Ensaio O Homem Cordial de Sergio Buarque PDF

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FLA0102 - Antropologia II - Questões de Antropologia Clássica

Professor: Marcelo Natividade / Turma: Noturno


Aluno: Felipe Paes Piva Número USP: 8981441

Ensaio “O Homem Cordial” de Sérgio Buarque de Holanda

A concepção cordialidade brasileira por Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do


Brasil”, expressa uma narrativa de uma peculiaridade fundante do imaginário social
brasileiro. A peculiaridade brasileira, descrita pelo autor, seria um predomínio das vontades
particulares sobre as vontades gerais no desenrolar histórico brasileiro. Em decorrência, as
relações e as normas do âmbito privado acabam por fornecer os modelos obrigatórios de
conduta social, há um imperativo do âmbito privado sobre o público, uma transcendência das
fronteiras delimitadas dos espaços tidos como públicos ou privados.
A ideia de um “homem cordial” se teria naturalizado, na identidade nacional, como
uma forma de preservar as sensibilidades e emoções particulares intactas, por meio de uma
afirmação da supremacia do indivíduo sobre o social. Dado seu aspecto expansionista, o olhar
para com o “outro” se desenvolve através de uma redução deste à uma parcela social
periférica, enquanto o “eu” o transpassa, como argumenta Buarque, “é um viver nos outros”
marcado por uma aversão ao ritualismo social, criando assim, uma certa disciplina de
simpatia e “concórdia”. O rigorismo social brasileiro, em comparação com outras identidades
nacionais, seria uma forma mais humanizada e afrouxada das regras. Pretendo analisar neste
ensaio como a concepção de “homem cordial” pode se enquadrar nas experiências que tive
em transportes públicos e também uma mudança de significado que avalio que essa
concepção adquiriu nos tempos atuais.
O transporte público, desde muito cedo, teve uma grande importância no modo como
me desloco entre os espaços, como me relaciono com o espaço comum, e também como um
meio constitutivo de alteridade. Dividindo ocasionalmente um espaço determinado e limitado
pelo tempo, pude desenvolver um treinamento do meu olhar, sem nenhum aspecto
propriamente metodológico, fui aprendendo e entendendo melhor a diversidade das pessoas
que me cercavam e as regras socialmente estabelecidas em prática. Assim, o desconhecido
tornou-se mais inteligível, para mim, na percepção social que fui desenvolvendo com o
tempo no ônibus - que utilizei com maior frequência por crescer numa cidade de interior - e
o metrô - que só passei a utilizar quando mudei pra São Paulo em 2014 -, espaços em que se
gerou uma dialética entre o meu senso de “eu” e o “outro”.
Conforme precisei utilizar de forma mais regular do transporte público, desenvolvi o
hábito de aproveitar o tempo do deslocamento para realizar alguma atividade desejada. Um
momento exclusivo da minha rotina que em que eu aproveitava para ler um livro desejado,
revisar uma matéria antes da prova, escutar música, tirar uma soneca, dentre outras coisas. O
ônibus e metrô são espaços públicos e comuns no qual ritualizei uma série de atividades
adequadas às minhas necessidades pertinentes, os transformei, de certa forma, em um espaço
em que as minhas vontades e desejos pudessem ser atendidas na medida do possível.
Entretanto as minhas vontades não são uma força imperativa alguma sobre os outros
usuários, o meu desejo e o desejo individual alheio não são uma regra social, estes só podem
se realizar dentro de determinadas regras sociais partilhadas pelos usuários. Estar em pé e
cansado, em um ônibus ou metrô lotado, com um grande desejo de sentar, não dá a mim ou a
outra pessoa autoridade alguma de pedir que alguém levante de um assento para que se possa
utilizá-lo, assim como, nem um assento que se torna livre dá propriamente o direito imediato
de ocupá-lo, pois há uma determinação social e jurídica que institui uma prioridade de quais
determinadas pessoas - idosos, grávidas, pessoa acompanhada de bebê - têm uma preferência
maior em ocupar aquele assento. Todavia, mesmo que conceder lugar ou reservar uma
parcela dos assentos para atendimento prioritário seja uma lei não quer dizer que ela será
devidamente respeitada. Se voltamos a imagem de cordialidade podemos ver, nesta situação,
um conflito pertinente entre a vontade particular e a vontade geral. Conflito que produz uma
negociação das regras instituídas com o desejo particular, dada uma certa maleabilidade das
regras que há no ideário nacional no qual a fiscalização - tanto institucional quanto a um nível
mais individual - é vista como uma tentativa de dar uma rigidez prática as regras.
No exemplo utilizado, em diversas observações, os assentos prioritários são utilizados
de maneira constante, tanto por aqueles para quais lhe foram designados quanto por qualquer
outra pessoa que não se encaixe nesta designação. O respeito a regra citada é situacional,
depende de uma série de fatores e marcadores sociais, uma pessoa pode ocupar um assento
prioritário sem se enquadrar nos seus desígnios, porque a execução desta lei depende de uma
reiteração social da regra por alguma das partes envolvidas, ou seja, a lei, neste caso, só tem
valor prático, quando o meio social compartilhado se mobiliza em acionar-se a norma
socialmente estipulada.
Podemos ver como a cordialidade através da aplicação da lei de assentos prioritários
no transporte público se apresenta numa cadeia de negociações - ditas e não ditas - entre as
vontades particulares e a vontade geral, pode se dizer que “um viver nos outros”, nos dias
atuais, possui uma ambiguidade em em relação ao significado empregado por Buarque. Hoje,
temos como requerimento essencial um respeito à alteridade e uma empatia pelo “outro”
maior que nos tempos anteriores. Isso não quer dizer que nos tornamos mais “humanos” ou
mais bondosos, mas sim que há uma maior valoração social na imagem de sujeitos
possuidores de direitos, direitos estes que não devem ser alienados. Se quero ser considerado
como sujeito de direitos necessariamente preciso considerar o “outro” como sujeito de
direitos também. É através desta afirmação mútua que pôde se consolidar uma mudança de
sentido do “eu” e o “outro”, tendo a alteridade como um valor essencial para uma
convivência social mais igualitária.
Contudo, como dito no exemplo acima da lei, a alteridade só pode possuir um valor
social, que não seja propenso de alienação, se há um engajamento coletivo crescente para
reiterá-la como um objetivo a ser alcançado a longo prazo. As concepções entre as fronteiras
do âmbito privado e público se tornaram muito mais difusas e interpostas, consequentemente,
a cordialidade expressa por Buarque também mudou em sua forma, as diferenças entre as
vontades particulares e as vontades gerais ainda existem de maneiras conflituosas e
contraditórias, no entanto, como elas vêm sendo apropriadas no engajamento social e político
tem dado novos valores sociais a elas.

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