Educaão e Relações Étnico Raciais Livro

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EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:

DESAFIOS, LIMITES E POSSIBILIDADES


UNIVERSIDADE DO ESTADODE MINAS GERAIS
Reitor: Djon Moraes Júnior
Vice-reitor: José Eustáquio de Brito
Chefe de Gabinete: Eduardo Andrade Santa Cecília
Pró-reitos de Planejamento, Gestão e Finanças: Adailton Vieira Pereira
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-graduação: Terezinha Abreu Gontijo
Pró-reitora de Ensino: Elizabeth Dias Munaier Lages
Pró-reitora de Extensão: Giselle Hissa Safar

EdUEMG - Editora da Universidade do Estado de Minas Gerais


Rod. Papa João Paulo II, 4143 - Serra Verde, BHte - MG CEP: 31630-902
Ed. Minas - 8° andar Tel (31)3916-9080 [email protected]

Daniele Alves Ribeiro


Leandro Andrade
Thales Rodrigues dos Santos (estagiário)

Conselho Editorial
Dr. Djon Moraes Júnior
Drª. Flaviane de Magalhães Barros
Dr. Fuad Kyrillos Neto
Drª. Helena Lopes da Silva
Dr. José Eustáquio de Brito
Dr. José Márcio Pinto de Barros
Drª. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova

Expediente
Design
Laboratório de Design Gráfico/Escola de Design - UEMG
Coordenação
Mariana Misk
Orientação do projeto
Iara Mol, Maiana Misk, Simone Souza
Aluno Responsável
Fernanda Torga
Revisão
Raquel Rezende
EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
DESAFIOS, LIMITES E POSSIBILIDADES

Organizadoras
Santuza Amorim da Silva e Vanda Lúcia Praxedes

Belo Horizonte, 2017


SUMÁRIO

9 Prefácio
Paulo Vinícius Baptista da Silva

15 Apresentação
Santuza Amorim da Silva
Vanda Lúcia Praxedes

20 Relações Étnico-raciais e Educação


Infantil: Cenas do Cotidiano Escolar
Lucineide Nunes Soares
Santuza Amorim da Silva

37 Práticas Pedagógicas Na Educação


Infantil: Experiências Docentes com a
Temática Étnico-racial
Cláudia Elisabeth dos Santos
José Eustáquio de Brito

56 Traduçao E Interpretação da Educação para as


Relações Raciais em Prática Pedagógicas
do Corpo Docente Em Uma UMEI/BH
Regina Márcia P. Oliveira
76 Acesso e Permanência na Pós-graduação
Brasileira: a experiência de bolsistas do PIB
da Fundação Ford
Márcia Basília de Araújo

93 Acesso da População Negra aos Cursos


de Pós-graduação: Uma Reflexão a Partir
de apontamentos teóricos metodológicos
Fábio Leão
Santuza Amorim da Silva

113 Professores Universitários, Classificação


e Identidade Racial: Limites e Possibilidades
Ana Amélia Laborne
Nilma Lino Gomes

135 Desigualdades Regionais, Trabalho e


Educação na Implementação da Educação
Escolar Quilombola
José Eustáquio de Brito

154 Tensões, Intenções, Desafios e


Possibilidades na Formação de Docentes
da Educação Básica das Comunidades
Remanescentes de Quilombo em Minas Gerais
Vanda Lúcia Praxedes
Silvia Miranda
PREFÁCIO
No meu dia-a-dia, assim como no de muitos negros brasileiros, entremeiam-se as
atividades profissionais com as de militância contra o racismo e discriminações,
por uma sociedade justa para todos. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva1

Escrevo estas linhas de apresentação com alegria e orgulho de fazer


parte de um processo coletivo de elaboração acadêmica entrelaçada com a
luta antirracista e de acompanhar e participar de atividades de intercâmbio
e pesquisas com pesquisadoras/es do programa de pós-graduação da
UEMG. A obra é um bom exemplo do empreendimento que vem sendo
operado por intelectuais dos grupos de pesquisa e núcleos de estudos afro-
brasileiros no campo acadêmico do país. Como situada na apresentação,
a coletânea reúne resultados de pesquisas do programa de pós-graduação
em educação da UEMG sobre educação e relações étnico-raciais (articulados
com pesquisadoras/es da UFMG). Este campo de estudo, que era mínimo na

1 SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Entre Brasil e África: construindo conhecimento


e militância. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.
pesquisa brasileira em educação dos anos 1980, apresenta um crescimento
importante nos últimos 15 anos. O longo trâmite de aprovação de normativa
no âmbito federal tem similaridades com o processo na pesquisa: foram
20 anos entre a primeira apresentação em um projeto de lei para a Câmara
Federal, em 1983, pelo então Deputado Abdias Nascimento, e a aprovação
da Lei 10.639 em 2003 (que alterou a LDB acrescendo o artigo 26A).
No período posterior ao marco legal de 2003, a percepção social sobre a
temática se alargou bastante e foi um dos impulsos dos estudos na temática
de educação das relações étnico-raciais, que se ampliaram com consistência,
mantendo uma perspectiva crítica em sua maior parcela, trazendo o diálogo
com os movimentos sociais como uma importante marca, buscando a dupla
fonte dos conhecimentos e compreensões oriundos da experiência negra.
Neste processo de construção coletiva da área de educação e
relações étnico-raciais no Brasil, o livro acresce sobre pontos importantes.
Na primeira parte se dirige às relações raciais na educação infantil, um tema
de preocupação recente nas pesquisas e nas políticas. Esse tópico esquecido
tem ganhado espaço na pesquisa e o livro é mais uma publicação que
agrega ao conhecimento disponível. As políticas para a educação infantil
pública e de qualidade são, ao longo das últimas décadas, um campo de
esquecimento e vazio. O mesmo não se pode falar sobre a pesquisa em
educação infantil no Brasil, que constituiu estudos e grupos de referência
e produziu conhecimento que subsidiou mudanças em práticas e políticas
(indicadores de qualidade, organização do tempo e espaço, práticas de
letramento, financiamento, por exemplo) e desenvolveu-se de forma bem
articulada com o principal movimento social, o Movimento Interfóruns
de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) e os Fóruns Estaduais. A entrada
da preocupação com a igualdade racial na educação infantil na agenda dos
Fóruns e do MIEIB é recente, parcial e heterogênea, assim como nos grupos
de pesquisa, nos projetos que alcançam fomento à pesquisa, nas teses e
dissertações desenvolvidas. O movimento de articular os conhecimentos
produzidos no âmbito da Sociologia da Infância – Estudos da Infância com
os da educação das relações étnico-raciais é empreendimento recente e
necessário. Na obra em tela temos os exemplos de como o programa de pós-

10
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

graduação em educação da UEMG participa de forma ativa desse processo


e contribui de forma importante na análise das práticas pedagógicas e da
formação e trabalho docente.
O tema seguinte são as políticas afirmativas na pós-graduação e a
identidade de docentes negros, outro assunto que entra como objeto de reflexão
e de execução de políticas bastante recente. Por um lado, as políticas de acesso à
graduação catalisaram boa parte da atenção e debate público desde o início dos
anos 2000, ao passo que o debate sobre a igualdade racial em outros espaços
da universidade e da academia, na pós-graduação, na docência, nos grupos
de pesquisa, nos grupos de gestão científico-tecnológica, esteve ausente ou
minoritária. Os possíveis resultados de mudança no perfil das universidades
e nos processos de produção do conhecimento -nos quais a hegemonia branca
é indiscutível, o que produziu uma “ciência confinada, monorracial2” na qual
os acadêmicos brancos falam entre si e com a pretensão de falar por todas/
os - é urgente e diretamente relacionado com o estabelecimento de mudanças
no perfil da pós-graduação.
A parte final do livro trata da educação quilombola, também tópico que
apresenta grande aumento de interesse nos anos anteriores. Aqui, igualmente,
observamos a passagem de um histórico de esquecimento e silêncio para um
recente reconhecimento pela sociedade brasileira. Os movimentos negros sempre
estiveram atentos à presença, ao significado e ao espaço de conhecimento e
ancestralidade que os quilombos brasileiros são e representam. No entanto,
o desconhecimento, e mais que isso, o apagamento, era imenso e somente
nos anos 1990 foram iniciados estudos sobre a presença das comunidades
quilombolas nos diversos estados, tendo sido os anos de 2003 a 2005 o
ápice no reconhecimento de tais comunidades. Chegamos a resultados que
surpreenderam inclusive ativistas e pesquisadores: as comunidades quilombolas
estão presentes em todas os estados brasileiros (exceção do Acre, que foi território
anexado no final do século XIX); o número de comunidades reconhecidas
apresentou saltos em proporção geométrica entre o final dos anos 1990 e

2 CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Revista


USP, São Paulo, n. 68, p. 88-103, dez-fev, 2005-2006.

11
2005; a riqueza de património cultural e de conhecimentos tradicionais das
milhares de comunidades quilombolas é incomensurável. O processo de esconder
do Brasil o Brasil, de esconder de nossa população a magnitude de nossos
quilombos é uma alegoria do que está descrito neste livro como “racismo
ambíguo brasileiro3”. Apontamos que a ambiguidade se dá desde as relações
interpessoais até níveis macro e incide persuasivamente no plano simbólico,
nas percepções sobre os fenômenos sociais. No entanto, ocorreu um processo
de reposicionar o fenômeno e, paralelo às formas de opressão que se mantêm,
ocorreu, com as comunidades quilombolas brasileiras, o reconhecimento, a
ampliação das formas de organização em movimentos sociais, a indagação
por seus direitos de cidadania, entre os quais o Direito à Educação. Os temas
da educação escolar quilombola e da formação de docentes quilombolas são
derivados desse processo e a parte final deste livro dedica-se à análise de duas
experiências e de busca de alternativas para o usufruto de cidadania e para a
eclosão de saberes emancipatórios a partir de tais espaços sociais.
Observemos que a escolha de temas é bastante precisa: são temas
de urgência na prática social e na pesquisa. Por tais opções, pelas abordagens
e pelo tratamento, interpreto que a obra promove aquilo que está descrito na
obra de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva como enegrecer:

Compreensão-chave, em meu entender, para a educação das relações


étnico-raciais: enegrecer. É importante lembrar que então o foco de minhas
atenções era a constituição de identidades negras. A compreensão de
enegrecer, pois, foi explicitada como “a maneira própria de os negros
se porem no mundo ao receberem o mundo em si. Enegrecer é a
face em que negro e branco se espelham, se comunicam, sem deixar
de ser o que cada um é.” (SILVA, 2011, p.101, destaques da autora4 )

3 Conceito de GOMES, Nilma Lino Diversidade e Currículo. In: Ministério da Educação.


Secretaria de Educação Básica. Indagações sobre o currículo. Diversidade e Currículo,
2007. Neste livro abordado por Soares e Silva, p. 13)
4 SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Entre Brasil e África: construindo conhecimento
e militância. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.

12
Neste momento de tensão e conflito, de resistência e luta como
grita o nome de uma das autoras da obra, continuamos resolutos nessa
caminhada em busca do enegrecer de nossas pesquisa e penas.
Axé às organizadoras, autoras/es, e as/aos que participaram no
processo de sua construção!
Boa leitura!

Curitiba, setembro de 2016.

Paulo Vinicius Baptista da Silva


Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR)
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do
Paraná (NEAB-UFPR)
GT 21 – Educação e Relações Étnico-Raciais da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED)

13
APRESENTAÇãO
Esta coletânea é resultado de pesquisas realizadas no âmbito
da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Belo Horizonte,
ressaltando que, a maioria desses estudos foi realizada no interior do
Programa de Pós-Graduação/Mestrado em Educação. O foco das discussões
se deteve na problemática concernente aos campos da educação e das
relações raciais. Tais pesquisas são oriundas das demandas postas para o
campo educacional após a Lei nº 10.639, sancionada em 2003, que tornou
obrigatório o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nas
escolas de Educação Básica brasileiras.
Os textos que compõem esta coletânea abordam a temática racial
em diferentes segmentos da educação no Brasil. O livro apresenta oito
artigos, sendo que os três primeiros concentram a discussão em torno da
educação das relações raciais no contexto da educação infantil. Em seguida,
outros dois abordam o acesso de estudantes negros ao ensino superior e à
pós-graduação; o sexto artigo centra a discussão em torno da classificação e
identidade racial de um grupo de professores da UFMG e, por fim, os dois
últimos enfatizam a Educação Escolar Quilombola. O que une o conjunto
de artigos aqui apresentados é a reflexão em torno dos desafios, dos limites

15
e das possibilidades de implementação e condições de enraizamento da lei
10.639/03 e a reeducação das relações étnico-raciais em diversos contextos.
No artigo Relações Étnico-Raciais e Educação Infantil: ouvindo
crianças e adultos, as autoras Lucineide Nunes Soares e Santuza Amorim
da Silva apresentam dados da pesquisa realizada em uma escola de
educação infantil, no qual analisam as práticas educativas que ocorrem
nos espaços e tempos de uma escola pública de educação infantil, com o
foco nas relações étnico-raciais, e revelam como as relações tecidas nesse
contexto incidem nas configurações identitárias das crianças negras. As
análises possibilitaram esclarecer que a organização e a dinâmica das
práticas e relações estabelecidas na escola pesquisada, no que se refere às
relações étnico-raciais, são permeadas por avanços, limites e contradições.
No texto seguinte, Práticas pedgógicas na educação infantil:
experiências docentes com a temática étnico-racial, Cláudia Elisabete dos
Santos e José Eustáquio de Brito propõem uma reflexão sobre a abordagem
da diversidade étnico-racial na infância, dando des taque à práticas
pedagógicas desenvolvidas por docentes que trabalham na educação infantil
e que são egressas de um Programa de formação continuada, o Lato Sensu
em Docência para a Educação Básica (LASEB), programa implantado em
2006 através de um convênio firmado entre a Secretaria Municipal de
Educação de Belo Horizonte (SMED) e a Faculdade de Educação (FaE) da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As cursistas egressas do
LASEB desenvolveram planos de ação em duas Unidades Municipais de
Educação Infantil (UMEI) e focaram a temática étnico-racial na infância,
tendo como referência os textos presentes na Lei 10.639/03 e nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004). As análises
apontaram a importância do investimento na formação continuada de
professores que trabalham na educação básica e assumem o compromisso
de apresentar às crianças pequenas perspectivas de valorização da
diversidade étnico-racial na infância.
Em Tradução e Interpretação da Educação para as relações
raciais em práticas pedagógicas do corpo docente em uma UMEI de Belo

