Os Mistérios de Família - 1. A "Senhora Brasileira" Que Era Um Senhor Português
Os Mistérios de Família - 1. A "Senhora Brasileira" Que Era Um Senhor Português
Os Mistérios de Família - 1. A "Senhora Brasileira" Que Era Um Senhor Português
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Os Mistérios de Família – 1. A senhora brasileira que era um senhor português
Resumo
Tema: o folhetim "Os Mistérios de Família", publicado no periódico "A Nova
Minerva" (RJ), fundado e editado por João Vicente Martins.
Publicação da história: em março (números 13, 14, 15 e 16), abril (número 19) e
julho de 1846 (número 32).
Período não coberto pela pesquisa: do número 21 ao 31 de "A Nova Minerva"
(exemplares não disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional).
Atribuição de autoria (no periódico): Uma Senhora Brasileira.
Primeira menção à história: José Ramos Tinhorão, em "A Música Popular no
Romance Brasileiro", Volume 3, página 21, nota de rodapé número 13 (Editora 34,
1992).
Associação da história a João Vicente Martins: Orlando da Costa Ferreira, em
"Imagem e letra: introdução à bibliologia brasileira: a imagem gravada", página 214
(EdUSP, 1994).
Número de edições da história: 6, duas como "Suzana" (no periódico "O Grátis" e
como folheto, ambas em dezembro de 1844), e quatro edições como "Os Mistérios de
Família" (no periódico "A Nova Minerva"; como livro impresso [provavelmente]; no
periódico "Horas Vagas"; e no livro "Horas Vagas", todas em 1846).
Primeira versão de "Os Mistérios de Família": "Suzana", história publicada no
jornal "O Grátis" (RJ), a partir de dezembro de 1844 (números 7 e 9); exemplares
seguintes não disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
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Apresentação
Segundo a maioria dos estudiosos brasileiros, "O Filho do Pescador", de Antônio
Gonçalves Teixeira e Sousa, é o primeiro romance nacional. Publicado em folhetins no
periódico "O Brasil" (RJ), de 6 de julho a 22 agosto de 1843, precedeu em um ano o
lançamento do romance "A Moreninha", de Joaquim Manuel de Macedo.
Nesse mesmo ano (1844) foram lançadas as novelas "Maria, ou Vinte Anos Depois",
de Joaquim Norberto de Souza Silva, e "Amância", de Domingos José Gonçalves de
Magalhães.
"Jerônimo Barbalho Bezerra", do escritor Vicente Pereira de Carvalho Guimarães,
nascido em Portugal, é considerado por alguns estudiosos o primeiro romance histórico
brasileiro. A obra saiu em 1845, o mesmo ano de publicação de "A Guerra dos
Emboabas", "Os Jesuítas na América" e "A Cruz de Pedra", três outros romances
históricos do mesmo autor.
Também em 1845, Joaquim Manuel de Macedo publicaria o romance "O Moço
Loiro", e Ana Eurídice Eufrosina de Barandas se tornaria a primeira escritora brasileira
de ficção ao lançar o conto romântico "Eugênia ou a Filósofa Apaixonada" em seu livro
"O Ramalhete ou Flores Escolhidas no Jardim da Imaginação".
Três capítulos de "Memórias de Agapito", o romance "perdido" de Gonçalves Dias
(na verdade, queimado pelo próprio autor), foram publicados no periódico "Arquivo
Maranhense" a partir de fevereiro de 1846.
Nesse mesmo ano, em março, a revista "A Nova Minerva" começou a publicar "Os
Mysterios de Familia, romance composto por Uma Senhora Brasileira". Tratava-se,
portanto, da segunda obra de ficção lançada por uma escritora brasileira — quem sabe,
até mesmo o primeiro romance de nossa literatura feminina, já que "Úrsula", de Maria
Firmina dos Reis, seria publicado 14 anos depois, em 1860.
Quem era a misteriosa "Senhora Brasileira?"
