que ele estava até mesmo
pior do que no salão do refeitório. Tentei pensar em qualquer infecção conhecida que
pudesse causar dois tipos diferentes de erupção cutânea, mas não consegui pensar em
nenhuma. Certamente não se tratava de escarlatina, cujos sintomas eu teria reconhecido em
qualquer lugar.
Nós ficamos longe o bastante atrás de Wilhelm, a ponto de ele não nos notar nem
presumir que estivéssemos nos dirigindo ao vilarejo por motivos próprios e específicos. Eu
queria analisá-lo, ver aonde ele estava indo primeiro. Depois, talvez Thomas e eu
conseguiríamos formular um palpite. Se o atacássemos com perguntas agora, provavelmente
ele mudaria de rumo. Falei para Thomas sobre as minhas suspeitas, e ele concordou que esse
era o melhor plano a seguir.
Mantive minha atenção no chão, investigando as pegadas que Wilhelm deixava para trás
na neve recém-caída e suas passadas regulares e alinhadas. Parecia que ele havia parado de
cambalear, embora houvesse vômito fresco e fumegante um pouco além dos limites da trilha.
Não parei para inspecionar com atenção, e segui adiante o mais rápido que pude. Talvez
Wilhelm estivesse apenas a caminho de ver alguém e conseguir um remédio para seus males.
Ainda assim, era estranho o fato de ele ir até o vilarejo em vez de simplesmente perguntar
sobre um médico no castelo.
Enfiei as mãos nos bolsos e quase escorreguei de novo. Eu havia me esquecido do
pergaminho com toda a comoção no salão do refeitório. Olhei de relance ao meu redor,
certificando-me de que Thomas e eu estávamos sozinhos na trilha, com exceção de Wilhelm,
que estava muito adiante para prestar qualquer atenção em nós. Parei e remexi em meu
bolso, dando-me conta de que o papel não estava mais lá.
“Diga-me que eu não parei com meu hábito impróprio de fumar só para que você
começasse.”
“O quê?” Dei tapinhas nos bolsos das saias e nos bolsos internos do meu casaco de
inverno. Nada. Meu coração socava o meu peito. Se eu não o tivesse mostrado para Anastasia
e Ileana hoje de manhã, eu até poderia ficar preocupada com a possibilidade de simplesmente
ter imaginado o desenho. Revirei os bolsos... que estavam vazios.
“O que você está procurando, Wadsworth?”
“Meu dragão”, falei, tentando me lembrar se eu o havia colocado de volta no bolso antes
de descer até o salão do refeitório. “Devo tê-lo deixado nos meus aposentos.”
Thomas me encarou por um instante, com a mais estranha expressão. “Onde foi que você
encontrou esse dragão? Eu tenho certeza de que todos os tipos de cientistas desejarão falar
com você e ver o espécime. Pequeno o bastante para caber no seu bolso. Uma descoberta e
tanto.”
“Era um desenho que estava na minha cabine, no trem”, falei, soltando um profundo
suspiro. “Eu o encontrei depois que os guardas chegaram para pegar o corpo.”
“Ah, entendi.” Ele se virou de súbito e continuou seguindo em frente em direção ao
vilarejo, deixando-me boquiaberta atrás dele.
Apanhei minhas saias, tomando cuidado para não expor nenhuma área acima de minhas
botas, e fui correndo atrás dele. “O que foi isso?”
Thomas indicou a vegetação e os arbustos espinhosos na beirada da trilha. Acompanhei o
olhar dele e notei o que pareciam ser pegadas frescas de um grande cachorro na neve, perto
da margem da floresta. Essas pegadas pareciam estar seguindo uma trilha formada pelo
vômito de Wilhelm. Eu esperava evitar contrair o que quer que o estivesse afligindo, assim
como trombar com o animal que o seguia. Fiquei observando enquanto o rapaz cambaleava
novamente pelo caminho, quase chegando ao topo da colina. Eu queria sair correndo atrás
dele e oferecer-lhe um braço; ele realmente não parecia nada bem.
Thomas caminhava pela neve, mantendo a atenção em nosso colega de classe.
“Nós não queremos ser pegos aqui mais tarde, quando o sol tiver se posto”, disse Thomas.
“É inverno, e a comida é escassa na floresta. É melhor não dar chance ao azar, arriscando um
encontro com os lobos.”
Para variar, eu estava irritada demais para imaginar a floresta ganhando vida com animais
selvagens. Eu andei mais rápido, totalmente focada em Thomas enquanto esticava a mão na
direção dele. “Você vai fingir que eu não perguntei sobre o dragão?”
Ele parou de caminhar e ergueu o chapéu de sua cabeça, removendo um pouco da neve
que havia caído dos galhos acima de nós antes de colocá-lo de novo.
“Se quer saber, fui eu que o desenhei.”
“Oh.” Meus ombros caíram. Eu deveria ter ficado feliz porque já não havia nada sinistro
em relação ao desenho, aliviada porque um assassino não havia entrado sorrateiramente na
minha cabine, deixando uma pista provocadora por lá. E, ainda assim, eu não conseguia negar
minha decepção. “Por que você simplesmente não me disse isso antes?”
“Porque não era minha intenção que você o visse”, disse ele com um suspiro. “Pareceu-me
um tanto rude soltar simplesmente um: ‘Desculpe-me. Por favor, não me pergunte sobre o
dragão. No momento esse é um assunto muito delicado para mim’.”
“Eu não sabia que você desenhava tão bem.”
Enquanto eu dizia isso, algo cutucava as bordas da minha memória. Thomas curvado
sobre um cadáver no laboratório de meu tio, desenhando imagens notavelmente precisas de
cada autópsia, com as mãos manchadas tanto de nanquim quanto de carvão, que ele não se
dava ao trabalho de limpar.
“Sim, bem. É uma herança de família.”
“O desenho era... adorável”, falei. “Por que um dragão?”
A boca de Thomas se esticou em uma linha desgostosa. Eu não esperava que ele me
respondesse, mas ele inspirou fundo e disse, baixinho: “Minha mãe mandou fazer um quadro
dele. Eu me lembro de ficar encarando-o enquanto ela jazia lá, morrendo”.
Sem proferir mais nenhuma palavra, ele saiu marchando pela neve. Então era isso. Nós
havíamos chegado perto demais de uma cerca emocional que ele erguera havia muito tempo.
Ele nunca falava de sua família, e eu ansiava por conhecer mais detalhes de como ele viera a
ser quem ele era. Eu me recompus e fui correndo atrás dele, notando, com um sobressalto,
que Wilhelm não estava mais em nosso campo de visão. Eu me movia o mais rapidamente
possível, embora uma parte minha agora se preocupasse com a possibilidade de que não
houvesse nada fora do comum em relação a Wilhelm na viagem de trem. De que fosse
simplesmente mais uma fantasia conjurada pela minha maldita imaginação.
Nós nos encontrávamos perto de Braşov, e eu estava bem enjoada de andar em meio ao
gelo e à neve semiderretida. A bainha de minhas saias estava ensopada e dura como os dedos
de um cadáver. Teria sido uma ideia melhor usar a calça justa e o traje de montaria. Na
verdade, ficar dentro do castelo estudando os expositores de anatomia e as câmaras de
taxidermia ainda teria sido a ideia mais inteligente. Não apenas estávamos perdendo nosso
tempo seguindo um rapaz doente, como também nos encontrávamos miseravelmente
gelados e úmidos. Eu já podia me sentir ser envolvida pelas garras da preocupação de meu pai
com a possibilidade de eu contrair uma gripe.
“Ah. Ali está.”
Avistei vislumbres dos edifícios para os quais Thomas apontava, com seu sorriso se
tornando um pouco mais sincero. Nada além de uns lampejos de cor em meio às sempre-
vivas, mas a animação urgia meus pés a se moverem mais rápido. Então, quando começamos
a descer mais uma colina, eu avistei a joia escondida entre as montanhas irregulares.
Nós andávamos pesadamente ao longo do caminho coberto de neve, com nossa atenção
concentrada no vilarejo colorido. As construções ficavam comprimidas, juntas, como se
fossem belas damas esperando, com seus exteriores pintados nas cores de salmão e manteiga,
e no mais pálido azul-oceano. Havia outros edifícios também, feitos de pedra clarinha com
telhados coloridos de terracota.
Uma igreja, com seu pináculo gótico apontando para os céus, era o que havia de mais
magnífico em toda aquela visão. De onde nós estávamos, podíamos ver o telhado de telhas
vermelhas esparramando-se por sobre um gigantesco edifício feito de pedra clara com janelas
de vitral. Meus olhos arderam até que eu conseguisse, por fim, piscar e dissipar tamanho
deslumbramento. No fim das contas, talvez esse passeio não tivesse sido uma completa perda
de tempo.
"Biserica Neagră.” Thomas abriu um grande sorris. “A Igreja Negra. Durante o verão, as
pessoas se reúnem para ouvir a música do órgão que vaza da catedral. Ela também tem mais
de cem tapetes anatolianos. É absolutamente estonteante.”
“Você conhece os fatos mais estranhos.”
“Você está impressionada com isso? Eu nem me dei ao trabalho de ressaltar que ela fora
reformada depois de um grande incêndio, nem que suas paredes queimadas e enegrecidas
eram o motivo pelo qual ela recebera esse nome, Não a queria deixar extasiada demais. Afinal,
nós realmente temos um suspeito para interrogar depois.”
Eu sorri, mas permaneci em silêncio, não querendo partilhar meu medo de que esta saída
fosse uma tolice. Wilhelm provavelmente era apenas mais um passageiro no trem e já estava
doente. A doença explicava suas ações cheias de nervosismo; pode ser que ele estivesse se
sentindo fraco e a ponto de desmaiar, e o estresse de testemunhar um assassinato tivesse se
provado demais para ele.
Caminhamos em silêncio e, por fim, chegamos ao velho vilarejo. Meus pés não estavam
mais entorpecidos, mas parecia que eu vinha pisando em pedacinhos de vidro dentro das
minhas meias. Liza ficaria encantada com a forma como a neve salpicava os telhados, como
açúcar polvilhado e eletrizado pelos raios do sol. Eu teria que escrever para ela essa noite.
Diminuí meus passos até parar, analisando as ruas de paralelepípedos em busca da capa
preta que pertencia a Wilhelm. Vi a ondulação de um tecido escuro desaparecer no interior
de uma loja cujo letreiro eu não consegui ler. Indiquei o local para Thomas.
“Acho que ele entrou ali.”
“Vá na frente, Wadsworth. Eu só vim acompanhar você por causa de minha força bruta e
do meu charme.”
Entramos em uma loja que vendia pergaminhos, diários e todos os tipos de coisas das
quais alguém precisaria para escrever ou desenhar. Não era um lugar estranho para receber a
visita de um estudante. Wilhelm poderia muito bem estar precisando de material para as
aulas. Passei por corredores estreitos onde havia pilhas de rolos de papel.
A loja tinha um agradável cheiro de nanquim e papel, o que me lembrou de todas vezes
que enfiava o nariz em um livro velho. O cheiro de páginas antigas deveria ser engarrafado e
vendido àqueles que adoravam o aroma.
Eu sorri para o proprietário da loja, um velho homem enrugado com um largo e generoso
sorriso. “Estamos procurando por nosso colega de classe. Creio que ele tenha entrado aqui
agora há pouco.”
O velho juntou as sobrancelhas e respondeu rapidamente em romeno, com palavras
velozes demais para que eu as processasse. Thomas deu um passo adiante e falou com quase
tanta velocidade quanto ele. Eles continuaram se alternando na conversa por alguns
momentos, até que Thomas se virou para mim e fez um movimento em direção à porta. Eu
finalmente havia entendido a essência do que eles estavam falando, mas Thomas traduziu o
que o homem disse mesmo assim.
“Ele disse que o filho dele acabou de trazer uma nova entrega para cá e que ninguém mais
esteve aqui a manhã toda.”
Mirei o lado de fora da janela, olhando para a fileira de lojas. Seus letreiros e janelas
informavam os tipos de produtos vendidos ali. Salgados, tecidos, chapéus, sapatos. Wilhelm
poderia ter entrado em qualquer uma delas.
“Podemos nos separar e verificar em cada uma das lojas.”
Nos despedimos do dono da loja e saímos dali. Eu fui andando até a próxima loja e parei.
Um vestido que parecia ter sido feito para a realeza estava orgulhosamente pendurado no
centro da enorme janela saliente, roubando meu fôlego. Ele tinha um corpete amarelo bem
claro e incrustado com joias, gradualmente mudando de cor para tons de manteiga, até ficar
branco como o inverno na altura da cintura. As saias pareciam nuvens de tule branco, creme e
amarelo-claro, varrendo uns aos outros no mais magnífico degradê.
A costura era feita por uma mão habilidosa, e não pude deixar de me aproximar para ver
melhor. Quase pressionei o rosto no vidro espesso que me separava da vestimenta. Havia
pedras preciosas espalhadas pelo corpete decotado, como estrelas em plena luz do dia.
“Que habilidade artística mais primorosa! Isso é... o céu! É como um devaneio em forma
de vestido. Ou um raio de sol.”
O vestido era belo o bastante para que eu me esquecesse de nossa missão por um
momento. Quando Thomas não me respondeu nem mesmo zombou de mim por ficar
distraída, eu me virei. Ele me observava com profunda diversão antes de acordar de seus
próprios devaneios. Endireitando-se completamente, apontou com o polegar para a vitrine.
“O decote daquela belezura certamente causaria uma comoção. E faria alguns... sonharem
acordados.” Ele abriu o lampejo de um sorriso voraz enquanto eu cruzava os braços. “Não que
você mesma não fosse conseguir administrar a situação e se defender contra as hordas de
pretendentes. Creio que você conseguiria lidar muito bem com isso. Todavia, seu pai de fato
me disse para acompanhá-la por toda parte e mantê-la longe de encrencas.”
“Se isso é verdade, então ele não deveria ter pedido a você que cuidasse de mim.”
“Oh? E o que mais você esperaria de mim? Será que eu deveria abandonar os desejos de
seu pai?”
O brilho de um desafio inesperado iluminou as feições de Thomas. Eu não via uma
expressão assim tão séria em seu rosto desde a última vez que ele me tomara em seus braços,
permitindo a seus lábios a liberdade de comunicar seus mais profundos desejos sem palavras.
Eu me encontrei momentaneamente sem fôlego enquanto me lembrava, com detalhes
vívidos, da sensação e de quão certo havia sido aquele nosso beijo tão errado.
“O que você quer de mim, Audrey Rose? Quais são os seus desejos?”
Recuei um passo, o coração socando meu peito. Mais do que qualquer coisa, eu queria
dizer a ele como eu estava com medo de tudo que vinha me assombrando recentemente. Eu
queria que ele me confortasse, que me dissesse que eu iria me recuperar com o tempo. Que
eu pegaria novamente minha lâmina sem temer que os mortos fossem se erguer. Eu ansiava
pela promessa de que nunca me prenderia em uma gaiola caso nos tornássemos noivos. Mas
como eu poderia proferir tais anseios enquanto ele estivesse se sentindo vulnerável? Admitir
que a fissura dentro de mim continuava crescendo e que eu não fazia a mínima ideia se algum
dia ela realmente seria fechada? Que talvez eu pudesse acabar destruindo-o enquanto
destruía a mim mesma?
“Neste exato momento?” Dei um passo para mais perto dele, vendo sua garganta se
apertar enquanto ele assentia. “Eu desejo saber o que Wilhelm viu no trem, se é que ele viu
alguma coisa. Eu quero saber por que duas pessoas foram assassinadas, com estacas em seus
corações, como se fossem strigoi. E eu quero encontrar pistas antes que tenhamos mais um
caso de um Estripador em potencial em nossas mãos.”
Thomas soltou o ar um pouco alto demais para que fosse apenas um gesto casual. Uma
parte minha desejava retirar o que eu disse, desejava dizer a ele que eu o amava e queria tudo
que ele estava oferecendo em seus olhos. Talvez eu fosse a pior espécie de tola. Mantive
minha boca fechada. Seria melhor que ele fosse temporariamente desencorajado do que
ferido de modo permanente pelas minhas emoções oscilantes.
“Vamos à caça, então”, ele me ofereceu um dos braços. “Senhorita?”
Hesitei. Por um momento pensei ter visto uma sombra formando um ângulo na nossa
direção, vinda dos entornos da construção. Meu coração acelerou enquanto eu esperava que
o dono da loja aparecesse. Thomas acompanhou meu olhar, franzindo as sobrancelhas, antes
de se virar de volta para me analisar.
“Acho que é melhor nos separarmos e encontrarmos Wilhelm, Cresswell.”
“Como a dama desejar.”
Thomas ficou me encarando por um momento longo demais, e então depositou um beijo
casto na minha bochecha antes que eu sequer pudesse absorver o que ele estava fazendo. Ele
recuou devagar, a malícia passando como um lampejo por seus olhos, enquanto eu olhava de
relance pelos arredores rapidamente, em busca de testemunhas de tamanha rebelião. A
sombra que eu jurava que vinha se movendo na nossa direção se fora.
Livrando-me da sensação de estar sendo observada por coisas que eu não podia ver,
admiti para mim mesma que eu havia sido superada pela minha imaginação mais uma vez, e
entrei na butique. Tranças de tecidos em cores vibrantes escorriam de rolos como sangue
sedoso sendo liberado de seus donos. Deslizei as mãos pelos cetins e finos tricôs enquanto
caminhava em direção à escrivaninha, perto dos fundos da loja.
Uma mulher rotunda e baixa me cumprimentou. "Buna."
"Buna. Alguém esteve aqui? Um rapaz? Muito doente. Hum... Foarte bolnav."
A mulher grisalha não desfez seu sorriso cheio de covinhas, e eu esperava que ela
entendesse o meu romeno. Seu olhar passou por mim rapidamente, como se avaliasse se eu
tinha cobras escondidas nas mangas de meu vestido ou algum outro truque nojento com o
qual ela deveria tomar cuidado.
“Nenhum rapaz passou por aqui hoje.”
Na parede atrás dela, um desenho de uma moça chamou a minha atenção. Havia uma
série de anotações em volta da imagem, escritas em romeno. Um calafrio demorou-se na
minha pele. Os cabelos loiros da mulher me lembravam Anastasia; de certa forma.
“O que está escrito ali?”
A dona da loja colocou de lado algumas faixas de tecidos e fez um movimento na direção
do calendário que estava em cima da mesa, apontando com suas tesouras para Vineri. Sexta-
feira.
“Desaparecida há três noites: Ela foi vista caminhando perto do bosque. E então nimic.
Nada. Pricolici.”
“Que coisa horrível!”
Parei de respirar por um instante. Esta mulher realmente acreditava que um lobisomem
morto-vivo rondava a área, caçando suas vítimas. Contudo, foi o pensamento de ficar perdida
naquele temeroso bosque o que fez com que minhas pernas fraquejassem. Eu esperava, pelo
bem da moça, que ela houvesse chegado em segurança a algum lugar. Se a neve e o gelo
caíram durante toda aquela noite, isso teria tornado impossível a sua sobrevivência.
Escolhi meias-calças novas e, depois de pagar a dona da loja, troquei as minhas, que
estavam ensopadas, pelas novas, que eram grossas e quentes e faziam parecer que meus pés
estavam envolvidos por nuvens macias.
“Obrigada... Mulțumesc. Espero que a moça seja encontrada em breve.”
Uma comoção do lado de fora da loja atraiu a minha atenção. Observei homens e
mulheres descerem correndo pela rua de paralelepípedos, com os olhos arregalados e sem
piscar. A dona da loja, que tinha uma aparência tranquila, pegou um cano de ferro de trás do
balcão, com a boca fechada em uma linha mordaz.
“Vá para trás, moça. Isso não é nada bom. Foarte rău.”
O medo se costurava em minhas veias, mas eu o arranquei dali. Eu não haveria de
sucumbir a tais emoções aqui. Eu me encontrava em um lugar novo e não recairia em velhos
hábitos. Por mais que acreditassem na existência de algo muito ruim, não havia nada a ser
temido além de nossas próprias preocupações. Eu estava bem convencida de que ninguém
andava caçando pessoas ao longo destas ruas, ainda mais em plena luz do dia.
“Ficarei bem.”
Sem hesitar, abri a porta com um empurrão, recolhi minhas saias e saí correndo na
direção da pequena multidão que havia brotado nas proximidades de uma viela, nos limites
do distrito comercial.
Calafrios invadiram as rachaduras da minha armadura emocional, deslizando seus dedos
gélidos ao longo da minha pele. Cedi ao seu estímulo e tremi sob a luz matinal que desbotava.
Uma outra tempestade estava se aproximando. Pedacinhos de gelo e neve caíam
penosamente diante de uma raivosa nuvem cinzenta, um aviso de que coisas piores viriam em
seguida. Coisas muito piores.
10. MUITO PECULIAR
Străzile din sat
Ruas do vilarejo, Braşov
2 de dezembro de 1888
leana disse que o príncipe Nicolae não fez nada além de socar e fazer pedacinhos de
seu próprio quarto desde que eles trouxeram o corpo de Wilhelm de volta. “Sua
classe deverá realizar a autópsia amanhã, depois que meu tio inspecionar o corpo.”
Anastasia dispensou abruptamente sua criada pessoal e ficou em pé diante do espelho,
tirando grampos de suas tranças douradas e rearrumando-as em um penteado intricado em
torno de sua tiara. Seus aposentos eram ligeiramente maiores do que os meus e ficavam
localizados no andar de cima de nossas salas de aula. Moldoveanu certificou-se de que nada
faltaria para sua protegida, o que era um sinal de que ele tinha um coração, afinal de contas.
Minha nova amiga tagarelou sobre as fofocas do castelo relacionadas ao príncipe, mas eu
peguei minha mente divagando em pensamentos acerca da construção em si. Embora a
academia estivesse, em sua maior parte, vazia para o feriado de Natal — exceto pelo nosso
grupo de frequentadores esperançosos e o mínimo necessário de funcionários para manter o
castelo —, os corredores que davam para os aposentos estavam repletos de nichos e alcovas
contendo esculturas tanto científicas quanto religiosas. Havia tapeçarias que mostravam
empalamentos e outras cenas mórbidas penduradas entre os nichos. Anastasia me disse que
se tratavam de eventos do reinado de Vlad, vitórias imortalizadas dentro desses corredores.
Sobre um dos pedestais, havia um tórax dentro de uma caixa de vidro, e pulmões em
outra. Uma caixa que eu não me atrevia a inspecionar muito de perto continha uma serpente
enrolada em uma cruz. Partes do corredor me lembravam do laboratório de meu tio e de sua
coleção de espécimes. Outras seções deixavam minha pele arrepiada, embora eu preferisse
ficar perdida em pensamentos sobre o castelo sombrio em vez de enfrentar a conversa em
andamento sobre Nicolae.
“O comportamento violento é uma indicação de instabilidade emocional, segundo uma
revista que eu li no último verão”, disse ela, nem um pouco desencorajada pelo fato de eu não
estar participando ativamente da conversa. “Isso provavelmente afetará o lugar do príncipe
Nicolae aqui. Eu duvido que ele irá recobrar a compostura antes do término do curso de
avaliação. Uma pena para ele. Mas não tão horrível assim para o restante de vocês.”
Fofocar sobre o príncipe enquanto ele estava de luto pela perda do primo fazia o meu
estômago ficar revirado de culpa. Eu queria conseguir um lugar permanente na academia,
mas não queria que a minha entrada tivesse como base a concorrência prejudicada. Ou a falta
de concorrência por causa de morte súbita. Eu também suspeitava sentir-me um pouco mal
pela forma como eu havia falado com Thomas antes de deixá-lo na viela. Um lampejo do
corpo sem vida de Wilhelm passou pela minha mente. Eu não conseguia deixar de me
preocupar com a minha reação perante o cadáver. Toda vez que eu chegava perto de um, via
lembretes que gostaria de esquecer.
Se eu não lidasse com esses terrores logo, eu não sobreviveria à academia. Fato que, eu
desconfiava, agradaria muitíssimo ao diretor Moldoveanu. Eu me mexi no grande canapé,
passando as mãos enluvadas por seus braços de madeira.
“Por que seu tio permite que moças entrem na academia se ele despreza a presença delas?”
“Tecnicamente, ele não é meu parente.” Anastasia esticou a mão para pegar seu diário.
“Embora ele teria sido caso minha tia não tivesse sido assassinada.”
“Sinto muito por isso”, falei, sem desejar me intrometer nem fazer perguntas em busca de
detalhes potencialmente terríveis. “Perder um ente querido é uma das coisas mais horríveis
que pode acontecer a uma pessoa.”
“Obrigada.” Ela abriu um sorriso triste. “Minha tia não estava interessada em ser uma
dama mimada e trancafiada, cuja vida seria ditada pelo marido. Moldoveanu a respeitava.
Nunca a forçou a permanecer ao lado dele.”
Anastasia colocou uma mecha de cabelos dourados atrás da orelha, e eu fiquei grata pelo
leve intervalo na conversa. Vi-me momentaneamente pasmada. A situação de Moldoveanu
com sua antiga noiva era tão similar com aquilo que me deixara chateada com Thomas. Eu
não perdoava o diretor por seu comportamento repreensível, mas eu conseguia entendê-lo
um pouco mais.
“Depois que o corpo dela foi encontrado, ele mudou”, disse Anastasia. “Sei que é difícil
acreditar nisso, mas ele é assim tão frio por achar que, agindo desse jeito, pode acabar
salvando uma vida algum dia. É por isso também que eu não tenho permissão para me tornar
uma aluna, embora ele às vezes permita que eu entre de fininho nas aulas.”
Anastasia abriu seu diário e eu não a pressionei para obter mais informações em relação
ao assassinato de sua tia. Olhei de relance ao redor, buscando uma distração para mim
mesma, e notei que um livro de frases em latim estava aberto em cima da mesa à minha
frente. Precisávamos ser proficientes em latim para passarmos neste curso. Apenas mais uma
coisa na qual eu precisava melhorar, embora tivesse um conhecimento básico
suficientemente decente graças às aulas de meu tio. Os momentos se arrastavam lentamente,
em silêncio. Eu não conseguia parar de visualizar a expressão de dor no rosto de Thomas.
Mexi na renda de minhas luvas.
“Fico imaginando o que se revelará como sendo a causa da morte de Wilhelm. Ele estava
com uma cor tão estranha.” Minha própria pele ardia, mas eu segurei meus medos em meu
punho cerrado. “Eu não me lembro de ter visto um corpo em tal estado antes.”
“Horrível.” Ela torceu o nariz. “Eu esqueci que você inspecionou o corpo antes que meu
tio a forçasse a voltar. Eu nunca li sobre sintomas como esses antes.” Anastasia começou a
falar rápido demais em romeno, de modo que era difícil entender o que ela dizia, e então
comprimiu os lábios. “Peço desculpas. Esqueci que você ainda não é fluente. Gostaria de ir à
biblioteca? Talvez encontre algo por lá que fale sobre estranhas patologias médicas.”
“Talvez amanhã. Estou cansada.” Eu me levantei e balancei a cabeça em direção à porta.
“Acho que vou ficar de molho na banheira. Talvez possamos ir pela manhã.”
“Mâreţ! Um banho de imersão na banheira é uma ideia maravilhosa! Pode ser que eu faça
o mesmo. Tenha um bom banho.”
“Vejo você no café da manhã?”
“Claro que sim.” As beiradas de seus lábios voltaram-se para baixo por um breve instante,
antes que ela abrisse um sorriso pleno. Ela caiu no canapé com toda a graça de um saco de
batatas e pegou o livro de latim. “Tente descansar um pouco... O dia foi trágico. Esperemos
que amanhã seja melhor.”
Boa parte das tochas no corredor haviam sido apagadas quando deixei os aposentos de
Anastasia. O ar da meia-noite foi batizado com correntes de ar árticas, fazendo meus pelos se
arrepiarem enquanto eu descia o corredor vazio e escuro. Silhuetas negras espreitavam em
volta das esculturas, maiores do que os objetos que elas guardavam. Eu sabia que eram apenas
sombras, mas, sob a luz suave e tremeluzente, elas pareciam criaturas sobrenaturais que
vinham atrás de mim, observando-me.
Eu segurei depressa minhas saias e me movi com tanta velocidade quanto me permitia o
meu atrevimento. Realmente parecia que eu estava sendo monitorada. Por quem ou pelo que,
eu não me importava em distinguir. Olhos rastreavam os meus movimentos; eu sentia sua
força enquanto me retirava para os meus aposentos. Eu sabia que não era provável que
estivesse sendo vigiada, e ainda assim... eu caminhava aos tropeços, como um filhote de cervo
que aprendia a andar, consciente da aproximação de um predador que ele não conseguia ver.
“Não é real”, sussurrei. “Não é...”
Um pequeno rangido nas tábuas do assoalho atrás de mim me fez sentir um pico de
adrenalina nas veias. Olhei de relance ao meu redor, minha pulsação trovejava. Vazio. Não
havia nada no corredor além do meu nervosismo. Nenhuma sombra se movia. O castelo
parecia prender sua respiração comigo, sintonizado com cada nuance do meu estado
emocional. Fiquei ali, congelada, enquanto os sons passavam por mim. Nada.
Soltei o ar. Era apenas um corredor. Nada de vampiros nem lobisomens. Certamente
nenhuma força malévola me caçava enquanto eu seguia até meus aposentos. A menos que
minha maldita imaginação pudesse ser levada em conta. Eu me apressei pelo caminho, o
farfalhar das saias encorajando meu coração a andar a trote, apesar da tentativa da minha
mente de aliviar meus temores.
Passei pelo andar dos meninos e continuei subindo as escadas até meus aposentos na
torre, sem pausa, até ouvir o clique baixinho da minha porta se fechando. Pressionei as costas
na madeira e fechei os olhos.
Um estalido agudo fez com que meus olhos se abrissem outra vez, analisando os
arredores. Meu foco recaiu sobre a lareira, onde os galhinhos brilhavam quase brancos e em
um tom de vermelho-alaranjado. O som misterioso não passava da lenha crepitando na
lareira. Um som normal, que deveria ser agradável em uma noite de tempestade. Movi-me na
direção do meu quarto de dormir. Quem sabe se eu me arrastasse para a cama e deixasse este
dia para trás, as coisas realmente estariam melhores pela manhã, exatamente como Anastasia
havia dito.
Quando entrei no meu quarto, percebi que havia algo errado. A cama estava intocada, o
armário e o baú estavam fechados. Porém, no criado-mudo, havia um envelope apoiado em
uma lamparina a óleo com o meu nome escrito em uma caligrafia que eu seria capaz de
reconhecer tão prontamente quanto a minha própria. Eu havia observado enquanto ele fazia
anotações médicas durante as autópsias com meu tio, no último outono. Meu coração
acelerou por um motivo totalmente novo assim que li o bilhete.
u estava acordada desde antes que o sol se dignasse a erguer-se no céu, andando de
uma ponta a outra de meus aposentos, na frente da lareira. Minhas saias de veludo
eram de um azul intenso para combinar com meu humor em queda livre. Eu não
sabia ao certo se Ileana viria para o café da manhã, e a ideia de perder uma amiga que eu tinha
acabado de fazer havia me levado a trocar de luvas pela segunda vez. Eu andava para um lado,
depois para o outro, com minhas saias farfalhando em sua própria irritação. Eu havia
adormecido na noite passada pensando em mil maneiras de pedir desculpas pela minha
intrusão quando eu visse as duas novamente.
Mas, nesta manhã, nenhuma daquelas maneiras parecia certa. Eu cobri o rosto e me forcei
a respirar. Se estivesse em meu lugar, Liza teria sabido precisamente o que fazer. Minha
prima tinha um dom para situações sociais — e para ser uma boa amiga. Eu me forcei a me
sentar, tentando não voltar minha atenção ao relógio a cada segundo que se passava. A
alvorada irromperia logo. E, com ela, o preço pela minha curiosidade seria pago. Talvez agora
eu fosse finalmente ficar livre daquela maldita aflição.
Uma batida confiante à porta veio alguns instantes depois, e meu coração fez seu próprio
clamor em resposta enquanto eu corria apressadamente pela sala e escancarava a porta.
Fui para trás, soltando um suspiro. “Ah, olá.”
“Essa não era necessariamente a reação pela qual eu estava esperando, Wadsworth.”
Thomas olhou para baixo, para a casaca e as calças escuras, ambas com um caimento perfeito.
O colete listrado também era bem elegante. “Talvez eu devesse ter escolhido o terno cinza. Eu
fico esplêndido nele.”
Espiei no corredor, meio que na esperança de que Daciana estivesse à espreita atrás dele,
preparando-se para um ataque verbal em relação à minha curiosidade. Suspirei mais uma vez.
O corredor estava vazio; apenas Thomas estava ali. Eu finalmente arrastei minha atenção de
volta para ele.
“A que eu devo a honra de sua presença assim tão cedo pela manhã?”
Sem ser convidado, ele rapidamente entrou em meus aposentos e assentiu para o lugar.
“Aconchegante. Muito melhor do que a imagem que eu tinha na minha cabeça de aposentos
na torre e de belas donzelas precisando de... bem, você não é do tipo que precisa ser
resgatada, mas eu diria que um pouco de entretenimento lhe cairia bem.” Ele sentou-se no
canapé, cruzando uma das pernas por cima da outra. “Minha irmã me informou da aventura
que vocês todas tiveram na noite passada.” Ele abriu um largo sorriso enquanto a cor
assomava rapidamente ao meu rosto. “Não se preocupe. Ela estará aqui em cima logo, logo.
Eu não queria perder a diversão desta manhã. Pedi para trazerem café turco aqui para cima.”
“Eu nunca me senti tão desgraçada em toda a minha vida. Ela me odeia?”
Thomas teve a audácia de rir. “Pelo contrário. Ela adora você. Ela disse que você ficou em
todos os tons de carmesim e adotou uma gagueira maravilhosa.” Sua voz leve desapareceu,
substituída por algo feroz. Eis um papel que eu não havia visto Thomas desempenhar: o de
irmão protetor. “A maioria das pessoas teria olhado para elas como se estivessem erradas por
colocar seu amor em prática. O que, naturalmente, é falso. A sociedade, como um todo, é
inacreditavelmente obtusa. Se uma pessoa simplesmente se volta para outrem em busca de
suas opiniões, perde a capacidade de pensar por si mesma de forma crítica. O progresso
nunca seria feito se todos tivessem a mesma aparência, pensassem do mesmo jeito e amassem
da mesma forma.”
“Quem é você, e onde está o socialmente desajustado sr. Cresswell?”
Eu nunca tinha me sentido mais orgulhosa de meu amigo por sua determinação ao
reprovar verbalmente as falhas da sociedade.
“Eu realmente lido com essas questões de uma forma um tanto apaixonada”, disse
Thomas, um pouco de leveza voltando à sua voz. “Suponho que fiquei cansado disso, de
sermos todos governados por uns poucos seletos. Regras são restrições designadas por
homens privilegiados. Eu gosto de tomar minhas próprias decisões. Todos deveriam ter os
mesmos direitos. Além do mais”, ele mostrou o lampejo de um sorriso diabólico para mim.
“Meu pai fica totalmente enfurecido quando eu falo desse jeito. Abala as crenças rígidas dele
de um jeito deleitoso. Ele ainda precisa aceitar que o futuro será governado por aqueles que
pensam e acreditam como nós.”
Seguiu-se uma outra batida à porta. De alguma forma, eu consegui abri-la sem desmaiar
de nervosismo. Daciana olhou hesitante para mim, e depois balançou a cabeça para o irmão.
“Bună dimineaţa. Todo mundo dormiu bem? Alguma coisa empolgante aconteceu?” Ela
desferiu um sorriso jocoso para mim, e a tensão que formava um nó em meu peito se desfez.
“Eu sinceramente não tenho como pedir desculpas o suficiente”, apressei-me em dizer.
“Eu ouvi ruídos e pensei... Eu não sei, fiquei preocupada que alguém estivesse... sendo
atacado.”
Thomas ladrou uma risada. Ergui uma sobrancelha enquanto ele quase caía de seu
assento. Eu nunca havia visto tal arroubo de emoção da parte dele antes. Daciana
simplesmente revirou os olhos. Ele estava quase rouco quando se recompôs o suficiente para
falar.
Se a risada sincera dele não fosse tão hipnotizante, eu o teria cutucado com o meu dedo.
Ele estava certamente mais leve aqui — mais relaxado consigo mesmo e menos na defensiva
— do que quando estava em Londres. Eu não podia deixar de ficar intrigada com esse lado
dele.
“Eu gostaria de captar a expressão em seu rosto, Wadsworth. É o mais adorável tom de
vermelho que eu já vi na minha vida.” Quando eu pensei que ele haveria de se recompor, riu
novamente. “Sendo atacada, com toda a certeza. Parece que você precisa trabalhar um
pouquinho em sua corte, Daci.”
“Oh, não me amole, Thomas.” Daciana voltou-se para mim. “Eu e Ileana nos conhecemos
faz um tempinho. Quando ela ficou sabendo que Thomas estaria na academia, ela se
candidatou a uma vaga para vir trabalhar aqui. Era uma forma conveniente para que víssemos
uma à outra. Eu sinto muito por ter assustado você. Deve ter sido terrível achar que algo
sinistro estava acontecendo no necrotério. Especialmente depois dos assassinatos do
Estripador.”
Uma expressão adorável iluminou a face dela, e eu fiquei impressionada com a pontada de
inveja que havia se agitado em minhas células. Eu queria que alguém demonstrasse tamanho
desejo e anseio ao pensar em mim. Inspirei fundo e me recompus. Não alguém. Thomas. Eu o
queria. Eu não me atrevia a olhar nem de relance na direção dele por temer que tais emoções
indecentes estivessem transparecendo em meu rosto.
“Imagino que tenhamos ficado um pouco exaltadas demais na noite passada”, disse
Daciana. “Fazia um tempinho desde a última vez que tivemos uma noite inteira só para nós
duas. É só que... eu a adoro de todas as formas possíveis. Vocês já olharam para alguém em
algum momento e sentiram uma centelha na parte mais profunda de si mesmos? Ela faz com
que eu deseje realizar coisas grandiosas. Mas essa é a beleza do amor, não é? Trazer à tona o
melhor que temos dentro de nós.”
Pensei naquela última parte por um instante. Embora eu concordasse plenamente que ela
e Ileana fossem perfeitas juntas, eu também sentia que feitos impressionantes poderiam ser
realizados se a pessoa escolhesse não ter um par. A proximidade de um par romântico não
deveria impedir ou facilitar o crescimento interno.
“Eu realmente acredito que o amor seja algo maravilhoso”, comecei a dizer devagar, não
querendo ofender, “mas também existe uma certa magia em estar perfeitamente contente
com a companhia de si próprio. Eu acredito que a glória esteja dentro de nós. E que ela é
nossa para que a controlemos ou soltemos, de acordo com as nossas vontades.”
Os olhos de Daciana brilharam em aprovação. “Você tem razão.”
“Embora nós pudéssemos ficar conversando infinitamente sobre o amor”, disse Thomas
com uma falsa bufada, “seu encontro clandestino à meia-noite está me deixando com
ciúmes.”
Uma terceira batida à porta interrompeu Thomas antes que ele pudesse dizer alguma
coisa inapropriada. Ele ficou em pé, uma expressão séria recaiu sobre ele como se tivesse
ligado um interruptor para se resfriar. Embora sua irmã estivesse aqui, o fato de estarmos
desacompanhados ainda seria malvisto.
Engoli o meu medo e falei. “Sim?”
“Bună dimineaţa, senh... Audrey”, saudou Ileana, cujas bochechas estavam ficando
levemente ruborizadas. “Eu...”
“Bom dia para você, Ileana”, disse Thomas, ao meu lado. “Eu não sabia que você
trabalhava aqui até minha irmã aparecer, toda com olhos de corça e animada. Eu deveria
saber que ela não estava aqui para me abençoar com sua cintilante personalidade.”
Para meu total espanto, Ileana abriu um largo e genuíno sorriso. “É bom ver você
também.” O sorriso rapidamente se dissipou de seu rosto. “Vocês dois precisam descer
imediatamente. Reunião obrigatória. Moldoveanu está de mau humor. Vocês não deveriam se
atrasar.”
“Hummm”, disse Thomas. “Isso será interessante. Eu tinha a impressão de que ele estava
permanentemente de mau humor.”
Daciana desmoronou no canapé, apoiando os pés cobertos pela seda na mesinha baixa.
“Parece-me adorável. Por favor, cumprimente-o em meu nome. Se precisarem de mim,
estarei aqui, estirada perto da lareira.”
Thomas revirou os olhos. “Você parece um gato doméstico. Sempre tirando cochilos em
lugares banhados pelo sol ou descansando diante do fogo.” Uma inclinação marota dos lábios
dele me levou a balançar a cabeça antes que ele abrisse a boca novamente. “Por favor,
contenha-se e não faça suas necessidades nos móveis.”
Thomas conduziu a mim e a Ileana para fora antes que Daciana pudesse lhe responder, e
eu fiz o meu melhor para não rir com todas as coisas moralmente ofensivas que ela estava
gritando em romeno para a porta fechada.
udrey Rose, por favor. Espere.” Thomas tentou me alcançar no corredor logo ao lado
da sala de aula, mas eu me movi rapidamente. Ele deixou o braço cair, pendendo ao
lado do corpo. “Eu posso explicar. Eu achei...”
“Ah é? Você achou?”, rebati, irritada. “Você achou que seria uma boa ideia me transformar
em objeto de zombaria na frente de nossos colegas? Para me sabotar? Nós não tivemos ontem
mesmo uma conversa similar a esta?”
“Por favor. Eu juro que em momento algum eu quis dizer...”
“Exatamente. Você nunca quer dizer nada!” Thomas cambaleou para trás como se eu o
tivesse acertado com um golpe. Ignorei seu ar de quem estava magoado, baixando o tom de
voz para um sussurro áspero enquanto Anastasia passava por nós nas pontas dos pés e descia
o corredor. “Você só se importa consigo mesmo e prova isso diariamente por meio de suas
malditas ações. Você guarda suas emoções e histórias para si. Então você sai por aí contando
aos outros os meus segredos. Você tem alguma ideia de como isso é difícil para mim? A maior
parte dos homens não me leva a sério porque eu uso saias, e então você vai lá e prova que eles
estão certos! Eu não sou inferior, Thomas. Nenhuma pessoa é.”
“Você não deveria...”
“Eu não deveria o quê? Tolerar que você pense que sabe o que é melhor para mim? Você
está certo. Eu não tolero. Não entendo como você acredita ter o direito de falar por mim. De
alertar os outros sobre a minha frágil constituição. Você deveria ser meu amigo, um igual. Não
o meu guardião.”
Algumas semanas antes, fiquei preocupada que meu pai fosse tirar Thomas e os estudos
forenses de mim da mesma forma como meu irmão havia sido arrancado dos meus braços. Eu
não suportava sequer a ideia de ficar sem ele. Eu não tinha como saber que Thomas me
trairia com a desculpa de fazer o que era melhor para mim. Eu nunca teria previsto que seria
ele quem haveria de destruir nosso vínculo.
“Eu juro que eu sou seu amigo, Audrey Rose”, disse ele, soando sincero. “Eu estou vendo
que você está com raiva...”
“Mais uma bela dedução feita pelo infalível sr. Thomas Cresswell”, eu disse, incapaz de
evitar a ironia. “Uma vez você disse que me amava, mas suas ações mostram uma verdade
muito diferente, senhor. Eu exijo que sejamos iguais, e nada menos do que isso.”
O futuro do qual eu não tinha certeza se queria ficou claro como cristal. Eu estava certa
no que havia presumido. Não importava quanto Thomas fingisse ser diferente, ele ainda era
um homem. Um homem que sentiria ter o dever e a obrigação de falar em meu nome e
estabelecer regras, caso eu me casasse com ele. Eu sempre seria sabotada de alguma forma
por sua “ajuda” impensada.
“Audrey Rose...”
“Eu me recuso a ser regida por qualquer coisa que não seja a minha própria vontade,
Cresswell. Permita-me ser ainda mais clara, visto que obviamente você não entendeu o meu
ponto antes: eu preferiria morrer como uma solteirona do que me submeter a uma vida com
você e suas melhores intenções. Encontre outra pessoa a quem atormentar com seus afetos.”
Ouvi Thomas chamando o meu nome enquanto corria pelo corredor e, às cegas, descia
correndo por uma escadaria sinuosa. As tochas quase se apagaram quando passei apressada
por elas, mas eu não me atrevi a parar. Eu corria e corria, enquanto descia também a
escadaria em espiral, com meu coração estilhaçando-se a cada passo que eu dava para longe
dele.
Eu nunca havia me sentido mais sozinha ou mais tola em toda a minha vida.
O corpo rígido que jazia na mesa de exames me trouxe mais conforto do que teria sido
apropriado. Em vez de me censurar pelo comportamento indecoroso, desfrutei a sensação de
total controle sobre minhas emoções. Eu nunca me sentia mais confiante do que quando
tinha um escalpelo nas mãos e um cadáver me esperando, com sua carne aberta como a
lombada de um livro novo, para ser estudado.
Ou, pelo menos, tinha sido assim até este momento. Esse teste era bem mais crucial para
mim agora, especialmente depois da interferência de Thomas.
Eu me concentrei no corpo frio, com aspecto ainda decente por causa dos pedaços de
tecido cuidadosamente posicionados. Meu coração agitou-se um pouco, mas eu o ordenei
que se acalmasse. Eu não haveria de me desintegrar durante este exame. Se preciso fosse, eu
permitiria que a teimosia e o ódio me mantivessem inteira.
"Fii tare”, alguém sussurrou de um lugar ali perto, no anfiteatro cirúrgico. “Seja forte.”
Ergui o olhar, procurando pela fonte. Provavelmente se tratava de zombaria, graças à
declaração de Radu sobre a minha constituição frágil. Eu provaria a mim mesma, mais do que
a qualquer outra pessoa, que eu era completamente capaz de realizar esta autópsia.
Segurei o escalpelo com firmeza, colocando minhas emoções de lado enquanto fitava o
rapaz que estivera vivo ontem. Wilhelm não era mais o meu colega de classe. Ele era um
espécime. E eu encontraria a força necessária para identificar a causa de sua morte. Traria paz
à família dele. Talvez eu pudesse ajudar Nicolae a lidar com isso desta forma: eu poderia
oferecer a ele uma resposta sobre como e por que seu primo havia morrido. Minhas mãos
tremiam levemente enquanto eu erguia a lâmina.
Nosso professor, um jovem inglês chamado sr. Daniel Percy, já havia nos mostrado a
maneira correta de fazer uma incisão de autópsia e ofereceu a um de nós a oportunidade de
ajudar na investigação da morte do sr. Wilhelm Aldea.
Visto que eu já havia realizado tarefas similares, fui a primeira a me voluntariar para
remover os órgãos dele. Eu suspeitava de que Thomas estivesse tão ansioso quanto eu para
inspecionar o corpo, mas ele não me desafiou quando ergui a mão. Em vez disso, ficou
sentado, de braços cruzados, e afundou os dentes em seu lábio inferior. Eu estava irritada
demais com ele para apreciar a oferta de paz. Ele sabia que eu precisava fazer isso. Eu
precisava sobrepujar meus medos ou então poderia muito bem fazer as malas. Se eu não
conseguisse lidar com esta autópsia, jamais sobreviveria ao curso de avaliação.
“Classe, queiram tomar nota das ferramentas necessárias para suas autópsias. Antes de
cada procedimento, é importante ter tudo de que vocês possam precisar em prontidão.” Percy
apontou para uma mesinha onde havia uma bandeja com objetos familiares. “Serra para
ossos, faca para dissecção, tesoura enterótomo para abrir tanto o intestino delgado quanto o
intestino grosso, pinça dente de rato e um cinzel de crânio. Temos também um frasco de
ácido carbólico por perto. Os novos estudos são a favor da prática da esterilização. Bem,
então, srta. Wadsworth, pode prosseguir.”
Aplicando uma quantidade considerável de pressão, abri o esterno usando um par de
costótomos. Meu tio havia me ensinado seu método no último mês de agosto, e, neste
anfiteatro cirúrgico, cercada por três fileiras concêntricas de assentos que se elevavam pelo
menos uns nove metros no ar — embora meus colegas de classe estivessem todos apinhados e
agrupados no primeiro nível —, eu fiquei grata pela lição. A sala estava quase totalmente em
silêncio, exceto por ruídos ocasionais de pés sendo movidos.
A partir da minha visão periférica, notei que o príncipe se encolhia. Percy havia oferecido
a ele a opção de não estar presente nesta aula, mas ele recusara. Eu não fazia a mínima ideia
do motivo pelo qual o próprio Moldoveanu não estava inspecionando o corpo, nem por que
ele o havia entregado para que nós o estudássemos. Nicolae, no entanto, permanecia ali
sentado, estoico. Ele havia optado por não abandonar o primo até que seu corpo fosse
colocado para descansar. Eu admirava sua força, mas não conseguia conceber a ideia de
acompanhar um procedimento desse tipo sendo realizado em um ente querido.
Agora eu não conseguia deixar de sentir seu olhar compenetrado sobre mim, afiado como
a ferramenta que eu tinha em mãos, enquanto eu fazia jorrar os segredos da morte
inesperada de seu primo.
Durante a sessão pré-laboratorial, eu havia descoberto que os irmãos italianos, o sr.
Vincenzo e o sr. Giovanni Bianchi, eram gêmeos fraternos. Eles não estavam mais encarando,
famintos, seus livros; agora, olhavam fixamente para o método que eu estava utilizando para
conduzir minha autópsia. A intensidade de ambos era quase tão enervante quanto a maneira
como eles pareciam comunicar-se em silêncio um com o outro. Olhei para meus outros
colegas de classe por um breve instante. O sr. Noah Hale e o sr. Cian Farrell estavam
igualmente intrigados. Meu olhar começou a vagar na direção de Thomas antes que eu me
impedisse de fazê-lo. Eu não queria encará-lo.
Mantive a caixa torácica aberta e moldei minha expressão para que permanecesse
inabalada conforme o odor das vísceras expostas começava a pairar no ar. Um leve cheiro de
alho estava presente. Eu me distanciei das imagens de prostitutas assassinadas. Este corpo
não havia sido profanado por um assassino hediondo. Seus órgãos não haviam sido
estripados. Agora não era a hora de ter pensamentos que fossem além da mesa cirúrgica.
Agora era a hora da ciência. Realizei cortes através dos músculos, revelando o saco em volta
do coração.
“Muito bem, srta. Wadsworth.”
O professor Percy andava em torno do anfiteatro cirúrgico, erguendo dramaticamente a
voz. Ele era, em cada pedacinho seu, o artista atuando, um maestro conduzindo uma sinfonia
até um crescendo. O som de sua voz alcançava as extremidades mais afastadas da sala como
se seus graves fossem uma onda colidindo com a praia.
“O que nós temos aqui é o pericárdio, classe. Notem a forma como ele cobre o coração.
Ele tem tanto uma camada externa quanto uma camada interna. A primeira tem uma
natureza fibrosa, ao passo que a outra é uma membrana.”
Estreitei os olhos. O revestimento do pericárdio havia secado. Eu nunca tinha visto uma
coisa assim antes. Sem que me mandassem, peguei um vidro e uma seringa de metal da mesa
e tentei extrair uma amostra de sangue do antebraço do falecido.
Puxando o êmbolo para trás, esperei pela densa consistência do sangue coagulado, mas a
seringa continuou vazia. Um arquejo audível passou pelo semicírculo inferior do salão,
ecoando como um coro que canta para uma alma no céu enquanto ela chega aos níveis
superiores.
Percy indicou ferramentas e procedimentos, dessa vez em romeno.
Recuei um passo, com meu olhar passando pelo corpo quase desnudo, absorvida demais
pelo mistério para que ficasse ruborizada. E foi então que eu notei: a ausência de livor mortis.
Abaixei-me mais para perto dele, tentando encontrar um resquício daquele acúmulo de
sangue cinza-azulado que deveria estar presente. Sempre que uma pessoa falecia, seu sangue
provocava manchas na parte mais baixa de seu corpo, sobre a qual ele estivera posicionado
por último. Se ele tivesse morrido de bruços e depois fosse virado, a descoloração ainda
estaria presente em sua barriga. Procurei por lividez em cada lado do corpo de Wilhelm,
debaixo de seus braços e de suas pernas, e nada encontrei. Sua palidez era estranha até
mesmo para um cadáver.
Havia algo muito errado com este corpo.
“Tudo bem”, disse Percy, pegando uma seringa maior. “Às vezes é um pouco mais
complicado remover uma amostra dos falecidos. Nada do que se envergonhar. Se não se
importar...”
“Provavelmente é a constituição fraca dela”, alguém murmurou, alto o bastante para que
eu ouvisse, e dissimulou seu ato.
Dando um passo para o lado, eu permiti que Percy tivesse espaço para ele mesmo remover
uma amostra, ignorando as risadas de zombaria dos meus colegas de classe. Eu virei a lateral
da minha seringa, perguntando-me como diabos ela não havia removido nem mesmo um
pouquinho do sangue de Wilhelm. O tamanho da agulha não deveria importar. Eu queria
olhar de relance para Thomas, mas não cedi ao impulso.
“Interessante.”
Percy pegou o braço esquerdo do falecido e lentamente enfiou a agulha na pele fina de seu
cotovelo. Quando ele puxou o êmbolo, nenhum sangue subiu. O professor juntou as
sobrancelhas e tentou o mesmo em um outro ponto. Novamente, a seringa estava vazia.
Como previsto, ninguém zombou da inabilidade dele de tirar sangue.
“Hummm.” O professor murmurou para si mesmo, tentando tirar amostras de cada braço.
Ele falhou todas as vezes. Percy recuou, com as mãos nos quadris, e balançou a cabeça em
negativa. Uns poucos cachos de cabelo ruivo caíram desordenados por sua face tal como as
sardas espalhavam-se por seu rosto.
“Aprofundou-se o mistério desta morte, classe. Parece que o corpo está desprovido de
sangue.”
Eu me amaldiçoei por fazer isso, mas, dessa vez, não consegui evitar e busquei a reação de
Thomas na multidão. Meu olhar flutuava de um rosto em choque para o outro, todos os
alunos conversando entre si em tons ansiosos. Andrei apontou para o cadáver de seu falecido
amigo, o terror entalhado em cada um de seus movimentos. Eu queria dizer a ele que o medo
anuviaria seu bom senso, que isso somente complicaria e retardaria a nossa busca pela
verdade, mas não disse nada.
Aquela era uma descoberta horrível.
Girei em um pequeno círculo, os olhos rastreando os arredores da sala em formato de
torre, mas Thomas já tinha ido embora. Uma trêmula chama de tristeza iluminou-se dentro
de mim antes que eu pudesse apagá-la. Era melhor assim. Eu precisaria aprender a parar de
buscar conforto nele, o que, de qualquer forma, ele não estava preparado para me oferecer.
O príncipe inclinou-se sobre a barra de apoio, com os nós de seus dedos ficando brancos.
“Há marcas de strigoi no pescoço dele?”
