Educaão e Relações Étnico Raciais Livro
Educaão e Relações Étnico Raciais Livro
Educaão e Relações Étnico Raciais Livro
Conselho Editorial
Dr. Djon Moraes Júnior
Drª. Flaviane de Magalhães Barros
Dr. Fuad Kyrillos Neto
Drª. Helena Lopes da Silva
Dr. José Eustáquio de Brito
Dr. José Márcio Pinto de Barros
Drª. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova
Expediente
Design
Laboratório de Design Gráfico/Escola de Design - UEMG
Coordenação
Mariana Misk
Orientação do projeto
Iara Mol, Maiana Misk, Simone Souza
Aluno Responsável
Fernanda Torga
Revisão
Raquel Rezende
EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
DESAFIOS, LIMITES E POSSIBILIDADES
Organizadoras
Santuza Amorim da Silva e Vanda Lúcia Praxedes
9 Prefácio
Paulo Vinícius Baptista da Silva
15 Apresentação
Santuza Amorim da Silva
Vanda Lúcia Praxedes
10
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
11
2005; a riqueza de património cultural e de conhecimentos tradicionais das
milhares de comunidades quilombolas é incomensurável. O processo de esconder
do Brasil o Brasil, de esconder de nossa população a magnitude de nossos
quilombos é uma alegoria do que está descrito neste livro como “racismo
ambíguo brasileiro3”. Apontamos que a ambiguidade se dá desde as relações
interpessoais até níveis macro e incide persuasivamente no plano simbólico,
nas percepções sobre os fenômenos sociais. No entanto, ocorreu um processo
de reposicionar o fenômeno e, paralelo às formas de opressão que se mantêm,
ocorreu, com as comunidades quilombolas brasileiras, o reconhecimento, a
ampliação das formas de organização em movimentos sociais, a indagação
por seus direitos de cidadania, entre os quais o Direito à Educação. Os temas
da educação escolar quilombola e da formação de docentes quilombolas são
derivados desse processo e a parte final deste livro dedica-se à análise de duas
experiências e de busca de alternativas para o usufruto de cidadania e para a
eclosão de saberes emancipatórios a partir de tais espaços sociais.
Observemos que a escolha de temas é bastante precisa: são temas
de urgência na prática social e na pesquisa. Por tais opções, pelas abordagens
e pelo tratamento, interpreto que a obra promove aquilo que está descrito na
obra de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva como enegrecer:
12
Neste momento de tensão e conflito, de resistência e luta como
grita o nome de uma das autoras da obra, continuamos resolutos nessa
caminhada em busca do enegrecer de nossas pesquisa e penas.
Axé às organizadoras, autoras/es, e as/aos que participaram no
processo de sua construção!
Boa leitura!
13
APRESENTAÇãO
Esta coletânea é resultado de pesquisas realizadas no âmbito
da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Belo Horizonte,
ressaltando que, a maioria desses estudos foi realizada no interior do
Programa de Pós-Graduação/Mestrado em Educação. O foco das discussões
se deteve na problemática concernente aos campos da educação e das
relações raciais. Tais pesquisas são oriundas das demandas postas para o
campo educacional após a Lei nº 10.639, sancionada em 2003, que tornou
obrigatório o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nas
escolas de Educação Básica brasileiras.
Os textos que compõem esta coletânea abordam a temática racial
em diferentes segmentos da educação no Brasil. O livro apresenta oito
artigos, sendo que os três primeiros concentram a discussão em torno da
educação das relações raciais no contexto da educação infantil. Em seguida,
outros dois abordam o acesso de estudantes negros ao ensino superior e à
pós-graduação; o sexto artigo centra a discussão em torno da classificação e
identidade racial de um grupo de professores da UFMG e, por fim, os dois
últimos enfatizam a Educação Escolar Quilombola. O que une o conjunto
de artigos aqui apresentados é a reflexão em torno dos desafios, dos limites
15
e das possibilidades de implementação e condições de enraizamento da lei
10.639/03 e a reeducação das relações étnico-raciais em diversos contextos.
No artigo Relações Étnico-Raciais e Educação Infantil: ouvindo
crianças e adultos, as autoras Lucineide Nunes Soares e Santuza Amorim
da Silva apresentam dados da pesquisa realizada em uma escola de
educação infantil, no qual analisam as práticas educativas que ocorrem
nos espaços e tempos de uma escola pública de educação infantil, com o
foco nas relações étnico-raciais, e revelam como as relações tecidas nesse
contexto incidem nas configurações identitárias das crianças negras. As
análises possibilitaram esclarecer que a organização e a dinâmica das
práticas e relações estabelecidas na escola pesquisada, no que se refere às
relações étnico-raciais, são permeadas por avanços, limites e contradições.
No texto seguinte, Práticas pedgógicas na educação infantil:
experiências docentes com a temática étnico-racial, Cláudia Elisabete dos
Santos e José Eustáquio de Brito propõem uma reflexão sobre a abordagem
da diversidade étnico-racial na infância, dando des taque à práticas
pedagógicas desenvolvidas por docentes que trabalham na educação infantil
e que são egressas de um Programa de formação continuada, o Lato Sensu
em Docência para a Educação Básica (LASEB), programa implantado em
2006 através de um convênio firmado entre a Secretaria Municipal de
Educação de Belo Horizonte (SMED) e a Faculdade de Educação (FaE) da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As cursistas egressas do
LASEB desenvolveram planos de ação em duas Unidades Municipais de
Educação Infantil (UMEI) e focaram a temática étnico-racial na infância,
tendo como referência os textos presentes na Lei 10.639/03 e nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004). As análises
apontaram a importância do investimento na formação continuada de
professores que trabalham na educação básica e assumem o compromisso
de apresentar às crianças pequenas perspectivas de valorização da
diversidade étnico-racial na infância.
Em Tradução e Interpretação da Educação para as relações
raciais em práticas pedagógicas do corpo docente em uma UMEI de Belo
16
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
17
constituíram-se como dispositivos que possibilitaram o acesso e a
permanência nesses programas, e também como a questão racial exerceu
influência ao longo das trajetórias dos sujeitos pesquisados e de que
maneira ela se faz presente nessa caminhada.
O artigo Professores universitários, classificação e identidade
racial: limites e possibilidades, escrito por Ana Amélia de Paula Laborne
e Nilma Lino Gomes, apresenta os resultados de uma pesquisa realizada
com professores pretos e pardos da Universidade Federal de Minas Gerais
em 2008, analisando suas trajetórias de vida, escolares e acadêmicas, bem
como a vivência da sua condição racial nos diversos espaços pelos quais
circularam e ainda circulam - sobretudo, os acadêmicos - procurando
estabelecer as articulações entre classificação de cor e os processos de
construção de identidade racial vivenciadas por esses sujeitos sociais.
O artigo Desigualdades regionais, trabalho e educação na
implementação da educação escolar quilombola, autoria de José Eustáquio
de Brito, discute desafios postos às comunidades quilombolas para a
sua implementação. Dados coletados na região do Médio Jequitinhonha,
Minas Gerais, são apresentados configurando um quadro de escassas
oportunidades ocupacionais que tem contribuído para a migração sazonal
da população masculina quilombola, especialmente os jovens. Aponta-se
para a necessidade de se adotar uma perspectiva multidimensional de modo
a consolidar projetos de desenvolvimento que fortaleçam as comunidades.
O artigo Tensões, intenções, desafios e possibilidades na Formação
de Docentes da Educação Básica das Comunidades Remanescentes
de Quilombo em Minas Gerais, de autoria de Vanda Lúcia Praxedes
e Silvia Miranda, discute as tensões e os desafios enfrentados pela
Equipe de Formação no processo de construção e execução do primeiro
curso de Formação de Docentes da Educação Básica das Comunidades
Remanescentes de Quilombo no norte de Minas e Vale do Jequitinhonha,
realizada no Faculdade de Educação da UFMG. Demonstra, também, a
importância da discussão coletiva e escuta dos professores/as cursistas na
elaboração de um formato de curso mais próximo à realidade e demanda
de formação desses docentes.
18
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
19
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
E EDUCAÇÃO INFANTIL:
OUVINDO CRIANÇAS
E ADULTOS
21
das crianças negras? O que as crianças e adultos dizem ou pensam sobre as
práticas e relações estabelecidas? Para tanto, propomos descrever e analisar
como a dinâmica e a organização dessas práticas, bem como as relações es-
tabelecidas entre crianças, entre elas e os adultos incidem nas configurações
identitárias das crianças negras, além de identificar o que crianças e adultos
dizem sobre estas práticas e relações estabelecidas.
Adotamos uma perspectiva epistemológica que considera a
realidade como processual, inacabada e atravessada por avanços, limites,
desvios e contradições, enfim, dialética. Estabelecemos diálogos com as
discussões teóricas levantadas pela Antropologia e a Sociologia da Infância,
que partem da ideia que nas pesquisas com crianças faz-se necessário
pensá-las a partir de suas culturas, como sujeitos da investigação e não
simples objetos. E ainda exige pensá-las a partir do que têm e não do
que lhes falta, o que implica maior aproximação de suas experiências
e singularidades. E no que diz respeito às identidades étnico-raciais,
dialogamos com Estudos Culturais e pesquisas que tratam das questões
raciais na educação e educação infantil. Acreditamos que esses suportes
teórico-metodológicos também nos favoreceram um olhar mais ampliado
para o problema em questão, visto que nele está implicada a discussão
sobre as diferenças, a diversidade, singularidades, relações sociais,
práticas, cultura, identidades, temas tão caros para esses campos de
conhecimento. Para tanto, realizamos um estudo de caso cunhado pela
etnografia. Recorrermos à abordagem etnográfica porque acreditamos que
esta nos daria “uma lente de aumento” (ANDRÉ, 2005) para conhecer a
escola e para compreender os aspectos culturais das práticas e relações
estabelecidas no cotidiano da educação infantil.
Utilizamos instrumentos e procedimentos metodológicos diver-
sificados e “combinados” (MÜLLER, 2010) como, observações e registros
em caderno de campo, vídeogravações, gravações, registros fotográficos,
entrevistas com adultos, desenhos e documentos.
Nesse processo de construção de estratégias teórico-metodológicas
optamos por pesquisar com as crianças e não sobre elas. Desse modo, as
crianças realizaram registros fotográficos de espaços e tempos da escola
22
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
23
O que a escola pesquisada nos revela?
Na realização da investigação encontramos pistas e/ou dados que
evidenciaram como as relações étnico-raciais aparecem na escola Manuelita
e de como as crianças negras e brancas vêm configurando suas identidades
étnico-raciais. Esses dados nos foram revelados por meio da organização e
dinâmica de algumas práticas, das brincadeiras, dos discursos dos adultos,
das falas e silêncios das crianças. Esse desvelar nos permitiu interpretar que
as práticas e relações na escola pesquisada apresentaram situações que estão
atravessadas por contradições, ambiguidades, negatividades, invisibilidades,
ausências e também por positividades e/ou avanços no trato com as diferenças
presentes na escola. Nessa direção, os resultados encontrados nos permitiram
interpretar e inferir que na escola pesquisada predomina um discurso de
igualdade que tende a contribuir para a invisibilidade da diversidade presente.
Eswsa tendência e/ou contradição aparece nos materiais visuais (cartazes,
painéis) de sala e da área externa; nos brinquedos; nas literaturas e vídeos
assistidos pelas crianças, visto que apresentam prioritariamente a presença do
grupo branco, o que impede as crianças negras ou de outro grupo construírem
o sentimento de pertença ao seu grupo étnico-racial. Os preconceitos em
relação às crianças negras por parte das crianças brancas também foram
presenciados durante as brincadeiras, e, como observamos, tais preconceitos
e/ou rejeições estão intimamente ligadas às características fenotípicas dessas
últimas; e a tez da pele, aparece nesse contexto, como um forte marcador.
24
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
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negras (Ana Carla) tenha apresentado o desejo interpretar esse papel, como
foi afirmado por ela: [...] lá no teatro eu queria ser a Branca de Neve, mas só
podia gente branca, aí eu escolhi ser bruxa. Resposta que nos remeteu a história
recontada por Meyer (2011) sobre uma menina negra de três anos de idade
que descobriu, na escola, que não podia ser anjo.