16
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Horizonte, a autora Regina Márcia P. Oliveira, a partir de um estudo de


caso, busca analisar e compreender as concepções de infâncias de crianças
negras e brancas de um grupo de professoras no processo de interpretação
da educação das relações raciais e suas implicações nas práticas pedagógicas
engendradas numa Unidade Municipal de Educação Infantil da cidade
de Belo Horizonte. Para a autora, as práticas pedagógicas alcançam uma
posição de destaque e de responsabilidade quando se trata das crianças
negras no contexto da educação infantil, visto que a visão adultocêntrica
motiva práticas disciplinadoras que tendem a produzir e alimentar o
processo hierárquico social, em que a diferença é vista como desigualdade.
Márcia Basília de Araújo, em seu texto sobre o Acesso e a Permanência
na Pós-Graduação Brasileira: a experiência de bolsistas do Programa
Internacional de Bolsas da Fundação Ford, a partir dos fundamentos de
estudos que se situam no quadro da longevidade escolar e ações afirmativas
na pós-graduação, apresenta neste trabalho a trajetória de uma bolsista do
Programa Internacional de Bolsas de Fundação Ford, que, para alcançar
um longo percurso acadêmico, desenvolveu disposições e estratégias em
diversos espaços de socialização, com destaque para a escola básica e os
movimentos sociais, sobretudo o Movimento Negro. Além da trajetória da
bolsista, recuperada por meio da realização de entrevista narrativa episódica,
foram também apresentados elementos que caracterizam o Programa e sua
importância para a constituição de políticas de Ações Afirmativas para a
pós-graduação brasileira.
Em Acesso da população negra aos cursos de Pós-graduação:
uma reflexão a partir de apontamentos teórico metodológicos, Fábio Leão
e Santuza Silva apresentam um estudo que se baseia na experiência de
um programa de Ações Afirmativas voltado para a inserção de estudantes
negros na pós-graduação em Minas Gerais. O trabalho procura analisar
as trajetórias de estudantes que frequentaram o curso de formação pré-
acadêmica e que ingressaram em programas de mestrado. Buscou
compreender os fatores que influenciaram essa inserção, tendo como
base as experiências e disposições adquiridas ao longo das trajetórias
desses estudantes nas diversas instâncias sociais, como essas experiências

17
constituíram-se como dispositivos que possibilitaram o acesso e a
permanência nesses programas, e também como a questão racial exerceu
influência ao longo das trajetórias dos sujeitos pesquisados e de que
maneira ela se faz presente nessa caminhada.
O artigo Professores universitários, classificação e identidade
racial: limites e possibilidades, escrito por Ana Amélia de Paula Laborne
e Nilma Lino Gomes, apresenta os resultados de uma pesquisa realizada
com professores pretos e pardos da Universidade Federal de Minas Gerais
em 2008, analisando suas trajetórias de vida, escolares e acadêmicas, bem
como a vivência da sua condição racial nos diversos espaços pelos quais
circularam e ainda circulam - sobretudo, os acadêmicos - procurando
estabelecer as articulações entre classificação de cor e os processos de
construção de identidade racial vivenciadas por esses sujeitos sociais.
O artigo Desigualdades regionais, trabalho e educação na
implementação da educação escolar quilombola, autoria de José Eustáquio
de Brito, discute desafios postos às comunidades quilombolas para a
sua implementação. Dados coletados na região do Médio Jequitinhonha,
Minas Gerais, são apresentados configurando um quadro de escassas
oportunidades ocupacionais que tem contribuído para a migração sazonal
da população masculina quilombola, especialmente os jovens. Aponta-se
para a necessidade de se adotar uma perspectiva multidimensional de modo
a consolidar projetos de desenvolvimento que fortaleçam as comunidades.
O artigo Tensões, intenções, desafios e possibilidades na Formação
de Docentes da Educação Básica das Comunidades Remanescentes
de Quilombo em Minas Gerais, de autoria de Vanda Lúcia Praxedes
e Silvia Miranda, discute as tensões e os desafios enfrentados pela
Equipe de Formação no processo de construção e execução do primeiro
curso de Formação de Docentes da Educação Básica das Comunidades
Remanescentes de Quilombo no norte de Minas e Vale do Jequitinhonha,
realizada no Faculdade de Educação da UFMG. Demonstra, também, a
importância da discussão coletiva e escuta dos professores/as cursistas na
elaboração de um formato de curso mais próximo à realidade e demanda
de formação desses docentes.

18
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Os artigos apresentados nesta coletânea revelam a necessidade


de que se realizem pesquisas para desvelar situações de racismo,
discriminação e de exclusão no cotidiano das escolas e da sociedade, bem
como, sinalizam ainda, a necessidade de políticas de ações afirmativas
para garantir a permanência e o acesso ao ensino superior da população
negra que, ainda, encontra-se à margem desse sistema. Em suma, o
propósito deste livro é dar visibilidade às pesquisas produzidas na UEMG e
ao tratamento que vem sendo dado à temática da diversidade étnico-racial,
demonstrando que a universidade pública estadual em Minas Gerais tem
se apresentado como um lócus privilegiado de produção de conhecimentos
nesse campo. Desse modo, torna-se evidente o comprometimento e
preocupação de seus pesquisadores com questões sociais e, em busca de
soluções para os problemas que afetam historicamente a sociedade e a
escola brasileira.

Santuza Amorim da Silva


Vanda Lúcia Praxedes
Organizadoras

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RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
E EDUCAÇÃO INFANTIL:
OUVINDO CRIANÇAS
E ADULTOS

Lucineide Nunes Soares / Mestre/FaE/UEMG


Santuza Amorim da Silva / Professora PPGE/FaE/UEMG
Introdução
Esta pesquisa, inserida na área da educação, estabelece diálogos com
os campos das relações étnico-raciais e da educação infantil. Apresenta como
objeto de investigação as relações étnico-raciais nas práticas educativas en-
gendradas com as crianças entre zero e seis anos de idade no contexto da
educação infantil de uma escola pública5 do município de Teófilo Otoni-MG.
Para sua melhor apreensão, elaboramos algumas questões: de que modo as
relações étnico-raciais aparecem nas práticas engendradas com as crianças no
contexto da educação infantil? Em que medida a dinâmica e organização des-
sas práticas e relações estabelecidas incidem nas configurações identitárias

5 A investigação se deu na escola Manuelita no município de Teófilo Otoni (o nome da


escola foi escolhido pela turma juntamente com a professora referência. Manuelita é o nome
de um filme (e da personagem principal) que assistiram na escola).

21
das crianças negras? O que as crianças e adultos dizem ou pensam sobre as
práticas e relações estabelecidas? Para tanto, propomos descrever e analisar
como a dinâmica e a organização dessas práticas, bem como as relações es-
tabelecidas entre crianças, entre elas e os adultos incidem nas configurações
identitárias das crianças negras, além de identificar o que crianças e adultos
dizem sobre estas práticas e relações estabelecidas.
Adotamos uma perspectiva epistemológica que considera a
realidade como processual, inacabada e atravessada por avanços, limites,
desvios e contradições, enfim, dialética. Estabelecemos diálogos com as
discussões teóricas levantadas pela Antropologia e a Sociologia da Infância,
que partem da ideia que nas pesquisas com crianças faz-se necessário
pensá-las a partir de suas culturas, como sujeitos da investigação e não
simples objetos. E ainda exige pensá-las a partir do que têm e não do
que lhes falta, o que implica maior aproximação de suas experiências
e singularidades. E no que diz respeito às identidades étnico-raciais,
dialogamos com Estudos Culturais e pesquisas que tratam das questões
raciais na educação e educação infantil. Acreditamos que esses suportes
teórico-metodológicos também nos favoreceram um olhar mais ampliado
para o problema em questão, visto que nele está implicada a discussão
sobre as diferenças, a diversidade, singularidades, relações sociais,
práticas, cultura, identidades, temas tão caros para esses campos de
conhecimento. Para tanto, realizamos um estudo de caso cunhado pela
etnografia. Recorrermos à abordagem etnográfica porque acreditamos que
esta nos daria “uma lente de aumento” (ANDRÉ, 2005) para conhecer a
escola e para compreender os aspectos culturais das práticas e relações
estabelecidas no cotidiano da educação infantil.
Utilizamos instrumentos e procedimentos metodológicos diver-
sificados e “combinados” (MÜLLER, 2010) como, observações e registros
em caderno de campo, vídeogravações, gravações, registros fotográficos,
entrevistas com adultos, desenhos e documentos.
Nesse processo de construção de estratégias teórico-metodológicas
optamos por pesquisar com as crianças e não sobre elas. Desse modo, as
crianças realizaram registros fotográficos de espaços e tempos da escola

22
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

escolhidos por elas e, posteriormente, fizeram a devolutiva de tais registros.


Além dessa, adotamos outras estratégias metodológicas que permitissem a
elas serem co-participantes da pesquisa; as entrevistas foram realizadas com
seis adultos, entre eles, professoras, monitoras diretora e supervisora. Esta
pesquisa foi organizada e desenvolvida da seguinte maneira: 1) realização
de um estudo exploratório antes da entrada definitiva em campo ; 2) criação
de estratégias de aproximação e obtenção de consentimento dos sujeitos
envolvidos, entre estes, o das crianças; 3) coleta de dados por meio das falas/
narrativas das crianças e adultos, de nossas observações, e dos documentos
acessados na escola e nas secretarias de educação e administração, que
possibilitaram a análise interpretativa e, além disso, permitiram fazer
o cruzamento de dados de modo a fortalecer a pesquisa e a favorecer o
conhecimento do problema investigado.
Com este estudo, que se insere nos campos das relações étnico-
raciais e da educação infantil, criou-se a expectativa de que o mesmo
possa trazer outras contribuições que possam ser somadas aos estudos
que também fizeram o entrecruzamento entre esses dois campos. Nesse
sentido, acreditamos que essa articulação se faz necessária, tendo em vista
as múltiplas dimensões identitárias e condições de vida das crianças que
frequentam a educação infantil pertencentes à diversa e complexa sociedade
brasileira. E, além disso, acreditamos que as pesquisas que trazem esse
foco favorecem a compreensão de que a convergência entre esses campos
pode ser um dos caminhos possíveis para se refletir sobre a(s) infância(s)
e a(s) criança(s) na sua concretude. E, nesse sentido, apreendê-las nas suas
multidimensões como sujeito de direitos e de cultura que se constrói na
história e também a produz; na perspectiva de que esses “novos sujeitos”
(crianças de zero a seis anos) esperam um lugar mais digno na sociedade
e na escola, que as respeite e valorize em suas múltiplas dimensões, entre
estas, a étnica e a racial.

23
O que a escola pesquisada nos revela?
Na realização da investigação encontramos pistas e/ou dados que
evidenciaram como as relações étnico-raciais aparecem na escola Manuelita
e de como as crianças negras e brancas vêm configurando suas identidades
étnico-raciais. Esses dados nos foram revelados por meio da organização e
dinâmica de algumas práticas, das brincadeiras, dos discursos dos adultos,
das falas e silêncios das crianças. Esse desvelar nos permitiu interpretar que
as práticas e relações na escola pesquisada apresentaram situações que estão
atravessadas por contradições, ambiguidades, negatividades, invisibilidades,
ausências e também por positividades e/ou avanços no trato com as diferenças
presentes na escola. Nessa direção, os resultados encontrados nos permitiram
interpretar e inferir que na escola pesquisada predomina um discurso de
igualdade que tende a contribuir para a invisibilidade da diversidade presente.
Eswsa tendência e/ou contradição aparece nos materiais visuais (cartazes,
painéis) de sala e da área externa; nos brinquedos; nas literaturas e vídeos
assistidos pelas crianças, visto que apresentam prioritariamente a presença do
grupo branco, o que impede as crianças negras ou de outro grupo construírem
o sentimento de pertença ao seu grupo étnico-racial. Os preconceitos em
relação às crianças negras por parte das crianças brancas também foram
presenciados durante as brincadeiras, e, como observamos, tais preconceitos
e/ou rejeições estão intimamente ligadas às características fenotípicas dessas
últimas; e a tez da pele, aparece nesse contexto, como um forte marcador.

As relações étnico-raciais nos discursos,


práticas e relações

A educação tem um significado importante na vida das crianças


de modo geral e em específico, na vida das crianças negras, pois conforme
as pesquisas6, a variável raça é a que gera o maior peso nos processos de
desigualdades sociais vividos pela maioria da população brasileira. As crianças
crescem no espaço da escola e nele também aprendem a fazer suas escolhas,

6 Cf. Cavalleiro (2005); Dias (1997); Oliveira (2004).

24
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

forjam suas posturas, se desenvolvem em interação com outras pessoas.


Nesses processos interativos identidades são constantemente configuradas
por meio de marcadores raciais e culturais, que, no caso das crianças negras,
na maioria das vezes são representadas de forma negativa, carregadas de
estereótipos e de preconceitos.
Os discursos de igualdade apresentados pelos adultos entrevistados
é “consenso” na escola e impede que haja a percepção de que as práticas e re-
lações igualitárias, equitativas, possam ocorrer por meio da adoção de práticas
diferenciadas, que reconhece e valoriza os diferentes grupos representados na
sociedade geral, e na escola, em seus aspectos culturais, raciais, sociais, etc.
Vale dizer que isso não quer dizer serem práticas e relações excludentes, pois
como esclarece Scott (2005), adotar a igualdade como princípio não significa
a eliminação da diferença, mas o seu reconhecimento. Esse discurso se faz
presente nas respostas das seis entrevistadas, das quais destacaremos alguns
fragmentos retirados dos depoimentos prestados pela diretora e professora
referência do grupo pesquisado: Eu não consigo enxergar isso, eu percebo que
o tratamento aqui na escola é igual para todas as crianças [...] Então não existe
aqui na escola a divisão de crianças brancas, pardas, negras. Todas nós enxergamos
dentro de um único contexto (diretora Andréia). [...] isso é um ponto na escola
que eu sempre observei e que acho muito importante, pois não tem diferenciação e
nem racismo. O tratamento com as crianças é igual (professora Helena).
Algumas das práticas e/ou episódios presenciados durante
a pesquisa em alguma medida são reflexos desses discursos e, como
interpretamos, nem sempre educam as crianças para a emancipação
identitária, sejam elas negras ou brancas. E, acrescente-se ainda que, para
estas últimas, propiciam que “cresçam acreditando na superioridade que
a brancura lhes possibilita” (SILVA JR. e DIAS, 2011). Um dos episódios
vivenciados no campo investigado refere-se à montagem de uma encenação
sobre a história da “Branca de Neve”. Na apresentação observamos que não
houve a preocupação de inversão de papéis e/ou releitura e ressignificação da
história, possibilitando, por exemplo, que a personagem da Branca de Neve
pudesse ser uma das meninas negras. Vimos que, ao contrário, a Branca de
Neve foi destinada a uma menina branca (a Gabi), embora uma das meninas

25
negras (Ana Carla) tenha apresentado o desejo interpretar esse papel, como
foi afirmado por ela: [...] lá no teatro eu queria ser a Branca de Neve, mas só
podia gente branca, aí eu escolhi ser bruxa. Resposta que nos remeteu a história
recontada por Meyer (2011) sobre uma menina negra de três anos de idade
que descobriu, na escola, que não podia ser anjo.
Nessa mesma peça, Fabinho, outro aluno negro do grupo, que a
princípio faria o personagem de um “anãozinho” acabou representando a
árvore do cenário. Sobre a mudança de papéis a professora esclareceu:
Não, Fabinho não quis ser árvore, ele queria ser o anão, mas a mãe disse que não
tinha como alugar a roupa. Então eu falei que ia tentar para ver se eu conseguiria
a roupa emprestada ou então ajudar a pagar a metade. E ela falou que não tinha
como, de jeito nenhum. Então eu tentei e o convenci de ser árvore, aí eu floreei que
a árvore é uma coisa linda da natureza e que ele ia ganhar os balões 7 no final
da apresentação. [...] ele empolgou e mudou de personagem sem problema. [...] ele
não ficou triste com a mudança da personagem e a gente deu um jeitinho para ele
apresentar e deu tudo certo. (entrevista realizada dia 22/11/12).
A organização dessa prática, em que os corpos estão em evidência
e/ou expostos para o outro ou outros, nos direciona a interpretar/pensar que,
ao planejá-la, caberia aguçar o olhar para as crianças e seus desejos. Além
disso, buscar adotar formas mais criativas de “incluir todos/as”, de maneira
que não haja contradições tão extremas e excludentes, como denota a
situação vivenciada pelo aluno Fabinho.
Outros elementos que demonstraram o silenciamento e invisibi-
lidade da cultura e do grupo negro que representa a maioria das crianças e
adultos presentes na escola pesquisada dizem respeito aos recursos visuais,
de comunicação e materiais diversos expostos na escola. Tais materiais evi-
denciam quais/qual culturas/a são privilegiadas, mesmo que seja de modo
“inconsciente” (MEYER, 2011). Alguns desses recursos visuais fotografados
pela pesquisadora veem-se apenas crianças brancas ali representadas.