“O quê?”, perguntei, ouvindo, mas não entendendo aquela pergunta tão absurda. Eu me
inclinei e virei a cabeça de Wilhelm para o lado. Havia dois pequenos buracos ali, com crostas
de sangue seco.
Passei a mão por sobre meus cabelos trançados, sem pensar na caixa torácica que eu havia
acabado de abrir. Tinha que haver alguma explicação que não apontasse para o ataque de um
vampiro. Strigoi e pricolici eram apenas histórias. Histórias que não eram cientificamente
plausíveis, por mais que o professor Radu houvesse nos enchido delas em sua aula de folclore
local.
Contraí os ombros, dando a mim mesma permissão para trancafiar minhas emoções.
Agora era a hora de adotar o método dedutivo de Thomas. Se não fora lobisomem nem
vampiro o que havia mordido Wilhelm, o que teria sido, então? Folheei mentalmente páginas
de cenários possíveis; tinha de haver uma explicação razoável para os dois pontos em seu
pescoço.
Jovens simplesmente não caíam mortos e perdiam seu sangue devido à causas naturais, e
eu não sabia de nenhum ser vivo que pudesse deixar aquelas... marcas de mordida. Balancei a
cabeça. Marcas de mordida, até parece. Aquela era a histeria usando suas garras para entrar
em minha mente. Um animal não poderia ter feito aquela ferida. Era muito perfeita. Limpa
demais. Marcas de dentes não teriam sido assim tão precisas ao entrarem na carne.
Ataques de animais seriam brutais, deixando muitos indícios no cadáver: carne dilacerada,
unhas quebradas, arranhões. Ferimentos de defesa teriam estado presentes em suas mãos,
como meu tio havia ressaltado em casos de briga. Machucados.
Vampiros não eram mais reais do que os pesadelos. Então eu entendi.
As marcas poderiam ter sido feitas com algum instrumento usado em necrotérios.
Embora eu não soubesse ao certo que métodos os agentes funerários usavam para extrair
sangue.
“Há marcas de strigoi no pescoço dele?”, Nicolae repetiu a pergunta, com exigência em sua
voz.
Eu havia me esquecido por completo dele. Havia também algo mais em seu tom. Algo
tingido de temor. Possivelmente até mesmo medo. Eu me perguntava o que ele sabia dos
rumores que estavam sendo discutidos pelos aldeões. Que seu ancestral vampírico havia
voltado do túmulo e estava sedento.
A manchete do jornal revisitou meus pensamentos. TERIA O PRÍNCIPE IMORTAL
RETORNADO? Será que os aldeões secretamente ansiavam por seu príncipe imortal? Será
que um deles tinha ido tão longe a ponto de armar essa morte, drenando seu sangue e
deixando tudo isso à mostra? Eu não invejava Nicolae neste momento. Alguém queria que as
pessoas acreditassem que Wilhelm havia sido assassinado por um vampiro. E não
simplesmente qualquer vampiro possivelmente o mais sanguinário de todos os tempos.
Sem nem olhar de relance, assenti em resposta à pergunta do príncipe. Um movimento
quase imperceptível, mas era o bastante. Eu não fazia a mínima ideia de como seguir
resolvendo este enigma. Como o sangue havia sido drenado de um corpo sem que ninguém o
notasse?
Estivéramos no vilarejo por somente uma hora mais ou menos. Isso não seria tempo o
bastante para realizar uma tarefa de tamanho porte. E, ainda assim, será que poderia ser
possível para uma mão habilidosa? Eu não fazia a mínima ideia de quanto tempo demoraria
para drenar todo o sangue de um corpo.
Uma onda de sussurros espalhou-se por todo o anfiteatro cirúrgico, e vários chegaram até
o lugar onde eu estava no piso principal. Uns poucos calafrios me atingiram com pontadas
enquanto me endireitava.
Parecia que os aldeões não estavam sozinhos em suas superstições; alguns de meus
colegas de classe também estavam convencidos de que Vlad Drácula ainda vivia.
Querida Liza,
Como você ressaltou em várias ocasiões até agora — não que eu esteja mantendo um
registro de tais coisas -, seus entendimentos em relação a questões de uma... natureza
delicada são superiores aos meus.
Especialmente ao tratar-se do sexo menos belo. (Estou brincando,
naturalmente!)
Falando em termos claros, temo que eu possa ter magoado o sr. Cresswell de tal
forma que até mesmo a bravata dele teria dificuldades de se recuperar. É só que...
ele me leva totalmente à loucura! Ele vem sendo um completo cavalheiro, o que é ao
mesmo tempo intrigante e enlouquecedor por si só. Em alguns dias, eu tenho certeza
de que viveríamos tão felizes quanto a Rainha com seu amado príncipe Albert. Em
outros momentos, eu juro que sinto minha autonomia sendo arrancada das pontas dos
meus dedos enquanto ele insiste em me proteger.
Contudo, de volta ao problema em questão: eu reprovei severamente o sr.
Cresswell. Ele havia informado a um de nossos professores que minha constituição
não era lá muito robusta. O que não parece assim tão horrível, exceto que era a
segunda vez que ele havia tentando interferir na minha independência. Audácia
absoluta!
Nossos colegas de classe se divertiram bastante com isso, embora eu não fosse (e
não seja) nem um pouco assim. Minha resposta enraivecida pode ter alienado os
afetos do sr. Cresswell. Antes que você me peça detalhes sórdidos, eu expliquei - de
forma um tanto cruel - que eu preferiria morrer sozinha a aceitar a mão dele em
casamento. Caso ele pensasse em oferecê-la, quero dizer.
Por favor, ajude-me com qualquer conselho que você possa ter. Sou muito mais
bem equipada para extrair um coração do que para encorajar um, pelo que parece.
oldoveanu estava parado no meio de nosso pequeno grupo, e tanto seu manto preto
quanto seus cabelos grisalhos flutuavam com o vento mordaz que chicoteava as
montanhas enquanto ele recitava uma prece em romeno.
A neve e o gelo caíam constantemente, mas ninguém se atrevia a reclamar. Bem antes de
Moldoveanu dar início ao velório, Radu havia sussurrado que chuva em funeral era um sinal
de que o falecido estava triste. Eu estava grata por isso não se tratar de um funeral
cerimonioso, mas não sabia o que interpretar do tempo e de como seu estado miserável
pudesse ser um indicativo das emoções de Wilhelm na vida após a morte.
Minha mente e meus olhos vagavam enquanto Moldoveanu prosseguia com seu
panegírico. Nosso mais novo colega de classe, e substituto de Wilhelm, era um rapaz
chamado sr. Erik Petrov, vindo de Moscou. Parecia que ele havia nascido do gelo. Ele
ignorava a mistura de chuva e neve que revestia seu cenho enquanto formávamos um círculo
nos gramados frontais do castelo, com as velas tremeluzindo entre nossas mãos em concha.
Além dos professores, estavam oito dos alunos do curso de avaliação, sem contar Anastasia.
Thomas não tinha se dado ao trabalho de vir.
Para falar a verdade, eu não o havia visto desde que ele deixara a aula de Percy mais cedo.
Devido à piora do tempo, Moldoveanu havia adiado nossa aula de anatomia para depois do
velório, e eu me perguntava se Thomas faria o menor esforço de ir assistir a essa aula. Eu o
afastei de meus pensamentos e me aninhei em meu sobretudo. Apesar disso, a neve
encontrou um caminho para entrar sob meu colarinho. Pisquei para tirar os flocos de neve
dos meus cílios, fazendo de tudo para impedir que meus dentes ficassem batendo. Eu não
acreditava em fantasmas, mas sentia que era prudente não perturbar Wilhelm se ele de fato
estivesse nos observando do além.
Anastasia mexeu-se, vindo mais para perto de mim, com o nariz de um vermelho vivo e
brilhante.
“Este tempo é groaznică.”
Assenti. Muito certamente o tempo era horrível, mas terrível também era a forma como
Wilhelm havia perdido a vida. Um pouco de neve e gelo não era nada em comparação ao frio
infinito em que o corpo dele agora residia. Nicolae tinha o olhar fixo no bosque, os olhos
vidrados por lágrimas que não caíram. Segundo o infinito estoque de fofocas do castelo
mantido por Anastasia, ele não havia falado com ninguém desde a descoberta de que o
sangue de Wilhelm fora tirado de seu corpo, embora Andrei frequentemente tentasse
interagir com ele, não disposto a deixar que o amigo sofresse sozinho.
Ainda que eu soubesse que há muitos lados em uma pessoa, e que se procurarmos o
bastante nós os encontramos, era surpreendente quão terno Andrei podia ser, ainda que ele
houvesse sido tão horrível com Radu. Ninguém era totalmente bom ou mau, um outro fato
que eu havia aprendido durante o caso do Estripador.
Uma movimentação perto da beirada do bosque chamou a minha atenção. Não passava de
um leve movimento, como se algo estivesse se esgueirando em meio às sombras. Imagens de
olhos dourados e brilhantes e de gengivas pretas passaram como um lampejo pela minha
mente. Eu me repreendi internamente. Não havia lobisomens cercando nosso grupo
enlutado, esperando para lançar um ataque calculado. Assim como vampiros também não
existiam.
Anastasia olhou de soslaio para mim, com os olhos arregalados. Ela também havia visto
aquilo.
“Talvez Radu estivesse certo. Talvez haja pricolici à espreita na floresta. Alguma coisa está
nos observando. Você consegue senti-lo?”
Os pelos da minha nuca se arrepiaram. Era estranho que ela tivesse pensado nos lobos
também.
"Alguém, muito provavelmente.”
“Este é um pensamento aterrorizante.”
Anastasia tremia tanto que sua vela se apagou.
“Em vista da recente descoberta em relação à morte de Wilhelm”, disse o diretor em um
inglês com sotaque carregado, passando rapidamente das lembranças para os negócios,
“ninguém tem permissão de deixar a academia. Pelo menos não até que tenhamos descoberto
a causa de sua morte. Um toque de recolher também será colocado em prática para garantir a
segurança de vocês.”
Andrei trocou um olhar de relance com Anastasia, o que me surpreendeu.
“Alguma ameaça foi feita contra a academia?” O sotaque de Andrei era denso e forte. E
caía muito bem nele.
Os olhos do diretor encontraram os olhares de cada um de nós; dessa vez não havia
qualquer sinal de desdém em sua face. Se Moldoveanu estava sendo bondoso, então alguma
coisa pior do que uma ameaça estava no nosso caminho.
“Estamos tomando medidas de precaução. Não foi feita nenhuma ameaça. Não
diretamente.”
Moldoveanu fez um sinal para que retornássemos ao castelo. Giovanni e Vincenzo foram
os primeiros a subir correndo a escadaria de pedra e desapareceram lá dentro, ansiosos para
pegar os melhores lugares na aula de anatomia. Eu sabia que também deveria me sentir
animada ou nervosa em relação à aula. Aquelas duas vagas permanentes na academia
pendiam diante de todos nós como se fossem ossos oferecidos a vira-latas famintos. E, ainda
assim, meus pensamentos continuavam voltando-se para a floresta.
Virei-me, observando as sombras se moverem sob as árvores enquanto meus colegas de
classe subiam as escadas. Eu me perguntava quem estaria lá fora, observando nosso pequeno
grupo, possivelmente nos caçando como se fôssemos presas. Algo sinistro aconteceu com
Wilhelm. Minha imaginação, por mais hiperativa que estivesse ultimamente, não havia
conjurado vampiro algum para drenar todo o sangue do jovem...
Algum monstro vivo havia feito isso com ele. Eu tinha como objetivo descobrir como. E
por quê.
“Quando eu chamar seus nomes, queiram identificar o osso para o qual eu estou apontando.”
Moldoveanu andava em frente à primeira fileira da sala de aula, as mãos atrás das costas
como um militar. “Eu quero medir a proficiência de vocês no básico antes de passar para
lições mais complexas. Entendido?”
“Sim, diretor”, todos nós respondemos.
Eu notei que ninguém estava com preguiça ou caindo de sono nesta aula. Todos estavam
empertigados em seus assentos, com tinta pingando de suas penas, preparadas para rabiscar
pelas páginas em branco. Bem, todos com exceção de Thomas. Ele estava espichando o
pescoço pelos arredores, tentando atrair minha atenção. Pressionei os lábios, ignorando-o.
Ele havia causado danos suficientes durante a aula de folclore. Eu não desejava que aquela
situação se repetisse aqui. Moldoveanu de forma alguma era tão complacente ou avoado
como Radu.
“Audrey Rose”, Thomas sussurrou quando o diretor entrou por um momento em um
armário de suprimentos. “Por favor, permita-me explicar.”
Em um lampejo, mostrei a ele meu melhor olhar de ódio como forma de aviso, cortesia de
minha tia Amélia. Se ele arruinasse minhas chances de conseguir um lugar nessa academia,
eu o mataria. Ele relaxou em seu assento, mas não tirou os olhos de mim. Continuei com a
boca bem fechada, temendo soltar uma litania de xingamentos desagradáveis contra ele.
Mantive o olhar cravado bem à minha frente, ignorando-o.
Um grande quadro-negro ocupava a parede atrás da mesa de Moldoveanu, cuja superfície
escura era desprovida de quaisquer marcas. O diretor retirou um esqueleto do armário de
suprimentos e colocou-o ao seu lado. Pegou uma varinha e começou a indicar cada parte do
esqueleto que ele queria que identificássemos. Eu me remexi em meu assento, na esperança
de não errar algo fácil. Thomas estava inquieto, e seu foco direcionado a mim queimava um
buraco na minha concentração. Segurei minha pena, os nós dos meus dedos ficando brancos.
“Sr. Farrell, queira dizer o nome deste osso.”
Eu me esforcei para guardar o meu revirar de olhos apenas para mim. “Esse é o crânio,
senhor.”
O menino irlandês relaxou os ombros para trás, sorrindo como se tivesse descoberto a
cura para alguma doença rara, e não apenas assinalado corretamente que aquela era uma
caveira.
“Sr. Hale? O próximo, por favor.”
“Clavícula, senhor.”
A aula prosseguiu dessa maneira. A cada aluno era dado algo ridiculamente simples para
nomear, e eu me perguntava se estivera errada em relação à dificuldade desta aula. Então
Moldoveanu baixou a varinha abruptamente e voltou para o armário, de onde ele retornou
com uma bandeja cheia do que pareciam ser ossos de frango em jarros repletos de líquido
transparente. Cheirei o ar. Não era ácido carbólico nem formalina.
“Srta. Wadsworth, venha até a frente da classe, por favor.”
Eu inspirei fundo, levantei-me e me forcei a entrar em ação. Parei ao lado do diretor, com
a atenção fixa nos jarros que ele tinha em mãos, um dos quais ele me ofereceu.
“Observe e declare suas descobertas.”
Ergui o jarro até o meu nariz e inalei. “Parece ser um osso de frango banhado em vinagre,
senhor.”
Moldoveanu assentiu brevemente. “E como a substância afeta o osso?”
Lutei contra a premência de afundar os dentes no meu lábio inferior. A sala de aula ficou
repentinamente tão quieta que meus ouvidos zuniam. Os olhares de todos estavam fixos em
mim, dissecando todas as minhas pausas e movimentos. Eu ponderava sobre a relevância do
vinagre, mas minha atenção estava dividida.
Andrei soltou uma bufada. “Parece que ela está enjoada, senhor. Acha que a constituição
dela está prejudicada?”
Meu rosto ardia enquanto a classe ria com a cutucada. O diretor nem mesmo piscou na
direção deles, e definitivamente não me ofereceu nenhuma ajuda. Furiosa, comecei a
retorquir e fui prontamente cortada por Thomas, que se levantou com tanta rapidez que
derrubou sua cadeira.
“Já chega!” exigiu ele, com a voz mais fria do que a tempestade que assolava o exterior do
castelo. “A srta. Wadsworth é mais do que capaz. Não zombem dela.”
Se antes eu havia ficado mortificada, aquilo não era nada em comparação com o total
embaraço em que eu me afogava agora. Moldoveanu recuou, encarando Thomas como se um
lagarto de repente tivesse adquirido a habilidade de falar.
“Já chega, sr. Cresswell.” Ele apontou para a cadeira virada no chão. “Se não consegue ficar
sentado e quieto, então pedirei que saia da sala. Srta. Wadsworth, minha paciência está
acabando. O que poderia acontecer com um osso no vinagre?”
O sangue ainda corria na minha cabeça, mas eu estava com raiva demais para me importar
com isso. Ácido. Vinagre era um ácido. “Ficará mais fraco. Sabe-se que o ácido corrói o fosfato
de cálcio, o que também torna o osso mais flexível.”
Os lábios de Moldoveanu quase se torceram em um sorriso.
“Príncipe Nicolae, identifique quais juntas correlacionam-se a quais movimentos em
nossos corpos”, prosseguiu ele.
Voltei ao meu lugar, enfurecida porque Thomas havia mais uma vez me transformado em
um espetáculo diante de nossos colegas. Intencionalmente ou não, ele estava fazendo um
belo trabalho em prejudicar nossas chances no curso de avaliação. Durante o restante da aula,
mantive os olhos presos a minhas anotações, com medo da próxima tolice que Thomas
poderia fazer.
“Meu irmão me implorou para que eu falasse com você em nome dele.”
Daciana arrastou a cadeira da escrivaninha no meu quarto de dormir e colocou-a em
frente ao canapé. Anastasia haveria de se juntar a nós dentro de mais ou menos uma hora,
mas, por enquanto, éramos apenas Ileana, Daciana e eu.
Havia uma bandeja de comida intocada na nossa frente. Eu quase tinha perdido o apetite.
Fiz um movimento para que elas se sentassem no canapé e tombei na cadeira à frente. Eu não
queria tecer comentários sobre a minha frustração com Thomas, mas Daciana não aceitaria
meu silêncio.
“Ele está se sentindo péssimo. Eu realmente não acredito que ele pensou em como as
ações dele seriam vistas. Thomas vê o mundo em equações. Um problema para ele tem uma
solução. Ele não pensa em termos de emoções, mas ele está tentando. E está disposto a
aprender.”
Eu não me dei ao trabalho de ressaltar que, se ele estivesse tão interessado em aprender,
então ele teria tomado nota na primeira vez que tivéramos uma conversa sobre o seu
envolvimento em me informar o que eu deveria fazer. E então ele muito certamente não teria
feito aquela cena na aula de anatomia.
Em vez de expressar minha exasperação, eu disse simplesmente: “Eu preciso de um
tempo”.
“Consigo entender a sua necessidade. Eu nunca o vi assim tão... afetado antes. Tudo que
ele está fazendo é andar de um lado para o outro em seus aposentos. Você quer que eu
transmita uma mensagem a ele antes de eu ir embora?”
Balancei a cabeça em negativa. Eu realmente apreciava a tentativa de Daciana de
consertar nossa amizade, mas agora não era hora para isso. Eu não haveria de permitir que
questões externas afetassem o que eu viera fazer aqui: melhorar minhas habilidades forenses
e fazer por merecer um lugar na academia. Eu lidaria com distrações pessoais depois que
tivesse garantido meu futuro com uma daquelas duas vagas aqui; eu não sacrificaria nem a
mim nem a meus objetivos. Nem mesmo por Thomas. Isso não era algo que eu achava que
alguém deveria fazer, muito menos uma mulher. O parceiro certo apoiaria e entenderia tal
atitude, mesmo se ansiasse para que as coisas ficassem bem novamente.
Neste momento, eu precisava entender como nosso colega de classe havia perdido todo o
sangue de seu corpo. Como isso havia acontecido em uma hora. E como seu cadáver havia
sido jogado no meio do vilarejo sem nenhuma pista ou testemunha, embora eu supusesse que
o diretor provavelmente já havia feito essas perguntas ao inspecionar a cena do crime.
Eu odiava o fato de que meu tio não fazia parte deste caso. Eu teria estado bem ao lado
dele enquanto ele falasse com os investigadores, e não teria sido enviada de volta à academia
para ficar esperando. Até mesmo o inspetor William Blackburn, com seus muitos segredos,
havia me incluído na investigação durante os crimes do Estripador.
Ileana estava aninhada no colo de Daciana com as pálpebras semi-cerradas, enquanto
Daciana passava os dedos por seus cabelos. Elas falavam sobre o lugar ao qual Daciana viajaria
em seguida, que família ela visitaria. Suas vozes eram suaves, carinhosas, como se estivessem
marcadas por uma pontinha de tristeza com a ideia de não verem uma à outra por um tempo.
A distração delas permitiu que minha mente vagasse de volta ao que eu havia observado
no vilarejo. A forma como Wilhelm havia sido deixado lá. A falta de perturbação na neve ao
redor do corpo dele. Era como se ele tivesse sido jogado de uma janela próxima...
Eu pulei da cadeira e fiquei andando de um lado para o outro diante do fogo. Alguma
coisa se partia e se aglutinava dentro da minha cabeça, mas eu não conseguia entender os
pedaços que se juntavam.
“Está tudo bem?”, perguntou Daciana.
“Peço desculpas”, falei. “Só estou pensando.”
Ela sorriu e voltou a falar baixinho com Ileana.
Eu me lembrei da silhueta que achei que tivesse visto na janela acima do que havia se
tornado a cena de um crime. A veneziana que batera contra a parede, chamando a minha
atenção para cima. Era estranho que venezianas tivessem sido deixadas abertas durante a
tempestade. Menos estranho se aquele fosse, na verdade, o lugar de onde o corpo houvesse
sido jogado.
Alguém bateu à porta, alarmando a todas nós em nossos respectivos lugares, Ileana e
Daciana separaram-se rapidamente. Anastasia entrou como se estivesse dançando valsa,
acenando para Ileana e abrindo um largo sorriso para mim antes de inspecionar Daciana com
atenção. Eu não esperava que ela fosse aparecer tão cedo, embora eu estivesse aprendendo
rapidamente que Anastasia ditava seus próprios passos na dança da vida.
“Você é a irmã do bonitão?
Daciana estreitou os olhos. “Se você está se referindo a Thomas, então, sim. E você é...?
“Eu sou a moça que espera roubá-lo para si.” Anastasia jogou a cabeça para trás e riu.
“Estou brincando! Sua expressão foi maravilhosa.” Ela fez um movimento na minha direção.
“Sem querer ofendê-la, Audrey Rose.”
Daciana franziu os lábios. Eu só podia imaginar o que ela ansiava por dizer. Eu sabia quão
abalada eu havia ficado com a franqueza de Anastasia a princípio. Anastasia sabia o que
queria e não era tímida ao afirmá-lo. Um traço admirável para uma moça criada pelo estrito
diretor.
“Eu acho que descobri onde Wilhelm foi morto”, falei, na esperança de quebrar a tensão.
Rapidamente contei a elas sobre a veneziana, a janela aberta e a sombra da silhueta. Não
deixei nenhum detalhe de fora sobre o estado do corpo ou o único conjunto de pegadas que
dava para a viela adjacente. Como se quem quer que o tivesse jogado do edifício o tivesse
examinado antes de sair andando.
Anastasia havia ficado totalmente imóvel, Ileana tocou em uma cruz que ela havia puxado
de dentro de sua blusa bordada, e Daciana levantou-se e serviu-se de um pouco de vinho de
uma garrafa que ela havia trazido sorrateiramente para cá.
Assim que terminei de atualizá-las quanto aos fatos, Daciana colocou sua taça de lado, a
preocupação entalhada em seu cenho. “Se ele foi jogado de uma janela, alguns de seus ossos
não teriam sido fraturados?”
Encolhi um dos ombros. “Possivelmente. É algo a ser investigado mais a fundo, porém, eu
não vi nenhuma indicação inicial de ossos quebrados ou machucados. A queda não foi tão
alta assim, e se ele já estivesse morto...” Eu não terminei a declaração. Parecia que Ileana ia
vomitar.
“Bem, eu creio que alguém precisa descobrir quem é o proprietário daquela casa”, disse
Daciana. “Apesar de tudo, essa é uma pista muito intrigante. Vocês deveriam contar isso ao
diretor.”
Anastasia soltou uma bufada.
“Ela não deveria fazer uma coisa dessas. Deveríamos investigar isso por conta própria. Se
meu tio for informado a respeito das suspeitas, ele descobrirá os segredos e não os
partilhará.” Ela apertou minhas mãos nas suas. “Essa pode ser nossa oportunidade de mostrar
a ele quão valorosa você é. Te rog. Por favor, não conte a ele essa teoria. Deixe-me ajudá-la.
Então ele verá que as moças são capazes de tais feitos. Por favor.”
Engoli minha resposta inicial. Ela poderia muito bem estar certa. Se contássemos para
Moldoveanu, seríamos forçadas a ficar para trás enquanto ele prosseguiria com a
investigação. E então o que aconteceria? Ele não dividiria sequer o mínimo detalhe conosco.
Nem mesmo reconheceria nosso papel na ajuda com o caso. E depois havia a questão de não
termos permissão para deixar a academia; ele certamente usaria isso como desculpa para
fazer com que não avançássemos com ele.
“Por ora vamos guardar essas informações conosco”, falei. “Mas devemos planejar uma
investigação no vilarejo em breve.”
Daciana e Ileana trocaram olhares preocupados de relance, mas fingi não notar. Tanto eu
quanto Anastasia precisávamos disso.
Anastasia beijou minhas bochechas, sorrindo triunfante para Daciana. “Você não vai se
arrepender disso!”
Porém, enquanto eu dava boa-noite e me despedia de minhas amigas, desejando tudo de
bom a Daciana na próxima parada de sua grande viagem, eu não conseguia evitar o
sentimento de que Anastasia estava mortalmente errada.
18. O MELHOR MÉTODO PARA REMOVER SANGUE
Camere din turn
Aposentos da torre, Castelo de Bran
4 de dezembro de 1888
hamas que pareciam dragões rugiam contra a grade da lareira na pequena sala de
estar de meu dormitório vazio. Eu observei cada uma delas, meio que hipnotizada,
com meu tomo de medicina pressionado em minhas pernas, quase fazendo com que
elas formigassem. Em nossa parte da Romênia, havia dragões por todo canto. Nos candeeiros
por toda a extensão do castelo. Nas tapeçarias dos corredores. Nas esculturas do vilarejo e nas
insígnias das carruagens. Eu sabia que Dracul era traduzido como dragão, e presumia que as
imagens fossem simplesmente uma homenagem a dois temerosos líderes, Vlad II e Vlad III.
Fiz uma nota mental para perguntar ao professor Radu se isso também tinha alguma coisa
a ver com a misteriosa Ordem do Dragão. Talvez os dragões tivessem pistas. Eu não sabia ao
certo do quê, mas me parecia um bom caminho a ser investigado. Talvez a Ordem estivesse
por trás da morte de Wilhelm. Talvez a Ordem tivesse como alvo membros da nobreza ou de
famílias que não mais defendessem seus valores cristãos.
Suspirei. Isso era ir longe demais. Eu não sabia nem mesmo se a Ordem ainda existia.
Tudo talvez não passasse de rumores dos camponeses e histórias contadas para fazer com que
as pessoas se comportassem mesmo depois que seu amado — ainda que brutal — príncipe
tivesse perdido a cabeça para os turcos.
Mexi as pernas na esperança de recobrar a sensação nos dedos dos meus pés. Meu livro de
práticas mortuárias era do tamanho de um grande gato doméstico, mas era uma companhia
bem menos agradável do que a de um felino. Ele não ronronava e tampouco nos convidava de
forma desdenhosa a fazer um carinho atrás de suas orelhas. Em vez disso, o livro oferecia
informações e fotos que eu achava perturbadoras.
Os diagramas eram em preto e branco e mostravam exatamente como remover o sangue
do corpo e como costurar e fechar a boca — o que exigia uma ligadura do queixo pelas
gengivas e pelo septo — para propósitos funerários. Uma ilustração até mesmo aconselhava o
uso de geleia de petróleo para evitar que as pálpebras se abrissem.
Os familiares, sofrendo o luto, provavelmente teriam um colapso diante da visão dos
olhos ou dos maxilares de seus entes queridos se abrindo enquanto o sacerdote lhes fazia a
passagem da morte para o céu. Eu mesma não gostaria de testemunhar tal coisa. Uma língua
seca seria algo horrendo, uma lesma escura deixada por horas sob o sol do deserto. Era
melhor deixar isso para a imaginação.
Eu havia visto cadáveres o suficiente no laboratório de meu tio para saber que a maioria
das pessoas preferiria ser poupada de tais imagens, especialmente quando se tratava de
pessoas que elas amavam. Parei de me demorar em pensamentos sobre aqueles que eu havia
perdido, passando para o próximo capítulo do livro. As páginas eram grossas e ásperas nas
bordas. Era um belo tomo, apesar do assunto que ele abordava.
Espontaneamente, imaginei Thomas sentado comigo, ressaltando detalhes que a maioria
nunca teria notado enquanto estudávamos os livros. Embora eu tivesse me permitido lançar
umas olhadelas na direção dele, eu o havia evitado na aula de folclore do professor Radu,
assim como durante o exercício de anatomia de Moldoveanu. Ele não parecia estar bem em
nenhuma dessas aulas. Dispensando essa linha de pensamento, voltei a me concentrar no
livro. Eu não tinha tanta familiaridade com as práticas mortuárias como tinha com autópsias,
então peguei o livro emprestado de uma das bibliotecas no caminho para os meus aposentos
depois da aula.
Segundo os agentes funerários, a inserção de uma cânula — um longo tubo — na artéria
carótida para forçar os líquidos a saírem por meio da gravidade era a melhor forma de
remover sangue e outros fluidos corporais.
Os agentes funerários então moviam os fluidos para fora, massageando os pés dos
falecidos na direção dos corações que não mais batiam. Parecia-me um tremendo de um
trabalho a ser realizado enquanto as pessoas passeavam de um lado para o outro em uma
tarde cheia nas ruas de Braşov. Eu poderia apostar que teria havido grande quantidade de
perturbação na neve em volta do corpo de Wilhelm. Com certeza um pouco de fluido depois
da extração do sangue. O corpo precisaria ter sido movido depois desse procedimento.
Simplesmente, não havia maneira pela qual ele poderia ter passado por tudo isso no local
onde fora encontrado. Eu ainda acreditava piamente que a casa com a veneziana solta
poderia conter pistas.
Eu estava ficando cada vez mais convencida de que práticas de necropsia haviam sido
usadas para drenar o sangue dele; contudo, isso não respondia à pergunta de como ele havia
morrido. Se ele tivesse sido assassinado, teria algum tipo de ferimento externo. Um
estrangulamento teria deixado sinais óbvios, como hemorragia petequial no branco dos olhos
e descoloração em volta do pescoço. Seu corpo não tinha nada disso. Com exceção das
supostas marcas de mordida, eu não conseguia me lembrar de nenhuma evidência concreta
que mostrasse que ele havia sido morto.
Eu tinha minhas dúvidas de que ele teria ficado ali parado, sem resistir, e permitido que
alguém drenasse o sangue de seu corpo, então as marcas de “mordida” provavelmente não
eram a causa de sua morte. Não me parecia fora de questão acreditar que poderiam ter dado
opiáceos a ele. Talvez aquele tipo de toxina tivesse causado sua erupção cutânea.
Enquanto minha mente voltava a vagar sobre a estranheza do corpo do meu colega de
classe, meu coração exigia que Thomas viesse discutir isso comigo imediatamente. Falei para
o meu coração esquecer sua súplica.
Eu resolveria esse mistério sozinha. Mesmo sabendo que eu era capaz de realizar essa
tarefa, não conseguia negar o vazio que preenchia o espaço ao meu redor. Daciana já estava
viajando pelo continente, e Anastasia não podia vir aos meus aposentos por causa de um livro
que ela estava estudando. Ela disse que o tal livro poderia ser útil para o caso de Wilhelm.
Ileana estava ocupada com suas tarefas, e eu me recusava a colocá-la em uma posição de
perigo só porque eu me sentia solitária.
Onde está você quando mais preciso de sua companhia, prima?
Eu ainda esperava uma resposta à carta que enviei a Liza, na esperança de que ela pudesse
me oferecer algum conselho, muito necessário, sobre a minha questão com Thomas. O
romance era para ela o que a ciência forense era para mim, e eu desejava que ela estivesse
aqui agora para me ajudar a navegar nessa tormenta de emoções.
Eu odiava me sentir assim tão distraída durante um momento crucial. Por mais que eu
não parasse de ordenar a meu cérebro que formulasse teorias científicas, ele teimosamente
retornava a Thomas e à inquietação que eu sentia. Eu precisava resolver a situação, mesmo
que fosse apenas para que eu pudesse me concentrar. E eu sabia que esse não era exatamente
o verdadeiro porquê de eu querer resolver tal questão. Eu sentia falta dele. Até mesmo
quando eu ansiava por estrangulá-lo. Eu não gostava nadinha disso, mas era bem mais
preferível do que os outros pensamentos invasivos que eu vinha tendo.
Como se estivessem esperando por uma convocação, meus sentidos foram dominados por
lembranças do mais hediondo assassinato do Estripador. A forma como o corpo da srta. Mary
Jane Kelly havia sido dilacerado... Eu me interrompi bem nesse ponto.
Fechei o livro e me dirigi para a minha cama. Amanhã eu acordaria e começaria de novo,
renovada e bem-disposta. Amanhã eu lidaria com as consequências de nossa briga. Por ora,
cuidaria de minhas feridas. Thomas estava certo: eu precisava curar a mim mesma antes que
pudesse lidar com qualquer outra coisa — ou qualquer outra pessoa.
Virei as cobertas, prestes a deslizar para dentro de sua quentura, quando alguém bateu à
porta de meu quarto. Fiquei sem fôlego. Se o sr. Thomas Ridículo Cresswell estivesse me
visitando a essa hora indecente, especialmente depois de seu comportamento repreensível...
Com meu coração traiçoeiramente agitado, abri a porta com tudo, a reprovação morrendo
na minha língua.
“Oh! Você não é de jeito nenhum quem eu achava que fosse!”
Anastasia estava vestida totalmente de preto e havia uma inclinação diabólica em seus
lábios. “Diga-me, quem você achou que estaria aqui a essa hora?” Ela segurou minhas mãos e
nos girou pelos arredores em uma valsa desajeitada. “Certamente não o bonitão do sr.
Cresswell... hummm? A intriga! O escândalo! Eu devo admitir que invejo sua vida secreta.”
“Anastasia, você só pode estar brincando! São quase dez horas da noite!” O sorriso que
acompanhou minha fala não foi nada favorável. “O que diabos você está fazendo fora da
cama?” Analisei suas roupas mais uma vez, lembrando-me de um tempo em que eu também
trajei um vestido de luto. “Para falar a verdade, parece que eu deveria perguntar aonde você
está planejando ir às escondidas, não?”
“Nós estamos prestes a investigar a cena da morte de Wilhelm.” Ela entrou aos pulinhos
em meu dormitório e tirou umas poucas vestimentas escuras de meu baú. “Ande logo. A lua
está cheia e o céu está praticamente límpido. Temos que ir até Braşov esta noite. Meu tio me
disse que mandou chamar guardas reais; eles chegarão amanhã, e andar por aí
sorrateiramente será difícil com a presença deles.” Ela deu uma olhada para mim por cima do
ombro. “Você ainda está interessada em procurar aquela casa, não está?”
“É claro que estou.” Assenti, tentando não considerar as criaturas no bosque. Monstros
eram somente tão reais quanto nossas imaginações. E a minha estava decidida a povoar o
mundo com o sobrenatural. “Não deveríamos esperar até a luz do dia? Pode haver lobos
caçando lá fora.”
Anastasia bufou. “O professor Radu está apenas enchendo sua cabeça com preocupações.
Mas se você estiver com muito medo...” Ela deixou que a provocação e o desafio pairassem
entre nós. Balancei a cabeça em negativa, e os olhos dela encheram-se de orgulho.
“Extraordinar!” Ela jogou as roupas escuras para mim. “Se tivermos sorte, talvez nos
deparemos com o príncipe imortal. Um passeio à meia-noite com o encantador Drácula me
parece um deleite.”
“Um deleite mórbido, você quer dizer.”
Coloquei meu vestido preto e prendi um manto com forro de pele em volta dos meus
ombros. Antes de partirmos, apanhei um alfinete de chapéu na minha penteadeira e prendi-o
em meus cabelos. Anastasia sorriu para mim, confusa, mas não me fez perguntas. Ainda bem.
Eu não queria dizer isso em voz alta, mas eu definitivamente não desejava que nos
deparássemos com alguém sedento por nosso sangue.
Na verdade, eu preferiria nunca colocar os olhos no Príncipe Drácula.
Anastasia estava certa; o céu estava claro, pela primeira vez sem nuvens ou neve, e a lua se
encontrava tão brilhante que não precisaríamos de lamparinas ou lampiões. O luar reluzia no
cobertor de neve, cintilante, com alguns pontinhos de luz.
A temperatura, por outro lado, estava ainda mais fria do que o laboratório no porão de
meu tio, onde inspecionávamos os cadáveres. Nos apressamos ao longo do caminho
desgastado que conectava a academia ao vilarejo lá embaixo; nossa procissão seguia silenciosa
na maior parte do tempo, exceto pelos ocasionais sons da natureza, de nossas saias se
arrastando pela neve acumulada, e de nossas respirações fumegando entre baforadas.
Mantínhamos a caminhada em um ritmo brutal, na esperança de nos afastarmos do castelo o
mais rápido possível.
Sombras moviam-se acima de nossas cabeças enquanto os galhos das árvores rangiam e
gemiam. Tentei ignorar os pelos arrepiados ao longo do meu pescoço e a sensação de estar
sendo atentamente monitorada. Não havia nenhum lobo ali. Nem éramos seguidas por
caçadores imortais e ferozes. Ninguém para deleitar-se em mutilar nossas carnes e rasgá-las
em pedaços irreconhecíveis. O sangue agitava-se na minha cabeça.
Pela segunda vez naquela noite, uma lembrança horrenda do cadáver da srta. Mary Jane
Kelly passou pela minha mente, como acontecia com frequência quando eu imaginava algo
realmente brutal. Jack, o Estripador havia destruído o corpo dela de tal maneira que seus
restos mal lembravam algo humano.
Fechei os olhos por um momento, ordenando a mim mesma que permanecesse calma e
firme, mas a sensação de estar sendo observada persistia. A floresta era encantadora durante a
luz do dia, mas, à noite, era assustadora e traiçoeira. Eu jurei que nunca deixaria meus
aposentos rumo à escuridão novamente.
Lobisomens e vampiros não existem. Não há ninguém caçando você... Vlad Drácula está morto.
Jack, o Estripador também está morto. Não há nenhum...
Um galho estalou em algum lugar ali perto, caindo com um baque oco no chão, e meu
corpo inteiro ficou entorpecido. Tanto eu quanto Anastasia tivemos um sobressalto, e
seguramo-nos uma à outra como se pudéssemos ser dilaceradas por uma força malévola.
Ficamos ouvindo em silêncio, esforçando-nos para ver se captávamos algum outro som. Tudo
estava calmo. Exceto meu coração, que galopava como se estivesse sendo perseguido por
criaturas sobrenaturais.
“A floresta é tão perversa quanto o Drácula”, sussurrou Anastasia. “Eu juro que há alguma
coisa aqui fora. Você está sentindo?”
Ainda bem que a minha mente não era a única a conjurar imagens de monstros famintos
que nos seguiam até o vilarejo. A pele na minha nuca formigava conforme o vento ficava mais
intenso.
“Eu li estudos que dizem que os instintos humanos ficam ampliados em momentos de
pressão”, falei. “Nós nos sintonizamos com o mundo natural para sobrevivermos. Tenho
certeza de que estamos apenas sendo bobas agora, embora as lições de Radu pareçam muito
mais plausíveis sob um manto de escuridão.”
Notei que minha amiga não fez mais comentários, mas ela também não me soltou até
chegarmos em segurança a Braşov. Conforme eu havia esperado, o vilarejo estava silencioso,
com todos os moradores dormindo profundamente dentro de suas casas pintadas em tons
pastel. Um uivo solitário ecoou ao longe, sua nota fúnebre encontrando um outro cantor
mais adiante. Logo um coro de lobos perturbava o silêncio da noite.
Eu puxei para cima o capuz de meu manto e olhei de relance para o castelo que mantinha
guarda acima de nós, escuro e taciturno sob a luz prateada da lua. Alguma coisa estava ali
fora, à espera. Eu podia sentir sua presença. Mas o que estaria nos caçando? Homem ou fera?
Antes que eu pudesse me perder em preocupações, conduzi Anastasia até o local onde o
corpo de Wilhelm havia sido descartado.
“Ali.” Apontei para a casa adjacente à cena do assassinato e para a janela, cujas venezianas
estavam agora bem fechadas e em seu lugar. “Eu juro que a veneziana estava solta da última
vez que estive aqui.”
Anastasia encrespou os lábios e prestou atenção na casa escura. Eu me senti ridícula, ali
parada no meio da noite, enquanto a realidade me atingia em cheio. Eu não podia ter certeza
de que a veneziana realmente estivera solta, nem de que eu havia visto uma silhueta
observando a multidão da janela. Até onde eu sabia, poderia ter sido mais um fantasma criado
pela minha imaginação. Parecia que a histeria era o gatilho para cada uma das minhas crises.
“Eu peço desculpas”, falei, fazendo um movimento na direção da construção
perfeitamente comum. “Parece que eu me enganei, no fim das contas. Viemos até aqui para
nada.”
“Nós podemos muito bem nos certificar de que não há nada a ser visto”, disse Anastasia,
puxando-me em direção à porta da frente. “Descreva o que aconteceu novamente. Talvez haja
algum ponto de partida ali.”
Uma ideia lentamente tomou forma enquanto eu fixava minha atenção na porta, a cabeça
inclinada para um dos lados. Tirei o alfinete de chapéu dos meus cabelos, sabendo que eu
estava prestes a cruzar uma fronteira moral que nunca antes eu havia considerado cruzar.
Mas Anastasia estava certa; tínhamos vindo até aqui, havíamos nos arriscado a incorrer na ira
de Moldoveanu, colocando em risco meu lugar na academia, e ainda teríamos que voltar para
os nossos aposentos no castelo depois de evitar lobos e diretores rosnantes.
Mas, fossem quais fossem as consequências, eu não poderia voltar para a academia sem
saber. Meu coração estava acelerado, dessa vez não por medo, mas pela animação que eu
sentia. O que era, de fato, bem perturbador.
Dei um passo para a frente e segurei a maçaneta com uma das mãos, enfiando o alfinete
na fechadura, forçando-o e tentando girá-lo até que ouvi um belo clique.
“Audrey Rose! O que você está fazendo?!”, disse Anastasia com a voz escandalizada, o
olhar atento à nossa volta. “As pessoas provavelmente estão dormindo aí dentro!”
“É verdade. Ou pode ser que a casa esteja abandonada.”
Eu agradeci em silêncio ao meu pai. Quando estivera tomado pelo láudano no ano
passado, ele com frequência perdia as chaves, forçando-me a aprender a arte de abrir
fechaduras. Antes dessa noite, fazia um tempinho que eu não pensava em usar meu alfinete
de chapéu para tais propósitos. Coloquei o objeto de volta nos meus cabelos e fiz uma pausa,
esperando ser descoberta enquanto a pulsação rugia dentro das minhas veias.
De uma forma ou de outra, resolveríamos pelo menos um mistério esta noite. Eu tinha
visto alguém olhando fixamente por aquela janela... ou não. O que significava que havia
pistas a serem encontradas... ou não.
Em todo caso, eu não podia mais continuar correndo das sombras. Orientei meu corpo a
relaxar. Estava na hora de abraçar a escuridão e me tornar mais temível do que qualquer
príncipe vampiro que estivesse caçando na noite. Mesmo se isso significasse que eu teria que
sacrificar um pouco da minha alma e dos meus princípios.
“Só há uma maneira de ter certeza”, sussurrei, antes de cruzar o limiar nas pontas dos pés
e desaparecer no escuro.
19. UMA DESCOBERTA MUITO CURIOSA
Locuință necunoscută
Residência desconhecida, Braşov
4 De dezembro de 1888
ão havia nenhuma lareira acesa dentro da casa minúscula, e o ar estava quase tão
gélido quanto do lado de fora. O gelo subia pelos vidros da janela e escalava minha
espinha enquanto eu seguia em direção ao solitário raio de luar que entrava na casa.
Até mesmo na quase completa escuridão eu podia ver que a moradia estava arruinada. Havia
uma cadeira tombada, papéis espalhados pelos arredores, gavetas reviradas. Parecia que
alguém, ou mais de uma pessoa, havia revirado o lugar.
Anastasia inspirou o ar com pungência atrás de mim.
“Veja! Aquilo é... sânge?”
Eu me virei e encarei a grande mancha cor de ferrugem no tapete. Calafrios desceram
lentamente pelo meu corpo. Eu tive a horrível sensação de estarmos paradas sobre o exato
lugar de onde o corpo de Wilhelm havia sido removido à força. Meu coração batia com o
dobro da velocidade normal, mas forcei-me a seguir investigando como se eu fosse Thomas
Cresswell: fria, objetiva e capaz de interpretar as pistas deixadas para trás.
“É sangue?”, Anastasia perguntou novamente. “Pode ser que eu vomite se for sangue.”
Antes que eu pudesse responder, minha atenção pousou em um jarro quebrado. Com
cuidado, peguei um caco do vidro e pus o dedo sobre uma mancha de um rubro escuro.
Esfreguei-a, notando a viscosidade. Minha pulsação latejava por todo o corpo; ainda assim,
provei o líquido seco, bem confiante do que haveria de encontrar. Anastasia curvou os lábios
quando abri um grande sorriso para ela.
“É algum tipo de suco”, limpei a mão em meu manto, “e não sangue.”
Minha amiga ainda me encarava como se eu tivesse ultrapassado algum limite indecente
demais até mesmo para fazer algum comentário a respeito. Procurei em mim mesma e
encontrei aquela excitação ainda sob a superfície, como uma corrente elétrica fazendo com
que eu me sentisse mais viva do que já havia me sentido em eras.
“O que você acha que aconteceu aqui?”
Dei uma olhada ao redor do local novamente. “É difícil inferir algo com certeza até que
encontremos alguma fonte de luz.”
Puxei as cortinas da janela, permitindo que o luar penetrasse na casa. Anastasia cruzou a
sala rapidamente e pegou uma lamparina a óleo que não tinha sido destruída no caos. Com
um rápido sibilar, a luz amarela preencheu o espaço, e uma história trágica se desdobrou
diante de nós.
Garrafas de bebidas alcoólicas enchiam o chão na minúscula área da cozinha, separada da
sala principal. Algumas estavam quebradas e todas estavam vazias. A julgar pela falta de odor,
nada havia vazado das garrafas, o que me levou a deduzir que alguém andara bebendo, e
muito.
Em uma segunda inspeção, a sala que eu achei que tivesse sido saqueada provavelmente só
tinha sido revirada por quem quer que houvesse consumido desenfreadamente todas aquelas
bebidas alcoólicas. Talvez a pessoa estivesse procurando mais uma garrafa para beber e ficara
enraivecida ao não encontrar nenhuma. Anastasia localizou uma outra lamparina antes de
inspecionar os outros cômodos.
Peguei uma fotografia, surpresa por encontrar tal item em uma casa como esta, e ofeguei.
Na foto, a mesma moça do desenho na loja de vestidos, dada como desaparecida, sorria para
um bebê. O marido dela posava orgulhosamente atrás de ambos. Será que ela estivera
bebendo todo aquele álcool? E se ela estivesse embriagada e caminhando pelo bosque
sozinha...
Anastasia voltou, brandindo um livro. A cruz na capa indicava se tratar de um tomo
religioso. “Não há ninguém no quarto, mas isso me pareceu intrigante.”
“Você não vai levar isso, vai?”
Olhei de relance para o livro enquanto ela folheava as páginas; provavelmente se tratava
de uma espécie de texto sagrado. Os olhos de Anastasia se arregalaram enquanto ela
balançava a cabeça. Eu coloquei a fotografia de volta em seu devido lugar e gesticulei em
direção à porta.
“Nós deveríamos ir embora”, falei. “Foi errado entrar aqui assim, eu não creio que este
lugar tenha algo a ver com a morte de Wilhelm.”
“Ou talvez tenha a ver, sim” Anastasia ergueu o livro novamente. “Eu acabei de me
lembrar onde foi que vi esse símbolo antes.”
ăneşti girou nos calcanhares e eu comecei a seguir em frente, mas Ileana bloqueou
minha rota de fuga enquanto o diretor descia pelo corredor, como uma sombra atrás
do jovem guarda.
“Não faça isso”, ela sussurrou, mantendo um braço estirado. “Moldoveanu não pode saber
que estávamos ouvindo a conversa deles.”
“Como posso fingir que nada aconteceu? Eles estavam falando sobre Wilhelm Aldea. Por
qual outro motivo a guarda real estaria aqui?” Minha mente ficou a mil com os pedacinhos de
informação que eu havia ouvido. Se os membros da família real haviam recebido ameaças,
isso explicaria o medo que Nicolae tinha mostrado depois de descobrir que o sangue de seu
primo havia sido drenado. Talvez outros membros da nobreza houvessem recebido ameaças
similares. O que fazia com que eu me perguntasse do que mais o príncipe poderia saber ou
suspeitar. “Se alguém assassinou Wilhelm, o príncipe Nicolae pode ser o próximo.”
“Você não sabe disso. Talvez ele estivesse falando sobre alguma outra pessoa.” Ileana
estreitou os lábios, como se impedisse a si mesma de dizer a coisa errada. “O guarda pode
simplesmente estar aqui porque Moldoveanu é o médico legista oficial da coroa.”
“Ele é? Como ele consegue ser o diretor da academia e, ao mesmo tempo, trabalhar para a
família real?”
Ileana deu de ombros. “Tudo que eu sei é que se Moldoveanu descobrir que nós o
estávamos espionando, essa história vai acabar muito mal. Para nós duas ou somente para
mim. Eu não posso me dar ao luxo de perder este emprego. Eu tenho uma família da qual
cuidar. Meus irmãos precisam de mim.”
Se existisse uma ameaça verdadeira para a academia ou para os alunos, o diretor não tinha
o direito de esconder essa informação. Confrontá-lo seria a coisa certa a fazer. Exceto que...
Meu foco voltou-se para a expressão de súplica no rosto de Ileana. A preocupação estava
entalhada em suas feições pétreas.
Eu suspirei. “Certo. Não contarei a ninguém sobre o que ouvimos.” Ileana apertou minha
mão uma vez e começou a caminhar pelo corredor secreto. Esperei um pouco antes de seguir
em frente. “Mas isso não quer dizer que eu não vá tentar descobrir por que Dăneşti está aqui.
E sobre que livro ele estava falando. Você ouviu alguma coisa sobre as câmaras perigosas que
ele mencionou? Ou sobre qualquer câmara que poderia precisar ser desarmada?”
Ela voltou a cabeça com tudo. “Você reconheceu o guarda?”
“Thomas e eu tivemos o prazer de conhecê-lo no trem.” Fiquei hesitante, espiando pela
tapeçaria e verificando o corredor para ter certeza de que ambos os homens tinham ido
embora. “Ele removeu o corpo de um homem que havia sido assassinado ali. Nós oferecemos
ajuda, mas ele não estava atrás de nossos serviços em particular. Bem, Thomas ofereceu
ajuda. Mas ele parecia estar bastante irritado.”
Ileana me encarou por um instante, pasmada. “Minha presença é necessária nos níveis
inferiores. O necrotério principal também fica naquele andar.” Ela foi abalada por um tremor.
“Amanhã tentarei encontrar você na sua sala para o café da manhã.” Ela ergueu o queixo na
direção do corredor, com a bandeja fazendo barulho em suas mãos. “Veja se há alguém antes
de entrar aí. Ah”, ela hesitou por um instante, “se você optar por ir até o necrotério a essa
hora, deve fazer isso sozinha. Ninguém vai até lá depois que escurece. Talvez você encontre
algumas respostas.”
Antes que eu tivesse tempo de responder, Ileana desceu correndo o corredor secreto e
virou em uma esquina, desaparecendo de vista. Esfreguei minhas têmporas. Esses tinham
sido os dias mais estranhos da minha vida. Dois assassinatos bastamente diferentes e com a
promessa de mais assassinatos a caminho, além de todas as intrigas do castelo. Eu
sinceramente esperava que as próximas semanas fossem ser mais calmas, embora eu
duvidasse que esse seria o caso, já que provavelmente um assassino andava à espreita nos
arredores da academia.
Censurei a mim mesma com severidade. Não fora exatamente isso o que Dăneşti havia
dito.
Verifiquei mais uma vez o buraco na tapeçaria antes de entrar de fininho no corredor,
conforme minha mente girava com novas informações e perguntas. Qual seria toda a verdade
por trás do que Dăneşti e Moldoveanu estavam discutindo? Depois da minha onda inicial de
adrenalina, me dei conta de que havia presumido que eles estivessem falando de Wilhelm.
Em momento algum eles haviam mencionado a vítima de assassinato pelo nome. Eu não
conseguia imaginar um outro corpo sem sangue que tivesse deixado os aldeões preocupados.
E, depois, o estranho assassinato no trem que se parecia com aquele do vilarejo...
Parei abruptamente, com uma ideia se erguendo por entre os recônditos de meu cérebro e
tomando forma. Será que Dăneşti havia trazido a vítima do trem até aqui para ser estudada?
Isso faria sentido, pois aonde mais o guarda real levaria um cadáver que precisava de uma
análise forense? Com certeza a uma das mais prestigiadas academias de toda a Europa.
Academia esta que ficava apenas a meio dia de distância de carruagem da cena do crime. A
academia onde trabalhava o médico-legista oficial da coroa.
Se o guarda estava envolvido com essa questão, havia uma possibilidade de que a vítima
também estivesse ligada à coroa de alguma forma. Talvez fosse por esse motivo que ele não
havia deixado o corpo na cena do crime. Eu não ouvira nenhum rumor sobre o assassinato no
trem, o que me levava a acreditar que a família real não havia revelado ao público a
identidade do indivíduo.
Os jornais teriam soltado essas informações de forma explosiva com suas trombetas
manchadas de tinta. Será que isso queria dizer que Wilhelm e a primeira vítima estavam
viajando juntos? Eu imaginava que fosse possível, embora o método de assassinato fosse
significativamente diferente, mas, no fim das contas, poderia haver um elo entre os dois
homens.
Meu coração batia freneticamente contra sua jaula de ossos. Eu não sabia ao certo como
tudo isso estava conectado, mas eu sabia em meu interior que essa conexão existia. De
alguma forma. Três assassinatos. Dois métodos não relacionados entre si. Ou será que o
método de assassinato havia evoluído com a prática, desde aquela primeira vítima que chegou
às manchetes?
Meu tio tinha um jeito estranho de se colocar na mente de um assassino, e eu tentava
emular sua metodologia. Uma vítima fora posicionada e arranjada como se fosse um vampiro.
A segunda havia sido assassinada como se por um vampiro. Por quê?