Nessa mesma peça, Fabinho, outro aluno negro do grupo, que a
princípio faria o personagem de um “anãozinho” acabou representando a
árvore do cenário. Sobre a mudança de papéis a professora esclareceu:
Não, Fabinho não quis ser árvore, ele queria ser o anão, mas a mãe disse que não
tinha como alugar a roupa. Então eu falei que ia tentar para ver se eu conseguiria
a roupa emprestada ou então ajudar a pagar a metade. E ela falou que não tinha
como, de jeito nenhum. Então eu tentei e o convenci de ser árvore, aí eu floreei que
a árvore é uma coisa linda da natureza e que ele ia ganhar os balões 7 no final
da apresentação. [...] ele empolgou e mudou de personagem sem problema. [...] ele
não ficou triste com a mudança da personagem e a gente deu um jeitinho para ele
apresentar e deu tudo certo. (entrevista realizada dia 22/11/12).
A organização dessa prática, em que os corpos estão em evidência
e/ou expostos para o outro ou outros, nos direciona a interpretar/pensar que,
ao planejá-la, caberia aguçar o olhar para as crianças e seus desejos. Além
disso, buscar adotar formas mais criativas de “incluir todos/as”, de maneira
que não haja contradições tão extremas e excludentes, como denota a
situação vivenciada pelo aluno Fabinho.
Outros elementos que demonstraram o silenciamento e invisibi-
lidade da cultura e do grupo negro que representa a maioria das crianças e
adultos presentes na escola pesquisada dizem respeito aos recursos visuais,
de comunicação e materiais diversos expostos na escola. Tais materiais evi-
denciam quais/qual culturas/a são privilegiadas, mesmo que seja de modo
“inconsciente” (MEYER, 2011). Alguns desses recursos visuais fotografados
pela pesquisadora veem-se apenas crianças brancas ali representadas.
7 Os balões prometidos formaram a copa da árvore que foram amarrados em seus braços,
o restante de seu corpo foi representado como o caule.
26
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
27
Nas narrativas das crianças também encontramos evidências de
falas depreciativas e atitudes preconceituosas com relação aos/às colegas
negros/as, como nos episódios abaixo: Estávamos no corredor8 com o
gravador e, enquanto as crianças brincavam, sentamos ao lado delas.
9
8 Os corredores foram espaços escolhidos nos registros fotográficos tomados pelas crianças
(que denominam a parte “lá detrás”). Eles estão localizados nas laterais da parte externa da
escola. Nas devolutivas das fotografias elas justificaram suas escolhas, algumas delas: tirei
lá detrás porque ele é muito bom e dar prá brincar toda hora. A gente brinca de pedrinhas
e de folhinhas (Lavina); Eu tirei porque eu gosto muito desse lugar (Lara); tirei por que lá
eu brinco e gosto de pintar no painel (Fabinho).
9 O gravador foi um instrumento que sempre levávamos para o corredor. Ele passou a
ser também um brinquedo onde gravávamos juntos, depois ouvíamos músicas e fazíamos
testes diversos.
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
Gabi interfere e afirma: ela [se refere a Maria Joaquina] é da minha cor
e sou branca [no momento passa a mão em um de seus braços para
mostrar a sua cor]
Lara responde: eu sou branca, mas branca escura
Gabi: eu sou branca!
Ana Carla: E daí? E sai correndo.
Lucineide: Gabi você gosta de ser branca?
Gabi: gosto da minha cor e da cor da minha prima.
Lucineide: de que cor é sua prima?
Gabi: ela é branca!
Lucineide: E de seus colegas que têm outras cores, como o Cirilo,
Ana Carla e o Fabinho? 11
Gabi: Não! Eu não gosto.
Lucineide: porque você não gosta?
Gabi: porque não. É porque é feia![no momento ela demonstra tal feiura
por meio de sua fisionomia]
Rogério [que estava próximo brincando de comidinha com Isabel] diz: eu não
gosto da Ana Carla!
Lucineide: por que você não gosta dela?
Rogério: porque não.
Gabi interfere em forma de questionamento: É por que ela bate nele?
Rogério: ela pisou no meu pé.
[Passa um tempo a Ana Carla retorna para onde estávamos]
Rogério ao ver que ela se aproxima diz: não fica aqui não senão eu vou te bater
Lucineide: Rogério, ela veio brincar com vocês.
Rogério: eu vou bater nela se ela ficar aqui.
Ana Carla: eu também bato em você porque você está teimando.
Rogério continua a brincar de comidinha com a Isabel e diz: mãe eu estou
fazendo um bolo.
Isabel: filho pode fazer o que você quiser.
Gabi se aproxima da Isabel e diz: oi amiga!
29
Isabel: Oi! Você pode ir com meu filho ali na venda para ele comprar uma
pipoca para ele comer na janta?
Ana Carla complementa: e chiclete.
Isabel: chiclete não! Vai [empurra a Gabi para seguir e olha para Ana Carla
demonstrando que não a quer por perto]
Rogério ao ver que a Ana Carla se dirige junto com a Gabi corre na frente e
a cerca e grita: Você não!
Ana Carla diz: sai menino e segue até o final do corredor onde seria o portão
de saída, imaginado por eles/as.
[Nesse intervalo o Rogério encontra com o Cirilo no corredor]
Rogério levanta as mãos para agredir Cirilo.
Cirilo grita: tia olha!
Monitora Carolina: Rogério para com isso! [Ela grita sem se levantar da
cadeira onde estava sentada]. Entretanto, Rogério continua e dar empurrão
no Cirilo, que começa a chorar.
12 Não podemos deixar de destacar que a mídia, nesse contexto possui um peso significativo nas
falas dessas crianças. O que nos leva inferir que estas programações podem ser problematizadas
com as crianças desde a educação infantil
30
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
outro diferente de mim: ele não pode ficar por perto, brincar comigo, “não
gosto dela” como disse Rogério, além das agressões corporais. A justificativa
da menina Gabi sobre o porquê de não gostar da cor dos colegas ou pessoas
negras/os nos dão pistas de como no seu imaginário está presente a ideia
da existência de modelos estéticos difundidos em nossa sociedade. Ou seja,
modelos do branco/belo/inteligente, que impede de positivar a cor/raça,
beleza e ainda acreditar na capacidade intelectual dos demais grupos como
negros e indígenas.
Essas relações, bem como outras práticas e relações13 não eviden-
ciadas nesse texto, mas que aparecem na pesquisa, são indícios de como as
crianças negras estão vivenciando suas subjetividades e configurando suas
identidades étnico-raciais – que a nosso ver, são vivências que as negativam.
Além disso, revelam como essas crianças vêm tentando enfrentar essas si-
tuações de conflitos junto aos seus pares. Ana Carla foi um exemplo das
crianças negras que nos pareceu mais fortalecida visto que a mesma não se
calava diante dos conflitos e/ou das atitudes dos colegas. Entretanto, como
ocorrido no episódio acima, ela também não consegue se manter na situação
por muito tempo e acaba saindo correndo, se retirando “do palco de dispu-
tas, do ambiente hostil” (CAVALLEIRO, 2005).
É importante sinalizar que nas práticas e relações
que observamos e participamos encontramos avanços e limites no diz
respeito às relações étnico-raciais. Nesse processo, interpretamos que na
escola Manuelita existem fios que permitem iniciar outras ligações para
a implementação e “enraizamento” (GOMES, 2012) de um currículo e
práticas educativas que contemplem a educação para a igualdade étnico-
racial. Alguns desses fios aparecem nas práticas e relações, bem como
13 Uma dessas relações diz respeito às estabelecidas entre os adultos e as crianças negras, que,
como constatamos, são as que mais são encaminhadas para a prática do “castigo” (prática
recorrente na escola), e, além disso, são elas que são classificadas como as crianças mais “difíceis”
“indisciplinadas”, “sem limites”, entre outras denominações. E ouvem frases do tipo: “você é
feio e desobediente” (professora Helena, notas de campo de 20/09/12); fica aí com esse “bocão”
(supervisora Daniela, notas de campos de 12/07/12); entre outras.
31
nas proposições da proposta pedagógica por meio da articulação entre
“diversidade racial e educação infantil” e, além disso, está fundamentada
com a Lei 10. 639/03 e dire-trizes curriculares nacionais para a educação
infantil. Outro aspecto a destacar é que algumas professoras já passaram
por formação continuada na temática da história da África e culturas e
africanas e afro-brasileira via Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro (NEAB)
da Universidade Federal localizada no município.
Outro ponto a destacar está relacionado aos documentos con-
sultados e conversas realizadas no âmbito das Secretarias de Educação e
Administração com o objetivo de conhecer o modo como se configuram
as políticas para o campo da educação infantil e relações étnico-raciais no
município. De certo modo, observamos que a realidade encontrada na es-
cola possui forte ligação com as políticas públicas da gestão municipal. Os
documentos consultados, as conversas realizadas e os depoimentos das pro-
fissionais e monitoras evidenciaram que tal política ainda não tem investido
seriamente na formação continuada dos profissionais da educação infantil,
principalmente no que tange à temática das relações étnico-raciais.
Considerações Finais
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
33
Esta pesquisa, juntamente com as demais pesquisas que também
fizeram a interlocução entre esses dois campos supracitados, evidencia que
as crianças negras continuam a vivenciar, na escola, práticas preconceitu-
osas e discriminatórias. Escutam explicitamente frases, palavras, gestos
que depreciam suas características fenotípicas, e, nesse contexto, vêm con-
figurando identidades negativas no que se refere ao seu pertencimento
étnico-racial. Nessa direção, podemos inferir que a partir dos dados encon-
trados e analisados na escola pesquisada, bem como nas demais escolas de
educação infantil do município e região, ainda podemos encontrar muitas
crianças negras vivenciando práticas e relações como as evidenciadas nesta
investigação, ou até piores.
Por fim, as evidências encontradas vão em direção ao que apon-
taram as pesquisas desenvolvidas por (DIAS, 1997; CAVALLEIRO, 2005;
OLIVEIRA, 2004;), de que as crianças, desde a educação infantil, convi-
vem com tratamentos diferenciados, o que fazem com que os discursos de
igualdade presentes na educação infantil se tornem contraditórios, pois, nas
práticas cotidianas, os tratamentos são desiguais e “as diferenças são elimi-
nadas nas formas mais sutis e explícitas” (CAVALLEIRO, 2005).
34
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
Referências Bibliográficas
GOMES, Nilma Lino; OLIVEIRA, Fernanda Silva de; SOUZA, Kelly Cristina
Cândida de. Diversidade étnico-racial e trajetória docentes: um estudo
etnográfico em escolas públicas. In:
35
OLIVEIRA, Fabiana de. Um estudo sobre a creche: o que as práticas
pedagógicas produzem e revelam sobre a questão racial? Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal de São Carlos. São Paulo, 2004, 112p.
36
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
experiências docentes
com a temática
étnico-racial
14 http://www.fae.ufmg.br/laseb/
15 http://www.acoesafirmativasufmg.org/
39
Em 2011, na quinta edição, a área de concentração História da
África e Cultura Afro-Brasileira, foi renomeada como Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e as vagas foram estendidas a outros profissionais da
educação, dentre eles auxiliares de secretaria e biblioteca e bibliotecários.
A mais recente edição do LASEB foi iniciada em fevereiro de 2014 e con-
cluída em maio de 2015. A área de concentração que antes se centrava na
diversidade étnico-racial inclui a temática de gênero (Diversidade, Educa-
ção, Relações Étnico-Raciais e de Gênero). A inclusão do conceito de gênero
potencializou as discussões e fortaleceu as abordagens da disciplina de
Movimentos sociais e ações coletivas. Além disso, permitiu aos docentes
refletirem sobre a desigualdade de gênero e raça, assimetria existente no
âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e
os demais segmentos sociais (BRASIL, 2011).
As docentes que trabalham na educação infantil a cada dia lidam
com turmas heterogêneas e desafiadoras. A contínua procura de vagas
pelas famílias na educação infantil pública, independentemente da classe
social, sinaliza a credibilidade que as famílias vêm depositando no trabalho
desenvolvido nas UMEI.
17 Adinkra é um pano cheio de desenhos e cada um tem seu significado. Estes panos eram usados pelos
líderes espirituais e sacerdotes em rituais secretos e cerimônias, como, por exemplo, nos funerais.
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
41
Caracterização das UMEI
A UMEI Diversidade está localizada em uma regional de
Belo Horizonte que no início do século passado era rodeada de fazen-
das, e deu origem a muitos bairros que foram construídos ao redor de
indústrias e fábricas.