7 Os balões prometidos formaram a copa da árvore que foram amarrados em seus braços,
o restante de seu corpo foi representado como o caule.

26
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Figura 1: painel aniversariantes do


mês. Fonte: arquivos fotográficos
da pesquisadora

Figura 2: painel pátio da escola


Fonte: arquivos fotográficos
da pesquisadora

Essas evidências de silenciamento e/ou “apagamento” do outro


(CAVALLEIRO, 2005) mostram que na Escola Manuelita ainda faz-se
necessário espaços-tempos que contemplem as marcas fenotípicas e/ou
raciais, culturais, artísticas das múltiplas crianças e adultos que a compõem.
A criação desses espaços-tempos que educam para as relações étnico-raciais
mais igualitárias, como recomendado por Silva Jr.; Bento; Carvalho (2012),
significa ter cuidado não só na escolha de livros, brinquedos, instrumentos,
mas também cuidar dos aspectos estéticos, como a eleição dos materiais
gráficos de comunicação e de decoração condizentes com a valorização da
diversidade racial.
A ausência de brinquedos, livros ou de outros materiais que
remetem ao grupo negro, na escola, foi uma das inquietações proferida pela
professora Helena:
[...] vou ver se eu consigo bonecas de cor escura pra não deixar
só bonecas clarinhas para estarem brincando na sala. Vou ver se misturo
as bonecas para chamar atenção, pois na escola, em sala nenhuma tem
bonequinha preta. A gente trabalha a história da Bonequinha Preta, da Menina
bonita do laço de fita, mas não tem nada para eles estarem visualizando.
(entrevista realizada dia 22/11/12).

27
Nas narrativas das crianças também encontramos evidências de
falas depreciativas e atitudes preconceituosas com relação aos/às colegas
negros/as, como nos episódios abaixo: Estávamos no corredor8 com o
gravador e, enquanto as crianças brincavam, sentamos ao lado delas.
9

Observamos que se inicia uma discussão entre o grupo sobre os personagens


da novela Carrossel10.

Cirilo: eu sou preto, sou do jeito de Cirilo, igual.


Ana Carla: eu sou a Maria Joaquina.
A Gabi entra eufórica na conversa: mas, mas Maria Joaquina não
gosta de Cirilo.
Ana Carla responde: mas Maria Joaquina é o amor dele!
Gabi: mas ela não é preta!
Ana Carla responde bem firme: é sim. [interpretamos que esta foi uma
forma de enfretamento frente à inflexibilidade da Gabi]
Gabi: é de outra cor [entramos na conversa]
Lucineide: então que cor é Maria Joaquina?
Ana Carla: é amarela
Lara: ela é da minha cor
Lucineide: qual a sua cor Lara?

8 Os corredores foram espaços escolhidos nos registros fotográficos tomados pelas crianças
(que denominam a parte “lá detrás”). Eles estão localizados nas laterais da parte externa da
escola. Nas devolutivas das fotografias elas justificaram suas escolhas, algumas delas: tirei
lá detrás porque ele é muito bom e dar prá brincar toda hora. A gente brinca de pedrinhas
e de folhinhas (Lavina); Eu tirei porque eu gosto muito desse lugar (Lara); tirei por que lá
eu brinco e gosto de pintar no painel (Fabinho). 

9 O gravador foi um instrumento que sempre levávamos para o corredor. Ele passou a
ser também um brinquedo onde gravávamos juntos, depois ouvíamos músicas e fazíamos
testes diversos.

10 A novela Carrossel é transmitida pelo canal de televisão (SBT). O personagem Cirilo


(um menino negro) é apaixonado pela Maria Joaquina, uma menina branca

28
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Gabi interfere e afirma: ela [se refere a Maria Joaquina] é da minha cor
e sou branca [no momento passa a mão em um de seus braços para
mostrar a sua cor]
Lara responde: eu sou branca, mas branca escura
Gabi: eu sou branca!
Ana Carla: E daí? E sai correndo.
Lucineide: Gabi você gosta de ser branca?
Gabi: gosto da minha cor e da cor da minha prima.
Lucineide: de que cor é sua prima?
Gabi: ela é branca!
Lucineide: E de seus colegas que têm outras cores, como o Cirilo,
Ana Carla e o Fabinho? 11
Gabi: Não! Eu não gosto.
Lucineide: porque você não gosta?
Gabi: porque não. É porque é feia![no momento ela demonstra tal feiura
por meio de sua fisionomia]
Rogério [que estava próximo brincando de comidinha com Isabel] diz: eu não
gosto da Ana Carla!
Lucineide: por que você não gosta dela?
Rogério: porque não.
Gabi interfere em forma de questionamento: É por que ela bate nele?
Rogério: ela pisou no meu pé.
[Passa um tempo a Ana Carla retorna para onde estávamos]
Rogério ao ver que ela se aproxima diz: não fica aqui não senão eu vou te bater
Lucineide: Rogério, ela veio brincar com vocês.
Rogério: eu vou bater nela se ela ficar aqui.
Ana Carla: eu também bato em você porque você está teimando.
Rogério continua a brincar de comidinha com a Isabel e diz: mãe eu estou
fazendo um bolo.
Isabel: filho pode fazer o que você quiser.
Gabi se aproxima da Isabel e diz: oi amiga!

11 Ao fazermos esse questionamento o Cirilo nem a Ana Carla estavam próximos.  

29
Isabel: Oi! Você pode ir com meu filho ali na venda para ele comprar uma
pipoca para ele comer na janta?
Ana Carla complementa: e chiclete.
Isabel: chiclete não! Vai [empurra a Gabi para seguir e olha para Ana Carla
demonstrando que não a quer por perto]
Rogério ao ver que a Ana Carla se dirige junto com a Gabi corre na frente e
a cerca e grita: Você não!
Ana Carla diz: sai menino e segue até o final do corredor onde seria o portão
de saída, imaginado por eles/as.
[Nesse intervalo o Rogério encontra com o Cirilo no corredor]
Rogério levanta as mãos para agredir Cirilo.
Cirilo grita: tia olha!
Monitora Carolina: Rogério para com isso! [Ela grita sem se levantar da
cadeira onde estava sentada]. Entretanto, Rogério continua e dar empurrão
no Cirilo, que começa a chorar.

Estas narrativas revelam como as relações étnico-raciais aparecem


nos espaços-tempos de brincadeiras das crianças focalizadas na pesquisa.
Observamos o quanto às marcas fenotípicas do grupo negro são motivos de
preconceitos, discriminações, onde a tez da pele aparece como um forte e
visível marcador para estas crianças. Nesse contexto, interpretamos que os
conflitos raciais estão presentes e latentes e nos trazem alguns indicativos
como: A Ana Clara por ser negra não pode pensar em ser a personagem
Maria Joaquina (branca), que por sua vez jamais poderia se casar com o
Cirilo (negro). Esta foi uma suposição também encontrada nas narrativas das
crianças pesquisadas por Godoy (1996, p.132): “preto e branco não combinam,
só cor repetida que combina, branco com branco e preto com preto”. A fala
da menina Gabi traz essa negação da possibilidade de convivência afetiva
entre negro e branco12. Esses conflitos também apontam para a negação do

12 Não podemos deixar de destacar que a mídia, nesse contexto possui um peso significativo nas
falas dessas crianças. O que nos leva inferir que estas programações podem ser problematizadas
com as crianças desde a educação infantil 

30
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

outro diferente de mim: ele não pode ficar por perto, brincar comigo, “não
gosto dela” como disse Rogério, além das agressões corporais. A justificativa
da menina Gabi sobre o porquê de não gostar da cor dos colegas ou pessoas
negras/os nos dão pistas de como no seu imaginário está presente a ideia
da existência de modelos estéticos difundidos em nossa sociedade. Ou seja,
modelos do branco/belo/inteligente, que impede de positivar a cor/raça,
beleza e ainda acreditar na capacidade intelectual dos demais grupos como
negros e indígenas.
Essas relações, bem como outras práticas e relações13 não eviden-
ciadas nesse texto, mas que aparecem na pesquisa, são indícios de como as
crianças negras estão vivenciando suas subjetividades e configurando suas
identidades étnico-raciais – que a nosso ver, são vivências que as negativam.
Além disso, revelam como essas crianças vêm tentando enfrentar essas si-
tuações de conflitos junto aos seus pares. Ana Carla foi um exemplo das
crianças negras que nos pareceu mais fortalecida visto que a mesma não se
calava diante dos conflitos e/ou das atitudes dos colegas. Entretanto, como
ocorrido no episódio acima, ela também não consegue se manter na situação
por muito tempo e acaba saindo correndo, se retirando “do palco de dispu-
tas, do ambiente hostil” (CAVALLEIRO, 2005).
É importante sinalizar que nas práticas e relações
que observamos e participamos encontramos avanços e limites no diz
respeito às relações étnico-raciais. Nesse processo, interpretamos que na
escola Manuelita existem fios que permitem iniciar outras ligações para
a implementação e “enraizamento” (GOMES, 2012) de um currículo e
práticas educativas que contemplem a educação para a igualdade étnico-
racial. Alguns desses fios aparecem nas práticas e relações, bem como

13 Uma dessas relações diz respeito às estabelecidas entre os adultos e as crianças negras, que,
como constatamos, são as que mais são encaminhadas para a prática do “castigo” (prática
recorrente na escola), e, além disso, são elas que são classificadas como as crianças mais “difíceis”
“indisciplinadas”, “sem limites”, entre outras denominações. E ouvem frases do tipo: “você é
feio e desobediente” (professora Helena, notas de campo de 20/09/12); fica aí com esse “bocão”
(supervisora Daniela, notas de campos de 12/07/12); entre outras.   

31
nas proposições da proposta pedagógica por meio da articulação entre
“diversidade racial e educação infantil” e, além disso, está fundamentada
com a Lei 10. 639/03 e dire-trizes curriculares nacionais para a educação
infantil. Outro aspecto a destacar é que algumas professoras já passaram
por formação continuada na temática da história da África e culturas e
africanas e afro-brasileira via Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro (NEAB)
da Universidade Federal localizada no município.
Outro ponto a destacar está relacionado aos documentos con-
sultados e conversas realizadas no âmbito das Secretarias de Educação e
Administração com o objetivo de conhecer o modo como se configuram
as políticas para o campo da educação infantil e relações étnico-raciais no
município. De certo modo, observamos que a realidade encontrada na es-
cola possui forte ligação com as políticas públicas da gestão municipal. Os
documentos consultados, as conversas realizadas e os depoimentos das pro-
fissionais e monitoras evidenciaram que tal política ainda não tem investido
seriamente na formação continuada dos profissionais da educação infantil,
principalmente no que tange à temática das relações étnico-raciais.

Considerações Finais

Antes é importante ressaltar que a opção de ouvir crianças e


adultos foi uma decisão acertada, tendo em vista que nos possibilitou ter
acesso às falas e/ou expressões desses dois sujeitos que compõem as cenas
do ambiente pesquisado. E, entendemos que não teria como priorizar so-
mente as crianças, visto que os sujeitos adultos também estão nas práticas
e relações e são eles que se responsabilizam por essas crianças nesse
espaço e, além disso, influenciam o desenvolvimento e conformação de
suas identidades.
A partir das múltiplas fontes utilizadas nesta pesquisa, que inclui
as nossas observações e registros em cadernos de campo, interpretamos e
inferimos que o trabalho na Escola Manuelita, no que diz respeito às relações
étnico-raciais, ainda não tem ocorrido de modo intencional e constante. Não
presenciamos nas práticas coletivas no geral e nas específicas do grupo focado,

32
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

conversas, discussões, problematizações, reflexões com as crianças, com as


professoras ou com as famílias que buscassem uma educação para as relações
étnico-raciais. Além disso, constatamos a falta de materiais de apoio para as
professoras, que evidenciassem a cultura, as artes, a literatura, a história e
outras contribuições dos africanos, afro-brasileiros e indígenas como povos
constituintes da sociedade e cultura brasileira e do município pesquisado.
Por outro lado, encontramos indícios promissores para a implementação
de práticas voltadas para a educação das relações étnico-raciais na Escola
Manuelita, devido às proposições colocadas no Projeto Político Pedagógico.
Entretanto, considera-se ser fundamental o redimensionamento das práticas
e relações na escola pesquisada buscando favorecer a inclusão das questões
étnico-raciais de forma intencional e contínua. Para tanto, faz-se necessário
o fortalecimento das políticas públicas para os campos da educação infantil e
relações étnico-raciais no município.
Acreditamos que o fortalecimento dessas políticas contribuirá
para a implementação do currículo que permita o enraizamento dessa
temática na Escola Manuelita e demais escolas de educação infantil da ci-
dade, que perpassa, sobretudo, pelas condições de trabalho oferecidas aos/
às trabalhadores/as da educação. Envolve, ainda, disponibilizar e/ou finan-
ciar a compra de materiais subsidiários e proporcionar espaços-tempos de
formação sistemáticas e constantes que contemplem os aspectos técnicos
e também os políticos/culturais. No que diz respeito à formação de pro-
fessores relembramos o que afirmou Dias (2007) sobre a necessidade de
trabalhar com professores referências que lhes permitam uma apropriação
teórica sobre o tema. Também exige contemplar as dimensões de sua pró-
pria subjetividade para que compreendam que os processos de produção e
reprodução do racismo na escola atingem também a eles, e não somente às
crianças. Nessa direção, Gomes, Oliveira e Souza (2010) apontam que para
a efetivação desse direito será necessário extrapolar a “letra da lei”, pois
a existência da legislação desvinculada de um processo formador dos di-
versos sujeitos responsáveis pela condução do trabalho pedagógico poderá
torná-la menos efetiva.

