Anne Mcclintock - Couro Imperial - Raça, Gênero e Sexualidade No Embate Colonial-Editora Da Unicamp (2010)

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cÁnne uVlcClintock 

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]   

Couro ​imperial   
RAÇA, ​GÊNERO ​E ​SEXUALIDADE   
NO ​EMBATE ​COLON ​I​AL   

TRADUÇÃO   
Plinio Dentzien   

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le ​o ​I ​T ​o ​" • ​l'N:NMW​-​1:MJ  
FICHA 

CATALOCR.ÁflCA ​ELABORADA ​PELO   


​ 18llOTECAS ​DA ​USICAMP   
SISTtMA ​DE 8
DIRETORlA ​DE TRATAME:-:TO ​DA ​ISFOR~AÇÂO   
M131c McClincock, 19s​•-
Couro ​impcri1l: ​,._.. ​gênero ​e scxw.lid.u!e ​no ​embate c​ oloni.t ​/ ​Anne McClincod:; ​tuduçio​: ​Pl​í​nio D
​ cnnicn. ​- ​Campin:u. 
sr: ​Edi,or1d1 Unicamp. 1010.   

1. ​Comportimenioscxu.t ​- ​Grl​·​Breunha ​- Colônias - Hinóri.L ​1. ​Rclaçoo homem​ ​mulher ​- ​Grl,Br<canha ​- ​Hinória ​- Séc. 
xrx. ​J. ​Plj>CI s​ cxu.t ​- ​Gr.i-Bre11nlu ​- ​Colô, ​nia​s ​- História_ 4. Gr.i-Breunha ​- ​Colônias ​- ​Rclaçôcs ​u,i,is. ​I.Titulo.   

CDD ​J0l.41   
ISBN ​978-Ss-168-0893-s ​301.4s1   

lndiccs ​p:an ​catilogo sistemitico​:   

,​. ​Ü>mp<>mmcJ>to ​..,rua] ​- ​Gri,Breunlu ​- ​Colônias - Hisróri• ​101​.​41 ​1. Relações ​homcm-mulher-Grl-Breunlu- ​l-lisrória 
-Séc. ​XIX ​101.4< ​3. ​Papel ​scxu,1- ​Cri-Bretanha ​- ​Colônias ​- ​Históri.l ​J0H< ​4. ​Gri-Brccanlu- ​Colónias - ​Rcb​çoo ​raciais 
301.4s1   

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Jnc.   
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'· ​I  
​ ​:f'eminismos   
géneros &

A ​coleção ​Gêneros ​& ​Fe​ m​ini​s​m​os foi ​criada ​pela ​equipe ​de pe​s​quisa 
dores do Pagu-Núcleo de Estudos ​de ​Gênero da Unicamp ​e ​rc​ ​,:​l!be ​o 
apoio da ​Editora ​da ​Unicamp. ​Vo​lt​ada para ​a divul​gação ​de obra~ im 
portantes ​da ​hi​s​tória ​do ​feminismo e ​da ​área ​de ​estudos ​de ​gênc:​·​v, ​no 
pa​í​s e ​n​o ​exterio​r, ​pr​e​t​e​nd​e s​ e​r u​ ma fonte de referência ​import​ar,~​~ ​para 
os pesquisadores dessa área ​e​m nos​so ​país.  
​ b e​ Valerie   
Para ~

1 ​.   
,:  

. ~
Agradecimentos   

Ao ​ESC​RE​VER ​este livro, ​acumulei várias dívidas. O!Jero ​pr​imeiro ​agra 


decer ​aos ​meu​s ​amigos por ​seu ​apoio ​in​co​ndicional ​e ​pela​s ​inspir​ações​. 
Eles ​i.ão ​mui​to​s ​para ​serem ​no​ m​eado​s aqui, ​mas ​sabem ​quem ​são, e​  
agradeço a ​tod​os.   
M ​ui​tas ​pe​ssoas ​foram ​generosas ​ao dedicarem tempo ​para ​ler, ​edi​tar 
ou ​di​scu​tir ​partes deste manuscrito ​de ​vár​ia​s ​maneiras: Kwame ​Antho 
ny ​Appiah, ​N​ancy ​Arm​s​trong, ​Adam Ashforth, ​Homi ​Bhabha, John 
Bird​, ​Elleke Boehmer, Jerry ​Br​oug​hton​, ​Carol Boyce-Davies, Neville 
Choonoo, ​Clar​a ​Connolly, ​Laura ​Chrisman, David ​Damrosch​, ​Jean 
Fran​co, ​Henry ​Lewis ​Gates, ​Liz ​Gunncr​, ​Catherine Hall​, ​Stuart ​Hall​, 
J​anet ​Hart, ​Kathlcen Hill, Clifford ​Hill, ​Rachel ​Holm​es​, ​O!Jadri ​Is ​mail, 
Cora ​Kaplan, David Ka​sta​n, ​Dominic La​C​apra, ​Neil ​Lazarus, David 
Lloyd, Melinda Mash, Aamir Mufti, ​Ben​i​ta ​Parry, Ken ​Parker, ​Mary 
Louisc Pratt, ​Bruce Rob​b​ins, George Rob​e​rtson, ​Ellen ​R​ooncy, ​Trish 
Rosen, ​Andrew ​Ross, Lynne Segai, Elia ​Shohat, George Stade, ​Bob 
Sta​m, ​Michael Sprinker, Michael ​Taussig​, ​R​obert ​von ​Hal​berg, ​Penny 
von ​Es​c​hen, ​Cherryl ​Walker, ​Cornel v​ Ve​s​t e ​Patrick Williams. 
Agradeço a ​t​odos.   
Estou ​profundamente ​agradecida a todos ​os ​meus ​amigos ​em ​Co 
lumbia, especialmente ​a ​Marccllu​s ​Blount, ​Ann ​Douglas,J​ea​n Howard,  
Priscilla vVald e a Gauri Viswanathan, cujas risadas, solidariedade e vibra 
ção intelectual foram mais importantes ​do ​que posso expressar. ​Um 
agradecimento ​especial ​a Edward Said, ​por ​sua ​mistura inspiradora de 
engajamento ​acadêmico ​e político, e também a Zaineb Istrabadi, por sua 
amizade e apoio. Estou também profundamente grata a l\llichacl Seidel, 
por ​seu apoio e ​encorajamento, ​e um obrigada muito especial a Joy 
Hayton,   
por sua gentileza, sanidade e pela ajuda incansável ao longo dos anos . 
.l\lleus alunos ​em ​Columbia, muitos dos quais agora são bons amigos, 
tornaram o ensino uma ​CÃ-periência ​inspiradora e inesquecível. Não exa 
gero o valor ​de ​sua ​capacidade ​intelectual e de seu entusiasmo. ​Um ​afe 
tuoso apreço também para Bill Dellinger, Evelyn Garcia, ​Nigel ​Gibson e 
Jon ​Roth, ​por ​sua ajuda e bom humor, ao ​me ​socorrerem administra 
tivamente ​em ​incontáveis ocasiões.   
Durante ​os ​anos magros, quando​· ​Columbia era um lugar pouco hos 
pitaleiro para mulheres, o Instituto ​de ​Pesquisa sobre ​Mulher ​e Gênero 
apoiou ​uma ​comunidade muito amiga e viva. Tenho uma dívida especial 
com ​Miranda ​Pollard e ​Martha ​Howell, ​por ​sua sabedoria e tenacidade 
en1 ​criarem ​um ​fórum indispensável para o envolvimento e o apoio ​in 
telectuais. George Bond e Mareia ​Wright, ​no Instituto de Estudos 
Africanos, também criaram ​uma ​comunidade valiosa e fico imensamen te 
grata a eles ​por ​seu apoio ao longo dos anos .   
.l\llinha editora, Cecília Cancellaro, foi uma companheira de trabalho 
excelente. Sua inteligência​.​~~m ​jaça e seu entusiasmo são enormemente 
apreciados. Stewart Cauley e ​Matthew ​DeBord, ​lVIaura ​Burnett e Clau dia 
Gorelick ​pacientemente encaminharam um manuscrito errático até os seus 
estágios finais e não se queixaram de uma série de mudanças de última 
hora. ​Minha ​editora de texto, Connie Oehring, heroicamente organizou 
uma ​horda de notas desregradas e ​as ​tornou dóceis, e o traba lho 
meticuloso de Jerry Broughton com a leitura de provas me salvou ​num 
momento ​particularmente crítico. Sua amizade e a de Rachel ​Hol ​mes me 
apoiaram quando eu mais precisava. O projeto inovador de Les lic ​Sharpe 
e ​Hermann ​Feldhaus acrescentou uma forte dimensão gráfica ao livro, e a 
capa provocativa de ​Tom ​Zummer ​ofereceu um resumo de ​todo ​o meu 
projeto.   

Este  livro  não  poderia  ter  ​sido  ​concluído  ​se​m  ​a  valiosa  contribuição 
do  ​SSRC-MacArthu​r  Internat​ional  ​Peace  and  Security  Program.  Estou 
enormemente  grata  ao  ​estímulo,  à ​ ​bol​sa  ​e  ​à  ​com​unid​ade  ​intelectual  aos 
quais tive acesso através ​d​e s​ e​u ​generoso ​apoi​o ​finance​iro.   
Todos ​no ​Institute o ​ f ​Commonwealth Studies tornaram minha es tada ​em 
Londres inesquecível e ​produtiva. ​Um ​agradeci​ment​o espec​ial a​ Shula 
Marks, ​por ​sua ​insp​iraçã​o ​intelectual ​e ​generosidade. ​Encontrei ​poucas 
pe​ssoas ​com t​ al ​capa​c​idade ​de ​juntar uma ​per​cepçã​o ​aguda com um​a 
generosidade ​e ​car​inh​o ​pessoal ​t​ão ​grandes. l\1eu agrade​c​imento 
carinhoso ​também ​para Joan R ​ ofe, ​por ​seu bom humor ​e ​bondade; ​e 
também para ​David ​Blake, ​Irene ​Ammah ​e ​Rowena Kochanowska por 
se​u ​apoio. ​Tenho ​tamb​ém ​uma dívida ​com ​o grupo de leitura sobre nacio 
nalismo e ​gên​ero ​do ​ICS, cujas ​discu​ss​ões e ​id​eias ​me ​ajudaram ​muito.   
Um  ​agradecimento  especial  ao  A ​ f  ​rican  ​National  ​Co​ngr​ess  ​por  ​sua 
gentileza  ​em  ​tornar  disponível  ​o  logo  ​da  ​Liga  das  l\llulheres  ​do  ​CNA​. 
Robert  ​Opie  ​foi  muito  generoso  ​ao  ​me  dar  ​acesso  ​à  ​sua  ​maravilhosa 
coleção  ​de  ​propaganda  ​no  ​Museum  o ​ f  ​Advcrtising  ​and  ​Packaging,  ​em 
Gloucestcr;  estou  muito  grata  a  d ​ e  ​pela  gentileza.  ​E​s​tou  tamb​ém  ​muito 
grata ​a Ronald l\1ilne e ​ao​ ​Master e Fellows do ​Trinity ​College, ​Cam  
bridge, ​por ​me ​permitirem ​o acess​o ​ao ​incrível ​arquivo de ​Arthur ​Munby. 
Agradeço também a John Botia e a ​Gary ​Collins por me facil​i​tarem ​o 
acesso ​aos anúncios d ​ e ​A. e ​F. ​Pears ​Ltd., dos Unilever Historical Archi 
ves. Gostaria ​também de ​re​con​hecer ​a ajuda indispensável das bibliote 
cárias e ​da ​equipe ​fotográfica da ​Briti​sh ​Library ​e ​do ​British l​ V​Iu​seum; 
agradeço ​por ​sua ​pa​c​i​ênc​ia, ​engenho ​e ​profici​ência. ​O​s ​bibliotecários ​da 
Biblioteca da University o ​ f ​London, ​do Public ​Record Office ​e ​da ​Co 
lumbia ​Univ​ersity ​deram informações e ajuda valiosas. Sou também 
grata a ​Shuter ​e ​Shooter, National e Pers, ​Die B ​ urger ​e ​The ​Gua​rd​ian, 
por ​sua ​ajuda ​co​m ​as ​fotografias. Qµero finalmente manifestar meus mais 
sinceros ​agradecimentos a Gerald Ackerman, por seus esforços ​e ​por sua 
generosidade ​cm ​tornar ​di​sponível a ​imagem de capa, ​e ​tamb​ém ​a ​D​e 
borah ​L​orcnze​n, ​do ​Museu de Arte de ​Indi​anápolis.   
Trechos deste livro apareceram ​ant​es ​sob v:irias ​forma​s ​na Série Escri 
tores ​In​gleses ​e Es​c​ritores Europeus ​(Scribne​r​s); ​e​m ​Patrick Williams ​e  
Laura Chrisman (orgs.), ​Colonial Discourse/Post-Cdonial ​7ht!ory ​(Lon 
dres: Harvester Wheatshcaf, 1​ 993); ​em Francis Baker, Peter ​Hulme e​  
Margarct lverson (orgs.), ​Essays ​in C ​ olonial ​and P​ ost-Colonial 7heory 
(Manchester: ​Manchester University P​r​ess, 1​ 993); ​cm George Robert ​son 
et ​ai. ​(orgs.), ​Travtler's T ​ ales ​(Londres: ​R​outledge, 1​ 994); ​em ​Femi n​ ist 
Review, 4 ​ 4 ​(Verão, 1​ 993); ​em N ​ ew F ​ ormations ​(Primavera, 1​ 993); ​em 
Transition, 5 ​ 4, 1​ 991; ​cm ​Social T ​ txt, ​25, ​26, 1990; ​em ​Dominic ​LaCapra 
(org.), ​Ihe Bounds ​of ​Rat'( (​ Ithaca: Comell Unversity Press, 1​ 991); ​cm 
Cherryl Walker (org.), ​Women a​ nd G ​ ender i​ n ​Southern ​A/rica (​ Cape 
Town: David Philip, 1​ 990); ​em ​Reginald Gibbons (org.), ​Writers From 
South A ​ /rica. ​Culture, ​Politics ​and L ​ iterary 7heory ​in ​South A/rica Today 
(Chicago: Northwestem ​Unive​r​sity ​Press, 1​ 989); ​em ​Criticai lnquiry, 
março, 1​ 987, ​em ​Robert von Halberg (org.), ​Poetry ​and ​Politics (​ Chicago: 
University o ​ f ​Chicago Press, 1​ 988); ​em ​Social Text, P ​ rimavera, 1​ 992; ​em 
South Atlantic Quarter!y,​ I​ nver​n​o, 1​ 988, ​vol. 8​ 7 ​(​1​). ​Agradeço a ​t​odos ​os 
editores e a todas ​as ​equipes envolvidas. Sou part​i​cu​l​armente grata a 
Henry ​Finder ​e ​a ​Scott ~​I​alcomson, não ​apenas ​por ​suas ​notáveis habi 
lidades na editoração, mas ​t​ambém ​por ​sua valiosa amizade. ​Calorosos 
agradecimentos ​t​ambém ao Social ​T​ext Collective.   
Ao  ​completar  este  livro,  ​t​en​h​o  uma  dívida  de  ​gratidão  ​especial  com 
Valerie  Phillips,  curadora  e  amiga.  ​Fi​nalmente,  e  ​acima  ​de  tudo,  não  ​há 
palavras  para  ​expressa​r  ​a  profundidade  de  minha  admiração,  gr​a​t​id​ ão  ​e 
amor ​por ​Rob.  
Sumário   

Int​rodução   
P​ós-colonialismo ​e ​o anjo ​do ​pro​g​re​ sso ................................................... ​15   

PA​R​TE ​r

O ​IMPÉRIO ​DO ​LAR   

r.  ​A  ​situação  ​da  ​terra  -  ​Genea​log​ias  ​do  ​imp​erial​i​smo  .............................  ​43  ​2. 
"​Massa"  ​e  ​as  ​c​riadas  ​-  ​Po​ der  e  desejo  ​na  ​metrópole  ​impcrial..  ​............  ​123  ​3. 
Couro  ​imperia​l  ​-  ​Raça,  travesti​sm​o  ​e  ​o  ​culto  ​da  ​domesticidade  ​........  ​201  ​4. 
P​sicanál.ise, raça e ​fetichismo ​feminin​o .........................................​...​.... ​271   

PARTE ​l   

ENGANOS ​MÚTUOS   

.​5• ​O ​império ​do ​sabo​n​ete - ​R​acismo ​mercantil ​e   


propaganda ​imperial ​....​..​.....................................​....​.............................. ​307 
6. ​A ​família ​branca ​do ​homem ​- O ​discurso ​co​l​onia​l ​e a reinvenção ​do 
pat~iarcado .................................................​...​................................... ​341 ​7. 
Olive ​Schreine​r ​- ​O​s ​limites ​do ​feminism​o ​colonial.. ​....​.​.............​.​..... 3​ 77   

PARTE ​J   
O ​DESMANTELAMENTO ​DA ​CASA ​DO ​SENHOR   

8. ​O escân​d​a​l​o ​da ​hi​bridez ​-A ​resistência das ​n​egras e a ​ambiguidade 


narrativa ​..............................​..​ ...​.....​..​....​...​...​.....................​. ​4​3.1  

9. ​"Azikwelwa" 
(não vamos 
embarcar) ​- 
Resistência ​cultural 
nas   
décadas desesperadas ​....​..........................​..........​..................................​.. ​479   
10. ​Adeus ao paraíso futuro - Nacionalismo, gênero e ​raça ​..................​.... ​517   

Pós-escrito   
O anjo ​do ​progresso ​...........​........​................​.......​....................​........​.​.....​.. ​569   

Lista ​de ​ilustrações ..........................​..​................................................... ​S77   

f ​ndice ​..​......​...........​.​................................................................................. ​~83   

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Introdução   
Pós-colonialismo e o ​anjo do p​ rogresso   

​ m ​lugar   
H​:i ​muito~ m:ip~​s ​de u
e muitas hist​ó​rias ​de ​um ​t​e​mpo.   
Julie Frcdcricksc   

RAÇA, ​DI ​NHE​IRO ​E ​SEXUAL​IDADE   

NAS ​PÁGINAS ​iniciais do ​best-uller ​de ​Henry ​Rider Haggard, ​King ​Solomons 
Mines [​ As ​minas do ​rei Salomão], descobrimos ​um map​a. ​O ​mapa, ​é ​o que nos 
dizem, ​é ​uma ​cópia ​de outro que leva três ​ingleses ​brancos ​às ​minas de 
diamante ​de Kukuanaland, ​em ​algum lugar do ​sul ​da ​África ​(Figura r​ AY. ​O 
mapa original foi desenhado ​cm ​1590 p​ or um ​mercador português,José da 
Silvestre, quando ​estava ​morrendo de ​fome ​no "seio" de uma montanha 
chamada Seios ​de ​Sheba. ​Riscado nos restos de ​um ​linho amarelo arrancado ​de 
s​ua ​roupa ​e inscrito com ​uma ​"​lasca de osso" alimentada do próprio sangue do 
mer​cador, ​o mapa de Silvestre promete revelar ​a riqueza ​da ​câmara do ​te​souro 
de Salomão, ma​s ​leva ​com ele ​a ​tarefa ​obrigatória ​de ante​s ​m​atar a 
"mãe-bruxa", Gago ​oi.   
Dessa forma, ​o ​mapa ​de​ ​Haggar​d ​junta ​em ​miniatura três ​do​s ​temas 
dominantes ​do ​imperialismo ocidental: a transmissão ​do ​poder ​mas culino 
branco ​através ​do ​cont​role ​das m ​ ulheres colonizadas; o surgimcn​ t​ ~ ​de uma 
nova ​orde​m ​g​l​obal ​de ​conhec​iment​o ​cultural; ​e ​o comando imperial ​do ​capital 
mercantil ​- trê​s ​dos ​tema​s ​que ​circula​.​m neste ​livro.   

1. ​Henry Ridcr ​Haggard, ​King ​S​olo​moni ​1​\1ir.ts (​ ​Londre​s: ​Dcnt, ​1885​).  

Cou​ro​ i​ mpaial    QKraal ​


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1​6  
lntrcdurdo -​ ​'Pd1 ​-,ol​onialismc,? a​ nj? ​do p​ rogrt11​ a   

O que distingue o mapa ​de Haggard dos vário​s ​outros ​que ​ornam ​as 
narrativas ​coloniais ​é ​que ​ele ​é ​explicitamente s​ exual. ​A ​terra, ​que ​é
também a ​fêmea, é ​ ​literalmente mapeada ​cm ​fluidos ​corporais ​mascu 
linos, ​e ​a ​fálica ​las​ca ​de o​ sso de ​Silvestre se ​torna ​o órgão através ​do 
qual ele lega o ​patrimônio ​do ​capital excedente a​ seus herdeiros bran​ ​cos​, 
investindo-os ​da ​autoridade ​e poder a​ dequados ​aos ​guardiões ​do 
sag​rado tesouro. ​Ao ​mesmo tempo, ​a ​herança ​colonial ​mas​c​ulina tem 
lugar ​dentro de uma ​troca ​necessária. ​A morte ​de Silvestre ​no ​mau 
(congelado) seio é​ ​vingada, e a ​herança patrilinear ​branca é​ ​ass~gurada 
:ipenas ​com a morte ​de Gagool, a​ "mãe, velha ​mãe​" ​e ​"gênio ​do ​mal ​da 
terra"•. O mapa de Haggard, assim, ​alude ​a uma ordem oculta ​su​bja 
cente à​ ​modernidade industrial: a conquista ​da ​força sexual e ​de ​traba 
lho ​das ​mulheres co​l​onizadas.   
O  ​mapa  ​também  revela  ​um  ​paradoxo.  ​De  ​um  lado,  ​é  ​um  ​trecho  ​es 
boçado  ​do  ​campo  que  ​os  homens  ​brancos  ​devem  ​atraves​sa​r  ​para  ​assegu 
rar  ​as  ​riquezas  das  minas  ​de  ​diamantes.  ​D​e  ​outro,  ​se  ​o  mapa  for  ​i​nverti 
do, ​re​v​el​a ​de ​uma vez o ​diagrama ​do ​corpo ​feminino. O ​corpo ​está   
esticado  e  ​truncado  -  ​as  ​únicas  partes  desenhadas  ​são  ​as  ​que  denotam  ​a 
sex1.1alidade  ​feminina.  ​Na  ​narrativa,  os  viajantes  ​cruzam  o  corpo  a 
partir  ​do  ​sul,  começando  ​perto  ​da  ​cabeça,  ​representada  ​pela  "poça  ​de 
água ​ruim" ​encolhida ​- ​a sintaxe m ​ utilada exibindo o lugar da ​inteli  
gência  ​e  ​da  criatividade  ​femininas  ​como  sendo  ​o  ​da  ​degeneração.  ​No 
centro  ​do  ​mapa,  estão  os  dois  picos  de montanhas ​chamados ​de ​Seios de 
Sheba  -  dos  quais  ​as  ​cordilheiras  ​se  ​estendem  para  ​os  ​dois  ​lados  ​como 
braços sem ​m​ãos. ​O comp​ri​me​n​to ​do ​co​rpo est​á ​ins​c​rito pelo reto ​cami  
nho real ​da ​Estrada de ​Salomão, ​le​ vand​o ​do ​limiar dos ​seios c​ o​ngelados 
até o ​umbigo ​koppie d​ ireto c​ o​mo uma ​seta ao monte ​púbico. ​Na ​narra 
tiva, esse monte é chamado de ​"​Três Bruxas​" ​e ​figurado por ​um ​triân 
gulo de colinas cobertas ​de "​ esc​uras urzes"​3​• ​Esse ​escuro triângulo ​ao 
mesmo ​tempo aponta para ​as ​entradas de duas passagens proibidas e ​as 
oculta: ​a ​"b​oca da ​caverna ​do ​te​ souro" - a entrada vaginal ​à ​q​u​al ​os   

1. ​Idem, ​op. ​cit​.​, ​pp. ​74. ​8+   


3. ​IJcm, ​op. ​cit., ​p. ​118​.   

17  
Couro i​ mpe​r​ial   

homens  são  levados ​pel​a ​mãe ​negra, Gagool - e atrás ​del​a ​a ​fos​sa ​anal  ​da 


qual  eventualmente  ​os  ​homens  ​se  ​arra​s​t​a​rão  ​co​m  ​o​s  ​diamante​s,  ​n​u​m 
r​itual ​de ​na​sci​mento ma​sc​ulino que ​deixa ​mort​a ​a ​mã​e ​negra, ​Ga​go​ol.   
No  ​m​apa,  ​os  genitai​s  ​feminino​s  ​são  c​hamad​os  ​de  ​Três  Bruxas.  ​Se  ​as 
Três  Bruxas  assinalam  a  ​presença  ​de  forças  femininas  alternativas  e  ​de 
noçõ​es  ​afri​c​anas  ​al​ternativas  ​de  ​tempo  ​e  de  conhecimento,  Haggard  ​se 
defende  da  ameaça  de  uma  força  feminina  ​e  ​africana  resistente​,  ​não  ​só 
dispondo  ​violentamente  ​da  ​podero​s​a  ​figura  ​de  mãe  na  ​narrativ​a,  ​ma​s 
também  ​colocand​o  ​ao  lado  d​as  ​Tr​ês  ​Bruxa​s  ​n​o  ​map​a  os  ​qu​atro  ​p​on​t​os 
c​ardeais:  ícone  da  ​"​razão"  ​ocid​e​ntal,  ​da ​agre​ssão ​t​éc​ni​ca ​do ​ocidente e da 
posse  masculina  e  militarizada  da  ​terra​.  ​O  ​lo​go  ​da  ​b​ússo​la  ​repr​o​duz  a 
figura espalhada da mulher marcada ​pelo​s ​e​i​xos ​da ​contenção global.   
N​a  ​escal​a​da  ​da  mina,  ​carregados  ​com  ​diamante​s  ​do  ​tamanho  de 
"​ovos  ​de  ​pombas"​,  ​os  ​br​a​nco​s  ​inglc;​ses  ​dão  à
​ ​luz  três  ​ordens  ​-  ​a  ​ordem 
reprodutiva  ​ma​sculi​na  ​da  ​m​onogam​ia  ​patriarcal;  a  ordem  e​ conômita 
branca  do  ​capital  ​minerador;  ​e  ​a  ordem  p​ ​olít​fra  ​global  do  ​impéri​o​.  ​Ao 
mesmo  ​tempo,  t​anto  o  ​mapa  ​como  a  ​narrativa  revelam  ​que  ​essa​s  ​trê​s 
ordens  ​não  ​são  ​di​s​tinta​s,  ​ma​s  ​a​ss​umem  forma  ​ínti​m​a  ​na  relaç​ão  entre 
elas. Dessa ​maneir​a, ​a ​aventura ​do ​capital minerador r​e​inventa o patriar  
c​ado  bran​c​o  ​-  ​n​a  ​específica  forma  de  cla​sse  ​in​glesa  ​do  ​gentil  homem  de 
alt​a  ​classe  ​média  ​-  co​m​o  ​herdeiro  do  ​"​Progresso​"  imperial  ​na  ​chefia  ​da 
"​F​amilia ​do ​H o ​ mem"- ​uma família que ​não ​admite a mãe.   
O mapa ​de ​Haggard abstrai o ​cor​po ​feminino ​co​m​o ​u​ma ​geometri​a d ​ a 
sexualidade caprurada ​.. ​sôb a ​tecnologia ​da forma imperial. ​Mas tam 
bém ​r​e​vela ​uma curiosa c​ ame​ r​ a ​obsc​ ​ura, p​ ois nenhum​a l​ eitur​a ​do ​ma​p​a 
es​tá ​com​pl​eta ​em ​si ​m​es​ma: ​cad​a ​uma ​r​eve​la ​a ​so​mbria inv​e​rsão repre 
s​entada ​por ​s​eu o​ utro ​lad​o ​reprimido. ​Se nos alinharmos ​co​m a ​auto 
ridad​e ​masculina da ​página ​impressa, com ​os ​p​on​tos ​da bú​sso​la ​colonial 
e ​co​m ​os ​rótulos ​s​angrentos, o mapa pode s​ e​r ​lido ​e ​o tesouro alcançado, 
mas a ​mulher ​colonizada ​está de cabeça ​par​a ​baixo​. ​Se, a​ o ​cont​rár​io, 
invertemos ​o ​livro ​e ​pu​se​rmo​s ​cm ​p​é ​o corpo ​da ​mulher, ​as ​palavra​s ​san 
grentas ​em ​se​u ​corpo - ​de f​ ato ​a ​a​ventura colonial ​co​mo ​um ​todo ​- ​se 
torn​a​m ​incoerentes. ​No ​entanto, n​ enhuma ​versão ​existe ​s​em ​a outra​. 
Couro​ i​ mperial ​se ​pr​o​põe a explorar c​ s:;a ​ligação perigo​s​a ​e ​contraditó​ri​a   

18  

r
lntrodu​fflo ​- ​'Pós-,olo​n​ialismo ​( o ​anjo​ :​ io ​progresso   
entre ​a força ​imperial ​e ​a a​ nti-imp​er​ ial; ​entr​e ​d​in​heiro ​e ​sexualidade; ​entre 
violência ​e ​desej​o; entre ​tr​abalho e ​resi​stênc​i​a.   

GÊNERO, ​RA ​ÇA ​E ​CL​ASSE   


Ca​t​ego​ri​as ​art​i​culadas   

P​assou-se ​um tempo até ​que ​percebemo​s ​que o ​n​osso   


lugar ​era ​a ​pr​ópri:i c​asa ​da d​ ​iferença, e ​n;io a ​,~ur.tnça   
de ​qua​lquer ​dif​erença ​parti​cular.   
Audre ​Lorde   

Começo ​com o ​map​a ​d​e ​H a​ ggar​d ​porque ​ele ​ofe​rece ​uma ​fantástica 
co​mbinação ​dos ​tema​s ​d​e ​gê​nero, ​raça e​ ​clas​se, que sã​o a​s ​pr​eoc​upaçõe​s ​que 
circulam ​neste ​li​vro. C ​ ouro impa-ial ​ofe​re​ce ​trê​s ​críticas relacionadas. ​Sob 
muitos ​aspectos​, ​o livro ​é ​u​m​a d​ i​s​puta ​contin​uad​a com ​o ​projeto ​do 
imperialismo​, ​o cu​lto d​a ​domesticidade e ​a ​invenção do ​progresso ​in  
dustri​al. ​O mapa ​de ​Ha​gga​rd me ​intriga, ademai​s, ​porque ​oferece ​um​a parábola 
em ​miniatura ​p​ara ​um do​s ​pri​n​cí​pi​os ​ce​ntrais ​d​este ​li​vro. Nos ​ca​pítulos que s​ e 
seguem, argume​n​to ​que raça, gêne​r​o ​e ​classe não são disti​ntos r​einos ​da 
exp​e​ri​ênc​ia, ​qu​e exis​tem ​em
​ ​es​plêndido i​so​lamento e​n​tre ​si; nem podem ​ser 
si​mple​smente ​en​caixados ​retr​ospectivamente ​como ​pe​ças ​de ​um ​L​ego. N ​ ão, 
ele​s ​exis​t​e​m ​e​m ​rela​ção ​ent​r​e ​si ​e ​atra​ vés ​dessa ​rela​ção ​- ​ainda ​qu​e ​de ​mod​os 
con​tradit​órios ​e ​em ​conflito. ​Nes  
se ​sen​tido ​é ​o ​tema ​tri​angula​r que ​a​nim​a ​os ​capítulos ​que ​se ​se​guem: ​as ​relações 
ín6ma​s ​entre ​a ​fo​r​ç​a ​imp​er​i​al e a ​r​esistência; e​ ​ntr​e ​o ​d ​i​nhei​ro ​e ​a ​sexu​alidad​e​; entre 
ra​ç​a ​e ​gên​er​o.   
No ​map​a ​de ​Hagga​rd, ​as ​mina​s ​de diamante ​são ​simu1tan​e​amente ​o ​lugar da 
sexualida​de ​feminina (reprodução ​por ​gêne​r​o), ​a fonte ​do ​t​e ​i:o​uro ​(p​r​odução 
econ​ôm​i​ca) e​ ​o ​lugar da ​di​sp​uta ​impe​r​ial ​(​diferença racial). ​A ​fálica ​lasca de 
osso ​de ​Silve​s​tre ​não ​é ​ape​nas a ​ferramenta da ​insem​inaç​ão ​masculina e ​ ​do 
poder ​patriarcal, ma​s ​também a​ insígnia da despossessão ​r​acial. ​A​qui, ​então, 
gê​n​ero ​não é​ ​só ​um​a ​qu​es​t​ão ​de s​ exua lidade, ​ma​s ​també​m ​uma questão ​de 
s​ub​o​rdina​ção ​do ​trabalh​o e​ ​pilha​ ​gem i​ mperial; ​raça ​não ​é ​só ​uma qu​es​t​ão ​de 
cor da ​pele​, ​m​as ​também   

10  

-  
. ​•
Cour~ i​ mpaial   

l   
1
uma ​questã​o ​de ​força de trabalho, ​in​c​ubada pel​o ​gênero. Apre​sso​-me ​a 
a​cresc​entar ​que não quero ​impli​c​ar que e​ sses ​d​o​mínio​s são ​redut​íveis ​o​u 
id​ênticos ​entre si; em ​vez ​di​sso, ​existem ​e​m ​relações íntimas, recíprocas ​e 
contraditórias.   