Se eu pudesse examinar o corpo do trem, talvez soubesse mais a respeito disso. Será que
foi por esse motivo que Ileana havia me dito onde ficava o necrotério? Graças às fofocas, ela
sabia de segredos que o castelo guardava firmemente... como quem estava lá esperando ser
aberto e inspecionado em busca de pistas.
Ileana disse que o necrotério estaria vazio, mas se o diretor ou Dăneşti se deparassem
comigo, minhas perspectivas de terminar este curso poderiam ser arruinadas. Eu deveria
voltar direto para os meus aposentos e estudar para as aulas de amanhã.
A indecisão brincava com as minhas emoções, tentando-me e me provocando para que eu
escolhesse outro caminho. Eu voltei a pensar em minha conversa anterior com Ileana, sobre
nossos amanhãs nunca estarem garantidos. Nós realmente não sabíamos que escolhas
poderiam surgir em nossos momentos. Que oportunidades poderiam vir em nossa direção.
Eu me encontrava caminhando diligentemente em uma direção que não levaria ao meu
quarto.
Os cadáveres eram mantidos em dois lugares dos quais eu tinha conhecimento: um deles
era o necrotério que ficava no nível inferior, como Ileana havia dito, e o outro era na torre,
próximo aos meus aposentos. Eu daria uma olhada rápida dentro de cada gaveta mortuária e
veria se estava certa quanto ao fato de a vítima do trem estar ali. E então eu decidiria o que
fazer.
Eu caminhava rapidamente, com o queixo erguido, na esperança de parecer que eu estava
em uma missão aprovada pelos funcionários do castelo. Eu tinha a sensação de que, se eu
parecesse tão culpada quanto me sentia por dentro, minha aventura audaz terminaria antes
mesmo de alçar voo.
Eu não podia, em sã consciência, ficar sentada e ser uma participante passiva na minha
vida. Se um assassino andava rondando os corredores da Academia de Medicina e Ciências
Forenses, eu não esperaria até que houvesse mais um corpo a ser inspecionado. Se o assassino
estivesse atrás da linhagem do Empalador, o príncipe Nicolae poderia ser o próximo.
Parei de repente, ofegante. Tinha que ser isso. A ironia de alguém caçando o sangue de
um homem que se supunha bebê-lo era incrível. Mas fazia sentido. Eu continuei descendo
pelo corredor, a mente a mil com tantos pensamentos contidos nela. Eu desejava que Thomas
não houvesse complicado a nossa amizade. Eu queria partilhar minhas teorias com ele,
conversar sobre elas.
Fiz uma pausa novamente, considerando minhas opções. Talvez eu devesse falar com
Thomas agora e pedir desculpas pela maneira como eu reagira. Então nós poderíamos entrar
sorrateiramente no necrotério e... Segurei minhas saias e continuei seguindo em frente. Eu
iria até o necrotério sozinha, e só depois partilharia minhas descobertas com Thomas. Eu
precisava saber que era capaz de lidar com o fato de estar perto dos mortos sem companhia.
Um lampejo de movimento chamou a minha atenção e eu me virei, com uma explicação
já se formando na minha língua, e me deparei com um corredor vazio. Nem uma única coisa
fora do lugar. Esperei e prendi a respiração, certa de que se alguém houvesse entrado
furtivamente em uma alcova, com certeza faria algum tipo de som que me alertaria quanto à
sua presença. Nada.
Inspirei profundamente e depois soltei o ar, mas isso não fez com que minha pulsação
diminuísse. Eu estava vendo coisas que não existiam novamente. Eu me amaldiçoei pelas
assombrações do meu passado, desprezando a mim mesma por ter tanta dificuldade em
separar a fantasia da realidade. Ninguém estava me perseguindo. Nenhum experimento
científico estava sendo realizado em mulheres assassinadas. Esta não era uma viela arenosa
em Whitechapel, cheia da música dissonante dos pubs ali perto. Não havia nenhuma silhueta
encapotada em um manto deslizando pela noite.
Se eu continuasse repetindo essas coisas para me reconfortar, eu acabaria incorporando-
as à minha memória celular. Passaram-se apenas umas poucas semanas desde que meu
mundo fora estilhaçado. Eu ainda estava me curando. Eu conseguiria passar por isso. Apenas
precisava de tempo.
Eu me virei, meio que esperando ficar cara a cara com o que quer que eu achava que
tivesse visto, mas o corredor branco ainda estava mortalmente silencioso, exceto pelo som
dos meus próprios passos, agora apressados, na madeira do assoalho. Eu me movia tão
rapidamente quanto me atrevia a fazê-lo, atiçada pelos candelabros que apontavam seus
dedos luminosos para mim como se estivessem me acusando de alguma transgressão.
Cheguei até o fim do próximo corredor e parei diante de uma espessa porta de carvalho
sinalizada com uma placa onde se lia MORGĂ. Não havia janela nem qualquer outra forma
de espiar ali dentro e ver se o necrotério estava vazio. Eu teria que me arriscar. Minha
respiração acelerou-se enquanto eu esticava a mão para a maçaneta, e então eu recolhi os
dedos, como se tivesse sido picada por algo. A lembrança dos sussurros de máquinas movidas
a vapor me assombrava. Porém, eu não ouvia nada girando nem se revolvendo atrás dessa
porta. Ouvi de novo mesmo assim. Eu precisava ter certeza.
O silêncio era sufocante; nenhum som podia ser ouvido. Inspirei o ar pelo nariz, exalei-o
pela boca, permitindo que meu peito subisse e descesse em um ritmo constante. Eu era uma
estudante aqui na academia. Se houvesse alguém no necrotério, eu poderia inventar um
motivo válido para entrar nessa sala. Não era como se tivessem nos dito que só poderíamos
entrar aqui durante a luz do dia e acompanhados de um professor.
Com isso em mente, me preparei. Essa não era a casa de meu pai, onde eu tinha que andar
nas pontas dos pés em meio a salas proibidas. Não era como se eu fosse realizar uma autópsia
neste momento.
Fechei a mão ao redor da maçaneta, sentindo o aço frio sob a proteção das minhas luvas
finas. Lembrei a mim mesma de que, quanto mais cedo eu acabasse com isso, mais cedo eu
poderia ir atrás de Thomas. Considerando tudo, virei a maçaneta e segui adiante aos
tropeços, enquanto a porta se abria do lado oposto. Meu coração quase parou. Olhei de
relance para o chão, esquecendo-me de esconder o tremor enquanto me preparava para a ira
do diretor Moldoveanu.
“Eu só ia catalogar...”, comecei a dizer, e então olhei para cima e me deparei com Ileana,
que tinha os olhos arregalados. O diretor, ainda bem, não estava em nenhum lugar ali por
perto. A mentira na minha língua desintegrou-se. “O quê...? Eu achei que você estivesse se
dirigindo até as cozinhas...”
“Eu... Eu tenho que ir. Conversamos depois?”
Sem falar mais nenhuma palavra, ela saiu correndo pelo corredor, sem sequer olhar para
trás. Fiquei ali parada com a mão junto ao peito, recompondo-me. Eu odiava Moldoveanu por
forçá-la a cuidar de uma sala cheia de cadáveres quando ela claramente se sentia
desconfortável perto deles. Ileana fora criada no vilarejo e provavelmente crescera com suas
superstições em relação aos mortos.
Forçando-me a colocar de lado a raiva que eu sentia do diretor, segurei a maçaneta de
novo, recusando-me a sair depois de ter chegado tão longe, e entrei.
21. REABRINDO VELHAS FERIDAS
Morgă
Necrotério, Castelo de Bran
5 de dezembro de 1888
lhei ao redor com cautela. Uma parede de gavetas mortuárias de metal e três longas
mesas me saudaram. Candeeiros a gás sibilavam baixinho perante a intrusão,
embora um deles estivesse apagado. Uma mesa de exames continha um corpo,
coberto da cabeça aos pés por uma mortalha de lona. Ignorei o formigamento que descia por
minha coluna, causado pelo medo. Eu não podia permitir que outro acesso de ansiedade
interferisse minha missão.
Notei as baforadas da minha respiração formarem nuvens no ar congelante, e fiquei
aliviada ao ver que a sala não continha qualquer ser vivo. Eu me movi em direção ao cadáver
tão rapidamente quanto minhas saias me permitiam. Eu esperava que fosse a vítima do trem.
Tê-lo encontrado assim tão rápido tornaria as coisas infinitamente mais fáceis.
Fiquei parada acima da mortalha, repentinamente hesitante para desmascarar quem quer
que estivesse ali. Uma sensação familiar de temor pesava tanto em meus pensamentos quanto
em meus braços. Eu poderia ter jurado que o lençol havia se movido. Apenas uma vez. Tinha
sido quase imperceptível, mas era um movimento mesmo assim. Uma lembrança começou a
romper a barreira que eu havia construído em torno dela, mas forcei-a a voltar. Não aqui.
Não quando o relógio estava trabalhando contra mim.
O laboratório de Jack, o Estripador estava destruído. Cadáveres não voltavam à vida.
Minha mente maldita um dia entenderia esse fato.
Sem desperdiçar mais do meu tempo precioso com coisas absurdas, eu arranquei a
mortalha, e o mundo se partiu debaixo de meus pés. Meus joelhos se curvaram enquanto eu
absorvia as feições pacíficas. Os longos cílios que se estendiam em direção às maçãs do rosto
definidas. Os lábios carnudos levemente abertos, desprovidos de seu costumeiro sorriso
afetado.
Thomas jazia ali, imóvel como uma estátua.
“Isso não é real."
Fechei os olhos e os mantive apertados. Não era real. Eu não sabia ao certo o que era isso,
uma ilusão trazida por severa histeria, talvez, mas era impossível que eu estivesse vendo a
verdade. Eu contaria até cinco, e então esse cadáver não estaria mais ali, sendo substituído
pelo corpo de algum outro rapaz que houvesse perdido a vida cedo demais.
Isso era fantasia. Talvez eu realmente fosse como um dos desafortunados personagens de
Poe, levada à loucura por meses de perda e preocupação. Este corpo apenas se parecia com
Thomas. Quando eu abrisse os olhos, veria quem ele realmente era. E então eu iria correndo
até os aposentos dele e brigaria com o meu melhor amigo. Eu o agarraria pelas lapelas e
pressionaria meus lábios nos dele, não me importando com o fato de que seria inapropriado.
Eu diria a ele repetidas vezes o quanto eu o adorava, até mesmo quando eu desejava
estrangulá-lo.
Enquanto eu contava até cinco, novas imagens estiravam seus dedos pela minha mente.
Eu vi Thomas abrindo uma centena de sorrisos diferentes. Cada um deles como um
presente concedido apenas a mim. Eu vi todas as nossas querelas. Todos os nossos flertes,
mascarando sentimentos que nenhum de nós estava preparado para confrontar. Uma lágrima
deslizou pela minha bochecha, mas eu a deixei cair. Havia um vazio que irradiava do meu
interior, consumindo-me mais a cada respiração que ficava presa em seu abismo.
“Por favor.” Eu caí em cima de seu peito como se minhas lágrimas pudessem despejar ali a
minha força vital. “Por favor, não o leve de mim também. Traga-o de volta! Eu faria qualquer
coisa...” Qualquer coisa mesmo, ética ou não, para brigar com ele de novo.
“Qualquer coisa?”
Meu coração parou. Eu me afastei do corpo, pronta para surtar com o intruso quando
braços se cruzaram como largas asas ao meu redor. Ofeguei, indo bruscamente para trás
quando a bile começou a subir queimando pela minha garganta. Isso não poderia estar
acontecendo. Os mortos não voltavam à vida...
Thomas torceu a boca naquele maldito sorriso dele, e tudo dentro de mim ficou
entorpecido. A temperatura parecia ter caído vários graus. Fechei a boca com tudo para
impedir meus dentes de baterem uns nos outros, embora meu corpo tremesse violentamente.
“Se eu soubesse que o caminho para o seu coração era por meio da morte, eu teria feito
isso eras atrás, Wadsworth.”
Toquei no meu colarinho, tateando o tecido enquanto eu tentava puxá-lo do meu
pescoço. Se apenas eu pudesse respirar mais fundo...
“Você está... Você não está...”
Cambaleei para o lado, as mãos contra o meu peito. A sala girava em círculos cruéis.
Apertei e fechei os olhos por um instante, mas foi pior; eu continuava vendo imagens das
quais eu não podia escapar. Thomas sentou-se ereto, afastando a mortalha de seu corpo
perfeitamente intacto, o cenho franzido de preocupação. Fiquei observando enquanto ele
estendia as pernas para fora da mesa de exames e se levantava.
Ele estava bem. Não estava morto. Em momento algum esteve morto. A sala de repente
não estava nem um pouco fria, mas escaldante. Eu jurava que o teto estava ficando mais
baixo, jurava que as paredes me encurralavam em um canto, onde eu certamente ficaria
sufocada nesta maldita tumba. Inalei golfadas de ar, mas não era o bastante. Eu pensei em
todos os corpos que já estavam naquelas gavetas fechadas. Todos esperando para que eu me
juntasse a eles.
Meu peito subia e descia. Thomas não estava morto. Não como minha mãe e meu irmão.
Ele não havia voltado como um monstro morto-vivo. Ele não era nenhum strigoi. Eu me
curvei, colocando a cabeça entre os joelhos, amaldiçoando o ar por ser denso demais para que
eu respirasse devidamente, enquanto o sangue latejava em minhas veias. Mantive os olhos
cerrados, e aquelas assombrações persistiam contra a minha vontade. Minha mente estava
tentando me matar. Vampiros e seres imortais eram mito, não realidade.
Ninguém poderia cruzar a fronteira da morte e voltar. Nem mesmo o sr. Thomas
Cresswell.
“Audrey Rose, eu sinto muito.” Thomas estirou as mãos na minha direção, conciliador,
gentil. “Foi um horrível estratagema para fazer com que você falasse comigo. Nada além
disso. Eu... Eu sou um amigo terrível. Em momento algum eu pretendia... Você precisa de ar.
Vamos lá para fora. Por favor. É que... eu implorei para que Ileana de alguma forma trouxesse
você até aqui, para que pudéssemos conversar. Então eu vi a mesa e pensei... Por favor,
permita-me levá-la para tomar um pouco de ar. Eu peço desculpas. Eu não pensei...”
“Você... Seu calhorda!”
Fui aos tropeços para o canto, com o rosto ardendo, pegando fogo, as lágrimas escorrendo
de meus olhos fechados. Aquele vácuo em meu âmago já não estava vazio, mas cheio de
emoções furiosas e abrasadoras demais para que fossem suprimidas. Thomas tinha estado lá
naquela noite. Ele havia testemunhado tudo aquilo. Deitado ali, fingindo-se de morto, como
se o mero pensamento dele cruzando o limiar da morte não fosse minha ruína final. Eu cerrei
os pulsos e me dei conta de que havia umas cem mil coisas sobre as quais eu poderia
perguntar aos gritos. Mas apenas uma para a qual eu precisava de uma resposta.
“Como você pôde ficar ali, deitado, fingindo-se de morto?”, exigi saber. “Você sabe. Você
sabe o que aconteceu naquele laboratório. Eu não posso...” Fiquei ali parada, com as mãos
tremendo, inspirando alto o bastante para que minha respiração pudesse ser ouvida. Thomas
deixou sua cabeça cair em suas mãos e não disse nenhuma palavra. Ele mal se moveu.
Passaram-se alguns segundos, a ponto da raiva começar a se contorcer pelo meu corpo
novamente, buscando algo a que atacar.
“Fale agora ou nunca mais me procure, Cresswell. Como você pôde fazer isso? Sabendo
que é o que me assombra dia e noite. Minha mãe deitada naquela mesa. Aquela eletricidade.”
Então eu solucei e chorei mais intensamente, as lágrimas fluindo pela minha face
enquanto eu revivia o horror daquela noite. Esta, esta memória era o que eu não conseguia
superar. Que eu não conseguia parar de ver cada vez que eu ficava diante de um corpo. Minha
mãe, uma vez bela e então completamente destruída. Desfigurada pela morte. Com tubos
entrando em seu corpo parcialmente apodrecido. Os espasmos de seus dedos, as mesmas
mãos que uma vez me abraçaram, apodrecidas e parcialmente esqueléticas. Tufos de seus
longos cabelos muito pretos espalhados como lixo no chão.
Uma nova onda de enjoo abalou o meu sistema. Aquela era uma coisa que eu nunca,
jamais poderia esquecer. E ter agora as imagens adicionais de Thomas deitado em uma mesa
de exames? Minha respiração saía estremecida. Por fim, eu me forcei a olhar para cima e fitei
o rapaz que com tanta facilidade podia deduzir o impossível e, ainda assim, deixava de notar o
simples e o óbvio diante dele.
“Eu estou tão perto de me estilhaçar, Thomas”, falei, o corpo tremendo. “Tão perto de me
perder. Eu nem mesmo sei se consigo continuar estudando medicina forense.”
Thomas piscou como se eu tivesse falado tão rápido e de forma tão obscena que seu
cérebro não havia captado as minhas palavras. Ele abriu a boca e então a fechou, balançando a
cabeça. Seu olhar estava tão terno quanto seu tom quando ele finalmente encontrou as
palavras certas.
“Você está sofrendo com o luto, Audrey Rose. Esse sofrimento não é igual a estilhaçar-se.
Você está se reconstruindo depois de algo... destrutivo. Você está voltando mais forte.” Ele
engoliu em seco. “É nisso em que você acredita? Que você seja irreparável?”
Limpei o rosto com o punho da manga de meu vestido. “Por que você se deitou naquela
mesa? Eu preciso da verdade desta vez.”
“Eu... Eu pensei...” Thomas mordeu o lábio. “Eu pensei que confrontar seu medo pudesse
ser benéfico. Que poderia... ajudá-la, de modo que você... tenha seu melhor desempenho. Nós
só temos mais umas poucas semanas. A concorrência ficará feroz. Eu achei que você
apreciaria minha iniciativa.”
“Essa é a coisa mais idiota que eu já ouvi sair de sua boca. Você não pensou no que isso
poderia fazer comigo?”
“Eu achei que você fosse ficar um pouco... irritada, mas muito satisfeita. Imaginei você...
rindo, para falar a verdade”, disse ele. “Mas eu realmente não pensei nisso a fundo. Eu vejo
como poderia tê-la ajudado de uma forma mais... produtiva. Talvez essa seja a hora de lhe
oferecer um suporte emocional.”
“Oh? Só agora você está deduzindo que está na hora de eu receber um apoio emocional?
Como você pode achar que eu riria de uma coisa dessas? Perder você... Isso seria, de longe, a
coisa menos divertida que eu poderia imaginar.”
O olhar dele exibiu um lampejo de travessura em uma hora bem errada. “Você está
finalmente confessando que eu sou insubstituível em seu coração, então? Já passou da hora
de você admitir isso, se quer saber.”
“Como?”
Fiquei ali parada, quase boquiaberta, piscando. Ele não estava levando isso a sério. Eu iria
matá-lo. Eu o cortaria em milhares de pedacinhos e os daria para os lobos gigantes à espreita
no bosque comerem. Ergui o rosto e poderia ter jurado que um rosnado saíra rasgando pela
minha garganta. Mesmo que eu não emitisse som algum, minha expressão deve ter revelado a
promessa de sangue derramado.
“Foi uma piada! Ainda não é hora para leviandade, estou vendo agora.” Thomas
cambaleou para trás, balançando a cabeça. “Você teve um choque e tanto... Culpa minha,
naturalmente. Mas...”
Andei até ele, meus olhos estreitos enquanto eu aproximava minha boca da dele. Etiqueta
e decência, e todo aquele absurdo da sociedade polida com que eu supostamente deveria me
importar, foram esquecidos. Coloquei as mãos no peito dele e o empurrei na direção da
parede, encurralando-o. Embora eu mal precisasse tocar nele para mantê-lo no lugar,
Thomas parecia bem contente com nossa posição atual.
“Por favor, Audrey Rose. Eu sou um caso perdido e não tenho como pedir desculpas o
suficiente.” Thomas esticou a mão para tocar no meu rosto, suas mãos estavam quase
alcançando minha pele quando ele parou, dando-se conta do olhar de raiva que eu dirigia a
ele.
“Não me trate como se você soubesse o que é melhor para mim.” Fiz uma pausa, tentando
desatar meus próprios sentimentos e determinar por que eu havia tido uma reação assim tão
intensa. “Meu pai tentou me enjaular, proteger-me do mundo exterior, e essa é a minha
primeira experiência verdadeira com a liberdade, Thomas. Eu finalmente estou fazendo as
minhas próprias escolhas. O que é ao mesmo tempo aterrorizante e emocionante, mas eu
preciso saber que sou capaz de enfrentar algumas batalhas sozinha. Se você realmente quer
me ajudar, então simplesmente esteja presente. Para quando eu precisar de você. Isso é tudo
que eu peço. Chega de experimentos para tentar me ajudar a lidar com o meu trauma. Ou
falar com os professores sobre meu estado emocional ou minha constituição. Você me sabota
quando faz isso. Eu não tolerarei tais ações.”
“Eu sinto muito em relação a isso também, Wadsworth.” O profundo arrependimento em
seu olhar me dizia que ele estava falando sério. “Você é e sempre foi minha igual. Eu estou tão
envergonhado por ter agido de uma forma que fez com que você sentisse o contrário.” Ele
inspirou fundo. “Será que você... Ficaria tudo bem se eu explicasse?”
“Há mais coisas por trás dessa idiotice?”
Eu o encarei sem piscar. Thomas havia feito muitas coisas ridículas antes, mas essa, de
longe, tinha sido a pior. Ele deveria saber que não se tratava somente de reabrir uma ferida
recente — isso estava dilacerando tanto a própria ferida quanto a minha alma, de uma só vez.
Permiti que o gelo revestisse todo o meu ser.
Ele soltou o ar, estremecendo, como se pudesse sentir a frieza sendo emanada de mim.
“Na minha cabeça, quando pensei em como você se sentiria ao me encontrar aqui de tal
forma, eu achei que você fosse... rir. Sentir-se aliviada porque seus piores medos teriam se
provado falsos. Que a única coisa que você tinha a temer eram minhas horríveis tentativas de
ajudá-la.” Ele ergueu a mão até sua testa. “Eu não estou sabendo lidar com a dedução do
óbvio. Parece-me exatamente o que é agora: a pior ideia do mundo. Eu disse que eu não
tenho nenhuma fórmula em relação a você. Eu também não tenho nenhuma compreensão
acerca das mulheres, eu acho. Ou talvez sejam as pessoas, de modo geral, que eu não entenda.
Eu posso ver como meu senso de humor nem sempre reflete a ideia das pessoas em geral.”
Os músculos das minhas bochechas queriam se contorcer com o imenso eufemismo, mas
eu não tinha energia o bastante para sorrir.
“É só que... às vezes, quando estou com medo ou perdido, eu tento encontrar o humor.
Quebrar a tensão. Rir sempre me ajuda, e eu estava com esperanças de que isso também
pudesse ajudar você. Eu realmente sinto muito, Audrey Rose. Eu estava completamente
errado ao discutir seu estado emocional com Radu.”
“Sim, estava.”
Thomas assentiu. Por um instante, parecia que ele poderia a qualquer momento
desmoronar e cair de joelhos, mas ele continuava firme como um soldado. “Meu erro idiota
não teve nada a ver com falta de fé em você. Eu simplesmente não confiava que Radu não
fosse ficar incessantemente lhe fazendo perguntas sobre Jack, o Estripador. Eu o imaginava
machucando você sem querer, e eu sabia que desejaria matá-lo se isso acontecesse. Eu sei que
você não precisa ser protegida, mas, ainda assim, eu travo uma batalha interna por querer
fazê-la feliz.”
Ele fez uma pausa, parecendo ter ainda mais coisas a me dizer.
“Na aula de Radu... Depois de tudo aquilo, eu continuava vendo seu rosto. A luz se
esvanecia e aquele vazio desolador voltava. Parecia que estávamos de volta ao laboratório na
noite em que ele morreu. E a pior parte? Eu sabia que era algo que eu poderia ter impedido.
Se eu tivesse me esforçado mais nas minhas tentativas. Se eu não estivesse aterrorizado com a
ideia de perder você.” Thomas cobriu a própria face, a respiração irregular. Desta vez,
lágrimas escorriam por seu queixo. “Eu não sei como consertar isso, mas eu prometo que vou
melhorar. Eu...”
“Não havia nada que você pudesse ter feito naquela noite”, falei em um tom gentil.
Isso era algo que eu mesma sabia fazia um tempo, mas que não impedia minha mente de
retornar àquela cena e reprisá-la repetidas vezes em busca de um final diferente para a
história. Estiquei a mão e, com ternura, peguei a mão de Thomas na minha. Eu ainda estava
chateada com ele, mas minha raiva diminuía ao enxergar a situação em perspectiva. Ele ainda
estava vivo. Nós poderíamos deixar isso para trás e poderíamos crescer. Nem o tempo nem a
morte ainda nos haviam comprometido.
Ele engoliu em seco, sua garganta latejava enquanto olhava para baixo, para nossas mãos
unidas.
“Por favor, perdoe-me.”
“Eu...”
Uma tábua do assoalho rangeu sob nós. Eu me afastei dele, testando a área com meu peso.
Soava como se tivesse dobradiças, e que estas precisavam de um bom óleo. Eu estava certa de
que tinha visto o contorno de uma porta. Eu rezava para que não fosse mais uma ilusão.
Thomas não parecia tê-la notado; seu foco pousava somente em mim, e sua expressão estava
velada, ainda que esperançosa. Eu me dei conta de que ele estava esperando pela minha
resposta a seu pedido de desculpas.
“Se você jurar que nunca, jamais, falará em meu nome sem o meu consentimento, então
eu perdoo você”, falei, sabendo muito bem que eu o teria perdoado de todas as maneiras. Ele
ficou radiante, e tive que me esforçar para não o envolver em meus braços. Pigarreei e apontei
para a porta. “Eu tenho uma teoria que estou tentando provar. E acredito que o alçapão em
cima do qual estamos pisando seja a nossa primeira pista.”
Thomas me fitou por mais um instante, então voltou sua atenção para a porta. Se
estivéssemos um pouco mais para trás seria mais fácil vê-la, ainda assim, definitivamente,
havia uma porta oculta dentro do necrotério.
“Eu ouvi Moldoveanu e Dăneşti conversando sobre o desarmamento de câmaras, embora
eu não tenha muita certeza do que eles queriam dizer com isso. Eles disseram que precisavam
encontrar algum livro para localizarem essas câmaras”, falei. A animação substituiu minhas
emoções sombrias de antes enquanto eu olhava para o alçapão, contemplando-o. “Acredito
que descobrimos uma dessas câmaras antes deles.”
“É bem possível.” Thomas se aprumou. “Poderia se tratar de um velho túnel que dá para o
bosque. Vlad usava este castelo como uma fortaleza. Eu tenho certeza de que havia muitas
maneiras para uma saída estratégica, se fosse preciso. Esta provavelmente não passa de um
palácio de aranhas agora. Eu preferiria não macular este terno.”
Eu funguei de uma forma um tanto quanto dramática. “Isso me fede a desculpas,
Cresswell. Você tem medo de aranhas?”
Ele tamborilou os dedos nos braços, com a expressão pensativa. “Eu não sinto que
comprometo minha dignidade ao admitir que as odeio.”
Sorri. Nós dois estaríamos encrencados, então. Eu esperava que não fôssemos nos deparar
com nenhuma criatura de oito patas. O impulso magnético da curiosidade era demais para
que eu resistisse. Tateei ao redor das tábuas de madeira do assoalho em busca de um
mecanismo que as soltasse. O espaço abaixo de nós poderia estar acabado e cheio de teias de
aranha, ou poderia mostrar ser regularmente cuidado, levando-me a acreditar que alguém
teria conhecimento dele.
E, caso alguém tivesse conhecimento dele, talvez estivesse cheio de pistas. Se Dăneşti
estava procurando por câmaras ocultas, eu queria saber por quê. Ergui o olhar para Thomas.
“Você não vai me ajudar?” Ele mordiscou o lábio e eu quase vi aquele tom carmesim
novamente. “Sério? Você acha que essa ideia é pior do que aquela em que você se fingia de
morto e quase me matava de susto?"
“Faz sentido.” Ele batucou os dedos nos lábios, considerando. “Se eu acabar sendo
devorado por aranhas vorazes, pelo menos serei lembrado por algo além da minha boa
aparência.”
Ele abriu um largo sorriso enquanto eu revirava os olhos, então andou até o candeeiro
apagado. Fiquei observando enquanto ele o estudava por um momento, e depois o torceu
para o lado. Incrivelmente, o alçapão girou para dentro, revelando uma escadaria úmida e
bolorenta. Ergui os olhos com incredulidade, e Thomas ficou radiante.
É claro. O candeeiro quebrado era uma pista tremendamente óbvia agora.
“Devo impressioná-la com meus poderes de dedução? Aquele era o único candeeiro que
não estava aceso na sala, levando uma pessoa a acreditar que de fato havia uma passagem
secreta...”
“Agora não, Cresswell. Venha dar-me uma mãozinha aqui. Eu quero ver o que Vlad
Drácula estava escondendo aqui embaixo. E o que Dăneşti anda buscando.”
22. AQUELAS ASAS DESPROVIDAS DE PENAS
Pasaj secret
Passagem secreta, Castelo de Bran
5 de dezembro de 1888
e a quase completa escuridão não fosse um aviso suficiente para voltar atrás, então o
doce e enjoativo fedor de decomposição que nos envolveu deveria ter sido. “Que
adorável!” Thomas torceu o nariz. “Nada como o aroma de um cadáver inchado para
fazer com que entremos no clima de aventura.”
Estávamos parados no limiar do alçapão, com nossos olhares voltados para baixo, para o
que parecia ser um cenário funesto. Pedras cinzentas cercadas por teias de aranha e outros
detritos estendiam-se diante de nós, abrindo seus dentes lascados o bastante de forma a
permitir a entrada nas entranhas do castelo. Eu fiz o melhor que pude para respirar pela boca.
“Pense nisso como se fosse simplesmente uma fruta madura pronta para explodir.”
Fui varrida pelo olhar de Thomas, cujas sobrancelhas estavam erguidas em apreciação.
“Você é morbidamente encantadora.”
“Precisamos andar logo. Não quero ficar aqui por muito tempo.” Assenti na direção do
alçapão. “Deveríamos fechá-lo?”
Thomas olhou para a passagem secreta e depois para a porta principal, a resignação se
assentando em suas feições. Ele suspirou. “Eu tenho a sensação de que vamos nos arrepender
disso, mas sim. Desça alguns degraus e eu vou nos trancar aqui dentro, junto com os corpos
mortos e as aranhas. No escuro.”
Peguei minhas saias, grata por elas não serem tão volumosas como normalmente eram, e
desci um degrau de cada vez, estremecendo à ideia do que poderia ficar preso na bainha do
meu vestido. Eu me sentia aterrorizada com o que estaria causando o fedor e esperava que se
tratasse apenas da carcaça de um animal que houvesse entrado no castelo. Eu não apreciava a
ideia de encontrar restos mortais de humanos.
Thomas, cujos sapatos encontravam todas as formas imagináveis de arranhar as pedras
enquanto ele fazia manobras para colocar o alçapão no lugar, bufou atrás de mim. Devido às
experiências anteriores, eu sabia que ele era mais do que capaz de se mover pela noite com
uma furtividade inumana. Trinquei os dentes, ignorando o bater dos sapatos de Thomas
enquanto ele pisava duro, descendo os degraus depois de mim. Talvez ele ainda estivesse
abalado por causa de seu plano imbecil de se fingir de morto.
Uma pedrinha desceu pulando pelos degraus, fazendo com que nossa chegada fosse
ouvida pelo mundo inteiro. Eu parei de me mexer, minha pulsação rugia como uma onda
quebrando em minhas veias. Não poderíamos ter certeza de que estávamos sozinhos aqui
embaixo, e eu não queria ser expulsa da academia assim tão rápido. Especialmente quando
havia tantas perguntas não respondidas sobre o que exatamente estava acontecendo aqui.
Thomas murmurou alguma coisa baixo demais para que eu entendesse.
“Fique quieto.” Lancei um olhar de esguelha para ele por cima do ombro, embora estivesse
escuro demais para que eu o visse com clareza. Sua silhueta estava envolta em uma luz
dourada por causa do brilho da luz que vazava por uma fenda no alçapão. Lutei contra um
tremor urgente. Sempre houvera algo em relação a ele que era... perturbador, de um modo
intrigante. Especialmente quando estávamos escondidos no escuro.
“Eu mal posso esperar para ver se isso é tão bonito quanto o cheiro que exala.”
“Sério? É impossível para você ficar calado?”
O sibilar de um fósforo sendo aceso foi a única resposta dele.
Thomas sorriu com afetação para a vela que ele estava tentando manter acesa, cuja luz
mal passava de um tremeluzir no escuro opressor. Não me dei ao trabalho de perguntar onde
ele havia encontrado aquele toco de cera. Talvez o houvesse guardado em seu fraque. Ele se
inclinou para mim, falando baixinho o bastante para que eu quase não ouvisse suas palavras.
Contudo, ele não deixou de notar a intensidade da minha respiração quando seus lábios
roçaram de leve meu pescoço, fazendo minha pele formigar com o contato. Eu senti que ele
sorria com a boca nos meus cabelos.
"Você é o mais belo rapaz que já conheci na vida”, disse ele.
Apertei os olhos, tentando discernir algum machucado ou alguma imperfeição nele. Não
havia nada fora do comum que eu pudesse notar em Thomas. Apenas dois olhos de um
castanho dourado que me encaravam, divertindo-se. “Você bateu a cabeça, não foi? Ou
tomou algum tônico estranho?”
“Você quer o meu silêncio.” Thomas abriu um grande sorriso e depois, aos pulinhos,
rodeou-me após descer as escadas. “A frase que acabei de falar é o código para quando você
quiser que eu fale novamente. Eu prometo que não direi uma sílaba que seja até que você
destrave estes lábios com essas palavras.”
“Ah, se eu tivesse essa sorte!”
Mantendo sua promessa, ele foi descendo sorrateiramente as escadas sem ao menos
respirar alto demais. Se eu já não soubesse que Thomas estava ali comigo, e não pudesse ver o
fraco tremeluzir da luz que ele segurava, eu nunca teria descoberto que ele estava apenas a
poucos passos à minha frente. Ele certamente sabia se mover como um espectro quando
queria.
Sua silhueta dissolveu-se nas sombras que nos cercavam. Tomando cuidado para usar da
mesma cautela que ele, desci com a atenção aguçada, visto que a última coisa de que eu
precisava era quebrar uma perna aqui embaixo.
Asas batiam ao longe, e o som era como o de dois pedaços de couro se golpeando em uma
sucessão frenética. Ignorei a forma como meu coração ansiava por alçar voo e flutuar de volta
para o topo das escadas. Imaginei que aqueles fossem os morcegos que o diretor havia
mencionado na noite em que chegamos.
Quatro cadáveres fétidos eram uma coisa, mas morcegos... Um tremor vibrou em meus
ossos. Morcegos, com seus rostos de roedores e asas membranosas, faziam meus nervos
estremecerem.
Isso era completamente irracional. Eu era bem tolerante com ratos. E não tinha problema
algum com pássaros. Mas aquelas asas desprovidas de penas, com veias espalhando-se ao
longo delas como galhos na árvore da vida... Eu poderia viver sem isso.
Quando chegamos ao fim das escadas e entramos em um corredor que parecia ter sido
talhado na pedra bruta da própria montanha, eu questionei a minha necessidade de descobrir
segredos contidos debaixo do necrotério em um castelo com um passado tão ameaçador.
A condensação escorria da pedra, embora não houvesse aqui quem enxugasse a tristeza
desse túnel miserável. Pelo menos não alguém que gostaríamos de encontrar sem que
tivéssemos uma arma. O vento uivava pela passagem, erguendo os pelos dos meus braços.
Soltei um xingamento, esquecendo-me de ficar calada. Thomas virou-se, com uma
expressão divertida no rosto, mas fiz um movimento para que ele continuasse andando. Eu
precisaria mandar fazer uma espécie de coldre para carregar o escalpelo, assim eu poderia
amarrá-lo ao meu corpo e fazer uso da perigosa lâmina sempre que fosse preciso. Eu me
perguntava se a costureira da cidade conseguiria fazer um acessório como esse.
Da mesma forma como era possível fazer um cinto, com certeza um coldre poderia ser
feito. Eu estava tentando ganhar tempo de novo e sabia disso. Eu esperava sinceramente não
sermos atacados por nenhum morcego. Havia muitas coisas que eu conseguia aguentar... mas
imaginar suas garras ficando presas nos meus cachos, enquanto eles guinchavam e
arrancavam mechas dos meus cabelos...
Limpei as mãos nas minhas saias, desejando que eu tivesse pensado em trazer um manto,
embora, é claro, eu não houvesse planejado ir a qualquer lugar que não fossem os corredores
das criadas. Era muito mais frio aqui embaixo, tão longe das muitas lareiras do castelo. Como
se tivesse colhido a dedução da escuridão, Thomas ficou cara a cara comigo abruptamente,
oferecendo-me seu casaco.
“Obrigada, mas você pode ficar com ele por ora.”
O casaco era tão longo que eu tropeçaria nele.
Ele assentiu e continuou seguindo em frente. Eu me apressei atrás dele, conseguindo
ignorar as asas que batiam e ecoavam na úmida passagem à frente.
Puxei Thomas até que ele parou. Na extremidade mais afastada do longo túnel de pedra
em que estávamos, uma única tocha bruxuleava. Embora a luz lembrasse um sol afundando
no horizonte, não havia absolutamente nenhuma calidez em seus míseros raios. Se uma
tocha estava acesa, alguém devia estar embaixo, ou tinha estado bem recentemente.
Minha respiração formou uma nuvem diante de mim, como um espectro revelando um
presságio. Thomas fez um sinal para que eu fosse na frente. As paredes pareciam ficar mais
próximas de nós agora, a montanha nos esmagando de ambos os lados. Passamos por umas
poucas portas, algumas das quais estavam manchadas de preto, enquanto outras eram de um
carvalho escuro, todas elas quase indistinguíveis das paredes da caverna até que nos
deparássemos com elas por acaso.
Tentei empurrar uma dessas portas, mas ela se recusou a ceder. Continuei descendo o
corredor com a atenção fincada no menor dos movimentos. Eu não sabia ao certo o que
faríamos se encontrássemos algo sinistro aqui embaixo. Eu tinha esperanças de que Thomas
tivesse uma arma escondida onde quer que ele houvesse mantido a vela guardada.
Uma leve brisa soprou e, com isso, nossa vela apagou-se. O que eu mais queria era libertar
os meus cabelos da trança e cobrir meu pescoço com eles. O ar nesta extremidade do túnel
estava mais gélido do que nas escadas. Já não havia água pingando; agora, ela estava
congelada em uma lâmina cintilante, beijando a face da rocha.
Thomas chegou até onde eu havia parado e apontou na direção de onde tínhamos vindo.
Olhando para trás a partir deste ponto estratégico, eu podia ver que havíamos descido de
forma constante, embora não parecesse durante a nossa caminhada. Nós também estávamos
muito mais longe de nosso ponto de entrada do que eu havia pensado.
A escuridão pregava peças nos meus sentidos. Eu poderia ter jurado que ela nos sentia,
que observava cada passo que dávamos às cegas, que se deleitava com nosso terror. Thomas
afastou uma teia de aranha para longe antes que eu passasse por ela. Um gesto cavalheiresco,
considerando o medo que ele tinha. Agradeci e lentamente continuei a descer pela passagem.
“Parece um parque de diversões com todos esses espelhos, não parece?", perguntei.
Transcorrido o tempo de umas poucas pulsações, Thomas simplesmente assentiu, com
um grande sorriso travesso espalhando-se em sua boca. Então eu me lembrei de seu voto de
silêncio.
“Quer saber de uma coisa?” perguntei. Ele ergueu as sobrancelhas. “Eu meio que gosto de
você sem todos aqueles absurdos que vivem jorrando de sua boca. Você deveria ficar quieto
com mais frequência.” Permiti que meu olhar inspecionasse suas feições cinzeladas, satisfeita
pelo anseio que iluminava os olhos dele quando minha atenção encontrou sua boca. “Na
verdade, eu nunca quis tanto beijar você como quero agora.”
Eu rapidamente me movi pela passagem, sorrindo para mim mesma enquanto Thomas
ficava de queixo caído. Um pouco da leveza de que eu precisava para conter minha
inquietação. Eu não queria pensar no que nós estávamos prestes a ver. A morte nunca teve
um cheiro agradável, e, nesse momento, o odor sobrepujante fazia com que meus olhos
lacrimejassem. A esperança de nos depararmos com a carcaça de algum animal estava
diminuindo.
A menos que se tratasse de um animal um tanto grande, do tamanho de um ser humano.
Limpei a umidade dos cantos de meus cílios. Era assim que cheiravam os corpos quando
não haviam sido enterrados longe o bastante debaixo da terra. Nós não havíamos lidado com
decomposição em estado avançado com tanta frequência no laboratório de meu tio, mas as
poucas vezes que fizemos isso deixaram memórias entranhadas em meu cérebro para a
eternidade.
Aproximando-me da tocha solitária, distingui mais dois túneis que se bifurcavam em
direções opostas. No ponto logo antes da bifurcação, contudo, havia uma robusta porta de
carvalho situada em um dos lados. Gotículas de suor pareciam vazar da madeira porosa. Que
estranho!
Inspirei fundo algumas vezes, deliciando-me com a forma como o frio agora me mantinha
alerta. A passagem, aqui, era apenas larga o bastante para que um corpo a cruzasse por vez.
Meus ombros estreitos quase rasparam nas paredes conforme avançávamos aos poucos em
direção àquela porta ominosa e a qualquer que fosse o horror escondido atrás dela. Thomas
se virou de lado para conseguir passar.
Ao olhar para baixo, fiquei surpresa ao encontrar lixo. O cheiro de morte cobria a maior
parte de tudo, mas o guardanapo engordurado aos meus pés parecia ser consideravelmente
recente. Engoli em seco, na esperança de que quem quer que houvesse depositado o lixo ali
tivesse ido embora há muito tempo. Seria bem difícil sair correndo nessa passagem estreita
sem que fôssemos pegos.
Fechei os olhos. Eu sabia que era forte o bastante para lidar com o que quer que
estivéssemos prestes a descobrir. Porém, a parte do meu cérebro ainda afetada pelos
assassinatos do Estripador estava enchendo minhas emoções com coisas absurdas
novamente. Eu só precisava de um minuto. Então eu conseguiria me mover.
Thomas deu uns tapinhas em meu ombro, um movimento que indicava que ele queria
passar. Balancei a cabeça em negativa. Para que isso acontecesse, ele teria que se espremer
para passar por mim. Antes que eu pudesse protestar, ele me pressionou gentilmente contra a
parede e deslizou diante de mim, tomando cuidado para não se demorar ao fazer isso.
Relutante, eu me afastei da parede, observando à medida que ele inspecionava os dois
túneis. Enquanto ele estava ocupado, calculando sabe-se lá o quê, eu me concentrei na porta.
Ele havia me distraído suficientemente de qualquer medo que estivera crescendo em mim, e
ele sabia disso. Se eu não tivesse ficado grata com o resultado, eu o teria estapeado com
minha luva por tomar tais liberdades ousadas em nossa atual situação, já que eu estava sem
uma acompanhante.
Fiquei de frente para a porta mais uma vez. Uma cruz com chamas em cada extremidade
havia sido queimada na madeira — muito tempo atrás, pela aparência desbotada dela. Havia
um número romano, VII, entalhado abaixo da cruz. Passei os dedos ao longo do símbolo, e
depois recolhi mãos, surpresa com a calidez da superfície.
Talvez eu não estivesse tão livre assim das minhas ilusões como eu havia pensado. Seria
melhor abrir a porta rapidamente, se é que ela fosse mesmo abrir. Quanto mais eu adiasse, o
suspense quanto a quem ou o que haveríamos de encontrar ali só aumentaria em níveis
exponenciais.
Respirando fundo mais uma vez, empurrei a porta com toda a minha força, notando
novamente como a madeira parecia quente para um túnel tão frio. Isso não era
cientificamente possível; entretanto, ignorei a vibração dos meus ossos, que vinha em forma
de aviso. Para o meu assombro, a porta se abriu. Não ouvi, em momento algum, o ranger que
eu estava esperando. Alguém obviamente havia tomado o cuidado de lubrificar as dobradiças
de metal.
Enfiei a cabeça ali dentro, apenas uns poucos centímetros, confusa com o calor tropical
que vinha em rajadas de dentro do espaço cheio de sombras, e apertei os olhos para enxergar
melhor. A sala parecia não ser maior do que um pequeno banheiro, mas havia um monte
escuro no chão, e montes similares ao longo das paredes altas.
Aquilo não fazia sentido: o que poderia estar cobrindo as paredes? E como é que estava tão
perturbadoramente quente aqui dentro, sem uma lareira?
Como se em resposta para esta última pergunta, um vapor sibilou de uma fissura. Deveria
haver uma fonte de calor em algum lugar ali perto, talvez uma fonte termal no interior da
montanha ou algum tipo de mecanismo de aquecimento no castelo.
“Cresswell, entregue-me aquela tocha, por favor! Eu acredito que...” Alguma coisa quente
e peluda bateu na minha cabeça. Estiquei a mão para cima, mas a coisa não estava mais lá. O
sangue corria e latejava nos meus ouvidos e cada pensamento racional abandonava minha
mente, conforme a massa negra se erguia inteiramente. “O que, em nome de...?”
Fui para trás com um solavanco, debatendo-me enquanto uma centena de morcegos
guinchantes movia-se pelos arredores como uma imensa massa, mergulhando no ar. Dentes
passavam de raspão em volta do colarinho de meu vestido, e depois deslizavam pelo meu
pescoço. Agarrei-me ao último resquício de razão para impedir a mim mesma de gritar. Se eu
desabasse agora, alguém nos encontraria. Eu precisava ser forte. Eu precisava não perder o
foco. Eu precisava... lutar.
Minhas mãos encontraram asas que pareciam ser feitas de couro. Eu estapeava corpos que
vinham do céu e ignorava o pânico crescente, enquanto o sangue escorria pelos meus dedos
enluvados, espalhando-se pelo chão.
Estávamos sendo atacados.
23. LILECI VAMPIR (MORCEGOS-VAMPIROS)
Pasaj secret
Passagem secreta, Castelo de Bran
5 de dezembro de 1888
homas foi parar ao meu lado em um átimo, brandindo a tocha da parede como se
fosse uma espada em chamas. Ele não era o único capaz de manter o sangue-frio em
face do perigo. Eu cataloguei todos os detalhes da sala e da cena, dentro do que me
foi possível entre os ataques. O montinho no centro da sala era um corpo que jazia com o
rosto voltado para baixo. Morcegos o cobriam como se estivessem fazendo um festim.
As saias indicavam que a vítima era uma mulher, cuja pele era mais branca do que a neve
recém-caída nas partes que não estavam desfiguradas por marcas rubras de mordida. Sua
imobilidade não deixava dúvidas de que ela havia falecido. Ninguém que ainda respirasse
poderia permanecer tão imóvel com inúmeras criaturas rastejando por cima de si. Eu corri
até o lado dela só para ter certeza.
“O que você está fazendo?”, gritou Thomas da porta. “Ela morreu! Anda logo!”
“Um... momento”, falei, vendo cabelos loiros debaixo de mechas escarlates. Podia ser ele
quem estava segurando a tocha, mas eu estava determinada a coletar o máximo possível de
informações.
Tentei procurar outros detalhes, mas vários morcegos mergulharam para cima de mim de
uma só vez, rasgando a renda das minhas luvas, atraídos pelo sangue que já vazava das
minhas feridas. Eu me arrastei para cima, saí da sala correndo o mais rápido que consegui e
fechei a porta com um puxão. Thomas empurrou a tocha para cima dos atacantes que ainda
restavam. Os olhos dele estavam selvagens enquanto os morcegos guinchavam
estridentemente e mergulhavam em nossa direção mais uma vez.
Depois de ter feito com que o último dos morcegos voltasse de volta para a escuridão, ele
pegou alguma coisa do meu ombro e jogou de lado.
“Está tudo bem com você, Wadsworth?”
Tínhamos acabado de ser atacados por um pesadelo infernal que se tornara realidade.
Algo quente escorria pelo meu pescoço. Eu tinha mais cortes do que me atrevia a pensar no
momento. Em vez de colocar tudo isso em palavras, eu ri. Com certeza, era algo com o qual
nem Poe poderia ter sonhado.
Apesar do horror, eu me senti ruborizar com o calor da excitação. O sangue agitava-se nas
minhas veias, aumentando a intensidade de meu coração, lembrando-me de como eu era
poderosa. De como era maravilhoso estar viva.
“Eu achei que você não deveria falar de novo, a menos que eu dissesse a frase mágica,
Cresswell.”
Seus ombros se curvaram, deixando cair a tensão que ele vinha carregando. “Sermos
atacados por morcegos-vampiros é uma desculpa boa o bastante para quebrar a minha
própria regra.” Ele franziu o cenho, olhando para o sangue que vazava pelas minhas luvas.
“Além do mais, eu já sei que sou o rapaz mais bonito da sua vida.” Um morcego que estava
separado do bando mergulhou na direção dele, e eu o afastei com um tapa. “Esses morcegos
não são nativos da Romênia.”
“Eu não fazia a mínima ideia de que você também fosse um quiropterologista”, falei,
entediada. “É assim que você impressiona todas as jovens damas?”
Ele me analisou com interesse. “Bem, eu não fazia a mínima ideia de que você conhecia o
termo científico para o estudo dos morcegos.” Ele tirou seu longo fraque e o ofereceu para
que eu o vestisse. Era quente e cheirava a café torrado e colônia fresca. Resisti ao desejo de
inspirar seu cheiro reconfortante. “Seu cérebro é um tanto quanto atraente. Até mesmo
diante de tudo isso.” Ele acenou para a porta fechada, com seu grande sorriso esvanecendo-se
um pouco. “De longe, o atributo de que mais gosto em você. Mas é verdade. Eu os estudei o
bastante para reconhecê-los como o que são: morcegos-vampiros. Não faço a mínima ideia de
quem desejaria criá-los.”
Mesmo aninhada no fraque de Thomas, me permiti sentir um calafrio que estivera
provocando minha carne. Este castelo era mais traiçoeiro do que eu havia pensado.
"Eu imagino com que outro tipo de encantadora vida selvagem nós haveremos de nos
deparar ao descermos aqueles túneis.”
Minha mente esbarrou em um detalhe da conversa entre Moldoveanu e Dăneşti. Eu
descrevi toda a conversa para Thomas tão rápido quanto possível, com as palavras saindo aos
tropeços. “Por que o livro do qual Dăneşti estava falando teria alguma coisa a ver com essas
passagens? Você acha que ele contém pistas sobre o lugar para o qual todas as portas e túneis
conduzem?”
“Talvez.” Thomas dirigiu o olhar de mim para os dois túneis escuros atrás de nós. Uma vez
na vida a expressão dele foi fácil de ser interpretada. Havíamos acabado de encontrar um
corpo e fomos atacados por morcegos. Agora não era hora de sair vagando tão longe sob o
castelo sem primeiro nos abastecermos com conhecimento e armas físicas. “Deveríamos fazer
um pouco de pesquisa. Venha. Eu conheço o lugar perfeito para isso.”
Havíamos voltado furtivamente para nossos aposentos e limpado quase todo o sangue de
nossos rostos. Eu também havia devolvido o fraque de Thomas, não querendo atrair
nenhuma pergunta ou atenção indesejada caso nos deparássemos com alguém a essa hora.
Agora, em um corredor cheio de sombras na ala oeste do castelo, estávamos parados diante
de duas portas de carvalho que exibiam entalhadas todas as espécies de feras, das míticas às
mais familiares. Embora nenhuma placa tivesse sido afixada em honra a ele, mesmo assim, eu
imaginava a indicação A BIBLIOTECA SANGRENTA DE DRÁCULA em letras góticas e
espessas.
Tochas em suportes feitos de ferro estavam dispostas orgulhosamente em cada lado,
convidando os visitantes a entrar e avisando-os para que se comportassem enquanto
estivessem na biblioteca.
Avistei uns poucos morcegos voando no entalhe da porta e a abri. “Se eu nunca mais vir
outra daquelas criaturas horripilantes, morrerei feliz.”
Thomas riu baixinho ao meu lado. “Sim, mas a forma como você estapeou aquele
morcego que estava me atacando foi tão valente. Uma pena que eu nunca mais
testemunharei tamanha ferocidade. Talvez possamos caçar morcegos pelo menos uma vez
por ano. Mas, então, teremos que libertá-los, naturalmente. Eles são adoráveis demais para
que os machuquemos.”
Fiz uma pausa antes de cruzar o limiar da porta. “Eles tentaram beber o nosso sangue,
Cresswell. ‘Adorável’ dificilmente seria a palavra que eu usaria para me referir a eles.”
Entrei com tudo na sala, e então parei, pousando uma mão em meu peito. A abóbada
nervurada do teto, semelhante a uma catedral, fez com que eu pensasse em aranhas de pedra
cujas longas pernas rastejavam paredes abaixo. As arcadas ogivais de pedra abrigavam
corredores de livros.
Esta era, de longe, a maior das bibliotecas do castelo; aquela em que eu havia achado o
livro sobre práticas mortuárias era bem menor. Couro e pergaminho e o cheiro mágico de
tinta nas páginas sobrepujavam os meus sentidos. Candelabros de ferro forjado — que
tinham o mesmo estilo das urnas no corredor — pendiam da teia de pedra cinza acima deles.
Era sinistro e intrigante ao mesmo tempo. Uma parte minha desejava passar horas dentro de
suas alcovas obscuras, e outra parte mal podia esperar para garantir uma arma. Qualquer
coisa ou pessoa poderia estar escondida nesses recantos lúgubres.
Fechei os olhos por um instante. Enquanto cuidávamos de nossos cortes, Thomas e eu
havíamos decidido retardar o ato de comunicar alguém sobre o corpo que havíamos
descoberto. Deixar os restos mortais daquela pobre moça naquele lugar terrível ia contra
todas as fibras do meu ser, mas eu não confiava em Moldoveanu. Ele provavelmente nos
puniria ou nos expulsaria por explorarmos os segredos do castelo. Thomas também
argumentou que, se o corpo dela fosse descoberto, isso poderia nos alertar quanto a quem
mais tinha conhecimento dessas passagens. Relutante, concordei, mas sob uma condição: se
o corpo dela não fosse encontrado até a próxima tarde, deixaríamos um bilhete anônimo.
Alguém espirrou a alguns corredores de distância, e o som ecoou na vasta câmara. Meu
corpo ficou paralisado. Não estávamos fazendo nada de errado, e, ainda assim, eu não
conseguia impedir minha pulsação de ficar acelerada só de pensar em encontrar alguém.