33
Esta pesquisa, juntamente com as demais pesquisas que também
fizeram a interlocução entre esses dois campos supracitados, evidencia que
as crianças negras continuam a vivenciar, na escola, práticas preconceitu-
osas e discriminatórias. Escutam explicitamente frases, palavras, gestos
que depreciam suas características fenotípicas, e, nesse contexto, vêm con-
figurando identidades negativas no que se refere ao seu pertencimento
étnico-racial. Nessa direção, podemos inferir que a partir dos dados encon-
trados e analisados na escola pesquisada, bem como nas demais escolas de
educação infantil do município e região, ainda podemos encontrar muitas
crianças negras vivenciando práticas e relações como as evidenciadas nesta
investigação, ou até piores.
Por fim, as evidências encontradas vão em direção ao que apon-
taram as pesquisas desenvolvidas por (DIAS, 1997; CAVALLEIRO, 2005;
OLIVEIRA, 2004;), de que as crianças, desde a educação infantil, convi-
vem com tratamentos diferenciados, o que fazem com que os discursos de
igualdade presentes na educação infantil se tornem contraditórios, pois, nas
práticas cotidianas, os tratamentos são desiguais e “as diferenças são elimi-
nadas nas formas mais sutis e explícitas” (CAVALLEIRO, 2005).

34
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Referências Bibliográficas

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Paulo: Papirus, 2005.

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DIAS, Lucimar Rosa. Diversidade Étnico-Racial e Educação Infantil. Três


Escolas, Uma Questão, Muitas Respostas. Dissertação de Mestrado em
Educação - UFMS, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo
Grande, 1997.

GOMES, Nilma Lino; OLIVEIRA, Fernanda Silva de; SOUZA, Kelly Cristina
Cândida de. Diversidade étnico-racial e trajetória docentes: um estudo
etnográfico em escolas públicas. In:

ABRAMOWICZ, Anete (Orgs.). Educação e raça: perspectivas


políticas, pedagógicas e estéticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

(org.). Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais


na escola na perspectiva da lei 10.639/03. 1. ed. Brasília: MEC/UNESCO;
Coleção Educação para Todos n.36, 2012.

MEYER, Dagmar E. Estermann. Das (Im) Possibilidades de ser ver como


anjo.In: GOMES, Nilma L. e SILVA, Petronilha B. Gonçalves e. (orgs.).
Experiências étnico-culturais para a formação de professores. Belo
Horizonte: Autêntica, 2011.

MÜLLER, Fernanda (org.) Infância em Perspectiva: políticas, pesquisas e


instituições. São Paulo: Cortez, 2010.

35
OLIVEIRA, Fabiana de. Um estudo sobre a creche: o que as práticas
pedagógicas produzem e revelam sobre a questão racial? Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal de São Carlos. São Paulo, 2004, 112p.

SILVA JR, Hédio; DIAS, Lucimar Rosa. Diversidade étnico-racial e educação


infantil: uma introdução. In: SILVA JR, Hédio (orgs.). Práticas Pedagógicas
para a Igualdade Racial na Educação Infantil. São Paulo: Centro de Estudos
das Relações de Trabalho e Desigualdades- CEERT, 2011.

; BENTO, Maria. A. S.; CARVALHO, Silvia P. de. Educação Infantil


e práticas promotoras de igualdade racial. Ministério da Educação/COEDI/
NEAB- UFSCar/CEERT. São Paulo: CEERT, Instituto Avisa lá – Formação
Continuada de Educadores, 2011.

36
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
experiências docentes
com a temática
étnico-racial

Claudia Elizabete dos Santos / Mestre em Educação/UEMG


José Eustáquio de Brito / PPEd/FAE/UEMG
Introdução
A aposta em uma educação que contemple a diversidade étnico-
racial através do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana desde
a infância possibilita que docentes e gestores invistam em processos de
formação continuada em um país multicultural e pluriétnico como o Brasil.
Esse texto dá visibilidade a práticas pedagógicas relacionadas à temática
racial e vivenciadas por duas docentes que trabalham na educação básica
e desenvolveram planos de ação com crianças na educação infantil quando
eram cursistas de um programa de formação continuada, o Lato Sensu em
Docência para a Educação Básica (LASEB).
A escrita dos planos de ação permitiu que cursistas refletissem
sobre possibilidades de socializarem com pares, alunos, famílias e demais
membros da comunidade escolar aprendizagens educacionais antirracistas.
Para Dalben e Gomes (2012) o investimento em formação continuada de
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

profissionais, de um modo geral, é uma questão de exigência para o exercício


da cidadania na contemporaneidade, em diferentes dimensões e níveis.
As edições do LASEB promoveram interações entre docentes da
educação básica e da universidade pública, através dos eixos temáticos do
curso. A constituição desse programa de formação14 esteve diretamente
relacionada aos Núcleos de Estudos da Faculdade de Educação da UFMG,
em especial, o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), o Núcleo
de Educação Matemática, além do Programa Ações Afirmativas na UFMG e
do Observatório da Juventude (OBEDUC).
A coordenação da área de concentração sobre a temática étnico-
racial ficou sobre os cuidados de pesquisadores do Programa Ações
Afirmativas15, programa este que iniciou suas atividades em 2002,
na Faculdade de Educação (FaE) da UFMG. As docentes pesquisadas
participaram das áreas de concentração nomeadas como História da África
e Cultura Afro-Brasileira (2009) e Educação das Relações Étnico-Raciais
(2011), referentes a quarta e quinta edição16 do LASEB.
Nas edições do curso foram disponibilizadas em média 40 vagas
para cada turma/área de concentração, inicialmente disponibilizadas para
professores do 1º, 2º e 3º ciclos do ensino da Rede Municipal da Educação
(RME). Em 2009, as vagas foram autorizadas pela primeira vez para o
Educador Infantil, profissional que trabalhava nas Unidades Municipais de
Educação Infantil (UMEI). Em 2012, o cargo foi renomeado para Professor
Municipal de Educação infantil, através do projeto de Lei 2068/12, de
autoria do Executivo.

14 http://www.fae.ufmg.br/laseb/

15 http://www.acoesafirmativasufmg.org/ 

16 Áreas de concentração: 2009 - Alfabetização e Letramento, Educação Infantil, Educação


Matemática e Juventude e Escola e História da África e Cultura Afro-Brasileira. Em
2011: Alfabetização e letramento, verificar Aprendizagem e Ensino na Educação Básica,
Educação Infantil e Educação matemática e educação das Relações Étnico-raciais.

39
Em 2011, na quinta edição, a área de concentração História da
África e Cultura Afro-Brasileira, foi renomeada como Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e as vagas foram estendidas a outros profissionais da
educação, dentre eles auxiliares de secretaria e biblioteca e bibliotecários.
A mais recente edição do LASEB foi iniciada em fevereiro de 2014 e con-
cluída em maio de 2015. A área de concentração que antes se centrava na
diversidade étnico-racial inclui a temática de gênero (Diversidade, Educa-
ção, Relações Étnico-Raciais e de Gênero). A inclusão do conceito de gênero
potencializou as discussões e fortaleceu as abordagens da disciplina de
Movimentos sociais e ações coletivas. Além disso, permitiu aos docentes
refletirem sobre a desigualdade de gênero e raça, assimetria existente no
âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e
os demais segmentos sociais (BRASIL, 2011).
As docentes que trabalham na educação infantil a cada dia lidam
com turmas heterogêneas e desafiadoras. A contínua procura de vagas
pelas famílias na educação infantil pública, independentemente da classe
social, sinaliza a credibilidade que as famílias vêm depositando no trabalho
desenvolvido nas UMEI.

Apresentação das Cursistas do LASEB

As cursistas egressas do LASEB apresentam trajetórias profissio-


nais próximas, e experiências distintas com a temática étnico-racial, porém
desenvolvem um trabalho alicerçado no respeito às diferenças.
As docentes, cursistas egressas do L A SE B , mesmo após a con-
clusão da especialização continuaram a destacar a temática étnico-racial
em suas práticas profissionais. O desejo manifestado por ambas em terem
suas identidades preservadas nos fez nomeá-las com nomes de origem
africana e afro-brasileira, Akilah e Wambui, nomes relacionadas a sím-
bolos adinkra17. Adinkra é um sistema de símbolos (um tipo de escrita

17 Adinkra é um pano cheio de desenhos e cada um tem seu significado. Estes panos eram usados pelos
líderes espirituais e sacerdotes em rituais secretos e cerimônias, como, por exemplo, nos funerais.

40
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

pictográfica) que revela um provérbio ou um ditado que visa à preservação


e transmissão de ideias do povo Akam, grupo cultural presente em Gana,
Costa do Marfim e no Togo.
Akilah, foi o nome escolhido para a primeira docente que fiz
contato. O nome significa inteligente, que tem razões. O símbolo adinkra
MATE MASIE (o que eu ouço eu retenho), resume-se em sabedoria
e conhecimento. Durante os encontros na UMEI Diversidade, a docente
Akilah demonstrou tranquilidade, serenidade e coerência em seus
posicionamentos sobre a relação com as crianças, pares e a temática étnico-
racial. A docente é egressa da quinta turma do LASEB e está lotada na UMEI
nomeada de “Diversidade”.
Wambui, nome que significa cantante, foi escolhido para a segunda
docente que fiz contato. Ela trabalha na “UMEI Diferença”, nome que se
relaciona com o trabalho que ela desenvolveu na instituição, juntamente com
seus colegas. A docente é uma profissional dinâmica e a palavra movimento
a resume. O trabalho da docente foca a psicomotricidade e musicalidade na
educação infantil. O símbolo adinkra escolhido foi o WAWA ABA , que
simboliza resistência e perseverança. Durante as visitas à escola era possível
observar profissionais comprometidas com seu fazer pedagógico.
Os primeiros contatos com as egressas do LASEB foram
significativos e aos poucos se revelaram como o prenúncio de grandes
descobertas. Vários adjetivos podem ser atribuídos a docentes que se colocam
à frente de projetos e propostas pedagógicas que focam a implementação da
Lei 10.639/03 nas instituições de ensino. Os textos dos planos de ação das
duas docentes que assumiram o compromisso de destacar a temática racial
na infância demonstram o primeiro dos quatro princípios elencados por
Dias (2012), a “coragem”. Dias (2012) considera que trazer para a educação
infantil temas relativos à diversidade étnico-racial implica que educadores
tomem uma atitude ousada e ética em relação à raça/cor e etnia.

41
Caracterização das UMEI
A UMEI Diversidade está localizada em uma regional de
Belo Horizonte que no início do século passado era rodeada de fazen-
das, e deu origem a muitos bairros que foram construídos ao redor de
indústrias e fábricas.
A UMEI Diversidade está localizada em um bairro residencial, área
íngreme e conta com a infraestrutura de lojas, hospitais, centro de saúde e
shopping ao seu redor. A unidade atende aproximadamente 140 crianças, e
se comparada às demais, essa UMEI pode ser considerada de pequeno porte.
A instituição é ampla, limpa, organizada, possui uma entrada totalmente
coberta e uma área plana de aproximadamente 150 metros quadrados,
subdividido em vários espaços18. Segundo a docente, a escola foi uma
conquista dos moradores da região, que no ano de 2000 manifestaram-se
ativamente em prol da construção de uma escola de educação infantil na
comunidade, através das verbas do Orçamento Participativo.
A UMEI Diferença está localizada em uma área periférica de um bairro
de Belo Horizonte. O bairro é fruto de uma ocupação em uma área limítrofe
entre os municípios de Belo Horizonte e Sabará. Os primeiros moradores
ocuparam a região por volta da década de 1980, período que tiveram de enfrentar
condições precárias, como falta de saneamento básico, energia elétrica, saúde
básica e até mesmo acesso a escolas. A localização da UMEI permite às crianças,
docentes e demais moradores acesso a uma vista privilegiada e clima agradável
devido à expressiva área verde preservada no entorno da UMEI. A maior parte
das famílias atendidas na UMEI Diferença mora no bairro, dado diferente do
apresentado pela UMEI Diversidade. A UMEI Diferença pode ser considerada
de grande porte: são mais de 400 crianças com a idade que varia de 0 a 5 anos
de idade. Elas são atendidas nos períodos parcial e integral.

18 Seis salas de aula, estacionamento, playground, anfiteatro, arquibancada, fraldário,


instalações sanitárias masculina e feminina (adulto e criança), dispensa, área de serviços,
vestiário, secretaria, coordenação, depósito, arquivo, sala multiuso, canto de leitura, sala de
professores, área de circulação e jardins.

42
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

A escola foi construída em uma área extensa, terreno relativamente


acidentado, mas que não coloca em risco a segurança das crianças. O portão
principal da escola fica ao lado da garagem que é ampla. Logo em seguida é
possível visualizar uma grande escadaria e uma rampa de acessibilidade
próxima ao parquinho. A entrada da escola é ampla, comunica-se com os
vários espaços da instituição, dentre eles: secretaria, refeitório, cozinha,
banheiros separados para crianças, visitantes/funcionários, corredor, elevador,
sala da vice-direção, sala de televisão, sala de multiuso e as salas das turmas
das crianças de 0 a 3 anos. Uma escadaria leva ao segundo pavimento, onde
ficam as turmas das crianças de 3 e 5 anos e a sala dos professores.

Trajetórias da docente Akilah

Akilah atua na educação há mais de 15 anos. Ela tem dois cargos,


ambos na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, e trabalha
nos períodos da manhã e tarde. A docente assume a sua negritude
demonstrando orgulho e segurança. Ela tem mais de 40 anos de idade,
graduou-se em pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) e especializou-se em Educação e Relações Étnico-raciais pela FaE/
LASEB, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A entrada da docente na graduação deu-se em 2005, pelo critério
de cotas, na UEMG e a conclusão do curso foi em 2009. Ainda em 2009,
inscreveu-se no processo seletivo do LASEB, mas em 2011 que foi aprovada.
A trajetória escolar da docente foi integralmente cursada em escolas
públicas. Akilah viveu uma experiência com a temática racial não muito
comum à maioria das docentes que estão na graduação. Logo nos primeiros
períodos do curso de pedagogia teve contato com a Lei 10.639/03 através
da entrada em um grupo de estudos sobre a temática étnico-racial, no qual
permaneceu até o quarto período da graduação. O tema da monografia
da docente contemplou a diversidade étnico-racial e infância, Ela buscava
entender a importância das narativas na construção da imagem positiva do
negro/a pelas crianças.

