Anne Mcclintock - Couro Imperial - Raça, Gênero e Sexualidade No Embate Colonial-Editora Da Unicamp (2010)
Anne Mcclintock - Couro Imperial - Raça, Gênero e Sexualidade No Embate Colonial-Editora Da Unicamp (2010)
Anne Mcclintock - Couro Imperial - Raça, Gênero e Sexualidade No Embate Colonial-Editora Da Unicamp (2010)
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Couro imperial
RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE
NO EMBATE COLON IAL
TRADUÇÃO
Plinio Dentzien
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FICHA
1. Comportimenioscxu.t - Grl·Breunha - Colônias - Hinóri.L 1. Rclaçoo homem mulher - Grl,Br<canha - Hinória - Séc.
xrx. J. Plj>CI s cxu.t - Gr.i-Bre11nlu - Colô, nias - História_ 4. Gr.i-Breunha - Colônias - Rclaçôcs u,i,is. I.Titulo.
CDD J0l.41
ISBN 978-Ss-168-0893-s 301.4s1
,. Ü>mp<>mmcJ>to ..,rua] - Gri,Breunlu - Colônias - Hisróri• 101.41 1. Relações homcm-mulher-Grl-Breunlu- l-lisrória
-Séc. XIX 101.4< 3. Papel scxu,1- Cri-Bretanha - Colônias - Históri.l J0H< 4. Gri-Brccanlu- Colónias - Rcbçoo raciais
301.4s1
rnJrr aná I CCU4Íiry ,n the colorrwl torrrw Copyrigh1 Q 1991 by Routlcdgc,
Título Origin.t: /wtp,ru/ le,uJ,,r: ,.,,,, x
Jnc.
Todos os diccitos ccscrvad01-
Tnduçio autoriuda d a ediçio cm lingu1 inglcs1 publicad1 por Routlcdgc. P'!:' _do Taylor & FnnciJ Group LLC
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'· I
:f'eminismos
géneros &
A coleção Gêneros & Fe minismos foi criada pela equipe de pesquisa
dores do Pagu-Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp e rc ,:l!be o
apoio da Editora da Unicamp. Voltada para a divulgação de obra~ im
portantes da história do feminismo e da área de estudos de gênc:·v, no
país e no exterior, pretende s er u ma fonte de referência importar,~~ para
os pesquisadores dessa área em nosso país.
b e Valerie
Para ~
1 .
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. ~
Agradecimentos
Introdução
Pós-colonialismo e o anjo do progre sso ................................................... 15
PARTE r
r. A situação da terra - Genealogias do imperialismo ............................. 43 2.
"Massa" e as criadas - Po der e desejo na metrópole impcrial.. ............ 123 3.
Couro imperial - Raça, travestismo e o culto da domesticidade ........ 201 4.
Psicanál.ise, raça e fetichismo feminino ................................................ 271
PARTE l
ENGANOS MÚTUOS
PARTE J
O DESMANTELAMENTO DA CASA DO SENHOR
9. "Azikwelwa"
(não vamos
embarcar) -
Resistência cultural
nas
décadas desesperadas ............................................................................ 479
10. Adeus ao paraíso futuro - Nacionalismo, gênero e raça ...................... 517
Pós-escrito
O anjo do progresso .............................................................................. 569
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Introdução
Pós-colonialismo e o anjo do p rogresso
m lugar
H:i muito~ m:ip~s de u
e muitas histórias de um tempo.
Julie Frcdcricksc
NAS PÁGINAS iniciais do best-uller de Henry Rider Haggard, King Solomons
Mines [ As minas do rei Salomão], descobrimos um mapa. O mapa, é o que nos
dizem, é uma cópia de outro que leva três ingleses brancos às minas de
diamante de Kukuanaland, em algum lugar do sul da África (Figura r AY. O
mapa original foi desenhado cm 1590 p or um mercador português,José da
Silvestre, quando estava morrendo de fome no "seio" de uma montanha
chamada Seios de Sheba. Riscado nos restos de um linho amarelo arrancado de
sua roupa e inscrito com uma "lasca de osso" alimentada do próprio sangue do
mercador, o mapa de Silvestre promete revelar a riqueza da câmara do tesouro
de Salomão, mas leva com ele a tarefa obrigatória de antes matar a
"mãe-bruxa", Gago oi.
Dessa forma, o mapa de Haggard junta em miniatura três dos temas
dominantes do imperialismo ocidental: a transmissão do poder mas culino
branco através do controle das m ulheres colonizadas; o surgimcn t ~ de uma
nova ordem global de conhecimento cultural; e o comando imperial do capital
mercantil - três dos temas que circula.m neste livro.
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16
lntrcdurdo - 'Pd1 -,olonialismc,? a nj? do p rogrt11 a
O que distingue o mapa de Haggard dos vários outros que ornam as
narrativas coloniais é que ele é explicitamente s exual. A terra, que é
também a fêmea, é literalmente mapeada cm fluidos corporais mascu
linos, e a fálica lasca de o sso de Silvestre se torna o órgão através do
qual ele lega o patrimônio do capital excedente a seus herdeiros bran cos,
investindo-os da autoridade e poder a dequados aos guardiões do
sagrado tesouro. Ao mesmo tempo, a herança colonial masculina tem
lugar dentro de uma troca necessária. A morte de Silvestre no mau
(congelado) seio é vingada, e a herança patrilinear branca é ass~gurada
:ipenas com a morte de Gagool, a "mãe, velha mãe" e "gênio do mal da
terra"•. O mapa de Haggard, assim, alude a uma ordem oculta subja
cente à modernidade industrial: a conquista da força sexual e de traba
lho das mulheres colonizadas.
O mapa também revela um paradoxo. De um lado, é um trecho es
boçado do campo que os homens brancos devem atravessar para assegu
rar as riquezas das minas de diamantes. De outro, se o mapa for inverti
do, revela de uma vez o diagrama do corpo feminino. O corpo está
esticado e truncado - as únicas partes desenhadas são as que denotam a
sex1.1alidade feminina. Na narrativa, os viajantes cruzam o corpo a
partir do sul, começando perto da cabeça, representada pela "poça de
água ruim" encolhida - a sintaxe m utilada exibindo o lugar da inteli
gência e da criatividade femininas como sendo o da degeneração. No
centro do mapa, estão os dois picos de montanhas chamados de Seios de
Sheba - dos quais as cordilheiras se estendem para os dois lados como
braços sem mãos. O comprimento do corpo está inscrito pelo reto cami
nho real da Estrada de Salomão, le vando do limiar dos seios c ongelados
até o umbigo koppie d ireto c omo uma seta ao monte púbico. Na narra
tiva, esse monte é chamado de "Três Bruxas" e figurado por um triân
gulo de colinas cobertas de " escuras urzes"3• Esse escuro triângulo ao
mesmo tempo aponta para as entradas de duas passagens proibidas e as
oculta: a "boca da caverna do te souro" - a entrada vaginal à qual os
17
Couro i mperial
18
r
lntrodufflo - 'Pós-,olonialismo ( o anjo : io progresso
entre a força imperial e a a nti-imper ial; entre dinheiro e sexualidade; entre
violência e desejo; entre trabalho e resistência.
Começo com o mapa de H a ggard porque ele oferece uma fantástica
combinação dos temas de gênero, raça e classe, que são as preocupações que
circulam neste livro. C ouro impa-ial oferece três críticas relacionadas. Sob
muitos aspectos, o livro é uma d isputa continuada com o projeto do
imperialismo, o culto da domesticidade e a invenção do progresso in
dustrial. O mapa de Haggard me intriga, ademais, porque oferece uma parábola
em miniatura para um dos princípios centrais deste livro. Nos capítulos que s e
seguem, argumento que raça, gênero e classe não são distintos reinos da
experiência, que existem em
esplêndido isolamento entre si; nem podem ser
simplesmente encaixados retrospectivamente como peças de um Lego. N ão,
eles existem em relação entre si e atra vés dessa relação - ainda que de modos
contraditórios e em conflito. Nes
se sentido é o tema triangular que anima os capítulos que se seguem: as relações
ín6mas entre a força imperial e a resistência; e ntre o d inheiro e a sexualidade; entre
raça e gênero.
No mapa de Haggard, as minas de diamante são simu1taneamente o lugar da
sexualidade feminina (reprodução por gênero), a fonte do te i:ouro (produção
econômica) e o lugar da disputa imperial (diferença racial). A fálica lasca de
osso de Silvestre não é apenas a ferramenta da inseminação masculina e do
poder patriarcal, mas também a insígnia da despossessão racial. Aqui, então,
gênero não é só uma questão de s exua lidade, mas também uma questão de
subordinação do trabalho e pilha gem i mperial; raça não é só uma questão de
cor da pele, mas também
10
-
. •
Cour~ i mpaial
l
1
uma questão de força de trabalho, incubada pelo gênero. Apresso-me a
acrescentar que não quero implicar que e sses domínios são redutíveis ou
idênticos entre si; em vez disso, existem em relações íntimas, recíprocas e
contraditórias.
Uma afirmação central de Couro i mpttrial é que imperialismo não é i '
uma coisa que aconteceu em outro lugar - um fato desagradável da história
exterior à identidade ocidental. Ao contrário, o imperialismo e a invenção da
raça foram aspectos fundament:iis da modernidade in dustrial oci dental. A
invenção da raça nas metrópoles urbanas, que ex ploro com mais detalhes
abaixo, tornou-se central não só para a auto definição da classe média, mas
também para o policiamento das "classes perigosas": a classe trabalhadora, o s
ays e as lé sbicas, os
irlandeses, os judeus, as prostitutas, as feministas, os g
criminosos, a turba militante, e assim p or diante. Ao mesmo tempo, o culto da
domesticidade não foi simplesmente uma irrelevância trivial e passageira,
propriamente per tencente ao rei no privado e "natural" da família. Mais que
isso, argu mento que o culto da d omesticidade foi uma dimensão crucial, ainda
que oculta, das identidades, tanto a masculina quanto a feminina - por
cambiantes e instáveis que f ossem -, e elemento indispensável tanto do
mercado industrial quanto da empresa imperial.