A UMEI Diversidade está localizada em um bairro residencial, área
íngreme e conta com a infraestrutura de lojas, hospitais, centro de saúde e
shopping ao seu redor. A unidade atende aproximadamente 140 crianças, e
se comparada às demais, essa UMEI pode ser considerada de pequeno porte.
A instituição é ampla, limpa, organizada, possui uma entrada totalmente
coberta e uma área plana de aproximadamente 150 metros quadrados,
subdividido em vários espaços18. Segundo a docente, a escola foi uma
conquista dos moradores da região, que no ano de 2000 manifestaram-se
ativamente em prol da construção de uma escola de educação infantil na
comunidade, através das verbas do Orçamento Participativo.
A UMEI Diferença está localizada em uma área periférica de um bairro
de Belo Horizonte. O bairro é fruto de uma ocupação em uma área limítrofe
entre os municípios de Belo Horizonte e Sabará. Os primeiros moradores
ocuparam a região por volta da década de 1980, período que tiveram de enfrentar
condições precárias, como falta de saneamento básico, energia elétrica, saúde
básica e até mesmo acesso a escolas. A localização da UMEI permite às crianças,
docentes e demais moradores acesso a uma vista privilegiada e clima agradável
devido à expressiva área verde preservada no entorno da UMEI. A maior parte
das famílias atendidas na UMEI Diferença mora no bairro, dado diferente do
apresentado pela UMEI Diversidade. A UMEI Diferença pode ser considerada
de grande porte: são mais de 400 crianças com a idade que varia de 0 a 5 anos
de idade. Elas são atendidas nos períodos parcial e integral.
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
43
A entrada da docente em uma universidade pública como cotista,
em 2005, foi em um momento em que as universidades federais ainda
não eram obrigadas a adotar esse critério em seus processos seletivos. Tal
experiência a permitiu trilhar uma trajetória educacional privilegiada e em
diálogo com a diversidade étnico-racial. Akilah, com um grupo de colegas
da graduação, foram selecionados para integrar o Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros da Universidade do Estado de Minas Gerais (NEAB/UEMG). O
grupo participava de um projeto sobre a abordagem da Lei 10.639/03 em
escolas públicas do ensino fundamental. O grupo pesquisado era formado
por crianças autodeclaradas negras, que aceitaram participar da pesquisa
mediante autorização das famílias. O grupo que Akilah participava tinha a
tarefa de tabular dados e auxiliar a escrita da pesquisa, juntamente com os
demais colegas e professores do NEAB.
Segundo a docente, sua ligação e interesse com a literatura é intensa.
Ela considera que a literatura é a disciplina que mais a aproxima das crianças
durante o desenvolvimento de projetos. Para Larrosa (2011) a experiência de
linguagem, de pensamento, de sensibilidade permite a transformação dos
próprios pensamentos.
Para Amorim (2009, p. 101), a literatura infantil tem o poder de
constituir, para a criança, um elo lúdico entre o mundo do imaginário, do
símbolo subjetivo e o mundo da escrita e dos signos convencionalizados pela
cultura. Para Akilah a literatura traz riqueza às aulas por meio da arte, música,
brincadeiras e dos livros infantis e juvenis. A cursista aposta na literatura como
ponte entre as crianças e uma educação para diversidade étnico-racial.
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
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A experiência de Akilah como egressa do LASEB contribuiu
diretamente no processo da implementação da Lei 10.639/03 na UMEI
Diversidade. A docente preferiu registrar no plano de ação exigido pelo LASEB
as práticas vivenciadas com a turma de crianças com as quais trabalhou como
professora referência em 2010. Contando com o apoio da nova professora
das crianças, Akilah iniciou o desenvolvimento do plano de ação com as 16
crianças que eram da turma no segundo semestre de 2011 e que participaram
do projeto “Princesas negras”, além de mais 5 alunos que estavam estudando
na escola pela primeira vez. O plano foi desenvolvido em três semanas, e sua
culminância deu-se antes da semana da Consciência Negra.
A proposta metodológica do plano de ação baseou-se nos contos
africanos, tendo como princípio a positivação da imagem de África. A obra
literária infantil afro-brasileira escolhida foi “O Casamento da princesa” (Celso
Sisto). Após algumas adequações das narrativas e imagens, iniciaram-se os
encontros com as crianças. A docente também apresentou para as crianças
imagens de representantes das realezas africanas na atualidade.
No primeiro semestre de 2012, o primeiro encontro da docente
com as crianças foi especial porque contou com a colaboração da professora
que era a referência da turma. Akilah apresentou para as crianças uma caixa
surpresa e, segundo ela, as crianças não se continham de tanta curiosidade.
Para diminuir a curiosidade, Akilah dizia que a caixa guardava um objeto
precioso que pertencia a alguém muito especial. Ela apresentou os bonecos
negros Abayomi e Lila19. A docente explicou que eles faziam parte de um
misterioso tesouro. Ela revelou que várias crianças insistiram pedindo para
segurar os bonecos. Assim, foi combinado que durante o tempo que ela
estivesse contando histórias os bonecos passariam de mão em mão.
A docente investiu na possibilidade da positivação da negritude,
através da figura do casal de bonecos e das personagens Cadja e seu irmãozinho
(projeto desenvolvido na escola no ano anterior), além da apresentação de
objetos que lembravam a realeza (coroa e varetas com símbolos africanos de
fogo e chuva e belos lenços coloridos). Akilah lembrou que uma das crianças
46
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
Trajetória de Wambui
47
como professora do ensino fundamental (1° e 2° ciclo) em outra rede de
ensino da região metropolitana. No período da conversa, a docente tinha
37 anos de idade. Ela se autodeclara parda, e assim como a docente Akilah,
trilhou quase toda sua trajetória estudantil em instituições públicas, com
exceção do ensino superior.
No período da graduação a docente não recebeu uma formação
voltada para a temática racial e nem participou de estudos que a aproximasse
de uma iniciação científica. Diferentemente da docente Akilah, Wambui não
teve a oportunidade de acessar, na graduação, a temática racial, e tampouco
participou direta e/ou indiretamente de pesquisas relacionadas ao tema. As
primeiras participações em debates e seminários relacionados à temática
étnico-racial aconteceram após a entrada da docente no LASEB.
A trajetória da docente demonstra que a proposta curricular do
curso de pedagogia frequentado por ela sinaliza um dos grandes obstáculos
a ser superado pelas universidades públicas e privadas de todo Brasil, ou
seja, a ausência de conteúdos que contemplem a abordagem da diversidade
étnico-racial na graduação.
Segundo a docente, a leitura da escrita do plano de ação fez com
que ela lançasse um olhar mais crítico sobre a sua prática, uma das principais
propostas do LASEB. Em 2012, a docente desenvolveu um projeto na UMEI
Diferença sobre a diversidade racial baseado no plano de ação, porém sem
ter a intenção de alcançar todos os docentes da escola. Nesse mesmo ano,
após observarem e apoiarem o projeto desenvolvido pela docente e por
outros, a coordenação e direção assumiram um posicionamento próximo
ao que se pede nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (2004), incentivaram o desenvolvimento do projeto e
a garantiram a materialidade para sua execução.
Logo no início do ano letivo de 2013, a vice-diretora e a coordenadora
convidaram a docente para apresentar sua experiência como egressa do LA-
SEB para as/os colegas de trabalho durante uma reunião pedagógica. Nesse
mesmo ano, os docentes e demais funcionários da UMEI acataram a proposta
de desenvolverem um projeto institucional sobre a temática étnico-racial.
48
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
49
(livros, produções acadêmicas, artigos, revistas, cartazes, painéis, jogos
e brinquedos). A cada dia a docente mostra-se mais comprometida com
a temática racial, e considera que “a Lei 10.639/03 só será efetivada se
tivermos acesso e interesse em utilizar os materiais e informações sobre
a temática racial na educação”.
Após reflexões sobre sua prática, Wambui considerou que
não precisaria mudar drasticamente a sua forma de trabalhar, e sim,
adequá-la às propostas de enfrentamento do racismo. Desde quando a
docente começou a desenvolver propostas pedagógicas antirracistas na
UMEI Diferença, ela vem assumindo a função de professora de apoio
das turmas, situação que a permite focar atividades que valorizam o
desenvolvimento global da criança e os aspectos da psicomotricidade, na
intenção de desenvolver as áreas afetiva, motora, social e intelectual. A
psicomotricidade no processo ensino-aprendizagem contribui de forma
pedagógica para o desenvolvimento integral da criança. Para Barreto
(2000), a recreação dirigida proporciona a aprendizagem das crianças em
várias atividades esportivas, ajudam na conservação da saúde física, mental
e no equilíbrio sócio afetivo.
O principal objetivo da docente ao introduzir a temática racial em
suas práticas pedagógicas foi possibilitar que as crianças identificassem e
respeitassem as múltiplas possibilidades das diferenças entre os indivíduos
reconhecendo a contribuição do povo negro na cultura brasileira, através
da arte, música e educação.
Na intenção de garantir a introdução da temática étnico-racial em
sua prática pedagógica, a docente Wambui, juntamente com um colega
de trabalho, adotou a estratégia de desenvolver oficinas semanais com
duração diária de aproximadamente 50 minutos ao longo de um semestre.
A docente considera que a contação de história merece lugar de destaque
na sala de aula, prática que pode ser enriquecida com a apresentação de
imagens que coloquem em destaque o negro, sua história, crenças e cultura.
Os professores devem utilizar diferentes linguagens (corporal, musical,
plástica, oral e escrita) ajustadas às diferentes intenções e situações de
comunicação, de forma a compreender e ser compreendido, expressar suas
50
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
51
famílias das crianças, o retorno delas superou todas as expectativas. Além
de aprovarem a proposta, as famílias auxiliaram as crianças a responderem
uma enquete sobre suas músicas e brincadeiras preferidas. Com o resultado
desse levantamento, a docente montou uma tabela que permitia que as
crianças se conhecessem melhor.
Wambui apresentou para as crianças a música “O canto das três
raças”, interpretada por Clara Nunes, momento em que as crianças pu-
deram explorar novamente os instrumentos musicais da escola e outros
confeccionados por elas de forma artesanal (tambor, atabaque e chocalho).
Gordon (2000) considera que a música possibilita às crianças o autoconhe-
cimento, o conhecimento do outro e o desenvolvimento da criatividade.
Nesse mesmo dia as crianças fizeram um painel coletivo chamado
“Retrato Étnico”, atividade que propunha que cada uma delas reproduzisse a
própria imagem em um grande painel. Já no encontro seguinte, na Oficina
de Arte, os alunos, sob a orientação de Wambui, exploraram a sonoridade
dos tambores da escola, dando uma atenção especial para um tambor maior
e multicolorido feito de uma embalagem de papelão, chamada barrica.
Segundo a docente, o instrumento passou a ser considerado o símbolo do
projeto, afinal era maior que muitas das crianças da UMEI. As crianças
também confeccionaram vários mini tambores, que, após as apresentações,
levaram para casa. Para Oliveira (2010, p. 61), os tambores também são
nossos ancestrais. Eles falam e se comunicam através de seus toques, que
são códigos inconfundíveis de um chamamento espiritual e corpóreo,
capazes de revelar a necessidade de valorização da cultura africana.
Considerações Finais
52
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
53
Referências Bibliográficas
54
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
PORTER, Judith D.R. Black Child, white child – The development of racial
Attitudes. 2. Ed. Massachusetts: Harvard University Press, 1973.
55
TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO
DA EDUCAÇÃO PARA AS
RELAÇÕES RACIAIS EM
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DO
CORPO DOCENTE EM UMA
UMEI EM BELO HORIZONTE
57
infâncias, uma vez que “essa visão pode fazer com que muitos profissionais
desconsiderem as questões sociais e culturais da vida da criança, pois, já que
a criança se desenvolve apenas no espaço maturacional/biológico, não há
necessidade de intervenções” (SOUZA, 2010, p.24).
O desenvolvimento de práticas pedagógicas pontuais implica
considerar as mudanças políticas e culturais que incidem diretamente no
ensino, o que obriga a escola a se mostrar como um ambiente estimulante,
onde o conhecimento deve ser construído, respaldado pelo pensamento
crítico e coletivo das ideias entrelaçadas pelas muitas culturas que habitam
o universo escolar, especificamente, a educação infantil, em que o lúdico
deve ser (re)pensado paralelamente ao ato de educar.