43
A entrada da docente em uma universidade pública como cotista,
em 2005, foi em um momento em que as universidades federais ainda
não eram obrigadas a adotar esse critério em seus processos seletivos. Tal
experiência a permitiu trilhar uma trajetória educacional privilegiada e em
diálogo com a diversidade étnico-racial. Akilah, com um grupo de colegas
da graduação, foram selecionados para integrar o Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros da Universidade do Estado de Minas Gerais (NEAB/UEMG). O
grupo participava de um projeto sobre a abordagem da Lei 10.639/03 em
escolas públicas do ensino fundamental. O grupo pesquisado era formado
por crianças autodeclaradas negras, que aceitaram participar da pesquisa
mediante autorização das famílias. O grupo que Akilah participava tinha a
tarefa de tabular dados e auxiliar a escrita da pesquisa, juntamente com os
demais colegas e professores do NEAB.
Segundo a docente, sua ligação e interesse com a literatura é intensa.
Ela considera que a literatura é a disciplina que mais a aproxima das crianças
durante o desenvolvimento de projetos. Para Larrosa (2011) a experiência de
linguagem, de pensamento, de sensibilidade permite a transformação dos
próprios pensamentos.
Para Amorim (2009, p. 101), a literatura infantil tem o poder de
constituir, para a criança, um elo lúdico entre o mundo do imaginário, do
símbolo subjetivo e o mundo da escrita e dos signos convencionalizados pela
cultura. Para Akilah a literatura traz riqueza às aulas por meio da arte, música,
brincadeiras e dos livros infantis e juvenis. A cursista aposta na literatura como
ponte entre as crianças e uma educação para diversidade étnico-racial.

O Plano de Ação de Akilah

O conteúdo do plano de ação de Akilah se aproxima das reflexões de Porter


(1973) sobre as percepções raciais de crianças negras e brancas. Durante a escrita do
plano e conversas com as crianças, ela afirma que já havia identificado atitudes entre
as crianças que demonstravam a não aceitação do “outro” devido à cor da pele. Ela
relata que já presenciou situações de crianças que se negaram a dar as mãos ou se
recusaram a dançar com algum/a colega em uma das festas da escola.

44
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Em 2011, diante o desafio de desenvolver um plano de ação na


UMEI Diversidade, a docente elegeu novamente a literatura como o fio
condutor para a abordagem étnico-racial com as crianças. O uso da literatura
como prática pedagógica foi uma aposta da docente desde a graduação.
Na escrita do plano de ação ela enfatiza a importância da abordagem da
temática étnico-racial na educação infantil, considerando que o preconceito
opera por meio das interações sociais desde a infância. Ao trabalhar com a
literatura infantil, a docente inseriu contos e histórias africanas na intenção
de estimular a imaginação das crianças.
Para Akilah, a afirmação de uma identidade negra positiva muitas
vezes é negada desde a infância, fato que interfere na positivação da própria
imagem e na construção das identidades, muitas vezes pelo fato das crianças
serem estimuladas desde pequenas a valorizarem apenas um modelo
de beleza, o eurocêntrico. Ao refletir sobre o brincar, a docente sempre
observava que não ficava difícil identificar nas brincadeiras e discursos
infantis o sonho de meninas e meninos de serem princesas e príncipes.
Diante da solicitação da escrita e implementação de um plano de ação na
escola em que trabalha pela coordenação do LASEB, a docente priorizou
atividades com contos que pudessem colocar em destaque a imagem de
príncipe e princesa negro/negra, na intenção de trabalhar com todas as
crianças a afirmativa: príncipes e princesas negras existem!
A docente considerou que o objetivo principal do plano de ação
seria o de auxiliar as crianças a valorizarem sua cultura, seu corpo, seu
jeito de ser, favorecendo para que construam uma imagem positiva de si
mesmas, veiculando conhecimentos por meio de histórias e contos infantis
que ensinam maneiras de olhar para si mesmo e para o outro e que podem
trazer identificações positivas da imagem do/a negro/a pelas crianças.
Dentre vários objetivos listados por Akilah destaco o de contribuir
para o conhecimento da beleza, riqueza e dignidade das culturas africanas
e valorizar as características étnicas das crianças afrodescendentes,
possibilitando a identificação com sua cor, a partir do princípio do respeito
às diferenças e do fortalecimento da autoestima.

45
A experiência de Akilah como egressa do LASEB contribuiu
diretamente no processo da implementação da Lei 10.639/03 na UMEI
Diversidade. A docente preferiu registrar no plano de ação exigido pelo LASEB
as práticas vivenciadas com a turma de crianças com as quais trabalhou como
professora referência em 2010. Contando com o apoio da nova professora
das crianças, Akilah iniciou o desenvolvimento do plano de ação com as 16
crianças que eram da turma no segundo semestre de 2011 e que participaram
do projeto “Princesas negras”, além de mais 5 alunos que estavam estudando
na escola pela primeira vez. O plano foi desenvolvido em três semanas, e sua
culminância deu-se antes da semana da Consciência Negra.
A proposta metodológica do plano de ação baseou-se nos contos
africanos, tendo como princípio a positivação da imagem de África. A obra
literária infantil afro-brasileira escolhida foi “O Casamento da princesa” (Celso
Sisto). Após algumas adequações das narrativas e imagens, iniciaram-se os
encontros com as crianças. A docente também apresentou para as crianças
imagens de representantes das realezas africanas na atualidade.
No primeiro semestre de 2012, o primeiro encontro da docente
com as crianças foi especial porque contou com a colaboração da professora
que era a referência da turma. Akilah apresentou para as crianças uma caixa
surpresa e, segundo ela, as crianças não se continham de tanta curiosidade.
Para diminuir a curiosidade, Akilah dizia que a caixa guardava um objeto
precioso que pertencia a alguém muito especial. Ela apresentou os bonecos
negros Abayomi e Lila19. A docente explicou que eles faziam parte de um
misterioso tesouro. Ela revelou que várias crianças insistiram pedindo para
segurar os bonecos. Assim, foi combinado que durante o tempo que ela
estivesse contando histórias os bonecos passariam de mão em mão.
A docente investiu na possibilidade da positivação da negritude,
através da figura do casal de bonecos e das personagens Cadja e seu irmãozinho
(projeto desenvolvido na escola no ano anterior), além da apresentação de
objetos que lembravam a realeza (coroa e varetas com símbolos africanos de
fogo e chuva e belos lenços coloridos). Akilah lembrou que uma das crianças

19 Abayomi significa nascido pra trazer alegria e Lila: boa

46
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

conseguiu se identificar tanto com a negritude que estava sendo valorizada,


que durante a conversa afirmou “eu também sou negro!”
A apresentação da obra “O Casamento da Princesa” para as
crianças continuou em outros momentos por meio de contação de história,
rodas de conversa, produção de desenhos e dramatização. Akilah aproveitou
um momento para questionar com as crianças a existência de príncipes e
princesas negros/as. Tal questionamento permitiu à docente conduzir as
crianças do mundo da fantasia ao mundo real, apresentando a elas imagens
de realezas africanas e promovendo conversas sobre semelhanças e
distinções de reis/rainhas príncipes/princesas pelo mundo afora. Em outro
momento a docente também reuniu imagens de personalidades negras
brasileiras em destaque na mídia e pediu ajuda às crianças para identificá-las.
Akilah considera que, ao apresentar para as crianças imagens de príncipes
e princesas diferentes das que convencionalmente são apresentadas pela
mídia, docentes contribuem na valorização da diversidade cultural.
Ao avaliar a intervenção com as crianças, Akilah considerou que a
acolhida das crianças foi tomada por entusiasmo e que a intervenção alcançou
o objetivo de apresentar para as crianças a figura do negro em destaque,
permitindo que elas consigam se identificar, sem constrangimentos, com
outras referências negras de forma positiva, rompendo com o silêncio
e afirmando com orgulho, “eu também sou negro!”, como fez uma das
crianças. Os desenhos feitos por algumas crianças conseguiram reproduzir a
história contada pela docente e personagens negros/as foram representadas
em posição de destaque, com feições alegres e roupas coloridas.

Trajetória de Wambui

Em 2014, Wambui era professora há mais de 15 anos, trabalhava


há 10 anos Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (RME/BH) e há
5 anos na UMEI Diferença. Além disso, leciona em dois horários em escolas
de municípios diferentes nos períodos da manhã e tarde. O primeiro cargo
da docente é o de professora de educação infantil na Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte (RME/BH), e no segundo cargo ela trabalha

47
como professora do ensino fundamental (1° e 2° ciclo) em outra rede de
ensino da região metropolitana. No período da conversa, a docente tinha
37 anos de idade. Ela se autodeclara parda, e assim como a docente Akilah,
trilhou quase toda sua trajetória estudantil em instituições públicas, com
exceção do ensino superior.
No período da graduação a docente não recebeu uma formação
voltada para a temática racial e nem participou de estudos que a aproximasse
de uma iniciação científica. Diferentemente da docente Akilah, Wambui não
teve a oportunidade de acessar, na graduação, a temática racial, e tampouco
participou direta e/ou indiretamente de pesquisas relacionadas ao tema. As
primeiras participações em debates e seminários relacionados à temática
étnico-racial aconteceram após a entrada da docente no LASEB.
A trajetória da docente demonstra que a proposta curricular do
curso de pedagogia frequentado por ela sinaliza um dos grandes obstáculos
a ser superado pelas universidades públicas e privadas de todo Brasil, ou
seja, a ausência de conteúdos que contemplem a abordagem da diversidade
étnico-racial na graduação.
Segundo a docente, a leitura da escrita do plano de ação fez com
que ela lançasse um olhar mais crítico sobre a sua prática, uma das principais
propostas do LASEB. Em 2012, a docente desenvolveu um projeto na UMEI
Diferença sobre a diversidade racial baseado no plano de ação, porém sem
ter a intenção de alcançar todos os docentes da escola. Nesse mesmo ano,
após observarem e apoiarem o projeto desenvolvido pela docente e por
outros, a coordenação e direção assumiram um posicionamento próximo
ao que se pede nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (2004), incentivaram o desenvolvimento do projeto e
a garantiram a materialidade para sua execução.
Logo no início do ano letivo de 2013, a vice-diretora e a coordenadora
convidaram a docente para apresentar sua experiência como egressa do LA-
SEB para as/os colegas de trabalho durante uma reunião pedagógica. Nesse
mesmo ano, os docentes e demais funcionários da UMEI acataram a proposta
de desenvolverem um projeto institucional sobre a temática étnico-racial.

48
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Ao descrever suas estratégias para apresentar a temática racial


para as crianças, Wambui destacou o uso do Kit do projeto “A cor da cultura”
em sua prática de trabalho. O fato da UMEI Diferença não contar com um
exemplar do Kit não a impediu de desenvolver um projeto e de conseguir
um livro emprestado na outra instituição que trabalha. Wambui considerou
que o uso do Kit, através das histórias de heróis negros/as, sugestões de
brincadeiras e os DVDs fortaleceram sua prática.
Ela considera que antes, sua prática docente não estava relacio-
nada à temática das relações raciais, afinal, ela considerava que o racismo
não existia e que as pessoas exageravam. Após a experiência de ter passado
pelo curso de especialização do LASEB, a docente passou a ter outro posicio-
namento. Ela passou a considerar importância de lançar um olhar cercado
de cuidado em sua prática profissional, procurando dar maior atenção às
crianças, na intenção de incluí-las. Atualmente ela se baseia em legislações,
pesquisas e relatos de experiências na intenção de contribuir no combate ao
racismo e demais discriminações na escola.
A docente considera que conseguiu perceber, com mais evidência,
o quanto as palavras, gestos, situações e julgamentos preconceituosos podem
prejudicar o desenvolvimento das crianças, e como as ações de valorização e
respeito podem positivar a imagem que cada criança tem de si mesma.

Plano de Ação de Wambui

Wambui orgulha-se da sua passagem pelo LASEB. Segundo ela,


a especialização sobre “História da África e Culturas Afro-brasileiras”
permitiu-lhe lançar um novo olhar para a educação e, consequentemente,
reconfigurar sua prática. Se antes ela olhava a escola como um lugar de
poucas tensões, agora ela passou a vê-la como mais um lugar onde ações
e discursos racistas podem estar presentes. A escolha do tema do plano
de ação estava relacionada à sua experiência profissional. Na escrita do
plano de ação a docente focou o tema Identidade negra. Ela considerou
que a Lei 10.6309/03 trouxe reflexos positivos na última década e
contribuiu para a disponibilização gradativa de recursos pedagógicos

49
(livros, produções acadêmicas, artigos, revistas, cartazes, painéis, jogos
e brinquedos). A cada dia a docente mostra-se mais comprometida com
a temática racial, e considera que “a Lei 10.639/03 só será efetivada se
tivermos acesso e interesse em utilizar os materiais e informações sobre
a temática racial na educação”.
Após reflexões sobre sua prática, Wambui considerou que
não precisaria mudar drasticamente a sua forma de trabalhar, e sim,
adequá-la às propostas de enfrentamento do racismo. Desde quando a
docente começou a desenvolver propostas pedagógicas antirracistas na
UMEI Diferença, ela vem assumindo a função de professora de apoio
das turmas, situação que a permite focar atividades que valorizam o
desenvolvimento global da criança e os aspectos da psicomotricidade, na
intenção de desenvolver as áreas afetiva, motora, social e intelectual. A
psicomotricidade no processo ensino-aprendizagem contribui de forma
pedagógica para o desenvolvimento integral da criança. Para Barreto
(2000), a recreação dirigida proporciona a aprendizagem das crianças em
várias atividades esportivas, ajudam na conservação da saúde física, mental
e no equilíbrio sócio afetivo.
O principal objetivo da docente ao introduzir a temática racial em
suas práticas pedagógicas foi possibilitar que as crianças identificassem e
respeitassem as múltiplas possibilidades das diferenças entre os indivíduos
reconhecendo a contribuição do povo negro na cultura brasileira, através
da arte, música e educação.
Na intenção de garantir a introdução da temática étnico-racial em
sua prática pedagógica, a docente Wambui, juntamente com um colega
de trabalho, adotou a estratégia de desenvolver oficinas semanais com
duração diária de aproximadamente 50 minutos ao longo de um semestre.
A docente considera que a contação de história merece lugar de destaque
na sala de aula, prática que pode ser enriquecida com a apresentação de
imagens que coloquem em destaque o negro, sua história, crenças e cultura.
Os professores devem utilizar diferentes linguagens (corporal, musical,
plástica, oral e escrita) ajustadas às diferentes intenções e situações de
comunicação, de forma a compreender e ser compreendido, expressar suas