Não é preciso dizer que se poderia pensar jâ, agora, que os homens europeus
foram os agentes mais diretos do i mpério. E, no entanto, os teóricos do
imperialism~.<: _do pós-colonialismo só raramente se dedica ram a explorar a
dinâmica de gênero do tema'. Ainda que fossem ho mens brancos os q ue
comandavam os navios e p ortavam os r ifles dos exércitos coloniais, e que eram
donos e supervisores das minas e planta
4. Nem mesmo o imensamente impomnte e inRuente Oritt1talitmo de Edw:ird Sai d explo ra o gênero
como categoria const.irutiva do imperialismo. Da mesma forma, a vasta e crucial história dos negros
de Peter Fryer, Staying P owo, é quase muda sobre a s mulheres, :usim como a valiosa anilise da
culrura popular negr.i de Paul Gilroy, T hoe Ain't No Blark. i n t he Unianfad.. E dwud S~d. Orimtalúm
(Nova York: Vinngc, 1978); Petcr Frycr, Stay i ng Power: The H istory o fB larl Peopü in B rita in
(Londres: Pluto Press, 1984); Paul Gilroy, 1 1,cre //i11~ No Bla<.t. ;,. ''" UniOfl J a,lt.· 11u Cultural
Politi a of Rnc, n
nd Natíon ( Londres: H utchinson, 1987).
20
lntrodurão - '1'61-co/011ialismo to anjo do p rozrtJJo
ções com escravos, e que comandavam os flu.xos globais de capitais e
carimbavam as leis das burocracias imperiais; ainda que fossem homens
brancos europeus os que, ao final do século XIX, eram donos e gerentes
de 8 5% da superfície da Terra, a relação crucial, mas oculta, entre gênero
e imperialismo foi, até muito recentemente, desconhecida e desprezada
como um fait a ccompli d a natureza.
Na última década, surgiram evidências que estabeleceram que ho
mens e mulheres não experimentaram o imperialismo da mesma manei
ras . O imperialismo europeu foi, desde o começo, um enconlro violento
com hierarquias preexistentes de poder que tomou forma não como um
desdobramento de seu próprio d estino, mas como interferência oportu
nista e desordenada com outros regimes de poder. Tais encontros, por
sua vez, alteraram as trajetórias do próprio imperialismo. Dentro desse
longo e conflituoso engajamento, a dinâmica de gênero das culturas colo
nizadas foi tão distorcida a ponto de alterar as formas irregulares que o
imperialismo assumiu em várias partes do mundo.
As mulheres colonizadas, antes da intntsão do domínio imperial,
eram invariavelmente prejudicadas dentro de suas sociedades, em ma
neiras que davam ao reordenamento colonial de seu trabalho sexual e
econômico resultados muito diferentes d os que obtinham os homens
colonizados. Como as escravas, trabalhadoras agrícolas, serventes do
mésticas, mães, prostitutas e concubinas das vastas colônias da Europa,
as mulheres colonizadas tinham de negociar não só os desequilíbrios cm
suas relações com seus p róprios homens, mas também o barroco e v io
lento conjunto das regras e restrições hierárquicas que estruturavam suas
novas relações com os homens e as mulheres do império6•
S, Par.i uma resenha abrangcme, \·er Ann Laura Sroler, ·Carnal Knowlcdge and Imperial
Power: Gender, Race, and Mor:tlity in Colonial Asia", in Micaela di Leonardo (org.),
nd t ht Cromoads o
Gmdrr a nMJJ!tdgt: Ftminü t Anthropclogy i n t ht P ost modmi Era
f K
(Berkeley: University o f C:ilifomia P cess, 1 99!}, pp. s 1-100.
6.. Para análises regionais e históricas do impacto do coloni:llismo sobre as mulheres, ver
l\fona Eticnne e Eleanor Lcacock (orgs.), Jl1Jmm and Ccloni::.ation ( Nova York: Praeger,
1980); Dclia Jarrctt Ma01ulay, "Bbck \Vomen's H istory•, tr:abalho apresentado à
vVomcn's History Confcrcncc, Londres, jul., 1 991; N~nc:y 11.illkin e Edna Bay (orgt.),
Womtn i n
21
Couro i mpaial
Africa: Srudia i n S ocial and Eco nomi c C hang, (Stanford: Sranford Univcrsity Prcss,
1976); Chcrryl Walkcr (org.), Womm arrd Gmder in S outhern t ffrúa to 1945 (C:ipc
Town: David Philip, 1990); Hazd C arby, "On thc Thrcshold ofWomcn's Era. Lynching,
Empirc anc Scxuality in Bl :ick Fcrninist Thcory~, Cri tirai lm;uiry 11, 1 (1985), pp.
262-77.
7. Par:i aniliscs regionais e históricas das mulheres coloni:iis, ver Helen Calbway, Gmd,r,
Culture and Empir e: European m,mm i n Colonial Nigeria (Londrc,: MacmiUan, 1987);
Jackic Cock, Maids a~d N fadams (Johanncsburgo: Ra,-an Press, 1980); J ean Comaroff e
John Comarolf, "Christianity and Coloni:ilism in South Africa", /lmericarr Ethnologist 1 3
(1986), pp. 1-21; Bcvcrlcy Garm:U, "Colonial \Vi\·es: VWains or Victims?", in Hillary
Cal· lan e Shirlcy Ardncr (orgs.), 1he l nc or~rated W
ifa ( Londres: Croom Hclm, 1984), e
Irene Silvcrbla11, /llfo on iuhes: G
, Sun and W ender I deologia ar.d Cl:m i n I nca and
Coloni 11/ P er11 (P rinccton: Princcton Univcrsity Prcss, 1 987).
22
Argumento ao longo desce livro que o imperialismo não pode ser
plenamente compreendido sem uma teoria do poder do g ênero. O po der
do gênero não foi a pátina superficial do império, um brilho efême ro
sobre a mecânica mais decisiva da classe ou da raça. Mais que isso, a
dinâmica do gênero f oi, desde o início, fu ndamental para assegurar e
manter o empreendimento imperial. Do meu ponto de vista, porém, o
gênero não foi a única dinâmica do imperialismo industrial, nem a do
minante. Desde o final dos anos 1 970, surgiu uma forte e apaixonada
crítica feminista - em boa parte feita por mulheres de cor - que desa fia
certas feministas eurocêntricas que pretendem dar voz a u ma femini
lidade essencial (em conflito universal com uma masculinidade essen
cial) e que privilegiam o gênero a cima dos outros conflitos.
H azel Carby, por exemplo, fez uma das primeiras críticas d as femi
nistas brancas que "escrevem sua heritória e a chamam de história das
mulheres, mas ignoram nossas vidas e negam suas relações conosco".
"Esse é o momento", ela diz, "em que estão atuando dentro d as relações do
racismo e escrevendo história"ª. Nos Estados Unidos, de maneira
semelhante, bcll hooks argumenta, com força e influência, a favor do
reconhecimento da diferença racial e da diversidade entre as mulheres, e
também pela política de alianças9• Na Inglaterra, Valerie Amos e Prati
bha Parmar, entre outras, seguem Carby na acusação às feministas bran
cas segundo a qual elas compartilham "a amnésia dos historiadores
brancos quando ignoram as maneiras fundamentais pelas quais as mu
lheres brancas se beneficiaram da opressão dos negros"'º.
1
' iJ
i i 1
Couro imptrial
1
:
Argumento, ademais, que gênero não é sinônimo de mulheres. Como diz
Joan Scott: "Estudar as mulheres isoladamente perpetua a ficção de que uma
esfera, a experiência de um sexo, tem pouco ou nada que ver com a do
outro"". À diferença de Catherine l\1lacKinnon - p:ira quem
"a sex-ualidade está para o feminismo como o trabalho está para o mar
xismo"-, argumento que o feminismo se refere tanto à classe, ao traba lho e
ao dinheiro quanto ao s exo. D e fato, um dos movimentos m ais valiosos da
teoria feminista recente foi s ua insistência n a separação entre sexualidade e
gênero e o reconhecimento d e que o gênero é um proble m:i tanto p ar:i a
masculinidade quanto para a feminilidade. Como diz Cora Kaplan, a
atenção ao gênero como categoria privilegiada da análi se tende a
"representar a d iferença sexual como natural e fixa - uma feminilidade
constante e transistórica numa l uta tornada libidinal com uma masculinidade
universal igualmente 'dada"'".
Michel Foucault argumenta que, no século XIX, a ideia de sexuali dade deu
m conjunto de ªelementos anatômicos, funções
uma unidade fictícia a u
biológicas, condutas, sensações e prazeres"'3• A unidade fictícia da
m significado
sexualidade, diz ele, se tomou "um princípio causal, u
on \.Yomen in AJgeria", Ftmini1t Studi,1 1 4, 3 (1988), pp. 81-1 07, e Gayatri Chakravorti
Spivak, "French Feminism in the lnternational Frame", in ln 0th" World1: E y1 in
S1a
Cultural Pcliti r1 (Nova York: Methuen, 1 987). Ver também Spiv:ik, 7ht Pou-Colonial
Critü: l nttT1Jiew1, S trat,git1. D i~o guu, Sarah H arasym, org. ( Nova York: Routledge,
1990), e o número especial sobre "feminism :and the Critique o f Colonial Di scourse",
lnsmptiom : ;/ 4 (1988). Para um1 análise mais geral das mulheres brancas e o racismo, ver
Vron \Vare, Bryond th, Palt: Whiu U -&m
cn, R arism and Hi story (Londres: Vcrw, 1992).
