O Modelo Mental de Terrence Deacon

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS

CAMPOS UNIVERSITÁRIO DE PALMAS

De: Suely Mara Ribeiro Figueiredo


Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Informação

Intencionalidade e agência em Terrence Deacon

Resumo
Apresenta a teoria da mente do antropólogo e cientista cognitivo de Berkeley Terrence
Deacon, com a qual o autor afirma ter exaurido o modelo computacionalista do mental e
reenquadrado o livre arbítrio numa perspectiva genuinamente naturalista e pré-organizada para a
investigação científica. A teoria da mente de Deacon parte da desconstrução da trajetória
evolutiva da teleodinâmica emergente do self e, ao fazer isso, identifica a individuação e a
agência como os processos mais elementares constitutivos do self. Ambos se fundam na
emergência de um teleodirecionamento sobre processos autocatalíticos, ou seja, na inauguração,
na natureza, da primeira unidade espontaneamente direcionada para um fim, que Deacon chama
de teleogen. Se quisermos compreender a evolução dos organismos, temos que examinar essas
dinâmicas de baixa ordem em que teleogens se articulam para gerar selves que, por sua vez,
articulam-se para gerar selves de mais alta ordem e, assim, sucessiva e hierarquicamente, até
chegar ao fenômeno da mente intencional. Para Deacon, ‘o então-chamado mistério da
consciência reflexiva revela-se um falso dilema criado por nossa falha em entender a eficiência
causal das restrições emergentes’.

Palavras chave: Terrence Deacon, mente, consciência reflexiva, agência

Palmas, 09 de março de 2016


A emergência da intencionalidade
Embora o autor tenha iniciado sua modelação da experiência subjetiva (o self com
consciência reflexiva) e da intencionalidade (ou agência) no Symbolic Species (1997), é no
Incomplete Nature, how mind emerged from matter (2012) que Deacon chega a uma teoria
da mente mais contundente, elaborada e focada, com a qual afirma ter exaurido o modelo
computacionalista do mental e ter reenquadrado o livre arbítrio numa perspectiva
genuinamente naturalista e pré-organizada para a investigação científica.

Deacon, como evolucionista e emergentista, está convencido de que o que


tomamos por experiência subjetiva e que acontece dentro dos limites de nossa pele, mais
especificamente dentro de um cérebro de carne, em algum momento emergiu e, por um
longo tempo, evoluiu.

No paralelo que autor nos oferece entre o paradoxo do mentiroso (‘essa sentença é
falsa’) e um organismo funcional há um vislumbre deste seu entendimento: para ele, o
problema na interpretação do paradoxo do mentiroso é que, quando prestamos atenção à
parte, ficamos propensos a achar que o que diz a sentença pode ser falso. Aí nosso
processo interpretativo tenta fixar o que é falso (buscar o referente) e vemos que é o todo
(já que a expressão ‘a sentença’ se refere a toda a afirmação) e que, então, estamos diante
de uma verdade. Sendo a interpretação um contínuo processo de verificação, ela volta-se
novamente à parte que lhe informa ‘é falsa’. Como a confirmação nunca pode ser
finalizada, a interpretação entra numa espécie de looping, e é tal circularidade que
chamamos paradoxo. Isso é possível com sentenças por causa da natureza virtual da
interpretação simbólica.

Com os organismos acontece algo muito similar em estrutura, mas como o


substrato orgânico é material e energético, Deacon encontra, na estrutura orgânica, ótimos
elementos para ilustrar suas teorias. Num organismo, se nos ativermos ao funcionamento
das partes isoladamente, elas parecerão não fazer sentido. As funções das partes estão
voltadas para o todo e não para si mesmas. E, se focarmos no todo, perceberemos que o
todo organiza, gerencia e mantém as partes, embora sua função seja algo que não diz
respeito a elas. É um tipo de círculo vicioso, só que aqui, como estamos no mundo
material, temos como resultante uma ‘sinergia composicional’:

Cada característica funcional embute um traço do organismo individualizado como um


todo, refletindo uma influência coerente com o todo e contribuindo para a futura coerência.
Essa é a essência da individuação reflexiva. Uma sinergia composicional funcionando para
determinar seus constituintes de um jeito que embute e reforça sua relação sinergética.
(2012, 469)

Num sistema orgânico é possível, por análise, chegar a fenômenos teleodinâmicos


básicos. Com eles, Deacon constrói sua teoria da mente em total afinação a seu modelo de
linguagem. Individuação e agência são os diferenciais da teleodinâmica emergente do self.
Para encontrar a inauguração de cada uma dessas propriedades, Deacon traça o caminho
inverso à evolução. Ao desconstruir a trajetória de um elemento teleodirecionado bem
basilar como, por exemplo, uma célula, chega ao modelo do autogen. Autogens são a
primeira manifestação natural, espontânea e genuinamente teleológica. Vejamos como
Deacon os apresenta.