50
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

ideias, sentimentos, necessidades e desejos e avançar no seu processo de


construção de significados (BRASIL, 1998, p. 63).
A docente utilizou diversos materiais recicláveis para confeccionar
instrumentos musicais para que as crianças pudessem extrair sinais sonoros
(latas, papelão, pedrinhas, cordas, tampinhas, lixas), além do uso do próprio
corpo para que as crianças percebam os diferentes sons emitidos pelos
materiais e pelo próprio corpo.
No período que Wambui implantou o plano de ação na UMEI
Diferença, a escola contava com uma sala ociosa, e, juntamente com um
colega da escola e apoio da gestão, criaram um atelier intitulado “Oficina de
Arte”. Foi nesse atelier que as crianças, sob orientação dos docentes, colocaram
a “mão na massa” e transformaram arte em ritmo e alegria na UMEI
Diferença. No atelier foram confeccionados artesanalmente: instrumentos
musicais, cartazes, peças decorativas de argila, sacolas ecológicas e de
papel machê. A Oficina de Arte funcionou por um ano, tempo suficiente
para fazer a diferença. O atelier convidava as crianças a laçarem mão da
criatividade em todos os momentos. As atividades propostas desafiavam as
crianças a explorarem o potencial acústico do próprio corpo, as habilidades
manuais e cognitivas e as relações interpessoais. Essa situação promoveu
aproximação e trocas contínuas, afinal outros tipos de inteligência também
entram em cena. Através das artes plásticas, por exemplo, a professora
convida as crianças a decorar trajes e instrumentos musicais que compõem
a dança, além de propor pinturas, desenhos e modelagens das vestimentas
utilizadas, como o maracatu.
Os momentos na Oficina de Arte possibilitaram que a docente
garantisse na UMEI Diferença um espaço a mais de ludicidade. O foco na
diversidade étnico-racial permitiu que ela adequasse a sua prática aos valores
civilizatórios. Assim, a rotina da contação de histórias, a roda, as danças e
músicas permitiram que fossem abordados com as crianças os conceitos
de oralidade, musicalidade, corporeidade, memória e ancestralidade.
A turma de Wambui tinha 25 crianças (16 meninos e 9 meninas),
entre elas 17 negras (pretas e pardas) e 8 brancas. A docente lembrou
que quando apresentou a proposta pedagógica sobre a temática racial às

51
famílias das crianças, o retorno delas superou todas as expectativas. Além
de aprovarem a proposta, as famílias auxiliaram as crianças a responderem
uma enquete sobre suas músicas e brincadeiras preferidas. Com o resultado
desse levantamento, a docente montou uma tabela que permitia que as
crianças se conhecessem melhor.
Wambui apresentou para as crianças a música “O canto das três
raças”, interpretada por Clara Nunes, momento em que as crianças pu-
deram explorar novamente os instrumentos musicais da escola e outros
confeccionados por elas de forma artesanal (tambor, atabaque e chocalho).
Gordon (2000) considera que a música possibilita às crianças o autoconhe-
cimento, o conhecimento do outro e o desenvolvimento da criatividade.
Nesse mesmo dia as crianças fizeram um painel coletivo chamado
“Retrato Étnico”, atividade que propunha que cada uma delas reproduzisse a
própria imagem em um grande painel. Já no encontro seguinte, na Oficina
de Arte, os alunos, sob a orientação de Wambui, exploraram a sonoridade
dos tambores da escola, dando uma atenção especial para um tambor maior
e multicolorido feito de uma embalagem de papelão, chamada barrica.
Segundo a docente, o instrumento passou a ser considerado o símbolo do
projeto, afinal era maior que muitas das crianças da UMEI. As crianças
também confeccionaram vários mini tambores, que, após as apresentações,
levaram para casa. Para Oliveira (2010, p. 61), os tambores também são
nossos ancestrais. Eles falam e se comunicam através de seus toques, que
são códigos inconfundíveis de um chamamento espiritual e corpóreo,
capazes de revelar a necessidade de valorização da cultura africana.

Considerações Finais

As práticas pedagógicas sobre a temática étnico-racial apresen-


tadas neste texto foram vivenciadas por duas cursistas egressas de um
programa de formação continuada. Elas socializaram experiências singu-
lares, únicas e plurais com o ensino da história e cultura afro-brasileira
na educação e conseguiram mais do que implantar um plano de ação nas
UMEI que trabalham; elas foram além, ao garantirem às crianças da

52
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

instituição a possibilidade de serem inseridas em uma proposta educacional


que vem garantindo a possibilidade de a gestão, coordenação, demais do-
centes e famílias refletirem sobre a viabilidade de se vivenciar uma infância
sem racismo.
Porém, não há como não mencionar a contribuição sem precedentes
de programas de formação docente que conseguem dar voz a um currículo,
que há muito tempo está silenciado e inviabilizado. Embora tenhamos
boas experiências de formação continuada em nível de aperfeiçoamento e
especializações, a abordagem do ensino da história e cultura afro-brasileira
na graduação continua sendo um dos maiores desafios para os gestores de
cursos universitários em todo Brasil. É preciso que os cursos de formação
continuada também acessem docentes de instituições universitárias dos
vários municípios brasileiros e não apenas dos localizados nas grandes
metrópoles. Caso contrário, a obrigatoriedade do ensino da temática étnico-
racial em todos os níveis e modalidades de ensino torna-se inoperante.

53
Referências Bibliográficas

BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana.
Brasília: SECAD/ME, 2004.

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escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03 / Nilma Lino Gomes (org.). 1. ed.
Brasília : MEC ; UNESCO ; IPEA, 2012.

DALBEN, Ângela I. L. F. e GOMES, Maria de Fátima Cardoso. Prefácio.


Formação continuada de docentes na educação básica (LASEB): impactos
dos planos de ação nas escolas. In Maria das Graças de Castro Bregunci,
(org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

DIAS, Lucimar Rosa. Formação de professores, educação infantil e


diversidade étnico-racial: saberes e fazeres nesse processo. Revista Brasileira
de Educação. v. 17, n. 51 set - dez. 2012.

GORDON, Edwin E.; Teoria de Aprendizagem Musical – Competências,


conteúdos e padrões; Fundação Calouste Gulbenkian; 2000; Lisboa,
p.63 – 470.

LORROSA, Jorge. Experiência Alteridade e Educação. In Notas sobre a


experiência e o saber de experiência. In: Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz
do Sul, v.19, n2, p.04-27, jul./dez. 2011.

OLIVEIRA, Kiusam Regina de. Religiosidade de matriz africana:


desconstruindo Modos de brincar: caderno de atividades, saberes e fazeres
/ [organização Ana Paula Brandão, Azoilda Loretto da Trindade]. - Rio de
Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010.

54
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

SILVA, Santuza Amorim da. Letramento Literário: experiências da formação


inicial. Educação em Foco, v. 12, 2009.

PORTER, Judith D.R. Black Child, white child – The development of racial
Attitudes. 2. Ed. Massachusetts: Harvard University Press, 1973.

55
TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO
DA EDUCAÇÃO PARA AS
RELAÇÕES RACIAIS EM
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DO
CORPO DOCENTE EM UMA
UMEI EM BELO HORIZONTE

Regina Márcia P. de Oliveira


Introdução
O presente trabalho é parte de uma pesquisa realizada entre o ano
de 2014 a 2016, na qual cinco professsoras, com idade entre 30 a 50 anos,
participaram das entrevistas, que trata das práticas pedagógicas e a educação
para as relações raciais na educação infantil, em uma Unidade Municipal de
Educação infantil -UMEI em Belo Horizonte.
As análises de como as professoras compreendem o conceito
Práticas Pedagógicas na educação infantil e sua articulação com a Educação
para as Relações Raciais, obrigou-nos a problematizar algumas questões que
envolveram também a compreensão de infância considerando o critério cor/
raça. Isso se justificou uma vez que, nas conversações, por recorrentes vezes,
as crianças foram colocadas na categoria de indivíduos bons e inocentes
desprovidos de preconceitos e/ou de atitudes racistas. Quase sempre visões
romantizadas são desenvolvidas em torno das crianças e suas respectivas

57
infâncias, uma vez que “essa visão pode fazer com que muitos profissionais
desconsiderem as questões sociais e culturais da vida da criança, pois, já que
a criança se desenvolve apenas no espaço maturacional/biológico, não há
necessidade de intervenções” (SOUZA, 2010, p.24).
O desenvolvimento de práticas pedagógicas pontuais implica
considerar as mudanças políticas e culturais que incidem diretamente no
ensino, o que obriga a escola a se mostrar como um ambiente estimulante,
onde o conhecimento deve ser construído, respaldado pelo pensamento
crítico e coletivo das ideias entrelaçadas pelas muitas culturas que habitam
o universo escolar, especificamente, a educação infantil, em que o lúdico
deve ser (re)pensado paralelamente ao ato de educar.
Na educação infantil não pode haver o momento das brincadeiras
e o momento do educar e cuidar. Essas ações, de acordo tanto com as
proposições curriculares quanto com as pesquisas que se orientam nesse
sentido, comungam com essa nova característica que deve vir permeando
esse novo modelo educativo. Para Freire (1998), a prática do/a professor/a é
algo que exige reflexão e compreensão do fazer crítico e autônomo. São essas
posturas que apontam a possibilidade de a escola ter condições de construir
pontos de ligação no processo de adequação às mudanças de forma criativa
e inovadora e, consequentemente, a se posicionar socialmente,como um
espaço de acolhimento e respeito às diferenças, que são um fator de
possibilidade e riqueza cultural e não de desqualificação e seleção dos
sujeitos com base em seu pertencimento social, de gênero ou racial. Nesse
sentido, “queremos que as escolas melhorem. [...] Uma criança não deve ter
suas circunstâncias educacionais limitadas pela renda dos pais, pela cor de
sua pele ou pelo dialeto que fala” (TAKAYAMA, 2005, p. 15-16, apud BURAS
e APPLE, 2008, p. 21).
Assim, as práticas pedagógicas alcançam uma posição de destaque
e de responsabilidade em colocar de forma autônoma e crítica a engrenagem
social transformadora da escola funcionando. No caso da educação para
as relações raciais, esse esforço enfrenta maior dificuldade, pois lida com
relações de poder e hierarquização dos identificados socialmente como
“diferentes”. Quando se trata das crianças negras, principalmente em

58
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

instituições públicas, deve-se considerar que historicamente a escola


pública fundou-se em dois preceitos, a disciplina e o higienismo. Assim,
professores/as oriundos de uma formação proveniente de um currículo
tradicional enfrentarão grandes problemas na construção de novas posturas,
uma vez que ao falar de educação infantil está a se falar de uma educação que
se respalda no corpo. De acordo com Bento (2011, p. 20), “[...] no Brasil, as
representações do corpo negro estão marcadas por estereótipos negativos”.
Para a construção dessa ação autônoma e crítica das práticas
pedagógicas na educação infantil, o/a professor/a precisa ter claro o
real significado do conceito de educação como uma ação responsável
pelo desenvolvimento humano, que no decorrer de sua vida vai fazendo
distinções entre o que é certo e errado, bom ou ruim, pertencimento a
essa ou aquela cultura, justiça e injustiça, que, quando confrontado com a
educação recebida na escola, irá nortear as escolhas e os posicionamentos
sociais de forma positiva perante as deformações sócio-históricas. Isso pode
impactar o futuro por intermédio de significativas intervenções sociais. Para
Bento (2011, p. 20) “na educação infantil, as crianças começam a perceber
as diferenças e semelhanças entre os participantes de seu grupo [...] e,
dependendo dos recursos afetivos e sociais [...] esse processo pode ser mais
positivo ou mais negativo para a constituição de sua identidade”.
Quando a escola compreende, considera e respalda suas ações
pedagógicas alicerçadas na importância da temporalidade entre o processo
de transição da saída das crianças do seio familiar e o seu ingresso em um
novo espaço social, onde as marcas de suas relações de pertencimento e sua
relação com a família são lembranças fortes, importantes e significativas
para elas, o lançar mão dessas marcas enquanto recurso pedagógico,
significa oportunizar a inserção do diferente como sendo qualidade e o
reconhecimento e aceitação deste pelos demais.
O desprendimento de um ambiente a outro demanda tempo
e principalmente, conta com a compreensão dos/as professores na
construção de possibilidades que oportunizem a elas confrontarem o
que aprendeu em casa com seus pais e o que a escola tem lhes mostrado
enquanto conhecimento. Logo, sua iniciação educativa é permeada por

59
sentimentos contraditórios e de estranhamento. Momento em que se
espera que o/a professor/a, acostumado e ensinado a se comunicar apenas
verbalmente, aprenda a traduzir os significados dos corpos e desenvolva
práticas libertadoras explícitas nas atividades cotidianas da escola.
No entanto, esse momento é marcado por divergências e/ou in-
correções, uma vez que cada professor/a traz impresso em suas práticas
pedagógicas um pouco daquilo que aprendeu em família e no processo de
formação inicial. Isso o/a leva a quase sempre a ignorar e/ou desconsiderar
o contexto em que está desenvolvendo suas práticas.
As práticas pedagógicas na educação infantil devem levar em con-
sideração a visão de mundo que a criança traz de casa, seus conhecimentos
prévios, sua origem e pertencimento racial de maneira a valorizar esses
pilares, para que a educação cumpra na sua integralidade sua função de
formação humana.

Investigando as práticas pedagógicas

Com o intuito de identificar como os/as professores/as investi-


gados/as compreendiam e interpretavam o sentido do conceito de práticas
pedagógicas para a educação das relações raciais e em que concepções as ali-
cerçavam é que o referido texto se orientou, além de ter, também, o objetivo
de analisar a pré-disposição do contexto investigado em desenvolver práticas
pedagógicas para a Educação das Relações Raciais. A seguir quadro do perfil
das professoras entrevistadas:

ENTREVISTADAS COR CURSO E ANO EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕS


AUTODECLARADA DE FORMAÇÃO RACIAIS: O QUE PENSAM
SOBRE

PROF.ª 1PF Negra Pedagogia/2008 Mecanismo de ajuda no processo


Descendente do de autoidentificação das crianças.
quilombo dos Luízes

PROF.ª 2PL Parda Magistério E. Combate de situações cotidianas


Médio/2012 de racismo na escola.
Mecanismo produtor de diálogos
sobre situações de racismo na
escola.

60
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

ENTREVISTADAS COR CURSO E ANO EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕS


AUTODECLARADA DE FORMAÇÃO RACIAIS: O QUE PENSAM
SOBRE

PROF.ª 3PC Branca Pedagogia/2016 Possibilidade de reverter o


racismo que a criança traz de
casa.

PROF.ª 4PL Branca Magistério/1979 Imposição social e educacional.


Educação para às crianças negras
que se sentem diferentes das
demais.

PROF.ª 5PM Branca Psicologia clínica Disciplina a ser mantida na


Pós-Psicologia categoria de uso esporádico.
educ. 1982 Instrumento de exaltação do
negro de maneira excessiva.

Fonte: Dados da pesquisa Práticas Pedagógicas e a Educação para as Relações Raciais


na Educação Infantil, 2015.

