Reproduzir Ou Transformar
Reproduzir Ou Transformar
Reproduzir Ou Transformar
Este trabalho foi realizado em uma escola modelo da rede pública de ensino médio na
periferia de Fortaleza (CE) e aborda como as diferenças de classes sociais existentes entre
professores e estudantes condicionam as representações sociais dos docentes acerca do
seu alunado, contribuindo para tornar a escola um espaço de disputa entre a reprodução
e a mobilidade social. Em observações exploratórias realizadas no Conselho de Classe
ao final do ano letivo de 2012, os pesquisadores constataram a frequente emissão de
juízos desqualificadores por professores, ao defenderem a reprovação de estudantes
sem êxito em relação ao domínio de habilidades e competências e/ou aos requisitos
disciplinares. Em muitas dessas falas, em vez de critérios pedagógicos, predominaram
julgamentos com base em marcadores sociais de classe. Assim, no intuito de investigar a
hipótese da existência de uma visão estigmatizadora dos professores em relação aos seus
alunos, como parte do processo de construção social da escola como espaço reprodutor
de desigualdades, seis professores foram entrevistados, e os investigadores constataram
o predomínio de dois estilos de pensamento, tipificados como cordial e humanista. A
construção de representações estigmatizadoras é característica do tipo cordial (no sentido
buarquiano), ao contrário do tipo humanista, que adota posturas mais críticas. Nesse
sentido, a polarização entre essas perspectivas indica o papel do professor na escola como
agente que pode contribuir para a mudança ou a manutenção da ordem.
Palavras-chave
1- Este artigo tem uma versão em inglês. A tradução é de responsabilidade de Paola Fonseca Benevides.
2- Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil / Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), Sobral, CE, Brasil.
Contato: [email protected]
3- Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil / Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC), Fortaleza, CE, Brasil.
Contato: [email protected]
4- Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil / Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC), Fortaleza, CE, Brasil.
Contato: [email protected]
5- Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), Sobral, CE, Brasil. Contato: [email protected]
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1678-4634201844173362
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Abstract
This work was carried out in a model school of the public high school in the outlying
areas of Fortaleza (CE) and discusses how the existing social classes differences between
teachers and students condition the teachers’ social representations about their pupil,
contributing to make the school a space of dispute between reproduction and social mobility.
In exploratory observations held at the Class Council at the end of the 2012 school year,
the researchers noted the frequent issuance of disqualifying judgments by teachers in
upholding the disapproval of unsuccessful students in relation to mastery of skills and/
or disciplinary requirements. In many of these statements, instead of pedagogical criteria,
judgments based on social class markers predominated. Thus, in order to investigate the
hypothesis that there is a stigmatizing view of teachers in relation to their students, as
part of the social construction process of the school as a reproductive space of inequalities,
six teachers were interviewed, and the researchers found the predominance of two styles of
thought, typified as cordial and humanistic. The construction of stigmatizing representations
is characteristic of the cordial type (in the Buarquian sense), unlike the humanistic type,
which adopts positions that are more critical. In this way, the polarization between these
perspectives indicates the role of the teacher in the school as an agent that can contribute
to changing or maintaining order.
Keywords
Introdução
[...] o saber curricular, proveniente dos programas e dos manuais escolares; o saber disciplinar, que
constitui o conteúdo das matérias ensinadas na escola; o saber da formação profissional, adquirido
por ocasião da formação inicial ou contínua; o saber experiencial, oriundo da prática da profissão,
e, enfim, o saber cultural herdado de sua trajetória de vida e de sua pertença a uma cultura
particular, que eles partilham em maior ou menor grau com os alunos. (TARDIF, 2010, p. 297).
6- Instância que reúne, ao final do ano letivo, os professores de cada turma a fim de discutir o caso de cada aluno, considerando desempenho,
comportamento, participação e até relações familiares para decidir se o aluno deve ser reprovado ou se receberá uma nova chance para passar de ano.
juntamente com todos os saberes docentes, mas especialmente (não exclusivamente) com
os saberes culturais e experienciais.