Autogens
Através dos milênios, favorecidos por um ambiente quente e nutritivo,
aminoácidos ligam-se e desligam-se ao acaso, formando estruturas aleatórias, sempre.
Quando estruturas espacialmente fechadas em si mesmas tomam forma, como em uma
cápsula, algo ocorre: a proteína da membrana que divide interior e exterior – a interface
entre o fechado e o aberto – não os isola completamente e exprime um comportamento
seletor a respeito de que substâncias entram e quais saem. Essa seleção reflete uma
influência nova, uma influência que favorece toda a estrutura e não só uma parte, uma
influência aparentemente virtual, do tipo que a catálise espontaneamente exerce sobre
reações químicas diversas.

Lembrando: um catalisador é uma molécula que, por sua geometria alostérica


(muito propícia a ligações) e características energéticas, aumenta a probabilidade de
realização (ou seja, causa uma influência) de outras reações químicas sem alterar a si
mesma. Aparentemente, a catálise influencia por ostenção: demonstra sua alta
potencialidade reativa que é imitada por moléculas adjacentes. A autocatálise, que nos
interessa ainda mais, é um caso especial de catálise em cadeia, onde, dado um grupo de
elementos, cada um influencia a reação de outro de forma que, ao final, todos os
elementos do grupo são continua e ciclicamente afetados.

Essa capacidade de causar influência sem reagir efetivamente com algum


elemento é a primeira característica que Deacon destaca em sua pesquisa atrás do primeiro
self. Estruturas isoladas por membranas que apresentam um comportamento influenciado
pela própria estrutura como um todo é o que Deacon denomina autogen. Autogens podem
ser considerados a primeira unidade a apresentar comportamento teleodirecionado.
Encapsulados e mergulhados em substratos, eles se autopromovem, embora ainda não se
autorregulem e autopreservem.

Essa autopromoção ajusta-se, com o tempo, em função do que as proteínas e


outros elementos do ambiente interior conseguem processar, ou seja, a que tipo de
informação elas ‘reagem’, reconfigurando a sintaxe (que aqui significa alterar posições
e/ou átomos nas moléculas) e assim produzindo informações que serão lançadas no
exterior. Ajusta-se, também e ao mesmo tempo, ao tipo de resposta do ambiente exterior,
ou seja, como as proteínas e outros elementos do ambiente exterior processam as
informações recebidas pelas substâncias/informações que saem. Esses ajustes alteram a
dinâmica das substâncias que entram e saem. E eis aí uma genuína ação de interpretação.
Uma semiótica primitiva instanciada, a emergência da individuação reflexiva, o primeiro
self.

A individuação reflexiva é uma propriedade teleodinâmica que põe mecanismos


autocatalíticos a serviço de uma organização tomada como unidade. Inaugura-se na
natureza, com o autogen, uma lógica orgânica até então não evidenciada. A individuação é
o locus do self. A emergência de um sistema individualizado - em forma de unidade - é
indispensável aos mecanismos teleodinâmicos que agem espontaneamente direcionados
para certos fins. Os fins são sempre voltados para a organização de uma ordem superior
aos mecanismos envolvidos. Perseguir e realizar suas finalidades são ações que fundam e
são fundadas pelo sistema individualizado. Por isso o caráter dinâmico da teleologia
envolvida.

Em outras palavras, organismos, diferentes de toda a parafernália da inteligência


computacional, não fingem ter tendências teleológicas, eles têm. O self, a individuação, é
a origem e o alvo de todas as funções do organismo. Organismos também cumprem
funções, pois são teleodinâmicos, mas nunca funções que se confundam com as de suas
partes. As funções de um organismo estão em outro nível fenomenológico e, com a
evolução, esses níveis acumulam-se e superpõem-se, desde que mantida a dimensão
processual de todas as camadas. Mais uma vez, não esqueçamos que se trata de uma
situação dinâmica.

Com a diversificação e seleção de formas mais complexas de organismos, é de se


esperar que a também complexa recursividade do self se torne cada vez mais diferenciada.
O trajeto da propriedade teleodinâmica pode ser mais bem reconhecido não pela
identificação de sistemas fechados por membranas, mas por sistemas com cada vez mais
sofisticadas dinâmicas de reciprocidade. O que muda o nível fenomenológico de um self
não é obrigatoriamente o encapsulamento, mas o reconhecimento, pelo sistema, da
unidade que irá promover.

Um bom exemplo de inauguração desse fenômeno é o líquen. Líquens são seres


vivos resultantes da simbiose entre um fungo e uma alga. Por motivos teleológicos, a
estrutura do fungo e a da alga param de produzir insumos para si mesmos e passam a
sustentar a relação simbiótica como um self. A individuação é a resultante de como as
partes se relacionam reciprocamente. A individuação, então, não se limita ao
enclausuramento autogênico, ela se estabelece pelo que Deacon denomina teleogen, uma
unidade de intencionalidade, a estrutura teleodinâmica que a evolução arrastou, ou melhor,
elevou a níveis cada vez mais altos de processamentos teleodinâmicos embaralhados. E,
isso, não por que a evolução tem uma causa final para onde se movimentam os
fenômenos, mas por que, embora possa haver restrições, não há limite para como os
processos teleodinâmicos podem interagir uns com os outros.

