Reproduzir Ou Transformar

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SEÇÃO: ARTIGOS

Reproduzir ou transformar? Análise sobre o


papel do professor na manutenção/desconstrução
de estigmas na escola1
Joannes Paulus Silva Forte2
Manoel Moreira de Sousa Neto3
Márcio Kleber Morais Pessoa4
Vinicius Limaverde Forte5
Resumo

Este trabalho foi realizado em uma escola modelo da rede pública de ensino médio na
periferia de Fortaleza (CE) e aborda como as diferenças de classes sociais existentes entre
professores e estudantes condicionam as representações sociais dos docentes acerca do
seu alunado, contribuindo para tornar a escola um espaço de disputa entre a reprodução
e a mobilidade social. Em observações exploratórias realizadas no Conselho de Classe
ao final do ano letivo de 2012, os pesquisadores constataram a frequente emissão de
juízos desqualificadores por professores, ao defenderem a reprovação de estudantes
sem êxito em relação ao domínio de habilidades e competências e/ou aos requisitos
disciplinares. Em muitas dessas falas, em vez de critérios pedagógicos, predominaram
julgamentos com base em marcadores sociais de classe. Assim, no intuito de investigar a
hipótese da existência de uma visão estigmatizadora dos professores em relação aos seus
alunos, como parte do processo de construção social da escola como espaço reprodutor
de desigualdades, seis professores foram entrevistados, e os investigadores constataram
o predomínio de dois estilos de pensamento, tipificados como cordial e humanista. A
construção de representações estigmatizadoras é característica do tipo cordial (no sentido
buarquiano), ao contrário do tipo humanista, que adota posturas mais críticas. Nesse
sentido, a polarização entre essas perspectivas indica o papel do professor na escola como
agente que pode contribuir para a mudança ou a manutenção da ordem.

Palavras-chave

Escola pública – Representação social – Estigmatização – Reprodução social –


Transformação social.

1- Este artigo tem uma versão em inglês. A tradução é de responsabilidade de Paola Fonseca Benevides.
2- Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil / Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), Sobral, CE, Brasil.
Contato: [email protected]
3- Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil / Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC), Fortaleza, CE, Brasil.
Contato: [email protected]
4- Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil / Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC), Fortaleza, CE, Brasil.
Contato: [email protected]
5- Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), Sobral, CE, Brasil. Contato: [email protected]
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1678-4634201844173362
This content is licensed under a Creative Commons attribution-type BY-NC.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 44, e173362, 2018. 1


Joannes Paulus Silva FORTE; Manoel Moreira de SOUSA NETO; Márcio Kleber Morais PESSOA; Vinicius Limaverde FORTE

To reproduce or to transform? Analysis of the


teacher’s role in maintaining/ deconstructing of
stigma at school1

Abstract

This work was carried out in a model school of the public high school in the outlying
areas of Fortaleza (CE) and discusses how the existing social classes differences between
teachers and students condition the teachers’ social representations about their pupil,
contributing to make the school a space of dispute between reproduction and social mobility.
In exploratory observations held at the Class Council at the end of the 2012 school year,
the researchers noted the frequent issuance of disqualifying judgments by teachers in
upholding the disapproval of unsuccessful students in relation to mastery of skills and/
or disciplinary requirements. In many of these statements, instead of pedagogical criteria,
judgments based on social class markers predominated. Thus, in order to investigate the
hypothesis that there is a stigmatizing view of teachers in relation to their students, as
part of the social construction process of the school as a reproductive space of inequalities,
six teachers were interviewed, and the researchers found the predominance of two styles of
thought, typified as cordial and humanistic. The construction of stigmatizing representations
is characteristic of the cordial type (in the Buarquian sense), unlike the humanistic type,
which adopts positions that are more critical. In this way, the polarization between these
perspectives indicates the role of the teacher in the school as an agent that can contribute
to changing or maintaining order.

Keywords

Public school – Social representation – Stigmatization – Social reproduction – Social


transformation.

Introdução

O objetivo deste trabalho é compreender em que medida as representações


construídas pelos professores sobre os seus alunos condicionam suas práticas docentes,
a fim de entender como elementos pedagógicos e extrapedagógicos articulam-se no
processo de ensino e aprendizagem. Durante a realização da pesquisa, percebemos que
não havia uma total correspondência entre as informações fornecidas em entrevistas e

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as práticas de alguns entrevistados observadas nas reuniões do Conselho de Classe6 e


nas suas interações cotidianas na sala dos professores. Esse contraste é mais evidente
no caso de professores que se utilizaram explicitamente de elementos extrapedagógicos
para avaliar os estudantes durante o Conselho de Classe, na medida em que, por um lado,
nas entrevistas prevaleceram discursos construídos em bases mais formais e orientados
por elementos que se pretendiam supostamente legitimados em bases exclusivamente
pedagógicas, e, por outro, no momento da avaliação os professores emitiram, sobre os
discentes, juízos revestidos de certa cordialidade.
Emprega-se a noção de cordialidade a partir da acepção de Sérgio Buarque de
Holanda (1997), cujo conceito remeteria ao sentido exato e estritamente etimológico
da palavra, servindo para expressar a estranheza em relação ao formalismo e ao
convencionalismo social, tal como a aversão aos rituais e às hierarquias instituídas em
bases formais – comportamento que idealmente deve predominar no regime burocrático,
fazendo prevalecer, em seu lugar, a esfera do íntimo, do familiar, do privado, ou seja, a
sobreposição da esfera privada sobre a esfera pública (HOLANDA, 1997).
Uma característica marcante desse traço cordial apresentado pelos professores
expressa-se justamente na supervalorização dos saberes experienciais em detrimento dos
demais tipos de saberes docentes, na medida em que os outros saberes possuem uma
dimensão mais formal, ao passo que os saberes construídos na experiência seriam mais
informais (TARDIF, 2010).
É importante ressaltar que, conforme Tardif (2010, p. 17), “as relações dos professores
com os saberes nunca são relações estritamente cognitivas: são relações mediadas pelo
trabalho que lhes fornece princípios para enfrentar e solucionar situações cotidianas”.
Nesse sentido, observando as atividades profissionais dos professores sujeitos de nossa
pesquisa, confirmamos que o saber docente é composto por diferentes formas de saber
que são mobilizadas no exercício da docência. Entre essas formas de saber, encontram-se:

[...] o saber curricular, proveniente dos programas e dos manuais escolares; o saber disciplinar, que
constitui o conteúdo das matérias ensinadas na escola; o saber da formação profissional, adquirido
por ocasião da formação inicial ou contínua; o saber experiencial, oriundo da prática da profissão,
e, enfim, o saber cultural herdado de sua trajetória de vida e de sua pertença a uma cultura
particular, que eles partilham em maior ou menor grau com os alunos. (TARDIF, 2010, p. 297).