\ V.Scott, Gmd tr a nd t ht Politia of History (Nova York: Columbia University Press,
11. Joan
1988), p. 32. Como diz Denise Riley: ªser uma mulher também é inconstante, e n:io ofe
rece um fundamento ontológico•. Denise R iley, "Am I that Namet• Ftmini1m and th,
Cattgory oj• Womm· in H iuory (B
asingsroke: MacmiUan, 1989), pp. 1-2 . Para uma crítica
importante do essencialismo de gcnero e de raça, ver Diana Fuss, Eumtial!y Sptak.ing:
Ftminism, N aturt and Dijf trmu ( Nova Yo rk: Routledge, 1989).
u. Cora Kaplan, St a Chang,1: Culturt and Ftmini 1m ( Londres: Verso, 1989), p. 27. D
a mesma
maneira. Scott observa: •o uso d o gcnero salien12 um sistema inteiro de relações que
podem incluir SC.'(O, mas não é diretamente detenninado pelo sexo nem diretamente de
terminador da sexualidade. - Gmdtr a nd t t, Politia of H i Jt,;ry, p. 32.
f Stxuality, trad. R
13. !Vlichcl Foucault, Hiltory o ichard H oward (Nova York: Vintage, 1980,
vol. t,), p. n.
-
111trodu;4o - 'Pós-,o lon
ialisrno e o anjo d o p rogruso
onipresente, um segredo a ser descoberto em todo lugar: o sexo foi, as sim,
capaz de funcionar como um significante universal e como um significado
universal"'•. Ao privilegiar a sexualidade, porém, Foucault esquece como uma
elaborada analogia en tre raça e gênero se tornou,
como argumento no capítulo 1 , um t ropo organizador para o utras for mas
sociais.
Ao mesmo tempo, não vejo raça e etnia como sinônimos de negro ou
colonizado. De f ato, a primeira parte deste livro foi escrita em simpatia com o
desafio oblíquo de bell hooks: "uma mudança de direção que seria
verdadeiramente descolada seria a produção de um discurso s obre raça que
interrogasse a brancura"15• A invenção da brancura, aqui, não é a norma
invisível, mas o problema a ser investigado16•
Não estou convencida, porém, de que a raça é um mero efeito de significantes
flutuantes, nem pelas afirmações de que "deve existir algu ma essência que
precede e/ou transcende o f ato das condições objeti vas"'7. Estou aqui de
acordo com o argumento cogente de Paul Gilroy,
ua um2 discussão dos problcm2S da raça como c2tegoria,
B!ac ! t. in the UniM Jaclr: . .. P
e um apelo à etnia como altcrnni\·a, \·cr Floya Anthias e Nira Yuval-Davis, "Conrcx•
tualizing Feminism : Gendcr, Ethnic and Class Oivisions", F,miniJt Rroiew 15 (ln· vemo,
1983).
l8. Paul Gilroy, 7h, B laciAtlantic: Mo d trnity and Doub!t C :Onscioumm (Cambridge: Haí\-ard
Univcrsity Prcss, 1993), p. x.
1
9· Houston A. Baker, "Caliban's Tripie Pby", C riticai lnquiry 1 3, 1 (Outono, 1986), p. 186.
Introdução - Pós-,olonialismo, o anj~ J o p rogusso
do que tal pesquisa tenha lugar como uma crítica da modernidade imperial,
pois foi precisamente durante a era do alto imperialismo que a psicanálise e
a história social divergiram.
Como não acredito que o imperialismo tenha sido organizado cm tor no
de uma única questão, quero evitar privilegiar uma categoria em relação à s
outras como tropo organizador. De f ato, gasto mais tempo questio nando
narrativas de gênese que orientam o poder em torno de uma unica cena
originária. Por outro lado, não quero incorrer num pluralis mo liberal de
lugar-comum que abraça generosamente a diversidade para melhor apagar os
desequilíbrios de poder que arbitram a diferença. Certamente, uma das
suposições fundadoras deste livro é que nenhuma categoria social existe em
isolamento privilegiado; cada u ma existe numa relação social com outras
categorias, ainda que de modos desiguais e contraditórios. Mas o poder
raramente é atribuído por igual-diferen tes situações sociais são
sobredeterminadas pela raça, pelo gênero, pela classe, ou por cada uma
dessas categorias por sua vez. Acredito, contudo, que se pode dizer com
segurança que nenhuma categoria social deve permanecer invisível em
relação a uma análise do império.
Qyase um século depois da p ublicação de As minas do rei S alomão, cm
novembro de 1992 - ano do triunfo do quinto centenário dos Estados Unidos
- uma e..xposição pós-colonial chamada de Estado Híbrido es treou na
Broadway. Para entrar na e xposição do Estado Híbrido, você entra na
Passagem. Em lugar de uma galeria, v ocê encontra uma an tecâmara escura,
onde uma palavra branca o convida a avançar: c olonia l ismo. P ara entrar no
espaço colonial, você passa por uma p orta baL"<a, apenas para se encontrar
encerrado noutro espaço negro - uma lem brança dos curadores, ainda que
fugaz, de Franti Fanon: " O nativo é um ser sitiado"20• l\1as a saída do
colonialismo, parece, é avançar. Uma se gunda palavra
branca,pó s-colonial ismo , o convida, através de uma porta
20. Frantz Fanon, 7h, Wrttthtd of tht Earth (Londres: Pcnguin, 1963), p. 29.
l
Couro impuial
A história paralela aponta para a realidade de que não há mais uma visão
domi nante (mainstream) da cultura artística none-:uneric:ina, com diversas
"outras" cultul"3s menos imponantes à sua volta. Existe, ante!, uma história
paralela q ut! está mudando nossa compreensão do nosso entendimento
transcultural!I.
22. ApudSusan Buck-Morss, 77;, Dialtctiu ofSuing: H-ízlter Bmjamin ar.d the Ar,ades
Projtcl ( Cambridge: lhe ~OT P rcss, 1989), p. 90.
13. Idem, op. cit., p. 79.
29
Couro impa ial
mente pousado no l imite entre o velho e o novo, o fim e o começo, o
termo anuncia o fim d e uma era do mundo apenas ao invocar o mesmís
simo tropo do progresso linear que animou essa era.
Se a teoria pós-colonial procurou desafiar a grande marcha do histo
ricismo ocidental e seu séquito de binários (cu/o outro, metrópole/colô
nia, centro/periferia etc.), o termo " pós-colonialismo" de qualquer ma
neira reorienta o globo uma vez m ais em torno de uma única oposição
binária: colonial/pós-colonial. Além disso, a teoria é assim deslocada < lo
eixo binário do poder (colonizador/colonizado - em si mesmo pouco
nuançado, como no caso das mulheres) para o eixo binário do t empo, um
eL"<o ainda menos produtivo de nuança poütica, porque não distingue
entre os beneficiários do colonialismo (os antigos colonizadores} e as
vítimas do colonialismo (os antigos colonizados). A cena pós-colonial
acontece numa sus pensão da história, como se os eventos históricos de
finitivos fossem anteriores ao n osso tempo e não estivessem acontecen
do agora. Se a teoria promete um descentramento da história na hibri dez,
no sincretismo, no t empo multidimensional e assim por diante, a
singularidade do termo realiza um recentramento da história global em
torno da exclusiva rubrica do tempo europeu. O colonialismo volta ao
momento de sua desaparição.
O prefixo "pós", ademais, reduz a cultura dos povos além do colonia
lismo ao tempo preposicional. O termo confere ao colonialismo o pres
tígio da história propria~e!lte dita; o colonialismo é o marcador deter
minante da história. Outras culturas compartilham apenas uma relação
cronológica preposicional a uma era eurocêutrica que acabou (pós) ou
que ainda nem começou (pré). Em outras palavras, as múltiplas culturas
do mundo são marcadas, não positivamente pelo que as distingue, mas
por uma relação retrospectiva subordinada cm relação ao tempo Linear
europeu.
O termo também assinala uma relutância cm abandonar o privilégio
de ver o mundo em termos de uma abstração singular e a-histórica.
Folheando a onda recente de artigos e livros sobre o pós-colonialismo,
fico impressionada por quão raramente o termo é usado para denotar
multiplicidade. Prolifera o seguinte:" a condição pós-colonial", "a c ena
30
pós-colonial", "o i ntelectual pós-colonial", "o e spaço disciplinar emer gente do
pós-colonialismo", "a situação p ós-colonial", "a prática da pós colonialidade",
e a mais tediosa e genérica de todas: "o O utro pós-colo nial". Sara Suleri, por
exemplo, se confessa cansada de ser tratada como
uma "máquina de alteridade"4 •
Não estou convencida de que u ma das mais importantes áreas emer gentes da
investigação intelectual e política está mais bem servida ins crevendo a históiia
como uma única questão. Assim como a categoria "mulher" foi desacreditada
como tapeação universal pelo feminismo, in capaz que é de distinguir entre as
várias histórias e os desequilíbrios de poder entre as mulheres, também a
categoria singular "pós-colonial" pode prontamente autorizar uma tendência
panóptka a ver o globo através de a bstrações genéricas destituídas de nuança
política'5 • O pano rama que se descortina no horizonte se toma por isso tão
expansivo que os desequil.tbrios internacionais de poder ficam eficientemente
borra dos. Categorias historic amente vazias como "o outro", "o significante", "o
significado", "o sujeito", "o falo", "o pós-colonial", embora com influ ência
acadêmica e valor profissional de mercado, correm o risco de elu dir distinções
geopolíticas cruciais até a invisibilidade.
Os autores do livro 1he Empire Writes B ack, por exemplo, defendem o termo
"literatura pós-colonial" com três argumentos: ele se centra n a quela "relação
que forneceu o ímpeto criativo e psicológico mais impor tante na escrita";
expressa as "razões do agrupamento num passado co mum" e "faz um aceno à
visão de um futuro mais liberado e positivo"16• E, no entanto, a inscrição da
história em torno de uma única "continui dade de preocupações• e de um único
"passado comum" corre o risco de uma negação fetichista de cruci ais
distinções internacionais que são es
.