De alguma forma, níveis mais altos de individuação emergem, alterando a relação


de reciprocidade dos níveis inferiores que, espontaneamente, reconfiguram suas funções e
finalidades segundo a demanda dos níveis mais altos. Esses vários níveis de
autoconstrução de reciprocidade e sinergia emergentes sofrem ajustes, são modulados pela
própria teleodinâmica que os sustenta o que, para Deacon, permite a instanciação de níveis
cada vez mais diferenciados e de reciprocidades mais minuciosas e funcionais.

A modulação é uma característica poderosa da evolução e, com os processos


teleodinâmicos, não aconteceu diferente. A modulação de teleogens é o que permite que o
nível homeodinâmico dos elementos celulares (responsável por administrar as tendências
termodinâmicas de equilíbrio, dissipação e entropia) se mantenha e se comporte de forma
a permitir a emergência de processos morfodinâmicos (como órgão e tecidos, que
amplificam comportamentos e equilibram dinâmica e estabilidade) que também se
mantêm e propiciam a emergência de processos teleodinâmicos (capazes de criar
comportamentos e de realizar a autorreconstituição e a reprodução).

A modulação evolutiva da individuação nos levou, nesta trajetória, ao


aparecimento de animais com cérebro. O cérebro é, sem dúvida, um órgão
autoconfigurado em animais multicelulares que, além de dar muitas possibilidades
motoras e perceptivas ao organismo e de cumprir uma tarefa reguladora e mantenedora do
corpo praticamente de forma automática, ‘participa da mediação entre teleodinâmicas
intrínsecas do organismo e dinâmicas de seu mundo exterior’.
Cérebros têm um papel crítico na permanência e reprodução do organismo. Nunca
agem arbitrariamente, pois têm propósitos e padrões de processamento evolutivamente
embutidos. Animais com cérebro têm a capacidade de alterar as relações de seu corpo com
o ambiente. Mesmo que essas alterações se limitem a uma teleodinâmica quase vegetativa
e que muito pouco explora os arredores, como vermes e outros invertebrados com cérebro,
podemos perceber variações, e variações implicam liberdade, e liberdade evoca seleção
natural.

No caso da evolução teleodinâmica, a liberdade é um tipo de liberdade-para e não


uma vagueza pela liberdade total. Liberdade para determinar e executar intencionalmente
certas alterações não-espontâneas, que não ocorreriam se não fosse a ação direcionada.
Essa propriedade é chamada agência ou intencionalidade e, para Deacon, é o diferencial,
após a individuação, do percurso evolutivo do fenômeno entencional rumo à consciência.
O conceito de agência merece ser aprofundado e as considerações do autor apresentadas.
E é isso que faremos a seguir.

Agência
Deacon inclui uma definição de agência em sua sistematização do self. Um agente
é

o locus do trabalho capaz de mudar coisas de acordo com finalidades geradas internamente e
contrárias às tendências extrínsecas. [...] Tem capacidade de auto-iniciar (self-initiate) o trabalho.[...]
A teleodinâmica que distingue a agência de um organismo do mero trabalho físico é um produto de
sua forma de reciprocidade enclausurada.[...] Com a evolução dessa nova forma de teleodinâmica,
surgiram novas capacidades de realizar trabalho que fazem existir novas opções relacionadas às mais
diversas influências extrínsecas. (2012, 479)

Esse trabalho da intencionalidade é realizado pela capacidade de produzir


restrições que impedem certos processos espontâneos de acontecerem e desvia os fluxos
informacionais e de energia para atividades que nunca se realizariam sem a ‘agência’ do
self em questão. Essa altamente-ordenada capacidade de criar e propagar restrições de
formas complexas e indiretas - da auto-organização que constrói nossos corpos às teorias
científicas que guiam as ações técnicas e tecnológicas – é progressivamente expandida na
direção de provocar restrições sobre restrições, redes de restrições sobre redes de
restrições, tudo isso rumo a uma cada vez maior precisão entre ação e intenção.

Vale a pena lembrar que o trabalho a que Deacon se refere aqui é uma noção
expandida do conceito físico de trabalho. O poder causal associado a esta capacidade
estendida de realizar alterações no mundo não tem a ver diretamente com o que acontecerá
com as moléculas ou com a energia, não é físico nem organizacional, é semiótico. Não
significa que as mudanças introduzidas no ambiente não necessitam do agir humano. É
claro que é a ação que executa o que a mente manda. O poder causal da semiótica está no
gerenciamento mental da ação.

Embora tenhamos usado os termos ‘emergência’ e ‘progressivamente expandida’,


e realmente a agência seja emergente e uma expansão progressiva aconteça, aqui não há
nenhum paradoxo. Lembramos ao leitor que a leitura epistemológica da Deacon é reversa.
Nenhum fenômeno teleodinâmico emerge por surgimento positivo de algo. Agência é
produto de restrições. Não podendo tudo, a individuação, os fenômenos informacionais, as
funções orgânicas, as relações ambientais e toda a demanda evolutiva tornam-se
limitações que se impõem à teleodinâmica. A agência é a alta ordem daí emergente.