É em razão dessa complexidade do saber docente que “um professor mergulhado na


ação, em sala de aula, não pensa, como afirma o modelo positivista do pensamento, como
um cientista, um engenheiro ou um lógico” (TARDIF, 2010, p. 272). Assim, no exercício da
profissão docente, os preconceitos de classe podem ser mobilizados com diversos saberes
e não apenas com os da experiência. No entanto, é possível argumentar, com base nos
relatos dos sujeitos de nossa pesquisa, que os preconceitos de classe podem se manifestar

6- Instância que reúne, ao final do ano letivo, os professores de cada turma a fim de discutir o caso de cada aluno, considerando desempenho,
comportamento, participação e até relações familiares para decidir se o aluno deve ser reprovado ou se receberá uma nova chance para passar de ano.

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juntamente com todos os saberes docentes, mas especialmente (não exclusivamente) com
os saberes culturais e experienciais.
É justamente na mobilização desses saberes culturais e das experiências em espaços
de convivência entre os professores – nos intervalos entre as aulas, em suas conversas
informais, no compartilhamento de suas experiências pessoais, contando anedotas a
respeito do seu cotidiano profissional – que esse traço cordial é corroborado, encontrando
nessa partilha o reconhecimento mútuo que possibilita sua reiteração em sala de aula.
É nesse contexto que o elemento da cordialidade possibilita que juízos de valor,
preconceitos e visões estigmatizadoras a respeito dos estudantes sejam incorporados de
modo tácito e legítimo entre os docentes. Segundo Goffman (2012), o estigma se traduz em
relações sociais que marcam indivíduos de alguma forma que os torna inadequados para
se relacionar com os demais sujeitos. Em relação ao preconceito de classe, o estigma surge
diretamente ligado às origens e aos padrões culturais das pessoas da classe trabalhadora,
isto é, seus comportamentos, formas de vestir, cor da pele, lugar de moradia, profissão,
enfim, tudo que possa servir para marcá-las negativamente na relação interpessoal,
definindo uma identidade social deteriorada. A partir dessa definição, é erguida uma
barreira que exclui as pessoas estigmatizadas de relações sociais harmoniosas e propícias
ao respeito às suas diferenças socioculturais.
A partir das reflexões de Tardif (2010) sobre a produção dos saberes docentes e
por meio da pesquisa de campo, percebemos como elementos supostamente estranhos
ao corpo de saberes formais relacionados à docência compõem os saberes experienciais
desses professores, orientando suas práticas pedagógicas com base em juízos de valor
estigmatizadores e opiniões preconceituosas em relação aos discentes. Afirmamos que
parte relevante da aquisição dos saberes docentes, em especial os saberes experienciais,
é construída na escola, que seria intrinsecamente um espaço de reprodução da estrutura
de relações de classes sociais, conforme discutem Bourdieu e Passeron (1975). Dessa
maneira, os saberes docentes e o habitus docente estariam impregnados do arbitrário
cultural correspondente às representações e práticas das classes dominantes. Então, seria
a aquisição desse arbitrário cultural convertido em saberes docentes que propiciaria a
construção de concepções estigmatizadoras a respeito dos estudantes. Como os professores
estão investidos de autoridade pedagógica legítima para o exercício do seu trabalho,
essas concepções estigmatizadoras a respeito dos estudantes acabariam sendo aceitas e
naturalizadas pela comunidade escolar, fundamentando o entendimento do docente a
respeito do processo de ensino e aprendizagem, em especial no que se refere à avaliação.
Com base na análise da construção dessas representações estigmatizadoras,
identificamos junto à maior parte do corpo docente pesquisado um traço caracteristicamente
cordial no seu modus operandi, pois suas ações pedagógicas estariam mais claramente
permeadas por uma visão de mundo afeita à informalidade e à valorização excessiva dos
conhecimentos da prática, em detrimento dos saberes mais formais oriundos da formação
acadêmica, por exemplo. Por outro lado, uma parte minoritária dos participantes da pesquisa
demonstrou que tenta orientar sua prática docente com base em princípios políticos e
pedagógicos vinculados a valores humanistas, apresentando uma fundamentação de
suas visões de mundo e de suas atuações profissionais mais vinculada a um conjunto

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de doutrinas formal e legalmente sistematizadas, em contraste com a informalidade que


fundamenta as ações do grupo majoritário.
Nesse sentido, a polarização entre essas perspectivas indica o papel do professor
na escola como agente que pode contribuir para a mudança dentro da ordem ou para
a sua estrita manutenção. Como agente de estrita manutenção, destacam-se os casos
investigados em que a ampla adesão tácita a critérios extrapedagógicos de avaliação
favorece a reprodução de preconceitos que remetem a marcadores sociais de classe,
convertendo a construção social de estigmas em critérios de avaliação dissimuladamente
aceitos como válidos no âmbito escolar. Considerando os professores como agentes de uma
potencial mudança dentro da ordem, destacam-se os casos em que os docentes procuram
agir com base em princípios humanistas, primando pela formação crítica do estudante em
vista do exercício da cidadania.
A escola estudada possui 60 professores que, em sua maioria, participaram da pesquisa
através das observações em campo; contudo, foram realizadas entrevistas com seis. Esses
professores pertenciam a três áreas do conhecimento – Linguagens e Códigos, Ciências
Humanas e Ciências da Natureza –, o que proporcionou uma visão ampliada acerca de
como os docentes formados em áreas diversificadas compreendem sua atuação no ambiente
escolar. Para a construção dos dados que serviram de referência para este artigo, optou-se
pela triangulação entre duas estratégias metodológicas: as entrevistas individuais, com o
uso de um tópico guia de questões (GASKELL, 2012); e as observações flutuantes.
Conforme Goldman (1995), ao invés da observação participante da etnologia
tradicional, caracterizada pela observação direta e contínua, nas sociedades complexas
predomina a observação flutuante, semelhante à escuta flutuante do psicanalista.
Para Denzin e Lincoln (2006), a triangulação, compreendida como o uso múltiplo de
métodos para uma compreensão aprofundada de um fenômeno, é o meio privilegiado
para a exposição simultânea de realidades múltiplas, não constituindo uma estratégia
de validação, apesar de ser um meio de garantir a qualidade da pesquisa qualitativa. Na
verdade, a triangulação é uma alternativa à noção de validade da pesquisa quantitativa,
que proporciona rigor, complexidade e profundidade à investigação. Desse modo, a
combinação entre as informações de natureza distinta, obtida por cada uma das estratégias
metodológicas utilizadas, propiciou-nos uma compreensão mais acurada da realidade
investigada em comparação à utilização de uma única estratégia.