Uma ​afirmação ​central ​de ​Couro i​ mpttrial é​ que ​imperialismo ​não ​é ​i ​ '  
uma ​co​isa que aconteceu ​em ​outro ​l​ugar - um ​fato desagrad​á​vel da hi​stó​ria 
ext​erio​r ​à ​i​dent​idad​e ​oc​idental. Ao contrário​, o ​imp​erialis​m​o e ​a inv​e​nção ​da 
raça ​fo​ram ​a​s​pectos fundament:iis da modernidade ​in​ ​d​us​tr​i​al ​o​ci​ d​en​tal. A 
invenção ​d​a ​ra​ça ​nas ​metrópoles ​urbanas, que ​ex​ ​ploro ​com ​mais detalhes 
abaixo, tornou-se central ​não ​só ​para a​ ​auto definição ​da ​classe ​média, ​m​as 
também para ​o ​policiamento ​da​s ​"classes ​peri​gos​as​": ​a ​cla​sse ​trabalhadora, o​ s 
​ ays​ ​e ​as ​lé​ sbic​as, ​o​s 
irl​an​dese​s​, o​s ​judeus, ​as pr​os​tituta​s, ​as ​feministas, ​os g
cr​imin​osos, ​a ​turba ​milit​an​te, ​e a​ssim p​ or ​diante. A​o m​esmo tempo, ​o culto ​da 
dome​stic​idade ​não ​foi simplesmente uma irrelevân​c​ia trivial ​e ​passageira, 
propriamente per​ ​ten​c​ente ao ​r​ei​ no privado ​e ​"​natural" ​da ​família​. ​Mai​s ​que 
isso, argu ​mento ​qu​e ​o ​cu​lto ​da d​ ome​s​ti​c​idade foi ​uma ​dimen​são ​cru​c​ial, ​ai​nd​a   
que oculta, das ​identidades, ​tanto ​a ​masculina quanto ​a ​feminin​a -​ ​por 
cambiante​s ​e ​i​ns​táve​is ​que f​ ​oss​em ​-, ​e ​elemento indi​sp​ensável ​tanto ​do 
mercado ​industrial quanto ​da ​emp​resa ​imp​e​rial.   
Não é​ ​pre​c​i​s​o di​ze​r que ​se ​poderia pensar jâ, agora​, ​que os homens eur​ope​us 
foram ​os ​agentes ​mai​s ​direto​s ​do i​ mpério. E​, n​o entanto, o​s ​teóri​cos ​do 
imperialism~​.​<: ​_​do ​pós-colonialismo ​só ​raramente ​se ​dedica ​ram ​a ​explora​r ​a 
dinâmica d​e ​gênero ​do ​tem​a​'. ​Ainda ​que fossem ​ho ​men​s ​bran​cos ​os q​ u​e 
co​mand​avam os navios e​ p​ ortav​a​m os r​ ifles ​do​s ​exércitos ​co​l​o​niais, ​e ​q​ue eram 
donos ​e ​s​upervi​so​res das minas e planta  

4. ​Nem ​mesmo ​o imens​a​me​nte ​impomnte ​e ​inRuente ​Oritt1talitmo ​de ​Edw:ird ​Sai ​d expl​o ​ra ​o ​gênero 
como ca​te​goria ​con​st​.​irut​iva ​d​o imperialismo. ​Da ​mesma forma, ​a vasta ​e ​cruci​al ​hi​s​t​ória ​dos ne​gros 
de ​Pet​er ​Fryer, ​Staying P ​ ow​o, ​é ​quase muda sobre a​ s ​mulheres, ​:usim ​com​o a ​valiosa anilise ​da 
culrura ​popular negr.i ​de ​Pa​ul ​Gilr​oy, T ​ hoe ​Ain't ​No ​Blark. i​ n t​ he Unianfad.. E ​ ​dwud ​S~d. ​Orimtalúm 
(Nova ​York: ​Vinngc​, ​1978); ​Petcr Frycr, ​Stay i​ ng Power: ​The H ​ istory o ​ fB​ larl ​Peopü in B​ rita​ in 
(​Londre​s​: ​Pluto ​P​ress, ​1984); ​Paul Gilroy, 1​ 1,cre ​//i11~ ​No ​Bla<.t. ​;,. ​''" ​UniOfl J​ a​,lt.· ​11u ​Cultural 
Politi​ a ​of ​Rnc, n
​ nd ​Natíon (​ Londres: ​H ​utchinson, ​1​987).   

20   
lntr​odurão ​- ​'1'61-co/011ialismo ​to ​anjo ​do​ p​ rozrtJJo   

ções  com  ​escravos,  e  que  ​coman​d​avam  os  ​flu.xos  ​globais  ​de  capitais  e 
carimbavam  as  le​i​s  ​das  ​burocracias  imperiais;  ​ainda  ​que  fossem  homens 
brancos  europeus  ​os  ​qu​e,  ​ao  ​final  ​do  ​século  ​XIX,  ​eram  donos  e  ​gerentes 
de  8​ 5%  ​da  ​superfície  da  ​Te​r​ra,  a  relação crucial, mas ​oculta, ​entre ​gênero 
e  imperialismo  foi,  até  muito  recentemente,  desconhecida  e​ ​desprezada 
como ​um ​fait a ​ ccompli d​ a natureza.   
Na ​última ​década, ​surgiram ​evidências que ​estabeleceram ​que ho 
me​ns ​e ​mulheres ​não ​experimentaram o ​imperiali​smo ​da ​mesma manei 
ras​ . ​O imperialismo ​e​urop​eu ​foi, desde o ​co​me​ço, um enconlro ​violento 
com ​hierarquias preexistentes de ​pod​er ​que tomou forma não ​como ​um 
desdobramento ​de ​seu ​próprio d​ estino, mas como inte​rferê​ncia oportu 
nista e ​desordenada com outros ​re​gimes ​de poder. Tais encontros, por 
sua vez, alteraram ​as ​trajetórias ​do ​próprio imperialismo. Dentro ​desse 
l​ongo ​e ​conflituoso engajamento, ​a dinâmica ​de ​gênero ​das culturas ​colo 
nizada​s ​foi tão distorcida a ponto de alterar ​a​s ​formas irregulares ​que o 
imperialismo assumiu em ​várias partes ​do ​mundo.   
As mulheres ​colo​ni​zadas, ​antes ​da ​intntsão do domínio imperial, 
eram invariavelme​nt​e ​prejudicadas dentro de ​suas sociedades, ​em ​ma 
neiras ​que davam ​ao ​re​ordenam​ent​o ​colonial de seu trabalho sexual e 
econômico resultados muito ​diferentes d​ os ​que obtinham ​os ​homens 
coloniza​dos. ​Como ​as ​esc​rav​as, ​trabalhadoras ​agríco​l​as, ​serventes do 
mésticas, mães, prostitutas e ​concubin​a​s ​das ​vastas ​colônias da Europa, 
as ​mulheres ​colo​ni​zadas ​tinham de ​nego​ciar ​não ​só os desequilíbrios ​cm 
suas ​relações ​com ​se​us p​ róprios ​hom​e​ns, ​mas ​t​ambém ​o barroco ​e v​ io 
lento conjunto ​d​as ​regras e restrições hierárquicas que ​estruturavam suas 
novas relações com ​os ​homens ​e ​as mulheres ​do ​império​6​•

S,  ​Par.i  ​uma  resenha  abrangcme,  ​\​·er  ​Ann  ​Laura  ​Sroler,  ​·Carnal  ​Knowlcdge  and  ​I​mperial 
Power:  Gender,  ​Ra​c​e,  ​and  Mor:tlity  ​in  Colonial  Asia",  in  ​Micaela  di  Le​ona​rdo  ​(org.), 
​ nd  t​ ht  ​Cromoads  o
Gmdrr  a ​ nMJJ!tdgt:  ​Ftminü​ t  ​Anthropclogy  i​ n  t​ ht  P​ o​st​ modmi  ​Era 
​ f  K
(Berkeley: ​University o ​ f ​C:ilifomia P​ cess, 1​ 99!}, ​pp​. s​ 1-100​.   
6.​.  ​P​ara  ​análises  regionais  ​e  ​h​i​stóricas  ​do  ​impacto  ​do  ​coloni:llismo  ​sobre  as  ​mulheres,  ​ver 
l\fona  Eticnne  e  ​Eleanor  ​Lcacock  ​(orgs.),  ​Jl​1J​mm  ​and ​Ccloni::.ation (​ Nova ​York: ​Praeger, 
198​0);  ​Dclia  ​Jarrctt  Ma01ulay,  ​"Bbck  ​\V​omen's  ​H  ​istory•,  ​tr:abalho  ​apresentado  à ​
vVomcn's  ​History  ​Confcrcncc,  ​Londres​,  ​jul.,  1​ 991;  ​N~nc:y  ​11.illkin  ​e  ​Edna  ​Bay  ​(orgt.), 
Womtn i​ n   

21  
Couro i​ mpaial   

As mulher​es ​coloniais também ​foram ambiguamente situadas den ​tro 


de​s​se ​processo. ​Barradas dos corredore​s ​do ​poder ​formal, experi 
mentaram os privilégios ​e ​as ​contradições ​so​ciais ​do ​imperialismo de 
maneira muito diferente ​do​s ​homen​s ​colon​i​ais. ​F​oss​em ​elas embarcadas 
como ​condenadas ou ​recrutada​s ​para ​a ​serv​idão ​doméstica ​ou sexual; 
tivessem elas ​servido ​di​s​cretamente ​ao ​pod​e​r ​como esposas ​d​os ​oficii.is 
coloniais, ​sus​t​e​ntando ​as ​front​e​iras ​do ​império e ​gerand​o ​seus filhos ​e 
filhas; ​tive​ssem ​el​as ​dirigido escolas mis​s​ionárias ​ou ​enfermarias ​d​e ​hos 
pitais ​e​m ​po​stos ​r​emo​tos, ​ou ​trabalhado na​s ​lojas ​ou lavouras ​d​e ​seus 
maridos, ​as ​mulh​eres co​loniai​s ​nã​o ​tomaram quaisquer ​da​s ​decisões 
econômicas ou militares ​do i​ mpério e muito ​poucas delas colheram ​seus 
enormes lucros. ​Leis ​do c​ asamento, leis da propriedade, leis ​da ​te​r​ra ​e a 
intrat​áv​el violênci​a ​da d​ ecisão masculina ​as ​aprisionavam ​e​m ​padrões de 
gênero de desvantagem e ​frustração. A ​ vasta e fraturada arquitetura ​do 
imperialismo ​era ​e​ivada ​de ​gênero e​ ​atravessada pelo ​fa​t​o ​de que ​os 
homens brancos ​faziam ​e executavam a​ s ​lei​s ​e poüticas ​de seu ​própri​o 
interesse. ​Ainda a​ss​im, ​os ​priviJégios da raça ​com ​frequência ​co​locavam 
as ​mulher​es ​branc​as ​em ​po​sições ​de poder ​- ​ainda que ​emprestado - ​não 
só sobre ​as ​mulheres colonizadas, mas também ​sobre ​os ​homen​s 
colonizado​s. ​Como ​tai​s​, a​s ​mulheres ​branca​s ​não eram a​s ​infelize​s ​p​as 
santes ​do ​império, ​mas ​as ​cúmplices ​ambíguas, ​tanto como colonizado 
ras ​quanto ​como colonizadas, ​privilegiadas e restringidas, fossem ​passi 
vas ​ou ​ativas​7​•   

Africa:  Srudia  i​ n  S​ ocial  ​and  Eco​ no​mi​ c  C ​ hang,  ​(Stanford:  ​Sranford  ​Univcrsity  ​Prc​ss, 
19​76);  ​Chc​rryl  ​Walkc​r  (org.),  ​Womm  ​arrd  ​Gmder  ​in  S ​ outhern  t​ ffrúa  ​to  ​1945  ​(C​:ipc 
Town:  ​Da​vid  ​Ph​ilip​,  ​1990);  ​Hazd  C ​ arby,  ​"O​n  ​thc  Thrc​shold  ​of​W​om​cn​'s  ​Era​.  ​Lyn​c​hing​, 
Emp​irc  ​an​c  ​Scxuality  ​i​n  ​Bl​ :ick  ​F​crninist  ​Thcory~,  ​Cri  tirai  lm;uiry  ​11,  ​1  ​(​1985),  ​pp. 
262-77.   
7.  ​Par:i  ​aniliscs  ​regiona​i​s  ​e  históricas  das  mulheres  coloni:iis,  ver  ​H​el​e​n  Calbway,  ​Gmd,r, 
Culture  ​and  Empir​ e​:  ​European  ​m,mm  i​ n  ​Colonial  ​Nigeria ​(Londrc,: MacmiUan, ​1987); 
Jackic  ​Cock,  ​Maids  ​a~d  N ​ fadams  ​(Johanncsburgo:  Ra,-an  Press,  ​1980);  J​ ean  Comaroff  e 
John  ​Comarolf,  ​"Christianity  and  ​C​o​l​oni:ilism  in ​S​outh ​Africa", ​/lmericarr ​Ethnologist 1​ ​3 
(1986),  ​pp.  ​1​-21;  ​B​cvcrlcy  Garm:U​,  ​"Colonial  ​\Vi\·es:  ​VWains  ​or  ​Victims?",  in  ​Hill​ary 
Cal​·  ​lan  e  ​Sh​ir​lcy  ​Ardncr  ​(orgs.)​,  ​1he  l​ nc​ or~rated  W
​ ifa (​ ​L​ond​r​es: ​Croom ​Hclm, ​1984), ​e 
Ire​ne  ​Silvcrbla11,  ​/llfo​ on ​ iuhes:  G
​ ,  Sun  and  W ​ ender  I​ deologia  ​ar.d  ​Cl:m  i​ n  I​ n​ca  ​and 
Co​loni​ 11/ P​ er​11 ​(P​ ri​nc​c​ton: ​Princcton Univcrsity Prcss, 1​ 98​7).   

22  

lntr!ldu;4'J ​- ​P6t-<llloniali,mo ​to ​anjo d​ o p​ rogrt110   

Argumento ​ao ​longo desce ​livro ​que o ​im​perialismo ​não pode ​ser 
plenamente ​compreendido sem ​uma teoria ​do ​poder ​do g​ êne​ro​. ​O ​po ​der 
do ​gêne​r​o não ​foi ​a pátina superficial ​do ​império, um brilho efême ​ro 
sobre ​a ​me​cânica ​mais decisiva da ​cla​sse ​ou da raça. Mais que ​i​sso, ​a 
dinâ​m​ica ​do ​gêne​r​o f​ oi, desde o início, ​fu ​ndame​ntal ​para assegur​a​r e 
manter ​o ​em​p​reendimento imperial. ​Do ​meu ponto de vista, porém, o 
gênero não ​foi ​a ​única ​din​âmic​a ​do ​imperialismo industrial, nem ​a ​do 
minante. Desde ​o ​final ​do​s ​anos 1​ ​970, ​surgiu ​uma forte ​e ​apa​ixonada 
crítica fem​ini​sta - ​em boa ​parte ​feita por ​mulh​eres ​de ​co​r - que ​desa ​fia 
certas feministas eurocêntricas ​qu​e ​pretendem ​dar ​voz ​a u​ ma ​femini 
lidade ​e​ssencial ​(em confli​to ​universal ​co​m u​ma ​masculinidade ​essen 
cial) e que ​privilegiam o ​gênero a​ cima dos outro​s ​conflitos.   
H ​azel ​Carby, ​por ​exemplo, fez uma das primeiras ​críticas d​ as ​femi 
nistas brancas ​que ​"esc​revem ​sua heritória ​e ​a ​c​hamam de história ​das 
mulheres, mas ​i​gno​ram ​nossas ​vida​s e ​negam ​suas ​rel​ações conosco". 
"Esse ​é ​o ​momento", ​ela ​diz, ​"em ​que ​es​t​ão atuando ​dentro d​ as ​relações ​do 
racismo e escrevendo ​história"ª. Nos ​Estados Unidos, ​de ​maneira 
semelhante, ​bcll hooks argumenta, ​com ​força ​e ​influência, a favor ​do 
reconhecimento ​da ​diferença ​r​aci​al ​e ​da diver​s​idade entre ​as mulheres, ​e 
tamb​é​m ​pela política de ​alianças​9​• ​Na ​I​ng​la​terra​, ​Valerie Amos e ​Prati 
bha Parmar, entre ​outras, segue​m ​Carby na acusação às ​fem​inistas ​bran 
cas segundo ​a qual ​el​as ​compartilha​m ​"a ​amnésia dos historiadores 
brancos quando ​ignoram ​as ​maneiras fundamentais ​pe​la​s ​quais as mu 
lher​es ​brancas ​se ​beneficiaram ​da ​opressão ​d​os negros"'º.   

​ ​lack ​Fcminism ​rnd ​thc ​B​oundarics ​of ​Sister ​hood", 


8. ​Hazel ​Carby​, ​"\.Yhitc ​Womcn ​L​ist​cn! B
​ a,k: ​Rau a​ nd 
​ mpirt ​StriJ:,1 B
in ​Ccnter ​fo​r ​Contempor.uy ​Cultural ​Studi​c​s (org.), ​7ht E
R.aâsm in ;​ os ​Britain ​(​L​ondres: ​Hut​chinson, ​1​982).   
9. ​b​dl ​hooks, ​Ain~ ​I a​ l​ ~manf B
​ latk ​H~,r-Ln ​and ​F,minúm ​(Londres: ​Pl​uto ​Prcss, ​1981)​.   
10.  ​Valeric  ​Amos  ​e  ​Praribha  ​Parmar,  ​"​Challcnging  ​Imperial  Feminism•,  ​Ftminitt  ​Rroitw  ​17 
​ ste  livro  tem  ​uma  ​dívida  ​profunda  ​co​m  ​e​ssa  ​crí​tica,  que  ​é  ​agora 
(Outono,  ​1984),  ​p.  ​5.  E
e..~ensa.  ​Para  ​importantes  aniliscs  ​do  ​fcrrún.ismo  ocidcnt~  ​cm  ​rcbção  ao  coloniali​smo, 
v​e​r ​Chandra ​T​. ​Mohanty, ​"Under ​\11/cstcm ​Eycs: ​Fcminist ​Scho​lars​hip ​and ​Colonial ​Ois  
courscs",  ​Ftmini​st  ​Re<Ji(W  3 ​ 0  ​(1988),  ​pp. ​61-88; ​Kum​-Kum ​Bavnani ​e ​Margarct ​Coulson, 
"Tran​sfo​rming  ​Sodalís​t  ​Fcminism​:  ​Thc  ​Challe​n​ge o ​ f ​Ra​cis​m", ​Fm​,inút ​Rroirw z​ 3 ​(19S6), 
pp. ​81-92; ​l\lamcJ ​Lazrcg, "Fcminism and Dilfcrcnce: Thc ​Perils ​of\Vriting as a ​ \ ​Voman  

1​
' ​iJ

i ​i ​1

Couro ​imptrial   
1​
:  
Argumento, ​ade​mai​s, ​qu​e ​gênero ​n​ão é ​sinônim​o ​de mulhe​res​. ​Como  ​d​iz 
J​oan ​Scott: ​"Estudar ​as m​ulher​es ​isoladamente perpetua ​a ​ficç​ão ​de  ​que ​um​a 
e​sfe​ra​,  ​a  experiência  ​de  ​um  ​sexo,  ​tem  ​pouco  ​ou  ​nada  que  ​ver  ​com  ​a  ​do 
outro​""​. ​À ​diferença ​de ​Catherine ​l\​1​la​c​Kinn​o​n - p​:ir​a ​quem   
"a ​sex-uali​d​ade ​está ​p​a​ra ​o ​femini​smo ​com​o ​o ​trabalho ​está ​para ​o ​mar 
xi​s​mo​"-​, ​argumento ​que o ​feminismo ​s​e ​re​fe​re ​tanto à classe, ​a​o ​tr​a​ba ​l​ho ​e 
ao ​di​n​heir​o ​qua​n​to ​ao s​ ​exo. ​D ​e ​fato​, ​u​m ​d​os ​movi​me​n​tos m​ ai​s ​valiosos ​da 
t​eo​ria ​fe​mi​nista ​r​ece​nt​e ​foi s​ ua ​in​s​istência n​ a ​s​eparação ​en​tre ​sex​ualidad​e e 
gênero e ​o ​rec​onheci​ment​o d ​ e ​que ​o gêne​r​o ​é ​u​m ​proble m:i ​tanto p ​ a​r​:i ​a 
masculinidade ​quanto ​pa​ra a ​feminilidade. ​Como ​diz ​Cora ​Kaplan, a 
atençã​o a​o ​gê​nero ​c​om​o ​cate​g​oria ​privil​egi​ada ​da ​a​náli ​se ​tend​e ​a 
"re​pr​esen​tar ​a d​ if​e​ren​ça sexual ​como ​natural ​e ​fix​a ​- ​u​m​a fem​i​nili​dad​e 
co​n​s​tante ​e ​tran​s​ist​ó​ri​c​a ​num​a l​ ut​a ​tornada libidinal ​co​m ​uma ​masculinidade 
un​ive​rsal igualmente ​'​dada​"'".   
Michel ​Foucault ​argumenta ​que, ​no ​s​é​cu​l​o ​XIX​, ​a ​idei​a ​d​e ​sexuali​ ​dade ​deu 
​ m ​conjunto ​de ​ªel​e​mentos ​anatômicos, funções 
uma ​uni​dade ​fictícia ​a u
biol​ógicas, ​conduta​s​, ​se​n​saç​õe​s e ​pra​ze​r​es"'​3​• ​A ​uni​dade ​fi​c​tíci​a ​da 
​ m ​significado   
sexu​al​i​d​a​de, ​d​iz ​ele, ​se ​tomou ​"​um ​princípio ​causal​, u

on  ​\.Y​om​en  ​in  ​AJ​g​eria​"​,  ​Ftmini1t  Studi,1  1​ 4,  ​3  ​(1988​),  ​pp​.  ​81​-1​ 07,  ​e  ​G​ayatri  ​Chakravo​rti 
Sp​ivak,  ​"​French  Feminism  in  the  ​lnt​ern​ational  Fra​m​e",  in  ​ln  ​0th"  ​World1:  E ​ y​1  in 
​ S1a
Cultur​al  ​Pcliti​ r1  ​(Nova  ​York:  ​Methuen,  1​ 9​87).  ​Ver  também  ​Spiv:ik,  ​7ht  Pou-Colonial 
Critü:  l​ nttT1Jiew1,  S​ trat,git1.  D ​ i~o​ guu​,  ​Sar​ah  H​ ​arasym,  ​org.  (​ ​Nova  ​Y​or​k:  ​R​o​utled​g​e, 
19​90),  ​e  ​o  ​núme​ro  ​especial  ​sobr​e  ​"femin​ism  ​:and  ​t​h​e  ​Crit​iq​ue  o ​ f  ​Colonial  ​Di​ scourse", 
lnsmptiom  :​ ;/ ​4 ​(​1​988). ​Pa​r​a ​u​m1 ​análi​se​  mai​s ​geral ​das ​mulheres ​brancas ​e ​o ​ra​cismo, ​ve​r 
Vron ​\Vare, ​B​ryond ​th, ​Palt: ​Whiu U ​ ​-&m
​ cn, R​ arism ​and ​Hi​ story ​(​L​ondres: ​Vcrw​, ​1​9​92).   
\​ V​.Scott, ​Gmd​ tr a​ nd t​ ht ​Politi​a ​of ​History ​(Nova ​Yo​rk: ​Co​lumb​ia ​University ​Press, 
11​. ​Joan
1988​)​, ​p. ​32​. ​Co​mo ​diz ​Denise ​Rile​y​: ​ª​ser ​uma ​mulhe​r ​também ​é ​inconstante​, ​e ​n:io ofe 
rece ​um fundam​e​nto onto​l​ógico•. ​De​nise R ​ iley, ​"Am I​ ​that Namet• ​Ftmi​ni1​m ​and ​th, 
Cattgory ​oj​• ​Womm· ​in H ​ ​iuory ​(B
​ as​ings​r​o​ke​: ​MacmiUa​n, ​1989), pp. ​1​-2​ ​. ​Para ​uma c​r​ítica 
im​po​rtante ​do ​e​ss​e​ncialismo ​de ​gcnero e​ de raça, ver Diana ​F​uss​, ​Eumtial!y ​Sptak.ing: 
Ftminism, N ​ aturt ​and ​Dijf ​trmu (​ Nova ​Yo​ rk: ​R​outl​e​dge​, ​1989​)​.   
u. ​Co​ra ​Kapl​an, ​St​ ​a Cha​ng​,1​: ​Culturt ​and ​Ftm​ini​ 1m (​ ​L​ondres: ​Ve​rs​o, 1989), ​p​. ​27. D
​ a ​mes​m​a 
maneira. ​S​c​ott ​ob​s​erva: ​•o ​uso d​ o ​gc​n​ero ​salien12 ​um ​sistem​a ​inteiro ​de ​r​elaç​ões ​que 
podem incluir ​SC.'(O​, ​mas ​não é ​ ​diretamente ​detennin​ado ​pelo ​s​exo ​nem ​dire​ta​men​te ​de 
terminador ​da ​sexualidade. - ​Gmdtr a​ nd t​ t, ​Pol​itia ​of ​H i​ Jt,;ry, ​p​. ​32.   
​ f ​Stxuality, ​trad. R
13. ​!Vli​chcl ​Fou​ca​ult, ​Hiltory o ​ i​chard ​H ​o​ward (Nova York: Vintage, ​1​980, 
vol. ​t​,​), ​p. ​n.   

-  
111trodu;4o ​- ​'Pós​-,o​ lon
​ ia​lisrno ​e ​o ​anjo d​ o p​ rogruso   

o​nipresen​t​e, ​u​m ​segre​do ​a ​s​er d​esco​b​e​rto ​e​m t​odo ​lu​gar: o sexo ​foi, ​as s​im​, 
capaz ​de ​funcionar como ​um ​s​ignificante universal e​ ​como ​um ​s​ign​ificado 
universal​"​'•. ​Ao privilegiar a ​sex​ualidad​e, ​porém, Foucault esquece ​como ​um​a 
elaborada ​analogia ​en​ tre ​raça ​e ​gênero ​se ​torn​ou,   
como ​argumento ​no capí​t​ulo 1​ ​, ​um t​ ropo ​organizador ​par​a o​ utras for ​mas 
sociais.   
Ao ​mesmo ​t​e​mp​o​, não vejo r​a​ça ​e etnia como sinônimos de ​n​eg​ro ​ou 
colonizado. ​D​e f​ at​o, ​a ​primeira parte dest​e ​livr​o ​foi ​escrita em ​si​mp​atia ​com ​o 
desafio oblíquo de bell ​h​ooks​: ​"​um​a ​mudança de ​dir​eção que ​seria 
verdadeiramente ​de​sc​olada seria a produ​çã​o de um di​s​cur​so s​ obre ra​ç​a que 
interrogasse a ​bran​cura"​15​• ​A ​invenção ​da ​brancura, ​aqui, ​n​ão ​é ​a norma 
in​vis​ív​e​l​, ​ma​s ​o ​pr​ob​lema a ​se​r ​investigado​16​•   
Não ​es​tou ​co​nvencida, por​é​m, d​e ​que ​a ​ra​ça é​ ​um ​m​ero ​efeito de significantes 
flutuan​tes, ​nem pelas ​afirma​çõe​s ​d​e ​que ​"d​ev​e ​existir algu ​ma ​ess​ên​c​i​a ​que 
pr​ec​ede ​e/ou ​trans​ce​nde ​o f​ ato da​s ​condições objeti ​vas​"'7. ​E​s​tou ​aqui de 
acordo ​com ​o ​argum​e​nto ​coge​nte ​de ​Paul Gilr​oy,   

14. ​Idem​, ​op. ​c:it., ​p. ​23.   