É justamente na mobilização desses saberes culturais e das experiências em espaços
de convivência entre os professores – nos intervalos entre as aulas, em suas conversas
informais, no compartilhamento de suas experiências pessoais, contando anedotas a
respeito do seu cotidiano profissional – que esse traço cordial é corroborado, encontrando
nessa partilha o reconhecimento mútuo que possibilita sua reiteração em sala de aula.
É nesse contexto que o elemento da cordialidade possibilita que juízos de valor,
preconceitos e visões estigmatizadoras a respeito dos estudantes sejam incorporados de
modo tácito e legítimo entre os docentes. Segundo Goffman (2012), o estigma se traduz em
relações sociais que marcam indivíduos de alguma forma que os torna inadequados para
se relacionar com os demais sujeitos. Em relação ao preconceito de classe, o estigma surge
diretamente ligado às origens e aos padrões culturais das pessoas da classe trabalhadora,
isto é, seus comportamentos, formas de vestir, cor da pele, lugar de moradia, profissão,
enfim, tudo que possa servir para marcá-las negativamente na relação interpessoal,
definindo uma identidade social deteriorada. A partir dessa definição, é erguida uma
barreira que exclui as pessoas estigmatizadas de relações sociais harmoniosas e propícias
ao respeito às suas diferenças socioculturais.
A partir das reflexões de Tardif (2010) sobre a produção dos saberes docentes e
por meio da pesquisa de campo, percebemos como elementos supostamente estranhos
ao corpo de saberes formais relacionados à docência compõem os saberes experienciais
desses professores, orientando suas práticas pedagógicas com base em juízos de valor
estigmatizadores e opiniões preconceituosas em relação aos discentes. Afirmamos que
parte relevante da aquisição dos saberes docentes, em especial os saberes experienciais,
é construída na escola, que seria intrinsecamente um espaço de reprodução da estrutura
de relações de classes sociais, conforme discutem Bourdieu e Passeron (1975). Dessa
maneira, os saberes docentes e o habitus docente estariam impregnados do arbitrário
cultural correspondente às representações e práticas das classes dominantes. Então, seria
a aquisição desse arbitrário cultural convertido em saberes docentes que propiciaria a
construção de concepções estigmatizadoras a respeito dos estudantes. Como os professores
estão investidos de autoridade pedagógica legítima para o exercício do seu trabalho,
essas concepções estigmatizadoras a respeito dos estudantes acabariam sendo aceitas e
naturalizadas pela comunidade escolar, fundamentando o entendimento do docente a
respeito do processo de ensino e aprendizagem, em especial no que se refere à avaliação.
Com base na análise da construção dessas representações estigmatizadoras,
identificamos junto à maior parte do corpo docente pesquisado um traço caracteristicamente
cordial no seu modus operandi, pois suas ações pedagógicas estariam mais claramente
permeadas por uma visão de mundo afeita à informalidade e à valorização excessiva dos
conhecimentos da prática, em detrimento dos saberes mais formais oriundos da formação
acadêmica, por exemplo. Por outro lado, uma parte minoritária dos participantes da pesquisa
demonstrou que tenta orientar sua prática docente com base em princípios políticos e
pedagógicos vinculados a valores humanistas, apresentando uma fundamentação de
suas visões de mundo e de suas atuações profissionais mais vinculada a um conjunto
em 1998, juntamente com mais 28 escolas no mesmo padrão, durante o terceiro mandato
de Tasso Jereissati como governador do estado do Ceará7 – caracterizado pela estabilização
política do chamado Governo das Mudanças –, com o intuito de servir de modelo em
todo o estado, pois ela nasce com o ideário do novo e do moderno padrão educacional.
A concepção de política educacional que fundamentou o projeto e a implementação da
escola também estava alinhada às mudanças que ocorriam com esse segmento social em
nível nacional.
A aprovação da LDB8 e a criação do FUNDEF9, em 1996, provocaram alterações
significativas nas políticas educacionais, no que diz respeito às responsabilidades da
União, dos estados e dos municípios.10 Além disso, havia uma conjuntura internacional
favorável que elegeu a educação à condição necessária do desenvolvimento das nações,
sob o imperativo econômico-social do Projeto Educação para Todos (MOTA, 2005). Com a
nova legislação educacional, houve a municipalização do ensino fundamental, viabilizada
financeiramente por recursos federais do FUNDEF. Essa medida fez com que a gerência
do ensino médio ficasse sob a responsabilidade do estado. Nesse sentido, o governo
estadual iniciou uma série de ações que tinham por objetivo qualificar o ensino médio
proporcionado pela rede pública. Entre essas iniciativas, constava a criação de novas
escolas que atendessem às demandas da nova legislação educacional.