“Por aqui”, Thomas sussurrou, guiando-me na direção oposta. Como se saindo de um
transe, me movi para a frente, absorvendo a visão de cada corredor de livros, forçando o
ataque feroz a sair de minha mente. Os corredores não eram compostos simplesmente por
fileiras regulares: havia prateleiras do chão até o teto, repletas de tomos de todas as formas e
tamanhos.
Livros grossos, livros finos, encadernação de couro e brochuras: eles estavam empilhados,
juntos, como se fossem células compondo um corpo. Eu queria disparar por cada corredor
para ver se eles terminavam em algum lugar.
Poderíamos passar o restante da eternidade e não ler todos os livros armazenados aqui.
Por outro lado, em um dia normal, teria sido magnífico simplesmente ficar sentada com uma
xícara de chá e uma coberta quentinha, e pegar novas aventuras científicas das prateleiras
como se fossem petits-fours de tinta a serem saboreados.
Havia livros escritos em francês, italiano, latim, romeno e inglês.
“Eu não faço a mínima ideia de por onde começar”, disse Thomas, alarmando-me e
fazendo com que eu saísse da minha utopia dos livros. “Eles ao menos possuem seções
classificadas por temas. Não é muito, mas é um começo. Você está...?” Ele acenou com uma
das mãos na minha frente, com os lábios curvando-se para cima enquanto eu batia na mão
dele para que ele a afastasse de mim. “Você está prestando atenção em alguma palavra do que
eu estou dizendo, Wadsworth?”
Parei em um dos corredores, onde se lia stiintã.
“Veja só essa seção de ciência, Thomas!”
Selecionei um periódico médico da estante mais próxima, folheando as páginas e
maravilhando-me com os desenhos anatômicos. Um artigo de Friedrich Miescher chamou a
minha atenção. O trabalho dele com a nucleína era incrível. E pensar que havia proteínas
fosfóricas em nossas células sanguíneas que nós ainda tínhamos que nomear!
“Isso é o que eles deveriam estar nos ensinando. Não mitos folclóricos de vampiros
relacionados a um homem que morreu há séculos. Você acha que é medicamente possível
abrir meu crânio e enfiar as páginas ali dentro? Talvez a tinta se infiltre e crie uma espécie de
reação de compostos.”
De braços cruzados, Thomas apoiou-se em uma estante. “Estou estranhamente intrigado
com essa ideia.”
“Imaginei.”
Balancei a cabeça, mas continuei caminhando pelo corredor. POEZIE. ANATOMIE.
FOLCLOR. Poesia. Anatomia. Folclore. Luxuosas poltronas de couro estavam dispostas nos
cantos, acompanhadas de mesinhas cujo propósito era servir de apoio para fazer anotações
ou conter mais material de leitura. Foi necessário cada pedacinho da minha força de vontade
para não ser distraída por um desejo irresistível de simplesmente me enrolar em uma delas e
ficar lendo sobre práticas médicas até que a aurora se arrastasse pelo céu.
“Eu sei o que vou lhe dar de presente nesse próximo Natal”, disse Thomas. Eu girei, com
minhas saias se enrolando nas minhas pernas como se fossem um casulo de ébano. Os olhos
dele brilhavam. “Periódicos médicos e tomos encadernados em couro. Talvez eu coloque aí
no meio um novo e reluzente escalpelo também.”
Eu sorri. “Eu já tenho alguns escalpelos. Ainda assim, ficarei feliz em aceitar todo e
qualquer livro. Nunca é demais ter material de leitura. Especialmente em uma noite de
outono ou inverno. Se você estiver se sentindo ainda mais generoso, poderia incluir chá. Eu
amo as misturas e harmonizações mais singulares. Realmente cria um clima para os estudos
médicos.”
Thomas resvalou os olhos por toda a minha pessoa, contemplando-me pausadamente, até
que eu finalmente pigarreei. Um pouco de cor surgiu em volta de seu colarinho.
“Audrey Rosehips.”
“Como?”
“Mandarei fazer uma mistura especial de chá para você. Um pouco de rosa inglesa, talvez
um pouco de bergamota. Uma pitada de algo doce. E definitivamente forte. Precisará de
pétalas também.” Ele sorriu. “Pode ser que eu tenha encontrado a minha verdadeira vocação.
Este é um momento e tanto. Deveríamos comemorá-lo com uma valsa?”
“Venha, especialista em chás.” Assenti na direção dos corredores que esperavam por nós,
com o coração agitado de um jeito agradável. “Temos muito a investigar se esperamos
encontrar algum livro com a planta do castelo.”
“E seus muitos túneis secretos.” Thomas fez uma mesura. “Depois de você, querida
Wadsworth.”
“Minha nossa! Você me assustou!”
O professor Radu surgiu do corredor adjacente, fazendo com que uma chuva de livros
fosse parar no chão. Ele se lançou para pegá-los, como um pombo pegando migalhas com o
bico.
“Eu estava procurando um tomo específico sobre strigoi para a aula de amanhã. Essa
maldita biblioteca é grande demais para que se possa achar alguma coisa. Venho falando há
eras para Moldoveanu que precisamos ter mais de um bibliotecário. Nunca encontramos
aquele inútil do Pierre!”
Eu ainda acalmava meus nervos. Radu não tinha soltado sequer um pio, o que era um
feito impressionante para um professor desastrado. Eu peguei um livro chamado De
Mineralibus do chão e o entreguei a ele, notando o couro todo retorcido e a escrita antiga.
“Aqui está, professor.”
“Ah. Albertus Magnus. Uma de nossas próximas aulas.” Ele fez uma pausa, com seus
grandes olhos piscando atrás dos óculos enquanto ele adicionava o tomo ao punhado de
livros que tinha nos braços. “Viram o Pierre? Talvez vocês o tenham mandado ir atrás de um
livro para vocês. Eu não pretendia interrompê-los. Embora seja precisamente isso o que eu
quero dizer. Mais bibliotecários, mais conhecimento. Por que Moldoveanu insiste em apenas
um é...”
Radu estava tão transtornado que, sem pensar, começou a gesticular os braços,
esquecendo-se dos livros que no momento os ocupavam. Thomas lançou-se para a frente e
segurou a pilha antes que ela caísse em cima de nós.
“O maldito Pierre nunca está onde é preciso que ele esteja. Digam-lhe que eu encontrei
meu próprio material, e que não foi graças a ele. Logo mais estarei fazendo tanto o trabalho
dele quanto o meu próprio.”
Radu saiu andando, murmurando algo para si mesmo sobre seu plano de aulas estar
completamente bagunçado e sobre como ele ia falar com o diretor sobre múltiplos
bibliotecários.
“Pelo menos ele não nos perguntou por que estávamos fora de nossos aposentos,
desacompanhados, a essa hora”, observou Thomas. “Pobre bibliotecário. Ele tem um trabalho
e tanto. Cuidar de uma academia inteira e do Radu.”
“Ele é fascinante.” Fiquei olhando enquanto nosso professor dava de cara com uma coluna
de pedra e se afastava dela, com os braços cheios demais para que ele gesticulasse
selvagemente para o objeto inanimado. “Eu me pergunto como diabos ele conseguiu um
cargo de professor aqui.”
Thomas voltou sua atenção para mim novamente. “A família dele sempre esteve envolvida
com o castelo. Há gerações, desde quando eu consigo me lembrar. A academia o mantém
porque é tradição, e eles acreditam que os habitantes locais gostam de saber que um deles
pode ascender nas escadas sociais.”
Franzi as sobrancelhas. “Mas se isso for verdade... Então a família dele vem fazendo isso há
centenas de anos. A academia não existe há tanto tempo assim.”
“Ah. Permita-me fazer uma correção. Eu acredito que a família dele sempre esteve
envolvida em cuidar do castelo. O cargo dele como professor é novidade para sua linhagem.
Uma honra e uma inspiração.”
“Por que não lhe foi oferecido o cargo de diretor? Isso certamente passaria uma
mensagem mais positiva do que contratando o homem como professor de folclore”
Thomas deu de ombros. “Infelizmente, para Radu, eu tenho certeza de que a academia
está errada. Eu duvido que a maior parte dos aldeões na nossa geração se importe tanto
quanto se importavam aqueles no passado. Eles provavelmente pensam sobre ele o mesmo
que pensam sobre o restante de nós aqui. Que somos blasfemos malfeitores que deveriam
sentir vergonha de transformar este castelo sagrado em um lugar de ciência. Ah, veja.”
Thomas apontou para uma seção isolada próximo a uma lareira flamejante. A princípio eu
achei que ele estivesse sendo impróprio, sugerindo um lugar onde nós teríamos privacidade.
Porém, uma vez na vida, ele estava focado em nossa missão. Havia uma placa, em inglês,
orgulhosamente pendurada no fim do corredor: EDIFÍCIO E TERRENOS.
“Hoje pode ser nosso dia de sorte, afinal de contas.”
Eu me pus a andar em direção ao imenso corredor de livros dedicados ao castelo, na
esperança de que esta fosse mais uma daquelas vezes em que Thomas estava certo.
24. ESTRANHAS ILUSTRAÇÕES
Camere din turn
Câmaras da torre, Casulo de Bran
5 de dezembro de 1888
uando eu por fim subi as escadas, pouco antes da meia-noite, encontrei Ileana em
cima de uma banqueta bamba, tirando o pó das estantes apinhadas de cacarecos na
minha sala de estar.
Minhas botas — reluzentes como se tivessem acabado de ser polidas — estavam no
peitoril da janela, mas eu não tinha energia para perguntar o porquê disso. Nossa grande
investida na biblioteca principal para ver que informações poderíamos conseguir em relação à
onde os dois túneis possivelmente davam havia sido infrutífera. As únicas coisas que nós
havíamos descoberto eram que Radu era até mesmo mais desajeitado do que achávamos que
fosse e que ele gostava de ler velhos textos alemães.
A seção de Edifício e Terrenos obviamente não tinha sido tratada com cuidado: havia
livros de poesia e periódicos com histórias bobas relacionadas ao castelo e a área ao redor
dele, mas nada de útil. Não que eu tivesse esperado que simplesmente entraríamos na
biblioteca e sairíamos de lá com um livro que nem o diretor nem o guarda real conseguiam
localizar.
Fechei a porta com um clique suave. Sem se virar, Ileana parou por um instante o que
estava fazendo, a mão no ar com o pano coberto de poeira e a madeira rangendo sob seus pés.
A sujeira na beirada de seu avental bordado fazia com que parecesse que ela estivera andando
pela terra molhada. Eu não queria pensar que parte úmida do castelo ela havia sido forçada a
limpar. Se fosse alguma coisa como a passagem em que estivemos, era um lugar
decididamente deplorável.
“Eu... Eu sinto muito por antes”, disse Ileana num rompante. “Thomas me pediu ajuda e
eu não podia... Eu não podia... Eu não queria dizer não ao irmão de Daciana. Eu disse a ele
que era uma ideia horrível, mas ele estava desesperado. O amor faz dos sábios uns tolos. Eu
posso sair, se você não quiser falar comigo.”
"Por favor, não se preocupe. Eu não estou chateada com você. Foi um dia longo, só isso.”
Ileana assentiu e voltou a limpar cuidadosamente as estantes de livros. Eu tombei no
canapé e esfreguei as têmporas na esperança de que um pouco de serenidade caísse do céu e
se espalhasse pela minha alma como uma chuva purificadora. Se eu apenas estivesse chateada
com a tentativa de Thomas de recuperar nossa amizade...! Ele fingindo-se de morto era algo
que parecia ter ocorrido havia milênios. Nós tínhamos problemas muito maiores com os
quais lidar.
Embora os morcegos fossem aterrorizantes, eu sabia que eles não eram os responsáveis
pela perda de sangue de Wilhelm. Certamente ele teria arranhões discerníveis se esse tivesse
sido o caso, o que me deixava ainda mais confiante quanto ao fato de que o sangue dele havia
sido removido com equipamentos de necropsia.
Os ferimentos de mordidas nas minhas mãos ainda ardiam. Eu queria mergulhar na
banheira, limpar a saliva de morcego que permanecia na minha pele e nunca mais pensar
naqueles pequenos monstros imundos. Meu pai começaria a abusar de seu láudano
novamente se algum dia descobrisse que me expus a tais criaturas potencialmente
disseminadoras de doenças.
É claro que haveria alguém criando morcegos-vampiros em um castelo cujo mais infame
morador se supunha ter se tornado um vampiro. Meu impulso inicial seria culpar o diretor,
mas ser precipitada era o exato oposto do que meu tio teria me instruído a fazer. Chegar a
uma conclusão apressada sobre a identidade do culpado, e depois fabricar evidências para
confirmar tal conclusão, não levaria à verdade e à justiça.
“Você parece... Está tudo bem?” quis saber Ileana.
Embora eu houvesse prometido a Thomas que não falaria nada a ninguém sobre isso,
decidi dividir nossa descoberta com ela. Talvez ela tivesse ouvido alguma coisa em relação às
passagens com as outras criadas ou moradores do castelo.
“Nós encontramos um... corpo... um tanto... mutilado no necrotério. Bem, embaixo do
necrotério. Havia um alçapão e...” Ileana ficou rígida. Eu falei mais rápido, na esperança de
poupá-la de uma conversa muito longa sobre os mortos. “De qualquer forma, eu gostaria que
tivéssemos deixado isso para lá. Era... difícil dizer se havia similaridades com qualquer outro
caso em que estivemos envolvidos. E havia morcegos... banqueteando-se com o sangue. Eu
não sei o que interpretar disso. Você não deve contar isso a ninguém. Não ainda, pelo
menos.”
“Morcegos estavam... bebendo sangue de um cadáver?” Com isso, Ileana se virou,
piscando. Ela parecia estar tremendo o bastante a ponto de cair para trás com um ventinho
qualquer. “Era um estudante? Você contou isso a alguém?”
Minha mente foi invadida por uma imagem do corpo branco como o luar, provocando-me
ferozmente com cada detalhe vívido e cada laceração que ela devia ter sofrido antes de dar
seu último e condenado suspiro. Balancei a cabeça. “Estava difícil discernir qualquer coisa
que fosse. Eu só sei que era uma mulher por causa de sua roupa. Não tínhamos como
inspecionar o ambiente com todos os... Com todo o bando de morcegos agitados. Vamos
enviar uma carta anônima ao diretor, caso ela não seja encontrada até amanhã à tarde.
Achamos que a pessoa responsável pelo assassinato poderia acabar ‘encontrando’ o corpo
dela, e decidimos que seria melhor esperar algumas horas.”
Fechei os olhos, tentando esquecer os sons de asas batendo contra a minha cabeça, a
sensação de garras afundando na minha carne macia. A morte dela não deve ter sido rápida.
Eu odiava pensar em seu sofrimento enquanto eles bebiam seu sangue com vigor. Repetidas
vezes.
Dentes afiados feito navalha, fatiando e mordendo. Como ela devia ter se sentido
impotente à medida que sua força vital era drenada.
Eu me concentrei na lareira, perdendo-me nas chamas. Se eu permitisse que minha
imaginação corresse tão livremente, com certeza haveria de vomitar.
“Você acha que a mesma pessoa que empalou aqueles outros dois é responsável por isso?”
Ileana retorcia o pano de limpeza. “Ou será que há outro assassino em Braşov?”
Fui marcando mentalmente os fatos dos quais eu tinha conhecimento.
“Até agora, há dois corpos que foram empalados fora da propriedade do castelo: um no
trem, e o outro divulgado nos jornais. Então temos o corpo desprovido de sangue de Wilhelm
Aldea. E agora essa moça, que provavelmente morreu ao se tornar um festim vivo para os
morcegos. A julgar pela ausência de rigor mortis, eu diria que ela... faleceu há pelo menos
setenta e duas horas. Mas é difícil ter certeza.”
Eu não mencionei a leve rigidez presente em seus membros, nem como a temperatura
quente da sala poderia ter acelerado o processo. No verão passado, meu tio me fizera
memorizar diferentes fatores que contribuíam para a aceleração ou o retardamento dos
efeitos subsequentes da morte. Uma vez que a temperatura na sala estivera de moderada a
quente, e o corpo dela estava em decomposição, provavelmente havia se passado um mínimo
de vinte e quatro horas desde que ela dera seu último suspiro — embora eu situasse sua hora
de morte como sendo algo em torno de três dias atrás, talvez quatro. O fedor era horrendo.
“É possível que ela tenha sido mais uma vítima do Empalador?”
Tirei minhas luvas, estremecendo com a visão dos pedaços destruídos da renda, enquanto
arranhões e marcas de mordida eram revelados. “Eu gostaria de saber dizer”, falei. “Dois dos
corpos foram forjados para que parecessem que eles eram vampiros. E o outro dá a entender
que estava sendo um festim de vampiros.”
Ao que parecia, esses crimes não foram todos cometidos pela mesma pessoa. Parecia que a
mulher e Wilhelm haviam sido assassinados de maneiras diferentes das outras duas vítimas, e
também diferentes entre si.
Eu não sabia ao certo se alguém havia forçado a mulher a entrar naquela sala. Talvez ela
tivesse ido vagar por lá e teve o infortúnio de ficar presa. Estava um breu naquela câmara —
ela poderia ter tropeçado ao entrar, ter sido atacada por morcegos famintos, e depois caiu,
incapaz de fugir de seu inferno. Até que seu corpo pudesse ser inspecionado, havia muitas
variáveis desconhecidas.
“Ou alguém anda se esforçando muito para simular crimes vampíricos”, falei, libertando-
me dos pensamentos sobre o cadáver destruído dela, “ou há dois assassinos em ação. Não
sei... Quase como se um trabalhasse para superar o outro. Um que imita os métodos de um
caçador de vampiros, o outro que imita os métodos de um vampiro de verdade. Eu não estou
segura sobre em que acreditar. Ainda há muitas peças faltando. Se Wilhelm tivesse morrido
por causa de morcegos, teríamos visto múltiplas feridas nele. Os morcegos eram bem
selvagens.”
Ergui as mãos, mostrando as mordidas que haviam secado e adquirido um tom de
vermelho-rubi.
“O castelo é antigo, assim como os túneis que vocês encontraram”, disse Ileana,
dispersando sua atenção. “Talvez eles venham criando esses morcegos desde a época de Vlad.”
“Talvez.” Um pensamento realmente encantador. “Certo, eu acho que alguém os está
criando. Thomas disse que eles são chamados de morcegos-vampiros, mas que são
geralmente encontrados nas Américas. Eu não consigo, por mais que eu tente, imaginar como
isso esteja relacionado, a menos que seja simplesmente um infortúnio.”
“Talvez o Empalador tenha uma conexão com a academia”, arriscou Ileana, cuja atenção
estava focada no supostamente renascido príncipe imortal. “O primeiro assassinato ocorreu
no vilarejo. Depois, o corpo de Wilhelm também foi encontrado lá. Se Dăneşti estiver certo
sobre as ameaças que foram feitas contra a família real, então talvez o Empalador almejasse
criar pânico com os dois primeiros assassinatos.”
“Ou talvez ele estivesse praticando.”
“Talvez ele esteja coletando sangue”, ela sussurrou.
Meu próprio sangue congelou em minhas veias. Essa ideia cutucou a parte sensata da
minha mente até que outras, mais ameaçadoras, brotaram para juntar-se a ela. Certamente
era possível que um assassino estivesse vivendo sob este teto torreado, roubando sangue para
seus próprios propósitos.
A teoria do meu tio a respeito de assassinos que se envolviam com seus crimes passou por
um momento pela minha cabeça. Em uma academia composta por alunos e professores,
quem teria mais a ganhar com os assassinatos? A menos que a motivação residisse
simplesmente na emoção da caçada. Aquela compulsão sedenta por sangue era sempre o que
mais me aterrorizava. Eu gostaria que meu tio estivesse aqui agora para discutir isso comigo.
Ele sempre via além do óbvio.
Ileana havia ficado tão quieta que eu me alarmei quando ela se mexeu na banqueta e
proferiu uma pergunta. “Você acredita que o Empalador exista?”
“Não no sentido literal”, falei. “Eu tenho certeza de que uma pessoa bem humana está
recriando métodos de morte que se tornaram famosos com Vlad Drácula. Eu não acredito,
nem por um instante, que ele tenha se erguido do túmulo e que esteja caçando alguém. Isso é
tão ridículo quanto completamente contrário às leis da natureza. Uma vez que alguém esteja
morto, não há como reanimá-lo. Por mais que se deseje o contrário.”
Eu não revelaria quão dolorosamente familiarizada eu estava com a verdade da minha
última declaração. Dedos contorceram-se em minha memória, e eu afastei a imagem da
minha cabeça.
“Alguns aldeões discordariam de você”, disse Ileana, baixinho. “Alguns deles ficaram
doentes nas últimas semanas. Uma moça desapareceu. Eles têm certeza de que a culpa é de
um strigoi. Agora o corpo de Wilhelm foi descoberto, com o sangue faltando. Eles estão
cientes do que isso poderia significar.”
Comecei a tecer um comentário sobre o desaparecimento da moça do vilarejo, mas me
impedi de prosseguir. Sentia vergonha de admitir que havia entrado furtivamente na casa
dela. Eu acreditava que o seu caso fosse simplesmente desafortunado, provocado por um
excesso de bebidas alcoólicas e desorientação no bosque. Nenhum vampiro nem lobisomem a
havia apanhado em seu caminho.
“Você conhece alguém que gostaria de fechar a academia?” perguntei.
Pendurando o pano em um balde galvanizado, Ileana bateu em suas laterais, criando um
som oco que ecoou e ricocheteou em meu crânio. Estreitei os olhos enquanto ela olhava de
esguelha na direção da porta, e então engoliu em seco. Eu estava prestes a perguntar a ela o
que havia de errado quando ela foi correndo até o canapé. Sacou do bolso de seu avental um
livro com encadernação de couro, entregando-o a mim como alguém passaria adiante um
penico fétido. Relutante, eu o peguei.
“Eu... Eu sei que é errado, mas eu encontrei um diário. Estava no quarto do príncipe
Nicolae.” Ergui o olhar, mas Ileana manteve o dela travado no livro e continuou, gaguejando.
“Você se lembra de que eu lhe disse que as criadas não devem ser vistas nem ouvidas?”
Assenti. “Bem, é muito fácil para alguns alunos de berço nobre se esquecerem de que nós
existimos. Alguns deles acham que suas lareiras se acendem como que por um passe de
mágica, e que os penicos de seus aposentos criam asas para jogarem seus dejetos fora.”
“Eu sinto muito por as pessoas serem tão cruéis.”
Os olhos dela eram como lascas de gelo antes que ela piscasse para livrar-se daquela
expressão. “Eu não me orgulho de ter roubado o diário, mas eu ouvi o príncipe Nicolae
mencionar alguma coisa sobre desenhos. Quando espiei dentro do diário, vi imagens
horríveis. Aqui.”
Abri o diário de couro, analisando uns poucos diagramas. Corações, intestinos, um
cérebro humano e... morcegos. Crânios de morcegos com presas horrendas. Asas de morcegos
com anotações e detalhes das pontas das garras. Cada página apresentava, orgulhosamente,
uma nova seção da anatomia de um morcego. Mais uma vez, voltei minha atenção para
Ileana, cujo olhar estava fixo em suas próprias mãos.
“Ele tem alguns espécimes em seus aposentos também.”
“Por que a menção a estes desenhos a deixou perturbada?”
Ileana torceu as mãos. “Eu me lembrei do que Dăneşti e Moldoveanu haviam dito sobre as
ameaças recebidas pela família real. Que havia desenhos.”
Eu me sentei mais ereta, como se o movimento pudesse tornar o que ela havia dito mais
palatável. Ondas de náusea reviraram-se em meu estômago. “Ele mesmo não poderia ter
enviado tais ameaças...”
“Foi por esse motivo que eu olhei. Então vi os desenhos de morcegos e notei todos os
esqueletos que ele tem no quarto... Eu não sei por que eu peguei o diário dele. Eu só...” ela
deu de ombros, "eu achei que havia mais a ser visto. E então eu vi essa imagem, mais para o
fim.” Esticando a mão, ela virou as páginas até que encontrou o que estava procurando.
Minha respiração estancou com o restante do meu corpo. Uma moça com cabelos cor de
ônix, olhos de um verde-esmeralda intenso e lábios escorrendo sangue exibia um sorriso
atrevido.
Com o dedo, segui a linha do maxilar até os olhos felinos, então toquei na minha própria
face.
“Eu não... Essa não pode ser eu. Ele não teria tido tempo de...”
Ileana virou a página. Nela, desenhada com grande esmero, estava a imagem de uma moça
usando um avental sujo de sangue coagulado, com uma lâmina de autópsia pairando acima
da carne completamente branca. Arranquei meu olhar da imagem. O cadáver era de um
homem, e nenhum pano cobria sua forma desnuda. Uma onda de calor subiu às minhas
bochechas.
Eu mal sabia que conclusão tirar dos desenhos grosseiros. “Tem mais.”
Ileana me mostrou uma imagem atrás da outra. Cada uma delas apresentava a mim
mesma como uma bela criatura se deleitando em sangue e morte. A forma como o príncipe
havia me capturado, era como se ele houvesse me transformado em um ser imortal, um
pouco perfeita demais para que fosse humana. Um pouco fria demais e dura demais para este
mundo frágil. As chamas na lareira tremeluziam selvagemente, e seu calor de repente tinha se
tornado sufocante. Eu ansiava por escancarar as janelas, permitindo que o vento frio dos
Cárpatos purificasse este espaço.
A imagem final me fez arquejar. Era difícil dizer exatamente quem era o homem, se era
Thomas ou Nicolae, mas ele e uma outra Audrey Rose estavam lado a lado. O rapaz usava um
terno feito de ossos, segurando uma caveira de marfim como se fosse um oráculo por meio
do qual profecias seriam feitas. O corpete do meu vestido abraçava minha silhueta. A
ilustração era maravilhosa, apesar do grande coração anatômico e do sistema circulatório que
saía do meu peito em ramificações, espiralando-se pelos meus braços e descendo feito dedos
em minhas saias.
As luvas pretas no desenho foram a próxima coisa a chamar a minha atenção. Rendas e
espirais cobriam meus braços com tanta precisão que pareciam marcados permanentemente
com tinta em minha pele. Ileana observou a imagem com atenção antes de apontar para o
padrão em meus braços.
“Os braços do príncipe Nicolae são cobertos de tinta. Não são desenhos tão delicados
quanto esses, mas eu já os vi quando ele enrola as mangas de sua camisa para cima.”
Ergui as sobrancelhas. Que informação intrigante. Eu havia lido que muitos aristocratas
haviam se tatuado no decorrer de anos anteriores. Uma vez que as revistas haviam anunciado
como isso estava na moda, estimava-se que cerca de um entre cinco cavalheiros e damas de
berço nobre possuía tatuagens escondidas em seu corpo. A popularidade das tatuagens
também estava crescendo nas cortes reais. Fazia sentido que o príncipe pudesse ter
incursionado nelas. Fazia aumentar a atmosfera de mistério que o cercava. Eu imaginava
quantas moças ficariam mais do que deleitadas em tirar as camadas de roupas dele para dar
uma espiada no que ele estava escondendo.
“O que ele tem tatuado?”
Ileana forçou-se a erguer-se do canapé, depois pegou o diário de volta e fez um
movimento em direção à porta.
“Está tarde. Eu poli suas botas e as deixei para Moş Nicolae. Você deveria descansar um
pouco, assim ele terá tempo para entregar seus presentes invernais.” Ela sorriu em resposta à
minha confusão. “Eu creio que sua versão de Mos Nicolae seja chamada de Papai Noel. Ele
traz doces, como manda a tradição. Se ele balançar a barba e a neve cair, então o inverno pode
realmente começar. Durma agora. Essa é a Noite Mágica. Talvez ele lhe deixe algum
presentinho.”
Dormir era a última coisa que eu pensava em fazer, especialmente quando um outro
Nicolae poderia estar à espreita pelo castelo entregando “presentes”, mas desejei boa-noite a
ela. Pressionei os dedos nos olhos até que lampejos de branco passaram por eles como
estrelas cadentes no céu. Em um único dia, eu achara que Thomas estava morto, encontrara
uma passagem secreta, fora atacada por morcegos sanguessugas, descobrira mais um corpo, e
agora ficara sabendo das ilustrações perturbadoras de Nicolae. O príncipe sombrio poderia
muito bem ser a pessoa que procurávamos. Oportunidade não faltava para que ele mandasse
ameaças ilustradas a membros da sua família.
Talvez fosse uma tentativa de garantir o trono para si mesmo.
Eu não consegui deixar de me perguntar se Nicolae também poderia ser o responsável
pela morte de seu primo e, se eu continuasse a desenterrar seus segredos, temia que algo pior
do que uma ameaça pudesse acometer a mim mesma em breve. Pensar no que a manhã
haveria de trazer era o bastante para fazer com que minhas pálpebras ficassem pesadas, indo
contra o que ditava meu bom senso. Removi minhas camadas de roupas e deslizei para baixo
das cobertas geladas. A última imagem da qual eu me lembrava antes de cair na escuridão era
a de uma mulher jovem e sobrenatural, com tatuagens espiraladas em seus braços, lábios
torcidos em um grande sorriso feral enquanto os incisivos afundavam em seus próprios lábios
cheios de sangue. Se o príncipe Nicolae realmente achava que eu era amaldiçoada, talvez ele
tivesse feito aquela ilustração como uma forma de propaganda. Ele certamente havia me
transformado na Princesa Drácula.
Eu esperava que ninguém tentasse enfiar uma estaca em meu coração.
Audrey Rose,
Se você está lendo isso, provavelmente você passou pelos meus aposentos.
Eu peço desculpas por partir sem me despedir de você. Encontrei uma
conexão entre a Ordem e os assassinatos. Eu disse a você que havia
reconhecido aquele livro! Não confie em ninguém. Eu juro que
voltarei dentro de uma semana com mais informações. Eu acredito
que aquela moça tenha armado a cena na casa dela.
Fiz algumas investigações no vilarejo e descobri que o marido dela
era a vítima que os jornais haviam noticiado! (Infelizmente, o filho
falecera uns poucos meses antes.)
Tio Moldovean acredita que eu fui correndo para a Hungria para
ajudar em uma questão pessoal urgente. Por favor, não afirme o
contrário; não quero alarmá-lo, tampouco ser punida injustamente.
Não retorne ao vilarejo. Não é seguro. Há olhos por toda parte.
Anastasia
Obs.: Queime esta carta. Eu suspeito de que as criadas tenham o
hábito de se familiarizar com os pertences pessoais.
25. JARDIM DE CINZAS
Curte ingrădită
Pátio amurado, Castelo de Bran
13 de dezembro de 1888
Sua
Liza
Beijos e abraços
L.
ndireitei-me num átimo, piscando para afastar as imagens cheias de presas que meu
subconsciente havia criado da escuridão.
O luar se alongava em faixas pelas cortinas feito regatos, formando uma poça no
chão como uma cascata prateada. O frio entranhava-se nos lençóis ao meu redor, mas não
havia sido o responsável por me acordar de meu sono. O suor revestia minha pele em placas,
como que marcadas pelo orvalho; minha camisola havia se desamarrado de alguma forma,
expondo mais da minha clavícula do que seria decente.
Ainda ofegante por causa do pesadelo com criaturas aladas que me mordiam, eu
gentilmente sondei meu pescoço, meio que temendo que meus dedos fossem sair dali
molhados de sangue.
Nada.
Eu estava completamente imaculada. Nenhum strigoi, nem morcegos ou demônios
sedentos por sangue haviam se banqueteado enquanto eu me remexia na cama. Eu sentia
apenas a minha pele, quente, macia e ilesa de qualquer outra coisa além do gélido ar invernal
ou do escândalo que sua exposição causaria.
Apertei os olhos para ver na direção das sombras, a pulsação acelerada, em alerta máximo.
O fogo na lareira do meu dormitório havia apagado não fazia muito tempo, a julgar pelas
brasas que ainda piscavam. Eu afundei na cama, mas apenas um pouco. Minha mente estava
atordoada por estranhos pesadelos, mas eu poderia ter jurado que tinha ouvido vozes. Não
era possível que tudo fosse produto de sonhos perturbadores. Eu havia sido visitada com
menos frequência pelas minhas assombrações recentemente, ou pelo menos era o que eu
achava. Agarrei as cobertas, aquietando meu coração frenético enquanto absorvia as silhuetas
imóveis da minha penteadeira e do meu criado-mudo.
Esperei que as sombras se afastassem da parede e assumissem a forma do príncipe
imortal, com suas asas serpentinas largas o bastante para fazer meu coração parar por
completo. Porém, tudo estava miseravelmente silencioso. Nada de espíritos visitando o reino
humano nesta noite supostamente malévola. Tinha que ser a alta altitude dos Cárpatos. Era
evidente que a diminuição do oxigênio estava afetando o meu cérebro.
“Bobagem”, concluí.
Caí de lado na cama, puxando as cobertas até o meu queixo. Longas mechas de cabelos
soltos faziam minhas costas coçarem, arrepiando minha pele. Afundei mais na cama, até que
minha cabeça estivesse praticamente coberta, oculta para o mundo exterior aos meus
cobertores. Pesadelos eram para crianças.
Tolo Radu e seu folclore absurdo! É claro que não existia tal coisa, uma noite invernal que
poderia convocar os mortos. Sempre haveria uma explicação científica a ser encontrada.
Fechei os olhos, concentrando-me em como eu estava aconchegante em meu pequeno e
aconchegante casulo. Minha respiração foi ficando mais lenta, minhas pálpebras, de repente
pesadas a ponto de eu não tentar abri-las novamente. Senti que estava me esvanecendo rumo
a um belo sonho. Sonho este em que Thomas e eu estávamos a caminho de Bucareste para
passar as festas de fim de ano, e eu trajava um belo vestido que eu usaria para ir a um baile,
longe dos assassinatos...
Tunc.
A adrenalina irrompeu em meu corpo na forma de ação.
Eu me lancei para fora do colchão, enfiei os pés nos sapatos e já tinha atravessado metade
do meu quarto de dormir, os ouvidos zunindo com o esforço tão grande de tentar ouvir o que
estava acontecendo. Não havia como confundir o som de alguém ou algo se movendo no
corredor do lado de fora dos meus aposentos.
Peguei meu medo e o enfiei no bolso mais profundo da minha mente, ignorando a forma
como ele chutava e arranhava enquanto era guardado.
Abstendo-me de colocar um vestido em prol da furtividade, lentamente abri uma fenda da
porta do meu dormitório. Espiei a sala de estar; as brasas do fogo estavam quase apagadas ali
também. Por algum motivo, minha nova criada não as atiçara antes de ir dormir. O intenso
brilho cor de laranja não era o suficiente para que eu pudesse enxergar pelos arredores, o que
também criava uma oportunidade para que eu não fosse vista por quem quer que estivesse à
espreita por ali. Nuvens de respiração fria deslizavam para fora em intervalos irregulares.
Tunc-tunc.
Eu parei, as pernas abertas no limiar entre meu dormitório e a sala de estar. Tudo estava
imóvel como um túmulo.
E então... uma ordem asperamente sussurrada em romeno: “Linişte". Calado.
Tunc.
Depois de ter passado um tempo lidando com corpos no laboratório de meu tio, eu
conhecia o som que os membros dos mortos faziam quando caíam no chão. Imagens de
ladrões de cadáveres passaram por meus pensamentos. Eu não sabia por que eu os visualizava
como figuras esqueléticas cujas mãos tinham garras nas pontas, com presas escorrendo
sangue e asas que pareciam de couro, quando eles deveriam ser robustos para erguer o peso
morto. E certamente humanos.
Prendi a respiração, temendo que até mesmo o menor suspiro fosse soar como um sino
badalando e determinando o meu destino. Quem quer que eles fossem, eu não queria sua
atenção sinistra em mim. Os humanos eram os verdadeiros monstros e vilões. Mais reais do
que qualquer romance ou fantasia seriam capazes de inventar.
Instantes se passaram e os sussurros continuaram. Coloquei minhas juntas congeladas em
movimento, andando tão rápida e silenciosamente pela pequena sala quanto eu me atrevia.
Eu nunca tinha sido mais grata pelos esparsos móveis como naquele instante, enquanto me
dirigia até a porta do corredor.
Me movi como um fantasma pela sala, hesitando assim que cheguei à porta. Talvez as
histórias tolas de Radu estivessem certas. Esta era uma noite para assombrações, afinal de
contas. Exceto que eu seria o espectro, correndo pelas cercanias sem ser vista.
Colocando meu ouvido junto à parede próximo à porta, fiquei ouvindo, forçando-me a
permanecer fria e imóvel como mármore. Vozes sussurradas resmungavam baixo demais para
que eu discernisse o que diziam. Era difícil dizer se ambas eram vozes masculinas ou se havia
uma mulher envolvida também. Eu me colei na parede até que o meu rosto doesse com a
pressão, mas eu ainda não conseguia entender o que aqueles gatunos que vagavam na noite
estavam sussurrando. Soava quase como se fosse um cântico...
Recuei, a confusão me puxando para longe. Por que diabos as pessoas estariam entoando
hinos desagradáveis na calada da noite era algo que estava além da lógica a essa hora. Talvez
aqueles ruídos de há pouco fossem apenas o resultado de um encontro clandestino. Eu já não
havia aprendido essa lição com Daciana e Ileana? Eu me virei, preparada para voltar
marchando para a cama, e então parei.
Os sussurros ficaram mais altos, subindo como ondas que logo quebravam em um quase
silêncio. Não se tratava de nenhum encontro clandestino e romântico na torre. Quando as
vozes deixaram que o fervor de sua canção enigmática as distraísse, eu consegui reconhecer
algumas poucas palavras, entoadas em romeno.
“Vermelho... floresta... alto... alguma coisa... almas... carne e... restos... alguma coisa...
marfim... morte...”
Tunc.
O cântico parou como se uma guilhotina houvesse cortado fora a língua de quem quer
que se atrevesse a falar palavras tão blasfemas nesta sagrada véspera invernal. Eu não queria
dar nenhum crédito às superstições de Radu, porém, talvez houvesse alguma outra coisa em
relação a esta noite.
A luz tremeluzia sob o batente da porta, pintando de dourado o chão e cobrindo meus pés.
Não ousei me mover. Respirei silenciosamente, observando enquanto a luz se esvanecia pelo
corredor, acompanhada pelos sons de alguma coisa sendo arrastada logo atrás. Pelo menos
dois conjuntos de botas marchavam ritmicamente pelas escadas, com sua carga roubada
fazendo tuncs ocos em seguida. A curiosidade alcançou o interior da minha mente,
dificultando o pensamento lógico. Se eu não fosse logo atrás deles, eu os perderia no labirinto
de corredores do castelo.
Ir sozinha me parecia uma ideia horrível, mas o que mais eu deveria fazer? Eu não poderia
apenas fingir que algo inapropriado não estava acontecendo. Não havia tempo para descer
correndo até os aposentos de Thomas e acordá-lo. Além do mais, ele dividia o andar com
outros rapazes. Eu não poderia imaginar o escândalo que eu causaria ao arrastá-lo para fora
de sua cama assim tão tarde da noite. Nós dois perderíamos nossos lugares na academia. E
rumores de casos clandestinos certamente chegariam àqueles em Londres que pareciam
obter poder com fofocas, comercializando-as como se fossem moeda corrente. Eu desejava
que Anastasia tivesse voltado — ela certamente teria me ajudado com este dilema.
Mordi o lábio. Eu não achava que nosso assassino estava por trás deste roubo à meia-
noite; eu não podia imaginar por que ele roubaria um corpo. Ele aprecia matar, e não roubar
cadáveres. A indecisão continuava a brincar com a parte racional do meu cérebro. A parte que
dizia que eu deveria acordar o diretor e deixar que ele lidasse com os ladrões. Eu podia
imaginar a curva retorcida de sua boca quando eu o informasse do que eu havia ouvido. Seu
sorriso de desdém afiado o bastante para perfurar minha pele e extrair sangue. Foi isso que
me fez decidir.
Cruzei a sala correndo e peguei meu manto e um escalpelo, com as mãos tremendo tanto
que quase o derrubei. Pelo menos eu dispunha de alguma forma de defesa. Se eu fosse
correndo até Moldoveanu, ele surtaria com aquela intrusão no meio da noite e acharia que eu
era uma mentirosa. Eu poderia até mesmo acabar como um dos ossos com que ele limpava os
dentes. Eu preferia me arriscar com os ladrões de corpos e seus cânticos malévolos.
Entrei correndo no corredor e desci as escadas, captando o último lampejo de movimento
antes de eles entrarem nos níveis inferiores, e parei, sem fôlego.
Aparentemente, eles estavam descendo até o subterrâneo com o cadáver roubado.
28. LADRÕES DE CORPOS
Coridoare
Corredores, Castelo de Bran
14 de dezembro de 1888
apuzes pretos estavam puxados por cima das cabeças dos ladrões de corpos,
obscurecendo sua identidade nos corredores cheios de sombras, conforme eles
seguiam seu caminho da torre em direção aos níveis mais inferiores. Meu próprio
manto era de uma cor intensa de carvão, remanescente de noites banhadas por um meio luar
e de vielas brumosas, e era perfeito para deslizar por espaços não iluminados. Fiquei grata por
ter deixado a capa escarlate em Londres. Segurei com firmeza o meu escalpelo, pronta para
empunhá-lo como se fosse uma espada, da mesma forma que Andrei havia feito mais cedo.
Os ladrões se moviam com a cautela constante daqueles que haviam feito isso muitas
vezes no passado. Pausando e ouvindo antes de deslizarem para o próximo corredor.
Enquanto eles rumavam até o nível inferior, sua procissão era silenciosa, exceto pelos sons do
corpo raspando pelo chão enquanto eles o puxavam atrás de si. Não demorou muito para que
eu entendesse que estávamos andando na direção do necrotério no porão. Pressionei-me
junto a uma parede e permiti que toda uma litania de dúvidas passasse pela minha mente.
Talvez esses supostos ladrões fossem apenas criadas movendo o corpo entre os necrotérios
por ordem dos professores.
Afinal de contas, alguém tinha que transportar os cadáveres de um lugar para o outro. Eu
nunca havia visto os cadáveres sendo carregados pelos arredores durante dias letivos. O
cântico, por outro lado... Bem, era um pouco estranho. Mas não era uma evidência
incriminatória de culpa. Para falar a verdade, enquanto eu estava ali parada, refletindo sobre
tudo, eu não tinha total certeza de que eles até mesmo estivessem entoando um cântico.
Talvez eles estivessem apenas cantando uma melodia para se distrair de seu trabalho. Se eles
tivessem qualquer traço do temperamento arisco de Ileana, provavelmente não gostavam de
estar em meio a cadáveres. Isso era algo de que a maioria das pessoas não gostava.
Dei um chute no tapete gasto pelos inúmeros pés que haviam passado por ele no decorrer
de várias centenas de anos. Eu não podia acreditar que eu havia saído da minha cama por
causa disso. Uma dupla de ladrões de cadáveres, até parece. Eu nunca haveria de me livrar das
minhas ideias românticas.
Nem tudo que caía ruidosamente no meio da noite era um monstro. Estava claro que eu
havia ouvido histórias demais de vampiros e lobisomens desde que chegara aqui. Tudo isso
era obra da minha maldita imaginação. Em algum lugar, bem lá no fundo, eu queria que essas
histórias fúnebres e estranhas fossem verídicas. Embora eu odiasse admiti-lo até para mim
mesma, havia algo terrivelmente atraente na ideia de seres imortais. Talvez fosse o monstro
dentro de mim que desejasse a existência de outros, especialmente aqueles encontrados
apenas em histórias.
Arrastando seu pacote envolto em uma mortalha da melhor forma possível, as duas
silhuetas viraram em uma esquina, desaparecendo de vista. Eu decidi me demorar ali um
pouquinho mais. Eu poderia muito bem confirmar que eles estavam depositando este
espécime no necrotério do andar inferior antes de subir aquelas escadas abissais da torre
novamente. Olhei para a gigantesca samambaia no lado oposto do corredor, perguntando-me
se eu deveria simplesmente me enrolar ali atrás dela e dormir até o amanhecer.
Uma porta fechou-se com um clique, e eu dei meia-volta em um canto, abrigando-me em
uma alcova oculta por uma imensa tapeçaria. Não deveria demorar muito agora. Eu me
agachei, cobrindo a camisola com meu manto para evitar que qualquer tecido claríssimo
chamasse uma atenção indesejada. Eu não precisava que nenhuma criada no castelo ficasse
sabendo das minhas escapadas no meio da noite. Escondi o escalpelo com a beirada do meu
manto, lembrando-me de uma de minhas citações prediletas de Shakespeare: Os instrumentos
das trevas nos dizem verdades.
Eu sentia os dedos dos meus pés formigando, um aviso de que eles ficariam entorpecidos
em poucos instantes. Eu me mexi, na esperança de recobrar a circulação. Com certeza não era
necessário demorar tanto assim para colocar um corpo em uma mesa ou em uma gaveta
mortuária. Fui envolvida pela inquietação, até que eu mal conseguia respirar.
Fechei os olhos.
"É claro. É claro que este é o tipo de noite que estou tendo.”
Eu não havia permitido que o pensamento de vê-los entrando nos túneis secretos passasse
pela minha cabeça. Eu não faria isso, não poderia, não por livre e espontânea vontade, descer
naquele maldito lugar sozinha. Só de pensar em seguir essas pessoas desconhecidas por
aqueles túneis cheios de morcegos e outras criaturas odiosas já era o bastante para fazer com
que eu considerasse voltar direto para os meus aposentos, com ou sem arma.
Contei meus batimentos cardíacos, que aumentavam cada vez mais, sabendo o que eu
deveria fazer. Eu não tinha nenhuma arma de verdade. Nenhuma fonte de luz. E ninguém
sabia que eu estava fora da cama. Caso algo acontecesse, era provável que eu jamais fosse
encontrada. Moldoveanu certamente não enviaria alguém para me procurar.
Pensar nisso fez com que eu me endireitasse. Meu cérebro, confuso com o sono, não
estava tão afiado quanto deveria. Onde estavam os guardas reais? Eles estiveram postados nos
corredores e do lado de fora do necrotério todos os dias dessa semana. Era estranho que eu
não houvesse encontrado nenhum deles ainda, embora talvez eles patrulhassem apenas as
saídas e entradas principais a essa hora da noite. Fazia muito tempo desde que os alunos
haviam se enfiado em suas camas, sonhando com vísceras e ciência. E os habitantes do
necrotério não precisavam ser supervisionados. Ninguém além de mim era tomado por
ilusões deles se erguendo.
Apertei bem meu manto, envolvendo-o no meu corpo como se fosse uma armadura, e
deixei o santuário do meu esconderijo. Do canto, espiei em volta e soltei o ar devagar.
Ninguém à vista. Aprumando minha postura, andei sorrateiramente pelo corredor. Antes que
eu pudesse me convencer do contrário, virei a maçaneta e entrei no necrotério. Ele estava
vazio e silencioso. Nada se encontrava revirado ou fora do lugar.
Exceto pelo alçapão, que estava levemente aberto — uma trilha de sedutoras migalhas de
pão à qual eu não conseguia resistir e precisava seguir. O mesmo cheiro repulsivo de carne
podre invadiu os meus sentidos enquanto eu andava nas pontas dos pés, descendo os degraus
fraturados de pedra da escada e observando para ver se havia algum sinal de armadilhas.
Rezei para que nenhum morcego estivesse pairando nos túneis nesta noite. Nem aranhas.
Eu poderia viver sem suas longas e finas pernas e seus olhos refletores. Lidar com cadáveres e
ladrões e odores fétidos em lugares desgraçados era uma coisa. Morcegos e aranhas, em
contrapartida, eram o meu limite.
Uma vez no túnel, me orientei na densa escuridão. Pisquei algumas vezes, ajustando meus
olhos à falta de luz, e observei as formas mais escuras da dupla que se movia com rapidez,
agora sem medo de fazer barulho nem de acordar os alunos ou os professores. Quantas vezes
eles haviam feito isso? Certamente, parecia que essa era uma rotina com que estavam
familiarizados.
Eu corri por uns poucos metros e então fiz uma pausa, esperando que a luz do lampião
deles se apagasse, mas sem desaparecer completamente, enquanto eu voltava a me apressar,
andando de uma sombra à outra, permanecendo atrás, longe o bastante para evitar ser
notada.
Eles fizeram uma pausa em um cruzamento, segurando o lampião junto à parede, e
tracejaram algo ali com as pontas dos dedos. Fiz uma estimativa aproximada da altura em que
esse objeto estava na parede, na esperança de entender o que havia chamado a atenção deles
depois que houvessem seguido em frente.
Continuando pelo túnel, um daqueles que Thomas e eu havíamos decidido não investigar
na noite em que descobrimos o corpo da mulher, esperei que as sombras me abraçassem
novamente. Uma vez que eu não mais podia ser vista, corri até o canto, tateando os arredores
da áspera parede de pedra. O vento frio roçava na bainha da minha camisola.
Por um momento aterrorizante, imaginei aranhas subindo pelas minhas meias, e o sangue
formigou em minhas veias. Respire, ordenei a mim mesma. Eu não podia me dar ao luxo de
ter uma crise aqui embaixo, sozinha. Meus dedos roçaram em teias pegajosas e coisas que eu
preferia não saber o que eram antes de deslizarem por entalhes profundos.
XI
Tateei ao meu redor, o olhar focado, mirando o túnel que estava quase completamente
escuro, agora que os ladrões estavam próximo à extremidade oposta. XI. Isso era tudo que
havia entalhado ali. Nenhuma outra letra. Colocando essa informação de lado, desci correndo
até o próximo corredor, testemunhando as silhuetas encapuzadas fazerem a mesma coisa
antes de seguirem em frente. Cada nova bifurcação no sistema de túneis trazia um novo
conjunto de entalhes e uma nova onda de medo.
XXIII
VIII
Querida Liza,
Depois de ler sua última correspondência, eu pensei e repensei sobre ela por um bom
tempo. Acredito que esteja certa, embora eu saiba que você provavelmente não tinha
dúvida quanto a isso.
Eu me dei conta de que estava magoada e com raiva. As ações equivocadas de
Thomas nasceram não de uma falta de afeto da parte dele, mas sim de um mal-
entendido em relação a como ele poderia oferecer o apoio correto a mim. (O que
claramente não inclui avisar professores sobre o meu estado emocional.)
No entanto, tenho outras preocupações. Preocupações sobre as quais tenho medo de falar. Por
favor, queime esta carta assim que a tiver lido, e não conte a ninguém sobre seu conteúdo. Não
consigo me livrar da sensação de estar sendo observada. Um aluno foi encontrado morto e um corpo
não identificado foi descoberto aqui na academia em questão de semanas. Um deles não apresentava
sinais externos de assassinato, e o outro havia falecido de... modos mais horrendos. Ainda assim,
ambos os corpos haviam tido seu sangue completamente drenado. Uma coisa terrível sobre a qual
falar; peço desculpas. Além disso, há quase uma semana não tenho notícias de uma amiga
daqui e estou preocupada com ela.
Eu não conseguirei viajar para casa para passar as festas de fim de ano devido
ao clima ruim e também à falta de tempo livre, mas escreverei com frequência para
compensar. A família de Thomas tem uma casa em Bucareste e a irmã dele nos
convidou para irmos a um baile lá, e eu não faço a mínima ideia do que vestirei em tal
evento. Deixei os meus mais queridos vestidos em casa. É uma bobagem falar de
tamanhas frivolidades quando há coisas muito piores acontecendo.
Tia Amelia voltou a considerar a ideia de mandar você em uma viagem pelo
continente? A irmã de Thomas, a srta. Daciana Cresswell, prometeu escrever a
ela em seu nome. Talvez você pudesse pedir que sua mãe reconsiderasse e lhe
concedesse permissão para essa viagem como presente de Natal. Ou talvez ela
fosse concordar que viajássemos para os estados Unidos, eu adoraria passar um
tempo lá e visitar a vovó. Nós talvez poderíamos persuadir a minha avó a falar
em nosso nome também. Você sabe como ela consegue ser convincente.
Peço desculpas por não acrescentar mais detalhes a esta carta. Eu tenho que ir
correndo para a cama. A aula de anatomia é a primeira, logo pela manhã. É de
longe a minha aula preferida (mesmo que o diretor seja um bruto horrendo). Que
surpresa, não é mesmo?
Sua prima afetuosa,
AR
Obs.: Como está o meu pai? Dê a ele um abraço por mim, por favor, e diga-lhe que
escreverei em breve. Eu sinto uma falta tremenda dele, e me preocupo que vá cair no
encanto de seu láudano em minha ausência. Fique atenta quando ele se trancar em seu
estúdio. Nada de bom provém disso.
29. VISLUMBRES DE FITA FRETA
Camere din turn
Câmaras da torre, Castelo de Bran
14 de dezembro de 1888
inquietação quanto à possibilidade de minha carta para Liza cair nas mãos de outra
pessoa fez com que eu a entregasse logo pela manhã junto com correspondências de
saída do castelo. Depois que retornei, fiquei observando, da entrada dos meus
aposentos na torre, enquanto um intruso cruzava a sala de estar na ponta dos pés e seguia seu
caminho na direção de meu quarto, como se tivesse todo o direito de fazer isso. Era
realmente notável como ele se mostrava confiante enquanto fazia algo errado de inúmeras
maneiras possíveis.
Eu não fazia a mínima ideia do que ele estava prestes a fazer, mas o patife provavelmente
teria uma desculpa interessante. Visto que eu havia sido escoltada até os meus aposentos, eu
ainda não tinha tido a oportunidade de discutir os eventos da noite anterior com ele. Ileana
ainda não estava disponível para falar comigo, então enviei um bilhete a ele por intermédio
da minha nova camareira, e havia dito para me encontrar depois que ele saísse da aula.
Na biblioteca principal.
Deveríamos ter nos encontrado dez minutos atrás e eu estava vergonhosamente atrasada,
mesmo sem ter comparecido à aula de Moldoveanu, já que eu fora proibida de fazê-lo. Antes
de escrever e entregar a minha carta, eu havia passado a maior parte da manhã lendo
qualquer coisa que eu pudesse sobre o castelo, e perdi a noção do tempo. Pigarreei, satisfeita,
quando ele se virou, com as sobrancelhas tão erguidas que praticamente alcançavam seus
cabelos.
“Oh, olá. Eu achei que você estivesse na biblioteca... Não é cortês mentir para seus amigos,
Wadsworth.”
“Será que eu devo até mesmo me atrever a perguntar por que você está se esgueirando
pelos arredores de meus aposentos particulares, Cresswell?” O olhar dele voltou-se
rapidamente para a porta de meu dormitório, calculando sabe-se lá o quê. Ele estava a apenas
uns poucos passos da porta, menos ainda se ele usasse como vantagem o fato de ter longas
pernas. “Ou devo fingir que você não está sendo o patife indecente que eu sei que você é?”
“Por que você não estava na aula?” Thomas alternou o peso de um pé para o outro. Havia
um pacote de tamanho considerável parcialmente escondido atrás de suas costas. Fui para a
sala de estar, espiando ao redor dele, mas ele dançou um passo para trás. “Oh, oh, oh”,
cantou. “Isso se chama ‘surpresa’, Wadsworth. Cuide de suas coisas e me deixe quieto. Você
sabe que eu não a desprezaria por entrar no meu quarto. Sendo eu tamanho patife.”