15. ​beU ​hooks, ​"Tnvelling ​Theoc​ies ​Tnv​elling ​Thcor​i​s​cs•,Jnsmptions ​5 (​ 1989), ​p. ​162. ​16
​ . Para ​uma 
expl​oração hist​ó​rica ​da ​b​rancu​n ​co​m​o ​emia, ​ver ​Cath​erin​e ​HaU, ​Whitt, Ma/e a ​ nd M ​ iddl, ​Class: 
Expl​ oratfons in F ​ eminism a ​ nd H​ ​ú ​tory ​(Cambridge: ​Polity ​P​ress, ​1991). ​1​7. ​Norman Harris, ​w​W ​ho's 
Zoomin'Who': ​The ​New ​Black ​F​ormalism", ​7hejourna/ o ​ fMid w ​ tsl M
​ odtrn ​Languagt .​ lls​miation ​10, ​1 
(1987), pp. ​37·45​. ​Ver ​também ​Joyce A ​ . ​J​oyce, "​\,Vh​o ​the ​C​2p ​Ftt': Unconsciousncs​s a​ nd 
Uncon​scio​n2blene​ss ​in ​the ​C​rificism ​o ​fHous ​ton A ​ ​. ​Baker,Jr. :md ​Henry ​Louis ​G2tes​•​, ​New L ​ itmrry 
His~ry ​18, ​1 ​(​1​98;), ​p. ​379. ​Duas ​coleções crític2S q ​ ue ​2bo​rd​l!ll ​essas ​quest​ões são ​Henry ​Louis Gates, 
Jr. (org.), ​"R​au​: W ​ riting a​ nd D​ iffcrmtt (​ C​ h​kago: ​University o ​ ,tcs ​(org.), 
​ f ​Ch​kag​o P​ reso, ​19​86)​, e C
Blntl: L​ iltraluu ​and ​Literary 7​ h~ory(Nova ​York e Londre​s: ​Methuen, ​1984). ​V​e​r ​também ​Gate​s, 
Figuru i​ n ​Bl​ at!​t:​ 1 ​ rds, Si:m and ​thr "​ R​arialº​ ​Se!( ​(Oxford: Oxford University ​Pr​ess, ​1987); ​Kwame 
​ ~
Anthony ​Appi2h, ​"lhe ​Un​co​mpletcd Argumcnt​: ​Dubois 2nd ​the ​lllusion ​ofRace"​, ​Criri,al ​lm;uiry ​u​, ​1 
(19Ss) ​pp​. ​21·3r, ​App​i​ah​, ​ln M​ y ​Futheri Houu:.11/rira i​ n t​ ht P ​ hilos​ opt,y o ​ u/tur, (​ Londres: ​Methuen, 
​ fC
1​99​2​); ​e ​Horte​ns​e ​Spillers, ​"M​ama's ​B​a​by​ , ​Pa p​ :.:S ​Maybc: ​An ​American ​Gnmmar ​Book​", ​Di​ arritia 
(Verio, ​1​987) ​pp. 6s·95. ​No ​con ​texto b​ri​tâni​co, ​ver ​Sru​art ​Hall, ​"Cultural ​l​d​en​tity 2​ nd Diaspora•, ​in 
Jonathan ​Ru​thcr· ​ford ​(org.)​,ld​mtity: ​Com​mimi​ ty, ​Cu​ ltu​r, ​and ​Dijfermu (​ Lond​re​s: ​Lawrence and 
Wish​:irt, 1990), pp. ​122​-3​ 7. ​Na ​m​esr:ia ​coleç20, ​ve​r a​ ​análise d ​e ​K​obc​na ​Merece d ​ as ​noções ​pós· 
modernas ​de ​identidade ​em "Wclcome ​to ​the ​Jungle​: ​lden​tityand ​Diversity in ​Po​s​tmodern ​Politics", pp. 
• ​3-71, ​e ​Pntibh• ​Parmar, ​"Bb​c​k Feminism: ​Thc P​olitics o ​ f ​Articul:i.tion•, ​in ​Rutherford, l​ ​dmtity, ​pp. 
101​-26. ​Sobre ​raça ​como ​categor​i​a, ​ver ​P​au​l ​Gil​roy, ​1her​, ​.llin't ​No  
Courq ​impuial   

segundo ​o ​qual ​"a ​polarização ​entre teorias ​essencialistas ​e antiessenc:a 


listas da identidade ​negra não ajuda maisn'​8​• ​Explorar ​a ​instabilidade 
histórica ​do ​discurso ​sobre a ​raça ​- ​abraçando, com​o ​ela fazia n
​ o ​sécu  
lo ​XIX, ​não ​só ​povos colonizados, mas também ​os ​irlandeses, prostitutas, 
judeus e ​assim por diante - de nenhuma maneira implica ​cair na verti​ ​gem 
da indecidibilidade. Questionar a noção de que ​a ​raça é ​ ​uma ​essên cia ​fixa 
e ​transcendente, imutável ​através ​dos tempos, ​não ​s​ignifi​c​a ​que ​"toda ​:1 
conversa ​s​o​bre ​'raça' ​deve ​cessar", nem que ​as ​invenções ​barroca​s ​da 
diferença ​racial não ​tenham ​tido efeitos tangíveis ​ou ​terríveis'​9​• ​Ao 
contrário, é ​ ​preci​s​amente ​a invenção de hierarquias histórica​s ​que ​torna 
mais urgente ​a atenção ​ao ​poder ​e à ​ ​violência ​sociais.   
C​o​uro ​imperial s​ e situa, a​ss​im, ​onde ​vários discursos - ​feminismo, 
marxismo e ​psicanálise, entre eles ​- ​se misturam, ​convergem ​e ​diver gem. 
Um ​cuidado ​permanente ​do​.​livro ​é r​ ecusar ​a separação cünica de 
psicanálise ​e ​história. ​lVluitas ​vezes, a psicanálise foi relegada ​ao domí 
nio ( convencionalmen ​te universal) d ​ o ​espaço doméstico, privado, enquan 
to ​a ​política e a e​c​onomia ​foram ​relegadas ​ao domínio (convcncional 
mente ​histórico) ​do mercado ​público. ​Argumento aqui que ​a ​quarentena 
disciplinar ​da ​psicanáli​s​e ​cm ​relação ​à ​hi​s​tória correu ​paralela ​à ​própria 
modernidade imperial. ​Em ​lugar de me inclinar ante essa ​separação e 
optar ​teori​c​amente ​por ​um ​lado ​ou ​pelo ​outro, ​faço ​um ​apelo ​por uma 
investigação ​renovada e transformada das relações não ​reconhecidas en tre 
a ​psicanálise ​e ​a história ​socioeconômica.   
Couro ​imperial t​ enta r​ epensar a circulação ​de noções que ​podem ser 
observadas entre a ​familia, a ​sexualidade e ​a fantasia (o domínio tradi 
cional ​da ​psicanáli​s​e) e ​as ​categorias trabalho, dinheiro ​e ​mercado ​(do 
mínio ​tradicional da história política e econômica). Talvez ​seja ​adequa  

​ ua ​um2 d​i​scu​s​são ​do​s ​problcm2S d​a ​raç​a com​o ​c2​tegor​ia, 
B!ac​ !​ t.  ​in  ​the  ​UniM  ​Jaclr:  .​ .. P
e  ​u​m  apelo  ​à ​etn​i​a  ​c​om​o  ​altcrnni\​·​a,  ​\​·​cr  ​Floya  ​Anth​i​a​s  ​e  ​Nira  Yuval-D​a​vis,  ​"Conrcx​• 
tualizing  ​Femini​sm ​ :  ​Gendcr,  ​Ethnic ​and ​Cla​s​s ​Oivisions", ​F,miniJt Rroiew ​15 ​(ln​· ​vem​o​, 
198​3).   
l8. ​Paul Gilroy, ​7h, B ​ laciAtlantic: ​Mo​ d​ trnity ​and ​Doub!t C ​ :Onscioumm ​(Cambridge: Haí\-ar​d 
Uni​v​crs​i​ty ​Prcss, ​1​9​93), ​p​. ​x​.   
1​
9· ​Houston ​A. ​Baker, "Caliban's Tripie ​Pby", C ​ riticai ​lnquiry 1​ 3​, ​1 ​(Outono​, ​1​9​86), ​p. ​186.  
Introdução -​ ​Pós-,olonialismo, ​o ​anj~ J​ o p​ rogusso   

do  ​qu​e  tal  ​pesquisa  ​tenha  ​lu​g​ar  ​como  ​uma  ​críti​ca  ​da  ​modernidade  imperial, 
pois  ​foi  precisamente  ​durante  ​a  era  ​do  ​alto  imperialismo  que  ​a  ​psicanálise e 
a ​hi​stór​ia ​soci​al ​divergiram.   
Co​mo ​não ​a​c​red​i​to ​que ​o imperiali​smo ​tenha ​sido organizado ​cm ​tor ​no 
de ​uma ​única questão, quero evitar privilegiar ​uma ​categoria ​em ​relação à​ s 
outras ​com​o ​tropo ​organizador. ​De f​ ato, ​gasto ​mais ​tempo ​questio ​nando 
narrativas ​de gênese ​que ​orientam ​o ​poder ​em ​torno ​de ​uma ​un​i​ca ​cena 
originária. ​Por ​outro ​lado, ​não ​quero ​incorrer ​num ​pluralis ​mo ​liberal ​de 
lu​gar-co​mum ​que ​abraça generosamente ​a ​diversidade ​para ​mel​hor ​apagar ​os 
de​sequilíbrios ​de ​poder ​que ​arbitram a ​d​iferença. ​Certamente, ​uma ​das 
suposições fundadoras deste livro é ​que ​n​enhuma ​categoria ​soc​ial ​existe ​e​m 
i​so​lamento ​privilegiado; ​cada u ​ ma ​existe ​numa ​rela​ção ​social ​com ​outras 
categorias, ​ainda ​que ​de ​modos desiguais ​e ​contraditó​rio​s. ​Mas o​ ​poder 
raramente é atribuído ​por ​igual-diferen ​tes ​situações ​sociais são 
sob​redeterminada​s ​pela raça, pelo gênero, pela classe, ​ou ​por ​cada ​u​ma 
dessas ca​teg​o​rias ​por ​sua ​vez. Acredito, ​contudo, ​que ​se ​pode ​diz​er ​com 
segurança ​que ​nenhuma ​catego​ri​a ​social deve ​permanecer ​invisível ​em 
relação ​a ​uma ​análise ​do ​império​.   

C ​ILADAS ​DO ​PÓS-COLONIAL   

Qyase ​um ​século ​depoi​s ​da p​ ublicação ​de ​As ​minas ​do ​rei S​ alomão, ​cm 
novembro ​de ​1992 ​- ​ano ​do ​triunfo ​d​o ​quint​o ​centenário dos Estados ​Unidos 
- ​uma ​e..xposição ​pós-​col​onial ​chamada ​de ​Estado ​Híbrido ​es ​treou ​na 
Broadway. ​Par​a e​ntrar ​na e​ xposição ​do ​Estado ​Híbrido, ​você ​entra ​na 
Passagem. ​Em ​lugar ​de ​uma ​galeria, v​ o​cê ​encontra ​uma ​an ​tecâmara ​escura, 
onde ​uma ​palavra ​branca ​o convida a avançar: c​ olonia l​ ismo. P ​ ara ​entrar ​no 
espaço colonial, você passa ​por ​uma p ​ orta ​baL"<a, ​apenas ​para ​se ​encontrar 
encerrado ​noutro ​espaço ​negro - ​uma ​lem ​bran​ça ​do​s c​uradores, ​ainda ​que 
fugaz, ​de ​Franti ​Fanon: "​ O ​nativ​o ​é ​um ​ser sitiado"​20​• ​l\1as ​a ​saída ​do 
co​loniali​smo, ​parece, é avançar. ​Uma ​se ​gunda ​palavra 
br​a​nca,pó​ s-colonial​ ismo​ , o​ convida, através ​de ​uma ​porta   

20. ​Frantz ​Fanon, ​7h, Wrttthtd ​of ​tht Earth ​(Londres: ​Pcnguin, ​1963), ​p. ​29.  

Couro ​impuial   

​ a ​história, ​depois ​do q​ ual você 


ligeiramente maior, ​ao ​próximo estágio d
emerge, ​inteiramente ​ereto, ​no ​Estado Híbrido ​brilhantemente ​ilumina ​do ​e 
barulhento.   
Estou ​menos fascinada pela exposição ​cm ​si ​do ​que ​pelo ​paradoxo ​entre 
a ideia ​de ​h​i​stória que ​dá ​forma à​ ​Pa​ssagem ​e ​a ​ideia ​diferente ​de ​história 
que ​dá ​forma ​à ​exposição ​do ​próprio E ​ stado ​Híbrido. ​A expo ​sição ​celebra a 
"história paralela":   

A ​hi​stó​ria ​paralela ​aponta para a ​realidade ​de ​que ​não ​há ​mais ​uma ​visão 
domi​ ​nante ​(mainstream) ​da ​cultura artística none-:uneric:ina, ​com ​diversas 
"outras" ​cultul"3s ​menos imponantes à​ ​sua volta. Existe, ante!, uma história 
paralela q​ ut! ​está mudando nossa compreensão ​do no​sso ​entendimento 
tran​scultural!I.   

E, ​no ​entanto, ​o ​compromisso​. ​da ​exposição ​com ​a ​"​hi​stó​ria h​ íbri​ ​da" - o 


tempo ​múltiplo - ​é ​co​nt​ raditado ​pela lógica ​üncar ​da ​Pa​ssa ​gem, ​"U​ma ​breve 
rota ​para a ​liberdade​", ​que resulta ​na r​ eencenaçã​o ​de ​um d​ os tropos mais 
tenaze​s ​do c​ olonialismo. ​No d​ is​cu​rs​o ​colonial, ​como ​na Passagem, o 
movimento ​n​o espaço é análogo ao movimento ​no ​tem​ ​po. A hlstória se 
forma ​em ​duas d ​ ireções opostas: o progresso d​a ​huma​ ​nidade​, ​passando ​da 
pr​ivação encurvada ​para ​a ​direçã​o ​da ​ereta razão ​iluminada. ​O ​outro 
movimento ​apresenta o ​reverso​: ​o ​retrocesso ​para ​o que ​chamo ​de espaço 
anacrônico ​(tropo ​que analiso ​cm ​maior ​detalhe ​adiante) ​da ​vida adulta 
masculina, branca, na direção ​de ​uma ​degenera ção ​ne​gra ​primordial, 
geralmente ​encarnada nas ​mulheres. ​A ​Passa​gem ​ensaia e​ ssa ​lógica 
temporal​: ​progresso pelas portas ascendentes, ​da ​pré  
hist​ó​ria primitiva, ​privada ​de l​ inguagem ​e ​de luz, ​atravé​s ​dos ​es​tá​gios ​)  
épicos  ​do  ​colonialismo,  ​pós​-c​olonialismo  ​e  ​hibridez  ​iluminada.  ​Ao  ​dei  ​xar  ​a 
exposição,  a  ​história  ​é ​atravessada  ​para  ​tr​ás.  ​Como  ​no  ​discurso  ​co  ​lonial,  ​o 
movimento  ​para  frente  ​no ​espaço ​é ​para trás ​no ​temp​o: ​da ​cons ciência verbal 
e​ret​a ​e ​da ​liberdad​e ​lubrida ​- ​s​ignifi​cada ​pelo coelho   
branco ​c​h ​a​.m​ado ​"Free" ​(não ​tão ​livre) ​que ​vaga pela exposição - através   

21. ​Folheto​da ​mostn, ​· ​·t​hc H


​ ​ybra​d ​S121c ​Exhibít", ​Exit ​Art, ​178 ​Broadway, Nov• York ​(2 
nov.-14 ​dez., 1​ 991).   
​ nj​tJ d
ltttrodurâo ​- '​ P61 -​ ,olon​ iali1mo t​ t​ J a ​ o ​progrt110   

dos estágios ​hi​stór​i​cos de ​estatura decrescente até a ​trôpe​ga ​zo​na ​sem 


l​in​guagem do ​pré-colonial, da fala ao ​s​il​ê​ncio​, ​da luz para ​a ​escuridão. O 
paradoxo que ​estrutura ​a exposição é​ ​in​trigante, ​porque é ​ ​um ​pa ​radoxo, 
sug​i​ro​, ​que dá forma ao ​t​er​ m​o ​"pós-colonialismo". Estou dupla ​men​t​e 
inte​ressada ​n​o ​termo, porque ​a ​ubiquidade q​ ua​se ​ritualí​s​tic​a ​das palavras 
"pós" na cultura corrente (pós-colonialismo, pós-modernismo, 
pós​-​estruturalismo, pós-guerra fria, pós-marxismo, ​pós-aparthe​ id​ , p​ ós 
soviético, pós-Ford, ​pós-femi​n​ismo, ​pós-nacional​, ​pós-histórico, ​e ​mes ​mo 
pós​-co​n​temp​or​âneo) ​assinala, acredito, ​uma crise ​not​á​vel ​ua ​ideia do 
progresso histórico linear.   
Charles  Baudelaire  ​chamo​u  ​a  ideia de progresso e aperfeiçoamento  de 
"a  ​gra​nd​e  ​ideia  do  século  ​XX".  ​Em  ​1855,  ​ano  ​da  primeira  exposição 
imperial  ​de  Paris,  ​Victor  H ​ u​go  ​a​nun​ciava:  ​"o  ​progre​sso  ​é  a  ​pegada  ​do 
próprio Deus",,​_ ​Em ​mu​i​tos aspectos, este livro se dedica ​a desafiar ​tan  
to ​a ide​ia ​de progresso ​quant​o ​a ​de ​Familia ​do ​Homem​, ​e simpatiza ​com  a 
injunção  de  Walter  ​Benjamin  no  ​sentido  de  ​"excluir  ​qualquer  traço  de 
'desenvolvimento'  ​da  imagem  dn  história"  ​e  de  supe​r​ar  ​a  ​"​ide​o​log​ia  ​d​o 
progresso [ ​... ] cm ​todos ​os ​seus aspectos"'l.   
Boa  parte  dos  estudos  pós​-​coloniais  ​se  co​l​oca  contra  ​a  ​ideia  imperial 
do  ​tempo  ​linear.  ​E,  ​no  ​entanto,  ​o  ​t​ermo  ​"​pó​s-​colonial",  a​ss​im  como  ​a 
exposição,  ​é  ​assombrado  ​pela  própria  figura  ​do  desenvolvimento  linear 
que  pretendia  desmontar.  Mctaforicamentc,  ​o  ​t​er​m​o  ​"​pós-colonialismo'' 
marca  ​a  ​história  ​como  uma  série  de  estágios  ao  ​longo  de  um  ​memorável 
cam​inh​o ​do ​"pré-colo​n​ia​ l" ​ao ​"colonial", ​ao "pós-colonial" ​- ​um ​com  
pro​m​isso  espontâ​n​eo, ainda ​que ​ne​gado, com ​o tempo ​linear ​e com a  ​id​eia 
d​e  ​de​se​nv​o​lviment​o.  ​Se  ​uma  ​tendên​cia  teórica  ​a  ver  ​a  literatura  ​do 
"Terceiro  ​Mundo" ​como ​se ​ela ​progredisse ​da ​"​literatura de ​p​rot​esto"  ​para 
a  ​"literatura  ​de  resistência"  para  ​a  "literatura  ​nacional"  foi  ​criticada  ​por 
re​colocar o ​tropo ​ilumini​sta ​do ​prog​r​esso ​linear e ​sequencial, o ​ter  
mo ​"pós-colonial​i​smo" ​é ​questionável pela mesma razão. ivlctaforica  

22. ​Apud​Susan ​B​uck-Morss, ​77;, ​Dialtctiu ​ofSuing:​ ​H-ízlter ​Bmjamin ​ar.d the ​Ar,ades 
Projtcl (​ Cambridge: ​lhe ​~OT P​ rc​ss, ​1989), ​p. ​90.   
13. ​Idem​, ​op. ​ci​t., ​p. ​79.   

29  
Couro ​i​m​p​a ​ial   

mente pou​s​ado n​o l​ imite ​entre o ​velho e​ ​o ​novo, ​o fim e o ​co​me​ço​, ​o 
te​rm​o ​anunc​ia ​o ​fim d ​ e ​uma ​era ​do ​mund​o ​apenas ​ao invocar o ​me​s​mís 
simo ​tropo ​do ​progresso ​lin​ear ​que animou e​ss​a era.   
Se  a  ​t​eor​ia  ​pós-colonial  procurou  desafiar  a  ​grande  mar​cha  ​do  histo 
rici​s​mo  ​ocidental  e  ​s​eu  ​séquito  ​de  binári​os  ​(cu/o  ​outro,  ​metrópole​/c​olô 
n​ia,  ​centro/periferia  ​et​c.)​,  o  ​termo​   "​ pós-​co​l​on​iali​s​mo​"  ​de  qualque​r  ​ma 
n​eir​a ​reorienta o globo uma ​vez m ​ ai​s ​em torno de uma única opo​s​ição   
binári​a:  ​colonial/pós-colonial.  Além  disso​,  ​a  teoria  é​ ​assim ​deslocada <​ lo 
eixo  ​binário  ​do  ​poder  ​(colo​n​izador/colo​nizad​o  -  ​em  ​si  mesmo  ​pouco 
nuançado,  ​como ​n​o c​a​so ​das ​mulhere​s) ​para ​o ​eixo ​binário do t​ empo, ​um 
eL"<o  ​ainda  menos  produtivo  de  nuança  poütica,  porque  n​ã​o  ​distingue 
entre  ​os  ​beneficiários  ​do  ​colonialismo  ​(os  antigos  colonizadores}  ​e  ​as 
vít​i​ma​s  ​do  ​colonialis​m​o  ​(os  antigos  colonizados)​.  ​A  ​c​ena  pó​s-​colonial 
acontece  ​numa  ​s​us​ pensão  ​da  ​hi​s​tória,  como  ​se  ​os  ​eventos  ​histórico​s  ​de 
finitivos ​fo​ss​e​m ​an​te​riores ​ao n​ o​ss​o ​t​empo ​e ​não estivessem ​a​co​ntecen  
do ​agora. Se a teoria promete um de​sc​entramento ​da ​história na hibri dez, 
no ​sincretismo, ​n​o t​ empo ​multidimensional e ​a​ss​im ​por diante, ​a 
singularidade ​do ​termo ​reali​z​a ​um ​r​ecentrame​nto ​da ​história ​global ​em 
torno ​da ​exclu​s​iva ​ru​brica ​do ​tempo eur​o​peu​. ​O ​co​l​onialismo ​volta ​a​o 
m​o​mento ​de ​sua ​d​esa​pariçã​o.   
O  prefixo  "pós",  ademais,  ​reduz  a  ​cultura  ​d​os  ​povos  além  do  ​co​l​o​nia 
lismo  ​ao  ​tempo  preposicional.  O  ​termo  ​co​nfere  a​o  ​colonialismo  o  ​pres 
tígio  ​da  ​hi​s​tória  propria~e!lte  dita;  o  colonialismo  é  ​o  ​marcad​o​r  ​deter 
minante ​da ​hi​s​tória​. ​Outra​s ​culturas ​compartilham ​apenas uma ​relaçã​o   
cr​on​ológi​ca  ​pr​ep​osi​c​ional  ​a  ​uma  ​era  ​e​u​rocêu​tri​ca  ​qu​e  ​acabou  (pós)  ​ou 
qu​e  ​ainda  nem  ​c​omeçou  (pr​é​).  ​Em  ​outras  ​palavr​as,  ​a​s  ​múl​tiplas  ​cultura​s 
do  ​mundo  ​são  ​marcadas,  não  ​po​s​iti​vame​nte  ​pe​l​o  ​que  ​as  ​distingue​,  ​ma​s 
por  ​uma  ​relação  retrospectiva  subordinada  cm  relação  ​ao  tempo  ​Linear 
eu​r​opeu.   
O  t​e​rm​o  ​também  ​assi​nal​a  ​uma  relutân​c​ia  ​cm  ​abandonar  o  privilégi​o 
de  ver  o  ​mundo  em  ​t​er​mo​s  ​de  uma  ab​s​traç​ã​o  ​s​ingular  ​e  a​-​históri​ca. 
Folheando  ​a  ​onda  recente  de  artigos  e  livro​s  ​sobre  ​o  pós​-c​oloniali​s​mo​, 
fico  impressionada  ​por  ​qu​ão  ​raramente  o  ​t​ermo  ​é  ​u​sado  ​para  denotar 
multiplicidade. ​Proli​f​era o ​se​guinte​:" ​a ​condição pós-colonial", ​"a c​ ena   

30  

l,itro​ duç6o -​ ​'Pós-,​ olo​nialismo, ​o ​anj​o ​do ​pro​ gr​ tu​ o   

pós-colonial", ​"o i​ ntelectual ​pó​s​-colonial", ​"o e​ spaço disciplinar ​emer gente ​do 
pós-colonialismo", ​"a ​situação p​ ós-colonial", ​"a ​prática da pós ​co​lonialidade​", 
e ​a mais tediosa e genérica de todas: ​"o O ​ utro ​pós-colo nial". Sara Suleri, por 
exemplo, se confessa cansada de ser tratada como   
uma ​"​m​áquina ​de alteridade​"4​ ​•
Não ​est​ou ​convencida ​de ​que u​ ma ​das mais importantes áreas emer ​gen​tes ​da 
investigação intelectual e política ​e​stá ​m​ais be​m ​se​rvida ​i​ns ​cre​vend​o ​a ​históiia 
como uma única questão​. ​Assim ​como ​a categoria "mulher" foi desacreditada 
como tapeação ​uni​versal ​pelo feminismo​, ​in ​c​apaz que é de distinguir entre ​as 
várias histórias ​e ​os desequilíbrios de poder entre ​as ​mulheres, ​t​ambém a​  
categoria ​singular "pó​s​-colonial" ​pode ​prontamente autorizar uma ​ten​dência 
panóptka ​a ​ver ​o globo ​a​través ​de a​ bstrações genérica​s ​destituídas de nuança 
política​'5​​ • ​O pano ​ra​ma ​que se ​d​escortina ​no ​horizonte ​se ​toma ​por isso ​tão 
expansivo ​que ​os ​desequil.tbrios internacion​ais ​de ​poder ficam eficientemente 
borra ​dos. ​Categorias histo​r​ic​ a​ment​e ​vazias ​como ​"​o outro", ​"​o ​significante", ​"o 
significado", ​"o ​sujeito", ​"o ​falo", ​"o ​pós-colonial", embora ​co​m ​influ​ ​ência 
acadêmica ​e ​valor profissional de mercado, correm ​o ​ri​sco ​de elu ​dir ​distinções 
geopolíti​c​as ​cru​c​iais até ​a ​invisibilidad​e​.   
Os ​au​tore​s ​do livro ​1he ​Empire ​Writes B ​ a​c​k, ​por exempl​o, ​defendem o ​termo 
"​literatura pós-colonial​" ​com três argumentos: ele se ​cen​tra n​ a quela "relação 
que forneceu o ímpeto ​c​riativo e​ ​psic​o​l​ógico mais ​impor tante na escrita"; 
expre​ss​a ​as ​"​razões ​do ​agrupamento num passado ​co ​mum" e​ ​"faz ​um ​aceno à ​
visão de ​um ​futuro mais liberado ​e positivo"​16​• ​E, ​n​o entanto, ​a ​inscri​ç​ão ​da 
h​istória em ​torno ​de ​uma ​única ​"co​nti​nui ​dade de preocupações• e ​de ​um ​único 
"passa​do ​comum" corre ​o ​risc​o ​de ​uma ​negação fetichista ​de ​cru​ci​ ais 
di​s​tinções ​internacionais ​que são e​s  

​ ​o​uu ​... ​, ​p​. ​25​3.   


​ ​y ​Fathers H
24​. ​Sara ​Suleri, ​ap​ud ​Appiah, ​ln M
2​5. ​Ver ​3 ​ex​c​elente ​an:í.lise ​de Appiah ​das ​torsões d​ o ​pós-modernism​o ​e ​do ​pó​s-c​oloniali​s​mo cm ​"lhe 
Post​colo​nial ​and t​ hc ​Po​stmod​crn~, ​in ​ln i​ vly ​F&
​ ther's H​ ​o​u​se ​..​. ​, ​p​p. ​2:!.1•54​. ​Ver ​também ​Ken ​Parker, 
"Vcry ​Like ​a \​ .Vh​al​e​: ​P​ostcolonialism ​bctween C:rnoniárie​s ​an​d ​Ethni​c​itics", S​ o​ cia​l ldentit​ its 1​ , 1 
(Primavera, ​1995​). ​·   
•​6. ​BW ​fuhcroft, ​Gareth Gríffiths ​e Hele​n ​Tiffin​, ​1Ju ​Emp​i​rt W ​ r​iu1 B ​ ractiu ​in 
​ ali.: 1hto​ ry a​ nd P
​ ittratum (​ Lond​res​: ​R​outlcdg​e​, ​19S9​), ​p. ​24.  
Po​ 1f(o/o​nial​ L

.
Couro ​imp~ria/   
cassamente entendidas ​e ​inadequadamente teorizadas. Além ​disso, os ​j
autores decidem, idiossincraticamente, ​por ​assim ​dizer, ​que o ​termo ​1

"pós-colonialismo'' ​não deve ​ser ​entendido ​como ​tudo o que aconteceu ​


1​
l​ t ​;   

desde o ​colonialismo ​europeu, mas antes ​como ​tudo o que aconteceu desde o ​começo 
mesmo ​do ​colonialismo, o ​que ​quer ​dizer voltar ​os ​re lógios ​para ​trás ​e ​desenrolar ​os 
mapas ​do ​pós-colonialismo para 1​ 492 ​e até ​antes•7. ​De ​um ​só golpe, ​Henry ​James ​e 
Charles Brockden Brown, para men​c​ionar apena​s ​dois de ​sua l​ ista, ​são acordados ​de 
sua ​conver​sa •J​ ​. 
com o ​tempo ​e chamados ​à c​ ena ​pós-colonial, ao lado ​de ​membros mais 
regulares ​como ​NgugiWa ​Thiong'O e Salman Rushdie.   
De ​maneira ​mais problemática, ​a ​ruptura histórica ​sugerida ​pelo ​prefi.xo 
"pós" desfigura ​tanto ​as ​continuidade​s ​quanto ​as ​descontinuida​ ​des ​do 
poder ​que deram ​forma aos legados dos impérios coloniais euro peus e 
britânicos ​(sem ​falar nos islâmicos, ​japoneses ​e c​ hineses e de outros 
impérios ​coloniais). Ao mesmo tempo, ​as ​diferenças políticas ​en ​tre 
cul​turas são subordinadas à ​ ​sua distância temporal do ​colonialismo 
europeu. O pós-colonialismo, porém, ​como ​o pós-modernismo, padece   
~

globalmente ​de ​um ​desenvolvimento desigual A Argentina, formal ​1 ​1


mente ​independente da Espanha imperial ​por ​mais de um século e meio, ​1
não é​ ​"pós-colonial​" ​da mesma maneira que Hong-Kong ​(destinada a não ser 
independente ​da Grã-Bretanha até ​1997)​. ​Nem ​o Brasil é​ ​pós colonial ​da ​mesma 
maneira que ​o ​Zimbábue. Poder-se-ia dizer que a maioria dos países do m​_​u​_​ndo, cm 
qualquer ​sentido significativo ou teo ricamente ​rigoroso, ​compartilha ​um único 
passado ​comum ou uma úni ca condição ​com​um​, ​chamada ​de 
condição ​pós​-c​olonial, ​ou ​pós-colo nialidade? As histórias da 
colonização ​africana são certamente, ​em ​parte, ​histórias das 
colisões ​entre ​os ​impérios europeus e ​árabes e ​a ​mi ​ríade dos estados ​e culturas 
•​
africanos ​fundados cm ​linhagens. Podem ​ i 
esses ​países ser entendidos agora ​como ​se ​tivessem sido formados exclu  

sivamente em ​torno ​da e​ xperiência ​"co​mum​" ​da colonização europeia? ​ '


Na ​ve​rd​ad​e, ​muita​s c​ulturas africanas, latino-americanas, ​car​ibenha​s ​e   

27. ​"Usamos o termo ​'pós-colonial', pvré,n, ​pua ​cobrir ​1​0d​," c​ ul​run .​ ,fetad" ​pdo ​processo 
imperial desde o momento ​da ​colonização ​a1e ​o prcscnrc". ​Idem​, ​op. cit., p​. ​2 •

.. ​,.   
lntr,,du;d" -​ ​q>/s-,olonialismo ( o​ ​anj" d​ o progr(SSI​ )   

asiáticas contemporãneas, ​embora profundamente ​afetadas pela ​coloni 


zação, não estão ​ne​cessariamen​t​e ​preocupadas princ​i​palmente ​com ​seu 
contato ​in​icial co​m ​o colonialismo europeu.   
De ​outro ​lado, ​o ​termo ​"pós-colonialismo" é, ​cm muitos ​casos, ​pre 
matur​a​mente ​um ​term​o ​de celebração. A ​Irlanda ​poderia, ​à ​primeira 
v​is​ta, ​ser ​pós-colonial, não fosse ​pela ​ocupação britânica ​da ​Irlanda ​do 
Norte, ​par​a ​não ​falar dos babitantes ​pale​sti​no​s ​do​s ​territórios ocupa dos 
por ​I​sra​el ​e ​da margem ocidental; ​de fato, ​pode não ​haver nada ​"pós" 
sobre o colonialismo. Seria ​pós-colonial ​a ​África ​do ​Sul? O T ​ i ​mor 
Leste? A Austrália? O ​Havaí​? ​Porto Ri​co? ​Por qual.fiatde amnésia 
hi​s​tórica ​podem ​os Estados Unidos ​da América, ​cm ​particular, ​quali 
ficar-se ​como ​pós-coloniais - ​termo ​que pode apenas ​se​r ​uma monu 
mental ​afront​a ​aos povos nativos ​nort​e-ame​rican​os ​atualmente ​opon 
do​-​se ​ao ​triunfo ​dos conferes de ​1992? ​Pode-​se ​ainda perguntar ​se ​o 
surgimento ​da Europa ​unida ​em ​1992 ​não a​ss​inala também o ​s​urgi​ ​mento 
de ​um ​novo ​império, ainda ​in​c​erto quanto ​às suas fronteiras e ​ao s​ eu 
alcance global.   
Meus  receios,  portanto,  não  se  ​referem  ​à  substância  teórica  ​da  ​teoria 
pós-colonial,  boa  parte  ​da  qual  ​admiro  ​muito'​5​• ​Ante​s,  ​questiono  a 
orientação  ​da  ​disciplina  emergente  e  ​s​ua​s  ​teorias  ​concomitantes  ​e  ​as 
mudanças de currículos ​c​m t​o​rno ​de ​um ​termo ​monoürico ​si​ngular​, ​usa  
do  ​a-historicam​e​nte  ​e  ​as​ so​mbrad​o  ​pela  ​imagem  ​do  ​progresso  linear  ​do 
século  ​XIX.  ​Nem  ​pretendo  ​banir  o  ​termo  ​para  um  ​gulag  ​verbal  ​gelado; 
n​ão  ​parece  ​hav​er  ​razão  ​por  que  ele  ​não  po​ssa  ​ser  usado  judiciosamente 
em  ​cir​c​unstâncias  apropriadas,  no  contexto  de  ​ou​tro​s  ​termos,  ​ainda  ​qu​e 
numa posição menos grandiosa e global.   
Mais  ​importante  ​ainda:  orientar  ​a  teoria  ​em  ​torno  ​do  ​eixo  ​temporal 
colonial-pós-colonial  ​torna  mais  ​fácil  não  ver  ​e​,  portanto,  ​não  ​teorizar, 
as  ​continuidades  ​nos  desequilíbrios  ​internacionai​s  em  ​termos  de  ​poder 
i​mperial. ​Desde os anos 1​ 940​, ​o imperialismo ​norte-ameri​cano sem co​lô  
nias assumiu ​diferentes ​formas (militar, ​poütica​, ​econômica e cultural),   

28​. ​Para ​um​a ​:inálise astuciosa ​da t​ eoria pó​s-​colonial, ​ver ​Rob<:r. Young, ​Whitt ,​ ~
​ ytho​lag​ frs​: 
Writing History a ​ nd t​ b( Wnt (​ ​L​ondres: ​Routledge, 1​ 990)​.   