Na educação infantil não pode haver o momento das brincadeiras
e o momento do educar e cuidar. Essas ações, de acordo tanto com as
proposições curriculares quanto com as pesquisas que se orientam nesse
sentido, comungam com essa nova característica que deve vir permeando
esse novo modelo educativo. Para Freire (1998), a prática do/a professor/a é
algo que exige reflexão e compreensão do fazer crítico e autônomo. São essas
posturas que apontam a possibilidade de a escola ter condições de construir
pontos de ligação no processo de adequação às mudanças de forma criativa
e inovadora e, consequentemente, a se posicionar socialmente,como um
espaço de acolhimento e respeito às diferenças, que são um fator de
possibilidade e riqueza cultural e não de desqualificação e seleção dos
sujeitos com base em seu pertencimento social, de gênero ou racial. Nesse
sentido, “queremos que as escolas melhorem. [...] Uma criança não deve ter
suas circunstâncias educacionais limitadas pela renda dos pais, pela cor de
sua pele ou pelo dialeto que fala” (TAKAYAMA, 2005, p. 15-16, apud BURAS
e APPLE, 2008, p. 21).
Assim, as práticas pedagógicas alcançam uma posição de destaque
e de responsabilidade em colocar de forma autônoma e crítica a engrenagem
social transformadora da escola funcionando. No caso da educação para
as relações raciais, esse esforço enfrenta maior dificuldade, pois lida com
relações de poder e hierarquização dos identificados socialmente como
“diferentes”. Quando se trata das crianças negras, principalmente em
58
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
59
sentimentos contraditórios e de estranhamento. Momento em que se
espera que o/a professor/a, acostumado e ensinado a se comunicar apenas
verbalmente, aprenda a traduzir os significados dos corpos e desenvolva
práticas libertadoras explícitas nas atividades cotidianas da escola.
No entanto, esse momento é marcado por divergências e/ou in-
correções, uma vez que cada professor/a traz impresso em suas práticas
pedagógicas um pouco daquilo que aprendeu em família e no processo de
formação inicial. Isso o/a leva a quase sempre a ignorar e/ou desconsiderar
o contexto em que está desenvolvendo suas práticas.
As práticas pedagógicas na educação infantil devem levar em con-
sideração a visão de mundo que a criança traz de casa, seus conhecimentos
prévios, sua origem e pertencimento racial de maneira a valorizar esses
pilares, para que a educação cumpra na sua integralidade sua função de
formação humana.
60
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
61
[...] as práticas na educação infantil são ações mesmo. [...] aquilo
que vivencio, vivenciei através das ações com as crianças. [...]
não tem como fugir do cuidado. As crianças chegam aqui muito
desprotegidas. Carentes. “Elas chegam assim, carentes em todos os
sentidos” (PROF.ª 1PF. ENTREVISTA, 2015).
62
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
63
Com certeza são muitas as diferenças né? Muitas, muitas mesmo!
Até pela questão geográfica de localização né. Porque as crianças
negras residem... Eu não estou falando só daqui do quilombo, mas
de um modo geral pelas crianças que eu tenho na escola que estão
mais dentro do aglomerado.
E as crianças brancas a gente percebe... Não só aqui no quilombo, mas
também na escola né? A gente vê essa diferença nas brincadeiras,
nas formas de expressão... E eu percebo que assim... Está muito
voltado para a realidade social dessas crianças. E a infância... E
as brincadeiras são muito voltadas para isso. Mas também pela
localização, pois os negros estão mais na maioria dentro do
aglomerado. Ou dentro dos quilombos, a parte mais afastada. E os
brancos já estão mais no asfalto.
A gente identifica muito nas brincadeiras que a gente vai fazer,
muitas eles já conhecem. Agora quando é uma criança branca... A
cultura é outra, a brincadeira é outra. A forma de brincar de um
modo geral... Eles já têm as brincadeiras com brinquedos mais
industrializados... Entra mais a questão da informática... Mais no
conhecimento assim, da Informação. Eles têm uma informação
maior sabe? Com relação às coisas... Eles viajam mais... Tem uma
cultura melhor nesse sentido. Agora, a criança negra tem um
resgate... Tem muito aquela questão de contar histórias... A coisa
tradicional que vem de família... (PROF.ª 1PF. ENTREVISTA, 2015).
64
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
65
A infância foi também comparada pelas professoras com nuan-
ces temporais, em que as crianças da UMEI são visualizadas pela lente
das infâncias de suas respectivas professoras, sendo, portanto, semelhan-
tes no ato de brincar, “o que me lembro é que eu brinquei muito... e em
educação infantil a gente sempre incentiva o brincar né” (PROF.ª 2PL.
ENTREVISTA, 2015).
Na análise identificou-se que, para ela, a professora 2PL, a
brincadeira na educação infantil é sinônimo de felicidade, de movimento
do corpo infantil. Considerando que esse movimento é impedido pela
tecnologia, ela pontua mais adiante a função das práticas pedagógicas
enquanto primordial instrumento promotor de ações de movimento. E essa
felicidade se materializa no ato de brincar na infância por intermédio do
resgate das brincadeiras do passado. Estas, no entendimento da entrevistada,
promoviam movimentos amplos nas infâncias passadas:
66
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
67
a infância deve ser considerada em sua dimensão sócio-histórica, para que
as comparações entre infâncias do passado e do presente não construam
equivocadamente situações de reprodução de uma infância que já passou,
portanto, sem efeito positivo às exigências das novas demandas sociais.
Para Souza (2010), discursos temporais de comparação entre as infâncias
são bastante recorrentes na educação infantil e, nesse sentido, a categoria
infância deve vir compreendida enquanto um processo em construção,
68
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
69
de um currículo multicultural na educação infantil. O viés da aparente
naturalidade simplifica os casos de racismo percebidos no contexto escolar.
Com isso, fica evidenciado que um perfil docente oriundo de
uma cultura forjada em bases segregadoras e num currículo com valores
hierarquizados, os resultados serão, consequentemente, de perpetuação
das desigualdades raciais no contexto da educação infantil, na qual práticas
pedagógicas liberadoras do corpo infantil não terão condições de germinar.
Considerando que as práticas pedagógicas compreendidas pela professora
4PL estão enraizadas na meritocracia, são práticas pedagógicas desenvolvidas
no sentido de civilizar o indivíduo e, no caso específico das crianças negras,
de acordo com Oliveira (2015, p. 130), “o processo de socialização na
instituição escolar, ‘tornar-se civilizado’ significa ‘branquear-se”.
Outro fator percebido na compreensão dos comportamentos
externados pelas infâncias e nas infâncias de crianças negras descortina
pelo viés da psicologia clínica e do desenvolvimento infantil. Nesse caso, a
professora 5PM21 argumenta que a teoria em psicologia clínica e educacional
e sua experiência ajudam-na a diferenciar “o que que é pirraça, do que que
é realmente uma necessidade, ou um momento da criança. E a gente sabe
fazer essa diferenciação”(PROF.ª 5PM. ENTREVISTA, 2015)22.
Embora o objetivo desse estudo não seja desconsiderar/desqualificar
a Teoria do Desenvolvimento infantil em Piaget, paraa compreensão da
infância, e principalmente das infâncias das crianças negras, a referida
teoria mostra-se rasa e não possibilita, portanto, responder a complexidade
inerente ao campo das relações raciais apenas com a articulação dos saberes
produzidos por intermédio desse campo do conhecimento. Compreender a
21 Sua experiência profissional docente ocorreu num período em que para atuar na educação
infantil não havia necessidade de ter o magistério. Em seguida sua carreira na EI se deu
por muitos anos em escolas de educação infantil particular, paralela à sua formação em
psicologia clínica, onde a teoria de Piaget foi largamente desenvolvida. E é essa experiência
que a professora traz para a educação infantil pública.
70
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
Eles têm, alguns têm. Mas você pode resgatar esses brinquedos, essas
oportunidades através de outros brinquedos. Por exemplo: eu fiz
um trabalho de resgate de brinquedos antigos. Então eu fiz bilboquê
com caixinha de leite. Com pauzinho...Você pode fazer tudo que
uma criança de elite tem, mas não na forma, né... com brinquedo
comprado. Você vai fazer. Você vai construir. E isso que eu acho que
é o ganho deles. Que eu acho que é um ganho grande. Porque eles
vão aprender a construir. Eles vão aprender a ter autonomia para ter
esse brinquedo né? (PROF.ª 5PM. ENTREVISTA, 2015)
71
Diante do exposto, as diferenças entre as infâncias negras e
brancas pontuadas pela professora se respaldam na deficiência econômica.
Assim, ao construir uma linha reflexiva sobre o assunto, a professora
justifica que é possível equiparar favoravelmente tais injustiças sociais
ao adaptar as crianças na construção de uma autonomia baseada no ser
e não no ter. Para ela, esse seria um modo de combater o capitalismo que
incentiva o ter e desqualifica o ser. Porém, ao executar práticas pedagógicas
direcionadas por essas concepções, a situação de perpetuação entre
dominados e dominadores ficará sobre controle, ao mesmo tempo em
que a manutenção dos privilégios permanecerá incontestável e imutável.
Com isso, não se discutem as relações raciais com profundidade, deixando,
portanto, a discussão referente às crianças negras e suas infâncias inseridas
num processo de adaptação à situação em conformidade com a mesma.
Nisso, a teoria de Piaget propicia uma leitura equivocada e fundamenta,
infelizmente, tais posturas, porém, não justifica socialmente.
Dessa forma, práticas pedagógicas compreendidas nesse formato
teórico não abre oportunidade de construção de uma educação reflexiva no
campo das relações raciais, ao contrário, criam um sentimento de simpli-
ficação, conformação e naturalização do racismo e das injustiças sociais.
Considerações finais
72
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
73
Referências Bibliográficas
74
VIEIRA, Fátima; LINO, Dalila. As contribuições da teoria de Piaget para a
pedagogia da infância. In: FORMOSINHO, Júlia Oliveira; KISHIMOTO,
Tizuko Morchida e PINAZZA, Mônica Appezzato (Orgs.). Pedagogia (s) da
Infância: Dialogando com o passado construindo o futuro. Porto Alegre:
Artmed, 2007, p. 197-218.
ACESSO E PERMANÊNCIA NA
PÓS-GRADUAÇÃO BRASILEIRA:
a experiência de bolsistas
do Programa Internacional
de Bolsas da Fundação Ford
77
instituições para esses percursos escolares. Para análise das entrevistas e
apresentação do trabalho foram adotados os pressupostos metodológicos
semelhantes aqueles propostos por Bernard Lahire (2004) para o estudo
de casos singulares, por meio da construção de perfis de configurações
ou retratos sociológicos.23 Este texto contempla apenas a análise de uma
trajetória da totalidade dos sujeitos entrevistados, na qual é possível notar
a relevância de algumas instituições sociais, dentre as quais se destacam a
escola básica e o movimento negro. Trata-se da trajetória de uma bolsista
que iniciou a constituição de disposições para a longevidade escolar ainda
na educação básica, mas, que para o fortalecimento e consolidação dessas
disposições até a chegada à pós-graduação, foi marcada de forma positiva e
significativa pelo movimento negro.
O texto está organizado de forma a apresentar inicialmente
reflexões sobre a adoção de medidas de ações afirmativas na pós-graduação
brasileira, em seguida apresentar o Programa Internacional de Bolsas
da Fundação Ford, discutir a construção de disposições para longevidade
escolar nos vários espaços possíveis como a escola e o movimento negro e,
finalmente, apresentar as considerações finais.
78
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
79
educacionais e apresentar potencial de liderança e reconhecimento social
em seu meio de inserção, pois o IFP aposta que “líderes provenientes de
segmentos sociais discriminados seriam mais propensos a abraçar causas
e implantar ações visando à diminuição de desigualdades e injustiças
sociais” (ROSEMBERG, 2008, p. 194).
O simples fato de o estudante conseguir uma bolsa de estudos
para cursar mestrado ou doutorado não se configurava como novidade.