Couro imp~ria/
cassamente entendidas e inadequadamente teorizadas. Além disso, os j
autores decidem, idiossincraticamente, por assim dizer, que o termo 1
desde o colonialismo europeu, mas antes como tudo o que aconteceu desde o começo
mesmo do colonialismo, o que quer dizer voltar os re lógios para trás e desenrolar os
mapas do pós-colonialismo para 1 492 e até antes•7. De um só golpe, Henry James e
Charles Brockden Brown, para mencionar apenas dois de sua l ista, são acordados de
sua conversa •J .
com o tempo e chamados à c ena pós-colonial, ao lado de membros mais
regulares como NgugiWa Thiong'O e Salman Rushdie.
De maneira mais problemática, a ruptura histórica sugerida pelo prefi.xo
"pós" desfigura tanto as continuidades quanto as descontinuida des do
poder que deram forma aos legados dos impérios coloniais euro peus e
britânicos (sem falar nos islâmicos, japoneses e c hineses e de outros
impérios coloniais). Ao mesmo tempo, as diferenças políticas en tre
culturas são subordinadas à sua distância temporal do colonialismo
europeu. O pós-colonialismo, porém, como o pós-modernismo, padece
~
27. "Usamos o termo 'pós-colonial', pvré,n, pua cobrir 10d," c ulrun . ,fetad" pdo processo
imperial desde o momento da colonização a1e o prcscnrc". Idem, op. cit., p. 2 •
.. ,.
lntr,,du;d" - q>/s-,olonialismo ( o anj" d o progr(SSI )
28. Para uma :inálise astuciosa da t eoria pós-colonial, ver Rob<:r. Young, Whitt , ~
ytholag frs:
Writing History a nd t b( Wnt ( Londres: Routledge, 1 990).
33
Couro impuial
algumas ocultas, algumas apenas meio ocultas. O poder do capital f inan
ceiro norte-america no e das gigantescas corporações multinacionais no
comando dos f ltLxos de capital, pesquisa, bens de consumo e informações
da mídia à volta do mundo pode exercer uma força coercitiva tão grande
como qualquer canhoneira c olonial. É precisamente a maior sutileza, a
inovação e a varied ade dessas formas de imperialismo que tornam ins
tável a ruptura hfatórica implicada pelo termo "pós-colonialismo". O
termo "pós-colonialismo" é prematuramente celcbratório e ofüs cante de
mais de uma maneira. Embora alguns países sejam pós-colo niais em
relação a seus senhores europeus de outrora, podem não ser pós-coloniais
em relação a seus novos vizinhos colonizadores. E, no en tanto, o
neocolonialismo não é simplesmente uma repetição do colonia lismo, nem
é uma mistura hegeliana l igeiramente mais complicada de tradição e
colonialismo num novo lubrido histórico. São necessários ter mos e
análises mais complexos de tempos alternativos, e também histó rias e
causalidades mais complexas para lidar com complexidades que não
podem ser atendidas pela simples rubrica de pós-colonialismo. O termo é
ainda mais instável em relação às mulheres. Num mundo em que as
mulheres fazem d ois terços do tnbalho, ganham 10% da ren da e s ão
donas de menos de 1% da propriedade, a promessa do "pós-co lonialismo"
foi uma história de esperanças adiadas. Em geral não se nota que as
burguesias e deptocracias que calçaram os sapatos do progresso
pós-colonial e da modernização industrial tenham sido suprema e vio
lentamente masculinas ... éomo exploro no c apítulo 10 sobre gênero e
nacionalismo, nen hum Estado pós-colonial em qualquer parte a ssegu rou a
homens e mulheres acesso igual aos direitos e recursos do Estado nação.
As necessidades das nações pós-coloniais têm sido amplamente
identificadas não só com aspirações e interesses masculinos, mas a p ró
pria representação do poder nacional se baseia em construções prévias do
poder do gênero.
A militarização glo bal da masculinidade e a feminização da pobreza
asseguraram que mulheres e homens não vivam o pós-colonial d a mes ma
maneira, nem partilhem a mesma condição pós-colonial s ingular. A culpa
do contínuo pleito das mulheres não pode ser depositada apenas
34
Couro imperial
do poder imperial e do anti-imperial. Digo isso não para diminuir a enorme
importância e influência da obra de Said sobre as relações im periais
masculinas, mas antes para lamentar que ele não tenha explorado
sistematicamente a dinâmica do g ênero como um aspecto crítico do projeto
imperial.
Falsos universais como a "mulher pós-colonial" ou o "outro pós-colo nialn
obscurecem relações não só entre homens e mulheres, mas também entre as
mulheres. As relações entre uma turista francesa e a mulher haitiana que lava
seus lençóis não são as mesmas que as relações entre seus maridos. Filmes
como Out o fA /rica, r edes de vestuário como Bana n a R epublic e p erfumes
como Safari m ascateiam a nostalgia neocolonial por uma era em que mulheres
europeias em vivas blusas brancas e em verde safári supostamente
encontravam a liberdade no império: dirigin do plantações de café, matando
leões e rasgando os céus coloniais em aeroplanos - uma falsa comercialização
da "liberação" das mulheres brancas q ue não tornou mais fácil p ara as
mulheres de cor formarem
•
J j
alianças com as brancas em qualquer lugar, e nem deterem as críticas dos
nacionalistas desde logo hostis ao feminismo.
Em minha opinião, o imperialismo surgiu como um projeto ambí '
guo e contraditório, formado tanto pelas tensões dentro das poüticas
metropolitanas e pelos confütos dentro das administrações coloniais - na
melhor das hipóteses, questões oportunistas e imediatas - quanto pelas
1
variadas culturas <?. circunstâncias cm que os coloniais se introme j
tiam e pelas respostas e resistências confütantes com que se enfrentavam. Por
isso, não estou convencida de que as dicotomias sancionadas - co
lonizador/colonizado, eu/outro, dominação/resistência, metrópole/ colônia,
colonial-pós-colonial - sejam adequadas para a tarefa de dar
1
1
conta dos legados tenazes do imperialismo, e menos ainda de opor-se 1
1
estrategicamente a eles. Derivadas historicamente do maniqueísmo me 1 t
tafísico do próprio iluminismo imperial, tais dicotomias correm o risco de
ij
l"'.,.,
·dem ser encontradas.
ln1rodu;á11 - 'Pós-,olonialismo to a njo do p rogrtss11
32. Ver a análise de Gauri Viswanathan de como os "eventos nu periferias reformularam e
determinaram as rebções domésticas",cm "Raymond \Villiams and British Coloni:ilism:
lhe Limits o f Metropolitan Culruru Thcory," in Dcnnis L . Dworkin e Lcslic G. Roman
order ~
ryond l ht B
(orgs.), V ietJJ1 B untry: &
ymond W illiam.J ar.d Cultural Politics ( Nova
York: Routlcdgc, 1993), p. u o. Para u ma análise histórica 2brangcnte, ver D. K. Ficld
housc, 1 7,e Colonial E mpim: / 1 C omparatiw S urwy from 1/;e E ighlunlh Cm1ury (Basing·
stokc: MacmiUan, 1 965), especialmente o capitulo 9.
37
Couro i mptrial
/ Hi story, p
~li ti es o
nd t he P
36. Scott, Gmd(r a . 6.
70
Couro imptrial
Escolhi, assim, contar uma série de estórias contraditórias e sobre postas - de
trabalhadoras negras e brancas e de homens e mulheres de classe média. Os
gêneros que elegi são diversos - f otografia, diários, etnografias, novelas de
aventuras, histórias orais, poesias declamadas e uma miríade de formas de
cultura nacional. Entre outras, essas formas culturais incluem os
extraordinários diários e as fotografias de Hannah Cullwick, u ma empregada
doméstica vitoriana para todo serviço e seu casamento secreto com o poeta e
advogado vitoriano, Arthur Munby; o sucesso d e vendas das fantasias
imperiais de Ridcr Haggard; a s expo sições e fotografias imperiais; anúncios de
sabão; os escritos políticos e 1
~
l
l1
l 1
l
PARTE I
,
O IMPERIO DO LAR
. -
F ~
1 l j
1
1
J
·1
I
Em 1492, Cristóvão Colombo, tropeçando pelo Caribe cm busca das Índias,
escreveu para casa para dizer que antigos marinheiros tinham errado ao pensar
que a Terra era redonda. Ao contrário, dizia, ela tinha a forma de um seio de
mulher , com uma protuberância no topo na for
ma inconfundível de um mamilo - cm direção a o qual ele singrava lentamente.
A imagem de Colombo torna a Terra feminina na forma de um seio cósmico,
em relação ao qual o herói épico é
uma criança perdida e ínfi ma, ansiando
pelo mamilo celestial. A imagem da Terra como seio aqui não lembra a
bravura masculina do explorador, investido de sua missão de conquista, mas
sim o incômodo sentido da ansiedade m asculina, a infantilização e o desejo
pelo corpo feminino. Ao mesmo tempo, o cor po feminino é f igurado como
marcando a fronteira do cosmos e os limi tes do mundo conhecido, envolvendo
os homens andrajosos, com seus s onhos de pimenta e pérolas, em seu corpo
oceânico indefinido.
A fantasia do seio em Colombo, como o mapa dos seios de Shcba em
Haggard, segue urna longa tradição de viagens masculinas como uma e rótica
do alumbramcnto. Durante séculos, os continentes incertos -
Couro impuial
6. Winthrop D. Jordan, White 0fltr Blac k: Am,ri(an Attitud,s T 011.1ard tht Negro, 1550-18 12
(Nova York: \ V. W. Norton, 19n), p . 7 .
/ tht U
7. 1h, Modtrn Pari o niflmal Histo ry ( T. Osbome etc., 1760, vol. V), pp. 658-9.