Fui mais para perto de onde ele estava, com os olhos estreitados. “Você entrou com tudo
nos meus aposentos. Agora você quer que eu o deixe em paz para fazer algum tipo de
travessura? Não me parece muito lógico.”
“Hummm. Entendi o seu ponto.”
Thomas lentamente recuou para dentro de meu quarto, enganchando o pé no limiar com
supremo controle. Eu teria prestado mais atenção no propósito dele se eu não estivesse
tentando ver o pacote convidativo que ele escondia. Vislumbres de fita preta amarrada em
um laço ridiculamente grande demais me deixaram completamente intrigada.
“Quando você coloca as coisas dessa forma, é claro que eu não quero que você me deixe
quieto”, ele continuou falando. “Poderíamos nos divertir muito juntos.”
O olhar dele voltou-se para contemplar a cama de solteiro, demorando-se ali para
esclarecer suas intenções. Eu havia me esquecido completamente de minha próxima
pergunta, e, enquanto Thomas se mexia, pude ver um papel pardo cobrindo a caixa inteira.
Grande o bastante a ponto de poder acomodar um corpo. Avancei alguns centímetros mais
para perto dele, com a curiosidade girando selvagemente na minha cabeça. O que diabos
poderia ser aquilo? Mantive minha atenção na caixa, na esperança de conseguir uma pista.
“Embora”, ele disse ainda, devagar, “eu preferisse ficar rolando em algo um pouco mais...
adequado ao meu tamanho.”
Eu parei de me mexer. Quase parei de respirar enquanto suas palavras afastavam minha
curiosidade em relação ao pacote. Eu não podia imaginar como seria isso: deitados na cama
juntos, nos beijando descontroladamente... e...
Thomas abriu um sorriso afetado, como se ele soubesse precisamente a direção que meus
pensamentos errantes haviam tomado e estivesse satisfeito porque eu não o havia jogado pela
janela. Ainda.
Com o rosto ardendo, apontei para a câmara atrás de mim. “Saia do meu quarto,
Cresswell. Você pode deixar a caixa no canapé.”
Ele estalou a língua. “Peço desculpas, doçura minha, mas você realmente deveria agir de
imediato ao interpretar minha linguagem corporal. Eu vi que você notou onde pus o pé. Uma
coleta de detalhes bastante decente, devo admitir. Que pena que você deixou que aqueles
pensamentos escandalosos a distraíssem. Embora eu dificilmente possa culpá-la por isso.”
“Notei onde você... Thomas!”
Antes que eu pudesse avançar para cima dele e atacá-lo, ele fechou a porta com o maldito
pé. Eu tentei usar a maçaneta, mas ele já havia girado a chave, se trancando ali dentro. Eu ia
matá-lo!
“Para uma jovem tão modesta”, provocou Thomas, de trás da porta, “você certamente tem
um intrigante número de roupas de baixo de renda. Eu vou ficar imaginando todos os tipos
de coisas impróprias quando você estiver costurando o próximo corpo na aula do Percy. Você
acha que isso faz de mim uma alma corrompida? Talvez eu devesse ficar preocupado. Na
verdade, talvez seja você quem deva ter medo.”
“Cresswell! Você já se fez entender, agora tenha a bondade de sair. Se o diretor descobrir
essa impropriedade enquanto estou em período de suspensão acadêmica, eu serei expulsa!”
Eu soquei a porta, dando um pulo para trás quando ela se abriu com um rangido. Todo o
humor havia sido removido da expressão de Thomas enquanto ele inclinava a cabeça para o
lado, encarando-me. “Período de suspensão acadêmica? Que tipo de travessura eu perdi, e o
que, exatamente, essa suspensão significa?”
Eu me recostei na parede, repentinamente exausta da noite anterior. Eu mal havia
dormido, revirando-me na cama como se isso pudesse me ajudar a discernir o que eu achava
que tinha visto. Será que realmente havia duas pessoas entoando um cântico no corredor?
Será que eles realmente roubaram um corpo, ou seria aquele fardo que eles estavam
carregando simplesmente alimentos, como Moldoveanu sugerira? Eu não confiava mais em
mim mesma.
Thomas imitou minha posição, reclinando-se junto ao batente da porta, e eu contei a ele
todos os detalhes de que eu conseguia me lembrar, sabendo que ele encontraria significado
em qualquer coisa que eu pudesse ter deixado de falar, levando em consideração a forma
como ele com frequência via as coisas de maneira única. Falei da minha aventura com
Anastasia no vilarejo, e sobre a descoberta do possível envolvimento da jovem mulher
desaparecida com a Ordem do Dragão. Eu até mesmo contei a ele sobre as minhas suspeitas
em relação às ilustrações de Nicolae e como isso poderia possivelmente se conectar com a
morte do primo dele. Mas eu não o informei de que eu também havia sido desenhada no
diário do príncipe. Isso eu não queria compartilhar com ele por vários motivos.
Quando terminei de falar, Thomas mordiscava seu lábio inferior até parecer que ficaria
machucado. “Eu não ficaria surpreso se Nicolae fosse o responsável por enviar aquelas
ameaças”, opinou ele. “Mas o motivo por trás disso é um pouco obscuro. Eu terei que observá-
lo na sala de aula. Captar algum movimento involuntário ou alguma pista.”
“Independentemente disso”, continuei, “eu tenho uma teoria de que alguém está caçando
a linhagem de Vlad. Querendo passar alguma mensagem. Para qual propósito, eu não sei ao
certo. Dois dos assassinatos parecem ter sido obra de um caçador de vampiros. O outro
assassinato definitivamente tem as marcas de um ataque de vampiro. O príncipe Nicolae
poderia estar em perigo. A menos que seja ele quem esteja enviando as ameaças. Qual é o elo
comum entre as vítimas? E como a mulher do túnel se encaixa nisso tudo?”
“Tecnicamente, Nicolae não é um dos descendentes de Vlad.” Thomas fitou diretamente
os meus olhos, mas eu podia ver que ele estava em um outro continente. “Ele faz parte da
linhagem dos Dăneşti. As famílias Dăneşti e Drăculeşti foram rivais por muitos anos. Eu diria
que alguém tem como alvo a Casa dos Basarab, ambas as ramificações da família. Ou talvez
uma linhagem familiar esteja sendo retratada como os vampiros, e a outra, como os
caçadores.”
“Sendo assim, Dăneşti, o guarda, é parente do príncipe Nicolae?” perguntei. “Tenho um
pouco de medo de perguntar como você é assim tão versado na história de uma família
medieval.”
“Há algo que eu venho querendo contar a você.” Ele inspirou profundamente. “Eu sou o
herdeiro de Drácula.”
Fiquei grata por já estar apoiada na parede. Eu o encarei, tentando desvendar a confusão
que girava ao redor de uma declaração assim tão simples. Eu não poderia ter ouvido direito.
Thomas esperou sem dizer mais nenhuma palavra, tenso enquanto aguardava minha
resposta.
“Mas... você é inglês.”
“E romeno, lembra? Por parte de mãe.” Ele me ofereceu um sorriso hesitante. “Minha mãe
era uma cel Rău, descendente do filho de Vlad, Mihnea.”
Eu revirei aquela informação na minha cabeça, escolhendo minhas próximas palavras com
cuidado. “Por que você não mencionou a linhagem de Drácula antes? Este é um tópico um
tanto intrigante.”
“‘Cel Rău’ quer dizer O Malévolo. Eu não estava morrendo de vontade de expor isso. Na
verdade, sua amiga Anastasia me encurralou na outra semana e me acusou de trazer a
maldição do sangue para a academia. Ela disse que o último homem herdeiro remanescente
de Drácula não deveria ter vindo a este castelo, a menos que eu tivesse um grandioso plano de
assumir o trono, ou algum outro absurdo do gênero.”
Ele baixou o olhar para o tapete, encolhendo os ombros. Meu coração acelerou. Eu me dei
conta de que Thomas acreditava naquele apelido tolo. Pior, ele acreditava que eu haveria de
pensar isso dele também. Tudo por causa da família na qual ele havia nascido. Eu não fazia a
mínima ideia de como Anastasia descobrira a verdade sobre a linhagem dele, e não me
importava com isso no momento. Toquei no cotovelo dele, encorajando-o gentilmente a
olhar para mim.
“Você tem certeza de que a tradução não é O Tolo?” Ele nem mesmo abriu a pontinha de
um sorriso. Algo se contorceu em meu âmago. "Se você é malévolo, eu sou igualmente
malévola. Se não for pior. Nós cortamos os mortos, Thomas. Isso não nos torna malditos. Foi
por isso que você não me contou antes? Ou você estava com medo de que seu título
principesco fosse mudar meus... sentimentos?”
Ele lentamente ergueu o olhar; pela primeira vez na vida, Thomas não escondeu suas
emoções. Antes que ele respondesse, eu vi a profundidade de seu medo esboçada em sua face.
Toda a postura forjada e a arrogância se foram. E no lugar, ficou um rapaz cujo mundo
parecia estar se partindo ao seu redor e não havia nada que ele pudesse fazer para salvar a si
mesmo. Ele cairia de um penhasco tão alto que toda a esperança de sobrevivência teria
perecido antes que ele tivesse chegado ao chão.
“Quem a culparia por não falar comigo de novo? O monstro sem sentimentos que
descende do próprio Diabo. Todo mundo em Londres adoraria isso. Um verdadeiro motivo
para meu repreensível comportamento social.” Thomas passou a mão pelos cabelos. “A
maioria das pessoas acha difícil ficar perto de mim na melhor das circunstâncias. Eu fiquei, se
for para ser honesto, horrorizado com a possibilidade de que você visse o que todo o restante
das pessoas vê. Não é que eu não confie em você. Eu sou egoísta e não quero perdê-la. Eu sou
herdeiro de uma dinastia banhada em sangue. O que eu poderia oferecer a você?”
Havia mil coisas nas quais precisávamos nos concentrar. A possibilidade de que o
Empalador impostor estivesse perto da academia; o número crescente de assassinatos; nosso
colega de classe suspeito... E, ainda assim, quando fitei os olhos de Thomas e vi a agonia por
trás deles, eu só consegui pensar em uma coisa. Eu me movi mais para perto dele, com o
coração acelerado a cada passo que eu dava em sua direção.
“Eu não vejo um monstro, Thomas.” Fiz uma pausa e deixei alguns centímetros entre nós.
“Eu vejo apenas o meu melhor amigo. Eu vejo bondade. E compaixão. Vejo um rapaz que está
determinado a usar sua mente para ajudar os outros, até mesmo quando ele fracassa
miseravelmente nas questões emocionais.”
Os lábios dele se enviesaram, mas eu ainda vi a preocupação subjacente em seu semblante.
“Talvez possamos continuar falando de todas as formas como eu sou maravilhoso...”
“O que eu quero dizer é que eu vejo você, Thomas Cresswell.” Coloquei uma das minhas
mãos enluvadas no rosto dele na mais leve insinuação de um toque. “E eu acho que você é
verdadeiramente incrível.” Pausei. “Às vezes.”
Ele permaneceu perfeitamente imóvel por uns poucos e tensos instantes, com sua atenção
deslizando pelas minhas feições, medindo minha sinceridade. Mantive a expressão aberta,
permitindo que a verdade se revelasse.
“Bem, eu sou encantador.” Thomas deslizou as mãos na frente de seu colete, e a tensão foi
se esvanecendo com o movimento. “E um príncipe. Você deveria desmaiar. Embora o
Príncipe Drácula seja o oposto bem gótico do Príncipe Encantado. Um pequeno detalhe, na
verdade.”
Eu ri com gosto. “Você não é tecnicamente de uma família destituída? Você é um príncipe
sem um trono.”
“Príncipe Encantado Deposto não soa tão bem assim, Wadsworth”, apontou Thomas,
bufando em uma falsa exasperação, embora eu pudesse ver o brilho em seus olhos agora
radiantes. “Sou encantado mesmo assim.”
Um tipo diferente de centelha apareceu no olhar dele enquanto este viajava lentamente
até a minha boca. Muito cuidadosamente, ele deu um passo para a frente e inclinou meu
queixo para cima. Eu me dei conta mesmo em meio aos altos e baixos, e aos erros — que tê-lo
ao meu lado enquanto o mundo enlouquecia ao nosso redor não seria uma forma terrível de
viver a vida. Meus olhos tremeluziram e fecharam-se, preparados para um segundo beijo...
que não veio. As mãos de Thomas de repente se foram, e minha pele instantaneamente sentiu
falta de sua calidez.
“Que inconveniente!” Ele se empertigou, assentindo para a porta, e recuou um passo.
“Temos visita.”
A criada para quem, mais cedo, eu tinha pedido que entregasse o bilhete a Thomas ficou
tão intensamente ruborizada que era possível enxergar até de onde eu me encontrava,
conforme ela ia entrando nos meus aposentos. Não era a primeira vez que eu desejava que
Ileana voltasse. Eu sentia a premência de me derreter inteira no chão, tendo certeza de que
ela havia notado a tensão entre mim e Thomas, mesmo que agora estivéssemos separados por
uma distância respeitável.
Ela ergueu os baldes de madeira que estava carregando em resposta. E murmurou pedidos
de desculpas, metade em romeno, metade em inglês, mas eu entendi.
“Não, não, está tudo bem. Você não estava interrompendo nada”, falei, movendo-me na
direção da porta, que agora estava aberta.
Eu não queria que ela presumisse algo errado. Ou certo. O escândalo de ter Thomas em
meus aposentos sem uma acompanhante da minha parte já era o bastante para me arruinar
caso a notícia vazasse. Será que essa moça calada algum dia faria uma coisa dessas? A forma
como ela se demorou no perímetro dos aposentos, não conseguindo muito bem me olhar nos
olhos, era o suficiente para incitar o pânico. Fiz o melhor para me comunicar em romeno.
“Nós estamos a caminho da biblioteca. Por favor, diga a Ileana que eu adoraria falar com ela
mais tarde.”
A jovem criada manteve a cabeça abaixada ao assentir. "Da, domnişoară. Certamente direi
isso a ela caso eu a veja.”
Eu senti a atenção de Thomas vagando na direção da nova criada, mas não queria atrair
mais nenhuma atenção para nossa situação inapropriada. Eu sorri para a moça e andei com
Thomas o mais rapidamente quanto me atrevi até a biblioteca. Tínhamos um caso a resolver.
Agora, munida do conhecimento acerca da linhagem de Thomas, eu temia que Nicolae
pudesse não ser o único que corria perigo, se minhas suspeitas estivessem corretas e os
descendentes de sangue de Vlad fossem mesmo os alvos. Se esse fosse o caso, talvez Thomas
estivesse correndo ainda mais perigo por ser o herdeiro de Drácula.
Se um ramo da árvore genealógica estava sendo empalado e o outro estava tendo seu
sangue drenado, nenhum dos dois estava a salvo.
30. OLHANDO COM MAIS ATENÇÃO
Bibliotecă
Biblioteca, Castelo de Bran
14 de dezembro de 1888
ão conseguiu ficar longe de mim, não foi?” Noah olhava radiante de trás de um
grande tomo, aprumado a uma pequena mesa. “Por que você não estava na aula de
anatomia?”
“Nosso amigo em comum pode ter me encontrado do lado de fora do castelo depois do
toque de recolher.”
Noah balançou a cabeça e deu risada. “Eu espero que o que quer que a tenha atraído lá
para fora tenha valido a pena. Aquele homem é mais aterrorizante que qualquer vampiro que
esteja assombrando a academia.” A seriedade rapidamente substituiu a leviandade em seu
tom. “Você tem sorte de que Moldoveanu a tenha encontrado na noite passada. Aquela criada
não foi tão afortunada assim. Alguma coisa a pegou.”
Thomas e eu piscamos um para o outro, e o temor acumulou-se em minhas veias. Eu não
tinha visto Ileana a manhã toda. Na verdade, fazia quase dois dias que eu não a via.
“Que criada?”, perguntei, meu estômago se contorcendo. “Qual era o nome dela?”
“Uma das moças que tinha sido designada aos aposentos do príncipe Nicolae e de Andrei.
Moldoveanu e aquele guarda estão questionando ambos agora mesmo. Cancelou as aulas
tanto de Percy quanto de Radu esta tarde e tudo o mais. Devemos voltar aos nossos
aposentos até as três horas.” Noah olhou para nós. “Eu consideraria dar ouvidos ao diretor
hoje. Eu, Erik e Cian vamos nos trancar para estudar. O corpo daquela criada foi
completamente drenado. Prefiro manter o meu sangue correndo em minhas veias.”
“Você não acredita realmente que um vampiro a tenha atacado, acredita?”
Noah deu de ombros. “Importa se era um vampiro de verdade ou não? De qualquer forma,
ela está morta e seu sangue se foi.”
Eu não fui capaz de segurar meus pensamentos de forma rápida o bastante. Se tanto essa
criada quanto a moça dos túneis haviam sido assassinadas, talvez eu estivesse errada em
presumir que os alvos fossem apenas os membros da família real. A moça do vilarejo não
tinha nenhuma conexão aparente com a realeza, e eu ainda não acreditava que ela fosse
membro da Ordem, apesar do bilhete sombrio de Anastasia.
“Como você sabe que o sangue dela foi drenado?” Thomas cruzou os braços sobre o peito.
“Alguém viu o corpo? Onde foi encontrado?”
“Depois da aula de anatomia, os gêmeos a encontraram no corredor do lado de fora da ala
de ciência. Parece que eles estavam voltando às pressas para seus aposentos para almoçar. Foi
então que eles encontraram o corpo dela. Disseram que ela estava mais pálida do que
Wilhelm. Nada de livor mortis.” Noah engoliu em seco. “Ela também não tinha nenhum sinal
externo de trauma. Nenhum machucado óbvio além de duas perfurações no pescoço. Strigoi
podem ser mito, mas quem quer que esteja matando essas pessoas não parece saber ou se
importar com isso.”
“Creio que o assassino esteja usando algum equipamento de necropsia”, falei. “O diretor
tem um inventário dos equipamentos da academia?”
“Não sei. Mas, se ele possui tal inventário, tenho certeza de que ele já investigou isso.”
Noah fechou o livro que estivera lendo e olhou para o bibliotecário, que tinha entrado e
sentado atrás de uma grande mesa. Ele varreu cada um de nós com os olhos, sorrindo em
cortesia. Noah baixou o tom de voz e inclinou-se para a frente. “Embora eu duvide que ele vá
nos dizer se algum equipamento estiver faltando. Moldoveanu realmente não é do tipo que
divide nada. Se alguém entrou furtivamente na academia e roubou um instrumento que
esteja sendo usado nos assassinatos...” Ele ergueu um dos ombros. “Não seria algo muito
positivo para as pessoas ficarem sabendo. A academia ficaria arruinada.”
Enquanto considerávamos as novas informações, o bibliotecário olhou nos meus olhos e
sorriu. “Bonjour", disse. “Je m'appelle Pierre. Posso ajudá-los a encontrar alguma coisa?”
“Não, obrigado”, disse Noah, colocando sua bolsa no ombro. “Vejo vocês dois na aula.
Quando tivermos aula. É possível que esse curso de avaliação seja cancelado. Ao menos é o
que dizem os rumores.” Ele balançou a cabeça, um movimento marcado pela decepção. “Eu
viajei uma longa distância para chegar até aqui e, com vampiro falso ou não, eu ainda não vou
desistir de fazer por merecer uma daquelas vagas. Como eu disse, eu, Erik e Cian estaremos
estudando mais tarde... Vocês dois são bem-vindos para se juntar a nós se quiserem.”
“Obrigada.”
Sorri. Era uma oferta gentil, mas de jeito nenhum eu teria permissão para permanecer em
uma sala cheia de rapazes durante uma noite inteira, por mais inocente que fosse o motivo.
Eu podia ver minha tia Amélia fazendo o sinal da cruz só de pensar na minha reputação.
Thomas despediu-se de Noah e inspecionou o bibliotecário com uma precisão
microscópica. Ele era um homem esguio, com cabelos castanhos e cacheados, e que usava um
macacão grande demais para ele.
“Onde poderíamos encontrar um livro sobre a Ordem do Dragão, marcado, de alguma
maneira, com numerais romanos?”
Pierre uniu as pontas dos dedos abaixo do queixo para refletir e pareceu calcular as
possibilidades antes de se levantar.
“Por aqui, por favor.”
Havia uma pilha de livros espalhados sobre quase todos os centímetros do corredor onde
Pierre havia nos instruído a procurar. O bibliotecário me lembrava um caranguejo-ermitão,
relutante em sair muito de sua concha antes de voltar para suas profundezas. Eu suspeitava
de que ele se escondia de Radu sempre que ouvia sua aproximação.
Thomas fechou mais um tomo surrado, espirrando com o punhado de poeira lançado no
ar. Sem se deixar deter por isso, ele selecionou um outro livro. Fazíamos a mesma coisa havia
horas, sentados em silêncio, espirrando e analisando cada periódico velho. Deveria haver
centenas deles só aos meus pés. Estávamos mais determinados do que nunca a fazer alguma
conexão e juntar essas pistas aparentemente aleatórias. Havia alguém bem talentoso na tarefa
de colocar pistas falsas no caminho.
“Vamos fingir que estamos no laboratório de meu tio, Cresswell.”
Thomas ergueu o olhar de relance, divertindo-se. “Eu deveria colocar óculos e murmurar
para mim mesmo, então?”
“É sério. Eu começarei oferecendo meus pensamentos e minhas teorias em relação ao
assassino, tudo bem?”
Thomas assentiu, embora eu pudesse ver que ele desejava ser o primeiro a desempenhar o
papel de meu tio. Se lhe fosse dada a oportunidade, ele teria ido correndo até seu quarto e
teria vestido um casaco de tweed.
“Eu acredito que nosso assassino tenha um bom conhecimento das práticas forenses,
assim como de levantar suspeitas longe de si”, falei. “O modo como os crimes foram
praticados sugere um planejamento meticuloso, ou mais de um único assassino. O que nos
leva de volta à Ordem do Dragão e seu possível envolvimento com os crimes. Mas por que
eles? Por que eles haveriam de armar crimes vampíricos?”
Thomas balançou a cabeça em negativa. “Eles existem há séculos, e, pelo pouco que sei,
houve muitos assassinatos em seus escalões.”
“Talvez eles tenham matado a moça desaparecida do vilarejo para usar a casa dela, dada a
proximidade com o castelo. Ou talvez a morte dela tenha natureza ritualística.”
Thomas considerou por um momento. “Mas por que a Ordem do Dragão iria querer caçar
alunos da academia? Se eles foram criados para proteger a linhagem real, por que destruir
membros dela?”
“Eu consigo pensar em uma explicação razoável”, falei. “E se eles forem tradicionalistas
que querem levar o herdeiro do Drácula de volta ao trono? Talvez eles estejam abrindo
caminho lentamente por meio de qualquer um que tenha alguma possibilidade de chegar ao
trono, seja parente distante ou não.”
Thomas ficou lívido. “Essa é uma boa teoria, Wadsworth. Mas vamos ver o que mais
podemos descobrir sobre eles.”
Voltamos a retirar os livros que conseguíamos encontrar das prateleiras, a associação com
a Ordem tornada óbvia por suas múltiplas insígnias e cruzes. O símbolo deles era um dragão
enrolado em si mesmo, e um tema recorrente era uma cruz com chamas. Havia algo de
familiar aí, mas eu não fazia a mínima ideia de onde eu tinha visto isso antes.
Continuei pensando sobre a morte mais recente. Se meus colegas de classe, com suas
mentes voltadas para a ciência, estavam começando a temer os vampiros, eu não podia
imaginar o que pensariam os aldeões supersticiosos uma vez que ficassem sabendo que outro
corpo sem sangue havia sido encontrado. E no castelo de Vlad Drácula, ainda por cima.
“Essa é uma tarefa impossível.” Eu me levantei, limpando a frente do meu vestido simples.
“Como é que vamos descobrir quem está na Ordem agora?”
“Os numerais romanos não foram feitos em um dia, Wadsworth.”
Soltei um suspiro tão profundo que praticamente precisei de um divã sobre o qual
desmaiar. “Você realmente acabou de proferir esse trocadilho abismal?”
Eu não esperei pela resposta dele, temendo que fosse tão excepcional quanto a última.
Vaguei até o outro lado, rumo ao corredor que indicava POESIA.
“Talvez devêssemos investigar os depósitos de comida essa noite”, ele disse, me
assustando ao se esgueirar por trás de mim. “E então poderíamos provar se Moldoveanu
estava mentindo”, ele prosseguiu.
“Ah, sim. Vamos sair furtivamente pelos arredores lá fora. Eu tenho certeza de que o
diretor seria bem bondoso se me pegasse no flagra outra vez, fazendo exatamente aquilo que
ele me avisou para não fazer. Isso se o assassino vampírico ou o grupo cavalheiresco marginal
não estiverem vagando pelos corredores do castelo e nos pegarem primeiro, é claro”,
retruquei. Thomas bufou, mas eu ignorei sua desaprovação. “Você acha que nosso diretor
sabe precisamente quem está matando os alunos e as criadas? Que talvez ele seja o
responsável por isso? Eu não quero me arriscar a ser expulsa se estivermos errados.”
“Creio que ele seja óbvio demais”, disse Thomas. “Mas eu não estou assim tão convencido
de que ele ignore por completo as estranhas ocorrências no castelo. Eu me pergunto se ele
simpatiza com a Ordem. Embora eu não acredite que ele seja um membro dela. Ele não tem
um título de nascimento. Na realidade, creio que eu e você tenhamos sido distraídos por
outras verdades.”
“Então você está sugerindo que a Ordem não está de modo algum envolvida?” Minha
mente se revirava com várias novas ideias enquanto eu removia a Ordem do Dragão da
equação. “Poderia muito bem ser alguém se passando por eles. Talvez seja por isso que não
estejamos conseguindo descobrir uma verdadeira conexão com a Ordem. E se de fato eles
não tiverem nenhum papel nesse caso?”
“Eles podem simplesmente ser uma elaborada distração criada pelo assassino.”
“Isso explicaria como você não conseguiu deduzir nem formar uma teoria daquele seu
jeito mágico.” Estreitei os olhos. “Você não interpretou marcas de desgaste em botas nem
sacrificou alguma coisa aos deuses da matemática para resolver o caso, não é?”
“Pode ser difícil acreditar nisso”, disse Thomas, a voz repentinamente grave, “mas eu
ainda preciso me conectar com os meus poderes psíquicos. Contudo, tenho perguntas e
suspeitas que não posso ignorar.”
“Você me intrigou. Prossiga.”
Thomas inspirou fundo, estabilizando-se. “Por onde tem andado Anastasia? Eu receio que
nós dois venhamos ignorando fatos. Fatos estes que podem estar sendo ofuscados por serem
tão óbvios.”
Meu sangue formigava em minhas veias. Thomas estava sendo exageradamente cauteloso.
Não seria a primeira vez que ele me dizia para suspeitar daqueles que eram mais chegados a
nós, e, apesar de tudo, uma parte minha sabia que Anastasia tinha segredos. Na verdade, se eu
fosse ser realmente honesta comigo mesma, eu sabia que Ileana também tinha seus segredos.
E eu conhecia mais uma pessoa que tinha protegido segredos...
Tranquei minhas emoções, não permitindo que a devastação anuviasse mais nada do meu
bom senso. Deste ponto em diante, eu não me cegaria deliberadamente diante da verdade,
tampouco manteria minhas suspeitas apenas para mim mesma, por mais que o meu coração
tivesse que arcar com os custos.
“Eu também não vejo Ileana há dois dias. Desde a noite anterior à que o corpo foi retirado
do necrotério da torre.”
Thomas assentiu. “E...? O que mais? O que mais não se encaixa direito?”
Eu voltei a pensar em todas as vezes que tínhamos falado sobre strigoi. Sobre como Ileana
mudava de assunto antes que Anastasia pudesse fazer mais perguntas. Como ela ficara
supersticiosa em relação aos corpos.
“Ileana é de Braşov. O vilarejo onde ocorreu o primeiro assassinato.”
“Ela também sabe que o sangue de Vlad Drácula corre nas veias de minha irmã.”
Eu sabia que isso não era possível em termos médicos, mas eu jurava que tinha sentido
meu coração parar de bater. Pelo menos por um instante. Encarei Thomas, sabendo que
nossos pensamentos estavam vagando para a mesma conclusão horrível.
“Você sabe onde Daciana está agora?”, perguntei, a pulsação acelerada. “Que cidade ela
estaria visitando em seguida?” Thomas balançou lentamente a cabeça. Uma sensação ainda
mais sombria repuxava o meu âmago. “Você tem certeza de que ela deixou o castelo? E
quanto ao convite para o baile?”
“Daci gosta de se planejar; ela provavelmente teria feito alguma anotação sobre isso com
antecedência. O convite poderia ter sido enviado pelo correio por qualquer um.” Lágrimas
prateadas se amontoaram nas beiradas dos olhos de Thomas, mas ele rapidamente piscou
para se livrar delas. “Eu não a vi sair em sua carruagem em momento algum. Ela saiu
furtivamente com Ileana. Eu não quis me intrometer. Achei que elas quisessem ter um pouco
mais de tempo sozinhas.”
O corpo roubado do necrotério da torre... seria de Daciana? Eu mal conseguia respirar.
Thomas já havia perdido a mãe; perder uma irmã era algo tão próximo de uma ferida mortal
quanto alguém poderia aguentar. Eu forcei meu cérebro a sobrepor o pesar e a conectar
quaisquer pontos ou pistas. O que nós sabíamos sobre os últimos dias ou as últimas horas de
Daciana no castelo?
Então eu entendi.
“Eu sei exatamente onde precisamos ir.” Fiz que ia segurar na mão dele e então parei. Até
mesmo atrás das paredes do castelo, a impropriedade de minha ação não passaria
despercebida. Como se meus medos o tivessem convocado, o bibliotecário passou por nós
com os braços cheios de livros.
“Venha”, falei. “Eu tenho uma ideia.”
Saímos da biblioteca e analisamos os amplos corredores. Nada de camareiras, criadas ou
guardas. Não que nós teríamos notado as camareiras de imediato — elas poderiam estar
escondidas atrás das tapeçarias no corredor improvisado. Gesticulei para que Thomas me
seguisse para dentro daquele corredor secreto, e nos movemos rapidamente e em alerta.
Nossas atenções estavam preparadas para notar quaisquer movimentos ou sons.
O ar estava particularmente frio; as lareiras nos corredores haviam se apagado até nada
sobrar, e as tochas não tinham sido acesas. Era como se o castelo estivesse bloqueando suas
próprias emoções, caindo naquela calma gélida. Eu esperava que uma tempestade não
estivesse prestes a irromper ao nosso redor.
Alguns cantos agora pareciam até mesmo mais sinistros; eram lugares que poderiam
abrigar qualquer um que desejasse fazer o mal. Mantive os olhos abertos para detectar
qualquer lampejo de movimento ali. Passamos por um pedestal com uma serpente, e eu
estremeci. Qualquer um poderia estar abaixado atrás dele, esperando para nos atacar.
Ileana era pequena o bastante para desaparecer em meio aos artefatos em exibição.
Thomas acompanhava o meu olhar, mas mantinha sua expressão neutra. Eu queria saber se
esta era a primeira vez que ele havia estado nas passagens das criadas, mas não me arriscaria a
falar em voz alta. Não ainda.
Botas surradas andavam ao longo dos tapetes no corredor principal. Nós ficamos
paralisados, com as costas pressionadas em uma das grandes tapeçarias. Eu não me atrevi a
olhar para qualquer que fosse a cena de tortura da qual havíamos nos escondido. A julgar
pelos passos pesados, eu achava que havia pelo menos quatro guardas ali. Eles não falavam.
Os únicos sons de sua chegada e partida eram o clunc, clunc, clunc de suas passadas ritmadas.
Eu mal respirei até que o som de suas botas desaparecesse. Ainda assim, Thomas e eu
permanecemos imóveis pelo tempo de mais algumas pulsações. Eu me desgrudei da parede e
verifiquei ambos os lados. Sairíamos do corredor secreto logo, logo.
Ainda bem que conseguimos encontrar o caminho em direção aos aposentos de Anastasia
sem sermos vistos. Parecia que todos haviam seguido o aviso do diretor e estavam bem
trancafiados em seus quartos.
Pressionei o ouvido junto à porta da câmara de Anastasia, tentando escutar algo por um
instante antes de abri-la. A lareira não tinha sido acesa, mas um feixe de luz do sol entrava
pelas cortinas abertas. Tudo estava exatamente da forma como eu me lembrava da última vez
que Anastasia havia estado aqui.
“Por que estamos nesta câmara, Wadsworth?”
Escrutinei o cômodo. Parecia que o livro que Anastasia havia pegado da casa da mulher
desaparecida tinha um dos símbolos da Ordem. E se esse fosse o caso, talvez...
“Veja.”
Cruzei o aposento e ergui o livro da mesa. O título estava escrito em romeno: Poezii
Despre Moarte, “Poemas de Morte”. Eu tinha ficado tão distraída com a ideia da moça
desaparecida se perdendo no bosque que não tinha me dado ao trabalho de ler o título antes.
“Quando Anastasia e eu entramos naquela casa, ela disse que havia uma conexão entre
este livro e a Ordem.” Ergui o tomo para que ele o visse. Havia uma cruz queimada na capa,
com cada um de seus lados ardendo em chamas brutas. “A princípio eu achei que ela estivesse
enganada, que não havia nenhum motivo lógico para que a mulher desaparecida do vilarejo
estivesse conectada a uma ordem cavalheiresca composta por nobres. Foi claramente um erro
da minha parte.”
“Todo mundo comete erros, Wadsworth. Não há vergonha alguma nisso. É a forma como
a pessoa os conserta que importa.” Thomas folheou rapidamente o livro. “Hummm. Eu
acredito que...”
“Está na hora de vocês irem para seus próprios aposentos. Vocês não têm motivo algum
para estar aqui.” Thomas e eu ficamos tensos com a intrusão e com a voz grave. Dăneşti ficou
parado no batente da porta, seu corpo ocupando todo o espaço. Parecia que este castelo
estava cheio de pessoas que podiam se mover pelos arredores sem fazer barulho algum.
“Todas as atividades dentro do castelo foram canceladas até o amanhecer. Ordens de
Moldoveanu. O diretor decidiu manter as aulas de amanhã sob uma condição: todos serão
escoltados para a aula e depois de volta a seus respectivos aposentos.”
De alguma forma, Thomas havia escondido o Poezii Despre Moarte, e então ergueu as
mãos. “Muito bem. Vá na frente.”
Eu não me atrevi a ficar procurando demais pelo livro que agora estava escondido. Eu não
queria que Dăneşti o tirasse de nós, ainda mais se aquele acabasse por se revelar exatamente o
tomo que ele vinha caçando. Depois de deixar Thomas em seus aposentos, o guarda me viu
entrar em meu quarto e então fechou a porta atrás de mim. As chaves retiniram, e, antes que
eu soubesse o que ele havia feito, eu estava trancafiada em meus aposentos na torre. Fui
correndo para o quarto de banho e verifiquei a porta que dava para a escadaria secreta. Estava
aferrolhada pelo lado de fora.
Eu não dormi bem naquela noite. Fiquei andando de um lado para o outro como se eu
fosse um animal planejando sua fuga. Engaiolada até que alguém me libertasse.
31. INTRIGA DA AUTÓPSIA
Anfiteatrul de Chirurgie at lui Percy
Anfiteatro Cirúrgico de Percy, Castelo de Bran
15 de dezembro de 1888
príncipe Nicolae parecia mais pálido do que o cadáver que Percy estava cortando
quando entregou a pinça dente de rato ao professor e tossiu, desviando o olhar da
incisão. Era um comportamento estranho para o normalmente destemido príncipe.
Talvez ele estivesse ficando gripado.
Certamente, não poderia ser o corpo quase irreconhecível lá dos túneis que o estava
deixando doente. Embora Percy houvesse revelado o corpo durante nossa aula dois dias
antes, Moldoveanu o recolhera antes que qualquer um de nós pudesse inspecioná-lo melhor,
e o havia liberado para a classe apenas naquela tarde.
Nosso diretor tinha ficado estranhamente quieto e contemplativo durante a aula anterior,
parecendo ter a mente presa em algum outro lugar. Eu me perguntava se a família real o
estaria pressionando para que ele resolvesse os assassinatos por meios forenses ou para que
achasse alguma conexão entre eles, do contrário, ele perderia sua posição tanto como
médico-legista real quanto como diretor. Também era possível que sua perturbação não
tivesse qualquer relação com o cadáver. Talvez ele estivesse preocupado com o real paradeiro
de Anastasia. A essa altura, ele já teria concluído que ela não estava na Hungria. Eu não podia
imaginar o que mais poderia estar lhe causando tal preocupação.
Percy colocou sua lâmina em uma bandeja, deixando a incisão em Y incompleta. A maior
parte das feições da moça havia sido arruinada por morcegos famintos, de modo que o rosto
dela estava coberto por uma pequena mortalha — uma bondade para ela, ou para nós. Eu não
acreditava que Percy nos pouparia da exposição à brutalidade da profissão que escolhemos. A
morte nem sempre vinha de forma pacífica, e precisaríamos nos preparar para quando ela
travasse sua guerra.
“O pulverizador carbólico, por favor.”
Percy esperou que Nicolae fumigasse o anfiteatro cirúrgico. Nosso professor empenhava-
se, da mesma maneira que meu tio, para evitar a contaminação de uma cena, embora outros
eruditos ainda dissessem que tais medidas eram desnecessárias ao estudar cadáveres. Eu
nunca tinha visto um dispositivo como um pulverizador carbólico antes e mal podia esperar
para contar a meu tio tudo sobre isso. Ele com certeza haveria de encomendar um para seu
próprio laboratório.
Nicolae mirou, pulverizando a sala com uma boa quantidade de névoa. Espirais cinzentas
passavam pelo ar, cheirando a um antisséptico pungente que fazia meu nariz coçar.
“Conseguimos permissão da família para realizarmos a autópsia...”
Algo em relação à declaração de Percy me perturbou, mas minha mente voltou a vagar na
direção de Ileana enquanto o professor prosseguia com nossa lição. Eu não conseguia
descobrir quais seriam suas motivações em relação a quaisquer dos assassinatos, mas isso não
queria dizer que ela não estivera envolvida neles. Na verdade, eu já não acreditava que ela
estivesse trabalhando sozinha. Anastasia não havia voltado à academia dentro do que
prometera. Eu me perguntava se ela também não havia cumprido, de alguma forma, um
papel nos crimes. Apesar de ocuparem diferentes posições sociais, ela e Ileana eram amigas.
Ambas haviam desaparecido no intervalo de uma semana. Eu, inicialmente, havia acreditado
no bilhete de Anastasia sobre a investigação da cena na casa no vilarejo. Agora eu não estava
tão certa disso.
Talvez eu tivesse chegado perto demais de descobrir os segredos delas e elas tivessem
fugido. Eu havia aprendido que confiar naqueles que pareciam inocentes só levava a corações
partidos e devastação. Os monstros podiam exibir sorrisos amigáveis e, ao mesmo tempo,
exalar a alma podre do Diabo nas fendas mais escuras de si mesmos. Voltei a pensar nas vezes
em que todas nós estávamos na companhia umas das outras em meus aposentos, e uma nova
ideia foi forçando sua entrada em minha mente. Se Anastasia e Ileana estivessem trabalhando
juntas, então, talvez, cada encontro e cada ação tivessem sido um ato bem pensado. Elas
poderiam ter feito um roteiro de suas reações, guiando-me, propositalmente, pelo caminho
errado.
“Srta. Wadsworth, você está acompanhando?”
Voltei para o presente em um estalo, o rosto ardendo enquanto olhava em volta do
anfiteatro. Os gêmeos Bianchi, Noah, Andrei, Erik... Todos eles tinham a atenção fixa em
mim, até mesmo Thomas.
“Peço desculpas, professor. Eu...”
Moldoveanu entrou a passos largos no anfiteatro cirúrgico, as mãos apertadas em punhos
nas laterais de seu corpo. Suas vestes eram exatamente da mesma cor que sua cortina de
cabelos grisalhos, e elas pendiam tão severamente quanto a expressão que ele exibia para
mim. “Quero trocar algumas palavrinhas em particular com você”, disse. “Agora.”
Andrei riu baixinho e sussurrou alguma coisa. Erik também riu enquanto eu passava por
eles. O pensamento de pisar no pé dele com meu salto foi o bastante para me distrair da ideia
de realmente fazer isso. O olhar de Cian encontrou-se com o meu, e ele me ofereceu um
sorriso hesitante. Era uma demonstração e tanto de apoio, considerando que o rapaz irlandês
mal reconhecia minha existência no passado. Noah deve ter falado bem de mim para ele.
Desci as escadas, apoiando-me nas paredes do anfiteatro cirúrgico, e saí no corredor onde
o diretor me esperava, batendo os pés para fazer os segundos passarem como se fossem
baratas que ele estivesse matando.
“Quando foi a última vez que você falou com a criada Ileana?”
Meu coração socava o peito. Parecia que Thomas e eu não éramos os únicos que achavam
o comportamento dela suspeito.
“Acho que foi há dois dias, no começo da noite do dia treze, senhor.”
“Você acha que a atenção aos detalhes não é crucial para um aluno de ciências forenses?
Que outras coisas você poderia deixar passar que seriam prejudiciais para um caso? Eu
deveria tirá-la do curso agora e poupar nosso tempo e energia.”
Fiquei com os pelos arrepiados diante de seu tom de voz. Era áspero até mesmo vindo
dele.
“Eu estava sendo cortês, senhor. A última vez que a vi foi no dia treze. Estou certa disso.
Eu estou com uma nova camareira desde então. Ela me informou que Ileana está trabalhando
em algum outro lugar no castelo, embora eu já não acredite que isso seja verdade. Talvez o
senhor devesse falar com ela e ver o que ela pode estar escondendo sobre o paradeiro de
Ileana.”
Moldoveanu me inspecionou com o olhar apertado de alguém que estuda um espécime
em um microscópio. Pressionei os meus lábios, eu não podia mais garantir que não haveria de
ser ríspida por ele demorar tanto assim para voltar a falar.
“E o que exatamente você acredita que seja a verdade sobre Ileana?”
“Eu creio que ela saiba alguma coisa sobre o assassinato do sr. Wilhelm Aldea, senhor.” Eu
hesitei antes de falar sobre minha próxima preocupação, apreensiva com a possibilidade de
que, se Anastasia voltasse ilesa, ela haveria de me matar quando ficasse sabendo que eu havia
traído sua confiança. “Eu... Eu também me pergunto se ela sabe o paradeiro de Anastasia.
Anastasia deixou um bilhete para mim... implorando para que eu não lhe contasse aonde ela
havia ido, mas em momento algum me apresentou mais detalhes sobre isso.”
Moldoveanu flexionou a mão na lateral de seu corpo, o único sinal externo de quão
furioso ele estava. “Ainda assim, você não se deu ao trabalho de me informar de suas
suspeitas. Você se lembra de alguma coisa fora do comum nos últimos dias? Algo substancial
para confirmar o que você está dizendo?”
Havia a questão das duas pessoas que eu tinha certeza de ter visto arrastando um cadáver
pelo bosque. Eu já havia contado isso a ele, e ele zombara de mim. Eu não estava prestes a me
sujeitar a mais escrutínios.
“Não, senhor. Apenas uma sensação de que há algo errado.”
“Uma sensação. Também conhecida como descoberta não científica. Que previsível para
uma jovem mulher ser regida por suas emoções em detrimento do pensamento racional.”
Inspirei o ar lentamente, deixando que a ação acalmasse as chamas da minha própria
irritação. “Eu acredito que tanto a ciência quanto o instinto sejam importantes, senhor.”
O diretor curvou o lábio para longe de seus incisivos. Era realmente notável que um
homem pudesse ter dentes tão animalescos. Eu estava começando a me perguntar se não
seria uma patologia médica que teria de ser verificada, quando ele estalou a língua junto
àquele grupo de dentes que eram verdadeiros instrumentos de perfuração.
“Já falamos com sua nova camareira. Ela foi dispensada de seus deveres. Eu sugiro que
você fique longe de Ileana caso a veja de novo. Pode retornar à sala de aula, srta. Wadsworth.”
“Por quê? O senhor acredita que ela tenha alguma coisa a ver com o desaparecimento de
Anastasia? O senhor procurou nos túneis?”
A expressão que o diretor me ofereceu não foi menos do que uma indução ao terror. Se eu
achava que os dentes dele eram intimidantes, aquilo não era nada em comparação ao ódio
infinito contido em seu olhar gélido.
“Se você fosse uma moça sábia, ficaria fora daqueles túneis e de quaisquer câmaras
localizadas neles. Ouça meu aviso, srta. Wadsworth.” Ele olhou de relance para dentro do
anfiteatro cirúrgico, o olhar pousando no cadáver. Eu poderia ter jurado que havia um
lampejo de tristeza ali, antes de voltar novamente seus olhos cheios de fúria para mim. “Ou
você pode ser a próxima a se encontrar sob a lâmina de Percy.”
Com isso, ele girou nos calcanhares e saiu marchando, as solas de couro de seus sapatos
estapeando o chão. Parecia que eu tinha cobras serpeando em meus intestinos. De alguma
forma, fiz meu caminho de volta até o anfiteatro cirúrgico e afundei em meu assento. Fiz os
movimentos de tomar notas, mas minha mente estava partida ao meio.
Eu precisava saber como a moça que estava sobre a mesa de dissecação de Percy havia
falecido, se não fora apenas por causa do estrago dos morcegos. No entanto, eu também
precisava resolver o mistério do paradeiro tanto de Ileana quanto de Anastasia. Thomas me
observava por cima do ombro a cada poucos instantes, seus lábios espremidos de
preocupação.
As próximas palavras de Percy penetraram em meus pensamentos agitados. “Claramente,
a srta. Anastasia Nádasdy sucumbiu aos ferimentos que sofreu.”
Todos os pensamentos foram lançados da minha cabeça como se a água de um lavatório
tivesse sido descartada. Fiquei encarando Percy, piscando para me livrar da descrença. Ele não
podia estar querendo dizer... Meu olhar passou do professor para o cadáver que jazia diante
de si. Ele puxou a mortalha do rosto dela. Pequenas engrenagens fizeram cliques e giraram
em minha mente, sibilando quando essa nova informação se encaixou em seu devido lugar.
Anastasia era a jovem que tinha sido atacada na câmara do túnel por morcegos-vampiros?
A terra parecia rimbombar sob meu assento. Chamas erguiam-se do meu âmago, que
depois enfrentou um inverno. Pisquei para afastar as lágrimas, incapaz de impedir que
algumas escorressem pelas minhas bochechas. Eu não me importava nem um pouco se
alguém da classe zombasse da minha demonstração de emoção. Fitei o corpo sem realmente
o ver, tentando forçar a imagem a fazer sentido. Anastasia. Absorvi a visão de seus cabelos
loiros, mas não conseguia suportar a ideia de inspecionar seu rosto em decomposição de
maneira muito atenta.
Minha amiga estava morta. Isso não podia estar acontecendo novamente. Parecia que
meu peito estava afundando devido ao peso que o comprimia. Como eu podia ter pensado
que ela fosse culpada pelos assassinatos? Quando foi que eu me tornei tão desconfiada? Eu
ansiava por sair correndo da sala e nunca mais estudar um outro corpo enquanto eu vivesse.
Thomas não era o maldito, mas eu. Todas as pessoas de quem eu me aproximava morriam.
Nicolae havia dito isso na viela. Ele estava certo.
Em meio às lágrimas, olhei de relance para os nossos colegas de classe. Todos estavam
chocados. Lá se foram os alunos ferozmente competitivos, sedentos por conhecimento e
batalhando por aqueles dois preciosos lugares na academia. A ciência precisava de frieza para
avanços exploratórios, mas nós ainda éramos humanos. Nossas mentes poderiam ser feitas de
aço quando fosse preciso, mas nossos corações batiam com compaixão. Nós ainda nos
importávamos profundamente com as pessoas e vivenciávamos o luto e o pesar.
Thomas virou-se em seu assento, sua atenção pousando em Nicolae e depois em mim.
Meu amigo parecia perturbado, mas estava concentrado o bastante a ponto de procurar por
comportamentos suspeitos. Eu quase havia me esquecido das ilustrações do príncipe e do
papel que elas poderiam ter desempenhado em tudo isso. Andrei trincou o maxilar, lançando
um olhar assassino para seu amigo, embora sua garganta subisse e descesse com as lágrimas
que ele obviamente estava contendo. Quão peculiar!
“As marcas correspondem a mordidas de pequenos mamíferos”, comentou Percy,
baixinho. “Alguém quer se arriscar a tentar adivinhar o que poderia ter atacado essa jovem?”
Contive a respiração junto com o restante do anfiteatro cirúrgico. Nem eu nem Thomas
nos atreveríamos a responder — nem mesmo a olhar de relance um para o outro — embora
tivéssemos visto exatamente como Anastasia havia morrido. A pergunta era: quem mais na
classe saberia? Se alguém mais estivesse agindo ao lado de Ileana, saberia qual era a causa da
morte e a manteria em segredo.
Percy contemplou cada aluno, esperando que alguém quebrasse o pesado silêncio.
“Cobras?”, perguntaram por fim Vincenzo e Giovanni, em uníssono.
“Aranhas venenosas?”, acrescentou Cian.
“Boas possibilidades, mas não”, disse Percy, cuja expressão estava se tornando cada vez
menos esperançosa. “Alguém mais deseja compartilhar uma ideia?”
Nicolae mal olhou para o corpo, sua atenção estava atada ao pulverizador carbólico que
ele tinha em mãos. Ele o rolava de um lado para o outro, então pressionou o fecho para
liberar o conteúdo, alarmando a todos nós com um fluxo de borrifo antisséptico, cuja névoa
era tão agourenta quanto o tom que ele usou.
“Morcegos”, ele murmurou. “Esses machucados são característicos de um tipo de morcego
que dizem infestar este castelo.”
Percy bateu palmas uma vez, e o som fez com que todos nós nos sobressaltássemos em
nossos assentos.
“Excelente, príncipe Nicolae! Notem os espaços entre as marcas de dentes. Eles indicam
espécimes maiores também. Imagino que eles devam ter se alimentado dela por um
tempinho, embora seja provável que ela tenha perdido a consciência em algum momento.”
Engoli com dificuldade, meu estômago se revirando com a imagem. Se eu não mantivesse
minhas emoções bem afastadas e trancafiadas, eu haveria de me desfazer, pedaço por pedaço.
Eu me concentrei em respirar. Se eu pensasse na minha amiga, em como ela era vibrante
quando viva, eu não seria nem um pouco útil em sua morte. Ainda assim, mesmo tendo um
pouco de prática no controle dos sentimentos, meu coração era só cacos estilhaçados. Eu não
podia suportar mais perdas. Estava tão cansada de constantemente me despedir daqueles
com quem eu gostaria de ter me aventurado pela vida. Limpei a umidade nas minhas
bochechas e funguei.
Erik e Cian xingaram. Eu sabia que eles não eram capazes de ser o Empalador nem de
trabalhar com Ileana. Bondade e compaixão fundiam as células deles. Eu havia visto Erik
ajudar Nicolae ao jogar um avental para o príncipe, disposto a ajudar quando alguém
precisava de um amigo.
Mas o príncipe e sua obsessão por morcegos? Isso parecia coincidência demais para
ignorar.
“Tudo bem”, disse Percy, “quem gostaria de fazer a próxima incisão?"
Cian e Noah olharam um para o outro e lentamente levantaram as mãos. Eu admirava a
capacidade que eles tinham de ir além do horror, mas eu não conseguia me forçar a usar a
lâmina no corpo de minha amiga. Eu não me importava se isso custaria o meu lugar na
academia; pensar na porcaria da competição me parecia algo frio, embora eu soubesse que
Anastasia me daria uma bronca por eu me sentir derrotada. Ela esperaria que eu seguisse
adiante.
Fortalecida por esse pensamento, eu me sentei direito, reta como uma flecha, na primeira
fileira do anfiteatro cirúrgico de Percy, sabendo que não havia absolutamente nada que eu
pudesse oferecer a Anastasia além da minha disposição de vingar sua morte. Thomas
inclinou-se para a frente em seu assento, mas não levantou a mão.
“Sr. Hale”, disse Percy. “Queira vir assumir seu lugar, por gentileza.”
Noah arrumou seu avental e pegou o escalpelo de Percy, fazendo um belo trabalho ao
limpá-lo com ácido carbólico antes de posicioná-lo sobre a carne imóvel. Meu tio teria ficado
orgulhoso dele. Eu me obriguei a observar a incisão em Y que ele fez no peito sem vida de
Anastasia. Mantive a respiração constante, não permitindo que minha pulsação ficasse a mil.
Precisávamos descobrir com certeza se os morcegos eram realmente a causa da morte dela,
ou se algo mais sinistro havia posto um fim em sua vida antes.
Meu olhar vagou até as mãos dela. Não havia muitas feridas de defesa. Eu achava difícil
acreditar que alguém tão enérgica quanto Anastasia simplesmente ficaria deitada e cederia à
Morte sem batalhar com todas as suas forças. Anastasia lutava para ser tratada com igualdade,
lutava para provar seu valor para o tio. Uma lutadora como ela não desistiria durante a
batalha suprema. Pensar nisso fez com que meu ânimo melhorasse, encorajando-me a seguir
em frente.
“Observem a forma como o sr. Hale está separando as costelas. Cortes muito bem
definidos.”
O professor Percy entregou o costótomo a nosso colega de classe e pegou o escalpelo
novamente. Eu me encolhi um pouco ao ver as vísceras expostas, mas me lembrei de que essa
não era mais Anastasia — tratava-se de uma vítima que precisava de nós. Um leve cheiro de
alho foi espalhando-se pelo anfiteatro enquanto Percy andava de um lado para o outro na
sala de cirurgia. Antes que eu pudesse fazer a minha pergunta, Noah forçou o maxilar dela a
abrir-se. Não havia nada de incomum ali. Thomas arriscou-se a olhar de relance na minha
direção, e sua expressão era difícil de ser interpretada.
Noah foi descendo pelo cadáver, inspecionando a cavidade abdominal. Ele aproximou-se
o bastante do corpo para sentir o cheiro dos órgãos e conteve uma leve vontade de vomitar.
“Um odor de alho está presente nos tecidos corporais e na boca, senhor, embora não haja
nenhum sinal da substância nela. A inspeção do conteúdo de seu estômago pode revelar mais
coisas.”
Percy parou de caminhar e curvou-se para que ele mesmo examinasse o corpo. Ele
inspirou o cheiro em pequenos intervalos enquanto se movia, cheirando desde sua boca até
seu estômago. Ele balançou a cabeça e dirigiu-se para a classe.
“No caso da ingestão de substâncias tóxicas, vocês notarão um forte cheiro nos tecidos
estomacais. Que é precisamente o que eu notei aqui. O odor de alho é sobrepujante perto do
estômago da vítima. Alguém sabe de algum outro sinal associado com envenenamento
acidental ou intencional?”