Agências de fomento à pesquisa também concediam (e concedem) bolsas
para estudantes que são aprovados em processos seletivos, habitualmente
com base no mérito, contemplando os candidatos que conseguem melhor
desempenho. O que torna relevante a condição dos bolsistas, sujeitos desta
pesquisa, é o pertencimento aos grupos representados e as singularidades
de cada um. São sujeitos que, necessariamente, pertencem a uma das
categorias que o IFP chama de “sub-representadas na pós-graduação
brasileira”, porém possuem forte potencial acadêmico. De acordo com o
relatório apresentado por Rosemberg (2013), o processo seletivo foi sempre
realizado em três etapas, por equipes distintas e perseguindo dois objetivos
complementares: o da ação afirmativa e o do mérito acadêmico.
Desse modo, cada candidato precisava enviar ao programa um
dossiê completo, contendo o comprobatório das informações prestadas e
as respostas ao Formulário para Candidatura. Em seguida, avaliava-se o
pertencimento aos grupos específicos. Posteriormente, dentre aqueles,
eram selecionados os candidatos que apresentavam melhor potencial
acadêmico. Dessa forma, não se corria o risco de selecionar candidatos
apenas pelo pertencimento à categoria de sub-representação e nem
apenas pelo mérito acadêmico. A seleção acontecendo nesses moldes
respeitava a justiça ao grupo e ao indivíduo, pois, graças à metodologia
adotada, a primeira análise permitia identificar os candidatos que teriam
menor chance de concluir o ensino superior e chegar à pós-graduação,
constituindo assim, um grupo mais homogêneo. Já na fase subsequente,
dentro do grupo, selecionavam-se os indivíduos que apresentavam melhor
potencial acadêmico.
80
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
81
a exigência de relatórios periódicos, com o retorno de um parecer da equipe
para o bolsista, e, principalmente, o diálogo entre as partes envolvidas
no processo, equipe do IFP, FCC, orientadores, bolsistas e Instituições
de Ensino Superior.
Esse processo de acompanhamento fez-se necessário muito em
função das especificidades da pós-graduação brasileira. Esse já é um sis-
tema que está consolidado e, ao contrário da educação básica que recebe
críticas constantes com relação à qualidade, é considerado de muito su-
cesso. O grande problema é que esse sistema, tal qual a graduação brasileira
nas universidades públicas, tem reproduzido, até mesmo com maior eli-
tismo, a estrutura de desigualdades do país. Como consequência, ele atua
mais como um instrumento de distinção entre seus participantes, pelas
hierarquias que estabelece, do que como instrumento de equacionamento
das disparidades regionais. Nesse sentido, garantir o acesso poderia não ser
suficiente para que os bolsistas pudessem concluir com êxito os programas
para os quais tinham sido selecionados.
Ainda em relação às especificidades do Programa é importante
ressaltar que não se tratava apenas de uma bolsa mensal, mas sim um
conjunto de recursos para atividades próprias ao mundo acadêmico e que
permitiam aos bolsistas viver plenamente a sua condição de estudante
de pós-graduação.
Um dos argumentos contrários à adoção de medidas de ações
afirmativas na modalidade de cotas, sejam elas sociais ou raciais, para
ingresso no ensino superior, tem sido o da meritocracia. De acordo
com os defensores dessa premissa, o ingresso diferenciado contraria
o princípio do mérito acadêmico, ao permitir que sujeitos com notas
inferiores acessem vagas que “deveriam” ser ocupadas por aqueles que
possuem notas superiores. Porém, para levarmos a cabo esse debate é
necessário refletir sobre o que seria o mérito acadêmico, e mais ainda,
em que condições ele é constituído. O mérito seria um dom, constituído
pelo nascimento, ou o resultado de investimentos pessoais e familiares,
que são mais ou menos possíveis de acordo com a condição social e em
muitos casos, a raça dos sujeitos? Se pensarmos no mérito como um dom,
82
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
83
de oferta também sejam justas e que todos tenham acesso a essas mesmas
condições. Se comparássemos a justiça meritocrática a uma competição
esportiva, seria necessário que as regras do jogo fossem claras e explícitas
para todos os competidores, que o juiz fosse totalmente imparcial e que as
condições do campo fossem as mesmas para todos os jogadores. Porém, isso
não ocorre nem mesmo nos países onde a igualdade de oportunidades já
está implantada, como a França (DUBET, 2004), quiçá no Brasil, em que as
condições de acesso ainda são desiguais. Esse sociólogo ao se referir à escola
meritocrática, indica que esse modelo deve ser combinado com outros,
especialmente com medidas de discriminação positiva, pois essas podem
garantir a igualdade distributiva, ao reconhecer as desigualdades reais e
tentar compensá-las. Assim, dar o mesmo a todos não é suficiente para que
a meritocracia seja levada a cabo, pois nem todos são iguais e partem do
mesmo ponto.
A discriminação positiva se torna necessária, pois possibilita a
democratização do acesso aos espaços mais concorridos e seletos do sistema
escolar. No entanto, apenas o acesso não dá conta de resolver as injustiças
que são produzidas na sociedade e, em muitos casos, até mesmo pela escola,
pois, ao ingressarem nesse sistema, os estudantes que trazem desvantagens
em sua formação escolar nem sempre terão os mesmos conhecimentos das
regras do jogo, pois suas trajetórias não foram desenhadas desde o início
da formação com vistas à longevidade escolar e, ainda, poderão estar em
condições desiguais com relação ao capital cultural valorizado e exigido pelas
instituições de ensino. Essas medidas contribuem ainda para que se evite a
formação de “guetos da cultura, do dinheiro e da qualidade de um lado e de
guetos da pobreza e das dificuldades de outro” (DUBET, 2004, p. 7).
Nesse sentido, o Programa Internacional de Bolsas contribuiu para
que os bolsistas pertencentes a categorias pouco representadas na pós-gra-
duação estivessem presentes em espaços que historicamente não lhes tem
acolhido e, ainda, proporcionou-lhes a constituição de condições para a cons-
trução do “mérito acadêmico”, em especial por meio da fase pré-acadêmica,
em que havia o acompanhamento e a preparação para os processos seletivos
para os programas de mestrado e doutorado, e ao longo da permanência dos
84
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
85
O perfil reconstituído a seguir constitui-se de uma trajetória
acadêmica iniciada no final dos anos 70 e início dos anos 80 do século XX,
e que foi marcada por experiências singulares, porém com características
comuns a sujeitos de meios populares. Dentre essas marcas destacam-se as
dificuldades financeiras, a falta de linearidade nos percursos e a necessidade
de grande esforço dos próprios estudantes.
86
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
87
estratégias para a prolongação do percurso de escolarização. Pode-se afirmar
que, nesse espaço, ela também encontrou algumas possibilidades de consti-
tuição e fortalecimento do mérito acadêmico, tão reivindicado pelos grupos
contrários às cotas.
Os movimentos sociais surgiram por meio das atividades
pastorais. Inicialmente ela participava dos grupos de jovens e do coral da
igreja católica. A partir desses grupos religiosos ela começou a participar
de grupos sociais organizados, como associações de bairro e, sobretudo,
do Movimento Negro. No período da graduação, destarte as dificuldades
enfrentadas, as disposições ascéticas para a longevidade escolar foram
se reativando por encontrarem condições favoráveis, especialmente pela
influência do movimento negro organizado, no qual essa bolsista conseguiu
encontrar uma formação paralela:
88
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
para a vida dos sujeitos que a adquiriam foi importante para que ela pudesse
construir estratégias a fim de alcançar uma longevidade escolar. Mediante
a participação no movimento social, Augusta pôde se beneficiar do capital
social produzido por aquele grupo.
O Movimento Negro, além de oferecer suportes que contribuíram
para o fortalecimento acadêmico ao possibilitar o encontro com intelectuais,
possibilitou a ela acreditar e projetar um futuro acadêmico diferente daquele
que se desenhava como mais provável para a maioria das pessoas do seu
ambiente de socialização primária. É importante ressaltar que essa possibilidade
de formação paralela à instituição de ensino, vivenciada pela bolsista, não se
trata de um caso isolado no contexto do país, pois o Movimento Negro, desde
os anos 1970, já se preocupava em formar uma intelectualidade negra,
buscando construir e fortalecer suas lideranças. Dentre as medidas tomadas,
tendo em vista a concretização desse objetivo, estavam a busca da elevação
da escolaridade e a melhor distribuição dos representantes das batalhas contra
o racismo em diferentes espaços de lutas e intervenções sociais, propiciando
espaços para estudo e formação. De acordo com Santos (2007), essa estratégia
levou um número significativo de membros da militância para academia,
onde concluíram graduações, mestrados e doutorados, sobretudo nas áreas
da Educação e das Ciências Humanas.
Nessa perspectiva pode-se compreender a centralidade dos mo-
vimentos sociais, sobretudo do Movimento Negro, para a construção da
longevidade escolar de Augusta, que levou para a pós-graduação um objeto
de estudos que dialogava com as questões das relações étnico-raciais.
Considerações finais
89
Nesse sentido, cada trajetória tem que ser vista em sua individualidade, mas
também, na teia de relações sociais nas quais o indivíduo está imbricado.
As disposições para longevidade escolar podem ser constituídas
na infância, porém o indivíduo só conseguirá traçar um longo percurso
acadêmico se encontrar condições que lhe sejam favoráveis. Nesse sentido,
para a bolsista retratada neste texto, duas instituições contribuíram de
forma mais significativa para a escolarização prolongada, a escola básica,
de maneira mais tímida e os movimentos sociais, sobretudo por meio do
movimento negro. Nesse espaço ela encontrou suportes que contribuíram
para que as disposições construídas na infância encontrassem condições
para se desenvolver e se fortalecer. As possibilidades de estudo, os encontros
de formação e o capital social produzido pelos movimentos sociais foram
fundamentais para que Augusta conseguisse permanecer e concluir a
graduação e, posteriormente, conhecer e se preparar para a participação na
seleção para a bolsa do IFP. É importante reforçar que esse Programa, desde
o início, levava em consideração dois pressupostos: o pertencimento aos
grupos prioritários e o mérito acadêmico, ou seja, as reais possibilidades de
o bolsista selecionado ter condições de ingressar e concluir um programa
de pós-graduação.
Embora o IFP, considere e valorize o mérito acadêmico, esse é
compreendido como uma construção e, nesse sentido, as políticas de ações
afirmativas, como o Programa Internacional de Bolsas, que possuem um
alcance que vai muito além do ingresso por meio de cotas, são fundamentais
para a constituição desse mérito. Para Augusta, tanto o Movimento Negro
quanto o IFP tiveram relevância na constituição do mérito, por meio de
ações que promoviam o fortalecimento acadêmico.
90
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
Referências Bibliográficas:
CARNOY, Martin. A vantagem Acadêmica de Cuba: por que seus alunos vão
melhor na escola. São Paulo: Ediouro, 2009.
91
SILVÉRIO, Valter Roberto. Ações Afirmativas e diversidade étnico-racial.
In: SANTOS, Sales Augusto dos (Org.). Ações afirmativas e combate ao
racismo nas Américas. Brasília: UNESCO, 2007. p. 141-164. (Coleção
Educação para todos).
92
ACESSO DA POPULAÇÃO
NEGRA AOS CURSOS DE PÓS-
GRADUAÇÃO: uma reflexão
a partir de apontamentos
teóricos metodológicos
Fábio Leão / Mestre em Educação FAE- UEMG
Santuza Amorim da Silva / Professora do PPGE/FAE/UEMG
Introdução
Nos últimos anos, o ensino superior brasileiro passou por mudanças
significativas. As políticas de expansão desse sistema de ensino, que se deu,
principalmente, via setor privado, possibilitou a ampliação das oportunidades
de acesso das camadas populares e, em particular, da população negra.
Diante dessa realidade, buscou-se empreender uma investigação
com o foco em análise de trajetórias de estudantes negros que frequentaram
o curso de Formação Pré-Acadêmica Afirmação na Pós e, em seguida,
ingressaram em programas de mestrado. Um dos objetivos que norteia a
investigação tratou-se de compreender os fatores que influenciaram essa
inserção, tendo como base as experiências e disposições adquiridas ao longo
das trajetórias desses estudantes em instâncias sociais, tais como a escola,
a família, o trabalho, a igreja, os movimentos sociais, os grupos de pares,
entre outros, e como essas experiências constituíram-se como dispositivos
que possibilitaram o acesso e a permanência nesses programas.
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
95
deficiência, egressos de programas de ações afirmativas no ensino superior,
na modalidade de cotas ou bônus.