8. Op. cit., p. 659.
9. Sir Thomas Herbert, Somt Ytan Trawl lnto D
it:m P friea a nd A ria t íu C nal
a rts if A
(Londres: R. Scot, 16n), p. 18.
10. Edward Long, Candid &factiom ( L
ondres: T. Lo,..'Tldcs, tr,:), p. 48. 11. \Villiam
Smith, A New V
oyagt to Guinta (Londres: John N
oursc, li45), pp. 221-2.
termo "geografia fabulosa· é de Ivlichael T:mssig, in Sl;amanism, Cofonialism a nd th,
12. O
S tudy i n T
Wild iWan: A trr0r and Htaling (Chicago: lhe University of Chicago Prcss,
Couro
imperial
1987), p. 15.Joseph Conr:id cunhou o termo "geografia militante" cm seu ensaio
"Gcogra· phy and S ome Explorcrs", in únt Essays ( Londres: J. M. Dent & Sons,
1916), p. 3 1. Para uma história do f im da escra\'idão colonial, ,-er Robin Blackbum,
wrthrow of Colo 11ial S
1},e O !a'Uery: I 776-11k,8 (Londres: Verso, 1 98!1).
13. Benjamin Farrington, 1he P hilosophy of Francis B
acon: / 111 Essay 011 lts Developmmt
Jrom r6oJ to 1 609 W e-.,, T
ith N undammtal ú xtr (Chicago: Thc
fF
ranslatiom o
Univcrsity Chi cago Prcss, 1964), p. 62. Ver LudmillaJordanova, S(x:,a/ Visions:
lmages o fGmder i n Scimce and Medicine B ef'l:Jan t he E
ightanth and Twmtieth
Cmturies (Nova York: Harvcstcr \Vheatsheaf, 1 989), Ver r:imbém E. F. Keller,
&ft((tions o n G
mder and Scim« (New Ha ven: Yale Univcrsity Press, 1985),
especialmente os capítulos 2 e 3; Susan Griffin, H 1Jman and Nature: 1he Roaring
lmide Her(Nov:i. York: Harpcr & Row, 1 978); e Gcncvicve Lloyd, Ü f
J< l vlan o
Reason: " 1Wa1t· a nd 'Fur.ale" in l ffsu hi!orophy (Minneapolis: Minnesota
mP
Univcrsity Prcss, r984).
14. Farrington, 1h( PhilwJphy o ranâs Bacon . .. , p . 62. Para o gênero na ,isão da ciência
f F
de Bacon, ver Carolyn Merchant, 7h, D,ath o arure: W
f N omm, E,ology and th, Sâmtifi,
Rewlution (Sio Francisco: Harper and Row, 1980), especialmente o capítulo 7.
1
1
~
l
i l j .
cA
sit uação
da t erra
-
qoual1 1gias d o i mperia l is mo
15. Francis Bacon, "Novum Otg1111um", in James Spedding, Robert Ellis e Douglas Hcath (orgs.), 1he
f Francis Bacon (Londres: Longmans, 1870), p. 82.
1/.1;r.ks o
16. Goethe, Fawt. Parte I, apud Jordanova, Sexual Vúiom ... , p. 93.
e1hod a nd lhe Medilatians (Harmond~worth: Pcnguin, 196S), p. 7 8.
17. Rcné Descartes, Dis,ouru on M
47
l
Couro i mpaial
1
1
j
l
marinheiros prendiam figuras femininas de madeira nas proas de seus
barcos e batizavam-nos - como objetos liminares exemplares - com
nomes femininos. Os cartógrafos enchiam os mares vazios de seus
mapas com ninfas e sereias. Os exploradores chamavam terras desco
Mary
Douglas observa que as margens são perigosas'5• As sociedades são mais
vulneráveis nas margens, nas esgarçadas beiras do mundo co nhecido.
Tendo velejado além dos limites dos mares conhecidos, os ex ploradores
entram no que Victor Turner chamou de liminaridade'9• Para Turner, a
liminaridade é ambígua, fugindo à "rede de classificações que normalmente
situam os espaços e as posições no espaço cultural"'º. A li na fronteira entre
o conhecido e o desconhecido, os conquistadores, ex ploradores e
navegadores s e tornavam criaturas da transição e do limiar. Como tais, eram
perigosos, pois como diz Douglas: "O perigo está nos estados de transição [
... ] A pessoa que deve passar de um para o outro está ela mesma em perigo
e produz perigo para as outras"21• Como f i guras do perigo, os homens das
margens tinham "licença para emboscar, roubar, estuprar. Esse
comportamento é mesmo imposto a eles. Com portar-se antissocialmente é a
própria expressão de sua condição margi n al"ª. Ao mes1no tempo, os
perigos representados pelas pessoas margi nais são administrados por rituais
que as separam de seu s tatus a nterior, segregando-as durante algum tempo
e então publicamente declarando
discurso colonial repetidamente en saia
sua entrada em seu novo s tatus. O
esse padrão - marginalidade perigosa, segregação, reintegração
O "DESCOBRIMENTO" IMPERIAL E A
AMBIVALÊNCIA DE GÊNERO
Consideremos agora outra cena colonial. Num desenho famoso (c. 1575),
Jan van der Straet retrata o "descobrimento" da América como um
encontro erótico entre um homem e u
ma mulher (Figura 1.1)23• Um
AMt.fU C A .
'-";-"""""°., .. • -1~ rTff:111 . <.:>-". Sn-tJ ........, ...J, -~ U
fV"""-.,
Vespúcio em armadura completa está ereto e senhorial diante de uma mu
lher nua e eroticamente convidativa, que se inclina para ele de uma rede.
À primeira vista, as lições imperiais do desenho parecem claras.
Despertada de sua languidez sensual p elo épico recém-chegado, a indí
gena estende uma mão convidativa, que insinua sexo e submissão. Sua
nudez e seu gesto sugerem um eco visual da Criação, de Michelangclo.
Vespúcio, o recém-chégado semelhante a Deus, está destinado a inse
miná-la com as sementes masculinas da civilização, a frutificar a selva e
a subjugar as cenas revoltantes do canibalismo vistas ao fundo. Como
diz Peter Hulme num belo ensaio: "A terra é nomeada como fêmea,
contraparte passiva do í mpeto maciço da tecnologia masculina"14• A
Esscx, 1984, vol. 2). T ambérn Louis Montrose, "The \,York of Gender in the Discoursc
of Discovcry", Rtpmmtation.1 33 (Inverno, 1 991), pp. 1-,p. Par., imagens europeias da Amé
rica, ver Hugh Honour, 1he New Go ldm l And: Europtan /maga e f Ammca f rom t he
Disc O'IJtr ies t o t ht Pmmt Time ( Nova York: Pantheon Books, 1975), capítulo 4. 2 4. Hulmc,
"Polyuopic Man ... · , p. 2 1.
r l
l ' •
1
l ·,
cA
situaçdo d a tara - qm~alogias do imptria/ism,
inaugural do descobrimento se torna uma cena de ambivalência, sus pensa
entre uma megalomania imperial, com sua fantasia de intermi nável
rapina, e um temor contraditório de subjugação, com sua fantasia de
desmembramento e emasculação. A cena, como muitas cenas impe
riais, é um documento tanto d a paranoia quanto da megalomania. Como
tal, a cena diz menos sobre o "Outro a ser logo colonizado" do que sobre
urna crise na identidade imperial masculina. Tanto Américo
corno América são aspectos divididos do invasor europeu,
representan do aspectos negados da identidade masculina,
deslocados para um es paço "tornado feminino" e
administrados por recurso ao ordenamento de gênero
preexistente.
Suspensa entre a fantasia da conquista e o t error da
subjugação, entre o estupro e a e masculação, a cena, tão
claramente dependente do gênero, representa uma divisão e um
deslocamento de uma crise que é propria mente masculina. A
generificação da América corno simultaneamente nua e passiva e
turbulentamente violenta e canibalística r epresenta uma divisão dentro do
conquistador, negado e d
eslocado para uma cena tor nada feminina.
Como e m muitas cenas imperiais, o medo da subjugação se expressa
mais agudamente no tropo canibal. Nesse rropo familiar, o medo de ser
subjugado pelo desconhecido é projetado sobre os povos colonizados
como s ua d eterminação a devorar o invasor inteiro. O mapa de Haggard e
a cena do descobrime.nto de van d er Straet não são exceções, pois am
bas implicitamente representam a sexualidade feminina como canibal: a
cena canibal, a "boca da c .avema do tesouro".
~
.
Põem elefantes em lugar de cidades 15
•
25. Jonathan Swift, "On Poctry: A Rhapsody.(1733), apud Pcter Barbcr e Christopher Bom!,
ap R
Tatu f rom t ht M ali a 11J Fiaicn a/,out 1\rlaps and T
oom: F heir J \llal.ers (Londres:
BBC Books, 1993), p. zo.
e.A s itua;ão d a t trra - Çjuualogias d o i mptrialilmo
Mais tarde, Graham Greene notou como os geógrafos punham a palavra
"canibais" nos espaços vazios dos mapas coloniais. Com a palavra "canibal",
os cartógrafos tentavam afastar a ameaça do desconhecido nomeando-o, e ao
mesmo tempo confessando um terror de que o desco
nhecido pudesse surgir e devorar o invasor inteiro. Documentos colo r.iais
estão repletos de lembretes da fascinação, do fetiche que os espaços vazios
dos mapas exerciam sobre a vida d e exploradores e escritores. 11as as
ansiedades implosivas sugeridas pelo tropo canibal eram tam
bém afastadas por meio de ritos fantásticos de violência imperial. O mapa
colonial incorpora vividamente as contradições do discurso colonial. A
feitura de mapas pôs-se a s erviço da pilhagem colonial, pois o conhecimento
constituído pelo mapa precedia e também legitimava a conquista do
território. O mapa é uma tecnologia de c onhecimento que professa a captura
da verdade sobre um lugar de forma puramente cien tífica, operando sob a
guisa da exatidão científica e prometendo recupe rar e reproduzir a natureza
exatamente como ela é. Como tal, é também uma tecnologia da posse, que
promete que aqueles com a capacidade d e fazer representações tão perfeitas
também terão direito ao controle territorial.