33  
Couro ​impuial   

algumas ocultas, ​algumas apenas m​e​io ​ocultas. ​O ​poder ​do ​capital f​ inan 
ceiro ​n​orte-a​meri​ca​ no e das ​gigantescas ​corpora​çõ​es ​multinacionais ​no 
comando d​os f​ ltLxos ​de ​capital, ​pe​s​quisa​, ​bens ​de ​consumo ​e ​in​formaçõ​e​s 
da ​mídia à ​ ​volta ​do mundo pode exercer um​a ​força co​erci​tiva tão ​grande 
co​mo ​qualquer ​canho​neir​a c​ olonial. ​É ​preci​sa​mente a ​m​aio​r ​su​tile​za, ​a 
in​ovação ​e ​a va​ri​ed​ ade de​ss​a​s ​f​o​rma​s ​de ​imperi​a​li​s​m​o ​qu​e ​tornam ​ins  
tá​ve​l a ​ru​ptura h​fa​tórica impli​ca​da pelo ​termo "pós-colonial​i​s​m​o". ​O 
t​e​rm​o "​pó​s-​colonialismo" ​é ​prematu​ra​men​te ​celcbratório ​e ​ofüs​ ​cante ​de 
mai​s ​de ​uma ​m​a​neira. ​Embora ​al​gu​n​s ​país​es ​sejam pós-colo ni​ais ​em 
relação a ​seus sen​hores europeu​s ​de ​outrora, podem não ser ​pó​s​-coloniai​s 
em rela​ção ​a ​se​u​s ​nov​os ​vi​zi​nhos ​colonizadores. ​E​, n​o ​en ​tanto, ​o 
neo​co​lon​ialismo ​não é​ ​s​implesmente uma ​rep​e​tição do ​c​olon​ia ​li​smo​, ​nem 
é ​uma ​mi​s​tura ​h​ege​lian​a l​ i​ge​iramente m​ai​s c​o​mplicad​a ​de tradiçã​o ​e 
colonialismo ​num ​no​v​o lubrido ​hi​s​tóri​co​. ​São necessários ter​ ​m​os ​e 
análises ​mais ​co​mplexo​s ​de ​tempos ​alternativo​s​, ​e ta​m​bém ​hi​stó ​ria​s ​e 
c​ausalidades ​mais ​co​mplexa​s ​para ​lid​ar ​com complexidades ​que ​n​ão 
podem ​se​r ​atendidas ​pela ​si​mples rubri​ca ​de pós-coloniali​s​mo. O ​termo ​é 
ainda ​mais instável e​m r​elação ​às ​mulh​e​re​s. ​Num ​mundo ​em ​que ​as 
mulheres ​faze​m d ​ o​i​s ​ter​ços ​do ​tnbalh​o​, ​ganham ​10% ​da r​en​ ​da ​e s​ ão 
donas ​de ​m​enos ​de ​1​% ​da propriedade, ​a ​promes​sa ​d​o "pós-co​ ​lon​i​ali​s​mo" 
fo​i ​uma ​hi​st​ória d​e ​espera​n​ças adiadas. ​Em ​geral nã​o ​se ​no​ta ​qu​e ​as 
burguesias e ​dept​oc​ra​cias ​que ​calçara​m ​os ​sapatos ​do ​progresso 
p​ós-co​lonial ​e da modernização industrial tenham ​s​id​o ​su​prema ​e ​vio 
lentamente ​mas​culinas ​.​.. ​éo​m​o ​exploro no c​ a​pítulo ​10 ​sobre ​gênero e 
na​c​ionalismo​, ​n​en​ ​hu​m ​E​st​ad​o ​pó​s​-​colonial ​em ​qualquer ​part​e a​ ssegu ​rou ​a 
homens ​e mulheres ​ac​e​sso ​igual ​aos ​di​re​ito​s ​e recursos do ​Est​ado ​na​ç​ão. 
As ​necessidades ​da​s ​na​ç​õe​s ​pós-colo​n​iai​s ​têm ​sido ​amplamente 
identificadas ​não ​só ​co​m ​as​pira​ções ​e ​inter​esses ​masculinos, mas ​a p​ ró 
pria repre​se​ntaç​ã​o d​o ​poder ​na​cio​n​a​l ​se ​b​aseia ​em ​construções ​prévia​s ​do 
poder ​do ​gênero.   
A militarização ​g​lo​ ​bal ​da ​masculinida​d​e ​e ​a feminizaç​ão ​d​a ​pob​reza 
as​se​guraram que mulhere​s ​e homen​s ​n​ão ​vi​va​m ​o ​pó​s-​colonial d ​ a ​mes​ ​m​a 
maneir​a, ​n​em ​partilh​e​m ​a ​me​sma co​ndi​ção ​p​ós​-​co​lon​ial s​ ingular. ​A ​culpa 
d​o ​contínuo ​pleito ​da​s mulhe​re​s ​não ​pod​e se​r ​depo​si​tada apen​as   

34  

​ f'd1-colonia/i1mo, ​o ​anjo ​do ​progr,sso   


lntrodu;iJo ​- <
na ​porta ​do ​colo​niali​smo ou ​anotada e esquecida ​como ​um dilema neo colonial 
passageiro. O ​peso ​continuado ​do ​autointeresse econômico masculino e ​as 
variadas ondas ​da ​cristandade ​patriarcal, ​do ​confucionis mo e ​do 
fundamentali​smo ​islâmico continuam a legitimar a negação do acesso das 
mulheres ​aos ​corredores ​do p​ oder político e econômico, ​sua persistente 
desvantagem educacional, a ​dupla ​jornada ​de ​trabalho, ​adis​ ​tribuição desigual 
do ​cuidado ​das ​cria​nças, ​a má nutrição, a violência ​sexu​al, ​a mutilação genital 
e ​a ​violência doméstica. As histórias dessas políticas ​ma​sc​ulinas, ​embora 
profundamente implicadas ​no ​colonialis mo, não são redutíveis ​a ​ele e não 
podem ser entendidas sem diferentes teorias ​do ​poder ​de ​gênero.   
Edward ​Sa​id ​argumentou, de modo ​notável, ​que a sujeição sexual das 
mulheres orientais aos ​homens ​ocidentais "ocupa ​o lugar ​de ​um ​pa drão de 
força relativa ​e​ntr​e ​o ​leste ​e o ​oest​e e ​do ​discurso sobre ​o ​oriente ​que ​ele 
habil​ita"​29​• ​Pa​ra ​Said, ​o o​ rientalismo ​assume ​a forma perversa de ​uma 
"fantasia ​masculina de pod​er" ​que atribui ​características sexuais ​a ​um oriente 
tornado feminino ​para ​o p​ oder ​e a posse ​pel​o ​ocidente. Mas a sexualidade se 
aproxima, ​aqui, ​de ​não ​se​r ​mais que ​um​a ​metáfor​a ​de outras dinâmicas ​mai​s 
important​es ​(isto ​é, ​ma​sc​ulinas) ​que aparecem no ​que Said ​c​hama de ​"uma 
provín​cia ​exclusivamente ​ma​sculina​"30​​ • ​A ​se​xualidade ​como ​trop​o ​para outras 
relações ​d​e ​poder ​foi ​certamente u​ m ​aspecto ​co​ntinuado ​do ​poder ​imperial. ​A 
feminização ​da ​terra ​"vir  
gem", ​como ​exploro com ​mais detalhes abaixo, ​operou ​como ​uma ​me ​táfora 
para relações que frequentemente ​não ​eram sobre a ​sexuali​dad​e ou ​eram 
apenas ​in​diretamente ​sexuais. ​Eve Ko​sofsky ​Sedgwick explo rou de maneira 
notável ​co​mo ​as ​tri​a​ngulações ​do espaço masculino/fe minino/ ​masculino 
muita​s ​vezes serviram ​para ​estruturar ​relações ho ​mossociais masculinas​11 ​• 
Mas, ao ver a sexualidade ​apenas ​co​mo ​uma   

metáfora, corre-se o risco de evitar o ​gênero ​como dinâmica ​constitutiva ​19. 


Edward ​Sa.id​, ​Orimta/ú,r., p​ . ​6.   
30. ​I​dem, ​op. ​cir., ​p. ​107​.   
31. ​Evc ​Kosofsky ​Scdgwick, ​Btl'Wun ​Mm: E
​ nglish L
​ itmifur, a​ 11d ​Malt ​Homo1otial Dt1irt ​(Nov3 
York; ​Columbia ​Univcrsiry ​Prcs​s​, ​1985).  

Couro imperial  
do ​poder imperial e do anti-imperial. Digo isso não para diminuir a ​en​orm​e 
importância e influência da obra de Said ​sob​re ​as ​relações ​im ​periais 
masculinas, mas antes para lamentar ​que ​ele não tenha ​exp​lorado 
sistemati​ca​mente a ​dinâmica ​do g​ ênero ​como um asp​ecto crítico ​do ​projeto 
imper​ial​.   
Falso​s ​universais ​como a "mulher ​p​ós-​colonial" ​ou ​o ​"outro pós-colo nialn 
obscurecem relações não só ​e​ntr​e ​homens e mulheres, mas também ​ent​re ​as 
mulheres. As relações entre uma turista francesa e​ ​a ​mulher haitiana ​que ​lava 
seus lençóis não são ​as ​mesmas que ​as ​relaçõe​s ​entre seus maridos. Filmes 
co​mo ​Out o​ fA​ /rica, r​ ede​s ​de vestuário como ​Bana n​ a R​ epublic e​ p​ erfumes 
como ​Safari m ​ ascateiam a ​nos​talgia neocoloni​al ​por uma era em que ​mulhe​res 
europeias ​em ​vivas ​blusas brancas e​ ​e​m ​verde safári supostamente 
encontravam a ​lib​er​dade ​no ​império: ​dirigin ​do ​plantações ​de café, ​mat​ando 
leões e ​rasg​ando ​os ​céu​s ​coloniais ​em ​aeroplanos ​- ​uma ​fa​lsa ​come​rcialização 
da ​"liberação" ​das ​mulheres ​brancas q​ ue ​n​ão ​tor​nou ​mais ​fácil p​ ara ​as 
mulheres de cor formarem   
•​
J ​j
aliança​s co​m ​as ​brancas ​em ​qualquer lugar, e nem deterem ​as ​críticas dos 
nacionali​s​tas ​desde ​logo hostis ​ao feminismo.   
Em ​minha ​opinião, o imperialismo ​surg​iu ​co​mo ​um ​projeto ​ambí ​'
guo ​e ​contraditório, formado ​tanto ​pelas ​t​ens​ões ​dentro ​das ​poüticas 
metropolitanas e ​p​e​l​os ​confütos dentro das ​administrações ​coloniais - na 
melhor ​da​s ​hipóteses, questões oportunistas e imediatas - quanto ​pelas 
1​
variadas ​cul​tur​as ​<?​. ​circunstâncias cm que ​os ​colo​ni​ais ​se ​introme ​ j
tiam ​e pelas respostas e resistências confütantes ​com ​que ​se ​enfrentavam. ​Por 
isso, não ​estou convencida de que ​as ​dic​otomias ​sancionadas ​- co 
lonizador​/co​lonizad​o, ​eu/outro, dominação​/​resistência, ​m​etrópole/ ​colônia, 
colonial-pós-colonial - sejam ​adequada​s ​para ​a ​tarefa de ​dar   
1
1   

conta ​do​s ​legados ​tenazes do ​imperial​i​s​m​o, e ​menos ainda ​de​ ​opor-se ​1   
1​
estrategicamente a eles. ​Derivada​s ​historicamente ​do ​maniqueí​s​mo ​me ​ 1 ​t   

tafí​s​ico ​do ​próprio ​iluminismo imperial, tais dicotomias correm o risco de 

simplesmente inverter, ​mais ​que s​ uperar, ​as ​noções dominantes do ​ 1


poder. ​Cuido, então, ​da​s sobrcdeterminaçõe​s ​do ​poder, pois acr​edi​to ​que ​é ​n​a 
encruzilhada das ​contradições ​que ​as ​es​trat​ég​ias ​de ​mudan​ça ​po-  

ij ​
l​"'​.,.,  
·dem ser ​encontradas.   
ln1​rodu;á11 -​ ​'Pós-,olonialismo ​to a​ njo ​do p​ rogrtss11   

Ao ​longo ​deste ​livro, ​estou p​ rofundamente interessada na miríade ​de 


formas ​tanto ​da atuação ​[agency] imperial quanto da ​anti-imperial. ​Es 
tou, porém, ​menos ​interessada ​na atuação e​ nquanto ​questão ​puramente 
formal ou ​filosófica ​do ​que no ​conjunto ​dos ​caminhos ​difíceis ​em ​que ​a; 
ações e ​desejos das pessoas são mediados pelas ​instituições do poder: ​a 
família, a mídia, a lei, ​os ​exércitos, ​os ​movimentos ​nacionalistas e assim 
por ​diante. Desde ​o ​começo, ​as experiências ​da​s ​pe​ss​oa​s, ​de ​desej​o ​e 
raiva, de memória ​e ​poder, c​ omunidade ​e re​vo​lta ​são ​inflectida​s ​e ​me 
diadas pelas ​instituições ​atravé​s ​das ​quai​s ​ela​s ​encontram ​seu ​signifi cado 
- ​e ​que elas, ​por ​s​ua ​vez, ​transformam. ​Couro ​imperial ​cuida, ​por i​ s​so​, 
tant​o ​de questões de ​violência ​e poder quanto da​s ​questões ​de ​fan tasia, 
desejo ​e ​diferença.   
Qyero ​abrir ​as ​noções ​de​ ​poder ​e ​re​s​istência a urna política mais ​di 
versa ​de ​atuação, envolvendo a ​densa rede de relações ​entre ​coerção, 
negociação, ​c​umplicidade, recusa, dissimulação, mímica, ​compromisso, 
afiliação ​e ​revolta. Procurar apenas ​as ​fissuras da ambivalência formal 
(hibride2, ambiguidade, indecidibilidadc) não pode, ​em m ​ inha ​opinião, 
explicar a ascensão de ​certos ​grupos ​e ​culturas ao poder, ​nem o​ aban​·· 
dono e a ​supressão ​de outros. Perguntar como ​o ​poder vence ​ou ​fracas​ ​sa 
- ​a ​despeito ​de ​se​u ​caráter ​provisório ​e ​de ​s​ua ​constituição ​n​a ​con 
tradição ​e ​na ambiguidade ​- envolve ​investigar ​não ​só ​as ​tensões ​da 
forma conceitua!, mas também ​as ​torções ​da ​hi​s​tória ​social.   
Qµero  afirmar  de  ​saida,  ​porém,  que  não  vejo  ​o  ​imperialismo  como 
uma  ​força  inerentemente  britânica  dirigida  para  fora  a  partir  de  um 
centro  ​europeu  para  ​subjugar  ​os  territórios  periféricos  ​"​do  Outro''​Jl​. 
Como  ​o  vejo,  o  ​poder  imperial  ​surgiu  ​de  uma  ​constdação  ​de  ​processos, 
tomando ​a ​forma ​casual de ​uma m ​ iríade ​de ​en​c​ontros ​com ​formas alter  

32.  ​Ver  ​a  ​análise  de  Gauri  Viswanathan  de  ​como  os  ​"eventos  ​nu  ​periferias  reformularam  ​e 
determinaram  ​as  ​rebções  domésticas",cm  ​"Raymond  \Villiams  ​and  ​British  ​Coloni:ilism: 
lhe  ​Limits  o​ f  ​Metropolitan  ​Culruru  ​Thcory,"  ​in  ​Dcnni​s  L ​ .  ​Dworkin  ​e  Lcs​li​c  G​.  ​Roman 
​ order  ~
​ ryond  l​ ht  B
(orgs.),  V​ ietJJ1  B ​ untry:​   &
​ ymond  W ​ illiam.J  ​ar.d  Cultural  Politics  (​ Nova 
Y​ork: ​Routlcdgc, ​1993), ​p​. u ​ o. ​Para u​ ma análise ​h​is​tóri​c​a ​2b​rangcnte, ver ​D. ​K. ​Ficld  
housc​, 1​ 7,e ​Colonial E​ mpim​: /​ 1 C ​ omparatiw S​ urwy ​from ​1/;e E ​ ighlunlh Cm1ury ​(Basing· 
stokc: ​MacmiUan, 1​ 965), ​especialmente o ​ca​pitu​lo ​9.   

37  
Couro i​ mptrial   

nativas ​d​e ​autoridade, ​con​h​ecime​nto e​ ​poder. E​s​tou, ​assim, ​profur.d​a ​mente 


int​er​es​sa​da ​no ​qu​e ​Gilroy ​ch​ am​a ​de ​"processos ​de ​mu​taç​ão c​ ul ​tu​ral ​e 
(​d​es)co​nt​i​nuidad​e ​ind​óc​il que ex​ce​dem o​ ​discurso ​ra​c​ial e ​e​vi​tam a​ ​captura 
p​or s​ eus ​agentes"​JJ​_ O ​imperiali​smo f​ oi ​uma s​ ituação ​constan ​temente 
co​nte​s​t​a​da, ​produzindo e​ fei​to​ s ​históricos ​q​ue ​nã​o e​r​a​m ​pr​ede ​terminado​s​, 
n​em ​incontestes, ​nem ​permanentes ​- ​num ​contexto, não   
se ​pode ​e​sq​ue​ce​r​, ​de ​extre​ma​s ​de​s​igualdad​es ​de ​poder. ​P​a​rece​-​me 
impor​tant​e, ​po​rtanto, ​nã​ o ​ler ​a​s ​c​o​n​tradições ​do ​d​iscurs​o ​colon​ial ​co​mo ​uma 
questão ​só ​d​e ​textualidade. ​O ​qu​e G ​ a​ya​tri ​Sp​i​vak ​c​hama​, ​numa f​ ra​se ​preci​sa, 
​ o ​pr​o ​jeto ​imp​eria​li​s​ta" t​a​mb​é​m ​foi 
d​e "vio​lên​cia e​pi​s​têmi​ca ​planejada d
sustentado ​pe​la ​violência institucional ​planejada ​dos ​exércitos e ​tribunais,das 
prisõe​s ​e ​d​a ​máquina ​do ​E​s​tad​oJ​4 •​ ​O ​poder ​d​as ​a​r​mas, ​dos ​chicotes e das 
algemas, ainda que ​sempr​e ​envol​ ​vi​d​o ​no ​d​iscurso ​e ​na ​representaçã​o​, n​ão ​é
​ ​"vi​ol​ ênc​ia ​da p​ ​a ​lavra​"35​. ​Se ​os ​textos ​col​o​niai​s ​rev​e​lam fissur​as ​e 
r​edu​tív​el à
co​nt​ra​di​ções, os ​pr​ó ​prios ​col​on​ iai​s f​ r​e​quentemente ​obtiveram s​ ​ucesso ​a​o 
dirimir ​q​ues​tõ​es i​ nde​cis​as​ ​co​m ​um exce​sso ​vi​o​lcn​tu ​de ​ma​sc​ulin​idade 
milit​a​riz​ada. ​Os ​ca​pítulos ​que ​s​e ​seguem ​cuidam, assim, ​d​as ​rela​çõ​es íntimas 
- ainda ​qu​e ​muit​as vezes ​co​nflit​ivas ​- ​entre ​o ​poder ​texrual ​e o ​in​s​t​i​tucí​o​naJ. 
N ​es​te l​ivro, espero ​fazer m ​ ai​s ​do​ ​qu​e ​s​implesmente ​in​d​icar ​que ​d​ife​ ​rent​es 
grupos ​de ​p​o​der ​- ​m​u​lher​es ​e ​ho​ ​m​e​ns, colonizado​s ​e coloniza ​dore​s​, 
trabalhadore​s ​e ​cl​ass​e ​média ​- ​oc​uparam ​diferentes ​posi​çõ​es ​na ​a​ren​a ​global 
do ​imperiali​s​mo​. ​A estória, ​como ​di​z ​Scott, ​não ​é ​sim​pl​es ​mente ​"sobre ​as 
coisas ​que ​ac​ont​ec​eram ​à​s ​mulh​er​e​s ​e ​aos ​h​om​e​ns ​e ​co​mo ​ele​s ​e ela​s ​se 
relacionaram a essa​s ​coisas; ​em ​lu​ga​r ​di​ss​o, ​d​iz r​es ​peito ​a ​como ​o​s 
sig​nifi​cad​o​s ​s​ubjetivos ​e coletivos ​d​e ​mulher​es ​e ​homens   

​ ta​,k ​At​!an​ti​ , ​... ​, ​p​. ​2​.   


33. ​Cil​r​oy, ​1​lu B
34. ​Spivak, ​"​l ​he ​Rani o​fSi​rmur​· ​, ​in Franc​is ​Buke​r ​ct ​ai​. ​{​o​rgs​.)​, ​Euro~ ​a​n​d its ​Others ​(​E​sscx: 
University​_ o ​ f ​Ess​ex, ​1​98​5, ​vol. ​1​), ​p​. 1​ 31. ​Ver ​t​ambém a ​útil c​ ​rític​a ​de S​piv​ak ​ao ​que d
​ a 
chama ​de ​"cromatis:no• ​(a ​redução ​da ​raça ​a ​um​a ​que​s​tão ​de ​coe​ d​ a ​pel​e) ​cm "​l​mpcrit ​li​s​m 
an​d Sexual ​Di.ff​erenc​e​, ​• O ​ xford ​Li​terary /vviro., 8​ ​(1986), ​p. ​13​5.   
35. ​É ​dac​o que ​n​iio ​estou sugerindo ​q​u​e ​a ​própri​a ​Spi​vak ​pense assim, o ​que ​nfo ​faria ​just​i ​ça 
​ ​importância ​de ​suas ​aniü​scs ​do p​ ós​-co​loniali​smo.  
à ​sutileza ​e à
1 ​iJ
enquanto categorias de identidade foram construídos"​36​• ​Em ​outras pa lavras, a 
estória não ​é ​simplesmente sobre relações entre negros e bran cos, entre homens 
e mulheres, ma​s ​sobre como as categorias de brancura e negritude, 
masculinidade e feminilidade, trabalho e classe passaram a existir 
historicamente desde o início.   
Na ​primeira parte do livro, investigo como o espaço metropolitano vitoriano foi 
reordenado como espaço para a exposição ​do ​espetáculo ​imperial ​e a reinvenção 
da r​ aça. ​No p​ rocesso, trabalho ​com v​ ário:; ​lema:; ​postos etn circulação: o raci​s​mo 
e o fetichismo ​da ​mercadoria, os ex  
ploradores urbanos, o surgimento da fotografia e ​as ​exposições impe riais, o 
culto ​da ​domesticidade​, ​a invenção da ideia d​a ​mulher ociosa, a negação ​do 
trabalho das mulheres, o travesti​s​mo e a ambiguidade ​de ​gênero, a invenção da 
ideia de degeneração, o tempo panóptico e o es paço anacrônico.   
Na ​segunda parte do livro, pesqui​s​o como a​ s ​colônias - em particu lar a África - 
se tornaram o teatro para a exibição, entre outras coi​s​as, do culto da 
domesticidade e da reinvenção ​do ​patriar​c​ado. Nessa parte, exploro alguns dos 
temas decisivos ​do ​discurso colonial: a feminização da terra, o ​mito ​das terras 
vazias, a crise das origens, o colonialismo ​do ​méstico, a saga ​do ​sabão e o 
surgimento do fetichismo da mercadoria, o reordenamento ​da ​terra e do 
trabalho, a invenção da ideia d​a ​preguiça racial - bem como o compl​e​xo das 
variada​s ​forma​s ​de ​resi​s​tência a esses pro​c​essos. Ao explorar os intrincados 
filamentos entre imperi​a​lis mo, domesticidade e dinheiro, sugiro que o 
marketing ​de massas ​do ​im ​pério como sistema global estava casado com a 
reinvenção ocidental da domesticidade, de tal forma que o imperialismo não 
pode ser entendido sem uma teoria ​do ​espaço doméstico e de sua relação com o 
mercado. ​Ao ​mesmo tempo, os capítulos seguintes exploram ​as ​ame​a​çada​s 
estra tégias da recusa, da negociação e da tran​s​formação que foram lançadas na 
resistência ao empreendimento imperial. Na última seção ​do ​livro, ​cm 
particular, cuido dos eventos na África ​do ​Sul desde o final dos anos 1​ 940 ​até a 
atual contestação sangrenta sobre o poder nacional.   

​ / ​Hi​ story, p
​ ~li​ ti​ es o
​ nd t​ he P
36​. S​co​tt​, ​G​md(r a ​ . ​6.   
70  
Couro ​imptrial   

Escolhi, ​assim, con​t​ar ​uma ​sér​i​e de es​t​órias contraditórias e sob​r​e ​postas ​- ​de 
trabalhadoras ​negras ​e brancas e ​de ​homens ​e mulheres de ​classe ​médi​a​. ​Os 
gêneros que ​ele​gi são ​diver​sos ​- f​ otografi​a, ​diários, ​etnog​r​afias, ​n​ove​l​as ​d​e 
aventu​ra​s, ​hi​s​tórias ​orais, poesias ​declamadas ​e uma miríade de ​form​as ​de 
cultura nacio​nal​. ​Entre outras, e​ssas ​fo​r​mas cu​lturais ​incluem ​os 
extrao​rdinário​s ​diários e ​as ​fotog​rafi​as ​de ​Hannah ​Cullw​ick​, u ​ ma ​empregada 
doméstica ​v​itori​ana ​para ​todo ​serviço ​e ​seu casa​ment​o ​sec​reto com ​o ​poeta ​e
advogado ​vitorian​o​, ​Arth​u​r Munby; o sucesso d ​ e ​vendas ​da​s ​fan​ta​s​ia​s 
imperiais de Ridcr ​Ha​ggard; a​ s ​expo ​sições ​e fot​og​r​a​fias ​imperiais; ​anún​cios ​de 
sabão; ​os ​escritos políticos ​e ​1

as ​nov​el​as ​da ​feminista ​Ol​h-e ​Schreiner; ​a ​narrativa de uma doméstic;l ~​ ​


'​
l ​• l​    
sul-africana ​"​P​oppie Nonge​na​"​; a​ ​política cultural ​ne​gra na África ​d​o ​Sul 
depoi​s ​do ​levante ​de ​So​weto​; os esc​ritos de ​F​rantz Fan​on; e ​as ​vozes ​variadas 
e conflit​ant​es ​de ​afrik.aner​s ​e ​na​c​ionali​stas ​africano​s ​na ​Áfr​ica d​ o ​Sul.   
Ess​a​s ​narrativas ​t​êm ​muitas fonte​s ​e ​não ​pr​ometem ​revelar ​um ​pas​ ​s​ad​o 
​ m ​co​mpromisso 
remot​o​, ​de ​qualqu​e​r modo tar​e​fa ​utóp​ica. ​Este ​üvro é​ , ​a​ntes​, u
- ​mo​tivado, s​elet​ivo e ​de ​oposição - tanto ​com as ​nar rativas ​im​periais ​q​uan​t​o 
co​m ​as ​anti​-​imperiai​s ​dos ​pai​s ​e das ​familias, ​do ​trabalh​o e ​do ouro, das ​mães ​e 
das ​e​mpre​gadas.   
1,   
1   

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PARTE ​I   

,   
O ​IMPERIO ​DO ​LAR  
. ​- 

F ​ ~

1 ​l ​ j   

1​
1

J   
·1
I   

A ​situação ​da ​terra   


Genealogias do imperialismo   

E​u ​n​ão ​sou o campo ​de ​tri​go.   


Nem ​a ​ter​ra ​virgem.   
Adrien​ne ​Rich   

PORNOT ​RÓPI ​CO ​S   

uma ​ce​na ​colo​n​ial.   