Vincenzo levantou a mão com tanta violência que quase bateu na barra de apoio do
anfiteatro. O irmão dele o agarrou pelo braço, equilibrando-o.
“Sim, sr. Bianchi?”
“Mais... hum... muco estará evidente”, disse ele, com seu sotaque italiano forte enquanto
procurava pelas palavras certas para se expressar. “Como uma forma de defesa natural do
corpo contra... um... ataque estranho.”
“Excelente”, disse Percy, pegando as pinças dente de rato e passando-as para Noah. “Onde
mais poderíamos encontrar indicativos de veneno?”
Cian pigarreou. “O fígado é também um bom lugar a ser verificado.”
“De fato é.”
Percy fez um movimento para que Noah removesse o órgão em questão e entregou a ele
uma bandeja para que depositasse o espécime ali. Eu sabia como era a sensação de enfiar as
mãos a fundo na cavidade abdominal de alguém e voltar com um fígado que fazia um leve
barulho de gorgolejo entre os dedos. Era difícil lidar com o peso disso apenas com as pinças.
Noah não demonstrou emoção alguma, embora suas mãos não estivessem assim tão
controladas. O fígado deslizou para a bandeja, manchando-a com um líquido cor de
ferrugem. Engoli minha repulsa.
Percy ergueu a bandeja e andou lentamente pelo renque de estudantes, permitindo que
cada um de nós tivesse a oportunidade de inspecionar o órgão de nossos assentos na primeira
fileira.
“Observem a cor. Amarelo é comumente encontrado depois de exposição a...”
Meu coração acelerou-se junto com os meus pensamentos. “Arsênico.”
Percy ficou radiante, com a bandeja contendo o fígado orgulhosamente exposta diante de
si como se ele estivesse nos servindo chá em porcelana fina.
“Muito bem, srta. Wadsworth! Tanto o odor de alho como a presença de tecidos
amarelados no fígado são indicativos de um possível envenenamento com arsênico. Agora,
antes que alguém chegue a alguma conclusão precipitada, é válido notar o seguinte; arsênico
é encontrado em muitos itens do dia a dia. As moças costumavam misturar essa substância
aos pós para se manter jovens em aparência.”
Juntei as mãos, minha mente se revirava com essa nova informação enquanto eu voltava a
pensar na primeira vítima que havíamos encontrado na Romênia: o homem no trem. Sua
boca fora enchida de alho, mas o cheiro estava sobrepujante demais para ser o resultado de
uma quantidade tão pequena da substância orgânica. Eu deveria ter investigado aquilo mais a
fundo. O assassino claramente usara alho de verdade para mascarar o delator cheiro de
arsênico.
Eu me concentrei em respirar corretamente. Inspire. Expire. O fluxo constante de oxigênio
alimentava o meu cérebro. Eu pensei nos sintomas de Wilhelm. Em quão rapidamente ele
passara de um saudável jovem de dezessete anos a um cadáver que jazia sob a minha lâmina
no laboratório. Totalmente anormal.
Nenhuma causa de morte havia sido registrada no caso de Wilhelm. A falta de sangue em
seu corpo servira como distração. E foi também uma boa distração. Eu ficara tão preocupada
com a ideia de provar cientificamente que a existência de vampiros era impossível que em
momento algum cheguei a verificar seu fígado. Percy também havia deixado que o óbvio
arrastasse sua atenção para longe e não inspecionou outros órgãos.
Pensei em outros sintomas de envenenamento com arsênico. Descoloração da pele ou
erupção cutânea. Vômitos. Tudo isso havia estado presente, esperando que alguém somasse
os sintomas. Uma simples equação matemática, nada além disso.
Quem quer que houvesse planejado esses assassinatos o havia feito de forma brilhante.
Nem mesmo Thomas havia encontrado o fio que atava tudo isso. O culpado provavelmente
sabia que Thomas não ficaria tão afiado quanto normalmente era; o temor de que sua
linhagem fosse exposta representaria um empecilho com o qual ele não estava acostumado.
Minha cabeça girava. Esse assassino era mais perspicaz do que Jack, o Estripador.
Nós não havíamos examinado o corpo da criada, ainda que, aparentemente, ela também
não apresentasse nenhum sinal externo de assassinato, segundo os irmãos Bianchi. Não
ficava difícil deduzir que ela também havia sido envenenada.
Anastasia. Wilhelm. O homem do trem. Supostamente não guardavam relação entre si
por causa do que pareciam ser diferentes causas de morte. Empalamento e perda de sangue.
Apenas distrações provocadoras, criadas depois da morte ou próximo a ela com o propósito
de inflamar emoções em uma comunidade altamente supersticiosa.
Nós não tínhamos mais de um assassino. Nós tínhamos alguém dotado de conhecimento
sobre venenos e da oportunidade de oferecê-lo a cada vítima. Engoli em seco. Quem quer que
tivesse feito isso era inteligente e paciente. Havia esperado um bom tempo para executar seu
plano. Mas, por que agora...?
“Srta. Wadsworth?”
Voltei sobressaltada ao presente, as bochechas ardendo. “Sim, professor?”
Percy analisava-me com atenção enquanto colocava a linha em uma grande agulha de
Hagedorn.
“Seus pontos foram exemplares no outro dia. Você gostaria de ajudar a fechar o cadáver?”
A classe mal respirou. Uma grande diferença das risadas de mofa e do desdém dos
primeiros dias. Nós agora estávamos conectados através da perda e da determinação.
Por ora.
Olhei para a moça que tinha sido minha amiga e me levantei.
“Sim, senhor.”
32. POÇÕES E VENENOS
Curs de folclor
Aula de folclore, Castelo de Bran
17 de dezembro de 1888
avia guardas parados do lado de fora da sala de aula, os olhos fixos no nada e, ainda
assim, alertas o bastante para atacar a qualquer momento, embora Radu não
prestasse atenção alguma neles. Ele prosseguia com sua aula de folclore como se o
castelo não estivesse sendo infestado por guardas reais e alunos desaparecidos ou
assassinados. Ou ele era extraordinariamente talentoso em parecer inabalável, ou ele
realmente estava perdido em sua própria imaginação, preso em algum lugar entre o mito e a
realidade.
Dois dias haviam se passado desde a descoberta de que Anastasia era a vítima dos túneis, e
o diretor praticamente estava com um enxame de guardas no castelo. Eu não sabia dizer se eu
ficava mais assustada ou confortada com a presença deles.
“Em virtude das recentes descobertas, nossa próxima aula será sobre Albertus Magnus, o
filósofo e cientista. Reza a lenda que ele era o melhor alquimista que já existiu. Alguns
acreditam que ele tinha magia. Magie.” Radu folheou as páginas de um velho livro que ele
havia pegado na biblioteca alguns dias antes, De Mineralibus. “Ele estudou a obra de
Aristóteles. Excelente, ele era um homem excelente. Dizem que foi ele quem descobriu o
arsênico.” Noah ergueu bravamente à mão, e Radu deu um pulinho cheio de deleite. “Sim, sr.
Hale? Tem algo a dizer sobre o tópico e a lenda do sr. Magnus?”
“Eu entendo a discussão sobre o arsênico por causa dos assassinatos, senhor, mas como
isso se relaciona ao folclore romeno?”
Radu piscou várias vezes, abrindo e fechando a boca. “Bem... É fundamental entender
certas lendas que envolvem o assunto da lição de hoje: a Ordem do Dragão. Durante seu
auge, a Ordem se saía muito bem em lugares como a Alemanha e a Itália. Alguns acreditam
que a ascensão em seus escalões de nobreza se devesse à prática secreta de envenenar
lentamente seus alvos.”
Ergui uma sobrancelha, intrigada. Arsênico era conhecido como "pó da herança” na
Inglaterra, assim chamado por causa de seu uso por homens nobres que queriam obter um
título mais rapidamente do que a morte natural permitiria.
“Você está sugerindo que a Ordem era um grupo de nobres alquimistas assassinos?”,
perguntou-lhe Cian. “Eu achei que eles deveriam lutar contra aqueles que eram vistos como
inimigos da Cristandade.”
"Ora, ora, ora! Alguém andou fazendo um pouco de pesquisa! Estou impressionado, sr.
Farrell. Muito bom.” Radu inflou o peito e andou para cima e para baixo pelos corredores.
“Depois que Sigismund da Hungria morreu, a Ordem tornou-se vastamente importante neste
país e nos países vizinhos. Menos nas regiões ocidentais da Europa. Os otomanos estavam
invadindo, ameaçando os boyars... er, sim, sr... Farrell?”
“O que são exatamente os boyars, senhor?”
“Oh! Os boyars eram os membros do mais alto escalão da aristocracia sob a regência dos
príncipes da Valáquia. Eles estavam lutando para ver quem nomeariam para príncipe, e nosso
sistema de regência estava desesperadamente corrupto.”
“O título de príncipe não deveria ser passado adiante para o próximo na linhagem
familiar?” perguntei.
Andrei soltou uma bufada, um gesto um pouco apático para seus padrões usuais, mas eu o
ignorei. Ele poderia conhecer as regras particulares de seu país, mas eu não, e não tinha
vergonha alguma de perguntar.
Radu balançou a cabeça em negativa. “Não era assim que as coisas eram feitas durante os
tempos medievais. Aqueles de nascimento ilegítimo podiam reivindicar o título de príncipe.
Na verdade, quase todos que tivessem nascido de sementes Dăneşti ou Drăculeşti eram
legitimados quando os boyars os indicavam ao trono. Eles não precisavam ter sangue puro
para governar; eles simplesmente precisavam do poder de um exército feroz. Muito diferente
do que aquilo com que vocês estão acostumados em Londres. Isso com frequência levava a
parentes matando uns aos outros pelo direito de governar.” Não tão diferente assim da
Inglaterra nesse sentido, para falar a verdade.
“Os escalões da Ordem estavam cheios daqueles que se opunham às brigas internas e à
corrupção”, observou Erik, com seu proeminente sotaque russo. “Eu presumo que eles
tivessem medo de perder sua cultura para forças invasoras.”
"Ai dreptate. Você está certo. Os membros da Ordem, ainda que nunca se referissem a si
mesmos por nenhum nome como parte de seu sigilo, uniram-se, lutando por sua liberdade e
por seus direitos. Reza a lenda que eles eram ferozes, assumindo a incumbência de erradicar
ameaças tanto internas quanto vindas de fora do reino. Na verdade, existem histórias que
sugerem que eles queriam unificar o país ao eliminarem a luta interna nas duas linhagens
reais.”
Thomas e eu nos encaramos. Meus sentidos ficaram atiçados com essa revelação. Era
precisamente com isso que eu havia ficado preocupada. Ergui a mão.
“Oh! Sim, srta. Wadsworth? O que você tem a acrescentar à discussão? Eu mal consigo
expressar quão satisfeito estou com o interesse de todos vocês na aula de hoje. Está sendo
muito mais animada do que nossa aula sobre os strigoi.”
“Quando você diz ‘família real’, neste caso está se referindo à Casa dos Basarab, correto? E
não à atual família real da corte?”
“Outro belo detalhe. A atual família real, a dinastia Hohenzollern-Sigmaringen, não está
de forma alguma relacionada à Casa dos Basarab. Para nossos propósitos, quando eu disser
‘família real’, estou falando da linhagem de Vlad Drácula e seus ancestrais. Eu gosto de
manter nossas lições focadas em lendas que cercam a história do nosso ilustre castelo
medieval. Em geral, lidamos com a linhagem dos Drăculeşti. A última regência dos
descendentes de Vlad Drácula foi nos anos 1600. As pessoas foram levadas a acreditar que
todos os seus descendentes diretos se foram.” A atenção dele voltou-se na direção de Thomas.
“Contudo, ainda há aqueles na Romênia que se lembram da verdade.”
“A Ordem ainda funciona nos dias de hoje?” quis saber Cian, inclinando-se para a frente,
apoiado em seus cotovelos. “Há novos membros?”
“Há...” Radu fez uma pausa no meio da resposta a coçou a cabeça. “Não por um tempinho.
Creio que eles tenham começado a sumir por volta da mesma época em que a família Basarab
perdeu o principado. Embora haja uma família que reivindique descender daquela linhagem
— na verdade, eles são boyars aqui hoje em dia. Ora, ora. Antes que cheguemos longe demais,
eu tenho alguns velhos poemas aqui que mostram a habilidade e a astúcia da Ordem.
Arsênico não era o único truque que eles usavam para se livrar de seus inimigos.”
Ele passou dois pedaços de pergaminho a cada um de nós. Garatujados neles estavam
poemas em romeno, que ele prontamente traduziu para o inglês.
“Oh! Eu simplesmente adoro este. Eu me lembro da primeira vez que os meus pais me
apresentaram... Bem, deixa para lá. Hu-hum.”
O sangue congelou-se nas minhas veias. As palavras não eram exatamente as mesmas,
mas eram notavelmente similares ao cântico cujos trechos eu ouvi do lado de fora de meus
aposentos. Thomas estreitou os olhos, sempre em sintonia com minhas emoções e suas
variações, e reclinou-se em seu assento.
“Com licença, professor”, disse ele. “Qual é o título deste poema?” Radu piscou várias
vezes, e suas sobrancelhas cerradas ergueram-se com os movimentos. “Nós chegaremos a esse
ponto em um instante, sr. Cresswell. Este poema foi copiado de um texto muito especial e
sagrado, conhecido como ‘Poemas de Morte’. Poezii Despre Moarte. O texto original está
desaparecido. Um acontecimento muito estranho e também uma infelicidade.”
Eu senti a atenção de Thomas em mim, mas não me atrevi a olhar nos olhos dele. Nós
estávamos em posse do próprio livro que Dăneşti estivera procurando. Como o livro tinha
estado em posse da mulher desaparecida do vilarejo era ainda um outro mistério a ser
adicionado à nossa crescente lista.
Os irmãos Bianchi rabiscaram anotações em seus diários. Parecia que, para eles, esta aula
havia acabado de se tornar mais intrigante com a menção da morte. Eu mal podia conter
minha própria empolgação. O falatório incessante de Radu teria valido a pena, afinal de
contas.
“E esse texto era sagrado para a Ordem?”, eu perguntei.
“Sim. O conteúdo desse livro foi usado pela Ordem do Dragão como uma espécie de...
bem... foi usado para livrar o castelo daqueles que eram percebidos como inimigos durante os
tempos medievais. Isso é algo de que você se lembra, sr. Cresswell? Como um dos membros
remanescentes — e quase secreto, eu acredito — daquela casa, sua família teria tido mais
conhecimento sobre esse texto, eu imagino. Sua educação deve ter sido excepcional.”
Foi sutil, mas eu não deixei de notar o leve aperto na coluna de Thomas. Nossos colegas
de classe mexeram-se com desconforto em seus assentos, com a revelação enervante até
mesmo para aqueles que estudavam os mortos. Não era de se admirar que Thomas não
quisesse partilhar sua ancestralidade. Esconder suas ligações com Vlad Drácula o poupava do
desprezo injustificado.
Radu aparentemente havia feito uma pesquisa sobre a linhagem matriarcal de Thomas.
Que intrigante. Meu corpo zunia com o alerta. Radu era muito menos inocente do que
parecia.
Thomas ergueu um dos ombros, assumindo os ares de alguém que não ligava a mínima
para o tópico da conversa ou para a tensão que agora recaía sobre a sala. Ele transformou-se
em um autômato desprovido de emoções, vestindo uma armadura contra julgamentos.
Nicolae fitava com ódio sua folha de pergaminho, não se dignando a olhar para aquele primo
muito, muito distante. Eu imaginava que ele soubesse quem Thomas realmente era e que não
houvesse dividido esse conhecimento com ninguém.
“Não posso dizer que o poema me soa nem um pouco familiar”, disse Thomas. “Ou
particularmente interessante. Embora eu realmente acredite que se ele fosse usado para cima
dos inimigos de alguém, poderia muito bem matá-los com o passar do tempo. Mais um verso
desse livro e eu mesmo poderia cair morto de tédio.”
“Não, não, não. Isso seria uma grande infelicidade! Moldoveanu não ficaria feliz se eu
causasse a morte de um de seus alunos.” Radu bateu com uma das mãos sobre a boca, os
olhos esbugalhados. “Mas que uso infeliz das palavras de minha parte neste momento. Depois
do pobre Wilhelm, Anastasia, e, agora, Mariana.”
“Quem é Mariana?” quis saber Thomas.
“A criada que foi descoberta na outra manhã”, disse Radu.
Ele selou os lábios um no outro, observando os irmãos Bianchi gemendo em seus
assentos. Eu havia me esquecido de que nossos colegas de classe haviam descoberto o corpo
dela. Estudar a morte e deparar-se com cadáveres fora do laboratório não eram a mesma
coisa, e encontrar corpos era algo simplesmente difícil de superar. Eu conhecia muito bem os
efeitos de tal descoberta e como eles demoravam para ir embora.
“Talvez isso seja o bastante para a aula de hoje.”
Analisei a segunda página da poesia, sugando o ar para dentro de meus pulmões com
tanta força que senti uma pontada. Eu precisava de mais algumas respostas antes que a aula
terminasse.
“Professor, o poema que o senhor leu se chama 'XI’. Nenhum dos poemas parece ter outro
título além de numerais romanos. Por que isso?” Radu olhou de relance para a classe,
mordendo o lábio. Depois de um instante, ele empurrou seus óculos sobre o nariz.
“Pelas informações que coletei, a Ordem usava isso como um código. Reza a lenda que
eles marcavam passagens secretas debaixo deste mesmo castelo. Atrás das portas marcadas
com um determinado numeral havia... bem... havia todos os tipos de dispositivos
desagradáveis ou armadilhas por meio das quais seus inimigos pereceriam.”
“Pode nos dar exemplos?”, pediu-lhe Erik, primeiro em russo, e, depois, em inglês.
“É claro que sim. Eles aparentavam ter morrido de causas naturais, embora a forma como
tinham encontrado seu fim dificilmente seria natural. Há rumores de que Vlad, um membro
da Ordem, tal como o pai dele, enviava membros da nobreza lá para baixo do castelo, com a
promessa de que eles haveriam de encontrar ali algum tesouro. Em outras vezes, enviava
boyars corruptos àquelas câmaras para que lá se escondessem, dizendo que havia um exército
fora das muralhas do castelo e que eles deveriam se proteger. Eles seguiam as instruções dele,
entrando nas câmaras marcadas e encontrando a morte. Então ele poderia fazer com que as
mortes deles passassem por acidentes infelizes para outros boyars, embora eu tenha certeza
de que eles suspeitassem que não fosse esse o caso. Ele tinha uma reputação e tanto por
cortar a corrupção de seu país utilizando-se de modos avassaladores.”
Thomas estreitou os olhos, sua mira agora fixa em Radu como se fosse um vira-lata
faminto diante de um osso. Eu sabia precisamente o que aquela expressão significava.
“Mas e quanto à poesia?” perguntei. “O que ela significava para os membros da Ordem?”
Radu apontou para o pergaminho com seus dedos curtos e grossos, tomando cuidado para
não manchar a tinta.
“Vejamos este daqui”, disse, antes de traduzir o texto do romeno para o inglês novamente.
XXII
Branco, vermelho, verde e maldoso
O que assombra essa floresta permanece duvidoso
Dragões, ao alto, rondam o céu e as frestas
E obstruem a passagem de almas funestas
Coma esta carne e beba este sangue
Deixe na banheira o restante
Branco como marfim, brilhante como a sorte
Siga este caminho e encontrará a morte
“Alguns acreditam que este poema se refira a um local de encontro secreto da Ordem. Na
floresta, onde eles realizavam ritos de morte para outros membros. Outros acreditam que se
refira a uma cripta que fica debaixo do castelo apenas porque, uma vez que visitantes
inocentes se metessem a percorrer seu interior, eram ali trancados pela Ordem até que
apodrecessem e morressem. O caminho da morte. Ouvi aldeões dizerem que os ossos deles
foram transformados em um local sagrado.”
“Que tipo de local sagrado?”
“Oh, aquele onde sacrifícios são feitos para o Príncipe Imortal. Mas não se deve confiar
em tudo que se ouve. A parte dos dragões rondando os céus é, claro, metafórica. Em tradução
simples, isso quer dizer que a Ordem se move furtivamente, protegendo o que é deles. Sua
terra. Seus regentes escolhidos por Deus. Seu modo de vida. Eles são transformados em
criaturas ferozes que comem a pessoa inteira e deixam seus ossos. E isso quer dizer que eles
matam a pessoa e a única coisa que sobra dela são seus restos mortais.”
“O senhor suspeita de que a Ordem do Dragão mantenha os túneis até os dias de hoje?”,
eu quis saber.
“Minha nossa, não! Não creio que seja o caso”, disse Radu, rindo um pouco alto demais.
“Embora eu não possa afirmá-lo com certeza. Como mencionei antes, a Ordem formou-se
primeiramente inspirada nos cruzados. De fato, Sigismund, rei da Hungria, posteriormente
se tornou o Sagrado Imperador Romano.”
Antes que Radu pudesse desatar a falar sobre os cruzados, eu disparei outra pergunta.
“Exatamente que métodos de morte os túneis continham?”
“Oh, vejamos, srta. Wadsworth. Algumas passagens continham morcegos. Algumas
estavam repletas de aracnídeos. Dizia-se que lobos haviam caçado em outras passagens. Reza
a lenda que a única maneira de escapar da câmara de água é oferecendo um pouco de sangue
a um dragão.” Ele abriu um sorriso cruel ao pensar nisso. “Eu não creio que as criaturas
seriam capazes de sobreviver no subsolo sem uma fonte de comida ou cuidados. Se as
passagens existem ainda hoje, provavelmente são inofensivas, embora eu não sugira ir atrás
das coisas que este livro sinaliza. A maioria das superstições tem alguma base em fatos. Sim?
Pegue o caso dos strigoi, por exemplo; deve haver alguma verdade por trás desses rumores.”
Eu queria ressaltar que as lendas relacionadas aos strigoi provavelmente eram o resultado
de não enterrar os corpos a uma profundidade grande o bastante no solo durante o inverno.
Os cadáveres ficavam inchados de gases e eram empurrados para fora de seus túmulos; as
bases de suas unhas se retraíam, fazendo com que suas mãos parecessem garras, assustadoras
e vampíricas em aparência, mas não na prática. Para os incultos, muito certamente pareceria
que seus entes queridos estavam tentando sair de seus túmulos. Contudo, a ciência provava
que isso era um mito.
O relógio do lado de fora badalou, assinalando o fim de nossa aula. Os guardas não
perderam tempo em marcar sua presença ali.
Peguei os pedaços de pergaminho que Radu havia nos dado e os enfiei em meu bolso.
“Obrigada, professor”, falei, observando-o com atenção. “Eu gostei bastante dessa aula.”
Radu estalou a língua. “O prazer é meu. Eu agora tenho... São realmente três horas da
tarde? Eu tinha esperança de chegar até as cozinhas antes de me retirar para os meus
aposentos. Estão preparando pãezinhos doces enroladinhos, são meus favoritos. Estou indo!”
Ele apanhou um punhado de diários de cima de sua mesa e desapareceu porta afora.
Eu havia me virado para Thomas, preparada para conversar sobre tudo que havíamos
descoberto e discutir o possível envolvimento de Radu nos crimes, quando Dăneşti acenou da
entrada. Ele abriu um grande sorriso para Thomas, provocando meu amigo de uma forma
que eu sabia que ele não resistiria.
“Să mergem. Nós não temos o dia todo.”
Thomas inspirou fundo. Ele suportava provocações apenas até certo limite. Antes que eu
tivesse tempo para reagir, ele abriu aquela maldita boca dele.
“Cachorrinhos fazem o que lhes mandam fazer. Eles não têm nada a fazer além de sentar e
esperar e implorar pelas próximas ordens de seu mestre.”
“Eles também mordem quando provocados.”
“Não finja que me acompanhar para lá e para cá não é o ponto alto de seu dia miserável.
Que pena que você não fez o mesmo por aquela pobre criada. Embora eu seja muito mais
belo de olhar”, disse Thomas, passando a mão por suas mechas escuras. “Pelo menos eu não
estou mais correndo o risco de ser apanhado por um vampiro... Você está ocupado demais me
admirando. Que lisonjeiro. Obrigado.”
O grande sorriso de Dăneşti ficou absolutamente letal.
“Ah. Eu vinha esperando por isso.” Ele falou em romeno, e mais quatro guardas entraram
em nossa agora vazia sala de aula de folclore. “Acompanhem o sr. Cresswell até a masmorra
pelas próximas horas. É preciso que mostrem a ele a ospitalitate romena.”
Prezada Wadworth,
Eu finalmente fui libertado do inferno úmido que eles
dignificam como o nome de "masmorra". Agora estou
sentado em meus aposentos, contemplando a
possibilidade de escalar as muralhas do castelo para me
divertir. Ouvi os guardas falando e me parece que essa
noite pode ser nossa melhor chance para nos
esgueirarmos até o bosque e procurarmos por quem quer
que tenha sido arrastado para lá pelo túneis naquela
noite.
Ao contrário de nosso prezado diretor, eu não creio
que você tenha inventado aquele cenário, e estou
preocupado com o fato de que talvez tenhamos errado
em relação à possibilidade de Ileana estar envolvida
nisso, criminosamente falando. Ela pode muito bem ser
mais uma vítima, mas só há uma maneira de saber ao
certo.
Se você não receber mais notícias minhas, é porque
estou me esgueirando pelos corredores a caminho de
seus aposentos.
Sempre seu,
Cresswell
33. INFERNO ÚMIDO
Camere din turn
Câmaras da Torre, Castelo de Bran
17 de dezembro de 1888
Querido pai,
O reino da Romênia é realmente encantador. Uma das primeiras coisas em que
pensei ao ver o Castelo de Bran e seus piráculos foram aquelas histórias infantis
que o senhor e mamãe costumavam ler para mim antes de dormir. As telhas nas
torres são cortadas de tal forma que me lembram escamas de dragões. Eu meio que
espero que um cavaleiro venha cavalgando em seu corcel a qualquer momento.
(Embora nós dois saibamos que provavelmente eu vá pegar o cavalo dele emprestado
para mim mesma e sair buscando um dragão para matar. Se ele realmente for um
cavaleiro e um cavalheiro, tenho certeza de que ele não se importaria com isso.)
Os Cárpatos estão entre as montanhas mais grandiosas de todo o mundo, pelo
menos de acordo com o que vi delas. Eu mal posso esperar para admirar esta terra
durante a primavera. Imagino que as montanhas cobertas de gelo sejam irrompidas
pelo verde. Creio que o senhor iria gostar de passar férias aqui.
Eles têm uns salgados divinos de carne, recheados com deliciosos cogumelos e todo
tipo de maravilhosos sucos e temperos.
Eu os tenho comido quase todos os dias até agora! Para falar a verdade, minha
barriga está roncando só de mencioná-los. Devo levar um pouco para casa quando
for visitá-lo.
Espero que você esteja bem em Londres. Sinto muita falta do senhor, e tenho uma
fotografia sua aqui para a qual eu frequentemente digo boa-noite. Antes que me
pergunte, direi que o sr. Cresswell tem sido um perfeito cavalheiro. Ele assumiu
seu dever a sério e é um acompanhante bem irritante. O senhor teria orgulho dele.
A irmã dele, a srta. Daciana Cresswell, nos convidou para um baile de
Natal em Bucareste. Se o tempo permitir, será adorável. Eu realmente gostaria
de poder voltar para casa para uma visita no ano novo. Queira expressar meu amor
à tia Amelia e a Liza. E cuide delas e de você mesmo.
Escreverei novamente em breve. Estou aprendendo muito aqui na academia e não
tenho como lhe agradecer o bastante por permitir que eu estude fora.
Obs.: Como está meu tio? Eu realmente espero que você tenha continuado a vê-lo e a
convidá-lo para a ceia. Pode ser muito direto da minha parte dizer isso, mas me
atrevo a fazê-lo: vocês precisam um do outro, especialmente durante esta época
difícil. Feliz Natal, querido pai. E que venham muitas coisas boas neste ano
novo. 1889! Eu não posso acreditar que esteja chegando. Existe algo revigorante e
maravilhoso em relação ao começo de um ano completamente novo. Eu espero que ele
traga consigo a promessa de novos começos para todos nós. Ele deverá…
Tunc. Tunc.
A tinta espalhou-se pelas últimas palavras na página, minha cuidadosa caligrafia agora
arruinada. Eu me afastei da mesa tão rapidamente que minha cadeira caiu no chão. Havia
alguma coisa no telhado. Mesmo sabendo que era loucura, imaginei uma criatura que parecia
humana, que tinha acabado de sair do túmulo, o cheiro de terra recém-revirada envolvendo
os meus sentidos, suas presas à mostra, prontas para drenar o sangue de meu corpo.
Corri até o meu baú de suprimentos para a realização de autópsias, apanhando a maior
das serras de ossos que consegui encontrar e segurando-a diante de mim. Em nome da
rainha, o qu...?
Shrrrrrrt. Soava como se aquela mesma coisa estivesse descendo com suas garras pelo
telhado vermelho. Mais uma vez, a imagem de um strigoi dominou minha consciência. Uma
criatura humanoide com carne acinzentada e morta, e garras pretas das quais escorria o
sangue de sua última refeição, arranhando o caminho até os meus aposentos para se
empanturrar mais uma vez. Uma parte minha queria sair em disparada pelo corredor e gritar,
chamando os guardas.
Tunc. Tunc. Tunc.
Meu coração socava o peito, batendo com o dobro de sua velocidade normal. O que quer
que estivesse no telhado estava usando botas de solado espesso. Imagens de vampiros e
lobisomens deram lugar aos mais perturbadores pensamentos sobre humanos perversos.
Humanos que haviam assassinado com sucesso pelo menos cinco vítimas.
Recuei na direção do meu criado-mudo, sem em momento algum tirar os olhos da janela,
e abaixei minha serra para apagar a lamparina a óleo. A escuridão caiu, deixando-me invisível
para quem quer que estivesse rastejando lentamente pelo teto.
Esperei e observei, a respiração estrangulada pelo forte aperto do terror. A princípio, tudo
que eu vi foi a neve caindo mais densa pela minha janela. Os sons de algo raspando e das
passadas pesadas foram substituídos por uma espécie de barulho de alguma coisa
escorregando.
Então aconteceu de uma vez.
Uma sombra negra como carvão eclipsou o mundo coberto de neve lá fora. Fez chacoalhar
o peitoril da minha janela com uma força tremenda, o minúsculo trinco quase não se segurou
no lugar. O medo paralisou minhas pernas. Quem quer que estivesse lá fora estava a poucos
segundos de estilhaçar o vidro ou o frágil fecho.
Testei o peso da serra e dei um pequeno passo para a frente. Depois, mais um. As
reverberações do ataque no painel da janela aumentaram minha pulsação, que já estava
acelerada. Cheguei ainda mais perto da janela, ouvindo o fantasma que tentava se segurar,
tateando e... xingando.
Uma mão enluvada socou o painel. Joguei a serra de lado e movi-me rapidamente,
soltando a dobradiça da janela, e o segurei como se a vida de nós dois dependesse disso.
34. ACIDENTE NOTURNO
Camere din turn
Câmaras da torre, Castelo de Bran
17 de dezembro de 1888
Fiquei grata pelas meias grossas enfiadas nas minhas botas enquanto caminhávamos com
dificuldade na neve. Estava pesada e molhada, e grudava com toda a sua abundância na parte
de baixo do meu manto. Antigamente, eu adorava as noites invernais. O silêncio que
encapsulava a terra, a centelha reluzente de gelo brilhando ao fulgor da lua. Mas isso era
quando eu ainda estava enfiada e segura na minha casa em Londres, com uma caneca de chá,
uma lareira vibrante e um livro aninhado no meu colo.
“Foi para cá que você os viu trazerem o corpo, certo?”
Thomas apontou na direção do caminho que adentrava o bosque, continuando a pequena
trilha situada nos fundos da propriedade do castelo onde havíamos desembocado. Assenti,
batendo os dentes enquanto a neve se misturava com a chuva. Era uma noite miserável para
uma aventura ao ar livre, mas não tínhamos o luxo de esperar por melhores circunstâncias. Se
Daciana ou Ileana haviam sidos pegas, talvez fôssemos encontrar uma pista aqui fora — uma
rápida verificação dos necrotérios não havia dado em nada, embora encontrar alguma coisa
no escuro, com a neve cobrindo tudo, também me parecesse uma tarefa impossível de ser
levada a cabo.
Paramos na entrada da floresta, o luar lançando longas e finas sombras das árvores na
nossa direção. Dedos com garras... Meu imaginário me perturbava.
Thomas inspecionou o chão em cada uma das margens da trilha, seu corpo tremia
levemente enquanto o vento se acelerava. “Parece-me intacto”, disse ele. “Creio que
conseguiremos entrar um pouco... Ver se nos deparamos com alguma coisa que seja. Talvez
procurar pelos depósitos de alimentos que Moldoveanu disse que ficavam aqui. Então
voltaremos ao castelo e entraremos novamente pelo caminho por onde viemos, pelas
cozinhas.”
O vento chicoteava as mechas de cabelos nas minhas tranças, mas eu estava com frio
demais para remover as mãos de dentro do meu manto. Eu estava bem certa de que esta era a
noite mais fria já conhecida pelo mundo. Quando não respondi, Thomas se virou. Ele
absorveu a visão das lágrimas que escorriam por minhas bochechas, o vento fazendo com que
meus próprios cabelos batessem no meu rosto, e lentamente se aproximou de mim. Sem
nenhuma insinuação ou flerte, ele colocou os cabelos atrás das minhas orelhas com seus
dedos trêmulos. “Eu sinto muito que o tempo esteja tão miserável aqui fora, Wadsworth.
Vamos nos apressar e voltar lá para dentro.”
Ele fez que ia me ajudar a voltar na direção do castelo, mas afundei meus calcanhares
congelados onde estavam.
“N-Não. Não. Vamos v-ver o que tem lá-á fora.”
“Eu não sei se...” Ele estirou as mãos para cima, rendendo-se, enquanto eu voltava para ele
o lampejo de um olhar cheio de determinação. “Se você tem certeza...”
Absorvi os próprios calafrios dele e a vermelhidão de seu nariz. “Você consegue f-ficar
aqui fora um p-pouco mais?”
Ele assentiu, embora estivesse hesitante. Reuni minhas forças e me dirigi bosque adentro,
com Thomas vindo atrás de mim. Galhos de abetos cobertos de neve pendiam baixos,
fazendo coisas estranhas com o som ao nosso redor. Era como se alguém estivesse segurando
luvas de lã contra minhas orelhas, embora, ao mesmo tempo, eu parecia conseguir ouvir por
quilômetros em cada direção. Eu me concentrei no som de algo sendo esmagado pelas botas
de Thomas enquanto ele acelerava os passos para me acompanhar. Pedacinhos de neve caíam
em blocos, espatifando-se no chão.
Não havia qualquer som de animal. Ainda bem que tínhamos essas pequenas dádivas.
Provavelmente estava frio demais até mesmo para que os lobos rondassem por aqui. A trilha
continuava pelo que pareciam muitos quilômetros, embora fossem apenas algumas dezenas
de metros até chegarmos a uma bifurcação. O caminho à direita parecia mais largo, como se
alguém houvesse se dado ao trabalho de cortar árvores menores e arbustos. Imaginei que era
ali que ficavam os depósitos de comida.
A trilha que dava para a esquerda, no entanto, estava repleta de arbustos grandes demais e
que pareciam espinhosos. Folhas afiadas e espinhos transmitiam um alerta para qualquer um
que considerasse tomar aquela rota. Reprimi o ímpeto de sair correndo na direção oposta.
Aquela sensação familiar de estar sendo observada por alguém ancestral e ameaçador
penetrava na área entre minhas omoplatas.
Eu sabia que Drácula não era real, mas certamente parecia que seu fantasma assombrava
esse bosque. A pele na minha nuca formigava enquanto surgiam na minha mente imagens de
strigoi insinuando-se pela floresta, esperando para atacar. Precisei de um momento para
acalmar meus nervos. Eu não tinha desejo algum de explorar um trecho que a Natureza
queria tanto guardar para si. Especialmente não à noite, durante uma nevasca, enquanto
havia um assassino de verdade aqui perto. Podia ser covardia, mas pelo menos nós
sobreviveríamos para caçar por mais outro dia. Fiz um movimento em direção ao caminho
mais desgastado; a neve caía cada vez mais rápido.
“Vamos verificar a outra t-trilha durante o dia. Vamos ver se os depósitos de comida ficam
ali embaixo.” A única resposta foi o silêncio, pontuado pelo som de neve caindo. Eu girei, o
manto me rodeando como as saias de uma bailarina. “Thomas?”
Nada. Tudo ao meu redor permanecia estranhamente silencioso, exceto pelo zumbido em
meus ouvidos. Apressei-me a seguir na direção do caminho à direita, notando o único
conjunto de pegadas ao longo de sua extensão. Maldito Cresswell. Separar-se de mim durante
uma nevasca no meio da floresta era mais uma de suas ideias fabulosas. Eu o xinguei baixinho
por todo o tempo que levei para passar, aos chutes, pela neve. Depois de mais alguns passos
largos, me deparei com uma pequena estrutura de pedra que se aninhava entre dois penedos
maiores. Na verdade, não passava de uma cabana.
As pegadas de Thomas desapareciam ali dentro. Eu jurei que daria a ele um pedaço de
meu...
De repente, ele saiu com tudo da pequena construção, quase quebrando a porta enquanto
a batia para fechá-la. Antes que eu pudesse perguntar o que diabos estava acontecendo, um
alto rosnado ondulou em meio à neve que caía, seguido por um longo e pesaroso uivo.
Meu corpo inteiro ficou arrepiado enquanto vários outros gritos rasgavam a noite.
“Cresswell!”
Thomas girou, as mãos ainda segurando a maçaneta da porta. Seguiram-se arranhões e
bufadas, e o som de patas golpeando freneticamente a madeira, um som aterrorizante na
noite até então silenciosa.
“Wadsworth... Vou contar até três, então você corre!”
Não havia tempo para discutir. Thomas fez a contagem rápido demais para que eu
pudesse protestar. Antes que ele dissesse “três”, eu tinha saído correndo. Enquanto eu corria
aos esbarrões sobre montes de neve e galhos, eu nunca tinha me sentido tão grata por deixar
minhas saias para trás e usar uma calça.
Atrás de mim, Thomas veio com tudo pelo bosque, gritando para que eu não me virasse
para trás, para que continuasse correndo. Ignorei os uivos que vinham em resposta, embora
agora eu pudesse ouvir outras criaturas pulando pela neve atrás de nós. Não diminuí minha
velocidade. Não pensei em como o ar gelado queimava meus pulmões conforme eu o inalava.
Não me concentrei no suor frio que revestia minha pele nem na trilha aparentemente infinita
de volta para o castelo. E eu definitivamente não imaginei lobos do tamanho de elefantes
vindo com tudo pela floresta, seguindo nossos passos e prontos para arrancar nossos braços e
pernas e os espalharem pelos arredores.
Eu desejava que Moldoveanu e Dăneşti estivessem monitorando o bosque novamente,
mas não tínhamos tanta sorte assim. Irrompemos pela floresta, correndo tão rápido quanto
permitiam o tempo péssimo e nossos corpos.
Thomas segurou minha mão, uma corda de resgate na tormenta de terror. Latidos e
rosnados vinham dos arbustos, os lobos estavam agora a poucos metros de distância de nós.
Eu achei que meu coração fosse parar a qualquer momento. Nós íamos ser atacados. Era
impossível correr mais rápido do que eles. Nós estávamos...
O som de um tiro explodiu às margens do bosque.
Thomas me jogou no chão, protegendo-me com seu corpo. Ergui a cabeça por cima do
ombro dele, observando enquanto dois lobos grandes voltavam para dentro do bosque. Cada
pedacinho de mim estava congelado, mas eu só conseguia me concentrar no surto de
adrenalina. Alguém havia atirado nos lobos. Seríamos os próximos?
A neve pontilhava meus cabelos e minhas roupas. Thomas se impulsionou para longe de
mim, lentamente analisando a área. Notei o rápido subir e descer de seu peito e a forma como
ele tinha ficado tenso, esperando por mais algum ataque. Ele pegou minha mão e me ajudou
a me levantar.
“Ande logo. Não estou vendo ninguém, mas definitivamente há alguém aqui fora "
Procurei por uma sombra ou silhueta do atirador. Não havia nada além da fumaça que
permanecia no ar e o cheiro acre de pólvora. Dessa vez, quando estremeci, não tinha nada a
ver com o gelo que escorria pela minha coluna. Nós saímos correndo na direção da luz
amarela das cozinhas, sem olhar para trás até que estivéssemos em segurança lá dentro e
Thomas houvesse fechado a porta com um chute. Eu caí junto a uma longa mesa de madeira,
por pouco não atingindo uns montinhos de massa de pão que crescia.
“Quem você...?”
A porta se abriu ruidosamente e uma silhueta um tanto bruta batia com os pés no chão
para tirar a neve de suas botas, trazendo um arcabuz dependurado nas costas. Thomas e eu
apanhamos facas no balcão. A silhueta moveu-se para a frente, ignorando as peças de
cutelaria agora voltadas para ele. Com um movimento rápido, seu capuz foi jogado para trás.
Radu piscava para nós.
“Sr. Cresswell. Srta. Wadsworth.” Ele tirou o arcabuz de seu ombro e reclinou-se junto a
uma mesa de cavalete, em cima da qual havia uma tigela de ensopado cujo vapor ainda saía de
seu interior, e um pedaço de pão partido em pedaços. “Eu os avisei sobre o bosque.
Hummm?” Radu puxou uma banqueta e sentou-se, enfiando goela abaixo a refeição noturna.
“Voltem correndo para seus aposentos. Se Moldoveanu descobrir que vocês saíram do castelo,
vocês desejarão que os lobos os tivessem alcançado primeiro. Perigoso. Muito perigoso o que
vocês fizeram. Há pricolici por toda parte.”
Thomas e eu nem mesmo trocamos olhares enquanto pedíamos desculpas e saíamos
correndo em direção à porta.
35. SEM SANGUE
Amfiteatrul de Chirurgie al lui Percy
Anfiteatro Cirúrgico de Percy, Castelo de Bran
21 de dezembro de 1888
XI
Meus joelhos cederam. A princípio, meus pensamentos racionais foram lavados pelo
dilúvio de emoções que ameaçavam me arruinar. Quem quer que tivesse deixado este bilhete
havia tentado imitar as cartas que Jack, o Estripador escrevera com sangue. Escorreguei até
cair no chão perto da banheira, com a pulsação a mil enquanto me recompunha. Esse era um
tiro que mirava diretamente as minhas partes mais frágeis, mas eu não era a mesma jovem
que havia sido semanas atrás.
Eu estava emocionalmente mais forte agora. Capaz de muito mais do que eu sabia que
poderia fazer. Esse golpe não haveria de forçar minha resignação; ele me impulsionaria a
assumir uma posição ofensiva. Eu não era mais a presa, e, sim, a caçadora. Eu me obriguei a
me levantar e apanhei o bilhete. Verifiquei rapidamente a porta oculta escondida no gabinete
e descobri que ainda estava trancada do lado de fora. Ou a pessoa que entregou o bilhete
tinha a chave, ou tinha conhecimento da escadaria secreta.
Um plano de ação já estava se formando enquanto eu entrava no meu dormitório e me
despia. Quem quer que tivesse enviado a mensagem achava ou esperava que eu fosse atrás
dele. Eu não o desapontaria. Eu havia superado morte e destruição, e um coração partido, e
não permitiria que nenhuma dessas épocas difíceis me definisse. Eu era a rosa com espinhos
que minha mãe reconhecia em mim.
Minha calça de montaria ainda estava secando, depois de nossa aventura da noite passada,
então uma saia simples era a melhor alternativa. Vesti-a, grata por me livrar de minhas
anquinhas e de meu espartilho, e abotoei completamente o meu corpete. Era magnífico
poder me mexer com facilidade. Eu não queria empecilhos enquanto estivesse me movendo
furtivamente pelo castelo nessa noite.
Eu caçaria a Ordem e quem quer que estivesse fingindo que Drácula estava vivo.
Andei até o espelho e levei meus cabelos para cima, empenhando-me em prendê-los
firmemente. Uma dor de cabeça provocava minhas têmporas, mas eu lutava para que ela
passasse usando apenas de minha pura força de vontade. Uma vez que eu havia cuidado dos
meus trajes, escrevi um bilhete para Thomas.
Cresswell,
Tenho um pedido urgente a lhe fazer. Eu preciso ver o livro Poezii Despre Moarte. Traga-o
até os meus aposentos depois da ceia. Planejei uma noite um pouco cheia de aventuras para nós.
Sua,
AR
Obs.: Por favor, não tente escalar as paredes do castelo dessa vez. Eu tenho certeza de que você
conseguirá pensar em alguma maneira criativa de esgueirar-se pelos arredores sem ir parar na
masmorra de novo ou esparramado no gramado da academia.
“Você pode levar isso para o sr. Cresswell para mim, por favor?”, perguntei à camareira
quando ela chegou para me entregar meu lanche da tarde. Ela engoliu em seco e olhou de
relance para a carta, como se ela tivesse dentes prestes a mordê-la. “Este urgent."
“Foarte bine, domnişoară." Com relutância, ela colocou o bilhete em sua bandeja. “Precisa
de algo mais?”
Balancei a cabeça em negativa, sentindo-me terrível por envolvê-la em meu plano, mas
não vendo nenhuma outra forma de passar a mensagem adiante.
Andei de um lado para o outro e planejei o restante do dia, o que era um imenso teste de
paciência. A tarde certamente demorou para virar noite, mas, uma vez que ela colocou seu
manto noturno, eu nunca antes tinha ficado tão satisfeita por ver o céu preto como nanquim.
Enquanto eu marchava pela sala de estar, temi que Thomas pudesse não vir, no fim das
contas. Talvez a camareira não tivesse entregado minha carta a ele. Ou talvez ele tivesse sido
pego por um guarda e estivesse novamente na masmorra.
De todos os cenários que eu havia imaginado, eu não tinha pensado em realizar meu
plano sozinha. Quando me convenci de que ele não vinha e de que estava na hora de seguir
para o próximo passo, ouvi uma batida suave na minha porta. Thomas entrou de fininho
antes que eu fizesse qualquer movimento, seu olhar aceso de preocupação.
“Eu tenho a sensação de que você não me convidou a vir aqui para nos beijarmos. Embora
não custe perguntar.” Ele abriu um largo sorriso ao ver os trajes que eu vestia, e esfregou as
mãos uma na outra, enquanto centelhas de travessura brilhavam como fogos de artifício ao
seu redor. “Você está vestida para andar furtivamente pelo castelo de Drácula. Fique parado,
sombrio coração que está prestes a derreter. Você certamente sabe como fazer um rapaz se
sentir vivo, Wadsworth.”
38. A CAÇADA COMEÇA
Camere din turn
Câmaras da torre, Castelo de Bran
22 de dezembro de 1888
ocê trouxe o livro?” perguntei a ele, pronta para vasculhar eu mesma os bolsos de
Thomas se ele não fosse mais rápido.
“Olá, é um prazer vê-la bem, Wadsworth.”
Ele afastou-se da porta, parando ao alcance dela enquanto brandia o Poezii Despre Moarte.
Sem rodeios, apanhei o livro dele, indo para o poema “XI”, conforme eu o informara sobre o
bilhete que eu havia encontrado na porta do meu banheiro.
XI
As damas em prantos, os homens às lágrimas
Dizem adeus, descendo a estrada
A terra se move, as covas se abrem
Profundas na terra, no inferno ardem
Fria e profunda, a água vai transbordar
Uma vez ali dentro, você ela não vai durar
“Veja isso”, falei. Alguém havia pegado uma pena e rabiscara o você, substituindo-o por ela.
Engoli a ansiedade que girava em meu organismo. “Você acredita que isso seja uma referência
à sua irmã?” Thomas leu o poema novamente. Fiquei observando a transformação, enquanto
a calidez e os ares de flerte eram substituídos pela expressão clínica que ele usava para quase
todo o restante das pessoas. Porém, a tensão ainda estava presente em seus ombros, o único
sinal de que ele não estava à vontade.
“Eu acredito que esteja se referindo a ela, ou possivelmente a Ileana. Talvez até mesmo a
Anastasia.” Thomas continuou fitando o poema. “É realmente extraordinário. Quem quer
que tenha planejado isso...” Ele endireitou os ombros. “Isso tudo vem sendo um jogo
mórbido, e só agora nos damos conta de que somos seus jogadores.”
Estremeci. Anastasia havia mencionado uma vez que Moldoveanu gostava de adicionar
elementos lúdicos aos cursos de avaliação. Embora eu não acreditasse que isso incluísse
assassinar alunos em potencial ou sua querida protegida. E não importava que as fofocas do
castelo pudessem levar alguém a acreditar que ele estava atrás de sangue durante esse período
de teste. Eu tinha visto a expressão de verdadeira devastação em Moldoveanu depois que o
corpo de Anastasia fora recuperado.
Thomas suspirou. “Eu não acho que você ficará satisfeita em permanecer aqui e jogar uma
partida de xadrez até que os guardas reais corram atrás dessa pista, não é?” Balancei
lentamente a cabeça em negativa. “Muito bem, então. O que você tem em mente?”
Deixei um bilhete, no meu canapé endereçado ao diretor, temendo que isso pudesse ser
exatamente o que nos impediria de conseguir aqueles dois estimados lugares na academia.
Ignorei a pontada de arrependimento. Até onde eu sabia, se nós impedíssemos esse assassino,
poderíamos ser admitidos na academia. De uma coisa eu tinha certeza: se não voltássemos
essa noite, eu queria me certificar de que Moldoveanu saberia onde nos encontrar. Antes de
nos expulsar para sempre. Fiz um sinal para que Thomas ficasse quieto.
“Nós vamos caçar vampiros, Cresswell.”
Descemos sorrateiramente a escada da torre e conseguimos seguir por todo o caminho até
o corredor das criadas antes de avistarmos uma patrulha. Eles marchavam pelo corredor
principal, seguindo ruidosamente seu caminho em nossa direção, com o couro rangendo e
armas suficientemente barulhentas para alertar os mortos de sua presença. Puxei Thomas
para uma alcova escondida por uma tapeçaria. Contanto que eles não acendessem um
lampião ou olhassem muito atentamente para trás da obra de arte, estaríamos bem. Eu
esperava que sim.
Eu me remexi no pequeno recanto, dando-me conta de quão pequeno era aquele espaço
para uma pessoa, quem diria duas. O calor do corpo de Thomas estava me distraindo de
formas que eu não tinha imaginado que fossem possíveis, ainda mais quando estávamos
caçando o Empalador, ou a Ordem, ou quem quer que realmente estivesse por trás dessas
mortes.
Uma parte minha desejava deixar essa missão para a guarda real e aproveitar a posição em
que nos encontrávamos. Pensamentos similares pareciam estar passando pela mente de
Thomas; sua garganta subia e descia um pouco mais do que o normal enquanto ele se
espremia mais para junto de mim. Os passos ficavam cada vez mais altos no corredor, tão
pesados quanto a carga elétrica que crescia entre nós dois.
Thomas voltou o rosto na direção do meu, e nossas respirações vinham em ímpetos
silenciosos. Se de medo ou anseio, eu não conseguia discernir. Talvez ele estivesse inventando
uma desculpa para estarmos em um corredor caso fôssemos descobertos. Ou talvez ele
desejasse reduzir a distância remanescente entre nós tanto quanto eu queria.
Os olhos dele tremularam e se fecharam, e o desejo que eu havia visto neles foi o bastante
para me arruinar ali mesmo. Ergui o rosto, permitindo o mais leve e breve contato entre
nossos lábios. Não passou da sombra de um beijo, mas acendeu um fogo por todo o meu
corpo. A respiração de Thomas ficou alta o bastante a ponto de parar meu coração, o corpo
inteiro enrijecendo-se, quando as passadas dos guardas pararam abruptamente.
Os guardas fizeram uma parada não muito longe de onde nós estávamos aninhados,
cessando sua conversa baixa. Sem soltar nenhum pio, Thomas encolheu a distância entre
nossos corpos. Cada centímetro dele me tocava enquanto ele escondia meu corpo com o dele,
abrigando-me para que eu não fosse vista.
Nós ficamos daquele jeito, presos entre a parede e os guardas, respirando parcamente. Eu
mal conseguia pensar direito. A lógica havia saído de férias e não tinha se dado ao trabalho de
voltar. Eu lutava contra todas as premências irracionais que me tomavam e mantive as mãos
presas nas laterais do meu corpo, em vez de deslizá-las pelo corpo dele.
Depois do que pareceu ser uma década, os guardas continuaram caminhando pelo
corredor. Nem eu nem Thomas nos mexemos. O calor irradiava-se entre nós de uma maneira
que me levou a ter os mais indecentes pensamentos que eu jamais considerara antes. Lá se
fora a moça que ficaria ruborizada só de pensar em expressar sua paixão.
Senhor, como eu queria que esse caso terminasse logo. Se eu não beijasse Thomas, eu
poderia muito bem entrar em combustão e virar cinzas. Minha tia Amélia teria ficado
horrorizada com minhas ações pecaminosas, mas eu não me importava nem um pouco com
isso. Se um romance não fosse uma distração que pudéssemos nos dar ao luxo de ter, eu
viveria com o ardor desse momento por toda a eternidade. Mesmo com esses pensamentos
racionais espiralando-se na minha cabeça, eu ainda vivenciava uma grande dificuldade em
encerrar nosso contato.
Por fim, Thomas moveu-se o suficiente para sussurrar ao meu ouvido, seus lábios
trilhando o caminho da linha do meu maxilar.
“Você muito certamente será a morte da minha dignidade, Wadsworth.”
Abri um sorriso doce, permitindo-me um instante para recuperar o fôlego. “Sua dignidade
pereceu há muito tempo. Venha, temos que nos mover rapidamente antes que eles deem
meia-volta.” E antes que eu mesma me decida por não fazer nenhuma investigação forense e
passar o restante da noite beijando-o em um corredor deserto enquanto um assassino
encontra-se à espreita. Um sorriso de diversão iluminou o rosto de Thomas, e eu me dei
conta de que ele estivera sussurrando. “O que houve?”
“Em que diabos você estava pensando agorinha mesmo? Eu disse, querida Wadsworth,
que parece que alguém colocou uma bandeja cheia de doces na sua frente. Talvez...”, ele levou
a boca provocantemente para perto da minha, “eu possa oferecer uma guloseima a você antes
de partirmos, não?”
“Tentador.” Eu passei por baixo dos braços dele e desferi-lhe um olhar por sobre meu
ombro, desfrutando por completo a forma como o olhar dele acompanhava os meus
movimentos. “Infelizmente, por ora devo recusar. Nós temos um encontro clandestino nos
túneis secretos.”
Thomas soltou um suspiro.