O universo escolar investigado: uma escola pensada para ser modelo


e promover mudanças

A instituição investigada é reconhecida pela sua comunidade escolar como diferente


em relação às demais escolas que integram a rede pública estadual do Ceará. Durante as
entrevistas, foram recorrentes as declarações dos professores sobre o caráter distintivo da
escola, principalmente em virtude da sua boa infraestrutura, do seu corpo de profissionais
qualificados e de um corpo discente mais interessado nos estudos. Essa satisfação
expressa pelos professores coincide, em certa medida, com a reprodução das diretrizes que
orientaram a criação da escola em questão. A instituição de ensino pesquisada foi criada

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em 1998, juntamente com mais 28 escolas no mesmo padrão, durante o terceiro mandato
de Tasso Jereissati como governador do estado do Ceará7 – caracterizado pela estabilização
política do chamado Governo das Mudanças –, com o intuito de servir de modelo em
todo o estado, pois ela nasce com o ideário do novo e do moderno padrão educacional.
A concepção de política educacional que fundamentou o projeto e a implementação da
escola também estava alinhada às mudanças que ocorriam com esse segmento social em
nível nacional.
A aprovação da LDB8 e a criação do FUNDEF9, em 1996, provocaram alterações
significativas nas políticas educacionais, no que diz respeito às responsabilidades da
União, dos estados e dos municípios.10 Além disso, havia uma conjuntura internacional
favorável que elegeu a educação à condição necessária do desenvolvimento das nações,
sob o imperativo econômico-social do Projeto Educação para Todos (MOTA, 2005). Com a
nova legislação educacional, houve a municipalização do ensino fundamental, viabilizada
financeiramente por recursos federais do FUNDEF. Essa medida fez com que a gerência
do ensino médio ficasse sob a responsabilidade do estado. Nesse sentido, o governo
estadual iniciou uma série de ações que tinham por objetivo qualificar o ensino médio
proporcionado pela rede pública. Entre essas iniciativas, constava a criação de novas
escolas que atendessem às demandas da nova legislação educacional.
Porém, apenas esse ideário historicamente construído não explica o caráter diferenciado
atribuído à escola estudada. Por isso, outro elemento que coloca essa unidade de ensino entre
as melhores do estado é a sua posição no ranking das escolas públicas no Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM).11 O índice leva em conta a participação e o desempenho dos
estudantes do ensino médio da rede estadual no ENEM12 entre os anos de 2009 e 2011. No
informativo citado, a escola estudada aparece entre as 50 mais bem-sucedidas. Considera-se,
ainda, o fato de o estado possuir quase 700 unidades de ensino médio, das quais 5% a 6%
entraram na lista das 50 melhores no ENEM.
Portanto, trata-se de uma escola concebida em um contexto de transformações
nas políticas públicas educacionais no Brasil, que a caracterizou como modelo a ser
estendido a outras instituições públicas de ensino no Ceará. Contudo, as reformas no
campo educacional que impulsionaram a criação do conjunto de 29 escolas modelo não
propiciaram a ampliação desse padrão para uma quantidade maior de estabelecimentos
escolares, tornando-as uma espécie de oásis. Com isso, essa iniciativa governamental
acarretou uma disparidade em relação à qualidade de ensino, ao invés de contribuir para
a melhoria da qualidade do sistema educacional como um todo. Dessa forma, a imagem

7- De 1998 a 2002 foram construídas 29 escolas nesse padrão. Disponível em: <http://portal.seduc.ce.gov.br/images/arquivos/escolas_2008.
pdf>. Acesso em: 23 jun. 2009.
8-  Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
9- Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério.
10- Tanto a LDB quanto o FUNDEF são resultantes da Constituição Federal de 1988. A CF/88 manteve a obrigatoriedade do ensino para crianças,
assim como a Constituição de 1967, mas com um diferencial: o Estado passou a ser responsável por sua oferta e universalização. 
11- Informe do IPECE, nº 54, de fevereiro de 2013. Instituto de Pesquisas Econômicas do Estado do Ceará (IPECE). Disponível em: <http://www.
ipece.ce.gov.br/publicacoes/ipece-informe/Ipece_Informe_54_26_fevereiro_2013.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2013.
12- O Exame Nacional do Ensino Médio é realizado anualmente. Seus principais objetivos são: servir como parâmetro para selecionar alunos
para o ensino superior e estabelecer ranking entre as escolas, como forma de prestação de contas.

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de excelência da escola pesquisada foi criada em decorrência da reestruturação das


políticas educacionais e fortalecida pela posição ocupada no ranking de escolas públicas.
Assim, o orgulho expresso pelos profissionais entrevistados em trabalhar em uma escola
diferenciada assenta-se em uma desigualdade fundamental de oportunidades quanto ao
acesso à educação de qualidade instaurada pela própria estrutura de funcionamento do
sistema educacional no Ceará.13

A construção dos saberes e da prática docente na


escola modelo

Para pensar sobre a relação entre desigualdade social e preconceito de classe no


contexto da estigmatização de alunos das classes populares, oriundos de bairros periféricos
de Fortaleza (CE), optamos pela abordagem sobre o modo como os saberes docentes são
construídos, a fim de compreender como os professores trabalham junto aos alunos filhos
das classes trabalhadoras. Tardif (2010) fez questionamentos interessantes a respeito dos
saberes docentes: serão sociais ou individuais? Provêm dos processos sociais e, assim, o
indivíduo não participa de sua construção? Ou têm origem no organismo, no indivíduo
e, dessa forma, são apartados dos processos sociais? Parecem questões ingênuas, mas não
as fazemos a todo instante porque naturalizamos a ideia segundo a qual os saberes do
professor são provenientes apenas de uma formação escolarmente desenvolvida, da qual
todo conhecimento e todo fazer docente teriam vindo.
Tardif (2010) nos mostra que o saber docente não vem apenas da formação escolar
e acadêmica do professor. Esses saberes são fruto de transações entre o que são e o que
fazem, considerando sua cultura, sua socialização e sua experiência. Dessa maneira, os
saberes docentes seriam provenientes de várias fontes, a saber: disciplinares, curriculares,
profissionais, culturais e experienciais. Os três primeiros saberes podem ser considerados
formais, pois são provenientes de fontes institucionais, tais como: a universidade, a
secretaria de educação, os conselhos de educação etc. Já o penúltimo diz respeito ao
conjunto de crenças, valores, normas e práticas no qual se desenvolve o processo de
socialização. E o último tem relação com a experiência profissional. Então, devido às suas
origens, o saber docente pode ser definido como plural. No caso dos docentes da escola
investigada, ficou bastante claro em suas entrevistas que há uma valorização dos saberes
experienciais em detrimento das outras formas de saber:

Pra mim, eu costumo dizer, foi a escola que me formou. Certo? A gente estuda Pedagogia,
Estrutura do Ensino Fundamental e Médio, Didática, mas, na minha humilde opinião, a gente só
aprende verdadeiramente [a ensinar] quando a gente entra na sala de aula e começa a vivenciar
na prática isso. (Professor Heitor).14

13- Haguette, Pessoa e Vidal (2016) desvendam esse cenário de desigualdade entre escolas no sistema de ensino público estadual do Ceará.
14 - Neste texto, os nomes dos professores entrevistados foram substituídos por nomes fictícios, com o objetivo de salvaguardar a integridade
psíquica e moral dos interlocutores da pesquisa.