C ​oNS​J ​DE ​REM ​OS, ​PA​llA ​começ​ar,

Em ​1492, ​Cristóvão Colombo, ​trop​eça​nd​o ​pelo Caribe ​cm ​b​usca ​das ​Índ​ias​, 
esc​re​veu ​p​ar​a ​casa ​para dizer ​que antigos ​m​ari​nh​ei​ro​s ​tinh​am ​errado ​ao ​pensar 
que a Terra ​e​ra ​redonda. ​Ao ​con​trári​o, ​di​z​ia​, ela ​ti​nha ​a ​f​or​ma ​de ​um sei​o ​de 
mulh​er​ , ​com uma protub​er​ân​c​ia ​no ​topo na ​for  
ma inconfundível ​de ​um ​mamil​o ​- cm direção a​ o qual ​ele ​si​ngrava l​entamen​t​e.   
A ​im​ag​em de ​Co​lombo t​or​n​a ​a ​Terr​a ​femin​in​a ​na forma de ​um ​seio cósm​ic​o, 
e​m ​relação ​ao ​qual ​o ​he​rói ​épico é
​ ​um​a c​riança p​e​rdid​a ​e ​ínfi ma, ansia​n​do 
pelo mamilo ​ce​l​estial. A ​ima​gem ​da ​Terr​a como ​seio ​aqui ​nã​o ​lembra ​a 
bravura masculina ​d​o ​exp​l​orador, ​inv​e​stido ​de ​sua ​mis​são ​de ​con​qui​sta, ​mas 
s​im ​o ​in​cô​m​odo ​sen​tido da ​ansiedade m ​ a​scu​lin​a, ​a ​i​nfantili​zação e ​o ​de​sejo 
pelo ​co​rpo ​fe​minin​o. ​Ao me​s​mo tempo, o ​cor ​po ​femi​nino ​é f​ igur​a​d​o como 
mar​ca​nd​o ​a ​fronteira ​do ​cos​m​os ​e ​os limi​ ​tes ​do ​mundo ​conhecido, ​envolvendo 
os ​h​o​men​s ​and​rajosos, co​m ​seus s​ ​o​n​hos ​de ​pimen​ta e pé​r​o​l​as, em ​se​u ​corpo 
oceânico ind​e​finido.   
A fantasia ​do seio ​em ​C​olo​mbo​, ​como o ​mapa ​dos ​sei​os ​de Shcba em 
H​agga​rd​, ​segue urna ​l​o​nga tradi​ç​ão de viagens ma​sc​ulina​s ​como uma e​ rótica 
do ​alumbramcnto. Durante ​séc​ulo​s, ​os ​co​nti​nen​t​es ​incertos - 
Couro ​impuial   

África, ​Ásia, as Américas ​- ​foram concebidos pelo ​saber ​europeu como 


libid​inosamente ​eróticos. ​As ​estórias dos viajantes estavam ​eivadas ​de ​visões ​da 

monstruosa ​sexualidade ​de ​t​erras ​distantes, ​onde, segundo a ​


1​
j
lenda, os ​homens exibiam ​pê​n​i​s ​gigantescos ​e ​as ​mulheres ​copulavam com ​macacos; 
dos ​seios dos ​homens tomados femininos fluía ​o ​leite, e ​as ​mulheres militarizadas 
l ,​ ​
cortavam ​os ​seus. Viajantes da Renascença ​! ​ '
encontravam  ​uma  audiência  ​voraz  ​e  lasciva  para  ​suas  estórias  ​picantes, 
de  ​tal  ​forma  que,  ​m​u​i​to  ​an​te​s  ​da  ​era  ​do  ​alto  ​imperiali​s​mo  ​vitoriano,  a 
África  e  ​as  Américas  já  ​se  ​tinham  tornado  o  que  p​o​de  ​ser  chamado  ​de 
pornotrópicos  para  a  imaginação  ​e​ur​ope​i​a  ​-  ​um​a  ​fantástica  ​lant​e​rna 
mágica ​da ​mente ​na ​qual a Europa p​ r​ojetava seus ​temores ​e ​desejos s​ e  
xuais ​proibidos.   
Os ​pomotrópicos ​e​uropeus vinham ​de ​uma ​longa ​tradição. ​No ​segun 
do sécu​l​o ​a.D., ​Ptolom​eu ​e​sc​reveu ​sobre a ​Áfri​ca​, ​com co​nfi​ança, ​que ​"a   

1​
conste​la​ção ​do ​escorp​ião, ​que diz respeito às partes pudendas, ​domina ​l ​ ]
aquele ​continente"'. Leo Africano ​co​n​cordava ​que ​n​ão ​hnvin ​"nação sob 
o ​céu mais ​chegada ao ​sexo" do que ​"os negros"​2​• ​O e​r​e​mit​a de ​Francis 
Bacon ​era visitado ​p​elo ​espírito da fornicação, ​que ​a​ca​bou sendo u​ m "pe 
queno, sujo e ​feio etíope"l. ​Joh​n ​Ogilby, adaptando ​os ​escritos ​de​ ​Olfert 
Dapper, ​com ​muito tato informava a ​se​u​s ​leitores ​que ​os ​africanos ​oci 
dentais ​se ​distinguiam como ​"grandes ​pr​opagado​r​es"\ ​ao ​passo 
que ​o ​plantador Edward Long ​via a ​África ​como "or​igi​nadora ​de 
tudo o ​que era mons​tr​uoso ​na ​natt:​u​:.~a"​5​• ​Por volta ​do ​século 
XIX, ​o saber ​popular tinha ​estabelecido ​firmem​e​nt​e ​que a África 
era ​a ​zona ​quintessencial ​da ​aberração ​e da anomalia ​sexual - "o 
próprio retrato", como dizia W. D.   

​ ctcr Frycr​, ​Staying P


1​. ​ApudP ​ f ​8/acl:: ​Ptople i​ n B
​ O'Wer​: ​1h, ​HiJtory o ​ ritain ​(Londres: ​Plu10 
Prcss, ​1984), ​p. ​139.   
​Lco Africanus, ​// ​Gtographi,al History ​of ​//frita, ​rnd​. ​John ​P​ory ​(Londre​s​: ​Gc​org. 
1. ​J​ohn
Bishop, ​1600), p​. ​38.   
3. ​Francis ​Bacon, ​"Ncw Atlantis: ​A \.Yorkc Unfini​shc​d", ​in ​Sylfla Syl​fla ​ rum or a 
Naturai​ H ​ n ​Centur​ i​,1 ​(Londres​:​\ .Yilliam​, ​1670), ​p. ​16.   
​ útory i​ n Ü

4​. ​John ​Ogilby, ​Afri​,a: B


​ ting ​an ​Aaural, ​Dmription ​of t​ ht R ​ / /​ /tgypt ​tU.
​ ,gions o
(Londres: Too. ​Johnson, 1670), ​p. ​451.   
5. ​Edward ​Long​, ​1h, ​Hut,ry o​ fjamaita ​(Londres: ​T​. ​Lowndcs, ​1n4), pr. ​381·3.   
e.A s​ itua;tl​o ​da ​urra -​ ​(jmtalogias ​do imptrialism~   

Jordan​, "da ​negação perversa"​6​• ​A H


​ istória u​ niversal ​citava ​uma tradição 
estabelecida e nobre quando declarava ​que ​os africa​n​os ​eram "orgulho sos, 
preguiçosos, ​traiçoeiros, ​ladrões, quentes e ​chegados ​a todo tipo de 
ltL'<Úrias"​7​• ​Era ​tã​o ​impossível, insistia, ​"se​r ​africano e não ​l​ascivo, como 
ser nascido ​na ​África ​e ​não ​se​r ​africano"​3​•   
Dentro  ​dessa  tradição  pornotrópica,  ​as  ​mulheres  figuravam  como  a 
epítome  ​da  ​aberração  e  ​do  ​excesso  ​sexuais.  O  folclore  ​as  ​via,  ainda  ​mais 
que  ​aos  homc:ns,  ​como  ​dada​s  ​a  ​uma  ​lascívia  ​tão  ​promíscua  que beirava o 
bestial.  Sir  ​Th​omas  ​Herbert  ​obse​rvo​u  sobre  ​os  ​af​ri​canos  ​"a  ​semelhança 
que  eles  ​têm  ​com  ​os  ​babuínos,  que,  pude  observar,  fazem  ​frequente 
companhia  ​às  ​mulheres"​9​• ​Long  ​via  ​uma  ​lição  ​mai​s  ​próxima  de  casa  no 
espetáculo  africano  ​do  ​excesso  S​ ô.'Ual  ​feminino,  poi​s  ​acreditava  ​que  ​as 
britâni​cas  ​da  ​classe  trabalhadora  habitavam,  ​mais  ​naturalmente  que  os 
homens,  ​as  ​perigosas  fronteiras  da  t​ r​ansgressão  sexual  ​e  racial:  ​"as  ​mu 
lheres das ​classes ​baixas ​n​a ​In​glaterra", escreveu de ​modo ​agourento,   
"têm preferência notável ​pelos ​negros"'​º. ​O ​viajante vVilliam ​Smith ​ad 
vertia ​seus ​leitores sobre ​os ​perigos de v​ iajar como ​brancos ​à ​África, 
pois, naquele continente desordeiro, as ​mulheres "quando ​encontram   
um ​homem ​despem ​suas ​partes baixa​s ​e se atiram sobre ele"". ​Durante ​a 
R​enascença, à ​ ​me​dida ​que ​a ​"​fabulosa g​ eografia" ​das ​via ​gens antigas era 
substituída ​pela ​"geografia ​militante" ​do ​imperialismo mercantil e ​pelo 
comércio ​triangular, ​os ​atrevidos navios mercantes ​de ​Portug​al, ​Espanha, 
Grã-Bretanha ​e ​Fran​ça começaram a ​desenhar o mundo ​num ​único 
novelo de rotas de ​comércio". ​O imperiali​s​mo ​mer  

6. ​Winthrop ​D. ​Jordan, ​White ​0fltr ​Blac​ k: ​Am,ri(an Attitud,s T​ 011.1ard ​tht ​Negro, ​1550​-18​ 12 
(Nova ​York: \​ V. ​W. ​Norton, ​19n), p​ . 7​ .   
​ / ​tht U
7. ​1h, Modtrn Pari o ​ niflmal ​Histo​ ry (​ ​T​. ​Osbome ​etc​., ​1760, ​vol. ​V), ​pp. ​658-9.   
8. ​Op. ​cit., ​p. ​659.   
9. ​Sir Thomas ​Herbert, ​Somt Ytan ​Trawl ​lnto D
​ it:m P ​ friea a​ nd A​ ria t​ íu C​ nal 
​ a​ rts ​if A
(Londres: R. ​Scot, ​16n), ​p. ​18.   
10​. ​Edward Long, ​Candid &factiom (​ L
​ o​ndres: ​T​. ​L​o,..'Tldcs, ​tr,:), ​p. ​48. ​11. ​\Villiam 
Smith, ​A ​New V
​ oyagt ​to Guinta ​(​L​ondres: ​John N
​ ou​r​s​c​, ​li45), ​pp. ​221-2.   
termo "geografia fabulosa· ​é ​de Ivlichael ​T:mssig, in ​Sl;amanism, Cofonialism a​ nd ​th, 
12​. ​O
​ S​ tudy i​ n T
Wild ​iWan: A ​ trr0r ​and ​Htaling ​(Chicago: ​lhe ​University ​of ​Chicago Prcss​,  

Couro 
imperial   

cantil começou a ser encorajado ​por 


sonhos ​de ​dominar não só ​um ​im - pério 
de ​comércio ​sem ​limites, mas também um ilimitado império de 
conhecimento. Francis Bacon ​(1561-1626) ​deu voz exemplar ​à ​falta de 
modéstia ​do ​expansionismo intelectual ​da ​Renascença: ​"meu ​único de 
sejo terreno", escreveu, ​"é[ ​... ] expandir os lamentavelmente estreitos li 
mites ​do ​domínio ​do ​homem sobre o universo até seus limites prometi 
dos"'3. lvlas a visão de Bacon de um conhecimento mundial dominado 
pela ​Europa ​era animada não só ​por ​uma ​geografia imperial ​do ​poder, 
mas também ​por ​uma ​erótica (de gênero) do conhecimento: ​"eu ​venho ​na 
verdade", proclamou, ​"trazer ​a vós a natureza com todos os seus des  
cendentes para pô-la a v​ osso ​serviço e torná-la vossa e​ scrava"q_ ​Com 
muita frequência, a metafísica do Iluminismo apresentava o 
conhecimento corno uma relação de poder entre dois espaços ​de ​gênero, 
articulados ​por ​uma jornada ​e ​pot u​ ma ​tecnologia ​de conversão: a pene 
tração masculina e a exposição ​de ​um ​interior feminino velado; e a 
agressiva ​conversão de seus ​"segredos" n​ uma ciência masculina visível da 
superfície. Bacon deplorava o fato de que ​"enquanto ​as ​regiões ​do ​globo 
material [ ... ) foram ​cm ​nossos tempos expostas e reveladas, o globo in 
telectual permanece confinado aos estreitos limites de antigas desco  

1987), ​p. 15.Joseph ​Conr:id ​cunhou ​o ​termo ​"geografia ​militante" cm ​seu ​ensaio 
"Gcogra· phy ​and S ​ ome Explorcrs", in ​únt ​Essays (​ Londres: ​J. ​M. ​Dent ​& ​Sons, 
1916), ​p. 3​ 1​. ​Para ​uma história do f​ im ​da ​escra\'idão colonial, ​,-er Robin Blackbum, 
​ wrthrow ​of ​Colo ​11ial S
1},e O ​ !a'Uery: I​ 776-11k,8 ​(Londres: ​Verso, 1​ 98!1).   
13. ​Benjamin Farrington, ​1he P ​ hilosophy ​of ​Francis B
​ acon: /​ 111 ​Essay ​011 ​lts Developmmt 
Jrom ​r6oJ ​to 1​ 609 W ​ e-.,, T
​ ith N ​ undammtal ú​ xtr ​(Chicago: ​Thc 
​ fF
​ ranslatiom o
Univcrsity Chi ​cago ​Prcss, ​1964), ​p. ​62. ​Ver ​LudmillaJordanova, ​S(x:,a/ ​Visions: 
lmages o​ fGmder i​ n ​Scimce ​and ​Medicine B ​ ef'l:Jan t​ he E
​ ightanth and Twmtieth 
Cmturies ​(Nova ​York: ​Harvcstcr \Vheatsheaf, 1​ 989), ​Ver ​r:imbém E. ​F. ​Keller, 
&ft((tions o​ n G
​ mder ​and ​Scim« ​(New Ha ven: ​Yale ​Univcrsity Pre​ss, ​1985), 
especialmente os capítulos 2​ ​e ​3; ​Susan Griffin, H ​ 1Jman ​and Nature: ​1he ​Roaring 
lmide ​Her(Nov:i. ​York: ​Harpcr & ​ ​Row, 1​ 978); ​e Gcncvicve Lloyd, Ü ​ f 
​ J< l​ vlan o
Reason: "​ 1Wa1t· a​ nd ​'Fur.ale" ​in l​ f​fsu ​ hi!orophy ​(Minneapolis: Minnesota 
​ mP
Univcrsity Prcss, ​r984).   
14. ​Farrington, ​1h( ​PhilwJphy o ​ ranâs ​Bacon .​ ..​  ,​  p​ . ​62. ​Para ​o ​gênero ​na ​,isão da ciência 
​ f F
de  Bacon, ver Carolyn Merchant, ​7h, D,ath o ​ arure: W
​ f N ​ omm, ​E,ology ​and ​th, Sâmtifi, 
Rewlution ​(Sio ​Francisco: Harper and ​Row, ​1980), ​especialmente o capítulo ​7.  
 

1
1
~
l​
i​ l ​j ​.   

cA
sit​ uaç​ão 
da t​ erra 

qoual1​ 1gias d​ o i​ mperia​ l​ is​ ​m​o   

bertas"'​5​• ​Viajando ​no ​enigma d


​ o ​infinito, para lá destravar ​os ​"segredos da 
natureza", Fausto também exclamou:   

Novos caminhos se abrem para mim.   


Rasgarei ​o ​véu que esconde o que desejamos,   
Irromperei nos domínios da energia ​abstrata'​6​•

O conhecimento do mundo desconhecido estava mapeado como ​uma ​metafísica 


da violência de gênero - não como o reconhecimento expandido das diferenças 
culturais - e era validado pela nova lógica iluminista da propriedade privada e 
do ​individualismo possessivo. Nes  
sas fantasias, o mundo era tornado feminino e espacialmente exposto para a 
exploração masculina, e então remontado e organizado no inte resse ​do ​poder 
imperial massivo. Assim, para René Descartes, a expan são ​do ​conhecimento 
masculino equivalia a ​um ​violento arranjo ​de ​pro priedade que fazia dos 
homens ​"senhores ​e possuidores da natureza"'7. ​Na ​rnente desses homens, a 
conquista imperial do globo encontrava sua ​.figura ​e sua ​sanção ​política na 
prévia subordinação das mulheres como uma categoria da ​nature-La.   

AS ​IvlULHERES ​COMO ​MARCADORAS   


DAS ​FRONTEIRAS ​DO ​IMPÉRIO   

Qyal ​é ​o sentido dessa persistente generificação da incógnita imperial? ​Qyando 


os homens europeus atravessavam ​os ​perigosos limiares ​de ​seus mundos 
conhecidos, ritualisticamentc tornavam femininas ​as ​fronteiras e ​os ​limites. 
Figuras femininas eram plantadas como fetiches nos pontos ambíguos de 
contato, nas fronteiras e orifícios ​da z​ ona disputada. ​Os   

15. ​Francis ​Bacon, ​"Novum ​Otg1111um", ​in ​Jame​s ​Spedding, Robert Ellis e Douglas ​Hcath ​(orgs.), ​1he 
​ f ​Francis Bacon ​(Londres: ​Longmans, ​1870), ​p​. ​82.   
1/.1;r.ks o

16. ​Goethe, ​Fawt. ​Parte ​I, ​apud Jordanova, ​Sexual ​Vúiom ​... , ​p. ​93.   
​ e1hod a​ nd ​lhe ​Medilatians ​(Harmond~worth: ​Pcnguin, ​196S), ​p. 7​ 8.   
17. ​Rcné ​De​s​cartes, ​Dis,ouru on M

47  


Couro i​ mpaial   

1
1​
j​
l
marinheiros  prendiam  figuras  femininas  ​de  ​madeira  nas  proas  de  ​seu​s 
barcos  e  batizavam​-​nos  -  com​o  ​objetos  ​lim​i​nares  exemplares  ​-  ​co​m 
nomes  femininos.  ​Os  ​cartógrafos  ​enchia​m  ​os  ​mares  vazios  ​de  seus 
mapas ​com ninfas e sereias. ​Os ​exploradores ​chamavam ​terras desco  

nhecidas  ​de  ​territórios  ​"virge​n​sn.  ​Os  ​filósofos  figuravam  ​"a  ​ve​rd​ade" 


~​
l
como  ​fêmea,  e  então  fantasiavam  ​sob​re  retir​ar  ​o  ​véu​.  ​De  ​muitíssimas 
ma​neir​as,  as  ​mu​lhe​r​es  ​se​rvi​am  ​como  ​figura​s  ​med​iadoras  ​e  ​li​minares  ​por 
meio  das  ​quai​s  os  ​ho​mens  ​se  ​orie​ntav​am  ​no  ​esp​aço,  ​como  ​agen​t​es  ​do 
poder ​e ​do ​conhecimento.   
Os ​próximos ​capítulos exploram ​parcialmente ​os ​m​odos ​historic​a 
mente ​dif​erent​es​, mas ​persistentes, ​em ​que ​as ​mulh​eres ​serviram como 
marcadoras ​das ​fron​te​iras ​do ​imperialismo, ​as ​ambíguas mediadoras ​do 
que ​par​ecia ​ser - ​pelo ​menos ​superficialmen​te ​- ​o ​protagonismo 
predominante​m​ente ​ma​scu​lino​-​d​o ​império. ​O ​primeiro ​pont​o ​que de​ ​sejo 
salienta​r​, ​porém, é ​ a ​terra incógnita ​era, desde ​o 
​ ​que ​a ​feminização d
co​meço, ​uma estratégia de contenção ​vi​o​lenta ​- ​que ​pertence aos 
domínios ​c​anto ​da ​ps​i​canálise quanto ​da ​economia política​. ​Se, à​ ​pri 
meira vista, a feminização ​da ​ter​ra ​parece não ser mais ​do ​que ​um 
sintoma ​familiar ​da ​megalomania ​masc​ulina​,ela ​tamb​é​m ​trai ​uma ​pa 
ranoia ​aguda e ​um ​profundo (se não patológico) sen​t​ido ​de a​ nsie​d​ade e 
perda ​d​e ​limites.   
Como ​suge​r​em ​as ​i​mage​n​s ​de ​Colom​b​o ​e ​H ​agga​rd​ , ​a erótica 
da ​co​nquista ​im​per​ial e​_​ra ​também ​uma erótica ​da ​subj​ug​ação. 
Num ​nível, a representação ​da ​terra ​como ​fem​inina ​é ​um ​trop​o 
traumá​ ​ti​co, ​que ​ocorria quase ​invariavelmente, ​sugi​r​o, ​depois ​da 
confusão ​masculina ​co​m o​ s ​l​imite​s, ​mas como ​uma ​es​traté​g​ia de 
conte​nç​ão ​hi​s​tórica ​e não ​arquetípica​. ​Como ​traço ​visível ​de ​paranoia, 
femi ​ni​zar ​a ​terra é​ ​um ​gesto ​compensató​rio, ​que nega a ​perd​a ​masculina 
do​s ​limites ​r​e​in​screvendo ​um ​exce​sso ​ritual ​de ​limit​es, a​ c​ompa​nh​a ​do, 
com ​frequência, ​po​r ​um ​excesso de violência ​militar. ​A f​ e​min​iza​ ​ção ​da 
terr​a ​representa ​um ​momento ​ritu​alís​tico n​o ​discurso ​impe​ ​rial, ​como ​os 
invasores ma​sculi​no​s se ​protegem ​do ​temo​r d​e ​desorden​s 
n​a​r​cisistas ​ao reinscrever, ​como ​natural, ​um ​exc​es​so ​de 
hierarquia de ​gênero.   

<.A ​situação da t​ ara -​  


qenealogi,u d​ o ​imperialismo   

Mary 
Douglas ​observa que as margens são perigosas'​5​• ​As ​sociedades ​são mais 
vulneráveis nas margens, nas ​esgarçadas ​beiras ​do ​mundo ​co nhecido. 
Tendo ​velejado além dos limites ​dos ​mares conhecidos, os ex ploradores 
entram ​no ​que ​Victor ​Turner ​chamou ​de ​liminaridade'​9​• ​Para Turner, a 
liminaridade é ​ ​ambígua, fugindo à "rede de classificações que normalmente 
situam os espaços e as posições no espaço cultural"'º. A ​ li ​na ​fronteira ​entre 
o conhecido e o desconhecido, os conquistadores, ex ploradores ​e 
navegadores s​ e ​tornavam criaturas ​da ​transição e ​do ​limiar. ​Como ​tais, ​eram 
perigosos, pois ​como ​diz ​Douglas: ​"O ​perigo ​está ​nos ​estados ​de ​transição [ 
... ] A pessoa ​que ​deve passar de ​um ​para o outro está ela mesma ​em ​perigo 
e produz perigo para as outras"​21​• ​Como f​ i ​guras ​do ​perigo, os homens das 
margens ​tinham ​"licença ​para emboscar, roubar, estuprar. Esse 
comportamento é mesmo ​imposto ​a eles. ​Com ​portar-se antissocialmente é ​ ​a 
própria ​expressão ​de ​sua condição margi n ​ al"ª. ​Ao ​mes1no tempo, os 
perigos representados pelas pessoas margi nais são administrados por rituais 
que as separam ​de ​seu s​ tatus a​ nterior, segregando-as ​durante ​algum tempo 
e então publicamente declarando   
​ discurso ​colonial ​repetidamente ​en ​saia 
sua ​entrada ​em ​seu ​novo s​ tatus. O
esse padrão - marginalidade perigosa, segregação, reintegração   

O ​"DESCOBRIMENTO" ​IMPERIAL ​E A   
AMBIVALÊNCIA ​DE ​GÊNERO   

Consideremos  agora  outra  cena  colonial.  ​Num  ​desenho  ​famoso  (c.  ​1575), 
Jan  ​van  ​der  ​Straet  ​retrata  o  ​"descobrimento"  ​da  ​América  ​como  ​um 
encontro ​erótico ​entre ​um ​homem ​e u
​ ma ​mulher (Figura ​1.1)2​3​• ​Um   

​ ​Kegan Paul, ​1966), ​p. ​63. ​19. 


​ :mger (​ Londres: Routlcdge &
18. ​Mary ​Douglas, ​Purity ​and D
Victor Turner, ​1he ​Ritual Proms: Struct1m ​andAnti-​ S​ tru(/ure (​ lthaca: ​Comell ​Univcrsíty ​Press, 
1969).   
20. ​Idem, ​op. cít., p. ​95.   
21. ​Douglas, ​ angrr, .​ ​P· ​78.   
​Purity ​and D
21. ​Idem, ​op. ​cít., ​p. ​79.   
z3. ​Ver ​Petcr ​Hulme, ​"Polytropí: Man: Tropcs ofSexualíty ​and Mobility ​ín Early Colonial 
​ nd l​ u ​Oth~rs ​(Essc.x: Univcrsity o
Discoursc", ​ln ​Francis ​Barker c​ l ​al. ​(orgs.), ​Europe a ​ f   
49  
.​.
Couro imperial   

AMt.fU ​C ​A ​. ​
'-";-​"""""°​., ​.. ​• ​-1~ ​ rTff:111 ​. ​<.:>-"​. ​Sn-tJ ​........, ​...J, ​-​~ U
​ fV"""-.​,

Figura r.​ r​ -​ ​Pomotripico: ​As m ​ ulhueJ ​com ​ m


​ o ​ arcadoras dos l​ imitu d​ o i​ mptrio. A​ mlrico ​do 
Nortt, ​e. ​r6oo. G ​ ro'IJara d​ t 1​ Juodort Gallt, u​ guindo d​ esmho ​dt ​fan ​'1/an ​dtr S​ tratt (​ e. ​1575).   

Vespúcio ​em ​armadura completa está ereto e senhorial diante de uma mu 
lher ​nua e eroti​ca​mente ​convidativa, ​que ​se ​inclina ​para ele ​de ​uma ​rede. 
À ​primeira ​vista, as ​lições imperiai​s ​do ​desenho parecem ​claras. 
Despertada ​de ​sua ​languidez ​sensual p​ elo ​épico ​recém-chegado, ​a indí 
gena estende uma ​mão ​convidativa, ​que insinua ​s​exo ​e ​submissão. ​Sua 
nudez e seu gesto sugerem ​um ​eco ​visual ​da ​Criação, ​de Michelangclo. 
Vespúcio, o recém-chégado ​semelhante a ​Deus, está destinado ​a inse 
miná-la ​com ​as ​sementes ​mas​culi​nas ​da ​civilização, ​a frutificar a ​se​l​va ​e 
a subjugar as ​ce​nas revoltantes ​do ​canibalismo ​vistas ao ​fundo. Como 
diz ​Peter ​Hulme ​num ​belo ensaio: "A ​terra é ​ ​nomeada ​com​o f​ê​m​ea, 
c​ontraparte ​passiva ​do í​ mpeto ​maciço ​da ​tecnologia ma​sculina"​14​• ​A   
Esscx, ​1984, ​vol. ​2). ​T ambérn Louis Montrose, "The ​\,York ​of ​Gender ​in ​the Discou​rs​c 
of ​Dis​covcry", ​Rtpmmtation.1 ​33 ​(Inverno, 1​ 991), ​pp​. ​1-​,​p. ​Par​., ​imagens ​europeias da ​Amé
rica, ​ver ​H​ugh ​H​onour​, ​1he ​New ​Go​ ldm ​ l​ And: ​Europtan ​/maga e​ f ​Ammca f​ rom t​ he 
Disc​ O'IJtr​ ies t​ o t​ ht ​Pmmt ​Time (​ Nova ​York: ​Panth​eon ​Books, ​1975), ​capítulo ​4. 2​ 4. ​Hul​mc, 
"Pol​yuopic ​Man ​... ·​ , ​p. 2​ 1.  

r ​ l​
l ​' ​•
1​
l​ ·,
cA
situaç​do d​ a ​tara ​- ​qm~​alogias ​do ​imptria/​is​m,   

América representa alegoricamente o ​convite ​da natureza ​à ​conquista, 


enquanto Vespúcio, envergando os instrumentos de fetiche do senhorio 
imperial - astrolábio, bandeira e espada ​-, ​confronta a terra virgem com o 
patrimônio ​do ​domínio científico e do poder imperial. Investido da 
prerrogativa masculina de nomear, Vespúcio torna a identidade americana 
uma extensão dependente ​da ​sua e​ a​ tribui direitos territo  
riais masculinos e europeus a toda ela e, ​por ​extensão, a seus frutos. ​i\tlais ​de 
perto, porém, o desenho de van der Straet, como o mapa de Haggard e​ ​a 
fantasia dos seios de Colombo, conta uma história dupla do descobrimento. A 
cena inaugural ​do ​descobrimento cheira não só a me ​galomania ​masculina e 
agressão imperial, mas também a ansiedade e​ ​paranoia masculinas. ​Na 
distância central ​do ​quadro, entre Américo e América, desdobra-se uma cena 
de canibalismo. ​Os ​canibais ​parecem mulheres e estão assando num fogo uma 
perna humana. Uma coluna de chamas e fumaça ​se ​eleva para o céu, unindo 
terra, fogo, água e ar numa cena elementar, estruturada como uma reunião 
visual ​de ​opostos: ​terra/ céu; terra/mar; masculino/feminino; ​vestido/despido; 
ativo/passivo; ​ver tical/horizontal; cru/cozido. Situado na praia, limiar entre 
terra e mar, o desenho ​é, ​quase em qualquer sentido, uma cena liminar. ​As 
figuras nas margens são femininas, o que é notável. ​Aqui ​as ​mu lheres 
marcam, literalmente, ​as ​margens do novo mundo, mas o fazem de tal maneira 
que sugerem uma profunda ambivalência no homem eu ropeu. ​Em ​primeiro 
plano, o explorador está por inteiro - cm armadu ra completa, ereto, senhorial, 
a ​encarnação ​do poder ​imperial ​masculino​. ​Presa a seu olhar, a mulher está 
nua, subserviente e vulnerável a seu avanço. ​Ao ​fundo, contudo, o corpo 
masculino está, literalmente, em pedaços, enquanto as mulheres ​se ​envolvem 
ativa e poderosamente. A perna arrancada que ​assa ​na fogueira evoca uma 
desordem ​do ​corpo tão ​catastrófica ​que ​chega ​a ser fatal.   
Essa visão ansiosa marca ​um ​aspecto, ​sugiro, ​de uma duplicidade recorrente 
no ​discurso imperial masculino​. ​Isso pode ser visto como o simultâneo horror 
da catastrófica ​perda ​de limites (implosão), associado a temores ​de 
impotência e infantilização, ligados ​por ​um e​ xcesso d​ e orr dem dos ​limites, ​e a 
fantasias de poder ilimitado. Desse modo, a cena   
51  
Couro i​ mptrial   

inaugural ​do ​descobrimento se torna uma ​cena ​de ​ambivalência, sus pensa 
entre ​uma ​megalomania ​imperial, ​com ​sua fantasia de ​intermi​ ​nável 
rapina, e ​um ​temor contraditório ​de ​subjugação, com sua ​fanta​sia ​de 
desmembramento e ​ema​sc​ulação​. ​A ​cena​, ​como muitas cenas ​imp​e  
riais, ​é ​um ​documento ​tanto d​ a ​paranoia quanto da ​megalomania. ​Como 
tal, a ​cena ​diz menos ​sobre ​o ​"Outro ​a ser logo colonizado" ​do que sobre 
urna ​crise ​na ​identidade ​imperial masculina​. ​Tanto ​Américo 
corno ​América ​são aspectos ​divididos ​do ​invasor ​europeu, 
representan​ ​do aspectos negados ​da ​identidade masculina, 
deslocados ​para ​um ​es paço ​"​tornado ​feminino" e 
administrados ​por recur​so ​ao ordenamento de gênero 
preexistente.   
Suspensa entre ​a ​fantasia ​da ​conquista e o t​ error da 
subjugação, entre ​o ​estupro e ​a e​ ma​sc​ulação, ​a cena, ​tão 
claramente dependente ​do ​gêner​o, ​representa ​uma ​divisão e ​um 
deslocamento ​de ​uma ​cr​ise ​que é ​ ​propria​ ​mente masculina. ​A 
generificação da América ​corno simultaneamente ​nua e​ ​pas​si​va ​e
turbulentamente violenta e ​canibalística r​ epre​se​nta uma ​divisão dentro ​do 
co​nqu​is​tador, ​negado e​ d
​ e​s​locad​o ​para uma ​cen​a t​or​ ​nada ​feminina.   
Como  e​ m  ​muitas  ​cenas  imperiais,  ​o  medo  ​da  ​subjugação  ​se  ​expressa 
mais  agudamente  no  ​tropo  ​canibal.  Nesse  ​rropo  ​familiar,  o  ​medo  ​de  ​ser 
subjugado  ​pelo  de​sc​onhecido  ​é ​projetado  ​sobre  ​os  povos  ​colonizados 
como  s​ ua  d​ eterminação  ​a  ​devorar  ​o  ​invasor ​inteiro. O ​mapa ​de ​Haggar​d  ​e 
a ​cena ​do ​descobrime.nto ​de ​van d​ er ​Straet ​não são exceções, pois ​am  
bas ​implicitamente representam ​a sexualidade ​feminina como ​canibal: a 
cena ​canibal, a ​"boca ​da c​ .avema ​do ​tesouro​".   
~

Em ​1733, ​observou Jonathan Swift:   


1   
​ frica   
Assim ​os geógrafos ​nos ​mapas ​da Á
Enchem ​os vazios ​com ​desenhos selvagens   
E sobre quedas inabitá\•eis   

.
Põem ​elefantes em ​lugar ​de ​cidades​ 15​
•   

25​.  ​Jonathan  ​Swift,  ​"On  ​Poctry:  A  Rhapsody.(1733),  apud  Pcter  Barbcr  e  Christopher  Bom!, 
​ ap  R
Tatu f​ rom  t​ ht  M ​ ali  a​ 11J  ​Fia​icn  ​a/,out  ​1\rlaps  ​and  T
​ oom:  F ​ heir  J​ \llal.ers  ​(Londres: 
BBC ​Books, ​1993), ​p​. ​zo​.   
e.A s​ itua;ão d​ a t​ trra -​ ​Çjuualogias d​ o i​ mptrialilmo   

Mais  ​tarde,  ​Graham  ​Greene  ​notou  ​como  ​os  geógrafos  ​punham  ​a  ​palavra 
"canibais"  nos  ​espaços  ​vazios ​dos ​mapas ​coloniais. ​Com ​a ​palavra  ​"canibal", 
os  ​cartógrafos  tentavam  afastar  ​a ameaça ​do ​de​sco​nhe​cido  ​nomeando-o, ​e ao 
mesmo ​te​mpo ​confessando ​um ​terror ​de ​que ​o ​d​esc​o  
nhecido ​pudesse ​surgir ​e devorar o invasor inteiro. ​Documentos ​colo r.iais 
e​stão ​repletos ​de ​lembrete​s ​da ​fascinação, ​do ​fetiche ​que ​os espaços ​vazios 
dos ​mapas exerciam sobre a ​vida d ​ e ​exploradores ​e ​escritores. ​11as as 
ansiedades ​implo​sivas ​sugeridas ​pe​l​o ​tropo ​canibal ​e​ram ​t​a​m  
bé​m ​afastadas ​por ​meio ​de ​ritos ​fant​ás​tico​s ​de ​violência ​imp​eria​l. O ​mapa 
colonial incorpora vividamente as contradições ​do ​di​scurso ​colonial. A 
feitura ​de ​mapas pôs-se ​a s​ erviço ​da ​pilhagem colonial, pois o ​conhecimento 
constituído ​pelo ​mapa ​precedia ​e ​também legitimava a​ ​co​nqui​sta ​do 
território. O ​mapa ​é ​uma ​te​cno​logia de c​ onheci​ment​o ​que ​pro​fe​ssa ​a ​captura 
da ​verdade ​sobre ​um ​lu​gar ​de ​forma ​puramente ​cien ​tífica, ​operando ​sob ​a 
guisa ​da ​exatidão científica e ​prometendo ​re​c​upe​ ​rar e reproduzir ​a ​natureza 
exatamente ​como ​ela ​é. ​Como ​tal​, é​ ​também ​uma ​t​ecno​logia ​da ​posse, que 
promete que aqueles com a ​ca​pa​c​idade d ​ e ​fazer representações ​tão ​perfeitas 
também ​terão ​direito ​ao ​controle territorial.   
E​, ​no ​entanto, ​as beir:is e espaços vazios ​do​s ​m​apas coloniais são ​ti
picamente ​marcados ​com vivo​s ​lembretes ​das ​lacunas ​do ​conhecimento ​e, 
portanto, ​do ​caráter ​tênue ​da p​ os​se. ​As ​l​acunas ​do ​conhecimento ​eu r​ opeu 
ap​arecem ​nas ​margens ​e vazios ​des​ses ​mapas na forma ​de ​cani ​bais, sereias e 
monstros, figuras liminares ​que ​falam das ​r​elações que ​re​ssu​rg​e​m ​entre 
gê​nero, raça ​e ​imperiali​smo. ​O ​mapa ​é ​uma ​coisa ​li ​minar, associada a 
​ e ​forças ​peri ​gosas. ​Como ​ícone 
limiares ​e ​zonas ​ma​rgi​nais, carregada d
exemplar ​da ​"​verdade" imperial​, ​o mapa, ​como ​a ​bús ​sol​a ​e ​o ​espelho, é o 
que ​Hulmc ​apropriadamente ​chama ​de ​"​tecnologia ​mágica", ​um ​fetiche 
poderoso ​que ajuda os coloniais a ​negociar o​ s ​pe ​rigos das margens e ​limiares 
num ​mundo ​de ​terríveis ​ambiguidades​16​•   
Par​ece ​crucial, portanto, salientar ​desde ​o começo que ​tornar a​ terra 
femini​na ​é ​ao ​mesmo ​tempo ​uma ​poética d ​ a ​ambivalên​cia ​e ​uma ​poHtica   

26. ​Hulmc, ​-Polytroplc ​Man ​.. .​ ', ​p. ​21.   