Deve-se o conhecimento da existência de "Os Mysterios de Familia" ao jornalista,
escritor e crítico José Ramos Tinhorão, em seu livro "A Música Popular no Romance
Brasileiro", Volume 3, página 21, nota de rodapé número 13 (Editora 34, 1992):
*
De fato, sem considerar como romance o livro Aventuras de Diófanes, de Teresa
Margarida da Silva e Orta, no século XVIII, um primeiro levantamento indica a
presença das seguintes romancistas no Brasil, apenas no século XIX: Uma senhora
brasileira (pseudônimo de escritora não identificada), autora do romance Os mistérios
de família, publicado na revista A Nova Minerva, do Rio de Janeiro, em março de 1846;
Maria Firmina dos Reis (São Luís, MA, 10/10/1825 - ?), Úrsula (São Luís: Tipografia
Progresso, 1858) [...]
Número 13
Número 15
"A Nova Minerva" (Rio), Tomo I, número 15, março de 1846, páginas 8, 9, 10, 11 e
12.
Página 8 (a gravura): http://memoria.bn.br/docreader/718610/270
Página 9: http://memoria.bn.br/docreader/718610/271
Página 10: http://memoria.bn.br/docreader/718610/272
Página 11: http://memoria.bn.br/docreader/718610/273
Página 12: http://memoria.bn.br/docreader/718610/274
O número em PDF: http://memoria.bn.br/pdf/718610/per718610_1846_00015.pdf
No número 16, o autor terminou o terceiro capítulo, continuou a história com o
quarto e o quinto capítulos (bem curtos), e passou para o sexto capítulo. Na gravura
inicial, uma mulher junto a um leito exibia um bebê a uma mulher acamada.
Número 16
"A Nova Minerva" (Rio), Tomo I, número 16, março de 1846, páginas 8, 9, 10, 11 e
12.
Página 8 (a gravura): http://memoria.bn.br/docreader/718610/288
Página 9: http://memoria.bn.br/docreader/718610/289
Página 10: http://memoria.bn.br/docreader/718610/290
Página 11: http://memoria.bn.br/docreader/718610/291
Página 12: http://memoria.bn.br/docreader/718610/292
O número em PDF: http://memoria.bn.br/pdf/718610/per718610_1846_00016.pdf
3. No número 17, já em abril de 1846, interrompeu-se a publicação da história. Na
página 9, o editor escreveu o seguinte recado aos leitores, no final da segunda coluna:
Número 17
No número seguinte continuaremos com os Mistérios de Família que por um
obstáculo não damos neste número.
"A Nova Minerva" (Rio), Tomo I, número 17, abril de 1846, página 9, segunda
coluna.
Página 9: http://memoria.bn.br/DocReader/718610/305
O número em PDF: http://memoria.bn.br/pdf/718610/per718610_1846_00017.pdf
4. No número 18, novamente um aviso no final da segunda coluna, à página 8:
Número 18
O não ter-se acabado na litografia a estampa correspondente à parte dos Mistérios de
Família que segue ao que tem-se já publicado, tem impedido a sua publicação, porém
desde o número seguinte continuará infalivelmente.
"A Nova Minerva" (Rio), Tomo I, número 18, abril de 1846, página 8, segunda
coluna.
Página 8: http://memoria.bn.br/DocReader/718610/318
O número em PDF: http://memoria.bn.br/pdf/718610/per718610_1846_00018.pdf
5. No número 19 cumpriu-se a promessa do editor. A história retornou às páginas de
"A Nova Minerva", com o final do capítulo 6 e com os capítulos 7, 8 e 9 (este
provavelmente em parte). Dessa vez, a gravura não precedia a história.
Número 19
"A Nova Minerva" (Rio), Tomo I, número 19, abril de 1846, páginas 9, 10, 11 e 12.
Página 9: http://memoria.bn.br/docreader/718610/332
Página 10: http://memoria.bn.br/docreader/718610/333
Página 11: http://memoria.bn.br/docreader/718610/334
Página 12: http://memoria.bn.br/docreader/718610/335
O número em PDF: http://memoria.bn.br/pdf/718610/per718610_1846_00019.pdf
6. O número 20, também em abril de 1846, provou que a promessa do editor estava
mais para desejo do que para capacidade. Além de não apresentar a continuidade da
história, faltou desta vez qualquer aviso aos leitores. E uma "Novella historica sobre
factos da recente historia de Portugal", intitulada "Jacintho e Manoel, ou A Familia de
Oliveira, Victima dos Partidos", ocupou o lugar de "Os Mysterios de Familia", da
página 9 à 12.
Número 20
"A Nova Minerva" (Rio), Tomo I, número 20, abril de 1846, página 9.