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Na verdade, está muito distante a formação que está sendo [...] ofertada na universidade da nossa
realidade [na escola]. (Professor Vladimir).

Analisando os relatos dos professores, podemos perceber que os saberes profissionais


e disciplinares são subvalorizados em detrimento dos experienciais15. Além disso,
constata-se que a prática desses profissionais tem um valor especial para cada um. Talvez
essa subvalorização seja fruto do fato de eles não serem os profissionais responsáveis pela
construção dos saberes formais, o que é função dos cientistas e pesquisadores. Por outro
lado, a valorização dos saberes experienciais pode estar relacionada ao fato de serem
criados pelos professores de profissão e por eles manipulados. Os saberes experienciais
não se encontram sistematizados formalmente em um corpo teórico próprio, pois eles
são saberes práticos constituídos cotidianamente pelos próprios professores, servindo-lhes
de base para a construção de representações sociais16 (MOSCOVICI, 2003; LENOIR, 1996)
que lhes possibilitam meios para interpretar, compreender e orientar sua prática, sendo a
cultura docente em ação (TARDIF, 2010).
Nesse sentido, o saber docente agrega tanto conhecimentos formais quanto informais,
proporcionando que esses profissionais abram mão de saberes formais, criados e propalados
na esfera pública referente à formação docente, ao mesmo tempo em que lançam mão
de saberes informais, estes podendo ser desenvolvidos na esfera privada do indivíduo,
carregando traços da cordialidade já destacada na discussão com Holanda (1997).
O fato de os saberes experienciais terem relação com a prática docente não
significa dizer que são completamente subjetivos e provenientes da esfera privada. Com
isso, cada experiência e percepção individual acerca do conhecimento se desenvolve a
partir de relações de interdependência entre os estratos de um grupo social, ou seja, “o
pensamento humano não é motivado por um impulso contemplativo, uma vez que requer
uma corrente subterrânea volitiva e emocional inconsciente que assegure, na vida grupal,
uma orientação contínua em direção do conhecimento” (MANNHEIM, 1972, p. 58). Essa
concepção acaba por nos mostrar a força do inconsciente coletivo como fundamento
irracional do conhecimento racional.
Com base no contexto cultural brasileiro e no contato com outros professores mais
experientes17 em momentos de interação na escola, percebemos que o professor pode
inculcar preconceitos e estigmas e reproduzi-los no ambiente escolar. Isso é passível de
ocorrer principalmente mediante as trocas de informações a respeito dos estudantes, de
dicas de como organizar e disciplinar as turmas na sala de aula, além de dicas e macetes

15- Todos os professores entrevistados relataram a deficiência da formação universitária para a profissão docente, exaltando, de alguma forma,
a prática docente cotidiana, que lhes faz construir os saberes da experiência.
16- Utilizamos o conceito de representações sociais para enfatizar que os saberes docentes podem ser convencionalizados, localizando-os
em uma determinada categoria, colocando-os como um modelo determinado pelo grupo social em questão. Além disso, tais representações são
prescritivas, ou seja, são impostas, transmitidas, e são o produto de uma sequência de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo,
resultando de sucessivas gerações (MOSCOVICI, 2003). Nesse sentido, as representações dependem de fatores que estão em meio à diversidade
existente entre as sociedades humanas. Eis a importância de considerar a memória e a história, pois as construções sociais são também históricas
e compostas por determinadas especificidades que constituem uma memória coletiva (LENOIR, 1996).
17- Segundo Tardif (2010), os saberes experienciais, no que diz respeito à prática docente, são desenvolvidos principalmente nos primeiros
cinco anos de profissão.

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sobre o preparo de aulas, avaliação e material didático (TARDIF, 2010). É importante


considerar que a chamada esfera privada do indivíduo é formada a partir de seu contato
com o exterior, internalizando de forma singular a sociedade. É dessa forma que Holanda
(1997) concebe o conceito de cordialidade, isto é, a partir do contato do homem com a
sociedade que privilegia contatos e saberes cordiais. Dessa forma, o privado parece se
opor mais à formalidade do que à informalidade, esta resultante de um comportamento
socialmente elaborado e pouco afeito a relações sociais orientadas de modo ritual,
hierárquico e legal, característico do que é público.
No curso da investigação, descobrimos que a sala dos professores constitui um
espaço de sociabilidade bastante propício à elaboração de saberes do tipo experiencial,
pois é onde docentes e funcionários compartilham alguns acontecimentos relacionados ao
seu dia a dia profissional. Desse modo, passamos a realizar observações mais sistemáticas
nesse local a fim de obtermos elementos que pudessem subsidiar nossa investigação,
possibilitando-nos informações a serem trianguladas com as entrevistas e as observações
no Conselho de Classe. Com a pesquisa, foi possível constatar que os professores orientam
sua prática docente com base em um sistema de classificação dos estudantes e que seria
possível tipificar esses professores conforme a maneira como eles orientam suas ações em
função desse sistema de classificação vigente.

Representações sobre o aluno ideal e os tipos de prática


docente

O ideal modernizante que serviu de base para a construção de um conjunto de escolas


modelo no Ceará durante o final da década de 1990, em vez de promover uma melhoria
no sistema educacional como um todo, acabou contribuindo para a criação de alguns
oásis, como dissemos, em meio a um deserto escasso em qualidade. Todavia, além das
desigualdades promovidas pelo próprio sistema entre as diferentes escolas da rede pública,
há outros mecanismos mais sutis que contribuem para a reprodução das desigualdades
sociais no interior de uma mesma escola, por mais que se propale a existência formal
de condições iguais entre os estudantes. A aquisição dos diferentes saberes formais e
experienciais por parte dos professores constitui um dos elementos nesse processo, na
medida em que essas formas de conhecimento estão imbuídas de determinadas visões de
mundo que contribuem para reforçar desigualdades sociais.
Considerando a pesquisa que deu origem a este artigo, identificamos que os
professores com os quais interagimos também interiorizaram preconceitos e estigmas que
são comuns em nossa sociedade e que são reproduzidos pela socialização diária que nos
educa além da escola. É dessa forma que podemos perceber nas entrevistas e observações
em campo que alguns professores criam um modelo de aluno ideal, senão vejamos:

Nós temos o aluno ideal, aquele aluno que realmente tem uma formação muito boa, estruturada,
com valores e princípios, e que vem mesmo para a escola aberto a... Com o objetivo mesmo de
aprender e participar do processo de aprendizagem. Esse é o aluno ideal, perfeito, se todos fossem
assim, todo professor ficaria satisfeito. (Professor Vladimir).