O debate das últimas décadas sobre a agência, também conhecida, principalmente


em textos filosóficos clássicos, como livre arbítrio (free will), coincide com nossos
esforços de entender a consciência. Esse debate levantou hipóteses fundamentais sobre (a)
como a atividade neuronal de bilhões de neurônios mais glicose e oxigênio produzem essa
experiência subjetiva, esse algo de uma qualidade tão ímpar, esse ‘quali’ enigmático; (b)
como nossos pensamentos e palavras podem ter correspondência com a realidade; e (c)
como explicar nossa compulsão de ordenar e controlar nossos pensamentos e ações. Para
Deacon,

‘esse problema fundamental (a agência) é particularmente relevante para o problema da origem da


linguagem.’[...] Tenho abordado a origem da linguagem, essencialmente, como uma versão
comparativa e evolucionária do problema fundamental [da agência], no sentido em que requer de nós
uma explicação tanto física quanto mental da travessia das formas mais concretas de representação
para as mais abstratas. (1997, 439)

O acima referido poder semiótico da representação é a fonte – realiza trabalho e


delimita as restrições – da propriedade intencional. A agência, tomada como consciência
não-reflexiva, no sentido de estar ciente como os animais, ou como consciência reflexiva,
exclusiva dos humanos, é uma solução semiótica. Embora os animais não utilizem
linguagem, eles interagem com o ambiente e se comunicam em função de suas exigências
orgânicas. De uma forma aprisionada aos hábitos, eles podem identificar elementos do
bando, fontes de alimentos ou situações de perigo. Há uma semiótica icônica-indicial
nisso.

Já a intencionalidade humana é resultante de uma semiótica de alta hierarquia,


cognata da interpretação simbólica. A experiência subjetiva, mesmo sendo de uma
qualidade diferente da linguagem, porque envolve sentimentos, emoções e vontades, só
pode ser entendida como tal por que faz parte do campo simbólico da consciência
reflexiva. Só o afastamento epistemológico propiciado pela simbolização pode nos fazer
conceber a experiência subjetiva, identificar nosso self, outros selves e as relações sociais
enquanto tais.

Apenas no campo simbólico da consciência reflexiva podemos identificar como e


de onde nosso sentido de agência e autocontrole é originado. Em outras palavras, o
aspecto simbólico de nosso self nada mais é do que a fonte de nossas experiências
interiores de livre arbítrio e intencionalidade.

A característica teleológica da intencionalidade humana é um processo autônomo


que emerge intrinsecamente. Há um quê de eco estrutural entre as propriedades
teleodirecionadas da molécula, da célula, dos organismos e das formas mentais, mas há
também uma graduação, uma hierarquização entre as formas como esses selves são
sensíveis ao seu arredor.

Como organismos vivos são sistemas teleodinâmicos, eles não reagem apenas
mecanicamente ou termodinamicamente às perturbações. Eles usam suas habilidades
perceptivas para exercer uma espécie de ‘sensibilização antecipatória’ e iniciam mudanças
em suas dinâmicas internas para compensar, modificar ou mesmo provocar mudanças
externas. É claro que esses sistemas são ‘dependentes de’ e ‘emergem de’ processos
morfodinâmicos e homeodinâmicos ininterruptos.

Formas de relações homeo, morfo e teleodinâmicas neurologicamente embutidas


são a base da experiência mental. Se quisermos compreender a evolução dos organismos,
temos que examinar essas dinâmicas de baixa ordem em que teleogens se articulam para
gerar selves que, por sua vez, articulam-se para gerar selves de mais alta ordem e, assim,
sucessivamente, até chegar ao fenômeno da consciência. ‘O então-chamado mistério da
consciência reflexiva (consciousness) revela-se um falso dilema criado por nossa falha em
entender a eficiência causal das restrições emergentes’ (2012, 489).

O modelo mental deaconiano, além distinguir evolutiva e hierarquicamente


sensibilidade ciente (sentience) e consciência reflexiva (conciousness), reivindica uma
gênese semiótico-informacional capaz de promover a total naturalização do papel da ética
e das emoções. Abordaremos agora esses temas.

A hierarquia da consciência
Os dois últimos capítulos de Incomplete Nature são dedicados à análise das
formas hierárquicas de consciência. Deacon distingue sentience e consciousness que,
numa tentativa de imprimir bastante rigor ao uso que o autor faz dessas expressões,
traduziremos, respectivamente, por sensibilidade ciente e consciência reflexiva.

Coerente com seu método de abordar os fenômenos por ele mesmo denominados
entencionais – que só existem em relação ao um fim, a princípio, ausente -, Deacon
considera os tipos de sensibilidades cientes atributos emergentes de diferentes sistemas
teleodinâmicos. Uma célula poder se autorregular e duplicar. Células se locupletam em
tecidos, e tecidos cumprem funções específicas sem utilizar diretamente as funções da
célula, mas também sem poder abdicar do que elas fazem. Um órgão realiza sua tarefa
vital da mesma forma, sem utilizar diretamente as funções do tecido de que é feito mas,
com certeza, sem poder abrir mão delas. Assim Deacon vai exemplificando vários níveis
de selves, de sensibilidades consideradas cientes por que realizam autonomamente a tarefa
de se equipar, organizar-se e manter-se para realizar sua função existencial.