E, no entanto, as beir:is e espaços vazios dos mapas coloniais são ti
picamente marcados com vivos lembretes das lacunas do conhecimento e,
portanto, do caráter tênue da p osse. As lacunas do conhecimento eu r opeu
aparecem nas margens e vazios desses mapas na forma de cani bais, sereias e
monstros, figuras liminares que falam das relações que ressurgem entre
gênero, raça e imperialismo. O mapa é uma coisa li minar, associada a
e forças peri gosas. Como ícone
limiares e zonas marginais, carregada d
exemplar da "verdade" imperial, o mapa, como a bús sola e o espelho, é o
que Hulmc apropriadamente chama de "tecnologia mágica", um fetiche
poderoso que ajuda os coloniais a negociar o s pe rigos das margens e limiares
num mundo de terríveis ambiguidades16•
Parece crucial, portanto, salientar desde o começo que tornar a terra
feminina é ao mesmo tempo uma poética d a ambivalência e uma poHtica
53
(ouro imperial
27. Montrose, "lhe Work of Gcndcr ... ", p. 4-
54
e.,{
situa rão d a t ara - Cjmtalogias d o i mptrialismo
exprime tanto uma ansiedade sobre o poder gerador quanto uma negação.
Luce lrigaray sugere que a insistência masculina cm marcar " o pro duto
da cópula com seu p róprio nome" d eriva da incerteza da relação d
o homem
com suas origens'8• "O fato de ser privado de um útero", diz ela, é "a
omem, pois sua contribuição para a gestação -
privação mais intolerável do h
sua função na origem da reprodução - é assim afirmada como m enos do que
evidente, como sujeita a dúvida":9_ O
pai não tem prova visível de que o
filho é seu; seu status na gestação não é garantido. O nome, o patrimônio, é
um substituto para a ausente g arantia da pa ternidade; só o nome do pai
marca a criança como sua.
Historicamente, o desejo masculino de uma relação garantida com a
origem - assegurando, como o faz, a propriedade e o poder masculi nos - é
contraditado pela duplicação sexual das origens, pelo visível papel ativo das
mulheres na produção da criança e pela contribuição incerta e passageira dos
homens. Como compensação, os homens dimi nuem a contribuição das
mulheres (o que, nota lrigaray, é difícil de questionar) reduzindo-as a meios
e máquinas - meras portadoras - sem atuação criativa ou poder de nomear. A
insistência no patrimônio marca u ma negação: a de que algo diferente {uma
mulher) seja neces sário para garantir a reprodução do mesmo - o filho com o
mesmo nome do pailº.
A cena sexual da origem encontra uma analogia na cena imperial do
descobrimento. Ao nomear vistosamente "novas" terras, os imperiais as
marcam como suas, garantindo, assim (ao menos eles acreditam), uma relação
privilegiada com a origem - na embaraçosa ausência de outras garantias,
donde a fixação imperial na nomeação, e m atos de "descobri
mento," cenas batismais e r ituais masculinos de nascimento.
28. Luce lriga.ray, Sptculumofthe Othtr Woman, t rad. Gillian C. Cill (lthaca: Comell
Univer sity Press, 1974), P
· 23.
29. Ibidem.
. 74.
30. Idem, op. cit., p
55
•
O ato imperial de descobrimen to pode ser comparado ao ato mascu lino do
batismo. Em ambos os riruais, os homens ocidentais negam pu blicamente a
aruação criativa dos outros (dos colonizados/das mulheres) e se arrogam a força
das origens. O rirual masculino do batismo - com suas pias de água benta, sua
lavagem e seus parteiros - é um substituto do ritual de nascimento, durante o
qual os homens se compensam por seu papel invisível no nascimento da
criança e diminuem a atuação das mulheres. Na cristandade, pelo menos, o
batismo repõe o nascimento como r itual masculino. Durante o batismo, além
disso, a criança recebe um n ome - do pai e não da mãe. O trabalho de parto e a
força criativa
l
l' li
31. Mary Loui<e Pratt, lmpn-ia )'t1: Trat:tl Wr iling a ndTra,uculturalion { Nova York: Rout• lcdgc,
lE
1992), p. 204.
56
cA siluaçdo d a urra - (jmtalogias d o i mptrialismo
O mito da terra virgem é também o mito da terra vazia, envolvendo tanto
umrt despossessão de gênero quanto de raça. Em narrativas pa triarcais,
ser virgem é estar vazia de desejo e de atuação sexual, aguar dando
passivamente o ímpeto da inseminação masculina da história, da
linguagem e da r azã<>3:. Nas narrativas coloniais, a erotização do espaço
"virgem" também faz uma apropriação territorial, pois, se a terra é vir
gem, os povos colonizados não podem rehindicar direitos territoriais
originários, e o patrimônio masculino e branco é assegurado violenta
mente, assim como a inseminação sexual e militar de um vazio interior.
Esse tema duplicado - a atuação negada das mulheres e dos coloniza dos -
é recorrente nos capítulos que se seguem.
A jornada colonial rumo ao interior virgem revela uma contradição, pois
ela é figurada como avançando no espaço geográfico, mas· regre dindo
no tempo histórico, para aquilo que é figurado como uma zona
pré-histórica de diferença racial e de gênero. Testemunha-se aqui uma
característica recorrente do discurso colonial. Como não se supõe que os
povos indígenas estejam espacial.mente l:i - pois as terras estão "va
3z. Para uma bela e detalhada discussão das metiforu im~riais de gênero no cinema, ver
Elia Shohat, "Gender and thc Culturc o f Empirc: Toward a Fcminist Etnography o f thc
Cinema", Quartnly RNiewof Film and Vidro 13, 1·3 (Primaven, 1991), pp. 45•84. P au
uma análise do gênero na fronteira norte-americana, \ -Cr Annettc Koloony, 1ht Lay of
xpnitnu and Hutory in Amtrfran Lifa a nd Ltttm (Chapei Hill:
and: Mttaphors aI E
tht L
Univcrsity ofNorth Carolina Prcss, •9i S) , e 7h, Land B
efart Her: Fanl/JIJ a nd E
xpnim<t
o/ tht /lmerúan Frorúiers. 1630-186o ( Cha~l H ill: Urüversity oi Nonh Carolina Prcss,
1984). Ver também Henry Nash Smit.h, Virgin L mtri,an Wt11 as Symbol and
and: 7ht A
Myth (Cambridge: Han-ard Univcrsity P.-.:ss, 1971).
57
Couro impuial
zias" - , eles são simbolicamente deslocados para o que chamo de tspafo
anacrónico, u m tropo q ue alcançou (como exploro em mais detalhe abai
xo) plena autoridade administrativa como tecnologia de vigilância na era
vitoriana tardia. Se gundo esse tropo, povos colonizados - como as
mulheres da classe trabalhadora na metrôpole - não habitam a história
propriamente dita, mas existem num tempo permanentemente anterior no
espaço geográfico do império moderno como humanos anacrônicos,
atávicos, irraciona is, destituídos de a tuação humana - a encarnação viva
do arcaico "p rimitivo".
Um dilema fundamental confrontava os coloniais, porém, pois as
terras "vazias" eram visivelment e povoadas, e traços da antiguidade des
ses povos estavam à mão na forma de ruínas, antigos po voados, crânios
e fósseis. r\í está pelo m
enos uma razão para a obsessão vitoriana com
sobrevivências e traços, ruínas é. esqueletos - lembretes alegóricos do
fracasso de uma narrativa única das origens. Nos capítulos 4 , 5 e 1 0, ex
ploro mais detalhadamente esses dilemas coloniais.
Para as mulheres, o mito da terra virgem apresenta dilemas específi
cos, com importantes diferenças p ara as mulheres coloniais e para as
colonizadas, como argumento nos capítulos 9 e 1 0. As mulheres são a
terra que está para ser descoberta, penetrada, nomeada, inseminada e,
acima de tudo, possuída. Simbolicamente reduzidas, aos olhos dos ho
mens, ao espaço em que se travam as disputas masculinas, as mulheres
experimentam dificuldades p articulares ao reivindicar genealogias alter
nativas e narrativas alternativas de origem e nomeação. Simbolicamente
ligadas à terra, as mulheres são r elegadas a um domínio : ilém da história
e, assim, mantêm uma relação panicularmente vexatória com as narrati
vas de mudança histórica e d e e feito político. E, o q ue é ainda mais
importante, as mulheres são figuradas como propriedade pertencente aos
homens e, portanto, estão f ora, por d efinição, das disputas masculi nas
sobre terra, dinheiro e poder político.
É importante salientar, desde o ponto de partida, contudo, que a
questão do gênero no imperialismo assumiu formas muito diferentes em
partes diferentes do mundo. A Índia, por exemplo, nunca foi vista como
terra virgem, e a iconografia do harém não fazia parte da erótica
·8 )
1
J
l
l 1
cA situa;do d a U
rra - q,n,alogias d o i mptrialismo
colonial do Sul da África. As mulheres do Norte da África, do Oriente Médio
e da Ásia eram com frequência capturadas pela iconografia do véu, enquanto
as demais mulheres africanas estavam sujeitas à missão civilizadora do
algodão e do sabão. Em out ras palavras, as mulheres ára
bes deviam ser "civilizadas" sendo despidas (tirando-se-lhes o véu), en quanto
as subsaarianas deviam ser "civilizadas" sendo vestidas (em limpo e branco
algodão britânico). Essas distinções suntuárias eram sintomá ticas de diferenças
críticas de modos legislativos, econômicos e políticos cm que o racismo
mercantil imperial era imposto em diferentes partes do mundo.