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Pode-se perceber que o professor concebe o perfil do aluno ideal, pautando sua
prática nele, não considerando as relações de poder fundadas na desigualdade social que
também são integrantes da escola, uma vez que a escola também é a sociedade. Mas como
esse ideal de aluno é produzido?
Conforme Bourdieu e Passeron (1975), há uma relação fundamental entre o sistema
de ensino e a estrutura de relações entre as classes sociais, na medida em que toda ação
pedagógica é uma forma dissimulada de violência simbólica. Ainda de acordo com os
autores, violência simbólica é o processo de inculcar dissimuladamente um arbitrário
cultural. A noção de arbitrário cultural diz respeito ao fato de o conjunto de práticas e
valores que integram as expressões culturais características de uma determinada classe
ser arbitrário para as outras classes sociais, na medida em que não diz respeito ao seu
contexto social de origem, sendo, portanto, uma expressão desenraizada, estranha e não
familiar ao seu modo de vida.
Neste sentido, a criação de um modelo ideal de aluno origina-se de critérios de
classificação criados pela comunidade escolar que remetem a convenções tácitas a
respeito das características pertinentes ao bom aluno, em contraposição ao mau aluno.
É explicitamente perceptível, nas falas dos professores entrevistados, a existência desse
modelo ideal de aluno, embora não sejam tão explícitos os fundamentos que originam tal
modelo. Nesse sentido, investidos de suas autoridades pedagógicas, os docentes enumeram
razões relacionadas a critérios pertinentes à boa conduta disciplinar e ao desenvolvimento
adequado do processo de ensino-aprendizagem para qualificar um indivíduo como bom
ou mau aluno, reiterando indiretamente o que está em jogo: a incorporação do arbitrário
cultural que a escola visa inculcar implicitamente. Seriam tidos como bons alunos
justamente os estudantes que mais se aproximam das práticas, dos comportamentos e dos
valores correspondentes a esse arbitrário, enquanto aqueles que destoam desse arbitrário
seriam enquadrados como maus alunos. Assim, os maus alunos se converteriam em alvo
privilegiado de concepções estigmatizadoras por parte dos professores, devido ao seu
caráter desviante em relação aos critérios de classificação adotados dissimuladamente a
respeito do bom aluno ou aluno ideal.18
A construção desse modelo de aluno ideal é empreendida e reiterada cotidianamente
nos espaços de convivência entre professores na escola e na sala de aula. Em espaços
de convivência como a sala dos professores, circulam narrativas sobre as vivências
profissionais e pessoais de docentes e agentes administrativos que servem de esteio para
a contínua elaboração e aquisição de saberes experienciais. Esse contexto possibilita uma
sistematização informal de valores pedagógicos e extrapedagógicos que fundamentam a
categorização dos estudantes em bons ou maus, construindo um discurso legitimador sobre
a validade dessas categorias como critério avaliativo, tal como expresso nas reuniões de
Conselho de Classe, por exemplo. Ao se converterem esses critérios de classificação em um
procedimento legítimo, embora não explicitamente assumido, coloca-se o dilema da escola
como reprodutora da ordem social vigente, na medida em que os alunos desajustados
18 - A própria existência de bons e maus alunos, segundo o critério dos professores, relativiza a noção de violência simbólica no ambiente
escolar, visto que uma quantidade significativa de alunos, independentemente de interesse, parece se opor ao arbitrário cultural propagado pela
escola. Nesses casos, a violência pode assumir outras formas.

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encontram-se fadados ao fracasso escolar e, por conseguinte, veem dificultadas suas


chances de ascender socialmente.
Com base nessa reflexão acerca da classificação dos estudantes por parte dos
docentes, seria possível propor a construção de uma tipologia dos professores a partir
de suas atitudes perante os diferentes tipos de estudante. Poderiam ser apontados como
cordiais os professores que se resignam a reconhecer um tipo ideal de estudante e orientam
sua conduta de modo a privilegiar apenas aqueles que se aproximam desse ideal. Por outro
lado, seriam apontados como humanistas aqueles que buscam orientar sua prática docente
de modo a tentar estimular seus estudantes a se aproximarem desse ideal.19 Contudo, em
ambos os casos, reitera-se de diferentes modos a reprodução da ordem social, devido às
profundas dificuldades de ruptura, dentro da escola, com o arbitrário cultural dominante.
No caso do modus operandi dos cordiais, sua ação pedagógica seria intrinsecamente
excludente, na medida em que os estudantes desviantes tenderiam ao fracasso escolar. Já
por parte dos humanistas, sua ação pedagógica potencialmente contribuiria para aumentar
as chances de inclusão dos seus estudantes em um patamar mais elevado dentro da ordem,
pois sua preocupação com aqueles que possuem maior dificuldade de inculcação do
arbitrário cultural faz com que eles recebam um estímulo extra para melhor desempenhar
suas atividades discentes.
Pensando a partir do exposto, compreendemos como professores da escola
estudada agem no ambiente escolar aplicando a distinção entre alunos que chamam
de ideais e alunos que não se aproximam desse modelo, chegando a ser opostos à
formulação ideal de seus mestres, razão pela qual podem ser qualificados como sujeitos
que não querem nada com a vida, vagabundos, sem futuro, marginais. Sob uma visão
preconceituosa sobre os alunos, essas qualificações os condenam ao fracasso escolar.
Em conversa informal conosco, um professor expõe sua opinião acerca da condição
para o sucesso escolar dos alunos:

É o que eu sempre digo: educação é uma questão de “querer”. Se eu digo assim: “Pegue este
celular” [e estende a mão na direção do pesquisador como se estivesse lhe oferecendo um aparelho
de telefone celular], e você responde: “Por que eu vou querer esse celular se eu não sei mexer?”.
Mas, se eu lhe der o celular, em 30 minutos você já vai estar sabendo mexer nele, ou seja, “basta
querer”. (Professor Ronaldo).