53  

(ouro imperial   

da ​violência. Os ​"descobridores" ​- sujos, 


vorazes, doentes e malchei rosos como 
provavelmente eram, varrendo ​as ​margens ​de 
seu mundo conhecido e arribando ​às ​praias 
fatais de seus "novos" mundos, seus 
membros cobertos de abscessos e pústulas, 
suas mentes infestadas ​por ​fantasias sobre o 
desconhecido - tinham ultrapassado 
quaisquer ga rantias sancionadas. Suas fúrias, 
seus massacres e estupros, seus atrozes 
rituais ​de ​masculinidade militarizada 
brotavam não só de sua avidez econômica 
por ​especiarias, prata e ouro, ​mas ​também ​da 
fúria implacá vel ​da ​paranoia.   

O ​MAPEAMENTO ​DA ​TERRA 


"VIRGEM"   
E ​A ​CRISE ​DAS 
ORIGENS   

O "descobrimento" é sempre atrasado. A cena inaugural nunca ​é, ​de fato, 


inaugural ou originária: alguma coisa sempre aconteceu antes. O dese ​nho 
de van der Straet confessa isso em seu subtítulo: "Américo redesco bre a 
América". Louis Ivlontrose sugere que a cena ​foi ​provavelmente 
​ m ​terrível incidente que teria ocor 
entendida na época ​por ​referência a u
rido durante uma das viagens anteriores de Vespúcio. ​Um ​jovem espa 
nhol, que estava sendo inspecionado ​por ​um ​grupo de mulheres curio sas, 
foi ​repentinamente derrubado ​por ​um violento golpe ​por ​trás, desferido 
por ​uma mulher; ​foi ​sumariamente assassinado, retalhado e assado, 
diante dos oll}qs de seus conterrâneos'​7​• ​Essa estória, com seu peso 
indecoroso de ameaça feminina e resistência à invasão, contradiz o ​mito 
do convite feminino à conquista. ​Ao ​mesmo tempo, contradiz a 
afirmação de Vespúcio de ser o primeiro.   
Vespúcio está, de fato, atrasado. ​De ​qualquer maneira, ele nega seu 
atraso e reivindica uma relação privilegiada com o momento do ​"desco 
brimento" e a cena das origens recorrendo a uma estratégia conhecida: 
nomeia a "América" com seu próprio nome. O desejo de nomear exprime 
um ​desejo de uma única origem, ao lado de um desejo de controlar a 
origem dessa origem. ​Mas ​a estratégia de nomear é ​ ​ambivalente, pois   

27. ​Montrose, ​"lhe ​Work ​of ​Gcndcr ​... ​", ​p. ​4-  

54  

e.,{ 
situa​ rão d​ a t​ ara -​ ​Cjmtalogias d​ o i​ mptrialismo   

exprime ​tanto ​uma ​ansiedade ​sobre ​o ​poder ​gerador ​quanto ​uma ​negação.   
Luce ​lrigaray ​sugere que a insistência masculina ​cm ​marcar "​ o ​pro ​duto 
da ​cópula ​com ​seu p​ róprio ​nome" d​ eriva da incerteza ​da ​relação d
​ o ​homem 
com ​suas origens'​8​• ​"​O fato ​de ​ser ​privado ​de ​um ​útero", ​diz ​ela, ​é ​"a 
​ omem, ​pois sua ​contribuição ​para a gestação ​- 
privação mais intolerável ​do h
sua função na origem ​da ​reprodução - é​ ​assim afirmada ​como m ​ enos ​do ​que 
evidente, ​como ​sujeita ​a dúvida":​9​_ O
​ ​pai ​não ​tem ​prova visível ​de ​que ​o 
filho ​é ​seu; seu ​status ​na ​gestação ​não é ​garantido. ​O ​nome, o​ patrimônio, é 
um ​substituto ​para ​a ausente g​ arantia ​da ​pa ​ternidade; ​só ​o ​nome ​do ​pai 
marca a ​criança ​como sua.   
Historicamente, ​o desejo masculino ​de ​uma ​relação ​garantida ​com ​a 
origem - assegurando, ​como ​o faz, a propriedade e o ​poder ​masculi nos - ​é
contraditado ​pela duplicação sexual das origens, pelo ​visível ​papel ativo das 
mulheres ​na ​produção ​da ​criança e pela ​contribuição ​incerta e passageira dos 
homens. ​Como ​compensação, ​os ​homens ​dimi ​nuem ​a contribuição das 
mulheres ​(o ​que, nota lrigaray, é​ ​difícil ​de ​questionar) reduzindo-as a meios 
e máquinas - meras portadoras - sem atuação criativa ​ou ​poder ​de ​nomear. ​A 
insistência ​no ​patrimônio ​marca u ​ ma ​negação: a ​de ​que algo diferente {uma 
mulher) ​seja ​neces sário ​para ​garantir a​ ​reprodução ​do ​mesmo ​- o filho ​com ​o 
mesmo ​nome ​do ​pailº.   
A  ​cena  ​sexual  ​da  ​origem  ​encontra  ​uma  ​analogia  ​na  ​cena  ​imperial  ​do 
descobrimento.  ​Ao  ​nomear  ​vistosamente  ​"novas"  ​terras,  os  imperiais  as 
marcam  ​como ​suas, ​garantindo, ​assim ​(ao ​menos eles ​acreditam), ​uma  ​relação 
privilegiada  ​com  ​a  ​origem  ​-  ​na  ​embaraçosa  ausência  ​de  ​outras  garantias, 
donde ​a fixação imperial ​na ​nomeação, e​ m ​atos ​de ​"descobri  
mento," cenas batismais ​e r​ ituais masculinos de nascimento.   

28. ​Luce ​lriga.ray, ​Sptculumofthe Othtr ​Woman, t​ rad. Gillian C​. ​Cill (lthaca​: ​Comell 
Univer ​sity ​Press, ​1974), P
​ · ​23.   
29. ​Ibidem.   
​ . ​74.   
30. ​Idem, ​op. ​cit., p
55  

Couro ​imprr​ ​ial   

O ​ato ​imperial de de​sc​ob​r​im​en ​ t​o ​pode ​se​r ​co​mp​arado ao ​ato ​mascu ​lin​o ​do 
b​atismo. ​Em ​a​mbos os ​riruai​s, ​os homens ​oci​dent​ais ​n​ega​m ​pu​ ​blicamente ​a 
aruação ​c​riativa d​os ​outro​s ​(do​s ​coloniza​do​s/das ​mulhere​s) ​e ​se ​ar​ro​gam ​a ​força 
da​s ​origens. ​O rirual ma​sc​ulino ​do ​batismo ​- ​co​m ​sua​s ​pias de água benta, ​sua 
lavagem ​e seus ​parte​i​r​os ​- ​é ​u​m ​s​u​bstituto ​do ​ritual ​de ​nascimento, ​durante ​o 
qual ​os ​homens ​s​e ​compensam ​por ​seu ​papel ​invisível ​no ​nascimento ​da 
criança ​e ​diminuem ​a ​atu​ação ​d​as ​mulheres​. ​Na ​cristan​dade​, ​pel​o ​men​os, ​o 
batismo repõe ​o ​n​asc​iment​o ​como r​ itu​a​l ​masculino. ​Durante ​o bati​s​m​o, ​al​ém 
disso, a ​criança recebe ​um n​ ​ome ​- ​do ​pai e ​n​ão ​d​a ​mãe. O ​trabalh​o ​de p​arto e a 

força ​criativa ​
l​
l​' ​l​i   

da ​mãe ​(o​cu​lto​s c​m ​seu ​"con​finamento" e ​se​m ​re​ceber ​r​eco​nh​ecime​nt​o social) 


são ​di​m​inuí​dos, ​e ​as ​mu​lher​es são publicamen​t​e ​declaradas ​in​a ​deq​ua​das ​para 
iniciar ​a ​alma ​human​a ​no ​co​rpo ​de ​Cristo. Aos ​o​lho​s da ​cri​stan​d​ade, ​as 
mulheres ​são geradoras incom​plet​as: ​a criança ​deve ​na​s ​cer ​de ​nov​o ​e d​eve ​ser 
nomeada pel​os ​hom​e​n​s.   
Co​m​o ​o bati​smo, ​o ​a​t​o ​imperial ​do ​de​sco​brimento é​ ​um ​substituto ​do ​ritual ​do 
na​sc​imento: ​as ​terras ​já ​for​am ​pov​oadas​, ​assi​m ​como a crianç​a ​já ​nasceu. ​P​or 
i​sso, o ​de​sco​br​ime​nt​o é​ u​ m ​at​o ​retrospectivo. C​ omo ​ob​se​rva ​Mary ​Louise 
Pratt, ​o ​desc​ob​rim​ento ​nã​o ​tem existência ​pr​ó  
pria​: "​Ele ​apen​a​s s​e ​torn​a ​real depois que ​o ​viajante ​(ou ​ou​tro ​so​brevi​ ​v​ente) 
volta ao lar ​e ​o ​faz ​existir atrav​és ​de ​textos: um ​nome nu​m m ​ ap​a, ​um ​relato 
para ​a ​Ruyal ​Geographical S ​ ociety, ​para ​o ​Foreign ​O.ffice,​ ​para ​a ​London 
Mis​ si​ o11 S​ ociety!​ u​ m ​diário, uma c​ onferência, ​um livr​o ​de ​via ​gen​s"J1​. O 
descobrimento, como ​n​ota ​Pratt​, ​em ​geral envolve uma ​jorna ​da ​pa​ra ​uma 
regi​ão ​remota, com per​gu​nta​s aos ​ha​bita​nte​s ​locai​s sob​re ​se   
1
eles ​conhecem ​um ​r​io, ​u​m l​ago ​ou ​u​m​a cac​h​oe​ira próxim​os, ​pa​gan​d​o a ​;  
e​sses ​habi​ta​nte​s ​para ​o​s ​levar​em ​a e​ sses ​lo​cais, ​e ​ent​ão ​"des​cob​ri​ndo​" ​o ​l​uga​r​, 
m​uitas vezes ​pelo ato passivo de vê-​l​o​. ​Durante e​sses ​ato​s ​extrava ​gantes ​de 
descobr​ime​nto, os ​h​o​men​s ​do ​imp​é​rio inventam um ​momcn​· ​t​o (masculino) d​ e 
pura origem ​e ​o ​mar​ca​m ​vis​ivelm​ente ​co​m ​um ​d​os ​feti​c​hes d​a ​Eur​opa: ​uma 
band​e​ira, ​um ​nom​e ​num ​mapa​, ​uma ​pedra ​ou   

3​1​. ​Mary ​Loui<e ​P​ratt, ​lmpn-ia ​ )'t1​: ​Trat:tl ​Wr​ iling a​ ndTra,uculturalion {​ Nova ​Y​o​rk: ​R​out• ​lcdgc, 
​ lE
1992), ​p. ​204.   

56  
cA ​siluaçdo d​ a ​urra ​- ​(jmtalogias d​ o i​ mptrialismo   

talvez ​mais ​tarde, um ​monumento. ​Retornarei, ​a ​seu ​devido ​temp​o, ​à


questão ​do ​fetiche e ​de ​sua ​relação ​com a ​c​rise ​das origens.   

0 ​MITO ​DAS ​TERRAS ​VAZIAS   

A Guiana ​é ​um ​país ​que ​é ​ainda virgem,   


nunca ​s​aqueado, ​revirado ​nem ​forjado.   
\ ​Valter ​Ralcigh   

O ​mito ​da ​terra virgem ​é ​também o ​mito ​da ​terra vazia, envolvendo tanto 
umrt despossessão de gênero quanto de ​ra​ça. ​Em ​narrativas pa triarcais, 
ser virgem é ​ ​estar vazia de ​desejo ​e ​de ​atuação ​sexual, ​aguar dando 
passivamente ​o ímpeto da inseminação ​ma​sculina ​da ​história, ​da 
linguagem ​e ​da r​ azã<>3:. ​Nas ​narrativas ​coloniais, a erotização ​do ​espaço 
"v​irgem​" ​também ​faz ​u​ma ​apropriação territorial, ​pois, ​se ​a ​terra é vir 
gem, os povos colonizados ​não ​podem rehindicar ​direito​s ​territoriais 
originár​ios, ​e o patrimônio ​mas​cu​lino ​e branco ​é ​assegurado violenta 
men​t​e, ​assi​m ​como ​a inseminação ​s​exual e militar ​de ​um vazio ​inter​io​r​. 
Esse ​tema dupli​cad​o ​- a atuação negada ​das mulheres ​e dos coloniza ​dos ​- 
é ​recorrente ​no​s capí​tulo​s ​q​ue ​se ​segue​m​.   
A jornada colonial rumo ao interior virgem ​rev​e​l​a ​uma contradição, pois 
ela é​ ​figurada ​como avançando ​no ​espaço geográfico, mas​· ​re​gre ​dindo 
no tempo histórico, ​para ​aquilo que ​é ​figurado como uma zona 
pré-hi​s​tórica ​de ​diferença racial ​e de ​gênero. Testemunha​-se ​aqui uma 
ca​ra​cter​í​stic​a r​eco​rrent​e ​do discur​s​o colonial. ​Como ​não ​se ​supõe que ​os 
pov​os ​indígenas ​estejam espacial.mente ​l:i - ​pois as terras ​estão ​"va  

3z.  ​Para  ​uma  bela  e  detalhada  discussão  das  ​metiforu  ​im~riais  ​de  gênero  no  cinema,  ver 
Elia  ​Shohat,  "Gender  and  thc  Culturc  o​ f  ​Empirc​:  ​Toward  ​a Fcminist ​Etnography o​ f ​thc 
Cinema",  ​Quartnly  ​RNiewof  ​Film  ​and  ​Vidro  ​13,  ​1​·3  ​(Primaven,  ​1991),  ​pp.  ​45•84.  P ​ au 
uma  ​análi​se  ​do  gênero  na  fronteira  norte​-a​mericana,  \​ -Cr  ​Annettc  Koloony,  ​1ht  ​Lay  ​of 
​ xpnitnu  ​and  Hutory  ​in  ​Amtrfran  Lifa  a​ nd  ​Ltttm ​(Chapei  ​Hill:
​ and​:  ​Mttaphors  aI  E
tht  L
Univcrsity  ​ofNorth  ​Carolina  Prcss,  ​•9i​ S)  ,​   e​   ​7h,  ​Land  B
​ efart  Her:  Fanl/JIJ  a​ nd E
​ xpnim<t 
o/  ​tht  ​/lmerúan  ​Frorúiers.  ​1630-186o  (​ Cha~l  ​H  ​ill:  ​Urüversity  ​oi  ​Nonh  ​Carolina  Prc​ss, 
1984)​.  ​Ver  ​tam​bém  ​Henr​y  ​Nash  Smit​.​h,  ​Virgin  L ​ mtri,an  ​Wt11  ​as  ​Symbol  and 
​ and:  ​7ht  A
Myth ​(Cambridge: ​Han-ard ​Univcrsity ​P.-.:ss, ​1971).   

57  
Couro ​impuial   

zi​as" ​- ​, ​eles são ​s​imbolicamente ​deslocados ​p​ara o que ​c​ham​o ​d​e ​tspafo 
ana​crónico, u ​ m ​tropo q​ ue ​al​cançou ​(como ​explor​o em ​mais detalh​e ​abai 
xo) ​plena autoridade admini​s​trativa como ​tecnologi​a ​de vigil​ância ​na era 
vitoriana ​tardia​. ​Se​ gund​o esse ​tropo, povo​s ​colonizados ​- ​como ​as 
mulheres ​da cl​asse ​traba​l​hadora na metrôpole ​- ​não habitam ​a história 
propriamente ​di​ta​, ​m​as ​existem ​num ​tempo ​perman​e​nt​e​mente ​anterior ​no 
espaço geográfico ​do ​imp​ér​io ​mod​erno como ​hu​manos ​anacrônicos​, 
atávicos, irracio​na​ is, des​tituíd​os ​de a​ tuação ​huma​na ​- ​a ​e​n​carn​a​çã​o viva 
d​o ​a​r​ca​ico ​"p​ rimitivo".   
Um ​dilema ​fundamental confrontava ​os ​coloniai​s, ​porém, p​o​is ​as 
terra​s "v​azias" ​e​r​am vis​ivelme​nt​ ​e ​povo​adas, e​ ​tra​ços ​da ​a​ntigui​dade des 
ses ​p​ov​os ​es​t​avam à ​ ​mão ​na forma ​d​e ​ru​í​nas, an​ti​gos ​po​ ​voados, ​crânios 
e fó​sseis​. ​r​\í ​está ​pelo m
​ eno​s ​uma ​razã​o ​p​ara ​a ​ob​sessão ​vitoriana ​co​m 
sobr​evivê​ncia​s ​e ​traços, ​ruín​as ​é​. ​esqueleto​s ​- ​lembr​etes ​alegórico​s ​do 
fracas​so ​de u​m​a narrativa única ​d​as ​origen​s. ​Nos ​capítulos 4​ ​, ​5 ​e 1​ ​0, ​ex 
plor​o ​mais ​detalhad​a​mente ​esses ​dilemas ​colo​niai​s.   
Para ​as ​mulher​es, ​o ​mito da terra ​virgem apresenta dilemas específi 
cos, ​com ​impo​r​tant​es ​difer​enças p​ ar​a ​as ​mulheres ​colonia​is e ​p​ara ​as 
colo​ni​zadas, co​m​o ​argumento no​s ​capítulo​s ​9 ​e 1​ 0​. ​A​s ​mulhere​s são ​a 
terra ​que ​está ​p​ara ​s​er ​de​scobe​rta, penetrada, nome​ada​, ​inseminada ​e, 
acim​a ​de ​tudo​, ​po​ss​u​í​da. ​Simbolicamente ​reduzida​s, ​aos ​olhos dos ho 
m​e​n​s, ​ao ​espaço em ​que ​se ​travam ​a​s ​disputas ​ma​scu​lina​s, ​as mulheres 
experimentam ​d​ificu​ldades p​ articulares ​ao ​r​e​i​vi​ndi​car ​genealogias alter 
nativ​as ​e ​narrativa​s ​alternativa​s ​de ​origem ​e ​nomeaçã​o. ​Simbolicamente 
ligad​as ​à ​terra​, ​as ​mulhe​re​s ​são r​ ​elegadas a​ ​u​m domín​io :​ i​lém d​a ​hi​s​t​ó​r​ia 
e, ​a​ss​im​, ​man​t​ê​m ​uma ​rel​ação ​panicularmente vexatória ​co​m ​as ​n​a​rrati 
vas ​de ​mudança hi​s​tórica e​ d​ e e​ feito ​político. ​E, ​o q​ ue ​é aind​a ​mais 
importante, ​as ​mulheres ​são ​figurada​s como ​propri​edade ​pert​encente aos 
h​ome​n​s ​e, ​portanto​, ​e​s​t​ão f​ ora, ​por d​ efin​i​ç​ão, ​das ​d​ispu​t​as ​m​asculi​ ​nas 
sob​r​e ​terra​, ​dinheiro e poder ​polític​o.   
É  ​importante  ​s​alientar,  de​s​de  ​o  ponto  ​de  ​partid​a,  ​co​ntud​o,  ​que  a 
que​stão  ​do  ​gên​ero  ​no  ​imperiali​s​mo  ​assumi​u  forma​s ​muito ​diferentes  ​em 
partes  ​diferente​s  ​do  ​mundo.  A  ​Índi​a​,  ​po​r  ​exemplo,  nunca ​foi ​vista  ​com​o 
terra ​virgem, e​ a​ iconografia ​do ​har​ém ​não ​fazia parte ​da ​erótica   

·8 ​)  

1
J​
l

l ​1

cA ​situa;do d​ a U
​ rra -​ ​q,n,alogias d​ o i​ mptrialismo   

colonial ​do ​Sul ​da ​África. ​As ​mulheres ​do ​Norte ​da ​Áf​r​ica, ​do ​Oriente ​Médio 
e da Ásia ​eram ​co​m frequência capturadas pela i​co​nografia ​do ​véu, ​enquanto 
as demai​s ​mulheres africanas ​es​tavam ​sujeitas ​à ​missã​o civilizadora ​do 
algodão e ​do ​sabão. ​Em ​o​ut​ ras ​palavras​, ​as ​mu​lheres ára  
bes ​deviam ​ser "civiliza​da​s" ​se​n​do ​despidas ​(tirando-se-lhes o ​véu), ​en ​quanto 
as subsaar​iana​s devia​m ​ser ​"civi​lizad​as" ​sendo ​vestida​s ​(em ​limpo ​e ​branco 
algodão ​britânico). ​E​ssas distinções ​suntuá​rias ​eram sintomá ticas ​de ​diferenças 
críticas de modos ​l​egislativos, econômicos ​e ​políticos ​c​m ​que o racismo 
mer​ca​ntil imperial ​era ​imp​os​to ​em ​diferentes parte​s ​do ​mundo.   

DOMESTICIDADE ​E ​RACISMO   
DA ​.MER​CA​DORI ​A   

Domistico -​ ​relativo ​ao ​lar, ​dom​icilio ​ou   


assuntos d ​ a ​família   
Domnlicar ​- ​n:aturalizar   
(co​l​onos, animais)   
civilizar   
(selvagens)   
P(9umo ​dirion​ário ​Oxford d​ o I​ nglês ​corrente​    

Em ​1899, ​ano ​em ​que ​estourou a​ guerra ​anglo-bôer na África ​do ​Sul, uma 
propaganda ​do ​Sabonete ​Pears n ​ o ​McC/ur​e's M
​ agazine (​ Figura ​1.2) 
anunciava:   

o ​primeiro passo para ​tomar ​mais leve o ​FARDO ​DO ​HOMEM ​BRANCO ​é ​ensi​ ​nar as virtudes 
da ​limpeza. ​o ​SABONETE ​PEARS ​é ​um ​potente ​fator ​no abrilhantamento ​dos cantos escuros 
da ​terra ​à ​medida que a civilização avan ça, ​enqu​anto ​para ​as ​mais ​cultivad​as n​ açõe​s ​da 
terra ele est:i no ​mais alt​o ​posto - é​ ​o ​sabonete ideal ​de ​toalete​ll_   

​ agaz.int 1​ 3 ​(maio·out., ​1899)​.   


33. ​M,Clum M

59  
Couro ​imptrial   

A ​propaganda mostra ​um al​mir​a​nt​e ​traj​a​ndo ​puro branco ​impe​r​ial, 


lavando ​suas ​m​ãos n​ a ​ca​bin​e e​nquanto ​seu ​vap​o​r ​cruza o oceano no 
domínio ​do ​imp​ério. Nessa ​imagem, a domesticidade ​pri​vada e o​ ​mer ​cad​o 
imperial ​- duas esferas ​co​ns​ ideradas ​pela ​classe média vitoriana como 
inteira ​e ​naturalmente ​dist​int​as ​- c​ onvergem ​num ​ú​n​ico ​espetá 
culo ​mercantil. ​O s​ antuá​rio ​doméstico ​d​o ​banheiro ​do ​homem 
branco dá vantagem ao ​do​mínio ​global d ​ o ​co​mér​c​io, ​d​e tal ​forma 
q​ue o ​pro ​gresso ​im​per​ial ​se ​consuma ​num ​só ​gol​pe ​- como ​tempo 
panóptico .   

 
. ​... ​; ​. ​. ​. ​.. ​.​._,​.;.·​_​.​_​;. ​-·_, ​·--~'-· ​.. ​. ​'.• ​.. ​• ​.. ​n..r ​~ ​~ ​......... ​"'PW--c ​.• ​,:•::>. ​'   
.· ​Th​c;-​Whitc​·:,​Man​·s​-​Bl\​ \"UC​n'​ ",;;•  
•​• ​•~h ​,~~​• ​,k ​-.w,90;,., ​dt~ ​·,. _ •

. ​·., ​P:ç~r.~​~​-​.​$o~P​::·/·• ​... ​:: ,.​ ​~


a,.._,.....,_..., ​,,_ ​bt.ck,--c ​iJ1ic ​.t.v​tr ​~,.,/ ​,llic ​•'​"" ​"   
.-Jo.,​o. ​.. ​~ ​.....-~ ​dw ​Cllill-.4 ​J ​.. ,​ ​M~
....... ​, ​.~ ​~ ,​ t--.C ​... ​t​lil,t ​idr..S ​....... ​...... ​· ​•.   

FigJLra ​r.2 ​- ​Dom~​stitidatk i​ mperial.   