Animais com cérebros apresentam um histórico evolutivo dos processos


teleodinâmicos em que fica claro o aprimoramento da sensibilidade ciente para perceber e
responder a cada vez mais elementos ou situações ambientais. Por histórico evolutivo
estamos considerando o fato dos tais processos teleodinâmicos serem construídos por
várias formas de sensibilidade ativa, umas sobre as outras, grupos sobre grupos, gerando,
a cada nível hierárquico (que talvez um filósofo prefira chamar de fenomenológico), um
self, uma individuação autônoma hierarquicamente superior, capaz de lidar com
informações até então indetectáveis, muito mais abstratas mas não menos impactantes
para os interesses vitais.

Cada nível de sensibilidade ciente emerge do fluxo de relações dos níveis


inferiores e caracteriza uma individuação e uma autonomia distintas. Das relações
neurológicas, sinapses, fluxos de glio etc. emergem níveis de consciência distintos que,
articulados e/ou embaralhados, permitem a emergência da mais alta ordem hierárquica de
teleodinâmica realizada pela cognição, a consciência reflexiva.

A consciência sensível do neurônio é de uma natureza muito distinta da


consciência da experiência subjetiva. E, para Deacon, a consciência reflexiva que
possuímos é um produto emergente (portanto, caracterizado pela descontinuidade) da
complexa inter-relação e dependência de inúmeras sensibilidades conscientes. Porém,
podemos inferir, apesar da descontinuidade, de todos os níveis fenomenológicos possíveis
e imagináveis que afetam a emergência, o tal eco estrutural dos selves, a presença da
individuação e da autonomia, de semiose e interpretação, de organização teleodinâmica.
Esse vislumbre reforça a hipótese deconiana disso tudo ser influenciado pelos atributos-
ainda-não-realizados das propriedades teleodinâmicas dos tantos e tantos selves
envolvidos.

Por que organismos são sistemas teleodinâmicos, eles não apenas reagem mecanicamente e
termodinamicamente às perturbações, mas geralmente são organizados para iniciar uma mudança em
sua dinâmica interna que ativamente compense modificações extrínsecas ou déficits internos. (2012,
487)

Para reenquandrar o conceito de consciência em termos de dinâmicas emergentes,


a análise de Deacon defende a hipótese de que todo fenômeno teleodinâmico
necessariamente ‘depende de’ e ‘emerge de’ processos morfodinâmicos e
homeodinâmicos. E com a consciência não seria diferente. Isso o faz crer que o mistério
do ‘saber que estamos aqui’ pode ficar completamente esclarecido por métodos científicos
que se proponham a descobrir como se dá a emergência a partir dos níveis teleodinâmicos
mais baixos.

Já entendemos que não podemos reduzir as propriedades intencionais da mente às


características computacionais dos neurônios nem ficar apenas na explicação da qualidade
fenomenológica da consciência, pois isso mantém incógnito exatamente o que queremos
desvendar. As características teleodirecionadas da consciência – e da vida – não podem
ser mapeadas por especificações físicas ou químicas. O que a intencionalidade demanda
são restrições de alta ordem oriundas da necessidade de gerar e preservar outras tantas
restrições que garantam a manutenção de todo o organismo.

Em outras palavras, as propriedades funcionais da consciência só emergem


quando processos homeodinâmicos, morfodinâmicos e teleodinâmicos-de-ordem-inferior
se encontram numa complementariedade precisa e num modo completamente reflexivo
uns em relação aos outros. É possível, para Deacon, encontrar a marca desses níveis
emergentes nos processos cerebrais e no que consideramos ‘qualidade fenomenológica da
experiência subjetiva’, pois podemos identificar ‘relações entre formas neurologicamente
incorporadas de processos homeo, morfo e teleodinâmicos e os vários aspectos da
experiência mental.’(2012, 489)

A proposta aqui não é abandonar de todo o modelo computacional de mente. Para


a neurociência, são de muita valia os avanços da pesquisa que revelaram detalhes do
funcionamento físico-químico do cérebro. Mas a expectativa de vir a explicar a
consciência por esta via não pode mais ser alimentada. A ideia é enxergar além desses
elementos computacionais e, assim, explorar as formas especiais de restrições
teleodinâmicas que eles embutem e perpetuam.
Observemos que, enquanto as características funcionais, ou seja, teleológicas, dos
artefatos eletrônico-inteligentes são impostos extrinsecamente por uma intencionalidade
humana (do design/engenheiro/programador), as características teleodinâmicas dos seres
vivos são todas intrinsecamente emergentes e autônomas. Enquanto os sistemas
computacionais são feitos para evitar o erro, a dissipação, não deixar que mudanças
aconteçam, pois fracassam se houver mudanças ou perdas imprevistas, os organismos
vivos precisam de tudo isso para manter seus níveis de atividade não-espontânea
constantes.

Deacon reivindica o experimento da sala chinesa de John Searle como exemplo.