Com isso, compreendemos que o professor responsabiliza os alunos pelo


não-aprendizado ou aprendizado deficiente, não considerando outros fatores que
podem influenciar nisso, conforme pudemos entender na discussão com Bourdieu e
Passeron (1975). Esses fatores são menosprezados e a responsabilidade pelas notas
baixas passa a ser exclusiva do aluno, pelo fato de não querer estudar. Nessa lógica
inclusiva por discriminação, o professor e a escola separam alunos que possuem bom

19- Aqui, é importante ressaltar que tanto a acepção de cordial quanto a de humanista, ambas atribuídas aos professores pesquisados, são
concebidas como estilos de pensamento (MANNHEIM, 1986); ou seja, originam-se em um determinado tempo e espaço, produzindo diferentes
modos de padrões e categorias de pensamento.

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desempenho e comportamento20 dos que não os possuem; estes, geralmente definidos


como vagabundos e sem futuro em momentos reservados aos professores, assim como
constatamos em observações no espaço escolar, especialmente na sala dos professores.

Classificação social dos estudantes, avaliação e


educação reprodutora

Entre o conjunto de professores que tipificamos como cordiais, percebemos que a


partilha de saberes experienciais contribui para a reprodução de preconceitos e estigmas.
Isso porque tivemos a oportunidade de realizar observações no ambiente escolar que nos
demonstraram isso, a saber: durante o Conselho de Classe da escola, um aluno havia
sido reprovado em quase todas as disciplinas após as avaliações regulares, porém passou
em várias na recuperação ao final do ano letivo, exceto em quatro. Entretanto, três
professores dessas disciplinas o aprovaram durante o Conselho, isto é, acabou ficando
reprovado apenas em uma disciplina, o que lhe concedia segunda chance – outra avaliação
de recuperação – para buscar ser aprovado para a série seguinte. No fervor da discussão
sobre esse caso, envolvendo todos os professores da turma desse aluno, uma professora
comentou: “Eu passo, ele é bonzinho”. Outra disse: “Eu não o passo porque ele escreveu na
prova de recuperação o seguinte: ‘Estou colhendo o que plantei’”. Foi quando uma terceira
professora verbalizou: “Pelo menos ele é consciente! Você vai aprovar o [outro aluno] que
é um ‘sem futuro’?!”.
Vimos que os professores externalizam seus saberes práticos a partir do instante em
que realizam avaliações acerca dos alunos em momentos oficiais entre seus pares, como é
o caso do Conselho de Classe. Por conseguinte, entendemos que as professoras expuseram
em suas falas seus saberes experienciais, que estavam carregados de preconceitos e estigmas
inculcados a partir de suas experiências vividas na família, na religião, na educação
escolar e não escolar, na atuação profissional, enfim, experiências no contexto cultural de
sua sociedade que lhes fizeram naturalizar e reproduzir o que aprenderam como certo e
bom. Ademais, pode-se perceber como o abandono dos padrões formais de avaliação e a
adoção de padrões cordiais ocorrem, fazendo os professores realizarem avaliações acerca
do aluno em uma esfera privada, na qual levam em consideração fatores extrapedagógicos
em detrimento de uma esfera pública, em que os fatores pedagógicos devem prevalecer.
Inicialmente, uma diz que o aprovará por ser bonzinho, o que pode ser questionado
da seguinte forma: os alunos das classes menos favorecidas não necessitam apreender os
conhecimentos escolares, basta apenas que sejam comportados, o que garantirá que não
sejam os marginais de amanhã, ou que não sejam os revoltados em seus empregos. Em
relação à terceira, ela entende que o aluno deve ser aprovado por ser consciente de sua
condição, o que não acontece com outro aluno que, talvez devido a seu comportamento
e desempenho, é um sem futuro numa sociedade onde os valores dominantes – pensados
e propagados pelas classes dominantes por meio de aparelhos ideológicos, como as

20- Ainda segundo o professor Ronaldo, o tipo ideal de aluno representa “de 20% a 25%” do total, a minoria dos que estão presentes nessa
escola pública.

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emissoras de rádio e TV, a imprensa escrita, os websites e a escola – são implacáveis com
as pessoas que se comportam de maneira inadequada.
Nesse sentido, questionamos até que ponto as relações sociais referentes à escola
contribuem para a reprodução ou a desconstrução de preconceitos e estigmas baseados na
desigualdade social, levando vários jovens da escola média, no Ceará, a um quadro real
de vulnerabilidade social e de inclusão social perversa, precária e marginal (MARTINS,
1997, 2002). A pesquisa revelou que a resposta está numa ironia, no paradoxo entre a
reprodução e a ruptura com o preconceito de classe e a estigmatização de estudantes
pobres, visto que, assim como compreendemos a ocorrência da reprodução, exemplos de
desconstrução de condutas preconceituosas e estigmatizadoras também existem. Como
mencionado anteriormente, na discussão com Tardif (2010), os saberes experienciais
do professor brotam de experiências pessoais e coletivas. Logo, suas vivências podem
contribuir tanto para a naturalização de preconceitos, quanto para a crítica a eles. É
dessa forma que compreendemos que alguns professores classificados como humanistas
contribuem para a desconstrução de preconceitos e estigmas no ambiente escolar. Esses
aspectos podem ser demonstrados com a fala da professora Paula:

O professor sabendo lidar com a turma, a turma vai respeitá-lo, [...] você tem que conversar
para que tenha uma troca e um entendimento, digamos. Porque os dois estão somando, estão
aprendendo e ensinando. Então, tem que haver esse diálogo, não é? Quando a gente abre para
esse diálogo, que os alunos passam a se sentir também importantes, não apenas liderados,
mandados, mas quando eles [pensam]: “Ah, minha opinião vale a pena”; “Ah, legal, eu dou minha
opinião e o professor escuta, muda a opinião dele até, conversando comigo”. Então, ele se sente
na engrenagem também e as coisas começam a fluir melhor na sala, quando a gente também dá
não só deveres, mas também dá direitos a eles, dá voz. (Professora Paula).