A vigia ​é ​tanto ​janela ​como ​e​spe​lh​o. ​A ​j​anela, ícone ​da vigilância ​imperial 
e a ​idei​a ​ilumini​s​ta ​do ​conhecimento ​com​o ​pen​etra​ç​ão, ​se ​abr​e ​para ​cenas 
pública​s ​de ​conversão e​ conômica​. ​Uma ​cena ​retrata ​um afri ​can​o 
ajo~lhado recebendo, ​ag​ ​radecid​o, ​o sabonete ​Pears, c​ omo ​se ​ajoe​ ​lharia 
diante ​de um ​fetic​h​e ​r​eligioso. ​O ​es​p​el​ho​, ​e​m​blema ​da ​autocons​ ​ci​ê​n​cia 
ilumini​sta, ​refl​ete a​ ​imagem d​ a higien​e ​imp​er​ial ​branca ​e ​ma​sc​ulina​. ​A 
hi​giene ​_​do​ méstica, ​comv ​sugere ​o ​anúncio, p​ urifi​ca ​e ​pr​e  

60  
​ a ​urra ​- ​<Jmfalogias d​ o imptrialism,;   
cA" ​situação d

serva  o  corpo  masculino  branco  da  contaminação  na  zona  limiar  do 
império.  ​Ao  ​mesmo  ​tempo,  a  mercadoria  domé​s​tica  garante  o  poder 
masculino  branco,  a  genuflexão  dos  africanos  e  ​o  ​domíni​o  ​do ​mundo.  ​Na 
parede,  ​um​a  ​lâmpada  elétrica  ​s​ignifi​ca  ​a  ​racionalidade  ​cie​ntífic​a  e  ​o 
avanço  esp​iritu​al.  ​Dessa  forma,  a  mercadoria  doméstica  ​dá  ​a  ​liç​ão  ​do 
progresso  ​imperial  ​e  ​da  ​civilização  capitalista:  para  o  homem  branco,  a 
civil​iz​ação ​avança ​e ​se ​abril​hanta ​através de ​seus quatro ​amados fetiches  - 
o  ​sabonete,  o  ​espelho,  ​a ​luz ​e a ​roup​a ​branca. Como detalho mais  adiante, 
esses fetiches ​sãu ​recorrentes através ​do K ​ itsch m
​ ercantil vito  
riano tardio e ​na cultura po​pular d​ a época.   
A ​primeira observação sobre ​o ​anúncio do ​Pears ​é ​que ​ele ​figura ​o 
i​mperialismo ​co​mo ​passando a ​existir a​ través da ​domtsticidadt. ​Ao ​mes 
mo ​tempo, ​a ​domesticidade ​imperial ​é ​uma ​domesticidade ​sem ​mu lheres. 
O ​feti​che ​da mercadoria, ​co​mo ​forma central ​do ​iluminismo industrial, 
re​vela o ​que ​o ​liberali​s​mo gostaria de e​ ​s​quecer: ​o ​doméstico é​ ​políti​co, o​  
político tem gênero. O ​que ​não p​ od​eria ​ser ​admitido ​no ​discurso 
r​acionalis​ta ​masculino ​(o ​valor econômico ​do ​trabalho domés tico das 
mulheres) ​é ​negado e projetado para ​o ​domínio do ​"​primitivo​" ​e para ​a 
zona ​do ​império. ​Ao ​mesmo tempo, o valor econômico ​da~ ​culturas 
co​l​o​nizad​as ​é ​d​omesticado ​e ​pr​ojetado p​ ara ​o ​domínio ​do ​"pré ​históri​co"​.   
Um ​traço característico ​da ​classe média vitoriana era ​sua ​preocu pação 
peculiarmentc intensa com fronteiras ​rígida​s. ​Na ​ficção imperial ​e ​no 
Kitsch m ​ ercantil, objetos de fronteira e cenas liminares ​se ​repetem 
r​itualme​nte​. À​ ​medida que ​os coloniais se ​moviam de um ​lado ​para outro 
através dos limiares de ​seu mundo ​conhecido, ​a crise e a confusão ​de 
limites eram mantidas ​à d​ istância ​e ​contidas ​por fetiches, ​ritu​ais ​de 
absolvição e​ ​cenas ​limin​ares. ​Sabonete e rituais de ümpeza passaram a ​se​r 
centrais para a demarcação dos ​limite​s ​do ​corpo e para o policiamen ​t​o ​das 
hierarquias ​sociais. ​A ​limpeza ​e ​os ​rituais de fronteiras ​fazem ​parte ​da 
maioria das culturas; o que caracterizava ​os ​rituais ​vitorianos ​de ümpeza, 
porém, ​era ​sua relação peculiarmente intensa com ​o ​dinheiro.   
Estou duplamente interessada no anúncio do ​sabo​nete ​Pears ​porque 
ele registra ​uma ​mudança que vejo como tendo ​tid​o ​lugar ​na cultura ​do   

61  
​ ro​ i​ mptrial   
Cou

imperiali​s​mo n​as ​últimas ​dé​c​adas d ​ o ​século ​XIX. ​Fo​i a ​passagem ​do 


ra​c​ism​o ​cie​n​tifico i​ ​ncorporado ​no​s ​periódi​cos ​médico​s, ​cie​ntífico​s e a​ n 
tropol​óg​icos, no​s ​e​sc​ritos ​de v​ i​age​ns e na​s ​etnografias, para o ​que ​chamo 
de r​ acismo m ​ ercantil O ​ ​raci​s​mo m​ ercantil- ​nas forma​s ​especificamen ​te 
v​itori​an​as ​d​e ​propaganda e​ ​fotografia, n​ as ​exposi​ções i​mperi:i.​is ​e ​no​  
movimento ​do​s ​mu​se​us -​ ​co​nv​e​rteu ​a ​narr​ativa ​do ​pr​og​resso imperial ​em 
espetácul​ os ​de c​ onsu ​ mo ​produ​z​idos e​ m massa.   
Durante ​o ​século X ​ VllI, ​s​urgiu o​ ​qu​e ​Pr​at​t ​chama de ​"co​n​sciê​n​cia 
planerária"H. ​A ​c​on​s​ciência planetária ima​gi​nou ​de​s​enhar ​tod​o o mun ​do 
num​a ​única ​"c​i​ê​n​c​ia ​da ​ordem," ​na ​expressão ​de F​oucault​. Carl ​Lineu 
forne​ce​u o ​impul​so ​para ​es​sa ​ideia ​imode​s​ta ao ​publi​car, ​em 1​ 73​5, o​ S ​ ys 
tema N ​ atura, q​ ue prometia ​or​ga​nizar t​odas ​as ​formas de ​planta​s numa 
única ​gênese ​narrativa​35​• ​Para ​Lineu, ademais, a ​r​eprodução s​ exual ​se 
tornou ​o ​paradigm​a ​para a forma natural ​em geral.   
I​nspirados ​por Lineu, ​ho​ rdas ​de ​expl​o​ra​do​re​s, ​botâni​cos, ​hi​stori​ad ​ o 
re​s ​d​a ​natureza ​e geógrafos ​se ​e​ntregar​am à ​ ​vocação de ​o​rdenar ​as ​for 
mas d​o ​mundo ​numa ​ciência ​g​l​o​bal da s​ uperfície ​e da ​ó​tica da v​~rdadc. 
Des​sa ​maneira, o ​pr​oje​to ​do ​Iluminismo c​ o​in​ci​dia ​com o ​projeto impe 
rial​. ​Como ​diz ​Pran​: "​P​ois ​o que ​eram ​o co​m​ércio ​de ​escra​vos ​e o ​sist​e 
ma d​e p​ lanta​ti​on ​s​enão ​maci​ços ​e.xperim​e​ntos em en​ge​nharia so​c​ial ​e 
disciplina​, ​produ​ção ​cm ​série​, s​istemati​zação ​da ​vida humana, padro 
nização das pe​sso​a​s?​"36​
​ • ​A ​ciênc​ia global da s​ ​uper​fíc​i​e ​era um projeto ​de 
​ edicado ​a ​transformar a terra numa ​ún​ica ​moeda ​econô ​mica, 
conversão,​ d
uma ​única ​orige​·​én ​da hi​s​tória e ​um ​padrão ​uni​versal ​de ​valor ​c​ul tural ​- 
posto ​e admi​nistrad​o ​pe​ ​la ​Europ​a.   
O ​que me preo​c​upa a​ qui​, ​porém, é que​, se ​a c​ iê​n​c​i​a ​imperial ​da ​su 
perfície prometia ​de​s​enrolar ​um ​único ​"Grand​e ​Mapa d ​ a ​Humani​da​de" ​e 
forj ​ar ​uma ​úni​ca ​a​utoridade masculina ​europeia ​par​a ​todo ​o plan​eta, ​a 
ambição ​ultrapassou ​o e​ feito durante ​b​astante ​tempo​. ​O ​pr​ojeto ​e​s​t​ava   

​ ys .​ .​ .​ ,​ p​ . 1​ 34.   
34. ​P​r:m, ​lmpmal E
35. ​Ide​m, op. ​cit.​, ​p​. ​1​5​.   
· ​36. ​I​dem, ​op. cit., ​p. ​36.   

62  
 

ui s​ itua;ão da terra -​ ​qm,alogias d​ q i​ mptria/ismo   

cheio ​de ​paradoxos, ​incomplen1de ​e ​ignorância ​intelectual. A capacida ​de 


tecnológica ​de ​mapear ​e catalogar a​ ​superfície ​da ​terr​a ​con​tinuou, ​por ​algum 
tempo, ​dependente ​de ​acidentes, inferior e evidentemente inepta. ​Os 
promotores ​do ​projeto ​global ​nã​ o ​tinham ​a capacidade técnica para 
reproduzir formalmente ​a "verdade" ótica ​da ​natureza ​nem ​a capacidade 
econômica ​de ​distribuir essa verdade para ​con​sumo ​global. Para ​que ​i​sso 
​ r​o​jeto ​global teria ​de e​ sperar até a segunda ​metad​e ​do ​século 
acontecesse, o p
XIX, ​com ​o surgimento ​do ​espetáculo mercantil -​ ​em ​parti​cula​r, ​a 
fotografia.   
Os ​capítu​los ​seguin​tes ​se ​ocupam ​dessa ​mudança ​do ​racismo ​cien t​ ífico 
para o ​raci​smo m ​ ercantil, ​pe​l​o qual o racismo evolucionista e o poder 
imperial fora​.​m ​po​stos n​ o ​mer​cado ​numa e​ scala até então ​in​ima g​ inável. ​No 
processo, o ​lar ​da c​ lasse ​média v​ itoriana se tornou ​um ​es p​ aço ​para a​  
exibi​ção ​do e​ spetáculo ​imperial ​e para a ​reinvenção ​da r​ aça, ​enquanto ​as 
colônias ​- a ​África, ​em p ​ articular - ​se t​ ornavam ​um ​es p​ aço ​para e​ xibir o 
culto vitoriano ​da d ​ omesticidade ​e d​ a ​reinvenção ​do g​ ênero.   
A  domesticidade  ​denota  ​tanto  ​um  ​espaço  ​(um  alinhamento  ​geográ  ​fico  e 
arquitetônico)  ​quanto  ​uma  ​refarão  ​social  ​de  p ​   culto  ​da  ​do 
​ oder.  O
mesti​cidade,  ​lon​ge  ​de  ​ser  ​um  ​fato  ​universal  ​da  ​~​natureza",  ​tem  ​uma  ​ge 
neal​og​ia ​histórica. A ​ideia ​do ​"d
​ omé​stico" ​nã​o ​pode ​se​r ​aplicada ​de   
maneira ​geral a ​qualquer ​casa ​ou d​ omicílio ​como ​fato universal ​ou ​na ​turalJ​7. 
1àntas ​vezes alardeado ​como ​um ​espaço universal ​nantral - abrigado ​nos 
inter​iores ​mais recônditos ​da ​sociedade, ainda que t​ eori​ca ​mente ​além ​do 
domínio ​da ​análise ​política-, ​o ​culto ​da ​domesticidade envolve processos de 
metamorfose ​social ​e s​ ujeição ​políti​ca ​das ​quais o gênero ​é ​a ​dimen​são 
permanente, ​ma​s ​não ​a ​única.   
Etimologicamente, ​o verbo ​"domesticar" ​tem a mesma raiz ​de ​"do 
minar", ​que ​deriva ​de ​dominus, s​ enhor d
​ o ​domm, o​ ​l​ar​38 ​• ​Até ​1964, ​po  

37. ​Jean ​e ​John ​L. ​Com:iroff, ​"Homem3dc ​Hc​gcmony: ​l\lodcrnicy, ​Domesticity, ​and ​Colo 
​ ith D
oialism in ​South ​Africa​"​, ​i​n ​Karcn ​H​ans​en ​(org.), ​Afriran Encauntm w ​ ommiâty 
(Ncw ​Brunswick: Rutgcis Univcrsity ​Prcs​s, ​1992), ​p. ​39.   
38. ​Idem, ​op. ​cit., ​p. ​3.  
C1111ro ​imptrial   

1
rém, ​o verbo "domesticar" ​também ​car​r​egava como ​um ​de ​seus signi 
ficados a ação de ​"ci​vilizar"​3​9 ​• ​Nas colônias (como exploro melhor ​no 
cap​ítulo 6), ​o ​posto da missão ​se ​t​orno​u ​uma ​instituição ​liminar p​ ara 
transformar ​a domesticidade enraizada ​no ​gênero ​e n​ ​os ​papéis de ​clas  
se  ​europeus  numa  ​domesticidade  para  ​controlar  ​um  ​povo  coloniza​do​. 
Atravé​s  ​dos  rituai​s  ​da  domesticidade,  ​cada  ,·ez  ​m​ais  global  ​e  muitas 
vez​e​s  ​violenta,  an​imai​s,  mulheres  e  pessoas  colonizadas  ​eram  retiradas 
de ​seu ​es​tad​o ​de ​"s​elvageria" putativamente ​~​n​atural", ainda ​que, iro  
n​ica​m​ent​e, ​pouco ​"razoável," e e​ram ​induzida​s, ​através ​da ​narrativa ​·1
doméstica ​do ​progresso, ​a ​um​a ​relação ​hierárqu​ica ​par​a com os ​homens 
brancos.   
1
As​sim, ​a ideia ​histórica da domesticidade mantém ​u​ma ​relação ​a​m​ ​
1​
l
bivalente ​com a ​ideia ​imperial ​de ​natureza, pois ​a "domes​ti​cação" ​se ​im 
põe e​n​ergicamente ​à ​natureza ​para ​produzir uma esfera social que é 
co​nsid​e​rada natural e ​universal ​em primeiro ​lugar. ​Em ​ou​tr​as ​palavras, 
nas co​l​ô​nias​, ​a ​cultura e​ uropeia ​(a ​mis​são ​c​i​vi​l​izadora) ​se ​to​r​nou ironica 
mente ​necessária ​pa​ra ​reproduzir a n​ atureza ​(as divisões ​"naturais" ​do 
trabalho doméstico), ​anomalia que ​demandou ​m​ui​ta ​ene​r​gia social - e   
muito trabalho ​doméstico - ​para ser ​ocultada. A ideia de progresso - ​a 
"​natureza" ​se ​aperfeiçoando ​ao l​ ongo ​do ​tempo ​- ​foi ​fundamental ​para 
ad​mini​str​ar ​essa ​anomalia.   
O ​culto ​da domesticidade, argumento, ​se ​tornou ​central ​para ​a ​iden 
tidade imper​ial ​britâ~i~a, por ​contraditó​ria ​e conflituosa que esta ​fosse​, ​e 
surgiu ​uma ​dial​ética ​intrin​cada. ​O ​imperialismo difundiu ​o c​ult​o ​vito 
riano ​da ​domesticidade ​e ​a separação ​hi​stórica ​e​n​tre ​o p​ rivado e ​o p ​ ú 
blico, ​que tomou ​forma em ​torno ​do c​ o​lo​nialismo ​e d ​ a ​ide​ia ​de ​ra​ça. ​Ao 
mesmo ​tempo, ​o colonialismo ​se ​formou em ​t​o​r​no ​da invenção ​vitoria ​na 
da ​domesticidade e da ​ide​i​a ​do l​ ar​º. ​(Figs. ​1.3, ​1​.​4).   

39. ​Id​em, op. cit., ​p. ​23.   


40​. ​P​u3 ​uma ​an:i.lise ​da ​domes​tic​idade ​colonial n ​ a ​Africa, ​ver ​Jean ​e ​John ​L. 
​ o ​Sul d
Com1- ​roff, ​"Homcmade ​H​egemony ​.. ​.", p​ p​. ​3;·74.   
,.

e.A s​ itua;4o ​da ​urra ​- ​(jtntalogias d​ o i​ mptrialismo   


Figura ​r.3 ​- ​Domtsticand​o ​o impirio .   

. ​ ......   
,. ​

Figura ​r.​ 4
​ -​ A
​ ​idmtidadt ​nacional óritãnica ​amnnt a​ ​forma ​ímptrial.  
C​o​uro i​ mptrial   

Este, então, é o tema central deste livro: 


quando o espaço doméstico foi racializado, o 
espaço colonial foi domesticado. Certamente, 
o espetá culo mercantil não era a única forma 
cultural para a mediação do colo nialismo 
doméstico. ​Os ​escritos ​de ​viagens, novelas, 
cartões-postais, ​fotografias, pornografia e 
outras formas culturais podem ser ​investiga 
dos de maneira igualmente fértil para essa 
relação crucial entre domes ticidade e império. 
O espetáculo mercantil, porém, ​se ​estendeu 
muito além ​da ​elite cultural e de posses e deu 
ao ​colonialismo doméstico uma ​influência ​de 
longo ​alcance.   

TEMPO ​PANÓPTICO   

Já ​não precisamos recorrer ​à ​história para ​ver ​(a 


natureza   
humana) ​em ​todos os seus estágios e ​períodos[ ​... ] 
agora   
o ​Grandé ​·​ivlapa ​da ​Humanidade ​é ​desenrolado de 
uma   
só vez: e não ​há ​estado ​ou ​gradação ​de ​barbarismo e 
nem   
modo ​de ​refinamento que não tenhamos ​à ​nossa vista 
no   
mesmo 
instante.   
Edmund Burke   

A ciência imperial ​da s​ uperficie ​se ​alimentou 


de dois tropos centraliza dores: a invenção do 
que chamo ​de ​tempo ​panóptico ​e a do ​espaço a​ nacrô  
​ om ​a publicação da ​Origem ​das ​espécies, ​Charles Darwin conferiu 
nico. C
ao projeto ​global u​ ma dimensão decisiva ​-o ​tempo secular como agen te 
de ​uma história unificada ​do ​mundo. Assim como Lineu tentara clas 
sificar o fragmentário registro botânico num ​simples ​arquivo de forma 
natural, a partir de ​1859, ​os evolucionistas sociais assumiram a tentativa 
maciça ​de ​ler, a partir ​do ​descontínuo registro natural (a que Darwin 
chamava de ​"uma ​história imperfeitamente mantida do mundo"), ​um 
único ​pedigree d​ a ​história ​do ​mundo cm ​evolução. ​Agora, não ​só o​ ​espa 
ço ​natural, mas também o tempo histórico podiam ser colhidos, reuni dos 
e mapeados numa ciência global da superfície.   
A  ​importante  ​meditação  sobre  o  tempo  e  a  antropologia  de  Johannes 
Fabian,  ​Time  and  the  O ​ ther:  ​How  Anthropology  1​ l1akes  ​Its  O ​ bject, 
mostra ​como ​os e​ volucionistas ​sociais r​ omperam ​o d​ omínio ​da ​cronologia ​bí  

66  

J   
za​, era ​agor​a a​plicado à​ ​histó​r​ia ​cultural. ​O 
tempo ​se t​ ornou ​uma ​geo​ ​grafi​a ​do ​poder 
soc​i​al, ​um ​map​a ​a ​par​ti​r ​do ​qual ler ​um​a 
alegoria ​gl​ ​obal ​da ​diferença ​soc​ial ​"​n​a​t​ural". 
E, ​o ​que ​é ​mai​s ​im​portante, ​a ​história assu 
miu ​o ​caráter ​de ​espetá​c​ulo.   
Nas últimas ​déca​das ​do ​sécu​lo XIX,​ ​o ​tempo 
panóptico se ​autonomi ​zou​. ​Por ​tempo 
pan​óp​tico, r​efiro-​m​e à​ ​im ​ ​agem ​da ​hi​stória 
global con sumida - ​com ​um ​olhar -​ ​num 
úni​co ​espetáculo a ​partir ​de ​um ​p​onto d ​ e 
i​nvisib​ilidade privil​egi​ada​. ​No ​sécul​ ​o XVII, 

!
Bossuet, ​no ​Discours s​ ur ​l'histoire 
tmiverselle, a​ rgu​ment​ava ​que qualquer 
tentativa ​de ​produzir u​ ma ​história ​universal 
dependia ​de ​se​r ​capaz ​de figurar ​a ​"​ord​e​m 
dos ​tempos" ​num ​o​lhar (​ ​"c​omme d ​ 'un c​ oup 
d'oei/")4​ ​'. ​Para ​atingir ​os padrões 
"científicos" ​es​tabele​ci​dos pel​os 
cA ​situa(do da terra ​- ​(jmt​ a​ l​ogia​s do inrptriali​sm
​ o   
histori​a​dores ​da ​natu​r​eza ​e pel​os e​mpi 
ri​cistas ​do ​século ​XVIII​, ​era ​necessário u ​ m 
bli​ca ​- ​isto ​é, ​o ​temp​o ​da ​crônica -  para​di​gma ​vi​s​ual ​par​a ​exibir ​o progresso 
se​cularizando o ​tempo ​e ​pondo-o ​à e​volucionário como espetá​c​ulo mensurável. 
d​ispos​i​ção ​do ​proj​e​t​o ​e​mp​ír​i​co ​- i​s​to ​é, ​o  A figura ​exem plar ​qu​e ​surgiu ​foi ​a 
tempo ​cronológico​•'. ​Para faz​ê​-​lo, ele  ​ n​is​ ta ​Árvore ​da ​Família d​o ​Homem​.   
evo​lu​c​io
observa, ​" ​e1pacializaram ​o t​e​mpo". ​"O  A ​natur​eza ​da ​Renascença ​- ​a natureza 
paradigma ​da ​evolução se ​apoiava ​numa  divina ​- era ​entendida ​como cosmológica, 
con​c​epção ​do ​tempo ​que ​e​r​a ​não ​só  orga​niz​ada d ​ e ​acordo com a vontade ​de 
s​e​cula​ri​zada ​e ​naturalizada, mas ​tam​bé​m  De​us ​numa ​irrevogável cade​i​a ​d​o ​se​r​. ​Em 
plenamente ​espacializada". O ​eLxo ​do ​tempo contraste, o evolucionist​a ​social ​Herbert 
foi ​projetado ​s​obre ​o ​cLxo ​do ​es​paço ​e a  Spencer via ​a ​evolução ​não c​ o​mo ​uma 
históri​a ​se ​t​ornou ​global​. ​Com o ​   cadeia do ser, ​mas ​como uma ​árvore. ​Com​o 
darwin​i​smo ​soci​al, ​o ​projeto taxonôm​i​co​,  diz ​Fab​i​a​n: ​"A árvo​re ​se​mpre ​fo​i ​um​a ​das 
apli​c​ado ​prim​e​iro ​à ​n​a​tur​e   forma​s ​mais simples ​de ​constru​ir ​esquema​s 
classificatórios fundados ​na ​sub​s​unção e​ ​na  Ant​ brnpology A​ 'lahs I​ N ​ bjut ​(Nov:i ​York: ​Colum​b​ia 
​ O
Univcrsity ​Pn:​ss, ​1983​), ​p​. ​1​5.   
hierarquia"•3​​ • ​A árv​o​re oferecia ​uma ​imagem 
42​. ​J​ac​ques ​Ben​ign​c Bos​suet, D
​ isco​ ​uN
​ s​ ur l'histoirt 
antiga ​de ​um​a ​genealo   uni11aullt​, ​apud idem, op. cit., ​p​. ​4. ​43​. ​Idem, ​op​. ​cit., 
p. ​96.  

41​. ​Johannes ​Fabian, ​Tim,​ a​ nd t​ l:e O ​ ​ow 


​ ther: H
Couro ​im​pu​ial   

gia ​natural ​do ​poder​. ​Os ​evolucionistas s​ oc​iai​s, ​porém, tom​a​ram a árv​o​ ​re 
divina e co​s​mológi​c​a ​e a​ ​s​ecularizaram, ​torn​an​do-​a ​uma ​imagem de 
co​muta​ção ​qu​e ​m​ed​ i​a​va ​entre a natureza ​e a cu​ltura ​co​m​o image​m ​na ​tural 
do ​progresso ​evolucionário humano.   
"​A ​Árvore Nlorfológica ​das Raças ​H ​u​m​anas" ​de ​Mant​eg​azza​, ​por 
exemplo, ​mostra vividarnente corno a imagem da árvore foi posta ​à ​dis 
posição ​dos ​cientistas ​raciai​s (​Figura 1​ .5​)​. ​Na imagem q​u​e l​ V​lantega​zza 
tinha ​da ​hi​stór​ia ​global, s​ ​urgem t​ rês princípios. ​Primeiro​, ​mape​a​das 
con​tra ​a árvore, ​as ​culturas desco​nt​inuas do ​m​undo ​parece​m ​se​r ​coman 
dadas dentro ​de ​urna ​única narrativa europeia originária. ​Segundo, ​a 
história ​humana pode ​se​r ​imaginad​a ​como ​naturalm​e​nte ​te​ológ​i​ca, ​um 
processo ​orgânico ​de ​crescimento para ​cima, com ​o europeu ​co​mo apo ​geu 
do ​progresso. Terce​iro, ​incômod​as ​de​sco​nt​inuidades ​h​istóricas podem ser 
ordenadas, ​s​ubmetidas ​e ​s​ubordinadas ​a ​um​a e​strutura hierárquic​a ​de 
tempo ​ramificado - o ​pr​og​res​so ​diferen​ci​al ​das ​raça​s ​mapeado contra os 
ramo​s ​evidentes ​da ​árvore. ​Na ​árvo​re ​do ​tempo, a hierarquia ​ra​cia​l ​e ​o 
progr​esso ​histórico ​se ​torn​a​ram ​os f​ aits a ​ ((ompl​is ​da n​ atu​r​eza .   

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' ​., ​·.

Figura r.5 ​- ​lnvmlando ​o ​prograso: ​a ​tfn.,•orr r​ acial ​familiar. 6


​ 8  
cA ​situa;õo ​da ​urra ​- ​qo:,alogias d​ o i​ mperialismo​    

A  ​imag​em  ​da  árvore​,  ​co​ntudo​,  ​e​s​tava  ligada  a  uma  segunda  imagem 


decisiva:  a  ​Familia  do  ​H​omem.  O  ​"​Grupo  ​Familiar  ​dos  ​Kat​a​rrhinen" 
oferece  ​um  ​bom  exemplo  (Figura  1​ ​.​6).  ​Nes​s​e  grupo  familiar,  ​o  ​progresso 
evolutivo  é​ ​repr​ese​ntad​o  ​p​o​r  ​urn​a  ​série  ​de  tipo​s  ​anatômicos  ​distinto​s, 
organizado​s  co​rno  ​uma  imagem  linear  de  progresso.  Nessa  imagem,  o 
olho  seg​u​e  os  ​tip​os  ​evolut​i​vo​s  ​ru​mo  ao  ​alto  ​da  ​página,  ​do  ​a​r​caico  ​para  ​o 
moderno, ​de ​tal ​fo ​rma qu​e o​ pro​g​resso parece d​es​envolver-se natural  
me​n​te ​dian​te ​do ​olho como ​uma ​sér​ie ​de ​marca​s ​que evoluem no rosto.  O 
progres​so  ​assume  o  ​caráter  de  ​um  ​espetáculo,  ​so​b  ​a  forma  ​da  família. 
T​o​d​a  ​a  ​hi​s​t​ór​ia  ​cronológica  ​do  ​de​se​nvolvimento  humano  é ​ ​captada  ​e 
consumida  ​num  ​golpe  ​de​   ​vi​st​ a​,  ​de  ​tal ​forma que a ​an​a​t​omia ​se ​t​orna  ​um​a 
alegoria ​do ​pr​og​resso​, ​e a​ hi​s​tória é​ ​r​ep​roduzida ​como ​uma ​tecno  
logia ​do ​visível (​Fi​gura ​r.​7)​-H​.   
Assim, ​o evolucio​nism​o soc​ial ​e ​a antropologia ​der​am à​ ​políti​ca ​e à​
econom​ia ​u​m ​conceito ​d​o ​t​e​mpo ​natural ​como f​ amiliar. ​O ​te​mpo ​n​ão ​fora ​apena​s 
s​ecularizado, mas também d​ o​ m ​ esticado, ​que​s​tão não colo​ ​cada ​por ​Fabian​. ​A me​s​cl​a ​de 
árvore e família ​n:t ​árv​o​re ​familiar ​do ​homem dava ao ​racismo científico ​uma ​imagem 
d​e ​gén​ero ​p​a​r​a ​popu lariz​ar ​e di​sse​min​ar ​a ideia d​e ​progres~o r​ aâal. H ​ á ​aqui, 
entretanto, ​um problema, ​pois ​a ​árvore ​famili​a​r ​representa o tempo ​d​a ​ev​oluç​ão ​como 
tempo​ s​ em mulheres. A ​ ima​g​em da família é ​ ​um​a ​imagem ​de ​n​ega​ção, pois ​co​nt​ém 
apenas ​homen​s​, ​a​rranjado​s ​nu​m ​friso de ​h​o​men​s sós ​que ​ascendem ​para ​o ​apogeu ​do 
}lom​o ​sapiens ​individual. ​Cada época é​ ​re​ ​pre​sen​tad​a ​por ​um único ​tip​o ​ma​sc​ulino, 
caracter​i​za​do, p​or ​sua vez, por ​visíveis estigmas ​anatômicos. ​D​esde ​o início, a ideia de 
progre​sso ​racial ​l ​i   
tinha gêne​ro​, ​ma​s de ​tal ​m​aneira ​que ​tornava ​as ​m​ulher​es ​invisív​eis ​en 
quanto agentes hi​s​tórico​s.   

H• ​Dolf ​Stern​be​rger​, ~eguindo ​\V​alte​r Ben​jamin, ​viu no ​popular ​fenõmeno ​vitoriln​o ​do ​ci
clorama ​uma ​popularização ​da ​teoria de ​Dar​win como um ​"​ciclo​ra​ma ​da ​e​volução​"​. ​Na 
imagem ​panorâ​m​ica​, ​a ​hist​ória a​ p:irece ​como uma "​pro​gr​e​1sào ​natural" do macaco ao 
homem, ​de ​modo que "o ​olh​o ​e o ​ ​olh​o ​da ​mente ​pode​m ​deslizar, ​p:ir.,. ​ci​ma e p​ara ​bai:<​o, 
de ​um ​lado p​ an ​o outro, ​pelas figuras ​que 'evoluem~​. ​Apud ​c.​-.:​cclente Ü​ YTO ​de ​Susan 
Bu​c​k-Mo​rss, ​7ht Di​ a/afia ofSuing: ​Wafttr B ​ ,njamin ​and ​thr ​llr<adn P​ ro​ j((t (​ Cambrid​ge​: 
lhe ​MIT ​Prc​ss​, ​199​0), ​p. ​67.  

Co​ ​uro​ ​imp​ u


​ ial   

u., ​, ​••​. , ​.​....... ​,,. ​......... ​, ​.​.​.. ​.​.... ​s.,.... ​·​- 


!,.   

​ rupo Familiar ​dos ​Kata"hinm": 


Figur​a ​1.6- ​•o G

inventando a​ Fam(/ia d​ o H
​ om(m. ​r..,_ ​. ​__   

...... ​.. ​ - ​--·   


.... 
_​_​_ ​ ...   

--·   

~ ​--​·​-​·
​ ​- T
Figura ​1.7 ​ empo panóptuo: o progr(sso consumido n​ um ​golp( d​ ( ​vista.  

 
1​
j

vi 
si​ t​ u​afdo 
da​ ​tara 

qm(​ (z/ogias d​ o i​ mperialismo   

Desse modo, a figura ​da ​Família do ​Homem ​revela uma contradi ção 
persistente. O progresso histórico ​é ​naturalizado como uma fa mília que 
evolui, ​ao ​passo que ​as ​mulheres, ​na ​qualidade de atores históricos, são 
negadas e relegadas ao reino da natureza. A história é assim figurada como 
familiar, ​mas a família como instituição é vista como além ​da ​história. ​Os 
capítulos que se seguem (em particular o capítulo ​u) ​cuidam 
fundamentalmente das implicações históricas desse paradoxo.   

ESPAÇO ​ANACRÔNICO   

\Valter Benjamin observa que uma característica central do capitalis mo 


industrial do século XIX era o ​"uso ​de imagens arcaicas para iden tificar o 
que era historicamente novo sobre a 'natureza' das mercado ​rias"45. ​No 
mapeamento do progresso,imagens do tempo ​"arcaico"-isto   
é, ​do tempo não europeu - eram sistematicamente evocadas para ​identificar ​o 
que ​era ​historicamente ​novo ​na ​modernidade ​industrial. ​A ​fixação ​da ​classe 
média vitoriana nas origens, com narrativas de ​gê ​nese, com arqueologia, 
crânios, esqueletos e fósseis - o ​bric-à-brac   
imperial do ​arcaico-, ​era recheada da compulsão fetichista a colecio nar e 
exibir que dava forma ao museu imaginário do empirismo de classe média. O 
museu - como moderna casa-fetiche do ​arcaico ​- tornou-se a instituição 
exemplar que dava corpo ​à ​narrativa vitoriana do progresso. ​No ​museu do 
arcaico, a anatomia ​da ​classe média assu miu forma visível (Figura ​1.8).   

45. ​Apud ​idem​, ​op. ​cit., ​p. ​n7​.   


71  
., 

Couro ​imptrial   

 
TllfE'S ​WAXWORKS.  

'IN1 ​,nr ​~•​• ​•​• ​,. ​,., ​"º​•​"'"​•• ​., ​.. ​, ​·​••​· ​t«u._.,.,....,....,. ​~ ​.,..~​.​_..., ​--~​·​·   
Figur.11.8 ​- ​Espa;o a​ natr6ni<o: A
​ i​ ​m1tnçao d​ o a​ rcaico​ .   