Para ele, Searle tem muito sucesso em demonstrar que qualquer um de nós sabe que a
interpretação realizada pela mente-dentro-da-sala é ilusória: além de não ter a opção de
desrespeitar a sintaxe ou a semântica em nome de algum interesse maior, a dimensão
pragmática lhe escapa, o que ceifa a magnitude da interpretação simbólica. Sem a
dimensão simbólica, o que é praticado no experimento sequer pode ser chamado de
linguagem humana. Linguagem é um fenômeno de interface mente-mundo-outra mente.
Sem uma dessas partes, impedido de vivenciar o mundo, sem a relação sensível com o
ambiente e a observação atenciosa, a interpretação simbólica não tem natureza suficiente
para se estabelecer.

A linguagem simbólica, enquanto processo entencional dirigido pela


intencionalidade, subverte a sintaxe e a semântica por necessidades comunicacionais e
expressivas e por perceber uma maior eficiência na plasticidade, na maleabilidade
controlada dos signos. Guiados pelo foco da intenção, signos podem ser desconstruídos
em informações (para Deacon as verdadeiras portadoras de conteúdos) que são
rearranjadas e priorizadas de acordo com a maturidade e momento emocional do agente.
Nesse sentido, dentro da sala chinesa não há um ser linguístico nem, consequentemente,
um ser pensante. Não há espaço, nesse experimento, para uma intencionalidade
genuinamente humana.

Teoria da mente de Deacon

Como vimos, a teoria da mente de Deacon quer demonstrar como os mais altos
níveis de consciência reflexiva emergem dos mais baixos níveis de sensibilidade proativa,
cumulativa e dinamicamente, numa perspectiva naturalista e teleodirecionada. É outra
leitura da superveniência, uma abordagem alternativa de causação descendente, uma teoria
instigante.
‘Enquanto computação apenas transfere restrições extrinsecamente impostas de
substrato a substrato, a cognição (ou seja, a semiose) gera restrições intrínsecas que têm a
capacidade de propagação e auto-organização’(2012, 498). Computacionalismos exibem
apenas poder performativo enquanto mentes humanas exibem poder formativo. Mentes
humanas têm à disposição uma fonte de propriedades formais emersas da simbolização,
tais como autoconhecimento e valores éticos, fonte esta que nos foi atribuída pela
evolução com exclusividade.

Em termos mais organizacionais: para que um computador funcione, é preciso que


seu sistema operacional distinga cada informação (restrição) e cada sequência (restrição)
já previamente estabelecida pelo programador para que ocorra o processamento esperado
(encadeamento de restrições). Na mente que realiza a interpretação simbólica, a
informação nunca é totalmente pré-fixada, sua natureza é teleodinamicamente incompleta,
ela é sempre ‘informação sobre’, ‘informação para’, ‘informação de’ etc., e o conteúdo
solicitado pela preposição só o contexto simbólico do momento e o interesse do agente
delimitarão. A estrutura simbólica da informação desejada é antecipada, mas o conteúdo
que a preencherá só se realiza no momento em que tal informação é utilizada pela mente.

O ruído, que é um problema a ser evitado na computação, é inevitável e até


funcional para a cognição. Neurônios são células que, dado o rumo da evolução, foram
adaptadas para funções mais específicas e, na verdade, as cumprem como uma imensidão
de selves habilitadas, em diferentes níveis, às tarefas metabólicas e de comunicação
intercelular. Neurônios são um pouco desregulados, geram ruído e têm, em média, uma
apenas modesta capacidade de transmitir e traduzir sinais. Estão sempre no auge do caos,
pois sua atividade principal consiste em resistir à desestabilização provocada pelo
bombardeio de íons das sinapses e moléculas de glicose, oxigênio e outros nutrientes, e,
caso não consigam, se autorreprogramarem com vistas ao que de mais atual houver a
favor do self para o qual está a serviço.

Neurônios, como qualquer self, não sobrevivem ao desequilíbrio, o que força seus
sistemas internos a constantemente reconfigurar os sinais que emitem e impregnar o fluxo
de nutrientes com novas informações. Ruídos e outras interferências informacionais estão
na gênese da teleodinâmica mental. Cérebros tendem muito mais a amplificar ruídos do
que amortecê-los. Auto-organização e processos evolucionários são muito mais parecidos
com a função mental do que computadores. Ruídos estão ligados a processos dinâmicos
emergentes tanto quanto os esforços para superá-los ou incorporá-los.

As funções mentais se deixam melhor metaforizar por padrões de fluxos


hidrodinâmicos do que por causações sequenciais, combinam mais com faixas de
flutuações do que com uma ação determinista. Sujeitos ininterruptamente aos fluxos
químicos, elétricos e informacionais, sob a influência direta dos in-pulsos, das moléculas
adjacentes e sinergeticamente submetido às restrições do momento, neurônios exercem
sua ‘sensibilidade antecipatória’ em prol do self, ou selves, hierarquicamente superior(es).
Uma sensibilidade antecipatória é um modo de estar-no-mundo que percebe e ajusta
processos internos para potencializar o self, é uma sensibilidade reativa presente nos
organismos vivos.