A participação dos negros na história do país sempre esteve atrelada
à escravidão, ao trabalho braçal e a situações precárias de sobrevivência.
Sendo assim, pouco tem sido abordado sobre a participação desses sujeitos
na produção científica, tecnológica, na literatura, entre outras áreas. Nesse
sentido, nos interessa compreender como esses sujeitos, negros e oriundos
de camadas populares, conseguiram ultrapassar os limites estatísticos e se
tornaram “sobreviventes” no sistema educacional brasileiro.
Para responder à problemática colocada em torno do objeto aqui
discutido, estabeleceu-se um diálogo com o referencial teórico da Sociologia
da Educação, especificamente nos estudos sobre trajetórias de estudantes de
camadas populares, e os estudos que vêm sendo produzidos no campo das
Relações Étnico- Raciais.
Vários estudos (Lahire, 1997; Viana, 1998; Portes, 2000; Piotto,
2008; entre outros) vêm demonstrando uma série de fatores que influenciam
as trajetórias escolares “improváveis” de estudantes das camadas populares
e experiências bem sucedidas25 no meio educacional. Essas pesquisas
abordam os destinos escolares atípicos, de sucesso, ou, mais precisamente,
as trajetórias singulares de estudantes que mesmo pertencendo à grupos
socialmente desfavorecidos obtêm êxito nos estudos.
Tendo em vista que a pesquisa se propõe à uma análise das
trajetórias de estudantes negros, assumimos o desafio de relacionar os
estudos sobre trajetórias singulares produzidos pelo campo da Sociologia da
Educação com o arcabouço teórico e metodológico do campo das Relações
Raciais. Partimos da ideia de que a categoria “camadas populares” não pode
ser homogeneizada, sob o risco de invisibilizarmos as questões referentes à
população negra, que vivencia cotidianamente o racismo e a discriminação
racial disseminados na sociedade brasileira.
25 Assim como aponta Piotto (2008), entendemos trajetórias escolares bem sucedidas como
a permanência no sistema escolar até o ensino superior.
96
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
97
Nesse sentido, este estudo ouviu, de maneira cuidadosa, os
sujeitos investigados a fim de analisar os variados fatores e instâncias
sociais que influenciaram suas trajetórias escolares. Nos últimos anos,
presenciamos uma mudança nas análises sociológicas que voltaram sua
atenção para os processos sociais vividos na família, nas escolas, na relação
família-escola, movimentos sociais, entre outros temas. Nesse contexto,
as análises microssociológicas com abordagens qualitativas ganharam
relevância (ZAGO, 2004).
Os indivíduos constituem suas trajetórias em um contexto
social complexo, no qual a realidade objetiva não é suficiente para explicar
seus destinos escolares. Os valores, sentimentos e as formas de agir dos
indivíduos são mediadas pelo campo das subjetividades. Sendo assim, a
abordagem qualitativa é relevante para a compreensão de casos singulares
de trajetórias escolares.
O método utilizado nesse estudo embasou-se na construção
de perfis de configurações sociais26 para compreender como os estudantes
investigados, mesmo com as disparidades raciais que marcam a sociedade
brasileira, em particular o acesso à pós-graduação, conseguiram ingressar
em programas de pós-graduação. A partir de suas narrativas, buscamos
construir e apreender as experiências que marcaram suas vivências em
diferentes instâncias sociais e resultaram em disposições que contribuíram
nessa caminhada.
De acordo com a abordagem metodológica de Lahire, as realidades
individuais não podem ser reduzidas a manifestações generalizantes em
uma escala macrossociológica. Como aponta Nogueira (2013, p. 5) em seu
artigo sobre as contribuições de Lahire para a Sociologia:
98
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
27 Cabe destacar que Lahire construiu os perfis a partir da noção de configuração social
elaborada por Elias (1994).
99
“a noção de configuração social tornou-se um modelo de
inteligibilidade do social de grande auxílio para a compreensão
conjunta, relacional e interdependente das diferentes instâncias
de construção social, favorecendo a consideração dos aspectos
objetivos e subjetivos da realidade social e da forma como eles se
interpenetram e se codeterminam.
100
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
101
O problema apontado pelo autor é que os estudos sociológicos,
ao definir categorias coletivas de análise, simplificam a realidade e se
distanciam das realidades individuais concretas, dando ênfase a pesquisas
que se caracterizam por apresentar comportamentos homogêneos entre
indivíduos de uma dada categoria social. A realidade individual só pode ser
compreendida se levarmos em consideração que as pessoas constituem teias
de interdependência ou configurações sociais de diferentes tipos, tais como
família, escola, trabalho, camadas sociais. Nessa perspectiva, é necessário
compreender que é a partir dos processos sociais e dessa rede de interações
interdependentes que os indivíduos se constituem (ELIAS, 1980).
No caso da proposta de pesquisa em discussão, para compreender
as trajetórias escolares de estudantes negros que chegaram à pós-graduação,
faz-se necessário deslocarmos nosso olhar para suas configurações
familiares. Observar as experiências socializadoras vivenciadas por esses
indivíduos e os laços de interdependência que foram se constituindo ao
longo de suas trajetórias de vida nas diversas instâncias sociais em que
estiveram inseridos, possibilitará entender as disposições e estratégias
utilizadas por esses estudantes para chegarem à pós-graduação.
102
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
103
Para avançarmos nesse debate, torna-se relevante desnaturalizar
a visão de que a desigualdade racial seria um subproduto da desigualdade
socioeconômica. Nesse sentido, é necessário entender as dimensões e as
particularidades das desigualdades raciais brasileiras, evidenciando os seus
mecanismos de reprodução e reconfiguração.
28 Fonseca (2007a) demonstra em sua pesquisa que já nos primeiros estágios do processo de
colonização, havia mobilização entre os negros para obter acesso à educação.
104
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
105
como aluno sempre estudou com professores brancos. [...] Como
consequência desse confinamento, em algumas faculdades mais
fechadas e elitizadas, é perfeitamente possível que um docente e
pesquisador desenvolva por décadas o seu trabalho acadêmico sem
conviver jamais com um estudante negro ou com um único docente
negro; quando muito, conviverá com alguns docentes negros, com
os quais estabelece relações de pouca ou nenhuma identificação.
106
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
107
Em termos raciais, o sistema de pós-graduação tem sido ainda mais
perverso. Os dados raciais revelam a baixa participação de estudantes negros
no universo da pesquisa29. Tendo em vista que esse nível de ensino possui
amplo reconhecimento na sociedade, e considerando que a população negra,
em termos quantitativos, é a maior do país, é relevante problematizarmos o
“por quê?” dessa situação.
Considerando a pós-graduação, os dados do IBGE (2010)
indicam que 74,6% dos estudantes eram brancos, enquanto 25,4% eram
negros. A análise por renda dos estudantes de pós-graduação indica um
abismo entre brancos e negros. Enquanto 44,2% dos homens negros e
45,2% das mulheres negras concentram-se na faixa mais baixa da renda
(até salário mínimo), homens brancos e mulheres brancas se distribuem
de maneira equilibrada, aproximadamente 25% para cada grupo. Esses
dados demonstram como o fator racial opera na estrutura social, sendo
dispositivo de ascensão social ou não.
Para corrigir as desigualdades raciais na pós-graduação, algumas
iniciativas foram tomadas nos últimos anos. Caso pioneiro na implantação de
políticas de ação afirmativa nesse nível de ensino foi o Programa Internacional
de Bolsas da Fundação Ford (IFP), que concedeu bolsas de estudos, entre os
anos de 2002 e 2010, em cursos de pós-graduação strictu sensu para estudantes
brasileiros oriundos de grupos sub-representados nesse nível de ensino.
108
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
109
Referências Bibliográficas
110
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
111
VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas
populares: algumas condições de possibilidade. Tese. (Doutorado em
Educação). Universidade Federal de Minas Gerais, 1998.
112
PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS,
CLASSIFICAÇÃO E IDENTIDADE
RACIAL: limites e possibilidades
115
A partir do entendimento que só seria possível compreender os
processos de construção da identidade racial desses docentes por um estudo
qualitativo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 5 (cinco)
docentes autodeclarados pretos e pardos, sendo 4 (quatro) homens e 1 (uma)
mulher: Pedro (45 anos, Geografia); Carlos (41 anos, Letras); Alex (49 anos,
Arquitetura e Urbanismo); Cristiano (39 anos, Geografia) e Simone (idade
não declarada, Medicina).33 Ao selecionar os sujeitos de acordo com a forma
como se auto-identificavam mediante as categorias de raça/cor do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística e, posteriormente, na realização das
entrevistas, a pesquisa lidou o tempo todo com as interpretações sobre raça,
classificação de cor e construção de identidade racial. É exatamente essa
complexa articulação que o presente artigo pretende discutir.
últimos vestibulares (2004, 2005, 2006 e 2007) por acreditar que essa variável expressa, em
alguma medida, o valor social atribuído aos cursos.
33 Os nomes dos docentes entrevistados nesse trabalho são fictícios, de acordo com as normas
éticas da pesquisa científica.
116
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
117
No recenseamento seguinte, de 1890, o termo “pardo” foi
substituído por “mestiço”. Uma possível explicação para essa modificação,
segundo Renísia Garcia (2007), poderia apontar para uma crescente
diferenciação que se estabelecia no período pós-abolicionista entre os libertos
e os nascidos livres, que seriam os “verdadeiros” cidadãos brasileiros. Nas
relações costumeiras, o ex-escravo recém-liberto era tratado como preto ou
negro. Os mestiços ou pardos eram os nascidos livres, posição cada vez mais
associada aos brancos. A autora considera que a autoidentificação como
mestiço ou pardo, e não mais como negro ou preto, poderia ser entendida
como uma forma encontrada pelos libertos para afirmarem a experiência
de liberdade. Os Censos que se seguiram não incorporaram a variável raça.
Segundo José Luís Petruccelli (2007), nesse período surgem dúvidas quanto
à validez das informações coletadas, principalmente no que diz respeito
à população mestiça. O quesito “cor” volta a ser pesquisado no Censo de
1940, sendo a classificação referida a brancos, pretos e amarelos para
incluir os imigrantes asiáticos e seus descendentes. Um quarto grupo, sob
a denominação de pardos, seria formado para os que não se enquadrassem
nas categorias apresentadas, englobando, assim, diversas respostas e
variados significados.
Nos Censos de 1950 e 1960, a categoria “pardo” é reincorporada
como uma das opções de resposta, juntamente com as outras três. Desde
então, a única alteração no sistema classificatório, não incorporado na
década de 1970, foi o acréscimo da categoria “indígena” no Censo de
1991. Modifica-se, também, o quesito na sua formulação ao incorporar
explicitamente o termo raça, consolidando as cinco categorias em uso nos dias
atuais. (PETRUCCELLI, 2007). Outras pesquisas que utilizaram a categoria
“cor” foram a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1976
e a Pesquisa Mensal de Emprego de 1998. Em ambos os levantamentos
foram incluídas perguntas subjetivas, de resposta espontânea, e objetivas,
apresentando uma pré-codificação. Os dados fornecidos apontam para uma
multiplicidade de termos que, na verdade, geraram o debate sobre a validade
do sistema classificatório de cor no Brasil.
118
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
119
Eu sou negro. Eu me considero negro. Agora por outro lado também,
eu sei de outras pessoas que preferem ser consideradas pardas do
que negras, porque acham que o negro é pejorativo. (Carlos)
120
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
121
minha mãe falava beiço grande, o meu cabelo é crespo, o meu nariz
não é o formato... (Carlos)
122
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
123
e voluntarioso. Ao contrário, sua lógica fala de representações internalizadas
e valorações culturais de longa data.” (SCHWARCZ, 2000, 125). Estamos
diante de uma relação complexa entre diferentes processos identitários.
Os discursos sobre as representações do conceito de identidade parecem
concordar com essa perspectiva.
124
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
125
lugar do “pardo” nessa pesquisa, e como ele pode expressar um lugar de
mestiçagem, nos reportamos a alguns depoimentos.
126
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
127
o que demonstra que elas “não operam no vácuo, mas sim a partir de
premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos.”