Porém, apenas esse ideário historicamente construído não explica o caráter diferenciado
atribuído à escola estudada. Por isso, outro elemento que coloca essa unidade de ensino entre
as melhores do estado é a sua posição no ranking das escolas públicas no Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM).11 O índice leva em conta a participação e o desempenho dos
estudantes do ensino médio da rede estadual no ENEM12 entre os anos de 2009 e 2011. No
informativo citado, a escola estudada aparece entre as 50 mais bem-sucedidas. Considera-se,
ainda, o fato de o estado possuir quase 700 unidades de ensino médio, das quais 5% a 6%
entraram na lista das 50 melhores no ENEM.
Portanto, trata-se de uma escola concebida em um contexto de transformações
nas políticas públicas educacionais no Brasil, que a caracterizou como modelo a ser
estendido a outras instituições públicas de ensino no Ceará. Contudo, as reformas no
campo educacional que impulsionaram a criação do conjunto de 29 escolas modelo não
propiciaram a ampliação desse padrão para uma quantidade maior de estabelecimentos
escolares, tornando-as uma espécie de oásis. Com isso, essa iniciativa governamental
acarretou uma disparidade em relação à qualidade de ensino, ao invés de contribuir para
a melhoria da qualidade do sistema educacional como um todo. Dessa forma, a imagem
7- De 1998 a 2002 foram construídas 29 escolas nesse padrão. Disponível em: <http://portal.seduc.ce.gov.br/images/arquivos/escolas_2008.
pdf>. Acesso em: 23 jun. 2009.
8- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
9- Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério.
10- Tanto a LDB quanto o FUNDEF são resultantes da Constituição Federal de 1988. A CF/88 manteve a obrigatoriedade do ensino para crianças,
assim como a Constituição de 1967, mas com um diferencial: o Estado passou a ser responsável por sua oferta e universalização.
11- Informe do IPECE, nº 54, de fevereiro de 2013. Instituto de Pesquisas Econômicas do Estado do Ceará (IPECE). Disponível em: <http://www.
ipece.ce.gov.br/publicacoes/ipece-informe/Ipece_Informe_54_26_fevereiro_2013.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2013.
12- O Exame Nacional do Ensino Médio é realizado anualmente. Seus principais objetivos são: servir como parâmetro para selecionar alunos
para o ensino superior e estabelecer ranking entre as escolas, como forma de prestação de contas.
Pra mim, eu costumo dizer, foi a escola que me formou. Certo? A gente estuda Pedagogia,
Estrutura do Ensino Fundamental e Médio, Didática, mas, na minha humilde opinião, a gente só
aprende verdadeiramente [a ensinar] quando a gente entra na sala de aula e começa a vivenciar
na prática isso. (Professor Heitor).14
13- Haguette, Pessoa e Vidal (2016) desvendam esse cenário de desigualdade entre escolas no sistema de ensino público estadual do Ceará.
14 - Neste texto, os nomes dos professores entrevistados foram substituídos por nomes fictícios, com o objetivo de salvaguardar a integridade
psíquica e moral dos interlocutores da pesquisa.
Na verdade, está muito distante a formação que está sendo [...] ofertada na universidade da nossa
realidade [na escola]. (Professor Vladimir).
15- Todos os professores entrevistados relataram a deficiência da formação universitária para a profissão docente, exaltando, de alguma forma,
a prática docente cotidiana, que lhes faz construir os saberes da experiência.