Página 9 (início da novela): http://memoria.bn.br/docreader/718610/348
O número em PDF: http://memoria.bn.br/pdf/718610/per718610_1846_00020.pdf
7. O acervo digital da Biblioteca Nacional não possui as edições de números 21 a 31
da revista "A Nova Minerva".
8. A edição seguinte, de número 32 (julho de 1846), trouxe a segunda e última parte
de "Os Mysterios de Familia". Não há gravura antecedendo a história. Mas nota-se uma
novidade editorial: a revista passava de 16 páginas por número a 154 páginas.
Número 32
"A Nova Minerva" (Rio), Tomo II, número 32, julho de 1846, páginas 9, 10, 11 e 12.
Página 9: http://memoria.bn.br/docreader/718610/365
Página 10: http://memoria.bn.br/docreader/718610/366
Página 11: http://memoria.bn.br/docreader/718610/367
Página 12: http://memoria.bn.br/docreader/718610/368
O número em PDF: http://memoria.bn.br/pdf/718610/per718610_1846_00032.pdf
***
Quantos números de "A Nova Minerva", das edições de 21 a 31, continham capítulos
da história? Esse conhecimento seria fundamental para avaliar se "Os Mysterios de
Familia" é ou não um romance.
Há uma descontinuidade evidente entre o parágrafo final do número 19 e o início da
segunda parte no número 32, indicando que a história teve um bom desenvolvimento
entre essas edições. Mas quanto?
A investigação sobre Os Mysterios de Familia e sua autora
O conhecimento dessa história misteriosa de uma autora misteriosa impôs uma
dúvida razoável de que "Os Mysterios de Familia" pudesse, na verdade, ser o primeiro
romance escrito por uma brasileira. Também levou à ideia de transcrição atualizada
dessa obra que introduzia uma nova e importante autora em nossa literatura, talvez
mesmo a primeira romancista nacional.
Finalizada a transcrição do texto, uma pesquisa realizada na Web, nos dias seguintes,
revelou novidades surpreendentes:
1. A pesquisa por "senhora brasileira" no acervo digital da Biblioteca Nacional (cerca
de 200 resultados), levou a uma história intitulada "Suzana ─ Novella composta por
uma Senhora Brasileira", publicada no periódico "O Grátis" em dezembro de 1844. A
leitura do texto provou ser esta a mesma história de "Os Mysterios de Familia", mas em
sua primeira versão, mais reduzida.
Repare que o autor denominou a história como "novela", e não como "romance".
A Biblioteca Nacional possui apenas os números 4, 6, 7, 8 e 9 da publicação. Os
números 7 e 9 contêm as duas primeiras partes da história.
http://www.edusp.com.br/detlivro.asp?id=32973
Ponto para o Google Books. Quem pesquisaria em um livro de bibliologia para
encontrar o verdadeiro autor de uma misteriosa história dos primórdios da ficção
brasileira?
6. Além desses resultados, encontrei outra menção a "Os Mysterios de Familia" na
obra "Frestas e arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil"
(Unesp, segunda edição, 1999), de autoria de Karin Volobuef. Na nota de rodapé 10 da
página 165, lê-se:
*
No âmbito do romance de folhetim, Tinhorão (1944, p.39-40, 53 e 59) enumera
também a autora de Os mistérios de família (1846) que, tendo assinado como "Uma
senhora brasileira", é de identidade desconhecida, [...]
"Gazeta de Noticias", 22/12/1884, número 357, página 4, terceira coluna (em "Livros
Baratissimos").
http://memoria.bn.br/docreader/103730_02/7996
*****
Resumindo. Cabe a José Ramos Tinhorão a descoberta da história "Os Mysterios de
Familia", em 1992, e a Orlando da Costa Ferreira a primazia da informação sobre o seu
verdadeiro autor, em 1994. Ao escritor do presente artigo cabe somente a descoberta da
primeira versão da história, intitulada "Suzana", em 2017, e a primazia da atualização
do texto das duas versões, em 2019.
A pesquisa revelou que a história de José Vicente Martins saiu em três periódicos
diferentes no espaço de menos de dois anos: "O Grátis" (como "Suzana"), em dezembro
de 1844; "A Nova Minerva" (como "Os Mysterios de Familia'), de março a julho de
1846; e "Horas Vagas" (como "Mysterios de Familia").