(VELHO, 1994, 46). A ambiguidade tem sido um traço marcante de nossa
classificação racial. No entanto, segundo Valter Silvério essa fluidez
É claro isso, a gente vê que para ter preconceito a gente não tem
nenhuma dificuldade de identificar quem é negro. Ninguém tem
dúvida não é? De longe na rua, você sabe quem é negro e quem
não é. (Alex)
No meu registro está pardo, eu não sei porque que está pardo. É
uma categoria que eu acho estranho, o quê que é pardo? Eu me sinto
negro, se me perguntar eu sou negro. (Carlos)
128
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
129
tem sido orientadora a partir de sua ação como homem negro no mundo.
Ou seja, apesar da ambiguidade ser um traço marcante da classificação
racial brasileira, há uma parcela da população brasileira que, diante da
permanente “racialização” do cotidiano tem assumido sua identidade negra
de forma não ambígua e contrastante em relação ao seu outro, o branco.
Essa assunção não ambígua, é, aparentemente, desveladora da trama do
nosso universo de classificações que tem permitido, por meio do uso e abuso
da multipolaridade, a subordinação funcional dos não-brancos (SILVÉRIO,
2002, 224 e 225).
130
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
Considerações Finais
A literatura sociológica e antropológica aponta que a mestiçagem e
a ideologia do branqueamento tiveram fortes implicações no conceito de raça
no Brasil. Diante da realidade de miscigenação racial, como afirma Edward
Telles (2003), tornou-se desnecessária a regulamentação de regras formais
de classificação racial. Segundo o autor, como resultado, a classificação
racial no Brasil tornou-se mais complexa, ambígua e mais fluida. Esse
processo está intimamente relacionado à construção das identidades raciais
– dentre elas a identidade negra e mestiça - e à forma como as diferenças
são vistas e interpretadas na cultura. Nessa perspectiva, é preciso considerar
que as identidades raciais são construídas a partir de um complexo jogo
de semelhanças e diferenças, de aproximações e distanciamentos, sempre
levando em conta as diferentes maneiras como essa diversidade é tratada
pela sociedade (GOMES, 2006).
No que diz respeito à classificação racial, apesar de identificarem
um lugar social distinto para o “pardo”, esses sujeitos expressam um “campo
de possibilidades” no qual as escolhas que envolvem tal construção não são
totalmente abertas, pois transitam dentro de um certo limite. Por mais
amplo, ambíguo e abrangente que possa ser o sistema de classificação racial
brasileiro cada indivíduo guarda em si, baseado em suas características
físicas, um campo de possibilidades que serve de referência para a
construção de sua identidade racial. Fica evidente nas trajetórias desses
professores que esse campo de possibilidades não é o mesmo para todos os
sujeitos. Ele se apresenta de forma mais ampliada para os “pardos”, ou seja,
para os mestiços que possuem características fenotípicas tanto de negros
quanto de brancos. No entanto, em alguns depoimentos percebe-se que
a despolarização da classificação racial entre brancos e negros é somente
virtual, pois, na prática cotidiana, é pela parcela de suas características
negras que os mestiços são discriminados. Diante desse processo complexo
de construção das identidades raciais é imprescindível pensar em que
medida essas discussões têm sido contempladas pelo atual sistema de
classificação de cor oficial brasileiro, embora saibamos que qualquer forma
de classificação é arbitrária e não consegue abarcar a complexidade das
relações sociais.
131
Não é nossa intenção apresentar respostas para as questões
formuladas. Muito menos pretendemos esgotar um tema tão complexo
nesse artigo. No entanto, ao longo da pesquisa e ao analisar as entrevistas
foi possível perceber as nuances, os conflitos e os dilemas vividos por esses
sujeitos no contexto das relações raciais em que estão inseridos. Conforme
dito anteriormente, existem argumentos sociológicos, estatísticos e políticos
para agregarmos as categorias “pretos” e “pardos” e entendermos os sujeitos
que delas fazem parte como “negros”. No entanto, se do ponto de vista teórico
essa relação é possível, do ponto de vista identitário, no que se refere à forma
como esses sujeitos se veem, não é tão simples assim. Estamos imersos em
questões que se referem à construção da identidade racial e da identidade
negra, à mestiçagem e ao contexto das classificações raciais.
132
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
Referências Bibliográficas
LABORNE, A. A. P. Por essa porta estar fechada, outras tiveram que se abrir:
identidade racial e trajetórias de docentes da UFMG. PPGE – FAE/UFMG).
UFMG, 2008.
133
OSÓRIO, R. O sistema classificatório de “Cor ou Raça” do IBGE. Brasília:
IPEA, 2003.
SILVÉRIO, V. Sons negros com ruídos brancos. In: Racismo no Brasil. São
Paulo: Peirópolis; ABONG, 2002.
134
DESIGUALDADES REGIONAIS,
TRABALHO E EDUCAÇÃO NA
IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR QUILOMBOLA35
137
O objetivo desse artigo é refletir sobre a configuração do mundo
do trabalho na Comunidade Quilombola da Vila de Santo Isidoro, município
de Berilo, na região do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, destacando
as oportunidades de inserção ocupacional de jovens habitantes dessa
comunidade, de modo a derivar dessa análise questões que incidem sobre
a implementação da modalidade da Educação Escolar Quilombola nessa
comunidade, conforme determinado pela Resolução 08/2012, da Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação.
Num primeiro momento, o texto da Resolução será analisado
a partir da relação nele estabelecida entre as dimensões do trabalho e da
educação escolar quilombola. Em seguida, tendo em vista um conjunto
de evidências coletadas a partir do trabalho de campo da pesquisa sobre
educação escolar quilombola em Minas Gerais35, será apresentado um
quadro dos desafios presentes na dinâmica desse território quilombola
de modo a considerar a sistemática migração sazonal da população jovem
em busca de oportunidades de trabalho em regiões canavieiras e cafeeiras
do Sudeste e Centro-Oeste do País. A título de conclusão, serão tecidas
considerações sobre a necessidade de inserir a Educação Escolar Quilombola
num quadro mais amplo em que a questão do modelo de desenvolvimento
das comunidades quilombolas seja capaz de se articular a outros princípios
que norteiam a implementação dessa modalidade da educação básica.
138
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
139
as formas de organização e funcionamento da escola quilombola, fazia-se
necessário incorporar no texto questões que aludissem à dinâmica do mundo
do trabalho como parte fundamental do processo de reprodução da vida.
Em conformidade com o preceito constitucional e à Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional, a Resolução da Educação Escolar Quilombola
reconhece, como parte integrante de seus princípios, “o trabalho como
princípio educativo das ações didático-pedagógicas da escola” (Art. 7º, Inciso
XVIII), bem como o “direito dos estudantes, dos profissionais da educação
e da comunidade de se apropriarem dos conhecimentos tradicionais e das
formas de produção das comunidades quilombolas de modo a contribuir para
o reconhecimento, valorização e continuidade” (Art. 7º, Inciso XVII). Esse
reconhecimento, no entanto, no texto da Resolução, aponta para a necessidade
de promover a adequação da educação escolar quilombola com um modelo de
desenvolvimento compatível com as características dessas comunidades, de
modo a expressar o conjunto de valores presentes nas formas de sociabilidade
historicamente constituídas nas relações estabelecidas com o território. Essa
prerrogativa apresenta-se no texto a partir do princípio que reconhece o
140
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
No Ensino Médio:
141
Complementa esse artigo de caracterização da EJA na modalidade
da Educação Escolar Quilombola uma referência à Educação Profissional que
é importante ser destacada:
142
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
143
de 2010, a cidade de Berilo tem uma população de 12.300 (doze mil e
trezentos) habitantes numa área de 587 km². Na década anterior, o Censo de
1991 havia contabilizado uma população de 17.745 (dezessete mil, setecentos
e quarenta e cinco) habitantes. A comparação dos dados apurados pelos
Censos revela que no intervalo de uma década o município de Berilo teve
sua população reduzida em aproximadamente 30% (trinta por cento)36.
De acordo com dados reunidos sobre comunidades quilombolas
em Minas Gerais pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
(Cedefes), “há aproximadamente 80 (oitenta) famílias residindo na
Comunidade Quilombola da Vila de Santo Isidoro, que possui escola de
ensino fundamental e médio, energia elétrica, telefone público e uma casa
de farinha37”. Além dessas informações, a partir do trabalho de campo da
pesquisa, pode-se perceber que o território quilombola em questão recebe
sinal de operadora de telefonia celular (Oi), além de quase totalidade de suas
residências receberem sinal de televisão via antena parabólica38.
Situada na região do Médio Jequitinhonha, a cidade de Berilo
enfrenta os desafios postos aos outros municípios que compõem a
região dadas as características climáticas, ocasionando baixos índices
pluviométricos durante o ano, e a concentração da propriedade fundiária,
repercutindo em oportunidades ocupacionais limitadas, principalmente
38 Para os propósitos dessa reflexão, é importante destacar que o sinal captado pelas antenas
parabólicas instaladas nas residências dá acesso às programações que veiculam conteúdos do
estado de São Paulo, de modo que as referências em relação a preferências dos jovens quanto
a clubes de futebol, por exemplo, sistematicamente fazem alusão a clubes paulistas.
144
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
39 Esse Plano foi realizado pelo Colegiado Territorial no período de setembro de 2009 a agosto
de 2010, viabilizado pelo Contrato de repasse (266.654-25/2008) entre a Articulação para
Transformações e Aprendizagens Apta (MG) e a Secretaria do Desenvolvimento Territorial do
Ministério do Desenvolvimento Agrário. O Plano do Médio Jequitinhonha é um dos quatro
Planos qualificados em Minas Gerais no ano de 2010, sendo os outros três o Noroeste de
Minas, Serra Geral e Vale do Mucuri.
145
Eu acho muito importante a presença da banda na comunidade
quilombola, sabe por quê? Porque até a organização, a disciplina, o
aprendizado, tudo isso faz parte desse trabalho realizado pela banda.
Tem a questão sentimental, a sensibilidade. A música, vocês sabem,
é tudo isso. Eu acho muito importante... é um ganho para nós da
escola a presença dessa banda. Eu me emociono quando vejo esses
meninos tocando porque todo mundo passou pelas minhas mãos
como aluno, como o Idelfonso40, o maestro. Eu me emocionei por
isso... (Diretora – julho de 2012)
40 Idelfonso Alves dos Reis, regente da Banda Filarmônica, ocupa o cargo de Auxiliar de
Serviços Gerais na escola. Após a realização de suas atividades cotidianas no exercício
desse cargo, ele, então, dispõe de seu tempo livre para ministrar aulas teóricas de música
e orientar os integrantes da banda na execução de seus instrumentos. Além disso, com
formação autodidata na área de música, tornou-se responsável pela maioria dos arranjos
executados pela Banda.
146
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
montar um alambique, uma coisa maior, mas como é que ele tem
que fazer para juntar, ele tem que sair daqui, trabalhar lá fora pra
juntar um dinheirinho pra ver se consegue aumentar isso aí... se
eu ficar só naquilo ali, pra subsistência, não dá. Às vezes quer fazer
uma casa, uma coisa maior... não consegue (Liderança Quilombola
– julho de 2012).
147
a comunidade uma situação que desafia a construção de alternativas de
trabalho e sobrevivência dignas no território quilombola. A migração para
áreas de cultivo da cana é agenciada por uma série de intermediários das
usinas processadoras da cana-de-açúcar que, a partir de um perfil de tra-
balhadores previamente construído, encontra na comunidade quilombola
espaço fértil para o recrutamento de trabalhadores temporários.
De acordo com Novaes (2007, p. 169), “a expansão da agroindústria
canavieira está relacionada com as boas perspectivas do mercado
internacional do álcool, como alternativa de energia renovável e menos
poluidora que o petróleo”. Essa expansão, entretanto, tem contribuído para
aprofundar a dualidade do mercado de trabalho no setor, fazendo coexistir,
às vezes num mesmo empreendimento agrícola, dois sistemas de corte nos
canaviais: o sistema de corte manual, caracterizado pela intensificação do
trabalho manual, e o sistema mecanizado, que no quadro de modernização
tecnológica é caracterizado pelo uso de equipamentos nessa fase do ciclo de
produção. Ainda de acordo com o autor,
148
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
149
pela ausência de estratégia endógenas de desenvolvimento – das condições
de trabalho que remontam ao passado colonial e escravista. A constatação
de que o desequilíbrio econômico entre as regiões do país apresenta-se
como um fator a impulsionar as migrações sazonais necessita ser melhor
qualificada para que se torne possível a indagação acerca das pretensões
manifestas pela Resolução da Educação Escolar Quilombola quando busca
articular trabalho e educação. No próximo tópico, a título de conclusão, serão
apresentadas algumas considerações sobre as perspectivas da Educação
Escolar Quilombola no contexto caracterizado pelo avanço das lutas
sociais em prol do reconhecimento do direito à diferença num quadro de
desequilíbrio regional.