16- Utilizamos o conceito de representações sociais para enfatizar que os saberes docentes podem ser convencionalizados, localizando-os
em uma determinada categoria, colocando-os como um modelo determinado pelo grupo social em questão. Além disso, tais representações são
prescritivas, ou seja, são impostas, transmitidas, e são o produto de uma sequência de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo,
resultando de sucessivas gerações (MOSCOVICI, 2003). Nesse sentido, as representações dependem de fatores que estão em meio à diversidade
existente entre as sociedades humanas. Eis a importância de considerar a memória e a história, pois as construções sociais são também históricas
e compostas por determinadas especificidades que constituem uma memória coletiva (LENOIR, 1996).
17- Segundo Tardif (2010), os saberes experienciais, no que diz respeito à prática docente, são desenvolvidos principalmente nos primeiros
cinco anos de profissão.
Nós temos o aluno ideal, aquele aluno que realmente tem uma formação muito boa, estruturada,
com valores e princípios, e que vem mesmo para a escola aberto a... Com o objetivo mesmo de
aprender e participar do processo de aprendizagem. Esse é o aluno ideal, perfeito, se todos fossem
assim, todo professor ficaria satisfeito. (Professor Vladimir).
Pode-se perceber que o professor concebe o perfil do aluno ideal, pautando sua
prática nele, não considerando as relações de poder fundadas na desigualdade social que
também são integrantes da escola, uma vez que a escola também é a sociedade. Mas como
esse ideal de aluno é produzido?
Conforme Bourdieu e Passeron (1975), há uma relação fundamental entre o sistema
de ensino e a estrutura de relações entre as classes sociais, na medida em que toda ação
pedagógica é uma forma dissimulada de violência simbólica. Ainda de acordo com os
autores, violência simbólica é o processo de inculcar dissimuladamente um arbitrário
cultural. A noção de arbitrário cultural diz respeito ao fato de o conjunto de práticas e
valores que integram as expressões culturais características de uma determinada classe
ser arbitrário para as outras classes sociais, na medida em que não diz respeito ao seu
contexto social de origem, sendo, portanto, uma expressão desenraizada, estranha e não
familiar ao seu modo de vida.
Neste sentido, a criação de um modelo ideal de aluno origina-se de critérios de
classificação criados pela comunidade escolar que remetem a convenções tácitas a
respeito das características pertinentes ao bom aluno, em contraposição ao mau aluno.
É explicitamente perceptível, nas falas dos professores entrevistados, a existência desse
modelo ideal de aluno, embora não sejam tão explícitos os fundamentos que originam tal
modelo. Nesse sentido, investidos de suas autoridades pedagógicas, os docentes enumeram
razões relacionadas a critérios pertinentes à boa conduta disciplinar e ao desenvolvimento
adequado do processo de ensino-aprendizagem para qualificar um indivíduo como bom
ou mau aluno, reiterando indiretamente o que está em jogo: a incorporação do arbitrário
cultural que a escola visa inculcar implicitamente. Seriam tidos como bons alunos
justamente os estudantes que mais se aproximam das práticas, dos comportamentos e dos
valores correspondentes a esse arbitrário, enquanto aqueles que destoam desse arbitrário
seriam enquadrados como maus alunos. Assim, os maus alunos se converteriam em alvo
privilegiado de concepções estigmatizadoras por parte dos professores, devido ao seu
caráter desviante em relação aos critérios de classificação adotados dissimuladamente a
respeito do bom aluno ou aluno ideal.18
A construção desse modelo de aluno ideal é empreendida e reiterada cotidianamente
nos espaços de convivência entre professores na escola e na sala de aula. Em espaços
de convivência como a sala dos professores, circulam narrativas sobre as vivências
profissionais e pessoais de docentes e agentes administrativos que servem de esteio para
a contínua elaboração e aquisição de saberes experienciais. Esse contexto possibilita uma
sistematização informal de valores pedagógicos e extrapedagógicos que fundamentam a
categorização dos estudantes em bons ou maus, construindo um discurso legitimador sobre
a validade dessas categorias como critério avaliativo, tal como expresso nas reuniões de
Conselho de Classe, por exemplo. Ao se converterem esses critérios de classificação em um
procedimento legítimo, embora não explicitamente assumido, coloca-se o dilema da escola
como reprodutora da ordem social vigente, na medida em que os alunos desajustados
18 - A própria existência de bons e maus alunos, segundo o critério dos professores, relativiza a noção de violência simbólica no ambiente
escolar, visto que uma quantidade significativa de alunos, independentemente de interesse, parece se opor ao arbitrário cultural propagado pela
escola. Nesses casos, a violência pode assumir outras formas.