Saiu também em folhetos, em 1844 (como "Suzana"); provavelmente em livro, em
1846 (como "Mysterios de Familia"); e novamente em livro, também em 1846, na
compilação do conteúdo do periódico "Horas Vagas".
Esta história, publicada seis vezes nos primórdios da ficção nacional, em curto
período de tempo, jamais entrou para o centro das discussões literárias, embora fosse
razoável a suspeita de que pudesse ser o primeiro romance escrito por uma mulher
brasileira. Seu verdadeiro autor, João Vicente Martins jamais foi citado em cronologias
da ficção nacional em relação a essa história.
"Suzana" (1844) é a quinta obra de ficção da nossa literatura, a partir de "O Filho do
Pescador", o primeiro romance nacional (1843). Mesmo se considerarmos apenas o
folhetim "Os Mysterios de Familia" lançado em março de 1846 na revista "A Nova
Minerva", João Vicente Martins teria escrito a décima primeira história da ficção
brasileira, usando-se o mesmo referencial de partida.
Não há mais dúvidas quanto à primazia de Maria Firmina dos Reis: "Úrsula" (1860)
é de fato o primeiro romance escrito por uma brasileira, já que a Senhora Brasileira de
"Os Mysterios de Familia" se tratava de um pseudônimo criado por um homem,
provavelmente para atrair o público leitor feminino aos seus periódicos. A Senhora
Brasileira era um Senhor Português (radicado no Brasil).
Falta, assim, o reconhecimento da importância histórica de João Vicente Martins nos
primórdios de nossa literatura de ficção, algo que lhe está sendo devido há 175 anos.
João Vicente Martins, o autor de "Os Mistérios de Família"
O cirurgião português João Vicente Martins (1810-1854) tornou-se conhecido como
um pioneiro da homeopatia e do espiritismo no Brasil.
Além da atividade nessas áreas, fundou e editou vários periódicos destinados a
divulgar a Ciência e, em especial, a Homeopatia. Em dois desses periódicos, "A Nova
Minerva" e "Horas Vagas", publicou uma história de ficção de sua autoria, "Os
Mistérios de Família", a qual era atribuída, nessas publicações, a "uma senhora
brasileira".
Esta gravura introduzia a seção sobre Homeopatia no periódico "A Nova Minerva":
http://www.gplpe.com.br/site/home/historico
Uma medalha comemorativa do centenário de fundação do Gabinete Português de
Leitura em Pernambuco foi objeto de leilão em 2015. Nela, reproduzia-se o retrato mais
conhecido do autor.
https://www.levyleiloeiro.com.br/peca.asp?ID=158962
O retrato é este, publicado no livro "A Prática Elementar da Homeopatia pelo Doutor
Mure", edição de 1865.
http://www.harpyaleiloes.com.br/peca.asp?ID=347437
A divulgação da homeopatia levou João Vicente Martins a fundar, além dos
periódicos "A Nova Minerva" e "Horas Vagas", o jornal "O Médico do Povo", este na
Bahia, em parceria com o médico brasileiro Alexandre José de Moraes.
"Diario do Rio de Janeiro", 25/10/1850, número 8530, página 3, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/094170_01/35211
O jornal também foi publicado em Pernambuco, a partir de outubro de 1850. Os 21
primeiros números do periódico estão disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional.
"O Médico do Povo", 2/10/1850, número 1, página 1.
http://memoria.bn.br/DocReader/822337/1
"Correio Mercantil" (Rio), número 189, página 2, penúltima coluna (em "Tributo de
respeito ao humanitario João Vicente Martins", do Dr. Mello Moraes).
http://memoria.bn.br/DocReader/217280/9176
O pioneiro da homeopatia e do espiritismo no Brasil faleceu em 7 de julho, de 1854,
sendo sepultado no dia seguinte.
Uma confirmação:
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_03/10878
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_03/10879
Eis o anúncio do livro, na última página do suplemento.
http://www.realgabinete.com.br/
A instituição recebeu o exemplar das mãos do próprio João Vicente Martins, em
1847.
"Jornal do Commercio", 24/7/1847, número 203, página 3, primeira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_03/11208
João Vicente publicou vários anúncios do seu romance nos periódicos do Rio de
Janeiro.