DOMESTICIDADE E RACISMO
DA .MERCADORI A
Em 1899, ano em que estourou a guerra anglo-bôer na África do Sul, uma
propaganda do Sabonete Pears n o McC/ure's M
agazine ( Figura 1.2)
anunciava:
o primeiro passo para tomar mais leve o FARDO DO HOMEM BRANCO é ensi nar as virtudes
da limpeza. o SABONETE PEARS é um potente fator no abrilhantamento dos cantos escuros
da terra à medida que a civilização avan ça, enquanto para as mais cultivadas n ações da
terra ele est:i no mais alto posto - é o sabonete ideal de toaletell_
59
Couro imptrial
. ... ; . . . .. .._,.;.·_._;. -·_, ·--~'-· .. . '.• .. • .. n..r ~ ~ ......... "'PW--c .• ,:•::>. '
.· Thc;-Whitc·:,Man·s-Bl\ \"UCn' ",;;•
•• •~h ,~~• ,k -.w,90;,., dt~ ·,. _ •
A vigia é tanto janela como espelho. A janela, ícone da vigilância imperial
e a ideia iluminista do conhecimento como penetração, se abre para cenas
públicas de conversão e conômica. Uma cena retrata um afri cano
ajo~lhado recebendo, ag radecido, o sabonete Pears, c omo se ajoe lharia
diante de um fetiche religioso. O espelho, emblema da autocons ciência
iluminista, reflete a imagem d a higiene imperial branca e masculina. A
higiene _do méstica, comv sugere o anúncio, p urifica e pre
60
a urra - <Jmfalogias d o imptrialism,;
cA" situação d
serva o corpo masculino branco da contaminação na zona limiar do
império. Ao mesmo tempo, a mercadoria doméstica garante o poder
masculino branco, a genuflexão dos africanos e o domínio do mundo. Na
parede, uma lâmpada elétrica significa a racionalidade científica e o
avanço espiritual. Dessa forma, a mercadoria doméstica dá a lição do
progresso imperial e da civilização capitalista: para o homem branco, a
civilização avança e se abrilhanta através de seus quatro amados fetiches -
o sabonete, o espelho, a luz e a roupa branca. Como detalho mais adiante,
esses fetiches sãu recorrentes através do K itsch m
ercantil vito
riano tardio e na cultura popular d a época.
A primeira observação sobre o anúncio do Pears é que ele figura o
imperialismo como passando a existir a través da domtsticidadt. Ao mes
mo tempo, a domesticidade imperial é uma domesticidade sem mu lheres.
O fetiche da mercadoria, como forma central do iluminismo industrial,
revela o que o liberalismo gostaria de e squecer: o doméstico é político, o
político tem gênero. O que não p oderia ser admitido no discurso
racionalista masculino (o valor econômico do trabalho domés tico das
mulheres) é negado e projetado para o domínio do "primitivo" e para a
zona do império. Ao mesmo tempo, o valor econômico da~ culturas
colonizadas é domesticado e projetado p ara o domínio do "pré histórico".
Um traço característico da classe média vitoriana era sua preocu pação
peculiarmentc intensa com fronteiras rígidas. Na ficção imperial e no
Kitsch m ercantil, objetos de fronteira e cenas liminares se repetem
ritualmente. À medida que os coloniais se moviam de um lado para outro
através dos limiares de seu mundo conhecido, a crise e a confusão de
limites eram mantidas à d istância e contidas por fetiches, rituais de
absolvição e cenas liminares. Sabonete e rituais de ümpeza passaram a ser
centrais para a demarcação dos limites do corpo e para o policiamen to das
hierarquias sociais. A limpeza e os rituais de fronteiras fazem parte da
maioria das culturas; o que caracterizava os rituais vitorianos de ümpeza,
porém, era sua relação peculiarmente intensa com o dinheiro.
Estou duplamente interessada no anúncio do sabonete Pears porque
ele registra uma mudança que vejo como tendo tido lugar na cultura do
61
ro i mptrial
Cou
ys . . . , p . 1 34.
34. Pr:m, lmpmal E
35. Idem, op. cit., p. 15.
· 36. Idem, op. cit., p. 36.
62
37. Jean e John L. Com:iroff, "Homem3dc Hcgcmony: l\lodcrnicy, Domesticity, and Colo
ith D
oialism in South Africa", in Karcn Hansen (org.), Afriran Encauntm w ommiâty
(Ncw Brunswick: Rutgcis Univcrsity Prcss, 1992), p. 39.
38. Idem, op. cit., p. 3.
C1111ro imptrial
1
rém, o verbo "domesticar" também carregava como um de seus signi
ficados a ação de "civilizar"39 • Nas colônias (como exploro melhor no
capítulo 6), o posto da missão se tornou uma instituição liminar p ara
transformar a domesticidade enraizada no gênero e n os papéis de clas
se europeus numa domesticidade para controlar um povo colonizado.
Através dos rituais da domesticidade, cada ,·ez mais global e muitas
vezes violenta, animais, mulheres e pessoas colonizadas eram retiradas
de seu estado de "selvageria" putativamente ~natural", ainda que, iro
nicamente, pouco "razoável," e eram induzidas, através da narrativa ·1
doméstica do progresso, a uma relação hierárquica para com os homens
brancos.
1
Assim, a ideia histórica da domesticidade mantém uma relação am
1
l
bivalente com a ideia imperial de natureza, pois a "domesticação" se im
põe energicamente à natureza para produzir uma esfera social que é
considerada natural e universal em primeiro lugar. Em outras palavras,
nas colônias, a cultura e uropeia (a missão civilizadora) se tornou ironica
mente necessária para reproduzir a n atureza (as divisões "naturais" do
trabalho doméstico), anomalia que demandou muita energia social - e
muito trabalho doméstico - para ser ocultada. A ideia de progresso - a
"natureza" se aperfeiçoando ao l ongo do tempo - foi fundamental para
administrar essa anomalia.
O culto da domesticidade, argumento, se tornou central para a iden
tidade imperial britâ~i~a, por contraditória e conflituosa que esta fosse, e
surgiu uma dialética intrincada. O imperialismo difundiu o culto vito
riano da domesticidade e a separação histórica entre o p rivado e o p ú
blico, que tomou forma em torno do c olonialismo e d a ideia de raça. Ao
mesmo tempo, o colonialismo se formou em torno da invenção vitoria na
da domesticidade e da ideia do l arº. (Figs. 1.3, 1.4).
. ......
,.
Figura r. 4
- A
idmtidadt nacional óritãnica amnnt a forma ímptrial.
Couro i mptrial
TEMPO PANÓPTICO
66
J
za, era agora aplicado à história cultural. O
tempo se t ornou uma geo grafia do poder
social, um mapa a partir do qual ler uma
alegoria gl obal da diferença social "natural".
E, o que é mais importante, a história assu
miu o caráter de espetáculo.
Nas últimas décadas do século XIX, o tempo
panóptico se autonomi zou. Por tempo
panóptico, refiro-me à im agem da história
global con sumida - com um olhar - num
único espetáculo a partir de um ponto d e
invisibilidade privilegiada. No sécul o XVII,
!
Bossuet, no Discours s ur l'histoire
tmiverselle, a rgumentava que qualquer
tentativa de produzir u ma história universal
dependia de ser capaz de figurar a "ordem
dos tempos" num olhar ( "comme d 'un c oup
d'oei/")4 '. Para atingir os padrões
"científicos" estabelecidos pelos
cA situa(do da terra - (jmt a logias do inrptrialism
o
historiadores da natureza e pelos empi
ricistas do século XVIII, era necessário u m
blica - isto é, o tempo da crônica - paradigma visual para exibir o progresso
secularizando o tempo e pondo-o à evolucionário como espetáculo mensurável.
disposição do projeto empírico - isto é, o A figura exem plar que surgiu foi a
tempo cronológico•'. Para fazê-lo, ele nis ta Árvore da Família do Homem.
evolucio
observa, " e1pacializaram o tempo". "O A natureza da Renascença - a natureza
paradigma da evolução se apoiava numa divina - era entendida como cosmológica,
concepção do tempo que era não só organizada d e acordo com a vontade de
secularizada e naturalizada, mas também Deus numa irrevogável cadeia do ser. Em
plenamente espacializada". O eLxo do tempo contraste, o evolucionista social Herbert
foi projetado sobre o cLxo do espaço e a Spencer via a evolução não c omo uma
história se tornou global. Com o cadeia do ser, mas como uma árvore. Como
darwinismo social, o projeto taxonômico, diz Fabian: "A árvore sempre foi uma das
aplicado primeiro à nature formas mais simples de construir esquemas
classificatórios fundados na subsunção e na Ant brnpology A 'lahs I N bjut (Nov:i York: Columbia
O
Univcrsity Pn:ss, 1983), p. 15.
hierarquia"•3 • A árvore oferecia uma imagem
42. Jacques Benignc Bossuet, D
isco uN
s ur l'histoirt
antiga de uma genealo uni11aullt, apud idem, op. cit., p. 4. 43. Idem, op. cit.,
p. 96.
gia natural do poder. Os evolucionistas s ociais, porém, tomaram a árvo re
divina e cosmológica e a secularizaram, tornando-a uma imagem de
comutação que med iava entre a natureza e a cultura como imagem na tural
do progresso evolucionário humano.
"A Árvore Nlorfológica das Raças H umanas" de Mantegazza, por
exemplo, mostra vividarnente corno a imagem da árvore foi posta à dis
posição dos cientistas raciais (Figura 1 .5). Na imagem que l Vlantegazza
tinha da história global, s urgem t rês princípios. Primeiro, mapeadas
contra a árvore, as culturas descontinuas do mundo parecem ser coman
dadas dentro de urna única narrativa europeia originária. Segundo, a
história humana pode ser imaginada como naturalmente teológica, um
processo orgânico de crescimento para cima, com o europeu como apo geu
do progresso. Terceiro, incômodas descontinuidades históricas podem ser
ordenadas, submetidas e subordinadas a uma estrutura hierárquica de
tempo ramificado - o progresso diferencial das raças mapeado contra os
ramos evidentes da árvore. Na árvore do tempo, a hierarquia racial e o
progresso histórico se tornaram os f aits a ((omplis da n atureza .