É o que eu sempre digo: educação é uma questão de “querer”. Se eu digo assim: “Pegue este
celular” [e estende a mão na direção do pesquisador como se estivesse lhe oferecendo um aparelho
de telefone celular], e você responde: “Por que eu vou querer esse celular se eu não sei mexer?”.
Mas, se eu lhe der o celular, em 30 minutos você já vai estar sabendo mexer nele, ou seja, “basta
querer”. (Professor Ronaldo).
19- Aqui, é importante ressaltar que tanto a acepção de cordial quanto a de humanista, ambas atribuídas aos professores pesquisados, são
concebidas como estilos de pensamento (MANNHEIM, 1986); ou seja, originam-se em um determinado tempo e espaço, produzindo diferentes
modos de padrões e categorias de pensamento.
20- Ainda segundo o professor Ronaldo, o tipo ideal de aluno representa “de 20% a 25%” do total, a minoria dos que estão presentes nessa
escola pública.
emissoras de rádio e TV, a imprensa escrita, os websites e a escola – são implacáveis com
as pessoas que se comportam de maneira inadequada.
Nesse sentido, questionamos até que ponto as relações sociais referentes à escola
contribuem para a reprodução ou a desconstrução de preconceitos e estigmas baseados na
desigualdade social, levando vários jovens da escola média, no Ceará, a um quadro real
de vulnerabilidade social e de inclusão social perversa, precária e marginal (MARTINS,
1997, 2002). A pesquisa revelou que a resposta está numa ironia, no paradoxo entre a
reprodução e a ruptura com o preconceito de classe e a estigmatização de estudantes
pobres, visto que, assim como compreendemos a ocorrência da reprodução, exemplos de
desconstrução de condutas preconceituosas e estigmatizadoras também existem. Como
mencionado anteriormente, na discussão com Tardif (2010), os saberes experienciais
do professor brotam de experiências pessoais e coletivas. Logo, suas vivências podem
contribuir tanto para a naturalização de preconceitos, quanto para a crítica a eles. É
dessa forma que compreendemos que alguns professores classificados como humanistas
contribuem para a desconstrução de preconceitos e estigmas no ambiente escolar. Esses
aspectos podem ser demonstrados com a fala da professora Paula:
O professor sabendo lidar com a turma, a turma vai respeitá-lo, [...] você tem que conversar
para que tenha uma troca e um entendimento, digamos. Porque os dois estão somando, estão
aprendendo e ensinando. Então, tem que haver esse diálogo, não é? Quando a gente abre para
esse diálogo, que os alunos passam a se sentir também importantes, não apenas liderados,
mandados, mas quando eles [pensam]: “Ah, minha opinião vale a pena”; “Ah, legal, eu dou minha
opinião e o professor escuta, muda a opinião dele até, conversando comigo”. Então, ele se sente
na engrenagem também e as coisas começam a fluir melhor na sala, quando a gente também dá
não só deveres, mas também dá direitos a eles, dá voz. (Professora Paula).
21- Citação original: “If men define a situation as real, it will be real in their consequences”.
[Os alunos] contribuem [para o meu trabalho] sendo disciplinados, contribuem também, se nós
não incentivarmos a eles a, sei lá, muito trabalho, se organizarem em grupo, orientá-los... Eu acho
que isso parte muito, também, às vezes, do professor, sabe?, essa questão de eles se interessarem
por determinada coisa e quererem alguma coisa com aquela matéria, com aquele ano letivo e
tal. Eu acho que tem muito a ver com essa questão do professor essa pergunta, eu acho que ela
é um pouco mais direcionada à gente também, ainda mais na escola pública. (Professor Flávio).