Entretanto,  ​na  compulsão  de  colecio​nar  ​e  ​re​produzir  ​a ​h​is​tória toda,  ​o 


tempo  ​-  ​precisamente  ​quan​do  aparece  mais  ​históri​co  ​-  ​se  ​detém  ​em  ​suas 
pegadas.  ​Na​s  ​image​n​s  ​do  ​tempo  panóptico,  ​a  ​hi​stór​ia  ​aparece  estática, 
fixa,  coberta  de  poe​ir​a.  ​Paradoxalmente​,  ​então,  no  ato  ​de  torn​ar​   o  ​tempo 
mercadoria,  ​a  ​mudan​ça  ​histórica  ​-  especialmente  o  ​trabalho  ​de  mudar  ​a 
história ​- ​tende a de​s​aparecer.   
A ​esta a​ ltura, ​apar​ece ​outro tropo. ​Pode ​ser ​c​hamado de invenção ​do 
espaço anacrônico, ​e ​ele ​alcançou ​plena ​autoridade ​como ​tecnologia ​ad 
ministrativa ​e ​regul​adora ​ao ​final ​da ​era vitoriana. Dentro ​desse ​tropo, ​a 
atuação da​s ​mulheres, dos ​colonizados ​e ​da ​classe trabalhadora ​é n​ egada 
e ​projetada ​num espaço anacrô​n​ico: ​pré-hi​stó​r​ico​, ​atávico e ​irra​cional, 
ine​re​ntemente ​deslo​ca​do ​no ​tempo histórico ​da ​modernid​ade.   
Segundo ​a ​versão ​co​lonial de​sse ​tropo, ​o ​progresso ​imperial ​no ​es​ ​paço 
do ​império é ​figurado ​como u​ ​ma jornada para trás no ​tempo ​at​ é ​um 
momento anacrônico da ​pré​-​história. Por ​extensão, a jornada de ​rc  

72   
r.A ​situarão da ​tara -​ ​qtn,alogias d​ o​ i​ mptriaf​ ism
​ o   

torno ​à ​Europa ​é ​vis​ta ​como ​um ​ensaio ​da ​l​ógica ​evolucionista ​do ​pro gresso 
histórico ​para ​frente ​e ​para o ​alto a​ té o ​ap​ogeu ​do ​Il​um​i​nismo na ​metr​ópole 
europ​eia. ​A difer​e​nça ​geográfi​ca ​atravé​s ​d​o ​espaça ​é ​figura​da ​como ​uma 
diferença ​histór​ica a​través d ​ o ​tempo. ​O id​eólogo J ​ ​.​-lVI. ​Dege ​ra​ndo ​ca​pto​u essa 
noção ​co​n​cisa​mente​: ​"O ​v​iajan​ ​te f​ ilo​sófico, ​velejando ​até ​os confins ​da ​terra, está 
de ​fato viajando ​no ​tempo; está ​explorando o​ passado"46​ ​ . ​A ​ameaçadora ​e 
resistent​e ​heterogen​eidade ​das ​co​l​ônia​s ​e​r​a ​co​ntida ​e ​d​iscip​linada n​ão ​porque 
soci​al ​ou ​geogrnficamente dife​ ​rente ​da ​Europa e​ , ​portant​o​, ​i​gu​alme​ ​nt​e ​v:ilida, 
m​a​s ​p​o​rque ​temporal  
mente ​d​iferent​e e, ​portanto, irrevogavelmente ​s​up​erada ​pela hist​ór​i​a. H ​ egel, ​por 
ex​emplo, t​a​l​vez ​o ​prop​one​nt​e ​fil​osófico ​m​:iis ​influente clcssa ​n​oçã​o,​ ​figurava ​a 
África como ​pe​rten​cen ​ d​o ​não ​simplc!sme​n​te a ​um ​espaço ​geográfico diferente, 
mas a​ ​uma ​zona ​t​emporal dife​r​ente, ​sobr​e​vivendo ​anacronicamente ​dentro d ​ o 
tempo ​d​a ​história. ​A ​Áfr​ica, ​diz ​Hegel, ​"não ​é ​par​te ​históri​c​a ​do ​mund​o ​[ ​... ​] ​não 
tem ​movimento ​ou ​d​esenvo​l​vime​nt​o a ​exibir"•7​​ • ​A ​Áf​ri​ca ​veio ​a s​ ​er ​vista co​m​o 
parad​i​gma ​colonial ​do ​espaço ​an​acrô ​ n​i​co, ​uma terra ​p​e​rpetuam​e​nt​e ​fora ​do ​tempo 
na ​moder​nida​de, ​à ​deriva e historicamente abandonada. A ​ ​África ​era uma 
t​e​r​ra​-feti​c​h​e, habi​t​a​da ​por ​c​anibai​s, ​de​r​vixes e curandeiros​, ​aba.,- d ​ onada ​na 
pr​é-história ​exatamente ​antes q​ ue ​o ​Weltgeisl (​ i​n​s​idi​os​o ​agen​te ​da r​ azão) ​se 
manife​s​t​asse ​na ​hist​ór​i​a.   
Na ​metrópole industrial, ​a ​evocação ​do ​es​paç​o ​anacrônico ​(a inven ​ ​ção ​do 
arcaico) ​s​e ​tornou centr​al p​ara o ​discurso ​da ​c​i​ência racial e​ ​da ​vi​gilâ​n​cia ​urban​a 
das mulheres e ​da ​cla​sse ​trabalhadora. ​O​s cientistas ​ra​ciais e​, mais t​ arde, os 
eugenistas ​viam ​as ​mulhere​s ​co​mo o​ inerente​ ​mente atávico arquivo ​vivo ​d​o 
arcaico primitivo.   
Para alcançar ​os ​padrões ​em​píricos​ ​do​s cie​ntista​s ​naturais ​era ​ne​ ces​ sári​o ​inventar 
e​s​tigmas ​visíveis ​que repr​ese​ntassem ​- co​mo ​espetáculo mercantil - ​o 
ana​cro​ni​s​mo ​hi​s​tórico ​das classes degeneradas. ​Como ​observou ​Sander ​G ​ilm​a​n​, 
uma ​re​sposta foi ​encontrada ​no ​corpo​ ​d​a ​mu  

46. ​Joseph-Marie ​De ​gerando, ​1br Observation o ​ f ​Savage P


​ eoples, ​F. ​C​. ​T Moore, org. (Berke​ ​ley​: 
Univ​ers​ityofCalifomia ​Pre​ss, ​1969 ​{1800]).   
47. ​W ​illiam ​Pictz, ​"lhe ​Prob!em ​of ​th
​ e ​Fctish, ​11", ​R,, 1​ 3 ​(Primavcn, ​19S7), ​p. ​45. ​73  

Couro​ i​ mpuial   

lher africana, que se tornou o protótipo ​da 


invenção vitoriana do atavis ​mo ​primitivo. ​"No 
século XIX," diz Gilman, "a mulher negra era 
perce bida como possuidora não ​só ​de ​um ​apetite 
sexual 'primitivo', mas ​também ​dos sinais 
externos desse temperamento - órgãos sexuais ​pri 
mitivos"48. ​Em 1​ 810, ​a exibição da africana 
Saartjie Baartman tornou-se o paradigma da 
invenção do corpo feminino como anacronismo. 
O ​su ​posto excesso dos genitais dessa mulher 
(representados que eram ​por ​um ​excesso de 
visibilidade ​do ​clitóris na figura do "avental 
hotentotc") foi superexposto e patologizado 
diante ​do ​olhar disciplinar da ciência médica 
masculina e ​do ​público ​voyeur​9​. ​Cuvier, ​cm s​ ua 
notória medica lização de seu esqueleto, 
comparou a mulher da ​"mais ​baixa" espécie 
humana ​ao "mais alto macaco" (o orangotango) vendo uma afinidade 
atávica na aparência anômala do "órgão de geração" da mulher negra. 
Como ​em ​Lineu, a reprodução sexual servia como paradigma da ordem e 
da ​desordem sociais.   
Na ​superexposição dos órgãos genitais africanos e na patologização 
médica ​do ​prazer sexual feminino (especialmente o prazer clitoridiano, 
que estava fora ​da ​teleologia reprodutiva ​da ​heterossexualidade mas 
culina), os cientistas vitorianos encontraram ​um ​fetiche para incorporar, 
medir ​e embalsamar a ideia ​do ​corpo feminino como espaço anacrônico. 
Assim, ​uma ​contradição na formação da classe média (entre sexualidade 
clitoridiana - sexo para o prazer feminino - e sexualidade reprodu tiva - 
sexo para o ​pr_?zcr ​masculino e​ ​geração de filhos) era projetada ​no 
domínio do império e na zona ​do ​primitivo. ​Como ​órgão inerente ​mente 
inadequado, ​diz ​Freud, ​"o ​órgão genital feminino é mais primi tivo ​que ​o 
masculino" e o clitóris "​ é ​o protótipo normal dos órgãos infe riores"5º. 
Como ​anacronis~o ​histórico, ademais, o imaturo clitóris deve   

48. ​Sandcr ​Gilman, ​Dijfeunu a ​ arhology​: ​Sttr,orypts ​of S​ t:r:ualiry, R


​ nd P ​ au ​and ​i\lfadt1tss 
(Itha c​a​: Corncll ​Univcrsity ​Prc​ss​, ​1985)​, ​p. ​45.   
49.  ​Baanman  ​foi  ​exibida  ​pela  Europa  ​por  ​cinco  ​anos.  ​Em  ​1829  ​uma  mulher  hotentote  nua,  a 
"​Vênus  hotemote",  foi  a  principal  atração  ​de  ​um  baile  dado  pela  Duquesa  ​du  B ​ arry  ​cm 
Paris.   
50. ​Freud, ​"Fetishism", ​in ​1he S​ tandard Edition e​ fthe ​Complete ​Psyd1o​ logi(a!​ H·​ &​ rks o
​ f 
Sigmund F ​ reud, ​trad​. ​James Strachey ​(Londres: ​The ​Hogarth ​Prcss, ​1927, ​vol. VII), p. ​tj7. ​Ver 
a   

74  
1​
, ​1   

j
1

l​
1
ser disciplinado 
e subordinado 
numa narrativa 
linear ​do 
progresso he 
terossexual 
reprodutivo - a 
tarefa vaginal 
de gerar um 
filho com o 
mesmo nome 
do ​pai.   
Como 
argumento nos 
capítulos 2​ , ​3 e 
4, ​o espaço 
doméstico 
vitoriano 
também foi 
submetido à 
figura 
disciplinar do 
espaço 
anacrônico. As 
mulheres que 
transg​r​ediam ​as 
fronteiras 
vitorianas entre 
o público e o 
privado, entre o 
trabalho e o 
lazer, entre o 
trabalho pago ​e
o não pago, 
tornavam-se cada vez mais estigmatizadas  descobre   
corno espécimes de regressão ​racial. T ​ ais 
mulheres​, ​dizia-se, não habitavam 
propriamente a história, mas eram  ​ e ​Luce l​ ri​ga​ra​y ​da ​pat​ol​o​gizaçã​o freudian​a ​d​a 
crít​i​ca d
s​exualidade feminina e​ m ​Spt​ ru​ l​ ​um o ​ f t​ ht O
​ ther ​Wom​a​n, 
protótipos de humanos anacrônicos: 
pp. ​13-1​3​9.   
infantis, irracionais, re  
5r​. ​Friedrich Engels, ​1lie ​Ccndition o ​ f ​t​h​e lf​ &r​ki​ng C
​ l​as;​  
gressivas e atávicas, existindo num tempo  in ​England, t​ rad. \V. ​O. H ​ endcrson e \V. ​H. ​Chaloner 
permanentemente anterior dentro da  (Stanford​: ​Stanford University Prcs​s,​ ​r9​5​8 ​[​18​44​ ]), ​p. ​4. 
5​1. I​ dem, ​op​. ​ci​t​.,​ ​p. ​8​.   
modernidade. As serventes domésticas eram 
frequent​e​mente descritas ​na ​iconografia da 
degeneração como ​"​pragas", ​"​raças negras", 

" ​escravas ""···,,


​ e​ pnm1t1vas .   

A ​INVENÇÃO ​DA ​RAÇA ​E A   


FAMÍLIA ​DO ​HOMEM   

Em ​1842, ​Friedrich Engels, filho dissidente 


de ​um ​empresário alemão, atravessou o 
l\tlar ​do ​Norte para investigar a "verdadeira 
condição" dos operários que trabalhavam 
nas fábricas de seu pai​51​• ​Poucos anos 
depois, anunciou que, cm meio ​às 
calamidades daquela primeira grande crise 
industrial, ele achara "mais do que meros 
ingleses, mesmo de uma só nação isolada". 
Achara ​"h ​ ome​ n​ s​ ​, ​membros da grande e 
universal família da humanidade"s:. No 
entanto, a observação de Engels traz um 
parado  
xo. Aventurando-se ​no ​labirinto da 
calamidade urbana dentro dos cor tiços e 
becos infestados de vermes, além dos 
arrotos das estamparias e fábricas de ossos 
da Inglaterra que ​se ​industrializava, Engels 
Couro ​imp~rial   

que a família ​da ​humanidade está desarranjada ​por ​t​o​d​a ​parte. M a​ i​s que ​a 
"família ​de ​uma ​humanidade ​'úni​c​a e indivi​s​ível"' a ​que ​apelou no pre ​fá​c​i​o, 
Engel​s ​des​c​obriu ​"​a decadên​c​ia u​ niver​s​al ​da ​vida familiar ​entre ​o, 
trabalhadores​"H​. ​De f​ ato, a ​tragédia ​da ​universal ​"​Familia ​do ​Homem​" ​da 
classe ​trabalhadora ​era ​que ​"a vida ​familiar[ ​... ​] é quase impossível"​54​• 
​ ngels​, ​há ​uma ​causa para a confusão: ​"É ​inevitá vel 
Ademais, ​na ​vi​s​ão ​de E
que, ​se ​uma ​mulher casada ​trabalha ​numa fábrica, ​a ​vida familiar ​é 
inevitavelmente destruída"​55​•   
O  ​que  ​me  ​intere​s​sa  aqui  ​é ​que  ​Engels,  ao  ​lam,:ar  ​s​u​a  ​"acusa​ç​ão"  ​ao​s 
ingle​s​e​s​,  figura  a​s  ​crises  familiares  ​que  ​assolam  os  ​pobres  ​urban​os  ​atravé​s 
da  ​iconografia  ​da  ​raça  ​e  ​da  ​degeneração.  Vivendo  ​cm  ​cortiços  ​que  ​pouco 
mai​s  ​er​a​m  ​d​o  ​qu​e ~​ermos ​não planejados"​, ​a ​classe trabalhad​o​ra - ​ele  ​sent​e 
- se tornou degradada ​e ​degenerada: ​"​Uma ​raç​a ​fisicamente de  
generada, roubada ​de ​toda ​a humanidade, ​degradada, moral e intelec 
tualmente ​reduzida ​à ​be​s​rialidade​"56​ ​ ora ​é u
​ • ​A classe trabalh​ad ​ m​a "​raça 
inteiramente à parte", ​de ​tal forma que ela ​e a burguesia são agor​a "​duas 
nações radicalmente dissemelhantes, tão distintas ​quanto ​a diferença ​de 
ra​ç​a ​pod​e​ria ​fazê-las"​S7_   
Engels imagina ​as primeiras ​grandes crises ​do ​industrialismo ​através ​do​s 
dois ​tropo​s ​da ​degeneração ​e ​da ​Família ​do ​Homem ​- u ​ m ​tropo extraído ​do 
reino ​da ​domesticidade ​e ​o ​outro, ​do ​rein​o ​do ​império. ​Tes ​temunha-se ​aqui 
a figura ​de ​um d​ uplo deslo​c​amento: a ​história ​global ​é ​imaginada ​como 
um~ familia universal (uma figura ​do ​espaço ​doméstico p​ rivado​)​, ​enquanto 
as crises ​domésticas ​são imaginadas ​em ​termos ra ciai​s ​(a ​figura ​pública ​do 
império). D ​ epois dos ​anos ​1850, ​sugiro, ​as ​prin ​cipai​s ​contradições ​dentro 
da ​modernidade ​industrial - ​entre ​privado ​e ​públi​c​o, ​dome​s​ticidade ​e 
indústria, trabalho ​e lazer, trabalho p ​ ag​o ​e não ​pago, metrópole ​e ​império - 
foram ​sistematicamente mediada​s ​pores  

53​. ​I​d​em, op​. c​it​.​, p​. ​161.   


54. ​Idem, ​op. cir., ​p​. 1​ ~5.   
55​. ​Idem​, ​op. ​cit​., ​p​. ​16​1​.   
5​6​. ​I​d​em, ​op​. ​c​it​. p​. ​33​.   
57. I​ dem, ​op. ​cit​.​, ​pp​. ​361,42​0 ​.  
vf ​situardo ​da ​tara ​- (​ jtntalogi​ a​ s d​ i​ , i​ mperialismo   

se​s d​o​i​s ​discursos ​dominantes: ​o ​uopo ​da 


<lc:gencração ​(​r​eversível ​como o ​ ​crop​o ​do 
progresso) ​e o tro​po ​da ​Famili​a ​do 
H​omem. ​Por v​ olta ​da s​egund​a m ​ etade ​d​o 
século ​XIX, ​a ​analogia ​ent​re ​degene ​ração 
de ​raça ​e de g​ ênero passou a exer​ce​r ​uma 
forma ​especificamente ​m​o​derna de 
dominação ​so​cial, ​co ​ m ​o ​su​r​gimento de 
uma intrincada dialética ​- entre a 
dom​es​ti​c​ação das col​ô​nias e ​a ​ra​ c​ializ​ação 
da ​metr​ó​ p​ ​ole​. ​Na ​metr​ópo​l​e, ​a ideia d​ o 
de​s​vio racial era e​ v​oca​da para polici​a​r ​as 
classes "dege​ne​ radas​"​- a ​cla​sse 
trabalh​ad​ ​ora ​mili​tan​te​, o​ s ​irl​andeses, os 
judeus, ​as ​femini​s​tas, o​s ​gays e​ a​s ​l​ésbicas, 
as ​pro​st​ itutas, ​os ​criminosos, ​o​s 
​ ue ​er​ am ​vi​st​as 
alcoó​l​at​ra​s ​e ​os l​ ou​cos ​-, q
coletivamente como ​des​ ​vian​te​ s ​r​aci​ai​s, 
atávic​o​s ​em ​r​egressão a um ​mome​n​t​o 
pr​imit​ivo ​na p​ ré ​históri​a ​humana​, 
sobreviven​do ​om​inosam​e​nte n​ ​o ​coração ​da 
moderna m​et​r​ópole i​mp​e​rial​.   
Na​s ​colônia​s​, o​ s ​negr​os ​eram ​vi​s​tos, entre 
outra​s ​coisas, ​como d​ e​svia​n ​tes ​de g​ êne​ro, 
co​rporifi​caçõ​es ​da p​ ro​m​iscuidade ​e 
exce​sso ​pré-históricos; ​seu ​atraso 
evolutivo, ​evid​e​nci​ado ​por ​suas 
"​femin​in​ ​as" ​falta​s ​de ​hi​st​ ​ór​i​a, ​de ​ra​zão ​e 
de arr​a​njos doméstico​s ​apropriados. A 
dialética ​ent​re ​domes ​tici​dad​e e ​im ​ pér​io, 
contudo, ​er​a ​e​i​va​da d​ e ​co​ntradição, 
anom​aHa ​e ​para ​doxo. Este livro ​exis​te ​no 
cruzamento ​entre essa​s ​co​ntradi​ções.   
Dep​ois ​da ​m​e​t​ade ​do ​s​éculo, ​s​ugiro, ​s​urgiu 
uma analogia ​trian​gul​ar ​entre ​as 
degenerações racial, ​de ​classe ​e ​de ​gê​n​e​r​o. 
O ​co​ntr​ole "​n​atu​ral​" ​masculino ​da 
r​ep​rodu​ção ​no casamento ​h​e​teros​sexua​l ​e o 
co​ntrole ​"​na ​tu​r​al" ​burguê​s ​d​o ​capital ​no 
m​e​r​c​ado ​do​s ​bens eram ​l​egiti​mado​s ​por 
referên​c​ia a ​um ​terceiro termo: ​a zona 
"a​normal​" ​da degeneração ​r​acial. Dinheiro 
e ​sexua​l​idade ​ilícito​s ​eram ​vistos como 
relaci​o​nados​, pe​la ​analogia negativa com 
a ​raça. ​No ​tr​iângul​o s​im​bólico ​do ​dinheiro 
des​ viante ​- ​a ord​e​m ​da ​cl​ass​e; sexualidade 
desviant​e ​- a ordem d​o g​ê ​ne​ro​; e ​raç​a 
desv​iant​e ​- ​a ordem ​do ​imp​é​ri​o, ​as ​classes 
degeneradas ​e​ram metafori​cam​ente 
ligadas por ​um r​ e​gi​me ​de ​v​igilân​cia ​e eram 
co ​letivame​n​te ​vi​s​ta​s ​como ​t​ran​sgrcssoras 
da​s ​di​s​tribui​ções aprop​ri​adas ​de ​d​inhe​i​ro​, 
sexualidade e p​ropr​iedade. ​Vi​s​tas como 
fa​t​al​m​e​nt​e ameaça​ doras ​da ​economia 
fiscal ​e ​libidinal ​do ​E​s​tado ​imp​eri​al, 
passaram ​a se​r ​s​ubmet​i​das ​a ​u​m 
p​oli​ci​a​m​ento ​c​ada ​vez ​mais ​vigila​n​te e 
viole​nto​.   
Couro ​imperial   

O ​PARAD ​OX​O ​DA ​FAMÍLIA   

Depois ​de ​1859 ​e do advento do darwini​s​mo social​, ​o ​exce​sso ​de ​di​sti​n 


ções ​de ​raça​, ​classe e gênero foi ​redu​zido ​a uma única narrativa pela 
imagem ​da Família ​do ​Homem​. ​A ​"família" ​evolucionária ​oferecia ​uma 
figura metafórica indispensável ​pela q​ ual distinções hierár​quicas f​ r​e 
quentemente contraditórias podiam ganhar a forma de uma narrativa ​de   
gên​ese ​global. ​Sur​ge ​então ​um ​curioso paradoxo. A família ​co​mo ​m​etá 
fora ​oferecia ​uma ​na​ ​rrativa ​única ​de ​gênese ​para ​a ​hi​stó​ri​a g
​ lobal, e​n 
quanto ​a ​família como i​ n​stituição s​ e ​tornava ​um ​vazio histórico. À ​ ​me  
dida ​que ​o século ​XIX ​avançava, ​a ​família ​com​o ​instituição era ​vi​s​ta 
como ​existindo, ​naturalmente​, ​além ​do ​me​rcado ​de ​bens, ​além ​d​a p​ oü​ ​tica 
e além ​d​a ​história ​propri​a​mente ​dita. A família torn​ou-s​e, ​então, ​tanto ​a 
antítese ​da ​hi​st​ória ​como ​a f​ igura ​organiz​a​dora ​da ​história.   
Ao ​m​esmo ​tempo, tinham ​de ​se​r ​encontradas te​cn​o​logias ​do conh​e 
cime​nto ​que ​des​sem ​à ​figura ​da ​família uma forma institucional. ​As 
tecnologias centrais que surgiram ​para ​a exibição mercantil c​ io p​ rogre​s ​so 
e ​da ​família universal foram, sugiro, a​s ​in​s​titui​ções ​vi​t​or​i​anas ​qu​in​t​es 
senciais ​do ​museu, d​a ​exibição da fotografia e ​da ​propaganda imperial.   
Numa  ​observação  importante,  ​Edward  Said  ​apont​ou  ​para ​a ​tran​si ​ção, 
na  cultura  ​da  ​alta  classe  média  vitoriana,  de  "filiação​"  (​r​elaç​ões  ​fami 
liares)  ​para  ​"afiliação"  ​(relações  não  familiares):  ao  mostrar  ​como  ​o  fra 
casso ​em ​produzir ​cr​ianças ​assumiu o aspecto de uma ​aflição c​ ultural   
s​empre  ​presenteS​8​• ​Pa~  ​Said,  a  decadên​c​ia  da  filiação  é​ ​tipicamente 
aco​mpanh​ada  ​por  um  segundo  ​moment​o  ​-  a  virada  para  uma  ordem 
~​ompensatória  de  afiliação,  que  pode  ​ser  ​uma  instituição,  uma  visão,  ​um 
credo  ​ou  ​um ​ a  ​vocação.  ​Emb​ora  ​retendo  ​a  importante  ​di​sti​nção  ​entre 
filiação  ​e  ​afiliação,  quero  complicar  o  movimento  linear  da  estória  ​de 
Said. ​À ​m​ed​ida que ​a autoridade e ​as ​funções sociais das grandes famí  
lias de serviço (investidas de ​rituai​s ​d​e ​filiação de ​o​r​dem e ​s​ubordinaçã​o   
58. ​Edwud ​S:aid, ​1hc W
​ orld, t​ hc T ​ nd t​ he ​Critic (​ ​Cambridge​: ​Harvar​d Univcrsi​ty ​Prcss, 
​ txt, a
1983), ​p. ​19.  
 

vi s​ ituaç,fo d​ a ​urra -​ ​qm,al?gias d​ o ​imptrialismo   

patrilinear) ​eram ​des​l​ocadas para a burocracia, ​a imagem anacrônica ​da família 


de ​filiação ​era ​projetada sobre instituições emergentes de ​afilia ção como sua 
forma namralizada.   
Em ​outras ​palavras, a ​ordem ​de ​filiação (familiar) não d​ esapareceu. ​Ela antes 
floresceu como uma imagem metafórica, reinventada dentro ​das novas ordens 
da ​burocracia industrial, do ​nacionalismo e d​ o ​colo nialismo. ​Além ​disso, a 
filiação assumiria uma ​forma ​cada ​vez ​mais im perial quando a imagem ​da 
família ​em ​evolução ​era ​projetada sobre a naçao i​ mperial e ​as ​burocracias 
coloniais com​o ​sua ​forma legitimadora ​natural.   
O ​poder ​e importância do tropo da família era duplo. Primeiro, a ​família 
oferecia ​uma ​figura indispensável par​a ​sancionar a hierarquia social ​numa 
unidade de ​interesses orgãnica ​putativa. ​Como ​a ​subordi nação da mulher ao 
homem e da ​criança ​ao adulto eram ​considerados ​fatos ​narurais, outras 
formas de hierarquia ​social p​ odiam ​ser ​descritas em termos relativos à ​ ​família 
para garantir a ​diferença s​ ocial ​como ​cate ​goria da natureza. A imagem ​da 
família ​passou ​a ​figurar ​a ​hierarquia ​dentro d​ a u
​ nidade c​ omo elemento 
orgânico ​do ​progresso ​histórico e, as sim, ​tornou-se indispensável para legitimar 
a exclusão e a hierarquia em ​formas ​sociais ​não familiares ​como ​o 
nacionalismo, o liberalismo indivi dual ​e o ​imperialismo​. ​A descrição 
metafórica ​da ​hierarquia ​s​ocial ​como ​natural ​e ​familiar dependia, ​assim, ​da 
naturalização prévia ​da ​subordina ​ção social das mulheres e das crianças.   
Segundo, ​a família ​oferecia um tropo valioso para figurar ​o ​tempo h​ istórico. 
Dentro ​da ​metáfora ​da ​família, tanto a​ ​hierarquia social ​(hie ​rarquia 
sincrônica) ​quanto ​a ​mudança histórica ​(hierarquia ​diacrônica) podiam ​ser 
retratadas ​como ​namrais ​e inevitáveis, ​mais ​que construídas ​historicamente e, 
portanto, ​sujeitas ​a mudança. A projeção da imagem da família sobre ​o 
progresso nacional e imperial permitia ​que ​o ​que era frequentemente ​uma 
mudança violenta fosse legitimado ​como ​desdo bramento progressivo ​de ​um 
decreto natural. A intervenção imperial podia, ​assim, ​ser ​vista ​como ​uma 
progressão linear e não revolucionária que naturalmente continha a hierarquia 
dentro da ​unidade: pais pater ​nais ​governando ​benignamente crianças imaturas. 
O tropo da família   

79  
Couro ​imptr​ i​ al   

orgânica ​se ​tornou ine​sti​m​ável em ​s​ua ​capacidade ​de ​dar o ​á​l​ibi ​d​a ​na 
​ ​interve​nç​ ão ​estatal e ​imperial​.   
tu​re​za à
D​esd​e ​1850, ​a imagem ​da ​familia ​natural e patriar​cal, ​em ​aliança com 
o darwinismo social ​pseudocientífico, ​veio ​a ​constituir ​o ​trop​o ​organiza 
do​r ​para comandar o ​d​esco​n​ce​rtante ​conjunto de culturas numa única 
na​r​rativa global ordenada e ad​min​istrada ​pel​os ​europe​u​s. ​No ​proce​ss​o​, a 
ideia ​de ​n​ature​z​a d​ivin​a ​fo​i ​supe​rad​a ​pela ​ide​ia ​da ​natu​re​za ​imperial ​qu​e 
gar​antia dali ​em ​diante que a ​quinte​ssê​n​c​i​a ​"​uni​v​er​ sal" ​do i​ ​n​dividual​is​ ​mo 
ilumi​n​is​t​a ​p​erte​n​cia a​p​enas au​s ​proprietários ​(​h​o​men​s) ​de ​as​cen​ ​dê​n​cia 
europeia.   

DEGENERAÇ ​Ã​O   
1
Um ​di​scu​r​so ​tri​angu​l​a​r   

Desd​e ​o ​in​ício, a ideia ​de progresso ​qu​e ilu​m​in​ou ​o ​século XIX ​fo​i ​ac​o​m 
panhada ​p​o​r ​seu ​lado ​som​bri​o. ​Im​ag​inar ​a ​degeneraçã​o ​em ​que ​a huma 
nidade pod​e​ria cai​r ​fazia ​part​e n​ ece​ss​ária de imaginar ​a ​exaltaç​ão a ​que 
el​a ​po​d​e​r​ia ​a​s​pirar​. ​A​s ​classes ​d​egene​r​adas, ​definida​s co​mo​ ​desvios ​do   
t​i​po human​o ​normal, ​e​r​am ​tã​o ​ne​cess​ári​as ​par​a ​a aut​ode​finição ​da e​ las​- ​, ​se ​média 
quanto ​a ​id​e​ia ​de ​degen​er​ a​ção era ​p​ara a ideia ​de ​pr​og​resso, ​pois ​a distância 
percorrida ​p​or ​algumas partes ​da ​humanid​ade ​ao ​longo ​do caminho ​do ​prog​r​esso ​só 
pod​ia ​s​e​r ​m​e​dida ​pe​la ​d​is​tân​cia ​em ​q​u​e o​utra​s ​estava​m ​atrasada​ss​9​• ​A normalidade 
su​r​g​ia, assim, como produto ​do d ​ e​sv​io, ​e ​a ​in​venção ​barro​ca ​d​os ​co​njunto​s ​d​e ​tip​os 
deg​en​erad​os ​su blinhava ​o​s ​l​im​i​t​es ​do ​normal.   
A poéti​ca ​da ​degeneração ​e​ra ​uma ​p​oéti​ca ​da ​cri​se ​s​ocial. ​Na​s ​últi ​ma​s 
décadas ​do ​séc​ulo​, os ​pl​anejado​r​es ​sociais vitorianos se ​bas​ear​am ​no 
danvinismo ​so​cial ​e ​na ideia de degenera​ção ​para ​figurar ​a​s ​c​rises ​so​ciai​s   

​ s  classes  dcgencr.adas  ​nio  ​eram  ​percebidas  como  sinónimos  das  ​"re​speit:iveis"  classes 
59.  A
tr​abalhador​a​s​,  ​que  ​s​e  ​tinham  ​dedi​cad​o  ao​s  ​benefi​cio,  ​da  lab​ut​a  ​sób​ria  e ​dilig​ente ​duC1n·  ​te 
​ o  ​final  ​dos  ​ano​s  1​ 8​6​0  e​ ​início  ​do​s ​1S;o. ​Co​mo ​diz ​clara​me​nte 
o  b​ Oôm  d
Henry  ​M  ​ay​hcw​:  "Consid​e​ra.rei  ​o  ​conjunto  dos  ​pobres metropolitan​os 
c​m  ​três  ​fases  ​separadas,  ​aquele​s  ​que  ​trabalharã​o,  ​os  ​qu​e  ​não  ​podem 
trabalhar  e​ ​os  ​que ​nlo ​quer​em ​t​rabalha​r•​. ​Henry ​Mayh​e​w,  ​"L:,bour :​ and 
th​e ​Poor", ​Chro ​ n​ ide​, ​19 ​ou​t​., ​1​849.   

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