. . .
. .
.. . . . " ..
. ' -.. .
. . -.
. ,. ' . .
,'
' ., ·.
H• Dolf Sternberger, ~eguindo \Valter Benjamin, viu no popular fenõmeno vitorilno do ci
clorama uma popularização da teoria de Darwin como um "ciclorama da evolução". Na
imagem panorâmica, a história a p:irece como uma "progre1sào natural" do macaco ao
homem, de modo que "o olho e o olho da mente podem deslizar, p:ir.,. cima e para bai:<o,
de um lado p an o outro, pelas figuras que 'evoluem~. Apud c.-.:cclente Ü YTO de Susan
Buck-Morss, 7ht Di a/afia ofSuing: Wafttr B ,njamin and thr llr<adn P ro j((t ( Cambridge:
lhe MIT Prcss, 1990), p. 67.
inventando a Fam(/ia d o H
om(m. r..,_ . __
--·
~ --·-·
- T
Figura 1.7 empo panóptuo: o progr(sso consumido n um golp( d ( vista.
1
j
vi
si t uafdo
da tara
-
qm( (z/ogias d o i mperialismo
Desse modo, a figura da Família do Homem revela uma contradi ção
persistente. O progresso histórico é naturalizado como uma fa mília que
evolui, ao passo que as mulheres, na qualidade de atores históricos, são
negadas e relegadas ao reino da natureza. A história é assim figurada como
familiar, mas a família como instituição é vista como além da história. Os
capítulos que se seguem (em particular o capítulo u) cuidam
fundamentalmente das implicações históricas desse paradoxo.
ESPAÇO ANACRÔNICO
Couro imptrial
TllfE'S WAXWORKS.
'IN1 ,nr ~•• •• ,. ,., "º•"'"•• ., .. , ·••· t«u._.,.,....,....,. ~ .,..~._..., --~··
Figur.11.8 - Espa;o a natr6ni<o: A
i m1tnçao d o a rcaico .
72
r.A situarão da tara - qtn,alogias d o i mptriaf ism
o
torno à Europa é vista como um ensaio da lógica evolucionista do pro gresso
histórico para frente e para o alto a té o apogeu do Iluminismo na metrópole
europeia. A diferença geográfica através do espaça é figurada como uma
diferença histórica através d o tempo. O ideólogo J .-lVI. Dege rando captou essa
noção concisamente: "O viajan te f ilosófico, velejando até os confins da terra, está
de fato viajando no tempo; está explorando o passado"46 . A ameaçadora e
resistente heterogeneidade das colônias era contida e disciplinada não porque
social ou geogrnficamente dife rente da Europa e , portanto, igualme nte v:ilida,
mas porque temporal
mente diferente e, portanto, irrevogavelmente superada pela história. H egel, por
exemplo, talvez o proponente filosófico m:iis influente clcssa noção, figurava a
África como pertencen do não simplc!smente a um espaço geográfico diferente,
mas a uma zona temporal diferente, sobrevivendo anacronicamente dentro d o
tempo da história. A África, diz Hegel, "não é parte histórica do mundo [ ... ] não
tem movimento ou desenvolvimento a exibir"•7 • A África veio a s er vista como
paradigma colonial do espaço anacrô nico, uma terra perpetuamente fora do tempo
na modernidade, à deriva e historicamente abandonada. A África era uma
terra-fetiche, habitada por canibais, dervixes e curandeiros, aba.,- d onada na
pré-história exatamente antes q ue o Weltgeisl ( insidioso agente da r azão) se
manifestasse na história.
Na metrópole industrial, a evocação do espaço anacrônico (a inven ção do
arcaico) se tornou central para o discurso da ciência racial e da vigilância urbana
das mulheres e da classe trabalhadora. Os cientistas raciais e, mais t arde, os
eugenistas viam as mulheres como o inerente mente atávico arquivo vivo do
arcaico primitivo.
Para alcançar os padrões empíricos dos cientistas naturais era ne ces sário inventar
estigmas visíveis que representassem - como espetáculo mercantil - o
anacronismo histórico das classes degeneradas. Como observou Sander G ilman,
uma resposta foi encontrada no corpo da mu
Couro i mpuial
74
1
, 1
j
1
l
1
ser disciplinado
e subordinado
numa narrativa
linear do
progresso he
terossexual
reprodutivo - a
tarefa vaginal
de gerar um
filho com o
mesmo nome
do pai.
Como
argumento nos
capítulos 2 , 3 e
4, o espaço
doméstico
vitoriano
também foi
submetido à
figura
disciplinar do
espaço
anacrônico. As
mulheres que
transgrediam as
fronteiras
vitorianas entre
o público e o
privado, entre o
trabalho e o
lazer, entre o
trabalho pago e
o não pago,
tornavam-se cada vez mais estigmatizadas descobre
corno espécimes de regressão racial. T ais
mulheres, dizia-se, não habitavam
propriamente a história, mas eram e Luce l rigaray da patologização freudiana da
crítica d
sexualidade feminina e m Spt ru l um o f t ht O
ther Woman,
protótipos de humanos anacrônicos:
pp. 13-139.
infantis, irracionais, re
5r. Friedrich Engels, 1lie Ccndition o f the lf &rking C
las;
gressivas e atávicas, existindo num tempo in England, t rad. \V. O. H endcrson e \V. H. Chaloner
permanentemente anterior dentro da (Stanford: Stanford University Prcss, r958 [1844 ]), p. 4.
51. I dem, op. cit., p. 8.
modernidade. As serventes domésticas eram
frequentemente descritas na iconografia da
degeneração como "pragas", "raças negras",
que a família da humanidade está desarranjada por toda parte. M a is que a
"família de uma humanidade 'única e indivisível"' a que apelou no pre fácio,
Engels descobriu "a decadência u niversal da vida familiar entre o,
trabalhadores"H. De f ato, a tragédia da universal "Familia do Homem" da
classe trabalhadora era que "a vida familiar[ ... ] é quase impossível"54•
ngels, há uma causa para a confusão: "É inevitá vel
Ademais, na visão de E
que, se uma mulher casada trabalha numa fábrica, a vida familiar é
inevitavelmente destruída"55•
O que me interessa aqui é que Engels, ao lam,:ar sua "acusação" aos
ingleses, figura as crises familiares que assolam os pobres urbanos através
da iconografia da raça e da degeneração. Vivendo cm cortiços que pouco
mais eram do que ~ermos não planejados", a classe trabalhadora - ele sente
- se tornou degradada e degenerada: "Uma raça fisicamente de
generada, roubada de toda a humanidade, degradada, moral e intelec
tualmente reduzida à besrialidade"56 ora é u
• A classe trabalhad ma "raça
inteiramente à parte", de tal forma que ela e a burguesia são agora "duas
nações radicalmente dissemelhantes, tão distintas quanto a diferença de
raça poderia fazê-las"S7_
Engels imagina as primeiras grandes crises do industrialismo através dos
dois tropos da degeneração e da Família do Homem - u m tropo extraído do
reino da domesticidade e o outro, do reino do império. Tes temunha-se aqui
a figura de um d uplo deslocamento: a história global é imaginada como
um~ familia universal (uma figura do espaço doméstico p rivado), enquanto
as crises domésticas são imaginadas em termos ra ciais (a figura pública do
império). D epois dos anos 1850, sugiro, as prin cipais contradições dentro
da modernidade industrial - entre privado e público, domesticidade e
indústria, trabalho e lazer, trabalho p ago e não pago, metrópole e império -
foram sistematicamente mediadas pores
79
Couro imptr i al
orgânica se tornou inestimável em sua capacidade de dar o álibi da na
intervenç ão estatal e imperial.
tureza à
Desde 1850, a imagem da familia natural e patriarcal, em aliança com
o darwinismo social pseudocientífico, veio a constituir o tropo organiza
dor para comandar o desconcertante conjunto de culturas numa única
narrativa global ordenada e administrada pelos europeus. No processo, a
ideia de natureza divina foi superada pela ideia da natureza imperial que
garantia dali em diante que a quintessência "univer sal" do i ndividualis mo
iluminista pertencia apenas aus proprietários (homens) de ascen dência
europeia.
DEGENERAÇ ÃO
1
Um discurso triangular
Desde o início, a ideia de progresso que iluminou o século XIX foi acom
panhada por seu lado sombrio. Imaginar a degeneração em que a huma
nidade poderia cair fazia parte n ecessária de imaginar a exaltação a que
ela poderia aspirar. As classes degeneradas, definidas como desvios do
tipo humano normal, eram tão necessárias para a autodefinição da e las- , se média
quanto a ideia de degener ação era para a ideia de progresso, pois a distância
percorrida por algumas partes da humanidade ao longo do caminho do progresso só
podia ser medida pela distância em que outras estavam atrasadass9• A normalidade
surgia, assim, como produto do d esvio, e a invenção barroca dos conjuntos de tipos
degenerados su blinhava os limites do normal.
A poética da degeneração era uma poética da crise social. Nas últi mas
décadas do século, os planejadores sociais vitorianos se basearam no
danvinismo social e na ideia de degeneração para figurar as crises sociais
s classes dcgencr.adas nio eram percebidas como sinónimos das "respeit:iveis" classes
59. A
trabalhadoras, que se tinham dedicado aos beneficio, da labuta sóbria e diligente duC1n· te
o final dos anos 1 860 e início dos 1S;o. Como diz claramente
o b Oôm d
Henry M ayhcw: "Considera.rei o conjunto dos pobres metropolitanos
cm três fases separadas, aqueles que trabalharão, os que não podem
trabalhar e os que nlo querem trabalhar•. Henry Mayhew, "L:,bour : and
the Poor", Chro n ide, 19 out., 1849.
80