Considerações finais
150
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
151
Referências Bibliográficas
152
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
153
TENSÕES, INTENÇÕES,
DESAFIOS E POSSIBILIDADES
NA FORMAÇÃO DE DOCENTES
DA EDUCAÇÃO BÁSICA DAS
COMUNIDADES REMANESCENTES
DE QUILOMBO EM MINAS GERAIS
155
de 1988. A carta magna da Nação, no seu art. 2015, define a valorização
da cultura afro-brasileira; no art. 216, explicita os grupos formadores da
sociedade brasileira e define a proteção e o tombamento das reminiscências
históricas dos antigos quilombos; no art. 68 das Disposições Transitórias,
garante o direito da posse de terra aos remanescentes de quilombo.
Em síntese, pode-se dizer que os movimentos negros e quilombolas
configuram como partes de um mesmo contexto de lutas pela visibilidade
de suas demandas, inclusive jurídicas, por educação, reconhecimento,
redistribuição e representação, como uma das estratégias para a denúncia e
enfrentamento do racismo, da desigualdade vigente na sociedade brasileira,
a partir de então.
Nesse cenário é que em 2012 foram homologadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Resolução
CNE/ CEB Nº 8/2012), reiterando o reconhecimento desse grupo no
processo civilizatório nacional, estilhaçando um ideal de nação até então
vigente na sociedade brasileira.
Não obstante a lenta efetivação dos direitos sociais conquistados
e suas frequentes ameaças de perdas ou reduções, a avaliação do alcance
das lutas empreendidas pelo movimento negro não deve ser visto de
forma reducionista, restrita ao atendimento de demandas específicas
e reivindicações (MIRANDA,2011). É preciso levar em consideração os
discursos e as práticas, até certo ponto, desestabilizados. É nesse cenário
que se deve refletir sobre o reconhecimento de direitos das comunidades
remanescentes de quilombos e a implementação de políticas concernentes
a esses direitos.
Portanto, a implantação da modalidade de educação quilombola
insere-se, então, em um conjunto mais amplo de desestabilização de
estigmas que definiram, ao longo de nossa história, a inserção subalterna e
paradoxal da população negra na sociedade brasileira e no sistema escolar.
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O processo de instituição da modalidade
educação escolar quilombola no Brasil
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
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apenas 14 escolas assim declaradas e Virgem da Lapa, com 11 comunidades
certificadas e apenas 03 declaradas. Há ainda casos, como em Diamantina
e Monte Azul, em que ocorre o inverso. Em Diamantina e Monte Azul
registram-se 03 comunidades quilombolas certificadas e 04 escolas
registradas como situadas em áreas de remanescentes de quilombos. Essa
disparidade é um dado relevante que merece ser investigado com cuidado e
um indicador importante que aponta para a necessidade de investimentos
do poder público, tanto local, quanto federal. Ressaltamos que, no caso
da formação docente, o público alvo constitui-se das escolas situadas em
comunidades quilombolas certificadas e aquelas que atendam estudantes
oriundos das comunidades certificadas.
Outro elemento importante a ser observado nesses quadros
relaciona-se à dispersão das comunidades quilombolas pelo estado de Minas
Gerais. Como já foi observado, há uma concentração no Norte de Minas,
seguido do Vale do Jequitinhonha, Noroeste Mineiro e Vale do Rio Doce.
Segundo (MIRANDA, 2012) em suas pesquisas, estudos e análises
sobre a Educação Escolar Quilombola em Minas Gerais está cada vez mais
evidente que a educação escolar destinada à população remanescente de
quilombos, de modo geral, e em Minas Gerais, em particular, encontra-se,
ainda, em situação incipiente e adversa, marcada pela ine¬xistência ou
poucas escolas localizadas nas comunidades ou pelo funcionamento precário
das escolas existentes.
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comunidades quilombolas ou que atendessem estudantes oriundos dessas
comunidades. O curso teve como elementos norteadores a Lei 10.639/03, as
Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Quilombola e os resultados
obtidos a partir da pesquisa “Educação Quilombola em Minas Gerais: entre
ausências e emergências45”. Uma vez que nessa pesquisa foram identificados,
além do quadro de precariedade dessas escolas em Minas Gerais, o
distanciamento entre os conteúdos escolares e os saberes, as referências
históricas e culturais das comunidades quilombolas e o tratamento ainda
marcado por preconceitos e estereótipos destinado aos estudantes e seus
familiares, deixou evidente a urgência dessa formação de professores.
A partir dessas evidências o objetivo geral do Curso assentou-se
na proposta de instaurar um processo de formação de profissionais da
educação que atuam em escolas quilombolas ou em escolas que atendem
ao público dessas comunidades para o conhecimento e/ou a compreensão
sobre o arcabouço da Educação Escolar Quilombola, amparado pelas
Diretrizes Curriculares, levando em consideração os conhecimentos e
saberes tradicionais formalizados nas comunidades quilombolas e os
conhecimentos científicos; os elementos da cultura manifestos nas práticas
tradicionais, nas formas de oralidade nos eventos de memória; os aportes
do etnodesenvolvimento e das lutas pela terra; e as dinâmicas do território,
entendido como base do trabalho, das trocas materiais, simbólicas e
espirituais da identidade.
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
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quilombolas e a importância de que esse público acesse uma formação
mais precisa e consistente para lidar com a temática, foram pensadas algu-
mas estratégias que envolvessem também os/as gestores com as questões
de viabilização e realização do curso, como por exemplo, identificação de
escolas; de professores, transporte dos cursistas para cidades-polo, apoio
logístico, dentre outras.
No que se refere ao desenho e estratégias metodológicas do curso,
foram propostos, inicialmente, como componentes curriculares: elaboração
e desenvolvimento de planos de ação pedagógica; incursões de pesquisa
a museus e outros espaços de memória e a territórios quilombolas e as
disciplinas: Políticas Sociais e Direitos Quilombolas; Práticas Pedagógicas
para a Educação Escolar Quilombola; Cultura, Memória e espaços Formativos;
Oralidade, Conhecimentos Quilombolas - contribuições para a Sociedade e
Território e Identidade Quilombola, distribuídas em 210 horas de curso.
No entanto, no processo de formação com a primeira turma, em
uma avaliação das primeiras oficinas, ficou evidenciado que deveríamos
fazer uma inflexão do ponto de vista metodológico/pedagógico e prover
a alteração no traçado metodológico do Curso, qual seja, transformar as
disciplinas em eixos norteadores com as questões de fundo que foram
emergindo a partir das narrativas dos sujeitos. Desse modo, as disciplinas
descritas passaram a compor os eixos norteadores: Memória, identidades,
território, cultura, oralidade e direitos.
Trabalhar esses eixos na formação dos professores exigiu, tanto
dos formadores quanto dos cursistas, um esforço reflexivo e uma atitude
mobilizadora, tanto do ponto de vista pedagógico quanto epistemológico,
amparados teoricamente pelo texto das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Escolar Quilombola.
O caráter inovador da experiência e do método foi criar dinâmicas
que tinham como pressuposto básico privilegiar a escuta, as experiências e
produção de sentido e significado diante do próprio conhecimento e saberes
acumulados, seja pelos cursistas e lideranças quilombolas, seja pela equipe
de formadores. Foram criadas condições e espaços de aprendizados, de modo
a conseguir efetivar a proposta pedagógica de potencializar o diálogo entre
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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades
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então não haviam sido identificados como tal. Espaços como o cruzeiro, as
mangueiras centenárias, a capela, a lagoa, a farinheira, a escola, as casas, etc.,
foram reconhecidos como sendo importantes para a construção e manutenção
de uma identidade quilombola ancorada, agora, sob um território”.
O trabalho com mapas mentais, segundo nossas formadoras,
revelou-se eficaz para trabalhar a noção de território, uma vez que foi identificado
que, para a maior parte dos cursistas, o termo território se apresentava de
maneira ainda bastante incipiente, tanto em suas práticas pedagógicas quanto
em sua potencialidade no contexto quilombola. Diante disso, foram instigadas
a construir estratégias de abordagem metodológica de maneira articulada com
os lugares de memória, de espaço formativo, no qual estavam inseridos.
Nesse contexto de aprendizagens mútuas, constituiu um desafio a
elaboração de estratégias de avaliação de aprendizagem que pudesse traduzir
e evidenciar as trocas de saberes, reflexões e conhecimentos proporcionados
pelo curso, conjugado com a realidade de cada comunidade e da escola. A
partir de discussões em equipe foi pensada a construção de um Plano de Ação
pelos cursistas, que pudesse ser implementado em suas respectivas escolas, a
ser apresentado no encerramento do Curso. Esse Plano de Ação deveria, entre
outras questões, levar em consideração o contexto, a realidade social, história
de cada comunidade onde a escola estava inserida.
Segundo Cláudia Elizabeth e Evely Aquino, formadoras encar-regadas
de mediar e dar suporte para a confecção dos planos de ação, uma questão que
merece destaque refere-se às contribuições do curso para o desenvolvimento de
uma “atitude indagativa” dos cursistas, uma atitude que se revelou relevante no
momento de elaboração dos planos de ação. Para além da questão da avaliação
da aprendizagem, o plano de ação, também, foi pensado como estratégia de
continuidade de estudos, da organização das atividades e práticas pedagógicas
dos docentes nas escolas onde atuam, na perspectiva de que contribuam
para implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Quilombola e da Lei 10.639/03, uma vez que a duração do curso, modalidade
Aperfeiçoamento, não permite o aprofundamento de todas as questões que
os cursistas/professores carregam consigo.
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discussão sobre territorialidade, inclusive do ponto de vista simbólico; de
acessar as novas produções historiográficas do campo e em lidarem com
aspectos da cultura e identidade quilombola.
Durante a realização do curso e no diálogo permanente com os
docentes e lideranças quilombolas participantes, constatamos que a ausência
dessas reflexões nos cursos para formação inicial da docência (licenciaturas)
reitera as dificuldades das/os professoras/es para refletirem e trabalharem
com essa temática no cotidiano escolar.
Detectamos, por meio de pesquisas, levantamento, consulta de dados
e mesmo durante o período da formação docente, que vários municípios
não declaram a existência de unidades escolares situadas em comunidades
remanescentes de quilombos.46 Isso implica que a verba diferenciada para
a manutenção dessas escolas e atendimento digno a esses estudantes não é
acessada. Houve casos de municípios que perderam a chance de acessar recurso
federal para reformar ou construir escolas por ausência dessa declaração.
Nesse sentido ainda há outra questão a ser considerada, que é
o cadastramento das escolas quilombolas no censo escolar para acesso a
programas e recursos específicos, sobretudo aqueles destinados para a ali-
mentação escolar, e que depende de uma ação atenta e eficaz dos gestores
educacionais, o que via de regra não ocorre. Foi identificada, também, uma
série de processos, ainda ignorados por gestores de educação, tais como a
garantia de prioridade de atuação de pessoas das próprias comunidades nos
cargos disponíveis nas escolas – reservadas as exigências contratuais. Tem sido
constante a desconsideração da Lei 12. 960, que altera a LDBEN e determina
critérios que condicionam o fechamento de escolas do campo, indígenas e
quilombolas à manifestação dos Conselhos de Educação e das comunidades.
Há resistências e dificuldades de alguns profissionais, especial-
mente gestores, que têm de reconhecer a importância das comunidades e a
potencialidade de seus conhecimentos e saberes.
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Referências Bibliográficas
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Este livro foi elaborado no âmbito de projeto da Editora UEMG, publicado no edital nº
002/2017, no Laboratório de Design Gráfico da Escola de Design da UEMG.
O texto foi composto em Scala. A capa, aberturas de capítulo e ficha técnica foram compostas
em Lato e Adam.CG Pro.
A capa foi impressa em papel couchê fosco 300 g/m². O miolo foi impresso em papel offset
120 g/m². Sua impressão foi feita na Gráfica CS, em Presidente Prudente, SP, no ano de 2017.
Tiragem de 300 cópias.