Se conseguirmos imaginar a complexidade da nuvem semiótica que emerge dessas


sensibilidades de tipos variados e suas inter-relações dinâmicas, imaginar signos brotando
do entrelaçamento de seus arranjos de sensibilidades com maiores e maiores
potencialidades antecipatórias, sensibilidades sendo amplificadas, diversificadas,
teleodinâmicas... se conseguirmos imaginar tudo isso, estamos rompendo barreiras, no
bom sentido. Sem negar nenhuma evidência científica e deixando que as próprias
estruturas teleológica criadas pela natureza locupletem-se rumo a suas finalidades, Deacon
reconhece na ubiquidade da experiência mental uma característica organizacional
inevitavelmente herdada da trajetória teleodinâmica dos selves que a antecedem.

Tendência ao equilíbrio, dissipação, auto-organização e comportamento


intencional são exemplos de características dos processos teleodinâmicos que Deacon
reconhece estarem presente na experiência subjetiva. Em outras palavras: subjetividade é a
realização permitida após restrições sobre restrições impostas pela teleodinâmica (que
inclui uma parte ainda não realizada mas já visada) dos fenômenos entencionais.

A experiência subjetiva, a mais complexa forma de teleodinâmica que


reconhecemos, há de refletir propriedades como estas ou a teoria dos níveis hierárquicos
de emergência estaria comprometida. Para Deacon, a mais alta correspondência
teleodinâmica identificada com o fenômeno da subjetividade é a emoção. Emoção é o
sentido mais geral, mais ubíquo e mais holístico da experiência subjetiva. Emoção não se
limita a estados de raiva, amor, tristeza, euforia e coisas assim; emoção é que nos faz
saber o que faz e o que não faz parte de nós mesmos, ‘o que distingue nosso self do não-
self’.

Uma vez compreendida a dinâmica dos conteúdos mentais em termos


hierárquicos, está estabelecido o espaço epistemológico onde Deacon situa a
teleodinâmica da mais alta ordem: a emoção. Não há exagero em considerar a emoção
uma teleodinâmica superior a todas as outras. É a presença da emoção que nos garante a
consciência reflexiva. A condição emocional é a parte a ser completada do fenômeno da
consciência reflexiva.
Animais não têm emoções. A emoção nasce da capacidade de ter consciência de
que somos conscientes. Saber-se consciente só é possível dentro da linguagem. Somente a
simbolização pode ter como referente a percepção de que somos seres conscientes num
mundo sem consciência. Animais têm apenas consciência de segunda ordem. Não sabem
que a têm, não sabem que ‘estão aqui’. É isso que coloca a consciência reflexiva num
patamar acima. A capacidade de reconhecer-se um ser vivo e pensante que pertence a esse
mundo.

Porém, como vimos, a condição imposta a nossa natureza por esse fenômeno
entencional é refletir estruturalmente (como fazem todas as teleodinâmicas) o vir-a-ser
dessa condição. Esse reflexo estrutural é justamente o que chamamos de emoções.
Emoções não são pré-definidas nem pré-estabelecidas, embora possam ser reconhecidas
por qualquer humano.

Deacon identifica a experiência da emoção com a tensão inercial e o trabalho


realizado pelas dinâmicas de ordem inferior. A intensidade da emoção guarda relações
estruturais com os níveis de tensão metabólica, neuronal e ambiental. Sofrimento e dor são
bons exemplos. A dor é uma reação geralmente local, mas também de todo o organismo; é
um aviso de degradação iminente de algum componente do self, e os sistemas físico-
químicos do corpo são acionados rapidamente para intervir.

Já o sofrimento é simbólico, advém da consciência de algo que ameaça o


equilíbrio teleodinâmico. Embora guardem similaridades virtuais, sofrimento e dor têm
naturezas distintas. Anestésicos podem interromper o fluxo de informações entre a parte
do corpo e o self, por que a dor é de origem morfo-homeodinâmica. Mas o sofrimento não
pode ser interrompido sem que se interrompa a própria consciência. Isso por que seu
vínculo com o self é teleodinâmico, composto de estruturas de fluxos informacionais que
não podem ser individualmente manipuladas.

Mais profundamente, emoção é a parte incompleta do fenômeno entencional que


somos. É a eterna tensão com o que ainda irá se realizar; a resultante da nossa resistência
orgânica aos fluxos degenerativos, dissipadores e desequilibrantes, com nossa ação para
alterar mecanismos internos visando alterar mecanismos exteriores, ação essa
implementada pelas possibilidades de representação e sob a agência, não total mas
suficientemente eficaz, dos interesses de nosso self.

Emoção é um estado teleodinâmico que faz de nós coagentes das alterações do


mundo ao invés de vegetais à mercê de metabolismos e fisiologismos. Tendo emergido
como consciência reflexiva sobre a complexidade de sensibilidades cientes articuladas
e/ou embaralhadas, dinamicamente dependente delas e de diversos outros substratos
materiais, energéticos e informacionais, a consciência reflexiva exige muitas pré-
condições, estados não-espontâneos perpetuados, camadas de selves emergentes
articulando-se a favor de um self de nível superior e muito mais. Por isso ela é rara,
delicada, surpreendente, mas não contraria a expectativa do pesquisador atento aos níveis
hierárquicos e ontológicos que Deacon destaca nos organismos, na linguagem, na
consciência e na sociedade.