Percebemos que, nos casos de Paula e Flávio, seus saberes experienciais – sua
vivência – contribuíram para que tivessem uma visão crítica da realidade, do contexto
cultural em que vivem, entendendo os preconceitos e estigmas ali presentes como
formas de dominação que devem ser desconstruídas; e não reproduzidas. Contudo,
compreendemos que a supervalorização dos saberes experienciais em detrimento dos
saberes formais pode fortalecer preconceitos e estigmas sociais, haja vista que esses
saberes são pautados em discussões científicas que podem levar ao estranhamento e à
desnaturalização da desigualdade social e de seu efeito nefasto à cidadania. Ademais,
aqueles saberes são pautados em conhecimentos práticos da realidade que nos cerca,
sendo fonte para interpretações, compreensões, orientações (TARDIF, 2010) e resolução
de situações-problema para a prática profissional docente, além de poderem transferir
a avaliação dos profissionais acerca de seus alunos da esfera pública para a privada.
A pesquisa que deu origem a este artigo confirmou a hipótese lançada inicialmente,
qual seja: a de que existe, ao menos na instituição escolar estudada, uma visão
estigmatizadora dos professores em relação aos seus alunos que integra o processo de
construção social da escola como espaço reprodutor de preconceitos e de desigualdades.
A confirmação da hipótese de pesquisa leva a uma compreensão desmistificadora
da escola como solução para os mais diversos problemas sociais, ideia bastante presente
no amplo senso comum e no senso comum acadêmico, embora os estudos de autores
como Bourdieu e Passeron (1975) apontem para a reprodução da dominação de classe
na escola, o que perpetua a desigualdade política, social e econômica: um grandioso
problema social.
Em contraposição ao modelo de escola ideal, é patente o fato de a produção e
reprodução de estigmas, a partir de preconceitos de classe, ocorrer numa escola top, que
integra uma proposta de educação de referência para atender às exigências da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394, de 10 de dezembro de 1996, segundo
a qual a educação escolar, no Brasil, deve ocorrer com ideais de liberdade e de solidariedade
humana, tendo como objetivo fundamental formar para o “mundo do trabalho”, para a
“prática social” e para o “exercício da cidadania”.
Mesmo com diretrizes legais, científicas e pedagógicas, os professores participantes
da pesquisa supervalorizaram os saberes da experiência em detrimento dos demais saberes
docentes (TARDIF, 2010). A partir das falas dos interlocutores, percebemos que a sua
formação universitária, nos cursos de licenciatura, não interferiu substancialmente para
desconstruir esses saberes e orientá-los à crítica de sua prática docente. Nossos interlocutores
demostraram que são guiados principalmente por saberes experienciais dissociados de
saberes pedagógicos com os quais deveriam se preparar para a docência em consonância
com a prática de atividades docentes na escola, a exemplo dos estágios e das demais
atividades a serem desenvolvidas no espaço escolar e no seu entorno social. Não obstante,
também há professores provenientes do mesmo universo social de seus alunos – inclusive,
estudaram na mesma escola de onde atualmente são professores – e que relativizaram os
mesmos preconceitos de classe que influenciam as ações da maior parte dos participantes da
pesquisa, tecendo críticas à estigmatização elaborada sobre os estudantes.
Sem desconsiderar a existência de professores que relativizam os saberes culturais e
experienciais, tais saberes parecem funcionar sobremaneira na manutenção de definições
preconceituosas dos docentes sobre os alunos, sobre a escola e sobre si mesmos. Foi justamente
a constatação dos saberes culturais e experienciais presentes na conduta dos professores que
nos permitiu identificar a existência de preconceitos de classe a partir dos quais eles produzem
e reproduzem estigmas sobre as características dos alunos socialmente marcadas.
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Joannes Paulus Silva Forte é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia também pela UFC e doutorando em Ciências
Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professor efetivo do curso de
Ciências Sociais da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA).
Manoel Moreira de Sousa Neto é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia também pela UFC e doutorando em Sociologia
na Universidade Federal do Paraná (UFPR). É professor efetivo de Sociologia da rede pública
estadual de ensino/Secretaria da Educação do Ceará (SEDUC).
Márcio Kleber Morais Pessoa é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia também pela UFC e doutorando em Sociologia
na Universidade Estadual do Ceará (UECE). É professor efetivo de Sociologia da rede pública
estadual de ensino/Secretaria da Educação do Ceará (SEDUC).