A professora Paula considera o ambiente escolar como um ambiente de mútuo


aprendizado, onde os alunos não devem apenas obedecer a ordens, mas também participar
de decisões e gozar de direitos. A experiência de sua vida traz algumas explicações sobre
a sua conduta: ela foi estudante da própria escola onde hoje leciona, além de ter morado
por quase toda a vida no mesmo bairro da escola, que se localiza na periferia de Fortaleza.
Verifica-se que a professora Paula é proveniente da mesma classe social que seus alunos,
convive com eles no dia a dia e, por essa razão, consegue ter uma visão em profundidade
sobre eles, e não superficial, caso de outros professores que definem estereótipos como
realidade, humilhando e rejeitando os alunos em consequência de sua definição da
situação (THOMAS, 1923, 2002). Eis um fenômeno para ser explicado com o clássico
Teorema de Thomas: “se as pessoas definem uma situação como real, ela será real nas suas
consequências” (THOMAS; THOMAS, 1928, p. 571-572, tradução nossa).21
Diferentemente do que anteriormente relatou o professor Ronaldo, quando disse que
o aprendizado é uma questão de querer, o professor Flávio ressalta que a contribuição dos
alunos para a sua aula depende principalmente dele:

21- Citação original: “If men define a situation as real, it will be real in their consequences”.

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[Os alunos] contribuem [para o meu trabalho] sendo disciplinados, contribuem também, se nós
não incentivarmos a eles a, sei lá, muito trabalho, se organizarem em grupo, orientá-los... Eu acho
que isso parte muito, também, às vezes, do professor, sabe?, essa questão de eles se interessarem
por determinada coisa e quererem alguma coisa com aquela matéria, com aquele ano letivo e
tal. Eu acho que tem muito a ver com essa questão do professor essa pergunta, eu acho que ela
é um pouco mais direcionada à gente também, ainda mais na escola pública. (Professor Flávio).

Pode-se perceber que Flávio parece compreender e querer superar o modelo de


ensino tradicional presente na maioria das escolas ainda hoje, destacando que o professor
deve buscar incentivar os alunos. Isso ficou mais claro quando perguntamos se ele trabalha
com esse tipo de aluno (que contribui com o seu trabalho) e ele respondeu: “Eu tento, o
máximo possível, seja trazendo questões novas, seja passando um trabalho que não é
mera cópia [da internet]”. Mais uma vez, Flávio evita responsabilizar o aluno pelo seu
comportamento e (des)interesse, destacando que a atuação do professor é determinante.
Por qual motivo esse professor pensa assim?
Assim como Paula, Flávio nasceu e viveu no bairro da escola onde ensina. Durante
o seu curso de graduação, participou de entidades de representação política como o Centro
Acadêmico e o Diretório Central dos Estudantes. Atualmente, participa de um movimento
de juventude em prol da defesa de direitos dos jovens e de outras categorias sociais
oprimidas e marginalizadas. Isso pode nos ajudar a explicar o motivo pelo qual esse
professor enxerga seus alunos com outros olhos, visto que, geralmente, esses tipos de
movimentos sociais possuem a proposta de pensar oportunidades para os jovens, não os
criminalizando, além de organizá-los na luta por direitos. O próprio professor destaca que
esses movimentos são importantes para a sua atuação profissional, visto que passou a
perceber a realidade com maior criticidade e busca transmitir isso aos seus alunos:

É obvio que os movimentos me influenciaram a apresentar um pouco essa história crítica e


tal. Não fico lá tentando dogmatizar alguém e tal. [...] E na sala de aula, só nesse sentido,
[...] de formar essa coisa crítica também neles, [...] sempre contextualizado. Enfim, não sou de
“ideologizar” ninguém não. Apesar de ter uma ideologia. (Professor Flávio).

Percebemos que, nos casos de Paula e Flávio, seus saberes experienciais – sua
vivência – contribuíram para que tivessem uma visão crítica da realidade, do contexto
cultural em que vivem, entendendo os preconceitos e estigmas ali presentes como
formas de dominação que devem ser desconstruídas; e não reproduzidas. Contudo,
compreendemos que a supervalorização dos saberes experienciais em detrimento dos
saberes formais pode fortalecer preconceitos e estigmas sociais, haja vista que esses
saberes são pautados em discussões científicas que podem levar ao estranhamento e à
desnaturalização da desigualdade social e de seu efeito nefasto à cidadania. Ademais,
aqueles saberes são pautados em conhecimentos práticos da realidade que nos cerca,
sendo fonte para interpretações, compreensões, orientações (TARDIF, 2010) e resolução
de situações-problema para a prática profissional docente, além de poderem transferir
a avaliação dos profissionais acerca de seus alunos da esfera pública para a privada.

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Ou seja, assim como podem contribuir para a desmistificação do preconceito de classe,


como fazem Paula e Flávio, podem aprofundá-lo, efeito percebido em outros profissionais
através das entrevistas e observações.

Ironias da escola e da prática docente: mudança e manutenção


da ordem social pelos saberes e fazeres dos professores de profissão

A pesquisa que deu origem a este artigo confirmou a hipótese lançada inicialmente,
qual seja: a de que existe, ao menos na instituição escolar estudada, uma visão
estigmatizadora dos professores em relação aos seus alunos que integra o processo de
construção social da escola como espaço reprodutor de preconceitos e de desigualdades.
A confirmação da hipótese de pesquisa leva a uma compreensão desmistificadora
da escola como solução para os mais diversos problemas sociais, ideia bastante presente
no amplo senso comum e no senso comum acadêmico, embora os estudos de autores
como Bourdieu e Passeron (1975) apontem para a reprodução da dominação de classe
na escola, o que perpetua a desigualdade política, social e econômica: um grandioso
problema social.
Em contraposição ao modelo de escola ideal, é patente o fato de a produção e
reprodução de estigmas, a partir de preconceitos de classe, ocorrer numa escola top, que
integra uma proposta de educação de referência para atender às exigências da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394, de 10 de dezembro de 1996, segundo
a qual a educação escolar, no Brasil, deve ocorrer com ideais de liberdade e de solidariedade
humana, tendo como objetivo fundamental formar para o “mundo do trabalho”, para a
“prática social” e para o “exercício da cidadania”.
Mesmo com diretrizes legais, científicas e pedagógicas, os professores participantes
da pesquisa supervalorizaram os saberes da experiência em detrimento dos demais saberes
docentes (TARDIF, 2010). A partir das falas dos interlocutores, percebemos que a sua
formação universitária, nos cursos de licenciatura, não interferiu substancialmente para
desconstruir esses saberes e orientá-los à crítica de sua prática docente. Nossos interlocutores
demostraram que são guiados principalmente por saberes experienciais dissociados de
saberes pedagógicos com os quais deveriam se preparar para a docência em consonância
com a prática de atividades docentes na escola, a exemplo dos estágios e das demais
atividades a serem desenvolvidas no espaço escolar e no seu entorno social. Não obstante,
também há professores provenientes do mesmo universo social de seus alunos – inclusive,
estudaram na mesma escola de onde atualmente são professores – e que relativizaram os
mesmos preconceitos de classe que influenciam as ações da maior parte dos participantes da
pesquisa, tecendo críticas à estigmatização elaborada sobre os estudantes.
Sem desconsiderar a existência de professores que relativizam os saberes culturais e
experienciais, tais saberes parecem funcionar sobremaneira na manutenção de definições
preconceituosas dos docentes sobre os alunos, sobre a escola e sobre si mesmos. Foi justamente
a constatação dos saberes culturais e experienciais presentes na conduta dos professores que
nos permitiu identificar a existência de preconceitos de classe a partir dos quais eles produzem
e reproduzem estigmas sobre as características dos alunos socialmente marcadas.