“Eu meio que gostei mais da minha sugestão.”
Se realmente existiam forças maiores do que as que haviam na terra, então possivelmente
haveria alguém, em um lugar melhor, olhando por nós. Não encontramos nenhum outro
guarda e adentramos sorrateiramente o necrotério do porão sem nenhum impedimento. Eu
fui correndo até um gabinete e remexi nele até que encontrei alguns materiais. Um lampião,
um escalpelo e um martelo de crânio.
“Andei pensando...” sussurrei enquanto Thomas erguia o alçapão que dava para os túneis.
Ele parou, com os braços estirados acima da cabeça, e me analisou. Um sorriso brincava
com as beiradas de sua boca, embora ele estivesse claramente tentando suprimi-lo. “O que é
sempre um perigoso passatempo para você, Wadsworth.”
“Hilário, como sempre”, falei. “Contudo, creio que talvez seja o príncipe Nicolae quem
estejamos caçando. Ileana simplesmente não... Eu não sei... Não se encaixa. Eu não consigo
imaginá-la empalando ninguém nem drenando o sangue das vítimas com equipamentos de
necropsia. Além do mais, eu vi a forma como ela olhava para sua irmã. Não há como esconder
aquele tipo de amor. Nicolae, todavia...” Dei de ombros. “Ele estava em posse daqueles
desenhos, inclusive daqueles desenhos de morcegos. Ele tinha a oportunidade de enviar
ameaças à família real. E... Eu venho querendo dividir com você a informação de algo mais
que ele fez.”
“Eu desejarei matá-lo?” Thomas ergueu uma sobrancelha. “Nicolae não declarou seu amor
eterno, não é? Embora...”, ele continuou falando devagar, deixando o alçapão cair de volta no
lugar, “eu suponha que um pouco de concorrência saudável não faça mal a ninguém.”
“Havia... ilustrações minhas no diário dele. Ele havia me transformado em algo
aterrorizante. Quase como se ele pensasse em mim como uma vampira.”
“Por que esta é a primeira vez que você está mencionando isso?” A voz de Thomas estava
um pouco baixa demais, seu tom não mais carregado com aquela leveza de antes. “Se você
não confiar em mim, Wadsworth, como é que eu vou ajudar? Nós somos parceiros.” Ele
andou de um lado para o outro pela sala, batendo selvagemente com as mãos nas laterais de
seu corpo. “Eu disse a você que não consigo ajudar a deduzir nada quando os fatos estão
obscurecidos para mim. Eu não sou um mágico.” Ele parou de se mover e respirou fundo
algumas vezes antes de olhar nos meus olhos. “O que mais?”
“O príncipe Nicolae tem conhecimentos forenses e teve acesso a cada uma das vítimas.
Além do mais, a ameaça que acabou de ser deixada em meus aposentos fazia menção a ela. Eu
não creio que se refira a mim.”
Thomas ergueu a porta novamente, e fez um gesto incentivando-me a ir na direção das
escadas. “Você está sugerindo que estamos prestes a encontrar minha irmã e a amada dela
empaladas nestes túneis?” Embora o tom dele estivesse cuidadosamente composto e seu
comentário fosse insolente, eu ouvi a preocupação subjacente. Não importava quão frio e
clínico ele pudesse ser no laboratório, dar a notícia devastadora da morte de Daciana para sua
família seria uma tarefa insuportável para ele. Aproximei-me e dei um apertãozinho gentil
em seu braço.
“Estou dizendo para você se preparar para o pior. Pode ser que eu esteja errada.”
Conforme eu pegava o lampião, seguindo cautelosamente escada abaixo, pensei tê-lo
ouvido murmurar: “Receio que você possa estar certa”.
39. LYCOSA SINGORIENSIS
Pasaj secret
Passagem secreta, Castelo de Bran
22 de dezembro de 1888
ara ser bem claro, quando você me convidou para ‘uma noite cheia de aventuras’,
não foi assim que eu imaginei que seria, Wadsworth.”
Thomas removeu uma teia de aranha de sua casaca, os lábios franzidos diante da
coisa pegajosa que grudava em seus dedos. Nós atravessamos os túneis, nos quais já havíamos
estado, em tempo recorde. Agora estávamos parados diante da primeira pista. Ou, pelo
menos, eu assim acreditava. Thomas estava agitado ao meu lado.
"Se todos nós estamos sendo caçados por algum assassino altamente criativo, poderíamos
muito bem aproveitar nossos últimos momentos vivos”, ele continuou a falar. “Será que eu
poderia lhe oferecer algumas alternativas a aranhas e túneis sombrios? Talvez beber vinho
demais. Uma fogueira quentinha. Flertes inapropriados.” Eu mantive o lampião afastado do
meu corpo, deslizando o olhar pela escuridão enquanto girava ao redor de mim mesma. As
sombras mexeram-se, obedientes, em volta do feixe de luz.
“Incrível”, falei.
“Eu pensei isso também. Embora seja bom ouvi-la concordar com uma das minhas
sugestões uma vez na vida.”
“Estou me referindo a isso. Há uma porta aqui.” Apertei os olhos para enxergar as letras
pretas e lascadas pelo tempo. Eu tinha certeza de que estávamos no caminho para descobrir
onde o Empalador ou a Ordem estavam morando. “Há... Isso queimado na madeira é latim?”
"Sim. Havia uma cruz queimada na outra câmara. Parece então que estamos no caminho
certo.” Seguindo em frente, Thomas mordia seu lábio inferior enquanto lia as palavras na
porta. “Lycosa singoriensis. Isso me parece... familiar.”
Um som baixo de pedrinhas sendo esmagadas ali perto fez com que ficássemos tensos,
preparados para a batalha. Eu segurava com firmeza o escalpelo, e Thomas estava armado
com o martelo que era usado para abrir crânios. Era o melhor que podíamos fazer.
"Você ouviu isso?”, sussurrou Thomas, movendo-se de modo a ficar ao meu lado.
Eu torci a válvula do lampião, e o sibilar do gás sumiu ao mesmo tempo em que a chama
se apagou. Sem a luz, o túnel era praticamente uma parede sólida e preta que se assomava
acima de nós. Alguma coisa se contorcia no meu peito, quase arrancando o ar de dentro de
mim. Eu fingi que a escuridão era um céu noturno azul-aveludado e que eu estava
acomodada em cima de uma nuvem, como se fosse uma almofada. Caso contrário, eu
começaria a imaginar a mim mesma enterrada debaixo da pedra e morreria onde estava. O
som foi ficando mais alto e vinha do túnel do qual havíamos acabado de sair.
Havíamos decidido deixar aberto o alçapão no necrotério, na esperança de que um guarda
pudesse se deparar com ele caso algo terrível acontecesse conosco. Eu esperava que eles ainda
não tivessem começado a nos perseguir. Thomas esbarrou em meu braço no escuro, um
gentil lembrete de que ele estava ali ao meu lado.
“Nós provavelmente mexemos com um ninho de ratos, Cresswell. Não precisa borrar suas
calças.”
Ouvi o sorriso em sua voz antes de Thomas responder. “Quando esse é o pensamento
mais tranquilizante que você consegue ter, as coisas não estão se saindo muito bem. Embora
eu fique feliz por ver você pensando nas minhas roupas de baixo.”
O distinto som de passos irrompeu pelos meus pensamentos. A pisada era alta o bastante
para que eu determinasse que havia pelo menos duas pessoas atrás de nós. Ou atrás de
qualquer que fosse o segredo que pudéssemos estar prestes a desenterrar. Eles estavam se
aproximando. De repente, a possibilidade de que Moldoveanu e Dăneşti se deparassem
conosco não era o pensamento mais aterrorizante. Nós não fazíamos a mínima ideia de quem
a Ordem era, nem de quantas pessoas poderiam estar envolvidas.
“Quem quer que esteja se dirigindo até nós provavelmente não é o tipo de pessoa que
gostaríamos de encontrar em um lugar abandonado, afastado de onde os outros poderiam
escutar os nossos gritos, Cresswell.”
Eu podia ouvir Thomas tateando no escuro, e imaginei suas mãos se mexendo pela
parede. Passos ecoavam atrás de nós. Longas sombras desdobravam-se na curva, denunciando
não pertencerem aos seus mestres. Se não encontrássemos um lugar para nos escondermos
agora...
Um gemido baixinho seguido de um exalar de putrefação estagnada indicava que Thomas
havia conseguido abrir a porta à força. Eu rezava para que nossos perseguidores não tivessem
ouvido isso.
“Ah, deu certo. Vamos nos apressar, que tal?”
Lembrar-me da porta que abrigava morcegos-vampiros me fez ficar toda arrepiada. Eu
não estava com vontade de vivenciar aquele deleite mais uma vez, mas não via outra saída. Se
o Empalador ou a Ordem estivessem nos caçando, eu preferiria os morcegos. Uma luz
ricocheteava, vinda de tochas ou lampiões, e vozes sussurradas entraram no túnel. Estava na
hora de nos mexermos.
Adentramos de fininho a câmara preta e fechamos a porta, cegos para o que poderia estar
nos observando. Um cheiro acre pairava no local, como se algo houvesse apodrecido ali muito
tempo atrás. Passou-se uma eternidade enquanto esperávamos na câmara não iluminada até
que nossos intrusos tivessem seguido em frente. Thomas deve ter esticado a mão, pois seus
dedos ficaram presos nos meus cabelos.
“É sério?”, suspirei, em um tom severo. “Você tem que colocar as patas em mim agora?”
“Embora eu tenha pensado bastante em colocar minhas mãos em você neste cenário
deleitosamente macabro, Wadsworth, eu duvido que minha mente tenha a capacidade de
colocar isso em prática agora.”
“Jura?”
“Pelo túmulo potencialmente vazio do meu tataratataratatara-tio Drácula, sim.”
“Então o que tem aqui, Cresswell?”
Em vez de responder, senti que Thomas deu um passo e se pôs diante de mim, com suas
mãos — invisíveis no escuro — lentamente subindo do corpete do meu vestido para as
minhas bochechas antes que ele se afastasse. Se elas não estavam emaranhadas nos meus
cabelos, então quem, ou o que, estava? O coração espancava o meu peito em um ritmo
frenético. Engolindo o pânico crescente, acendi o lampião de forma vagarosa. O brilho suave
preencheu o espaço enorme como se fosse ouro derretido escorrendo pelo chão. Demorou
um instante para que meus olhos se ajustassem à luz e, quando isso finalmente aconteceu,
uma face hedionda e iluminada sorria largamente diante de mim.
Arquejei, quase deixando cair o lampião e esquecendo-me do que poderia ter tocado em
meus cabelos. Minhas pernas ficaram fracas assim que entendi aquilo que eu via: um
agrupamento de estalactites contorcidas em um meio-círculo ao longo de algumas sombras
lançadas por rochas proeminentes, o que passava a estranha impressão de que um demônio
nos olhava com uma careta cheia de dentes afiados. Além das pedras pendentes, eu podia ver
que o túnel continuava por uma boa distância.
“Eu tenho um... Eu não sei ao certo. Acho que é um sentimento. Uma sensação. Eu devo
estar ficando doente.” A postura de Thomas estava tão rígida quanto seu maxilar cerrado, e a
piada era obviamente uma tentativa de aliviar nossa situação. “É como se um bando de cobras
habitasse meu corpo de uma só vez. Muito desagradável.”
“Ah, sim. Mas você está vivenciando sentimentos, Cresswell. Esse é um imenso
progresso.”
Continuando a iluminar ao redor da área, notei fios pálidos e prateados entre as
estalactites. Separei-me de Thomas na esperança de inspecionar melhor a formação sinistra.
Uma sombra caiu espasmodicamente do teto até alcançar o nível do meu olhar.
Uma aranha quase tão grande quanto o meu punho cerrado olhava para mim com seus
olhos refletores. Coberta de espessos pelos pretos, ela ostentava presas quase tão grandes
quanto a unha do meu polegar. O gelo descia em riozinhos pelo meu pescoço. Se a ameaça de
ser assassinada ou expulsa não fosse tão grande, eu teria gritado até meus pulmões cederem.
Uma gota de um líquido fino e carmesim escorreu das pontas de suas presas; eu não sabia
dizer se era sangue ou veneno. Lá no fundo, o grito estava lutando para vir à tona. Thomas
ergueu a mão, dando um passo cauteloso na minha direção.
“Concentre-se em como eu sou belo. Em como você quer pressionar seus lábios nos meus.
E, definitivamente, não entre em pânico, Wadsworth. Se você gritar, eu vou me juntar a você,
e então nós dois estaremos encrencados."
Tudo dentro de mim ameaçava ficar escuro. Quando alguém alertava uma pessoa para
que não fizesse algo, em geral isso queria dizer que elas deveriam fazer precisamente aquilo.
Contra meu bom senso, ergui o lampião, o braço tremendo um pouco, e avistei mais duas
aranhas penduradas acima de nossas cabeças.
“Eu me pergunto com que frequência elas são alimentadas. Não há muita atividade
acontecendo nesses túneis.”
Thomas virou-se e xingou. Minha atenção voltou-se para trás dele, focando-se na porta
por onde havíamos entrado, praticamente um organismo vivo de tantos aracnídeos que havia
nela.
“Thomas...” Meneei para a porta, embora ele já estivesse hipnotizado por ela. “Deve haver
milhares delas. Cada pedacinho da superfície está vivo e se movimenta.”
“Lycosa singoriensis...” Thomas murmurou o termo em latim para si mesmo, sua
concentração mais intensa a cada vez que ele repetia as palavras. Suas emoções tinham sido
descartadas como alguém que retira as luvas, e foram substituídas por aquela máscara fria e
mecânica que ele às vezes usava. “Trata-se de uma tarântula romena.”
“Que maravilha! Elas são venenosas?”
“Eu... Na verdade, não sei ao certo.” Thomas engoliu em seco, o único indicativo de quão
assustado ele estava. “Creio que não. Pelo menos não essas.”
“Todas elas são tarântulas?”, perguntei.
Ele balançou a cabeça devagar, inspecionando metodicamente cada movimento. É claro
que elas não eram todas tarântulas. Por que um castelo repleto de tantas maneiras sórdidas
de morrer abrigaria apenas aranhas inofensivas? Meu coração batia cheio de pânico.
Precisávamos de um plano de fuga, mas uma rápida inspeção mostrou que não havia
muitas opções. Não poderíamos voltar por onde havíamos vindo... Havia aranhas demais
bloqueando nosso caminho.
Olhos aracnídeos brilhavam de várias centenas de pontos na quase escuridão,
obscurecendo qualquer saída alternativa.
Dei um passo apressado para trás e tropecei em uma grande pedra. Xinguei e direcionei a
luz para o chão, e vi que estava errada de novo. Aquilo não era uma pedra.
Aquilo em que eu havia tropeçado era uma caveira branca e leitosa.
“Oh, minha nossa!” Eu quase tive um colapso, o terror me pressionava de todos os
ângulos. Se havia um esqueleto ali, não era um bom indicativo de que tínhamos chance de
escapar. “Thomas, nós deveríamos...”
Oito longas pernas lentamente enrolaram-se para fora das órbitas da caveira, enquanto
outras oito arrastavam-se de dentro dos ossos de sua mandíbula aberta. Ambas as aranhas
vinham na minha direção, impossivelmente grandes e com movimentos tão desordenados
quanto os de um monstro morto-vivo que avançava na direção de sua próxima refeição. Se os
aldeões contassem esses tipos de histórias para as crianças - histórias de aranhas que comiam
homens, ficavam à espreita debaixo da terra, e depois exibiam suas carcaças —, então não era
de se admirar que eles acreditassem que vampiros também existiam. Por que condenar um
monstro quando havia provas da existência de outro?
Minha visão turvou-se em um preto ondulante, e não era a falta de oxigênio que estava
fazendo isso com o meu cérebro. Aranhas escapavam das rachaduras e fissuras como
demônios invocados dos reinos inferiores. Precisávamos nos mover. Imediatamente.
Entreguei o lampião a Thomas, peguei minhas saias e recobrei minhas faculdades
mentais. Alguma coisa caiu no meu ombro e esbarrou em minha garganta. Estiquei a mão
para cima e senti uma aranha pendurada nos meus cabelos. Eu podia lidar com remover
órgãos de cadáveres e enfiar a mão nas entranhas gelatinosas da maioria das coisas mortas.
Mas eu não tinha problema nenhum em admitir que uma aranha enfiando-se nos meus
cabelos era demais para mim. Suas pernas desciam correndo a carne exposta do meu pescoço.
Eu gritei.
A razão me abandonou. Eu me debati, sacudindo os cabelos, tentando não gritar uma
segunda vez enquanto a aranha subia pelo meu pescoço, fugindo com velocidade para longe
das minhas mãos, que procuravam bater nela. Antes que eu a tirasse dali, uma mordida aguda
perfurou a pele perto do meu colarinho. Fui varrida pelo pânico em ondas nauseantes.
“Ela me picou!”
Thomas deixou cair o lampião e estava perto de mim em um instante. “Deixe-me ver.”
Eu estava prestes a puxar meu colarinho para o lado quando uma outra aranha caiu diante
de nós. Tudo que vi foi a boca de Thomas sinalizar surpresa antes que eu puxasse minhas
saias até os joelhos e saísse correndo, esquecendo-me completamente de fazer silêncio.
Quem quer que estivesse nos túneis, que enfrentasse as tarântulas sozinho.
Os músculos das minhas pernas tremiam tanto que eu mal conseguia continuar me
movendo, mas eu corri como se fossem verdadeiros os rumores sobre Vlad Drácula ser um
strigoi. A essa altura, eu estava disposta a acreditar em qualquer coisa.
Perdi o ritmo por um segundo, tropeçando nas minhas saias arruinadas. Algo afiado
perfurou minha panturrilha, e eu fui aos tropeços para o lado. A dor subiu com tudo pela
minha perna, como se alguém houvesse me pinicado com várias agulhas mortuárias de uma
só vez.
“Aaaai!”
Eu me engasguei com mais um gritinho. Era impossível dizer se uma outra aranha havia
me picado ou se eu tinha cortado a perna em destroços, que provavelmente consistiam em
mais ossos humanos. Parar para verificar não era uma opção. Thomas varreu com a mão um
punhado de aranhas para fora da maçaneta e depois nos empurrou pela porta, com a luz
oscilando e fazendo com que o mundo ao nosso redor ficasse inclinado. Esta era uma casa
dos espelhos que havia perdido suas ilusões mágicas. Saímos correndo como se nossas vidas
dependessem de nossa fuga. Eu esperava que não estivéssemos deixando um horror para trás
só para nos depararmos com outro.
Vários minutos depois, saímos do túnel escuro e entramos em um outro local silencioso,
curvando-nos e respirando com dificuldade. Thomas se recompôs e ergueu o lampião; a luz
fraca mostrava que se tratava de uma imensa sala de pedra. Eu queria analisar nossos
arredores, mas não conseguia engolir ar o bastante para me estabilizar.
Antes de recuperar plenamente o fôlego, Thomas pousou o lampião ao meu lado e
sentou-se em seus calcanhares, examinando meus ferimentos. As mãos dele estavam frias e
eram precisas enquanto puxavam minha meia-calça arruinada para baixo. Um franzido de
preocupação descia por entre suas sobrancelhas.
“Você foi mordida por uma aranha apenas, da variedade não venenosa, pelo que parece,
pois não há inchaço e nem sinal de que o sangue tenha sido sugado, não indicando a presença
de veneno, e também cortou a perna em uma pedra afiada.” Com gentileza, ele deu uns
tapinhas na área ferida da minha perna. “Isso precisa ser lavado. E um curativo seria bastante
bom.”
“Eu deixei meus suprimentos médicos no meu outro vestido. Que inconveniente!”
Os lábios de Thomas se contorceram num leve sorriso, o primeiro sinal de que ele estava
se afastando daquela parte fria e isolada de si mesmo. Ele enfiou a mão em sua calça e
brandiu um pequeno rolo de um material que parecia uma gaze. “Para sua sorte, eu me
lembrei dos meus.”
Sem perder mais tempo, ele limpou minha ferida da melhor forma possível e a envolveu
com uma eficiência mecânica. Assim que ficou satisfeito com a forma como lidara com isso,
levantou-se e analisou a sala cavernosa. Várias passagens marcadas por números espalhavam-
se diante de nós, mas nenhum deles estava correlacionado aos poemas que havíamos lido na
sala de aula.
“Eu não acho que fomos seguidos, ou então certamente já teríamos escutado algo”, disse
ele, erguendo o lampião. “Qual dessas passagens desagradáveis devemos arriscar primeiro?”
“Eu não...” Um pensamento veio com tudo e eu não consegui deixar de suspirar. Apontei
para o túnel mais estreito. Acima da entrada em arco havia o numeral romano VIII. “É quase
uma pista dentro de outra pista, Thomas.”
Ele ergueu uma sobrancelha. “Talvez seja a umidade ou as aranhas, mas eu não estou
exatamente acompanhando a relação.”
“O numeral romano oito pode muito bem ser um código para Vlad, o Empalador. V. III.
Vlad Terceiro. Príncipe Drácula.”
“Impressionante, Wadsworth”, elogiou Thomas, voltando o olhar para mim. “Se não
estivéssemos prestes a enfrentar outra terrível passagem cheia de perigos ameaçando nossas
vidas, eu a tomaria nos meus braços agora mesmo.”
40. DILÚVIO DE INFORMAÇÕES
Tunele secrete
Túneis secretos, Castelo de Bran
22 de dezembro de 1888
u lutava para manter o meu nariz e a minha boca acima da água enquanto
deslizávamos ao longo do que eu presumia ser um cano antigo coberto por algas
escorregadias, encaminhando-nos sabe-se lá o Senhor para onde.
Mantive as mãos coladas ao meu corpo, o que impedia que o lodo as cobrisse. Se eu
soubesse que não estávamos prestes a sermos cuspidos para dentro de uma câmara pior, ou
que meu escalpelo e o martelo de Thomas não estavam prestes a causar danos graves, eu
poderia ter gostado da gigantesca queda de água subterrânea. Contudo, eu não acreditava que
Vlad Drácula ou a Ordem do Dragão houvessem projetado algo assim para propósitos de
diversão. Meus músculos se retesaram com a expectativa de aonde poderíamos ir parar.
Estremeci, não apenas por causa da água gélida, enquanto deslizava pelo cano que parecia
infinito. Eu não conseguia imaginar quão longe da superfície nós devíamos estar; a escuridão
era total, de modo que eu não conseguia enxergar nem um palmo diante do meu nariz.
O cano dava voltas e fazia curvas e, depois de várias rotações do meu corpo, acabou se
aplanando. Segundos depois, fui jogada em uma poça rasa. Eu me recusava a considerar o que
poderia estar se movendo para cima e para baixo pela superfície enquanto eu me mexia pelos
arredores, borrifando água por toda parte; pelo menos o cheiro não era assim tão fétido.
Enquanto eu me forçava a ir para cima, Thomas veio voando e caiu em cima de mim,
derrubando ambos, fazendo nossos joelhos e testas baterem uns contra os outros em uma
desajeitada dança em direções contrárias.
De alguma forma ele havia conseguido envolver minha cabeça com as mãos para evitar
que eu esmagasse meu crânio na pedra abaixo de nós. Eu imaginava que os nós dos dedos
dele não tinham tido tanta sorte assim.
“Aquilo... foi... aterrorizante... e incrível”, disse ele, perdendo-se em uma risada.
Eu queria concordar, mas tudo que eu conseguia pensar era nas mãos dele que me
envolviam. Nós havíamos estado tão próximos da morte. Como se fosse uma estrela cadente
na noite, nosso lampião singrava a água, flutuando na superfície e oferecendo-nos um pouco
de luz.
Thomas olhou de relance para mim, e então parou de rir. Agora sua expressão estava séria
e comedida. Fitei-o, notando que seus cílios eram longos e escuros como o céu noturno. Seus
olhos eram minhas constelações favoritas de contemplar; cada um dos pontinhos dourados
que cercavam suas pupilas eram novas galáxias começando a ser descobertas. Eu nunca havia
sido fascinada por astronomia antes, mas agora me descobria uma aluna ávida.
“Você me salvou mais uma vez.” Thomas apoiou-se nos cotovelos, com um grande sorriso
no rosto em resposta à minha expressão. Ele esticou a mão e tirou lodo dos meus cabelos.
“Você é bela, Wadsworth.”
“Oh, sim. Coberta de sujeira e o que quer que fosse aquele fétido pedaço de...”
“Você realmente não vai querer saber.”
Suprimi a vontade de vomitar e, com cautela, movi cada perna, testando a mim mesma
para ver se havia ossos quebrados e fraturas. Tudo parecia estar em perfeito estado, embora
fosse difícil dizer isso com certeza sem me levantar.
“Que tal tudo isso em termos de aventura?” perguntei, tremendo. “Está mais próximo do
que você tinha em mente?”
O mais minúsculo dos sorrisos curvou os lábios dele, apagando o embaraço. “Você
claramente precisa dormir. Eu tenho dúvidas sobre se deveríamos continuar sendo amigos,
Wadsworth. Você é um pouco selvagem demais para mim.”
Eu me encolhi enquanto ele se mexia. Aquilo era horrível demais para ser ignorado: o fato
de que eu estava deitada sobre um chão de pedra e ensopada, ainda que uma parte duvidosa
de mim gostasse de estar tão perto de Thomas.
Um lampejo de preocupação passou pelas feições dele. “O que é isso? Você está
machucada?”
“Talvez nós devamos voltar para nossa tarefa de localizar o Empalador. E, se você não se
importar em sair de cima de mim para que eu possa respirar devidamente... Você é pior do
que um espartilho.”
Ele piscou como se estivesse saindo de um sonho, então ficou de pé em um pulo e me
ofereceu uma das mãos.
“Peço desculpas, bela dama.” Ele tirou o lampião da água e limpou suas laterais. “Qual
câmara da perdição é a próxima no cardápio?”
“Não sei ao certo. Você ainda está com o Poeztí Despre Moarte?"
“Bem aqui.” Thomas deu um tapinha em seu bolso dianteiro. “Embora já não esteja com o
martelo de abrir crânios.”
“Meu escalpelo também sumiu.” Olhei em volta da câmara, notando uma borda em cada
lado da poça de água dentro da qual nós estávamos, e sinalizei que deveríamos nos dirigir
para lá. “Vamos tentar nos secar um pouco.”
Subimos na borda e torcemos nossas roupas e cabelos da melhor forma que pudemos.
Minhas saias estavam grudadas nas minhas pernas, tornando cada movimento mais difícil do
que o anterior. Fiquei surpresa ao ver vapor erguendo-se de algumas fissuras na parede de
pedra, afastando a maior parte do frio mordente no ar. Estirei as mãos trêmulas e Thomas
rapidamente fez o mesmo.
“Deve haver águas termais em uma dessas montanhas”, disse ele, removendo sua casaca e
pendurando-a sobre o vapor.
Fiquei com o olhar cravado em seu peito, definido e totalmente à mostra graças à água
que ensopava sua camisa. Ele era finamente esculpido, e seu corpo me lembrava antigas
esculturas de heróis ou deuses semivestidos.
Afastei meu olhar, segurando minhas saias o mais perto possível do vapor. Agora não era
hora para ser distraída por desejos impróprios. Eu me virei, na esperança de secar a parte de
trás do corpete do meu vestido, e avistei uma outra entrada para os túneis, marcada com o
numeral XII. Meu corpo foi abalado por calafrios, causados por um motivo inteiramente
novo.
“Deixe-me ver o livro, Cresswell.”
Thomas deu uma espiada na entrada que eu apontei e entregou-me o antigo tomo de
velino. Folheei suas páginas, maravilhada com a forma como haviam sobrevivido às águas.
Quem quer que tivesse criado o livro deve tê-lo projetado para que aguentasse perigos como
esse. Encontrei aquilo que estava procurando e parei. Precisei de um instante para decifrar o
romeno em minha cabeça, mas consegui.
XII
Vermelho como sangue, branco como marfim,
Algo que há muito se desfez está próximo a mim
Na Árvore da Morte há um coração de pedra
Ao entrar sozinho na cripta, sua alma se quebra
A cada simples passo, ele vai te acompanhar
Cravar os olhos em sua presa e então atacar
Vermelho como sangue, branco como marfim
Os que deveriam ter fugido jazem próximo a mim
Eu li o poema em voz alta para Thomas, com meus pensamentos completamente focados em
nossa missão mais uma vez. Ele afastou mechas de cabelos escuros de sua testa e soltou um
suspiro.
“Eu não me lembro de Radu ter mencionado nada sobre batalhas com strigoi, você
lembra?”
“Infelizmente, não.” Balancei a cabeça em negativa. Nossas aulas sobre vampiros não
tinham oferecido nenhuma pista sobre como poderíamos sobreviver a uma câmara destinada
à eles. “Venha”, falei, erguendo minhas saias parcialmente secas e assentindo na direção da
entrada, “ficar aqui não vai nos levar para fora desses túneis mais rápido.”
“Não”, Thomas concordou, acompanhando-me devagar, “mas eu preferiria estar coberto
de lodo a ver que outros deleites estão esperando por nós.”
O túnel não era muito longo e nos lançou em uma outra câmara, como se tivéssemos ido
de uma grande sala até outra no castelo.
“Como este aqui. Que encantador!”
Eu desviei minha atenção das paredes de pedra e inspecionei o local onde estávamos,
arrependendo-me imediatamente disso. Esta câmara era uma imensa e antiga cripta, dividida
em duas seções por um elaborado arco. Alguém havia estado aqui embaixo recentemente
para acender as tochas, e meu sangue resfriou-se ao pensar nisso. Tinha que haver uma
maneira de chegar até aqui que não fosse por aquela rota infernal que havíamos encontrado.
Eu estava dividida entre nos forçarmos a seguir em frente e sair correndo na direção oposta.
Thomas e eu paramos debaixo do arco, sem qualquer intenção de cruzá-lo e adentrar o
espaço diante de nós. Ele olhou para mim e levou um dedo aos lábios. Precisávamos nos
mover tão rápida e silenciosamente quanto fosse possível.
Inspecionei o arco, tentando controlar os arrepios que surgiam pelo meu corpo. Ele era
feito totalmente de chifres galhados. Eu não conseguia sequer começar a compreender como
tantos cervos haviam morrido de modo a compor uma coisa assim tão horrenda, mas minha
atenção foi rapidamente atraída para outro lugar. O restante da câmara era ainda mais
horripilante.
Os mortos não descansavam em paz nesta cripta. Seus restos mortais haviam sido
revirados, manipulados e transformados em uma cena digna de pesadelo, saída direto das
páginas dos horrores góticos. Tudo havia sido criado a partir de ossos brancos e frios.
Sepulturas. Cruzes ornamentadas. As paredes. O teto. As cercas. Tudo, tudo era feito de
partes de esqueletos, tanto humanos quanto animais, em uma primeira olhada. Engoli em
seco a minha repulsa.
Radu estivera errado em relação ao bosque, dizendo que estava cheio de ossos. O espaço
abaixo da montanha é que estava.
Daqui, nós podíamos ver um mausoléu fechado por uma cerca, que parecia uma pequena
capela profana dentro de um vasto cemitério. Em vez de pedra, o chão do cemitério era de
terra batida, o que fazia com que eu me perguntasse se nós por fim havíamos chegado ao
verdadeiro fundo da montanha. A cerca era construída de ossos perpendiculares que haviam
sido enfiados no solo. Um portão grosseiro, parcialmente aberto, ficava no centro. Meu corpo
zunia com a expectativa e o temor. Eu não desejava cruzá-lo e entrar nessa parte do Inferno.
Havia altas e imensas colunas de ossos entrelaçados nos quatro lados do mausoléu, que
também era feito totalmente de restos mortais. No centro do que poderia ser mais bem
descrito como um cemitério de esqueletos parcialmente desenterrados, encontrava-se uma
grande árvore cujos galhos quase chegavam ao teto alto. Como todo o resto nesta câmara
horrenda, os ramos da árvore eram totalmente compostos por ossos. A monstruosidade devia
ter pelo menos uns seis metros de altura.
Continuamos andando, e paramos do lado de fora da cerca. Thomas havia ficado tão
quieto quanto o cemitério diante do qual nós estávamos, a atenção sendo varrida de uma
visão chocante para a outra. A terra revirada e o mofo faziam meu nariz coçar, mas eu não me
atrevia a espirrar. Um sem-número de coisas poderiam estar à espreita no emaranhado de
horror que nos cercava.
Thomas mudou seu foco para a cena macabra que estava diretamente no nosso caminho.
“Creio que tenhamos encontrado a Árvore da Morte mencionada no Poezii Despre Moarte”,
ele sussurrou, ainda olhando ao redor.
“Pelo menos, o nome é adequado. Certamente que não seria confundida com a Árvore da
Vida.”
“Isso é tão... terrível. Ainda assim, estou estranhamente encantado.” Thomas recitava o
nome de cada osso que ele identificava na árvore situada dentro da cerca. “Úmero, rádio...”
ele apontou para um outro pedaço de marfim, “e aquela é uma ulna admirável. Deve ter vindo
de um quase gigante. Tíbia, fíbula, patela...”
“Obrigada pela aula de anatomia, Cresswell. Eu consigo ver quais são os ossos”, falei
baixinho, balançando a cabeça na direção do portão e seus ossos desenterrados. “Por onde
deveríamos começar?”
“Pela árvore, naturalmente. E nós precisamos andar logo. Eu tenho a sensação de que
quem quer que tenha acendido as tochas voltará logo, logo.” Thomas me entregou o lampião.
“Você primeiro, minha querida.”
Uma vasta parte de mim não desejava entrar nesse antro do diabo, que mais parecia uma
aniquilação da santidade da morte, mas havíamos chegado longe demais para que eu
permitisse que o medo regesse os meus sentidos. Se Daciana ou Ileana ou Nicolae estivessem
metidos em problemas, precisávamos seguir em frente. Por mais que meus sentidos
estivessem gritando para eu agarrar a mão de Thomas e sair correndo na direção oposta.
Inspirei profundamente, na esperança de que nem minha imaginação nem meu corpo
fossem falhar comigo agora. Se havia uma hora para pensamentos claros e pulsação estável,
essa hora havia chegado.
Sem deixar que o medo afundasse suas garras em mim, ergui o queixo e segui nas pontas
dos pés em direção à cerca de cadáveres que haviam sido escolhidos muito tempo atrás.
Contudo, não consegui me impedir de inspirar com intensidade quando adentrei o cemitério
que continha o que o Poezii Despre Moarte chamava de Árvore da Morte.
Eu poderia muito bem imaginar Vlad Drácula erguendo-se deste exato local, vindo saudar
seu último herdeiro.
42. VERMELHO COMO SANGUE
Copacul morții
Árvore da Morte, Castelo de Bran
22 de dezembro de 1888
árvore era até mesmo pior do que eu havia pensado quando a vira de uma distância
de vários metros. Ossos de mãos, crânios com órbitas vazias e caixas torácicas
quebradas criavam a aterrorizante obra-prima. Fiquei maravilhada com a forma
como eles se encaixavam uns nos outros sem nenhum fio ou atadura — eles simplesmente
tinham sido tecidos juntos.
Fêmures foram agrupados, formando o centro do tronco. Caixas torácicas estavam de
frente umas para as outras, engaiolando os ossos da perna como as cascas de uma árvore.
Olhando para a área em torno da base, notei pilhas de ossos, talvez esperando para serem
montados. Alguns deles ainda continham pedacinhos de carne e tendões. Nem todos esses
esqueletos eram velhos. Um pensamento arrepiante.
Eu me dei conta de que estava prendendo a respiração, aterrorizada com a possibilidade
de estar fazendo barulho demais. Eu queria andar logo, e, ainda assim, este lugar tornava
impossível não parar e ficar boquiaberta a cada novo horror. Como este que tínhamos diante
de nós agora.
Ao lado da pilha de ossos havia uma grande banheira com pés em forma de garras. Ela
estava cheia até a borda de sangue vermelho-escuro, o cheiro de cobre pungente para o meu
nariz. Provavelmente se tratava de um truque dos meus sentidos, mas eu jurava que alguma
coisa borbulhava de dentro de suas profundezas sangrentas. Thomas ficou imóvel, e sua
atenção grudada à banheira enquanto ele estirava um dos braços, retardando nossos
movimentos. Eu não me atrevia a chegar perto dela, o medo do que a minha mente poderia
conjurar era imenso. Thomas continuou encarando a banheira, os ombros tensos. Havíamos
encontrado o sangue desaparecido das vítimas do Empalador — aquelas de que tínhamos
conhecimento, e sabe Deus de quem mais. O assassino estava próximo. Próximo demais. Meu
corpo inteiro formigava com a expectativa.
Parecia que havíamos entrado, sem saber, nas profundezas do Inferno de Dante.
‘“Abandonai toda esperança, vós que entrais'. Isso é tão perturbador”, sussurrei. “Eu não
consigo imaginar como alguém poderia fazer uma cripta inteira de ossos. Ou aquela
banheira... Pobres Wilhelm e Mariana.” Estremeci, sabendo que a causa era apenas
parcialmente a minha roupa molhada. “A Ordem tem um grande talento para jogos
psicológicos de guerra.”
“Isso é, literalmente, um banho de sangue.” Thomas arrancou o olhar da banheira, com a
expressão sombria. “Alguém aqui tem um senso de humor bem sombrio e doentio.”
Fechei os olhos, exigindo que o rápido socar do coração em meu peito se desacelerasse.
Precisávamos encontrar Daciana e Ileana. Eu continuaria repetindo esse pensamento até que
o medo me soltasse.
Nos afastamos silenciosamente da banheira de sangue, mas o horror dela ficou grudado
em nós. Eu a sentia atrás de mim, à espera, como se estivesse me chamando com sua essência
atemorizante, saída dos piores pesadelos. Eu nem mesmo consideraria o que haveríamos de
fazer se alguma outra pista estivesse localizada dentro daquela monstruosidade sangrenta. Se
os aldeões eram supersticiosos em relação à profanação dos mortos, eu só podia imaginar
qual seria a reação deles caso algum dia se deparassem com este cemitério blasfemo.
“Deve haver mais de duzentos corpos humanos que foram usados para fazer essa mórbida
escultura.” Thomas segurou o lampião na direção do galho mais alto. Um agrupamento de
falanges pendia enfileirado como se fossem folhas brancas. “Talvez os rumores de que Vlad
Drácula seja imortal sejam verdadeiros.”
Distanciei o olhar da árvore de ossos, inspecionando meu companheiro em busca de
algum sinal de trauma. Ele voltou para mim um grande sorriso torto.
“Você é um deleite um tanto maior quando está me encarando desse jeito, Wadsworth.
Contudo, eu só a estou provocando. A julgar pelo banho de sangue, eu realmente acredito
que quem quer que tenha feito uma emenda naquele poema para você tenha visitado este
lugar. Talvez encontremos uma pista sobre Daci aqui.”
“Você está vendo algum numeral romano entalhado naquela árvore?” Eu me concentrei
no cemitério e no mausoléu; era impossível não ficar intrigada com nossos arredores. Crânios
desprovidos de carne ladeavam as paredes. Na verdade, os crânios eram as paredes. Eles
estavam empilhados um em cima do outro, tão juntos que eu mal conseguia colocar um dedo
entre eles.
Thomas balançou a cabeça em negativa. “Não, mas, segundo aquela placa, é necessário
que alguém suba na árvore para colher seu fruto.” Encarei a placa, presa com um prego no
portão de ossos. As palavras ali estavam gravadas em romeno, as letras tão rudimentares
quanto a ferramenta que tinha sido usada para escrevê-las. Dei um passo mais para perto da
placa, lendo-a para mim mesma.
Thomas estava certo; a placa basicamente estabelecia que a pessoa precisava colher o fruto da
árvore para obter o conhecimento. Passei os olhos pelos galhos da árvore, buscando algum
sinal desse tal fruto. Havia crânios de pássaros de todos os tamanhos pendurados por fios em
intervalos, com seus bicos voltados para um lado e para o outro. Apontei para eles.
“Talvez sejam aqueles crânios? De uma maneira nauseante, eles quase parecem peras.”
Atrás de nós, alguma coisa emitia um som fraco de algo borbulhando. Eu girei,
procurando, o coração quase pronto para sair galopando de meu corpo. O sangue continuava
intacto, com sua superfície tão escura como óleo tingido de carmesim.
“Você ouviu isso?”
Thomas inspirou fundo, sua atenção dedicada a uma análise metódica da sala e da câmara
atrás de nós. “Diga-me novamente por que não estamos fazendo um uso mais sábio desse
tempo. Poderíamos estar enrolados um no outro em vez de...” ele fez um movimento
apontando para a nossa frente, “tudo isso.”
“Precisamos nos apressar, Cresswell. Estou com uma sensação horrível.”
Sem dizer mais uma palavra sequer, Thomas ficou de frente para a árvore e esticou a mão,
colocando seu peso em uma caixa torácica enquanto escalava lentamente os ossos cor de
marfim. Ele colocou seu pé esquerdo sobre uma outra costela, testando-a levemente antes de
transferir todo o seu peso.
Ele repetiu o movimento mais duas vezes, mal conseguindo avançar pouco mais de um
metro do chão, quando um som horrível de uma rachadura lacerou o ar, ecoando como se um
chicote houvesse sido estalado nos nós dos dedos de alguém. Eu me lancei para a frente para
pegá-lo, mas ele pulou graciosamente para baixo sem precisar de minha ajuda.
“Parece que não colherei nenhum fruto maduro dessa árvore, afinal de contas.” Ele
limpou a mão em sua calça, a boca pressionada até formar uma linha de irritação. Algumas
gotas de sangue brotaram, como se fossem rubis, nas pontas de seus dedos antes que ele as
sugasse. “Leia os poemas mais uma vez para mim, por favor? Um deles tem que ser relevante
para essa situação. Não há muitos dentre os quais escolher.”
Puxei o velho livro desgastado do meu bolso e entreguei-o a ele. Eu não me atrevia a dizer
aquelas temerosas palavras em voz alta mais do que o necessário.
Enquanto Thomas lia os poemas para si mesmo, eu rapidamente soltei minha sobressaia.
O tempo estava escapando por nossos dedos. De uma forma ou de outra, teríamos que colher
qualquer conhecimento que conseguíssemos dessa temerosa árvore antes de voltarmos para a
academia. A essa altura, Moldoveanu e Dăneşti provavelmente já sabiam que havíamos
desaparecido. Se estávamos prestes a sermos expulsos, poderíamos muito bem voltar com
algo útil. Além do mais, eu não queria ser pega pelo assassino aqui.
Os botões do corpete do meu vestido soltaram-se com facilidade. O suave retinido atingiu
o chão ao mesmo tempo em que o meu coração se rebelava dentro de mim. Graças aos céus
eu havia trocado de roupa e colocado um vestido menos complicado no início da noite. Eu
não precisava lutar com anquinhas nem espartilho. Antes que eu pudesse mudar de ideia ou
encontrar um motivo para me sentir envergonhada, tirei minha anágua, sentindo-me exposta
em minha camisola e roupas de baixo, embora elas cobrissem até a área abaixo dos meus
joelhos e tivessem vários centímetros de rendas. Elas não eram muito diferentes da minha
calça, foi o que considerei com cautela. Embora minha calça fosse menos... cheia de firulas e
delicada.
Thomas deixou cair o Poezii Despre Moarte ao mesmo tempo em que seu próprio queixo
caía, foi o que me pareceu.
“Não diga nenhuma palavra, Cresswell.” Apontei para cima, para o topo da árvore de
ossos. “Eu sou mais leve do que você e devo conseguir escalar a árvore. Eu acho que há
alguma coisa naquela caveira ali em cima. Está vendo? Parece um pedaço de pergaminho.”
Thomas manteve a atenção fixa no meu rosto, enquanto o dele estava ficando mais
vermelho a cada vez que ele baixava o olhar para o meu queixo. Eu meio que queria revirar os
olhos. Não havia nenhuma parte minha exposta além do escândalo dos meus braços e uns
poucos centímetros de pernas não cobertas por roupas de baixo ou meia-calça. Eu tinha
camisolas de dormir que eram mais decotadas.
“Segure-me se eu cair, certo?”
Um sorriso curvou os lábios dele de uma maneira muito encantadora. “Eu já estou
caidinho por você, isso sim, Wadsworth.”
Flerte diabólico. Voltei a me concentrar na árvore e analisei a rota que eu tomaria. Sem
me demorar pensando no que eu estava prestes a tocar, icei a mim mesma, colocando uma
mão depois da outra, pensando apenas na tarefa. O corte na minha panturrilha esticava-se de
um jeito desconfortável, e a quentura do sangue fresco escorria pela minha perna, mas eu
ignorava o desconforto em prol de subir rapidamente.
Eu me recusava a olhar para baixo. A cada galho que eu escalava, chegava mais perto do
pergaminho. Eu estava pendurada, suspensa no ar, indo de um lado para o outro, como se
fosse um pêndulo vivo.
“Você consegue, Wadsworth!” Meus dedos tremiam com o esforço de manter firme o meu
aperto. “E se você não conseguir... Eu a seguro. Eu acho.”
“Isso não é animador, Cresswell!”
Usando o impulso do meu corpo a meu favor, fui até uma caixa torácica que parecia firme
e forte e mudei meu peso de lugar. Meus músculos tremiam com o surto de adrenalina e com
o orgulho. Eu tinha conseguido! Dominei minhas emoções e... o osso que estava nas pontas
dos meus dedos rangeu como um aviso. Celebrar as conquistas podia esperar. Eu me movia
de forma contínua, mas com cuidado, subindo com uma precisão lenta.
Testando e avançando. Testando e avançando.
Uma vez que eu estava lá em cima, parei um pouco para recuperar o fôlego e olhei para
baixo, para Thomas, arrependendo-me imediatamente de fazer isso. Ele parecia muito menor
deste ponto de vista. Eu estava a pelo menos uns seis metros acima do chão, e a queda não
seria agradável.
Não querendo visualizar todas as maneiras vívidas como eu mesma poderia me tornar
parte da obra de arte de esqueletos, avancei para cima pelos últimos ossos e alcancei o
pergaminho. Removi-o da caveira em que estivera preso. Alguém havia usado uma adaga —
cujo punho tinha ouro e esmeraldas incrustadas — para perfurar e prender o pergaminho na
órbita do olho do morto.
“Aqui diz ‘XXIII”’, eu falei em um sussurro bem alto, tomando cuidado para não girar no
ar e perder o equilíbrio.
A última coisa que eu queria era empalar a mim mesma enquanto caçava o assassino
conhecido por usar o mesmo método mortal.
Thomas encontrou o poema correto e o leu em voz alta. Eu me encolhi diante da força e
da potência de sua voz neste espaço mórbido.
XXII
Branco, vermelho, verde e maldoso
O que assombra essa floresta permanece duvidoso
Dragões, ao alto, rondam o céu e as frestas
E obstruem a passagem de almas funestas
Coma esta carne e beba este sangue
Deixe na banheira o restante
Branco como marfim, brilhante como a sorte
Siga este caminho e encontrará a morte
nfiei a segunda pista dentro das minhas roupas de baixo e fui descendo o mais
rápido quanto me atrevia a fazê-lo. Eu não queria gritar por medo de chamar ainda
mais atenção para nós mesmos.
O pavor fez minhas mãos tremerem quando eu as estiquei para alcançar o fêmur e não
consegui. Concentrei-me nas minhas respirações. Eu lidaria com isso como se fosse um corpo
a ser estudado: precisão era a chave. Fui até o próximo osso, meus dedos deslizando por sua
superfície lisa. Se eu não me recompusesse e voltasse lá para baixo, para junto de Thomas...
Eu não queria nem pensar no que poderia acontecer. O príncipe Nicolae estava próximo; eu
sentia sua presença ao passo que cada célula do meu ser queria que eu fugisse.
Precisávamos deixar a cripta de uma vez ou então passaríamos de caçadores a caçados.
Quando alcancei a metade da árvore macabra, avistei uma forma estranha no lado mais
afastado do portão de ossos. A princípio, achei que fosse algum animal peculiar que vivesse
em cavernas.
Então ele se levantou, tropeçando um pouco para a frente.
“Thomas...”
Fiquei sem fôlego. A pilha havia se erguido dos ossos, revelando uma silhueta usando
vestes, que não era nem um corpo reanimado nem um strigoi. Eu apostava que ele era
humano; não havia absolutamente nada de fantástico em relação a ele além de seu gosto por
teatralidades.
Um manto cobria sua cabeça, puxado por cima de suas feições como se fosse um capuz, e
uma grande cruz pendia em volta de seu pescoço. O manto lembrava vagamente aqueles
usados pelos homens que haviam desaparecido no bosque com o cadáver noites atrás. A cruz
era maior do que dois punhos cerrados e era feita de ouro. Muito ornamentada e medieval,
parecia que ela mesma daria uma boa arma.
“Thomas... Corra!”
Thomas inclinou a cabeça para o lado, sem estar ciente da nova ameaça. “Não consigo
ouvi-la, Wadsworth.”
Agarrando-me à árvore e incapaz de apontar, observei enquanto a figura se aproximava
aos tropeços. Ele parecia machucado, mas poderia estar fingindo para nos levar a ter uma
falsa sensação de segurança. “Atrás de você!”, eu gritei, mas era tarde demais.
A silhueta caiu para cima do portão, batendo nele e fechando-o com tudo enquanto
cambaleava para trás.
A um quarto do meu destino, a costela em que eu vinha me segurando partiu-se, e eu caí
como uma árvore sendo abatida nesta floresta de cadáveres. Movendo-se mais rápido do que
eu conseguia piscar, Thomas mergulhou no meu caminho, amortecendo minha queda. Não
foi um resgate glamoroso, mas o esforço dele foi corajoso.
Ele sibilou enquanto batia no chão, e depois soltou um outro rosnado quando minha testa
bateu na nuca dele. Eu o apressei, girando onde estava, procurando pela silhueta que viera
atrás de nós, mas não vi nada. Tínhamos poucos instantes para sair correndo. Thomas virou-
se, e o sangue esguichou de seu nariz.
“Onde estão os seus curativos?”
Ele apertou o nariz. “Eu o perdi na câmara de água.”
Rasguei um pedaço da minha fina camisola e o ofereci a meu herói, que sangrava. Talvez
ele conseguisse usá-lo para estancar o fluxo de sangue, ou talvez ele o usasse para estrangular
nosso atacante enquanto eu o distraía.
“Anda logo, Cresswell. Temos que nos mexer...”
Do nada, a silhueta reapareceu, caindo em nossa direção de trás da Árvore da Morte. A
promessa de violência se fazia claramente visível em sua postura.
“Cai. Fora”, disse ele entredentes, e depois segurou com força seu torso. Ele estava com a
respiração dificultada, e havia tensão na voz de sotaque carregado. “Anda logo.”
O medo libertou minha lógica. Eu me inclinei para a frente, apertando os olhos para ver o
rosto de quem eu sabia ser o dono daquela voz.
“Príncipe Nicolae? Você está... Você está...? Quem fez isso com você?”
O príncipe balançou a cabeça e o capuz caiu para trás de seu rosto. Ele estava cheio de
manchas escuras, e suas bochechas pareciam cadavéricas.
“Se você não andar logo... ela vai...”
Ele caiu no chão, o peito arfando com o esforço. O príncipe não estava fingindo estar
ferido, ele estava à beira da morte. Prostrei-me de joelhos, erguendo a cabeça dele para o meu
colo. Seus olhos estavam vítreos, sem foco. Eu teria apostado qualquer coisa que alguém
havia administrado arsênico a ele. Tínhamos que tirá-lo desses túneis e levá-lo a um médico
imediatamente.
“Thomas... erga-o pelo...”
Então, como se um pesadelo tivesse recebido permissão para nascer neste mundo, uma
silhueta ergueu-se da banheira cheia de sangue. Pisquei, sem entender o absurdo que se
desenrolava diante de nós. O sangue, de tão escuro, era quase preto, e revestia cada
centímetro de sua face e de seu corpo. Dos cabelos caía o líquido carmesim de volta na
banheira, e os dedos esguios estavam cobertos desse mesmo sangue. Thomas estirou a mão,
como se pudesse impedir que Nicolae e eu fôssemos vistos por esse monstro.
Seus olhos abriram-se totalmente, e os brancos faziam um intenso contraste com o
vermelho que os cercava. Minha mente foi tomada pela inércia. Eu não sabia dizer quem
estava ali, mas muito certamente era uma mulher. Estivéramos certos, no fim das contas. Mas
seria Ileana? Ou, quem sabe... Daciana?
O pesadelo banhado em sangue pôs uma das pernas para fora da banheira com um chute,
fazendo uma grande exibição ao sair dela. O sangue espalhou-se pelo chão e pelos ossos que
estavam ali perto.
Quem quer que fosse, ela estava se movendo em nossa direção, o vestido de tecido fino
arrastando uma trilha de sangue atrás de si, como uma noiva maldita no dia de seu
casamento. Quando ela se abaixou perto de uma pilha de ossos, considerei sair correndo. Eu
ansiava agarrar Thomas, fugir dessa cripta e em momento algum olhar para trás. Mas não
havia nenhuma saída e não poderíamos deixar o príncipe. O pesadelo feito realidade estava
em pé e apontava um pequeno revólver para nós.
Ela veio para a frente, a condessa de sangue, com um sorriso hediondo expondo a
brancura de seus dentes.
“Extraordinar! Estou tão feliz por vocês dois terem conseguido. Fiquei preocupada que não
fossem chegar a tempo. Ou que fossem trazer meu tio e aquele guarda irritante.”
Encarei a moça que estava diante de nós, piscando para me livrar de minha descrença.
Não podia ser, e ainda assim... A voz dela era inconfundível, o sotaque húngaro, levemente
diferente do romeno.
“Anastasia? Como... Isso não pode ser real”, falei, incapaz de aceitar essa verdade. “Você
morreu. Nós a vimos naquela sala... Aqueles morcegos.” Balancei a cabeça. “Percy
inspecionou seu corpo. Nós fizemos uma autópsia em você!”
“Você tem certeza disso? Eu esperava que você desconfiasse das coisas, prietena mea”
Anastasia sorriu novamente, os dentes brilhando com tanta satisfação em meio a todo aquele
sangue. “Quando você mencionou a veneziana no vilarejo, eu quase desmaiei. Tive que voltar
correndo e montar a sala antes que investigássemos naquela noite. Nervii mei! Meus nervos
estavam em frangalhos.”
Eu não conseguia entender como isso podia ser verdade. Eu forcei minha mente a ir além
do pânico que ameaçava me prostrar de joelhos. Precisávamos manter Anastasia falando.
Talvez pudesse surgir um plano para sair dessa.
“Por que você me permitiu ficar viva?”
“Eu considerei matá-la naquela mesma noite, mas eu achei que ele”, assentiu na direção
de Thomas, “poderia ir embora antes que eu estivesse preparada para atacar. Ora, minha
amiga. Eu sei que você é mais esperta do que aqueles rapazes. Diga-me como foi que fiz isso.
Uh, uh, uh!” Ela acenou com a arma para Thomas. “Nem uma palavra, bonitão. É falta de
educação interromper uma dama.”