Foram articulados a esse processo de análise os dados obtidos


com relação à opinião das professore/as relacionados à infância de criança
negra e à infância de criança branca, bem como a relação que eles/as fazem
entre a infância que tiveram e as infâncias de seus alunos/as, no sentido
de identificar em que dimensões tais infâncias estão sendo colocadas pelos/
as docentes que desenvolvem práticas pedagógicas na Unidade de Educação
Infantil pesquisada. São essas compreensões que vão caracterizar e externar
os pressupostos teóricos engendrados no resultado prático das práticas
pedagógicas no campo das relações raciais, tornando-se possível, portanto,
mensurar a possibilidade de suas práticas trabalharem na concepção de uma
educação para as relações raciais ou não.
Das cinco professoras entrevistadas, três delas são formadas pos-
teriormente à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/96
e também após a implantação da lei 10.639/03, e trazem em seus discursos
uma prática pedagógica na educação infantil alicerçada no cuidar e edu-
car orientada por ações construídas no campo pedagógico. Nesse campo, a
educação infantil se posiciona no sentido de interpretar as manifestações
corporais das crianças, identificando suas necessidades e percebendo seus
contextos de origem.

61
[...] as práticas na educação infantil são ações mesmo. [...] aquilo
que vivencio, vivenciei através das ações com as crianças. [...]
não tem como fugir do cuidado. As crianças chegam aqui muito
desprotegidas. Carentes. “Elas chegam assim, carentes em todos os
sentidos” (PROF.ª 1PF. ENTREVISTA, 2015).

Mesmo não tendo como fugir do cuidado e avaliando a condição


social precária em que as crianças chegam à UMEI, o cuidado foi desvinculado
da categoria do assistencialismo, quando as ações docentes são colocadas
em bases teóricas de atuação: “[...] talvez se a gente tivesse o PPP pronto
talvez pudesse seguir o que está lá. Mas, eu procuro seguir as proposições
curriculares que dá um direcionamento” (PROF.ª 1PF. ENTREVISTA, 2015).
O Projeto Político-Pedagógico e o currículo da educação infantil
assumiram no discurso da professora sua função original que é de orientar
e organizar as práticas pedagógicas na escola num todo coeso. Alicerçar as
práticas nesses documentos orientadores evita incorreções e fragmentação
do processo educativo da escola como um todo, embora, muitas vezes, esses
dois instrumentos sejam quase que invisibilizados no cotidiano escolar de
educação infantil.
As práticas pedagógicas concebidas nas diferenças entre sujeitos
foi outra característica que apareceu no diálogo tecido nas entrevistas: “Você
não tem que exigir de um e de outro que seja igual. As pessoas são diferentes”
(PROF.ª 2PL. ENTREVISTA, 2015). Ao alicerçar as práticas em concepções
sociais e culturais, as questões trazidas pelas crianças são valorizadas
e potencializadas no cotidiano escolar, sendo necessário “respeitar os
valores, porque muitas vezes os meus valores para aquela criança não têm
significado algum. Eu acho que a gente aprende todos os dias. A gente olha
e fala assim..., Olha,... Eu achei que eu sabia isso... E eu não sabia” (IDEM).
Para Viana (2010, p. 32),

É fundamental que se conheça e entenda a criança como pessoas


de sentimentos, vontades, desejos e necessidades, sobretudo com
direitos e deveres para, a partir de tais considerações, agir sobre ela

62
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

de forma que possa contribuir para o seu desenvolvimento, sendo


que a relação entre criança, família e escola deve ser dinâmica e
verdadeira, caracterizando-se pela participação dos educadores e
dos seus responsáveis, sem deixar de conhecer e reconhecer sua
história de vida.

No que se refere às colocações da professora 2PL, fortes nuances


de (auto) reflexão sublinham o seu discurso de forma a pontuar que falar de
práticas pedagógicas é falar de nós e dos outros; é ser capaz de olhar para
dentro de si e se interrogar. O espelho orientador do/a professor/a são suas
práticas. São elas que, com sinceridade, irão dizer realmente se a direção
escolhida atende às necessidades do fazer pedagógico e/ou se os diferentes
sujeitos que povoam o contexto escolar têm sido contemplados pelo olhar
atento de práticas pedagógicas de valorização das diferenças.
Em muitos momentos foi apresentado, por parte do corpo docente
da UMEI, o estado de fragilidade social com que as crianças chegam à escola.
Quando compara sua experiência de infância no Quilombo, a professora 1PF
destaca que a infância das crianças de hoje é mais vulnerável socialmente,

[...] a nossa UMEI é marcada pela pressão social do entorno, então


as crianças convivem muito com violência, com tráfico de drogas;
se você observar eles escolhem as brincadeiras e as preferidas são
imitações de tiro, de revolver papapapapa, e correndo da polícia
(PROF.ª 1PF. ENTREVISTA, 2015).

Dessa forma é inevitável não diferenciar as infâncias de crianças


negras das infâncias de crianças brancas conforme pontua a professora, uma
vez que as infâncias, por serem de responsabilidade social e do Estado, sofrem
a hierarquização histórica, sociopolítica no contexto escolar. As infâncias negras
carregam o peso segregador da história racista nas costas. Isso vem simbolizado
pela falta de oportunidades e, principalmente, pela negação social de suas
histórias, pela negação da presença do critério cor/raça nas brincadeiras, nos
afetos, entre outros fatores dificultadores, como registra o seguinte depoimento:

63
Com certeza são muitas as diferenças né? Muitas, muitas mesmo!
Até pela questão geográfica de localização né. Porque as crianças
negras residem... Eu não estou falando só daqui do quilombo, mas
de um modo geral pelas crianças que eu tenho na escola que estão
mais dentro do aglomerado.
E as crianças brancas a gente percebe... Não só aqui no quilombo, mas
também na escola né? A gente vê essa diferença nas brincadeiras,
nas formas de expressão... E eu percebo que assim... Está muito
voltado para a realidade social dessas crianças. E a infância... E
as brincadeiras são muito voltadas para isso. Mas também pela
localização, pois os negros estão mais na maioria dentro do
aglomerado. Ou dentro dos quilombos, a parte mais afastada. E os
brancos já estão mais no asfalto.
A gente identifica muito nas brincadeiras que a gente vai fazer,
muitas eles já conhecem. Agora quando é uma criança branca... A
cultura é outra, a brincadeira é outra. A forma de brincar de um
modo geral... Eles já têm as brincadeiras com brinquedos mais
industrializados... Entra mais a questão da informática... Mais no
conhecimento assim, da Informação. Eles têm uma informação
maior sabe? Com relação às coisas... Eles viajam mais... Tem uma
cultura melhor nesse sentido. Agora, a criança negra tem um
resgate... Tem muito aquela questão de contar histórias... A coisa
tradicional que vem de família... (PROF.ª 1PF. ENTREVISTA, 2015).

Embora exista uma sociologia da infância, no caso das crianças


negras, esse campo do conhecimento não visibiliza a infância delas. E, como
exposto pela professora 1PF, mesmo não se tratando de crianças de quilombo,
um território de tradição, as crianças pertencentes a outros espaços trazem
fortes traços da cultura e da tradição negra. Isso torna imprescindível
à sociologia da infância como forma de ampliar a discussão sobre esse
período, considerando a raça enquanto um critério de compreensão das
infâncias das crianças negras que permeiam as muitas escolas brasileiras.

64
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Muitos pesquisadores/as de uma forma ou outra têm se


movimentado em articular discussões em torno das práticas pedagógicas e
do currículo, nos quais o critério raça/cor deve ser considerado no processo
de promoção da igualdade racial na educação e na construção da identidade,
tanto de jovens e adultos, mas, principalmente da criança negra, fato esse
que nos permite tecer considerações sociológicas referentes à infância
de tais crianças (BENTO, 2011); (CANDAU, 2003); (CAVALLEIRO, 2003,
2005); (GOMES, 2006); (GOMES e ABRAMOWIZ, 2010); (SILVA, 2007);
(TRINIDAD, 2011).
Outro ponto que chamou a atenção foi o fato recorrente de colocar
a categoria infância de crianças negras vinculadas ao passado escravocrata.

No tempo da escravidão as crianças negras trabalhavam e as crianças


brancas eu creio que tinham uma vida de brincadeiras. Há uns
tempos atrás para mim era preconceito mesmo de mistura de
criança negra brincar com criança branca. E às vezes né hoje um
tema não trabalhado... O racismo né... O preconceito que hoje o
povo já tem... Está começando um pontinho já de esclarecimento
(PROF.ª 2PL. ENTREVISTA, 2015).

A falta de informação adequada sobre as questões raciais impede,


de certa forma, a ação diferenciadora das infâncias de maneira positiva, o que
as respalda no racismo. Persiste ainda o velho hábito social em focalizar o/a
negro/a no passado, no tempo da escravidão. Isso delineia que a sociedade ainda
apresenta dificuldade em libertar o consciente coletivo de associar a imagem
dos/as negros/as à escravidão. Com isso as outras dimensões sociais em que
a população negra deveria ser visibilizada, como na cultura, na economia, na
educação, entre outros setores sociais, ainda estão hierarquizadas/colonizadas
mesmo com tantas discussões a engendrar o cotidiano social.
A infância das crianças negras ainda está invisibilizada pelas questões
da escravidão, o que impede essa categoria ser pensada nas dimensões
culturais e de construção de uma identidade vinculada ao pertencimento
étnico para além das fronteiras sócio-históricas do racismo.

65
A infância foi também comparada pelas professoras com nuan-
ces temporais, em que as crianças da UMEI são visualizadas pela lente
das infâncias de suas respectivas professoras, sendo, portanto, semelhan-
tes no ato de brincar, “o que me lembro é que eu brinquei muito... e em
educação infantil a gente sempre incentiva o brincar né” (PROF.ª 2PL.
ENTREVISTA, 2015).
Na análise identificou-se que, para ela, a professora 2PL, a
brincadeira na educação infantil é sinônimo de felicidade, de movimento
do corpo infantil. Considerando que esse movimento é impedido pela
tecnologia, ela pontua mais adiante a função das práticas pedagógicas
enquanto primordial instrumento promotor de ações de movimento. E essa
felicidade se materializa no ato de brincar na infância por intermédio do
resgate das brincadeiras do passado. Estas, no entendimento da entrevistada,
promoviam movimentos amplos nas infâncias passadas:

Eu brinquei muito. Eu fui uma criança feliz porque eu brinquei


de tudo e às vezes a gente resgata algumas coisas com as crianças
que hoje a tecnologia não está deixando-as brincarem. Ai a gente
pede lata, alguma brincadeira de roda... Que eu... Eu quando criança
brinquei muito. Então a gente tenta resgatar com as crianças da
educação infantil isso também. [...] eu fui uma criança que brinquei
muito. Brincava de tudo... De roda, de queimada, de... Rouba
bandeira... E são brincadeiras que ficaram um pouco esquecidas pela
tecnologia. Mas a gente tenta na educação infantil estar resgatando
isso tudo com as crianças (PROF.ª 2PL. ENTREVISTA, 2015).

Fato é que as brincadeiras na infância são possiblidades de


exercitar e solidificar o estado de felicidade e de liberdade no espírito
infantil. Na primeira infância e, principalmente na educação infantil,
brincar juntos depende da predisposição dos adultos. As brincadeiras
infantis movimentadas pelos adultos entre crianças devem ser intrínsecas
ao afeto. Assim, as práticas pedagógicas na educação infantil têm que vir
permeadas de carinho, afetividade e reconhecimento das diferenças em

66
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

valorização do conhecimento infantil. Isso faz parte da infância e/ou deveria


fazer. Para Viana (2010, p. 35) “a educação infantil deve ser pautada em uma
pedagogia que valorize a afetividade, em uma dinâmica dialógica, aspectos
importantes para o desenvolvimento pleno da criança”.
Quando relaciona sua infância com as das crianças, a professora
3PC argumenta que a evolução tecnológica modificou o modo de brincar
das crianças. Esse argumento também foi defendido pela professora 2PL.
Porém, a professora 3PC vê a tecnologia por um viés positivo. Para ela,
as novas tecnologias trouxeram um desenvolvimento econômico e mais
oportunidade de acesso às coisas, logo, qualquer pessoa pode ter acesso aos
novos brinquedos, diferentemente de sua época. Porém, há de se considerar
- e a pesquisa considerou - que a tecnologia representa em muitas ocasiões
não a mandatária de facilidade econômica, mas, sim, um instrumento
regido pela intencionalidade do mercado em focar nessa categoria uma
possibilidade de ganhos20 dentro do sistema econômico.

Em alguns aspectos eu brincava de ser professora. Eu lembro


direitinho que eu tinha um quadro. Meu pai me deu um quadro, giz.
E eu dava aula para os meus irmãos. Hoje em dia você vê algumas
crianças que têm esses tipos de brincadeiras. Mas está muito
diferente. É mais voltado para o tecnológico. Para as tecnologias.
Aquelas brincadeiras que a gente tinha de bolinha de gude, de fazer
você ver uma latinha e visualizar um carrinho. Porque condições
financeiras assim nós não tínhamos. Então nós tínhamos que fazer
do que a gente tinha o lúdico né? (PROF.ª 3PC.ENTREVISTA,2015).

Independente das mudanças ocorridas no modo do desenvolvimento


das infâncias trazidas pelos avanços tecnológicos faz-se necessário que o/a
professor/a desenvolva suas práticas pedagógicas compreendendo que a
infância mudou, porém as crianças continuam sendo crianças. Com isso,

20 Ler o artigo de SIROTA, Règine. Emergência de uma sociologia da infância: Evolução


do objeto e do olhar.

67
a infância deve ser considerada em sua dimensão sócio-histórica, para que
as comparações entre infâncias do passado e do presente não construam
equivocadamente situações de reprodução de uma infância que já passou,
portanto, sem efeito positivo às exigências das novas demandas sociais.
Para Souza (2010), discursos temporais de comparação entre as infâncias
são bastante recorrentes na educação infantil e, nesse sentido, a categoria
infância deve vir compreendida enquanto um processo em construção,

Sendo a infância uma construção, com certeza há diferenças entre a


infância dos nossos pais, da nossa própria infância e das de nossos
filhos, nem melhor, nem pior, apenas diferentes. O contexto familiar
mudou e, consequentemente, as atividades e as brincadeiras
desejadas e desenvolvidas pelas crianças (SOUZA, 2010, p. 26).

Para a professora 3PC, “[...] o que a gente vê é que a gente tem


que trabalhar e resgatar essas brincadeiras que a gente tinha antigamente
para essas crianças de hoje” (PROF.ª 3PC. ENTREVISTA, 2015). Essa
argumentação propicia questionar o ter de resgatar essa história de
brincadeiras infantis. Em que moldes está respaldado esse resgate? Em
que linha de construção pedagógica tais articulações estão embasadas?
Até que ponto as práticas pedagógicas desenvolvidas nesse resgate das
brincadeiras das infâncias passadas estão vinculadas à criança do presente
e não na reprodução inconsciente por parte do/a professor/a em resgatar
a própria infância? E/ou acreditar que determinados valores considerados
perdidos possam ser resgatados a fim de resolver muitas mazelas sociais?
Mazelas essas muitas vezes atribuídas às novas visões e concepções
de comportamento e de mundo trazidas pelos avanços tecnológicos e
pelo estreitamento das fronteiras. Em que medida as crianças da UMEI
investigada têm oportunidade de viajar no mundo da imaginação, dada a
complexidade social em que estão inseridas? Identificou-se que muitas delas
desenvolvem suas infâncias em ambientes nada convencionais permeados
pela violência social e familiar em muitos casos. Para Souza (2010, p. 27), “É
claro que esses aspectos de fantasia e criança caracterizam a infância, mas
não é isso que vai viabilizar a infância de uma criança”.