Curiosamente, a etimologia do vocábulo emotion, em inglês, (ou emoção, em


português, pois ambas derivam do Latim) situa-se num espaço semântico compartilhado
pelas palavras latinas ‘emovere’, que significa ‘tirar ou afastar do movimento’, ‘ex
movere’, que literalmente significa ‘mover para fora’, e ainda ‘emotus’, ‘ato de deslocar’.

Talvez tenha sido essa marcada analogia com o movimento que manteve a
abordagem do fenômeno mental e da experiência subjetiva numa perspectiva energética.
Só nos anos 60/70 do século passado, o psicólogo Gregory Bateson percebeu que essa
analogia energética da subjetividade era inapropriada, tendo em vista que os fenômenos
em questão – o funcionamento mental e a experiência subjetiva – são, na verdade, como
ele vem a propor, informacionais. Cognição e pensamento podem agora ser explicados em
termos de informação.

Como sabemos, nas últimas décadas houve um forte investimento em modelos


informacionais da mente, mas os resultados, de forma geral, capitulam ao
computacionalismo ou ao epifenomenalismo. Se aprendemos a pensar hierarquicamente,
não estranharemos que, para além dos fenômenos materiais que só realizam transferências
por contato e para além dos padrões energéticos que transferem fluxos ou aprisionam em
campos, podemos inferir um modelo em que nada além de influências estruturais, ou
melhor, de restrições informacionais, são transferidas.

Embora energia, informação e trabalho sejam assimétrica e hierarquicamente


interdependentes, podemos descontruir e analisar processos energéticos, informacionais e
de realização de trabalho que corroboram a teoria deconiana de reconhecimento, na
estrutura da consciência reflexiva, da influência virtual dos processos teleodinâmicos de
nível inferior.

Numa perspectiva informacional mais avançada, tratando informação como uma


entidade entencional, Deacon diferencia informação neuronal de informação mental. A
informação neuronal é aquela que se deixa pôr em forma de algoritmos, é a informação
embutida em sistemas morfo e homeodinâmicos; a informação mental é a produzida pela
emergência de selves de ordem superior a partir das dinâmicas e intensidades dos fluxos
informacionais dos níveis inferiores.

Embora os níveis inferiores tenham um papel ativo na criação e alteração de


estados atratores, na administração de diferentes concentrações locais de nutrientes, o que
impacta na propagação ou desintegração de fluxos informacionais teleodinâmicos e nas
mudanças constantes de microestados para microestados, ao final, como numa orquestra, a
ação das partes garante a harmonia do todo.

Os conteúdos dos pensamentos são forçosamente submetidos a toda essa dinâmica


estrutural das partes. Embora ideias possam ser consideradas atratores dinâmicos de longo
alcance, são incrementadas ou empobrecidas pela oscilação local de nutrientes, pela maior
ou menor agilidade dos neurotransmissores e pela capacidade de resistência à
desestruturação provocada pela enxurrada de sinapses de todas as intensidades e de todas
as regiões do cérebro.

Conteúdos mentais demandam tempo para se auto-organizarem, pois têm de ser


emersos da memória ou induzidos informacionalmente e ainda necessitam de um impulso
metabólico duradouro, um período de perturbação constante o suficiente para tirar os
sistemas envolvidos da inércia e forçá-los a produzir respostas, ou seja, entrarem em nova
configuração e gerarem novos conteúdos informacionais. Pensamentos iniciam-se de
forma vaga e, de acordo com as dinâmicas envolvidas, rumam a uma articulação magistral
de detalhes.

A construção de um pensamento envolve esforço, tempo e atenção. Necessita,


concretamente, de suporte estrutural, da disponibilização de substratos e da representação
mental. Modulado pelos estados atratores e forças dissolutivas da cognição, o processo de
produção de conteúdos mentais tem sua geração, diferenciação e degradação altamente
influenciada pelas propriedades intrínsecas da atividade neuronal, pelo fluxo de nutrientes
e por outras variações deste nível.

Mas, sendo o pensamento uma função linguística, ele também é co-regulado por
fatores extrínsecos, tais como a alteração no direcionamento da atenção, a diferenciação
de associações mnemônicas, a possibilidade de ativar ou inibir comportamentos e de
modificar a modalidade de processamento solicitada.

O mais importante, para encerrarmos essa apresentação do modelo mental de


Deacon, é a constatação de que o que chamamos de subjetividade pode ser mais bem
delimitada negativamente. Ela é a forma que vai teleodinamicamente se distinguindo do
fundo a partir do comportamento neuronal que se deixa contaminar pela interpretação e
pela experimentação.

A subjetividade não é de forma alguma de outro mundo ou não-física. [...] Ela apenas não está
localizada no que há aqui, mas emerge com precisão do que ainda não existe. A consciência está
negativamente incorporada nas restrições que emergem dos processos teleodinâmicos. [...]
Intrinsecamente essas restrições emergentes não são nem materiais nem dinâmicas – são o algo que
falta – [...] A propriedade intencional que atribuímos à experiência consciente é gerada pela
emergência de restrições que emergem de restrições, de ausências que ‘brotam de’ e ‘criam novas’
ausências. Alguma coisa que aparece do quase-nada e que é incorporado a cada instante.(2012, 535)

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