Eu queria vomitar, mas forcei minha mente a agir. Anastasia desejava ser recompensada
pelo brilhantismo de seu jogo. Essa necessidade de reconhecimento poderia muito bem ser
sua ruína. Engoli em seco, ignorando o revólver que agora estava apontado para o meu peito.
Pequenas estranhezas agora se encaixavam.
“A moça desaparecida.” Fechei os olhos. É claro. Tudo isso fazia sentido. Era brilhante da
forma mais horrível. “Você usou o corpo dela para se passar pelo seu. Plantou-a nos túneis
para que coincidisse com o seu desaparecimento. Você sabia que o rosto dela estaria
desfigurado demais para que fosse identificado. Os cabelos e as medidas do corpo dela eram
bastante similares aos seus. As feições também. Eu tinha até mesmo pensado que ela se
parecia com você quando a vi naquele desenho. A semelhança era suficientemente
impressionante para enganar a classe e nossos professores.” Fiz uma pausa conforme o pleno
horror se assentava. “Até mesmo seu tio acreditou que fosse você... Um dos melhores
acadêmicos forenses do mundo.”
“Excelente.” Anastasia abriu um grande sorriso, com os dentes agora sujos de vermelho.
Era terrível. Feral. A sagacidade presente em seus olhos fazia com que as partes mais
profundas de meu ser estremecessem. “Nossos corações são coisas curiosas. Tão sentimentais
e passíveis de ser transviadas. Puxe as cordas certas, ou rompa-as, e puff! O amor estrangula a
inteligência, e isso acontece até mesmo com os melhores de nós.”
Eu não queria falar das questões do coração com uma mulher que estava banhada no
sangue de inocentes. Notei Thomas se mexendo bem levemente ao meu lado e tentei uma
outra distração.
“Como foi que você removeu tão rapidamente o sangue de Wilhelm?”
“Com um instrumento de necropsia roubado. Então eu joguei o corpo dele pela janela.”
Ela deu um passo na direção de Thomas e parou, inspecionando-o como um gato poderia
encarar um pássaro machucado saltitando pelos arredores. Por algum motivo, ela inclinou a
cabeça em uma demonstração de respeito. “Está impressionado, Alteță? Ou eu deveria dizer
Príncipe Drácula?”
Thomas parou de se mexer e abriu um largo e preguiçoso sorriso. Eu notei a tensão nos
músculos dele, e sabia que ele era tudo, menos um tranquilo e entediado membro da Casa de
Drácula.
“Muito encantador da sua parte, mas é totalmente desnecessário curvar-se em reverência
a mim. Embora eu realmente entenda sua premência de fazer isso. Eu sou um tanto
impressionante e majestoso. Príncipe Drácula, contudo, não é meu verdadeiro título.”
Eu não podia acreditar que essa ostentação toda dele estivesse dando certo. Anastasia
engoliu em seco, sua atenção acompanhando as mãos de Thomas enquanto elas arrumavam a
camisa arruinada. Ele quase me convenceu de que já usara vestes reais e era digno de que se
curvassem diante dele em reverência, em vez de estar ali, parado, trajando aquelas roupas
encharcadas e imundas com as quais ele havia sido arrastado Inferno adentro.
Anastasia mexeu seu revólver, mirando diretamente em Thomas. “Não zombe de sua
própria linhagem, sr. Cresswell. Coisas ruins acontecem com quem se volta contra os seus.
Está na hora de se apresentar e aceitar seu destino, Filho do Dragão. Está na hora de
juntarmos nossas linhagens e reivindicar esta terra toda.”
“Eu não entendo”, falei, olhando de um para o outro. “De quem você descende?”
Anastasia jogou os ombros para trás e manteve a cabeça erguida. O que era um feito
impressionante, considerando-se todo o sangue que a envolvia; ainda assim, ela tinha um ar
de realeza.
“Elizabeth Báthory de Ecsed.”
“É claro”, murmurou Thomas. “Também conhecida como Condessa Drácula.”
Por um instante, ninguém falou nada nem se moveu. Eu me lembrei do breve comentário
sobre a condessa nas aulas de Radu e lutei para conter um calafrio.
“Então você sabe que é o destino.” Os olhos de Anastasia brilhavam com orgulho. “Veja
bem, eu venho de uma casa igualmente conhecida por sua sede de sangue, Audrey Rose.
Minha ancestral banhava-se no sangue de inocentes. Ela regia com o medo.” Anastasia
apontou para Thomas. “Ele e eu? Nós fomos destinados a nos encontrar. Assim como fomos
destinados a produzir herdeiros mais temerosos do que seus ancestrais. Destin. Eu não fazia a
mínima ideia de que as estrelas haviam planejado tudo isso! Você é uma pequena
inconveniência. Da qual eu posso facilmente me livrar.”
Então Anastasia era uma herdeira deslocada em busca de seu direito de nascença. E ela
não se importava com a maneira com que reivindicaria esse direito, se por meio de força ou
amor. Se ela achava que podia caçar Thomas, coagi-lo a casar-se com ela e me matar no
processo, ela não fazia a mínima ideia de quem eu era.
Fechei as mãos em punhos, mais determinada do que nunca a fazer com que ela
continuasse falando enquanto eu planejava nossa fuga. “Como foi que você matou o homem
no trem... E por quê?”
Minha antiga amiga estreitou os olhos para mim. Eu rezava em silêncio para que a sua
necessidade de se gabar fosse tentadora o bastante para que ela respondesse às minhas
perguntas sem enxergar a minha verdadeira motivação.
“A Ordem do Dragão vive. Eu queria limpar seus escalões. Hoje em dia, eles são, em sua
maior parte, compostos por aquela inconsequente linhagem dos Dăneşti.”
Ela apontou o revólver na direção em que o príncipe Nicolae estava deitado, mole como
uma boneca de pano, com a pele descolorida do que eu presumia que fosse arsênico;
perfurações agora eram visíveis em seu pescoço. Parecia que ela havia usado o sangue como
fazia sua ancestral, banhando-se nele, deixando Nicolae apenas com o suficiente para que
continuasse vivo. Se é que ele ainda estivesse vivo. Seu peito já não parecia estar subindo e
descendo, como se estivesse respirando.
“O homem do trem era um membro do alto escalão. Dei a ele uma dose letal de arsênico e
depois o empalei enquanto ele tentava respirar, ofegante.” Anastasia falava de um jeito como
se estivesse se lembrando de um vestido feito de belas sedas que ela havia mandado fazer. “Eu
não fazia a mínima ideia de que ele estava do lado de fora de sua cabine. Uma feliz
coincidência. Então eu voltei correndo para o meu quarto. Ninguém notou a moça de cabelos
escuros. Perucas são uma distracție excelentă. No entanto, fiquei preocupada que Wilhelm
pudesse, em algum momento, reconhecer-me. Precisei lidar com ele de imediato.”
Um lampejo de uma lembrança daquela manhã passou pela minha mente... Eu tinha visto
uma moça com cabelos escuros. Ela havia gritado, pedindo para que chamassem um médico.
Eu havia ficado tão consumida pelo caos que não tinha prestado atenção em seu rosto.
Thomas cruzou os braços sobre o peito, assumindo mais uma vez aquele seu tom
entediado. “Onde está a minha irmã?”
“Como eu poderia saber? Eu não sou a guardiã de ninguém.” Anastasia fez um movimento
com o queixo na minha direção e apontou para uma arma presa ao cinto de Nicolae. “Dê a
faca ao herdeiro de Drácula.”
Thomas arregalou os olhos quando olhou de relance na minha direção. Eu quase chorei
de alívio. No fervor para unir suas linhagens, ela não havia se dado conta de que havia
acabado de nos entregar uma maneira de derrotá-la. As palmas das minhas mãos ficaram
escorregadias com a agitação dos meus nervos.
Pressionei a pequena adaga incrustada de joias na mão de Thomas e prendi a respiração,
preocupada com a possibilidade de que quaisquer mostras de animação pudessem alertar
Anastasia quanto a seu grave erro. Ela abriu um grande sorriso, com a atenção grudada na
lâmina que agora estava na mão firme de Thomas.
“Acabe com ele”, ela disse a Thomas. “Faça isso, e rápido.”
“Por que o veneno?”, perguntei, tentando ganhar tempo. Tinha que haver uma forma de
sair dessa que não envolvesse o assassinato de Nicolae.
Anastasia apontou o revólver para a minha garganta. Parecia que ela havia considerado o
motim, no fim das contas. Ela foi andando até Nicolae e cutucou-o com o pé, a arma ainda
apontada para mim.
“Arsênico é uma maravilha.” Ela inclinou-se, afastando mechas de cabelos pretos da face
do príncipe. “É insípido, incolor e pode ser colocado furtivamente em todos os tipos de
comidas e bebidas. Pelo que parece, um jovem príncipe nunca recusa vinho.”
“Se você está tentando instilar o mesmo medo que Vlad Drácula causava em seus
oponentes”, disse Thomas, “saiba que envenenar Nicolae e os outros dificilmente me parece
assustador.”
Anastasia levou uma das mãos ao pescoço de Nicolae, verificando sua pulsação. “Mas não
é? Arsênico é usado para enfraquecer e incapacitar as vítimas, não para matar. Lutar com
rapazes teria se provado difícil, e os assassinatos, bagunçados demais.”
“Você queria que os aldeões acreditassem nas histórias sobre o renascimento de Drácula”,
falei, entendendo de imediato. “Você não podia simplesmente estaquear as pessoas e depois
dizer que o sangue delas tinha sido bebido por um strigoi.”
“As lendas têm o propósito de inspirar medo.” Anastasia levantou-se. “Elas devem ser
épicas, maiores do que a vida que levamos, de modo a manter seu poder de sedução por
gerações. Não entre no bosque depois que o sol se puser. Nós nunca pensamos em uma bela
princesa à espreita na floresta, não é? Não. Nós imaginamos demônios sedentos por sangue.
Vampiros. Isso nos lembra de que também somos presas. Ficamos aterrorizados e tremendo
com a possibilidade de sermos caçados.”
“Mas eu ainda não entendo uma coisa”, falei, passando o olhar dos contornos amolecidos
de Nicolae para o corpo revestido de sangue de Anastasia. “Por que assassinar a camareira?”
“Aquele assassinato, em particular, foi uma homenagem que prestei à minha ancestral.
Vamos lá. Thomas”, ela voltou a arma novamente para minha testa, “ponha fim à vida do
príncipe Nicolae agora. Eu cacei o herdeiro de Drácula. Nós podemos começar do zero. De
novo. Nós nos ergueremos como o Príncipe e a Condessa Drácula. Reivindicaremos tanto
este castelo como sua vida.”
A tensão envolveu a sala, um fósforo pronto para atear fogo nessa batalha. Thomas recuou
um passo, instável, com sua mira passando de Nicolae para a arma que agora estava apontada
para a minha cabeça. Eu não queria que ele fizesse algo de que ele passaria a vida toda se
arrependendo. Thomas Cresswell não era Vlad Drácula. A vida dele não tinha sido construída
em cima da criação da morte, mas sim da resolução desta. Ele era uma luz entalhando seu
caminho em meio à escuridão, como uma foice. Mas eu sabia que ele haveria de destruir a si
mesmo para me salvar e não pensaria duas vezes antes de fazer isso.
“Por que envolver Thomas?”, falei sem pensar. “Se você é a Condessa Drácula, por que
fazer com que ele mate?”
Anastasia me encarou como se eu fosse a pessoa que estava falando absurdos ali. “Thomas
é o último parente sanguíneo do sexo masculino do Senhor Empalador. É simbólico fazer
com que ele dê fim à vida desse falso príncipe, que reivindique sua linhagem e traga ruína
para a academia. Ninguém vai querer frequentar uma academia onde os alunos morreram de
formas hediondas sob circunstâncias misteriosas. Assim que a academia não mais existir,
poderemos tomá-la como nosso lar de direito.”
“E quanto aos atuais rei e rainha?”
“Você não estava prestando atenção?”, disse Anastasia em um tom exigente. “O arsênico
colocará um fim nas vidas deles também. Eu passarei por todas as casas nobres até que a
reivindicação de Thomas seja a única restante. Também serei bem-sucedida em destruir a
Ordem dessa forma.”
Com essa proclamação, duas silhuetas cobertas com seus mantos deram um passo à
frente. Elas estavam escondidas atrás das pilhas de ossos que nos cercavam. Eu achava que
tinha perdido a capacidade de ser surpreendida, mas ofeguei quando a silhueta mais alta
jogou seu capuz para trás e tirou o manto, deixando suas armas à mostra.
Diante de nós estava Daciana, vestindo uma calça e uma túnica, usando a insígnia do
dragão acompanhada de mais facas do que o número de escalpelos que meu tio tinha em seu
laboratório. Thomas voltou a ela um olhar incrédulo, ainda que aliviado, e manteve a adaga
firme em sua mão.
“Não haverá mais nenhuma matança aqui esta noite, Contesă”, disse ela com uma
reverência zombeteira, e uma lâmina agora dirigida a Anastasia. “Ileana, desarme-a.”
A segunda silhueta removeu o capuz, e minha respiração ficou imobilizada. Minha
atenção voltou-se para Thomas, sem saber ao certo se minha mente estava pregando peças
em mim. Talvez eu estivesse tendo um pesadelo elaborado e acordaria em breve, suada e
enrolada em meus lençóis. A irmã dele e Ileana eram... Tanto eu quanto Thomas nos demos
conta disso ao mesmo tempo.
Ele olhou nos meus olhos e balançou a cabeça, com uma expressão de pleno deslumbre
gravada em suas feições. Havia algo estranhamente gratificante em vê-lo, pelo menos uma
vez na vida, deixar de notar uma peça do quebra-cabeça.
Anastasia olhou de Thomas para Daciana e Ileana, a confusão cedendo lugar à raiva. Ela
girou a arma na direção do peito de Nicolae.
“Como você se atreve?", ela gritou, encarando Ileana. "Eu pensei em tudo, em tudo! Você...
uma miserável criada... não tem nenhum direito!”
“Abaixe a arma, Anastasia”, disse Ileana, com o tom de alguém acostumado a dar ordens
que eram seguidas. “Você tem două segundos antes de...”
“Eu não tenho necessidade alguma de obedecer a você!”
Anastasia lançou-se para a frente, seus olhos em chamas enquanto puxava o gatilho da
arma para executar Nicolae. Mas Ileana foi mais rápida. Sua espada passou diretamente pelo
corpo de Anastasia. Encarei a cena, horrorizada, enquanto ela deslizava a lâmina para baixo,
lambendo o sangue vermelho-intenso de seus lábios, e riu.
“Ucis... de... o servitoare”, Anastasia ofegou, agora com sangue novo escorrendo de sua boca
para mesclar-se à poça vermelha no chão. “Uma Báthory assassinada por uma criada. Quão
apropriado.”
Ela riu novamente, o sangue borbulhando em sua garganta. Ninguém tentou ajudá-la
enquanto ela jazia ali, morrendo, asfixiando-se em sua própria força vital. Era tarde demais.
Como o homem que ela havia assassinado no trem, Wilhelm Aldea, a moça do vilarejo e seu
marido, e a camareira Mariana, não havia como trazê-la de volta dos Domínios da Morte
agora.
Essa era uma visão que eu sabia que haveria de me assombrar, junto com os assassinatos
do Estripador, pelo resto da minha vida.
44. SOCIETAS DRACONISTARUM
Criptă
Cripta, Castelo de Bran
22 de dezembro de 1888
lhei fixamente para o sangue que escorria devagar da espada de Ileana, com as
palavras enchendo minha garganta e praticamente me sufocando. Era somente por
esse motivo que eu não tinha vomitado em cima do corpo empalado de Anastasia.
Minha amiga. Eu observei enquanto a vida se esvaía de seus olhos e fiquei horrorizada com a
serenidade que recaiu sobre ela, embora seu corpo inteiro estivesse coberto de preto e
vermelho, tanto do sangue seco quanto do sangue fresco.
Thomas esfregou suas mãos ao longo dos meus braços, mas isso não foi o bastante para
eliminar o calafrio das profundezas da minha alma. Ileana, a moça que eu conhecia como
minha camareira, fazia parte de uma sociedade secreta de guerreiros e havia cortado uma
mulher como se estivesse espetando um pedaço duro de queijo. Bem diante dos meus olhos.
Embora Anastasia dificilmente fosse inocente nessas questões. Eu sabia que Ileana não tivera
opção e, ainda assim... Eu me afundei no chão junto a Thomas, cansada demais para me
preocupar com o que qualquer um poderia pensar da minha falta de decoro.
“Está tudo bem com você, Audrey Rose?” Ileana aceitou um pedaço de pano de Daciana e
limpou sua lâmina, fazendo com que o sangue se espalhasse pela prata antes de desaparecer
ao passar o tecido uma segunda vez.
“É claro”, falei automaticamente.
Tudo bem era um termo bem relativo. Meu coração estava batendo, meu corpo
funcionando, e eu estava viva. Na superfície, muito certamente estava tudo bem comigo. Era
a minha mente que queria se enroscar e hibernar do mundo e de toda a dureza que havia
nele. Eu estava cansada de destruição.
Thomas afastou os olhos do corpo de Anastasia e voltou-os na direção de sua irmã. Eu
podia ver sua mente rodopiando de um fato para o próximo; era uma forma de ele lidar com a
devastação. Ele precisava juntar as peças do quebra-cabeça para encontrar seu ponto de calma
em uma tempestade furiosa.
“Como?”, ele perguntou.
Daciana sabia precisamente o que ele queria saber. “Quando fiz dezoito anos, recebi uma
herança parcial de nossa mãe. Algumas de suas posses — joias, ornamentos, arte — e um
maço de cartas. A princípio, as cartas eram apenas pedaços dela mesma... Da história de como
ela conheceu nosso pai. De como ela nos amava e nos guardava em seu coração. Cartões de
aniversário que ela havia escrito com antecedência para mim. Um bilhete para quando eu me
casasse.” Ileana limpou uma lágrima da bochecha de Daciana. “Por um bom tempo, eu não
consegui me forçar a lê-las, então, em uma tarde de neve, ficamos presos dentro de casa. Eu
peguei as cartas novamente e li uma delas. E então fui lendo até o fim.”
“E...?”, quis saber Thomas. “Por favor, não fique muito tempo fazendo esse suspense.”
“Nossa mãe me contou histórias de nobres que ainda acreditavam nos métodos da
Ordem. Que ansiavam para que a corrupção fosse erradicada do sistema de governo. Eles a
abordaram por causa de nossos laços de família. Não para que ela mesma se tornasse um
membro da Ordem, mas para que oferecesse um espaço seguro para que eles se
encontrassem. Você se lembra da pintura de dragão nos aposentos dela?” Thomas assentiu,
uma expressão mais desgostosa no rosto do que qualquer uma que eu já tivesse visto antes.
Eu me lembrei do desenho que ele havia feito no trem, e da história que ele tinha partilhado
comigo sobre sua lembrança em torno daquele desenho.
"Foi uma honra concedida à sua linhagem familiar. E ainda é”, disse Ileana baixinho.
“A Ordem gostaria que você considerasse oferecer seus serviços a eles”, disse Daciana.
“Precisamos de pessoas honestas, que não tenham medo de arrancar a corrupção pelas
raízes.”
Seguiu-se um longo momento de silêncio enquanto Thomas considerava o que a irmã
tinha acabado de dizer. Ele juntou as palavras. “A Ordem é, em essência, simplesmente um
grupo de justiceiros.” Ele analisou sua irmã e Ileana. “Eles não são a lei, mas acreditam que
possam defendê-la melhor do que os governantes.”
“Não!”, Daciana arregalou os olhos. “Nós não acreditamos nisso, de forma alguma! A
Ordem simplesmente visa manter o equilíbrio. Para, literalmente, manter a ordem. O poder
com frequência corrompe. É um homem — ou mulher — sábio, que aceita seu papel como
parte de um todo. Nós somos meramente uma linha de defesa. A família real pediu nossa
ajuda.”
Enquanto Thomas dardejava sua irmã com mais perguntas, Ileana inspecionou-me com
um pouco de atenção demais, o que me deixou um pouco desconfortável.
“Todos nós passamos por uma longa noite, então serei breve”, ela interrompeu. “Eu sou
um membro do alto escalão da Ordo Draconum. Nossa missão sempre foi a de manter a
ordem e a paz. Antigamente, era para a família Drácula; agora, é para a nobreza e cidadãos
comuns também. Nossa lealdade é para com nosso país. O que inclui todo o nosso povo.”
“Ah. Entendi.” Thomas estreitou os olhos. “Então Daciana sempre teve ciência do título
que você tem?”
Ileana assentiu. “Ela guardou meu segredo e eu espero que vocês dois façam o mesmo.
Poucos sabem da minha associação com a Ordem. Eu sou a primeira mulher a ser convidada
a fazer parte de seus escalões. Daciana é a segunda.”
“Como você sabia como se infiltrar no castelo?”, perguntei, ignorando a poça de sangue
aos meus pés. Uma parte minha desejava um saco de serragem para espalhar pelo chão.
“Presumo que você tenha sido colocada aqui de propósito.”
“Sim. Devido à chegada de membros da Casa dos Basarab, fui incumbida da tarefa de me
infiltrar entre os empregados. Depois do primeiro assassinato, em Braşov, a Ordem sentiu
que era necessário ter alguém próximo ao vilarejo. Eu também estaria em uma boa posição
para ouvir os rumores que estivessem circulando pela academia. Camareiras e criadas
fofocam. Parecia um lugar excelente para coletar informações.”
Considerei o que ela falou, lembrando-me da aula de Radu sobre a Ordem e quem fazia
parte de seus escalões.
“Como foi que o diretor não reconheceu você como sendo da nobreza?”
Ileana abriu um sorriso triste. “Moldoveanu, como a maioria, presta pouca atenção
naqueles que estão a seu serviço. Sem minhas roupas finas? Eu me torno qualquer uma.” Ela
ergueu um dos ombros. “Pode ser que ele seja mais observador por causa de seu conjunto
particular de habilidades, mas ele não é infalível.”
“Por que vocês demoraram tanto para parar Anastasia?” eu quis saber. “Por que esperar até
agora?”
“Nós não sabíamos que era ela.” Daciana moveu-se para a frente, tocando com gentileza
no braço de Ileana. “Vínhamos fazendo uma varredura pelos túneis no decorrer da última
semana, mais ou menos, na esperança de encontrar informações. Anastasia era esperta. Ela se
movia muito pelos arredores. Nós nunca conseguíamos localizá-la.”
“Eu tinha achado a maioria das perguntas dela estranha. Pelo menos, eram dignas de
serem investigadas”, acrescentou Ileana, “mas quando ela foi encontrada ‘morta’, não
sabíamos o que pensar disso. Nicolae parecia suspeito novamente, mas ele nunca havia
estado presente nem fora encontrado na mesma região que qualquer uma das vítimas. A
Ordem não é conhecida por resolver crimes. Nós fizemos o melhor que pudemos nos
armando com conhecimento. Infelizmente, isso não foi o bastante.”
O príncipe Nicolae rolou para o lado, soltando espuma pela boca. Eu me senti
repreensível por não pensar nele mais cedo e tirá-lo dessa câmara. Thomas agachou-se ao
lado dele, segurando e erguendo sua cabeça. Ele disparou um olhar cheio de preocupação
para Daciana. “Ele precisa de um médico. Precisamos levá-lo de volta para o castelo. Pode ser
que já seja tarde demais.”
O vento soprava pelas fissuras na encosta da montanha. Estremeci quando o ar gélido
serpeou ao meu redor e atravessou minhas roupas molhadas. Eu havia me esquecido de que
estava só com minhas roupas de baixo.
Sobreviver aos túneis parecia ser algo que havia acontecido com uma outra moça, em um
outro tempo. Sem perder nenhum detalhe, Thomas apontou para sua irmã. “Talvez você
possa oferecer seu manto a Audrey Rose.”
Daciana envolveu meus ombros com seu manto e me apertou com força.
“Obrigada.”
Inspirei a calidez do manto e exalei a exaustão que se assentava à minha volta. Ver alguém
morrer era algo que eu desejava evitar, embora eu soubesse que era inútil acreditar que essa
seria a última vez que eu me depararia com mortes violentas.
“Venha”, disse Daciana. “Vamos levá-los para perto de uma lareira. Vocês dois parecem
prestes a entrar em colapso.”
Estou certo de que isso não será nenhuma surpresa, mas é meu
Estou certo de que isso não será nenhuma surpresa, mas é meu
dever lhe informar que você não conseguiu um lugar na academia
neste período. Depois de muito pensar, determinei que os alunos
mais merecedores durante esse curso foram o sr. Noah Hale e o sr.
Erik Petrov. Eles exibiram comportamentos exemplares, assim
como as habilidades forenses necessárias. Talvez, da próxima vez,
você seguirá todas as instruções. Parte da educação de uma
pessoa inclui ouvir aqueles de escalão e experiência superiores, algo
em que você falhou miseravelmente em mais de uma ocasião.
Contudo, em nome da academia, eu realmente lhe ofereço a
minha mais sincera gratidão por sua ajuda. É possível que você
venha a se tornar proficiente em ciências forenses com mais prática
e polimentos, embora isso ainda precise ser atestado.
Realmente lhe desejo tudo de bom.
Atenciosamente,
Wadin Moldoveanu
Diretor, Institutului Național Criminalistică şi Medicină Legală
Academia de Medicina e Ciências Forenses
EPÍLOGO. UMA POSSIBILIDADE ELETRIZANTE
Residência dos Cel Rău-Cresswell
Bucareste, Romênia
26 de dezembro de 1888
Uma caixa longa e simples, amarrada com um cordão, foi entregue no meu quarto junto com
o recibo naquela tarde. Este era o melhor presente de Natal que eu já havia comprado para
mim mesma. Sem mais delongas, arranquei o cordão e abri a tampa da caixa.
Havia uma calça preta dobrada ali dentro, junto com uma blusa de seda. Minha atenção
recaiu para a parte mais preciosa do pacote: o cinto com fivelas douradas. Quando
voltássemos a Londres, eu seria uma força e tanto com a qual competir. Eu esperava que meu
pai fosse ser receptivo, embora talvez eu pegasse um pouco leve com ele a princípio. Forcei-
me a colocar essas preocupações de lado e descobri que mal podia esperar para experimentar
as roupas novas. Desnudei-me imediatamente.
Puxei a calça para cima e a prendi na minha cintura, maravilhada com a forma como
minha silhueta parecia ter sido mergulhada no mais fino nanquim, e depois colocada para
secar ao sol. Curvas gentis formavam um arco sobre os meus quadris e estreitavam-se nas
minhas pernas. Em seguida, vesti a blusa por cima da cabeça e fechei-a na frente com uma
série de amarras, antes de enfiá-la para dentro da calça.
A costureira havia feito uma camisa sedosa e que, ainda assim, também tinha estrutura o
suficiente para manter meus atributos no lugar. Era perfeita.
Sem as luvas, deslizei as mãos pela frente da camisa, alisando os vincos, enquanto eu me
virava de um lado para o outro diante do espelho. Minha silhueta se exibia de tal forma que,
quando retornássemos às aulas de meu tio, eu jamais seria confundida com um de meus
colegas de classe homens, mesmo que eu estivesse vestida como um deles. Porém, acima de
tudo, eu sentia vontade de marchar pelos arredores com a cabeça erguida. Havia uma
liberdade de movimento que eu raramente vivenciava com todas as minhas camadas de
roupas e amarras.
Com esforço, afastei-me de meu reflexo e tirei o cinto de couro da caixa. Coloquei uma
das pernas dentro dele e prendi suas fivelas na minha coxa. Deslizei meu escalpelo para o
lugar e sorri. Se alguma vez eu já tinha ficado ruborizada antes, esse era um novo nível de
indecência com o qual eu estava brincando. Eu precisaria usar o meu avental para evitar
sussurros e olhares. A partir de agora, eu parecia estar...
“Você está estonteante.”
Eu me virei, a mão indo até o frio metal do escalpelo embainhado na minha coxa. Permiti
que meus dedos roçassem a lâmina lisa antes de deixar a mão pender.
“Entrar sorrateiramente no dormitório de uma moça duas vezes no mesmo mês é rude até
mesmo para os seus padrões permissivos, Cresswell.”
“Até mesmo quando estou andando sorrateiramente pela minha própria casa, desta vez? E
mesmo quando eu trago um presente?”
Havia uma inclinação felina em seu sorriso enquanto ele colocava uma tela junto à porta e
entrava no quarto, dando a volta ao meu redor. Sem pedir desculpas, ele inspecionou cada
centímetro de meus trajes, e então parou perto o bastante de mim para que eu sentisse o
calor de seu corpo.
Sentindo-me tímida de repente, meneei na direção da parte de trás da tela. “Posso ver?”
“Por favor.” Thomas fez um movimento com o braço, indicando o quadro. “Satisfaça seu
desejo.”
Andei até a pintura e virei-a de frente, e fiquei sem fôlego ao vê-la. Uma única orquídea
brilhava como se tivesse sido encapsulada em gelo. Eu me curvei mais para perto do quadro,
dando-me conta de que não era bem isso que eu estava vendo. A orquídea era, na realidade,
um céu pontilhado de estrelas. Thomas havia pintado o universo inteiro dentro dos limites
da minha flor predileta. Uma recordação dele me oferecendo uma orquídea durante a
investigação do Estripador passou pela minha cabeça.
Apoiei a pintura na parede e voltei meu olhar para cima. “Como você soube?”
“Eu...” Thomas engoliu em seco, com a atenção fixa na pintura. “A verdade?”
“Por favor.”
“Você tem um vestido com orquídeas bordadas. Fitas do mais intenso tom de púrpura.
Você gosta da cor, mas não tanto quanto eu gosto de você.” Ele inspirou fundo. “Quanto às
estrelas? São o que prefiro. Mais do que as práticas médicas e as deduções. O universo é vasto.
É uma equação matemática que nem mesmo eu tenho esperanças de resolver. Pois não há
limites para as estrelas, o número delas é infinito. É precisamente esse o motivo pelo qual eu
meço o meu amor por você por meio delas. São tantas que não dá para contar.”
Devagar o bastante, a ponto de fazer com que meu coração ficasse acelerado, ele esticou a
mão e puxou um grampo de meus cabelos. Parte dos cachos negros caiu em cascata pelas
minhas costas, enquanto o dourado caía no chão.
“Estou completamente enfeitiçado, Wadsworth.”
Ele puxou mais um grampo, e então outro, soltando totalmente meus cabelos de suas
amarras. Havia algo de íntimo no fato de ele me ver com os cabelos soltos neste aposento
privado. Algo íntimo na confissão dele. Como se fosse uma linguagem secreta que apenas nós
dois soubéssemos falar.
“Você está insinuando que seus sentimentos são o resultado de alguma feitiçaria, então?”,
perguntei, provocando-o.
“O que eu quero dizer é que... eu não consigo fingir que não sou... Eu imagino que o que
eu esteja dizendo é que já se passaram alguns meses.” Thomas coçou a testa. “Eu esperava
tornar as coisas mais... oficiais. De algum jeito. Do jeito como você preferir, na verdade.”
“Oficiais de que jeito?”
Meu coração batia com força no interior do meu peito, procurando por uma fenda para
escapar dali. Eu mal conseguia acreditar que nós estávamos tendo essa conversa,
especialmente quando estávamos sozinhos. Embora eu também mal pudesse acreditar que
Thomas praticamente havia dito “Eu te amo”. Era o que eu precisava ouvir de novo. Apenas
uma vez, sem pressão nem hesitação.
“Você sabe de que jeito, Wadsworth. Eu me recuso a acreditar que você tenha
interpretado errado os meus afetos. Eu estou completamente apaixonado por você. E isso é
permanente.”
Ali estava. A admissão pela qual eu ansiava. Ele mordeu o lábio nervosamente, sem saber
ao certo, até mesmo com todos os seus poderes de dedução, se algum dia eu poderia amá-lo
como ele me amava. Eu queria lembrá-lo de nossa conversa sobre como não havia fórmula
para o amor, mas estava com a pulsação em disparada por um motivo completamente
diferente.
Eu estava pronta para aceitar a mão do sr. Thomas Cresswell em casamento. E isso me
aterrorizava e me deixava eletrizada ao mesmo tempo. Ele ficou observando enquanto eu me
empertigava e elevava o queixo. Se eu fosse me submeter aos meus próprios sentimentos, eu
precisava ter certeza de uma última coisa.
“Você vai pedir apenas a permissão de meu pai para me cortejar?” Eu precisava saber. “E
quanto aos meus sentimentos? Pode ser que eu goste do Nicolae. Você não me perguntou
diretamente.”
Thomas olhou nos meus olhos com firmeza. “Se isso for verdade, então me diga e eu
nunca mais falarei disso novamente. Eu nunca forçaria a minha presença para cima de você.”
Eu não pude deixar de pensar no inspetor de polícia que havia trabalhado no caso do
Estripador conosco. E em seus motivos ocultos. “É um pensamento adorável. Mas, até onde
eu sei, você já falou com o meu pai e uma data foi marcada. Algo similar já aconteceu antes.”
“Blackburn era um imbecil. Eu acredito que você sempre deva ter uma escolha nessa
questão. Eu não sonharia em excluir você de sua própria vida.”
“Meu pai provavelmente ficaria... Não sei ao certo. Ele pode não aprovar uma abordagem
assim tão moderna. Você pedindo a minha permissão antes da dele. Eu achei que você se
importasse com a opinião dele.”
Thomas ergueu a mão para o meu rosto, cuidadosamente traçando, com os dedos, linhas
de fogo em meu maxilar. “É verdade que eu quero a aprovação de seu pai, mas eu quero a sua
permissão. E a de mais ninguém. Isso não funcionará de nenhuma outra forma. Eu não posso
simplesmente tomá-la para mim.” Ele roçou seus lábios nos meus. Sutilmente, tão
suavemente que eu poderia ter imaginado que eles estavam ali. Meus olhos fecharam-se. Ele
podia me persuadir a construir um barco a vapor para ir até a lua quando me beijava. Nós
poderíamos orbitar as estrelas juntos. “Você é dona de si mesma para se permitir.”
Eu entrei no círculo dos braços dele e pousei a palma de uma das mãos em seu peito,
guiando-o na direção da poltrona estofada. Ele percebeu tarde demais que havia algo maior
do que um gato perseguindo-o; ele havia atraído a atenção de uma leoa. E agora ele era a
minha presa.
“Então eu escolho você, Cresswell.”
Eu me deleitei com o fato de que ele havia caído, aos tropeços, na poltrona, com os olhos
arregalados. Eu me aproximei e fiquei parada diante dele, cutuquei sua perna com meu
joelho, provocando-o.
“Não é cortês brincar com a comida, Wadsworth. Eu não...”
“Eu também amo você.”
Capturei os lábios dele com os meus, permitindo que seus braços me circundassem e me
puxassem ainda mais para perto dele. Ele abriu a boca, tornando nosso beijo mais profundo, e
eu senti os céus se abrirem dentro do universo do meu corpo. Eu não me importava com
Anastasia e seus crimes. Nem com nada que não fosse...
“Por mais que eu odeie separar vocês dois...” Daciana tossiu delicadamente da porta. “Nós
temos uma visita.” Ela olhou para o meu novo traje e abriu um grande sorriso. “Você está
fenomenal. Muito intimidante e ‘Portadora da Morte’.”
Thomas soltou um grunhido conforme eu me libertava de seus braços, e lançou à irmã um
olhar tão fulminante que teria deixado minha tia Amélia orgulhosa. “É a mim que os aldeões
haverão de chamar de Portador da Morte se você continuar a arruinar todos os nossos
momentos clandestinos, Daci. Vá entreter sua visita sozinha.”
Daciana mostrou a língua para ele. “Deixe de ser tão mal-humorado. Isso é indecoroso. Eu
adoraria entreter nosso convidado, mas tenho a sensação de que Audrey Rose poderia querer
dizer olá a ele.” Intrigada, alisei a frente de meus trajes perigosos. Meus cabelos estavam
soltos, mas a curiosidade me arrastou para fora de meus aposentos e me fez descer a escadaria
espiralada antes que eu pudesse arrumá-los. Detive-me ao pé da escada, quase fazendo com
que Thomas fosse parar no chão ao esbarrar em mim.
Um homem de cabelos loiros e um familiar óculos dourado andava de um lado para o
outro no vestíbulo, com as mãos nas laterais de seu corpo. Foi preciso todo o meu
autocontrole para não pular nos braços dele.
“Tio Jonathan? Que surpresa adorável! O que o traz aqui a Bucareste?” Sua atenção
voltou-se para mim na hora, e fiquei observando seus olhos verdes piscarem em resposta à
escolha de meus trajes. Eu tinha certeza de que o cinto de couro com o escalpelo em volta da
minha coxa poderia ter causado uma embolia, mas ele absorveu tudo sem problemas. Ele
nem ao menos pestanejou com o estado dos meus cabelos, o que era um milagre por si só.
Meu tio inspecionou o rapaz ao meu lado, e depois torceu o bigode. Eu me segurei ao
corrimão, sabendo pelo gesto dele que as notícias não eram boas.
Medos irracionais passaram em um lampejo diante de meus olhos. “Está tudo bem em
casa? Como está meu pai?”
“Ele está bem.” Meu tio assentiu como se para confirmar o fato. “Todavia, eu receio que
vocês dois possam se atrasar na volta para casa. Eu fui convocado para ir aos Estados Unidos
da América. Há um perturbador caso forense por lá, e eu preciso da ajuda dos meus dois
melhores aprendizes.” Ele puxou um relógio de bolso de sob seu manto de viagem. “Nosso
navio sairá de Liverpool no dia do ano-novo. Para conseguirmos estar lá a tempo, precisamos
partir hoje à noite.”
“Eu não sei ao certo se essa é uma ideia sábia. O que lorde Wadsworth diz sobre isso?”
Thomas se empertigou, a preocupação fazendo-o colocar o lábio entre os dentes.
“Eu imagino que meu pai não se importe, de um jeito ou de outro. Alguém se comunicou
com ele?”
Meu tio balançou levemente a cabeça. “Ele está viajando, Thomas. Você sabe como é
difícil receber correspondência, motivo pelo qual eu vim pessoalmente.”
Uma mecha de cabelos caiu sobre a testa de Thomas, e eu ansiei por esticar a mão e
colocá-la no lugar, afastando suas preocupações. Eu dei um apertãozinho gentil na mão dele
antes de dar um passo na direção de meu tio.
“Vamos lá, Cresswell. Eu tenho certeza de que tanto meu pai quanto o seu vão aprovar
isso. Além do mais”, falei, agora de um jeito mais brincalhão, “eu gosto da ideia de ter mais
uma aventura com você.”
Um lampejo de travessura iluminou a expressão dele. Eu sabia que ele estava se
lembrando exatamente daquilo que me dissera no fim do caso do Estripador.
“Eu sou um tanto irresistível, Wadsworth. Está mais do que na hora de você admitir isso.”
Ele estirou um dos braços, com uma pergunta em seu olhar contemplativo. “Vamos?”
Olhei de relance para o meu tio, notando o sorriso que se contorcia no rosto dele. Eu
sempre desejara cruzar os mares, e dizer não a outro caso, que envolvia uma viagem para o
exterior em um cruzeiro de luxo, me parecia uma tolice. Eu me concentrei no braço estirado
de Thomas, sabendo que ele estava me oferecendo muito mais do que seus melhores modos.
Ele estava me presenteando com todo o amor e todas as aventuras que o universo poderia
prover.
O sr. Thomas Cresswell, o último herdeiro do Príncipe Drácula, estava me oferecendo
tanto seu coração quanto sua mão.
Sem hesitar, aceitei o convite de Thomas e abri um grande sorriso.
“Aos Estados Unidos da América!”
LIBERDADES HISTÓRICAS E CRIATIVAS ADOTADAS PELA AUTORA
Tal como é a beleza da ficção, há algumas verdades históricas no coração desta história e
bastante imaginação, adicionada por motivos ornamentais e de aventura. Para minha enorme
decepção, o Expresso do Oriente não fazia uma parada em Bucareste até o começo do ano de
1889 (uns poucos meses depois que Thomas e Audrey Rose o tomaram para ir até a academia,
no inverno de 1888), mas eu sempre amei aquele trem e não consegui resistir a abrir o
romance com ele. Estava tudo tão romântico até que aquele corpo empalado apareceu...
Infelizmente (ou talvez não), o Castelo de Bran nunca foi um colégio interno nem abrigou
estudantes de medicina durante sua longa história. Embora tenha sido popularizado na ficção
e em filmes, Vlad III (Vlad, o Empalador) apenas passou pelo castelo durante seu segundo
reinado, antes de atacar os saxões em Braşov. Por ser conhecido como o “Castelo de Drácula”
(graças à descrição similar feita por Bram Stoker, embora haja discussões sobre o fato de ter
ou não sido esse o castelo real que inspirou a famosa fábula de vampiro... o que é uma história
para outro momento), eu decidi que seria a localização perfeita para um assassino em série
que estivesse fingindo ser um vampiro.
Durante o período em que este romance se passa, o Castelo de Bran havia sido entregue
ao departamento florestal da região. Foi interessante imaginá-lo como uma academia de
ciência e medicina forenses em vez do abandono e da falta de cuidados em que o castelo
recaiu naqueles trinta anos antes de os cidadãos de Braşov darem-no de presente à rainha
Maria da Romênia.
Algumas descrições de seu interior, como a biblioteca, foram inspiradas na verdadeira
catedral no castelo, e foram grandemente embelezadas para a história. A entrada com as
escadas que conduzem para cima e para baixo e os candeeiros de dragão são frutos da minha
imaginação. Eu também tomei a liberdade de acrescentar corredores, passagens secretas e
labirintos sob os andares principais. Gostei de imaginar várias formas por meio das quais Vlad
III pudesse escapar dessa fortaleza, caso exércitos invasores ou usurpadores não amigáveis
tentassem pôr um fim à sua vida e tomar o controle de seu amado país. Para obter mais
informações sobre o castelo e sua linha do tempo histórica, dê uma olhada no site bran-
castle.com. Há fatos incríveis listados lá, e o site também traz ótimas fotografias.
A Ordem do Dragão realmente foi uma ordem cavalheiresca secreta da qual tanto Vlad III
quanto seu pai (Vlad II) eram membros. Eram realmente baseados nos cruzados, mas não
eram ativos durante a época em que essa história se passa. (E provavelmente eles não teriam
tido mulheres como membros, mas isso não impediria que minhas moças destemidas
invadissem o clube em que só os meninos eram aceitos e empunhassem suas espadas.)
O príncipe Nicolae Aldea e os membros de sua família nesta história são todos fictícios. Na
verdade, a maioria dos sobrenomes fazem alusão às famílias envolvidas com a regência
dinástica da Romênia antes dos anos 1800. Nicolae recebeu esse nome em homenagem a
Nicolae Alexandru, da Casa dos Basarab.
Uma parte interessante da minha pesquisa foi a família real e como a dinastia poderia ser
ampliada ao se colocar filhos ‘‘bastardos” como regentes. Eu sugiro fazer uma pesquisa sobre
a Casa dos Basarab e a Casa dos Dăneşti, caso você tenha interesse em árvores genealógicas
aprofundadas. Eles eram as linhagens principais dos regentes medievais na Valáquia, e é de
onde veio a inspiração para a rivalidade entre Thomas e Nicolae. Nem Nicolae nem Thomas
seriam tecnicamente considerados príncipes, visto que suas famílias haviam cessado de
controlar esta região por um bom tempo, mas, bem, isto aqui é ficção e eu adoro pensar em
Thomas como sendo um Príncipe Encantado às avessas dos sonhos de Audrey Rose. (E que é,
na verdade, bem charmoso por baixo de sua frieza exterior).
Nesta história, a linhagem da mãe de Thomas descende de Vlad, o Empalador através de
Mihnea cel Rău. (O filho de Vlad, o Empalador.) Mihnea produziu herdeiros, e eu imaginei a
mãe de Thomas vinculada a eles.
A condessa Elizabeth Báthory é uma mulher da nobreza húngara que continua sendo uma
das mais prolíficas assassinas em série de todos os tempos. Dizem os rumores que ela matou
quase setecentas pessoas (cuja maioria eram suas criadas) e foi apelidada de Condessa
Drácula e Condessa Sangrenta. Segundo os rumores, ela se banhava com o sangue de suas
vítimas, o que realmente contribuiu para que fosse comparada a Vlad III e considerada uma
espécie de vampira ao longo da história. O nome Anastasia foi inspirado em uma das filhas
que ela teve.
Um segredinho divertido: Há um conto do folclore romeno em que uma princesa
chamada Ileana é feita cativa por monstros e salva por um cavaleiro. Para este livro, eu quis
reimaginá-la como a heroína de sua própria história.
TRANSILVÂNIA:
Prezado(a) leitor(a), obrigada por acompanhar meus personagens nessa segunda (e sangrenta)
aventura, e pelo amor que vocês demonstram a Audrey Rose e Thomas nas mídias sociais,
“Cressworth” é meu lance predileto DE TODOS OS TEMPOS! (Embora “Well Worth”, que
em inglês quer dizer "Bem Digno”, também me faça sorrir) Eu torço muito por cada um de
vocês. Obrigada, obrigada, mil, um milhão de vezes, obrigada!
Eu devo muita gratidão à minha superagente, Barbara Poelle, por seu talento, seu olhar
aguçado, a ideia de dar a Audrey Rose e Thomas um curso intensivo de medicina forense, e
por sua infalível capacidade, de me fazer rir em meio a um prazo de entrega e quaisquer
acontecimentos inesperados que a vida joga no meu caminho. (Você se lembra daqueles
meses de tratamentos neurológicos para a doença de Lyme, e daquela vez que meu rosto
ficou inchado e eu tive um sério problema de ficar falando com a língua presa antes de
conhecer JP?) Obrigada por ser minha guerreira, B. Eu não poderia ter feito NADA disso sem
você... nem sem aqueles fabulosos presentes que você me manda.
À equipe inteira da IGLA, eu fico tão feliz por ter encontrado um lar em vocês. Sean
Berard, da APA, obrigada por escoltar Rastro de Sangue: Jack, o Estripador em um grande
passeio por Hollywood. Meus personagens adoraram ser recebidos em tapete vermelho.
Obrigada a Danny Baror e Heather Baror-Shapiro, por colocarem meus livros nas mãos dos
leitores pelo mundo todo.
Jenny Bak, também conhecida como Editora Mágica e amiga, foi incrível trabalhar com
você desde o início deste romance. Seu entusiasmo por sempre tornar o livro um pouco mais
sombrio e um pouquinho mais sinistro traz à tona todos os meus sonhos de supervilões. Eu
juro que você é cheia de magie por fazer com que esta trama e esta história tenham ganhado
vida. Especialmente depois que eu tentei matar a coisa toda naquele primeiro rascunho.
Parando para pensar agora, isso tem tudo a ver com mortos-vivos e todo esse lance de
Drácula/vampiro, é sangue do mesmo sangue... os muitos trocadilhos aqui são propositais.
Não consigo me controlar! Um brinde a aventuras ainda mais sombrias e mágicas para o livro
três.
James Patterson, eu ainda não consigo agradecer o bastante por você ter mudado a minha
vida. Um brinde a um grupinho de crianças de Newburgh que nunca pararam de sonhar!
Sasha, Erinn, Gabby, Sabrina, Cat, Tracy, Peggy, Aubrey, Ned, Mike, Katie e todo mundo que
trabalha para a Jimmy books/Little, Brown e que esteve envolvido na edição, produção/
venda/arte do meu trabalho. Obrigada por transformarem este documento em uma linda
obra de arte tangível e por sua dedicação à publicidade, às vendas, ao marketing, ou seja, por
promoverem o meu livro de todas as formas possíveis. É um fato aprovado por Cresswell que
eu tenho a melhor equipe em termos de publicação. (Um alô extra para Sasha e Aubrey, por
me ajudarem a polir a novela de Thomas e deixá-la com um lindíssimo brilho, enquanto
Jenny esteve afastada com o doce bebê Bak.)
Mãe e pai, eu não sei ao certo se algum dia eu serei capaz de agradecer o bastante por
sempre me encorajarem a ser tão criativa quanto me atrevesse durante a infância e
adolescência. A crença de vocês de que eu poderia transformar qualquer sonho em realidade
foi o que me deu aquela centelha para tentar. Obrigada por estarem ali para me oferecer
apoio — e piadas e trocadilhos médicos — e para me ajudar a percorrer o árduo caminho.
Quem diria que uma menina que escrevia sobre baldes de sangue poderia ser tão melindrosa
ao tirar sangue para os exames? O trocadilho com as palavras Vial/Vile [Frasco/Vil, que, em
inglês, têm a mesma pronúncia] sempre me fará rir de um jeito inapropriado; eu amo vocês
dois mais do que quaisquer humildes palavras podem expressar.
Kelli, você é a melhor irmã que o mundo já conheceu. Obrigada por sua capacidade
extraordinária de ler e criticar os rascunhos iniciais do meu trabalho. A Dogwood Lane
Boutique continua sendo meu lugar predileto para comprar roupas para as turnês (e, sejamos
honestas, coisinhas para os posts do #bookstagram), e sinto orgulho de você por caçar e
realizar seus próprios sonhos. E pelo desconto para a família...
Laura, George, Rod, Jen, Olivia, tio Rich, tia Marian e Rich: eu amo vocês todos e tenho
tanta sorte por tê-los! Jacquie, Shannon, Beth: obrigada por celebrarem TUDO isso comigo.
Ben, é sempre o máximo quando você está por perto, e não somente porque você traz os
brinquedos mais legais para os gatos.
Simona e Cristina, da Bibliophile Mystery: Multumesc. Obrigada por lerem/corrigirem
minha humilde tentativa de escrever em romeno e por se certificarem de que estava tudo
correto para os falantes nativos do idioma. Eu mal posso esperar para visitar vocês em
Bucareste e Braşov um dia desses!
É totalmente essencial, neste ramo, ter um esquadrão que esteja lá durante todo o
processo. Eis aqui apenas alguns membros do meu esquadrão: Kelly Zekas, Alex Villasante,
Danika Stone, Kristen Orlando, Sarah Nicole Lemon e Precy Larkins. Obrigada por lerem,
mandarem recados e mensagens de texto de encorajamento, e por oferecerem conselhos tão
sábios e brilhantes como cada um de vocês é.
Traci Chee, sua amizade e seu humor sempre mantiveram meu ânimo em alta. Eu ainda
dou risada toda vez que penso que chorei pela Pink, a cantora, em vez da cor, e na confusão
em massa que os prazos de entrega fazem com a gente. Obrigada por seus conselhos
fantásticos sobre o meu segundo rascunho e por todas as nossas maravilhosas conversas ao
telefone, mensagens de texto e e-mails trocados durante todo o ano. Trabalhar em nossos
livros na companhia uma da outra é um sonho realizado, e nossa amizade é a coisa mais
arrasadora! Eu ficaria perdida sem você!
Stephanie Garber, você é uma das amigas mais mágicas que uma garota poderia querer.
Nossas conversas regadas a café ou vinho são as melhores, absolutamente! (E nosso jogo de
GIFS é bem incrível também. Especialmente quando envolvem Stormtroopers vestindo saias
de bailarinas!) Eu tenho bem certeza de que somos irmãs há tempos perdidas dada a
frequência com que terminamos as frases uma da outra. E obrigada antecipadamente por
uma sala cheia de Julians em seu próximo livro. De nada por isso, camaradas leitores.
A Irina, também chamada de Phantom Rin, suas ilustrações para essa série são épicas e
incríveis. Cada vez que eu vejo um de seus desenhos eu me belisco. Obrigada por dar vida aos
meus personagens de uma forma tão deliciosamente sinistra e bela. Eu não consegui resistir e
usei-as como inspiração para os desenhos de Nicolae, e espero que tenha feito justiça a elas.
Brittany, também conhecida como a Extraordinária Fabricante de Velas, da Novelly Yours,
obrigada por algumas das mais extravagantes e incríveis velas com aromas inspirados em
livros. Eu nunca esquecerei quão maravilhosa pode ser uma vela com manchas de sangue ou
cristais brilhantes. Um alô para Jessica, da Read and Wonder, por criar os marcadores
magnéticos e com citações — eu amo as cartolas em Audrey Rose e Thomas! Jess, da Wick
and Fable, o chá Cresswell e a combinação de chás Audrey Rose são tudo na vida!
Eu sou infinitamente grata por TODOS os blogueiros e bookstagrammers por aí, e desejo
fazer um agradecimento especial a: Ava and the Knights of Whitechapel; Kris, de My Friends
are Fiction (também conhecida como minha camarada que ama pizza); Rachel, de A Perfection
Called Books; Hafsa e Asma, de Icey Books and Icey Designs; Melissa, de The Reader and the
Chef; Brittany, de Brittany's Book Rambles; Bridget, de Dark Faerie Tales; e Stacee, também
conhecida como Book Junkee e como minha líder de torcida de Cresswell por acrescentar
MAIS cenas de beijo; eu não tenho como agradecer a todas vocês por tudo que vocês fazem,
tanto por mim quanto pelos meus livros. Pilar, “Pili”, seus GIFS diários de Sherlock são
sempre apreciados, e sua adoração por Thomas no Twitter o envaidece ainda mais. Ele
realmente ficará insuportável no final do terceiro livro.
Sasha Alsberg, você é uma joia e tanto, obrigada por amar Audrey Rose e por torcer por
ela. Eu fico tão feliz em dividir as prateleiras (e a obsessão por lares históricos) com você!
Além disso, um GIGANTESCO agradecimento a todos os booktubers que postaram vídeos
INCRÍVEIS OU que conduziram leituras conjuntas tanto para Rastro de Sangue: Jack, o
Estripador quanto para Rastro de Sangue: Príncipe Drácula. Eu fico continuamente encantada
por seu amor e apoio a esse destemido mundo vitoriano.
Ao pessoal do Goat posse — Anita, Lori, Bethany, Ashlee, Riley, Precy, Mary, Kalen, Eric,
Jlo, Lisa, Amy, Michelle, Darke, Justin, Jennifer, Angela e Suzanne —, vocês são algumas das
melhores pessoas do mundo. Muito #GoatWub a todos vocês.
Bibliotecários e livreiros: meu respeito por vocês é infinito, assim como o número de
estrelas no céu também é infinito. Livros são armas poderosas e vocês as empunham com o
máximo cuidado e precisão. Obrigada por tudo que vocês fazem tanto pelos leitores quanto
pelos escritores mundo afora.
KERRI MANISCALCO cresceu em uma pequena cidade nas cercanias de Nova York, onde seu
amor pelas artes foi fomentado desde tenra idade. Em seu tempo livre, ela lê tudo em que
consegue pôr as mãos, cozinha todos os tipos de comidas com sua família e com seus amigos,
e certamente bebe chá demais enquanto discute os pontos mais belos da vida com seus gatos.
Rastro de Sangue: Jack, o Estripador é seu primeiro romance, no qual incorpora seu amor pela
ciência forense e a história não resolvida. Saiba mais em kerrimaniscalco.com.