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Além do preconceito de classe e da consequente estigmatização dos alunos das classes


economicamente desfavorecidas, a forma generalizada pela qual ocorre a deterioração da
identidade social dos alunos chamou a nossa atenção, haja vista que são professores de
áreas diversificadas que manifestam visões e condutas preconceituosas em relação aos
estudantes. Esse fato afasta a visão do senso comum segundo a qual os professores da
área de humanidades seriam mais críticos em razão de sua formação acadêmica, o que os
levaria a relativizar preconceitos, proporcionando uma prática docente mais compreensiva
e contextualizada para a realidade sociocultural na qual atuam.
Em todo caso, a percepção da existência de dois estilos de pensamento entre os
docentes, o cordial e o humanista, contribuiu para a identificação do paradoxo que, de um
lado, mostra a escola como uma instituição capaz de desenvolver um processo educacional
inclusivo para a cidadania tutelada pelo Estado e para a esfera do consumo, haja vista
a possibilidade de mobilidade social; e, de outro, revela a escola como uma armadilha
que, por meio de julgamentos com base em marcadores sociais de classe, reserva aos seus
alunos uma forma de exclusão social. Pensando com Martins (1997, 2002), essa exclusão
social é, na verdade, uma inclusão na sociedade capitalista que distancia o indivíduo
humano da dignidade e o deixa à mercê da própria sorte. Melhor dizendo, a escola, vista
como uma grande panaceia pelo senso comum lato e douto, pode, contraditoriamente, ser
um portal para uma inclusão precária, marginal e perversa.
Com isso, a pesquisa realizada em uma escola modelo da rede pública de ensino
médio, na periferia de Fortaleza (CE), mostrou como as diferenças de classes sociais
existentes entre professores e estudantes condicionam as representações sociais dos
docentes acerca do seu alunado, contribuindo para tornar a escola estudada muito mais
um espaço de disputa entre a reprodução da dominação de classe e a mobilidade social,
que de emancipação humana, categoria utilizada por Karl Marx (1993). Para o autor, a
emancipação humana somente seria possível a partir da ruptura com o Estado capitalista,
com os seus mecanismos de controle e ordenamento jurídico e com a religião. Sem isso,
a emancipação política, superficial e limitada, continuará reduzindo o “homem, por um
lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro a cidadão,
a pessoa moral” (MARX, 1993, p. 63, grifos do autor). Assim, a emancipação humana
não se realiza, e o indivíduo continua preso política e ideologicamente às estruturas
mantenedoras da sociedade capitalista.
Para ultrapassar o antagonismo que marca essas duas formas de emancipação
discutidas por Marx (1993), podemos pensar numa relação dialética entre elas. Nessa
direção, os professores, como regentes do processo educacional escolar, na sala de aula e
fora dela, têm um papel no mínimo influente junto aos jovens do ensino médio, podendo
contribuir para que a emancipação política se efetive e para que sejam ampliadas as
possibilidades de uma emancipação humana por meio do trabalho docente. Com essa
efetivação, a democracia e a justiça social seriam potencializadas e o caminho para
a transformação social, tão desejada para uma emancipação humana, poderia ser
pavimentado com o acesso a direitos civis, políticos e sociais. Esses três conjuntos de
direitos, fundamentais para a emancipação política, constituem a ideia liberal de cidadania
plena (MARSHALL, 1967).

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Conforme o entendimento do sociólogo Thomas Humphrey Marshall (1967), há


uma articulação entre cidadania e classe social, explicitando as tensões existentes entre a
cidadania e o capitalismo. Segundo Marshall (1967), a ampliação dos direitos constitutivos
da cidadania é resultado do desenvolvimento do capitalismo independente das lutas sociais.
Se é a concepção liberal que fundamenta a cidadania presente na Constituição Federal de
1988 e na LDB 9.394/96, o que dizer quando o espaço social da escola sequer é reconhecido
a partir da ideia liberal de cidadania de Marshall? O que ocorre quando os preconceitos são
reproduzidos pelos professores sobre os seus alunos? A chamada exclusão social, ou inclusão
precária (MARTINS, 1997, 2002), torna-se ainda mais marginal e perversa, a mobilidade
social ganha um poderoso obstáculo e a categoria revolucionária de emancipação humana,
como definida por Marx (1993), continua a brilhar entre as estrelas.
Partindo de nossa pesquisa, arriscamos afirmar que a escola e seus agentes fazem
parte do contexto histórico que nos possibilita compreender os porquês da elaboração de
estigmas sobre os alunos pobres, negros, indígenas e moradores das periferias das cidades,
abrindo passagem para uma abordagem mais crítica que perceba a educação escolar como
um processo social repleto de contradições que devem ser sociologicamente identificadas,
analisadas e compreendidas. Ao tomar a perspectiva crítica das Ciências Sociais como ponto
de partida, a nossa intenção prática é fornecer uma contribuição à reflexão sobre a escola e
a formação de professores, de modo que tenhamos mais subsídios empírico-analíticos para
a construção de uma escola que supere as diferenças de classe e combata todas as formas de
preconceito e de desigualdade oriundas do processo autoritário e hierarquizado por meio do
qual tivemos a construção social, cultural e histórica do Brasil.

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Recebido em: 12.12.2016


Revisões em: 04.04.2017
Aprovado em: 23.05.2017

Joannes Paulus Silva Forte é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia também pela UFC e doutorando em Ciências
Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professor efetivo do curso de
Ciências Sociais da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA).

Manoel Moreira de Sousa Neto é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia também pela UFC e doutorando em Sociologia
na Universidade Federal do Paraná (UFPR). É professor efetivo de Sociologia da rede pública
estadual de ensino/Secretaria da Educação do Ceará (SEDUC).

Márcio Kleber Morais Pessoa é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia também pela UFC e doutorando em Sociologia
na Universidade Estadual do Ceará (UECE). É professor efetivo de Sociologia da rede pública
estadual de ensino/Secretaria da Educação do Ceará (SEDUC).

Vinicius Limaverde Forte é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade


Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia também pela UFC e doutor em Sociologia pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professor efetivo do curso de Ciências Sociais
da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA).

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