68
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Considerando tais argumentações, o questionamento que se faz


é: o que vai viabilizar as infâncias das crianças negras? Isso porque, quando
se trata de repensar e pontuar a infância desvinculada do fator raça, os
pensamentos estão alicerçados em infâncias passadas. Logo, ao tratar das
infâncias negras, percebe-se que o olhar histórico das professoras apresenta-
se desfavorável às crianças negras, uma vez que suas infâncias são pensadas
e/ou concebidas ainda com o olhar na senzala. Trata-se de uma infância de-
satualizada e desvinculada das novas construções e discussões relacionadas
à nova postura social em que o critério raça se faz importante no processo
de produção de práticas pedagógicas antirracistas na educação infantil.
Mesmo reconhecendo a predisposição das professoras em de-
senvolver práticas pedagógicas na visão das relações raciais, o imaginário
coletivo produzido pelo pretenso mito da democracia racial impede o
avanço e o desenvolvimento de práticas diferenciadas nesse contexto edu-
cativo, onde as crianças negras são pré-pontuadas enquanto herdeiras da
discriminação racial.

[...] elas já trazem algumas marcas de preconceito. Então eu acho que


isso é um traço que modifica um pouco a essência leve de ser criança
né? Mais... Eu não gostaria que tivesse essa diferença, mas a gente
percebe. Às vezes a criança é um pouco arredia. Elas falam pouco.
Elas se limitam a esperar a vez (PROF.ª 4PL. ENTREVISTAS, 2015).

Mesmo identificado e assumido o preconceito racial na infância,


ainda persiste no discurso docente uma busca incoerente que justifique,
minimize e/ou camufle a existência da feia marca histórica que engendra
as relações entre negros e brancos no Brasil. “Mas a essência de ser criança
e de ter uma infância é direito de todos” (PROF.ª 4PL.ENTREVISTA,
2015). A simplificação das questões raciais primando para o direito à
igualdade entre as pessoas tem sido um dos fortes argumentos recorrentes
em não assumir e/ou se posicionar favoravelmente à implementação de
uma educação para as relações raciais. Tais argumentações fortalecem e
reproduzem práticas pedagógicas resistentes ao processo de construção

69
de um currículo multicultural na educação infantil. O viés da aparente
naturalidade simplifica os casos de racismo percebidos no contexto escolar.
Com isso, fica evidenciado que um perfil docente oriundo de
uma cultura forjada em bases segregadoras e num currículo com valores
hierarquizados, os resultados serão, consequentemente, de perpetuação
das desigualdades raciais no contexto da educação infantil, na qual práticas
pedagógicas liberadoras do corpo infantil não terão condições de germinar.
Considerando que as práticas pedagógicas compreendidas pela professora
4PL estão enraizadas na meritocracia, são práticas pedagógicas desenvolvidas
no sentido de civilizar o indivíduo e, no caso específico das crianças negras,
de acordo com Oliveira (2015, p. 130), “o processo de socialização na
instituição escolar, ‘tornar-se civilizado’ significa ‘branquear-se”.
Outro fator percebido na compreensão dos comportamentos
externados pelas infâncias e nas infâncias de crianças negras descortina
pelo viés da psicologia clínica e do desenvolvimento infantil. Nesse caso, a
professora 5PM21 argumenta que a teoria em psicologia clínica e educacional
e sua experiência ajudam-na a diferenciar “o que que é pirraça, do que que
é realmente uma necessidade, ou um momento da criança. E a gente sabe
fazer essa diferenciação”(PROF.ª 5PM. ENTREVISTA, 2015)22.
Embora o objetivo desse estudo não seja desconsiderar/desqualificar
a Teoria do Desenvolvimento infantil em Piaget, paraa compreensão da
infância, e principalmente das infâncias das crianças negras, a referida
teoria mostra-se rasa e não possibilita, portanto, responder a complexidade
inerente ao campo das relações raciais apenas com a articulação dos saberes
produzidos por intermédio desse campo do conhecimento. Compreender a

21 Sua experiência profissional docente ocorreu num período em que para atuar na educação
infantil não havia necessidade de ter o magistério. Em seguida sua carreira na EI se deu
por muitos anos em escolas de educação infantil particular, paralela à sua formação em
psicologia clínica, onde a teoria de Piaget foi largamente desenvolvida. E é essa experiência
que a professora traz para a educação infantil pública.  

22 A professora respalda sua fala na teoria de Piaget.

70
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

dimensão racial faz-se necessário à articulação e à compreensão dos muitos


posicionamentos de ordem sociológica, antropológica e cultural. Flavell
(1991) apud Vieira e Lino (2007, p. 199) argumenta que,

[...] Piaget recusa claramente a tese de que a evolução do pensamento


e do comportamento humano é determinada por um conjunto de
influências externas (ambiente, sociedade e cultura) e propõe uma
conceitualização do indivíduo como ‘mente ativa’ que, em processos
progressivamente mais adaptativos constrói significado sobre a
realidade, transformando-a.

Analisar e diferenciar as infâncias entre crianças negras e brancas


do ponto de vista de oportunidades e condições financeiras à luz da Teoria
dos “processos adaptativos” pode levar à construção de práticas pedagógicas
desprovidas de consciência histórica, cultural e política, tornando-se
impossível assim, minimizar os impactos da injustiça social e racial.
Quando a professora 5PM no fragmento de entrevista abaixo expõe enquanto
estratégia de intervenção pedagógica a construção de brinquedos artesanais
com o objetivo de diminuir a distância econômica e social existente entre
esses dois grupos infantis, pode-se dizer com base em análise do contexto
investigado e do perfil da entrevistada, que suas ações desencadeiam um
processo pedagógico de estagnação social dessas crianças.

Eles têm, alguns têm. Mas você pode resgatar esses brinquedos, essas
oportunidades através de outros brinquedos. Por exemplo: eu fiz
um trabalho de resgate de brinquedos antigos. Então eu fiz bilboquê
com caixinha de leite. Com pauzinho...Você pode fazer tudo que
uma criança de elite tem, mas não na forma, né... com brinquedo
comprado. Você vai fazer. Você vai construir. E isso que eu acho que
é o ganho deles. Que eu acho que é um ganho grande. Porque eles
vão aprender a construir. Eles vão aprender a ter autonomia para ter
esse brinquedo né? (PROF.ª 5PM. ENTREVISTA, 2015)

71
Diante do exposto, as diferenças entre as infâncias negras e
brancas pontuadas pela professora se respaldam na deficiência econômica.
Assim, ao construir uma linha reflexiva sobre o assunto, a professora
justifica que é possível equiparar favoravelmente tais injustiças sociais
ao adaptar as crianças na construção de uma autonomia baseada no ser
e não no ter. Para ela, esse seria um modo de combater o capitalismo que
incentiva o ter e desqualifica o ser. Porém, ao executar práticas pedagógicas
direcionadas por essas concepções, a situação de perpetuação entre
dominados e dominadores ficará sobre controle, ao mesmo tempo em
que a manutenção dos privilégios permanecerá incontestável e imutável.
Com isso, não se discutem as relações raciais com profundidade, deixando,
portanto, a discussão referente às crianças negras e suas infâncias inseridas
num processo de adaptação à situação em conformidade com a mesma.
Nisso, a teoria de Piaget propicia uma leitura equivocada e fundamenta,
infelizmente, tais posturas, porém, não justifica socialmente.
Dessa forma, práticas pedagógicas compreendidas nesse formato
teórico não abre oportunidade de construção de uma educação reflexiva no
campo das relações raciais, ao contrário, criam um sentimento de simpli-
ficação, conformação e naturalização do racismo e das injustiças sociais.

Considerações finais

Percebeu-se que para as professoras sensíveis à construção de


uma educação para as relações raciais, o ponto que as liga favoravelmente
a realizar trabalhos com a temática étnica é o ano de formação inicial.
As professoras formadas posteriormente à Lei 9394/96 e Lei 10.639/03
apresentaram maior predisposição em entender, aceitar e desenvolver
práticas pedagógicas centradas na política pública para educação das relações
raciais, forçando uma reflexão mais elaborada/criteriosa por parte das
egressas dos cursos de magistério do ensino médio e cursos de pedagogia
com relação à exigência institucional trazida pela nova visão curricular
instituída na educação básica. Porém, a interpretação e a tradução dos
pressupostos orientadores dessa educação não se efetiva em suas práticas

72
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

pedagógicas em virtude de suas bases teóricas se apresentarem ineficientes


quanto à construção do conceito de cultura construído numa perspectiva
política e de emancipação. Para Gusmão (2008, p. 53), “a noção de cultura
nunca poderia ser pensada fora do campo político e de poder”.
O grupo investigado confirma haver diferença entre a infância das
crianças negras e crianças brancas, com diferenciação ocorrendo pelo viés
da pobreza que as crianças negras são vitimadas. A diferenciação embasada
na pobreza desvincula a criança negra do processo de produção das culturas
infantis e do pertencimento ancestral de origem.
As professoras relacionam a categoria infância em comparação
com suas próprias infâncias, ação esta que retira, tanto das crianças
brancas quanto das negras, o protagonismo no processo das construções
das culturas infantis.
As professoras resistentes à construção de uma educação para as
relações raciais debatem e resistem à exigência de uma prática e de uma
educação multicultural, uma vez que tornar-se favorável à educação para as
relações raciais confronta suas histórias e realiza uma revisão do conceito
de cultura inserido nos currículos, nas práticas, na ideologia e no cotidiano
dentro e fora da escola.

73
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ACESSO E PERMANÊNCIA NA
PÓS-GRADUAÇÃO BRASILEIRA:
a experiência de bolsistas
do Programa Internacional
de Bolsas da Fundação Ford

Marcia Basília de Araújo / Mestre em Educação/UEMG


Doutoranda em Educação/UFMG
Introdução
Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa de mestrado,
realizada no Programa de mestrado em educação e formação humana
da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) e teve como objetivo descrever e analisar as disposições e
estratégias de egressos de programas de mestrado, com uma bolsa de
estudos da Fundação Ford, para se alcançar a condição de longevidade
escolar e chegar à pós-graduação stricto sensu. Na pesquisa realizada
utilizou-se a metodologia qualitativa adotando-se como procedimentos
de coleta de dados a entrevista narrativa episódica, na perspectiva de Flick
(FLICK, 2002). Esse tipo de entrevista permite que o entrevistado fale
sobre si mesmo, dando ênfase a questões vivenciadas em um momento
específico. A partir das narrativas dos ex-bolsistas foi possível apreender
a construção das trajetórias de longevidade escolar e a importância das

77
instituições para esses percursos escolares. Para análise das entrevistas e
apresentação do trabalho foram adotados os pressupostos metodológicos
semelhantes aqueles propostos por Bernard Lahire (2004) para o estudo
de casos singulares, por meio da construção de perfis de configurações
ou retratos sociológicos.23 Este texto contempla apenas a análise de uma
trajetória da totalidade dos sujeitos entrevistados, na qual é possível notar
a relevância de algumas instituições sociais, dentre as quais se destacam a
escola básica e o movimento negro. Trata-se da trajetória de uma bolsista
que iniciou a constituição de disposições para a longevidade escolar ainda
na educação básica, mas, que para o fortalecimento e consolidação dessas
disposições até a chegada à pós-graduação, foi marcada de forma positiva e
significativa pelo movimento negro.
O texto está organizado de forma a apresentar inicialmente
reflexões sobre a adoção de medidas de ações afirmativas na pós-graduação
brasileira, em seguida apresentar o Programa Internacional de Bolsas
da Fundação Ford, discutir a construção de disposições para longevidade
escolar nos vários espaços possíveis como a escola e o movimento negro e,
finalmente, apresentar as considerações finais.

A adoção de medidas afirmativas na


pós-graduação: um debate atual
De acordo com informações do Relatório do IBGE, em 2012,
“enquanto do total de estudantes brancos de 18 a 24 anos 66,6% frequentavam
o ensino superior, apenas 37,4% dos jovens estudantes pretos ou pardos
cursavam o mesmo nível. Essa proporção ainda é menor do que o patamar
alcançado pelos jovens brancos 10 anos antes (43,4%)” (IBGE, 2013, p. 125). Ou
seja, a desigualdade perdura ao longo do tempo, caracterizando uma situação

23 Lahire (2004) construiu perfis a partir da noção de configuração social desenvolvida


por Norbert Elias (1999). Em obras como Retratos Sociológicos (2004) e A Cultura dos
indivíduos (2006), Lahire (2004, 2006) utiliza a terminologia retratos sociológicos para a
constituição dos perfis dos indivíduos com os quais trabalha em sua pesquisa.

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Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

de inércia cruel, o que se torna insustentável quando se deseja construir uma


sociedade democrática, justa e de direito de fato.
Se o acesso ao ensino superior foi marcado historicamente pela
exclusão e pela elitização da população negra, a pós-graduação é ainda
um espaço mais seletivo, pois o sistema de pós-graduação brasileiro se
consolidou sem atender as necessidades de desenvolvimento de todas as
regiões do País de forma igualitária. Para Silvério (2008), no sistema de pós-
graduação brasileiro existe um forte componente de desigualdade social, pois
houve ao longo de sua consolidação uma política de transferência indireta
de renda, que sempre beneficiou os setores médios da população. Assim, ao
invés de contribuir para a redução das desigualdades tanto regionais quanto
étnico-raciais, ele as reproduzia e, em certa medida, as intensificava.
Diante desse quadro é que surgiu o Programa Internacional de
Bolsas da Fundação Ford(IFP). De acordo com Rosemberg (2008), desde o
seu lançamento o IFP despontou como uma alternativa muito importante
para a democratização do acesso e permanência na pós-graduação brasileira,
pois, até o ano de 2013, esse programa se configurava como uma das poucas
experiências brasileiras de ação afirmativa na pós-graduação.

Possibilidades de acesso e permanência


na pós-graduação: o exemplo do
Programa Internacional de Bolsas
da Fundação Ford

No período compreendido entre 2002 e 2010, a Fundação Ford,


em parceria com Fundação Carlos Chagas, realizou processos seletivos
para a concessão de bolsas de estudos em cursos de pós-graduação
stricto sensu (mestrado e doutorado) para estudantes brasileiros. Para se
candidatar à bolsa, o estudante precisava, necessariamente, atender a, no
mínimo, um dos critérios estabelecidos: ter nascido nas regiões Norte,
Nordeste ou Centro-Oeste; identificar-se como negro/a ou indígena;
provir de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas ou

79
educacionais e apresentar potencial de liderança e reconhecimento social
em seu meio de inserção, pois o IFP aposta que “líderes provenientes de
segmentos sociais discriminados seriam mais propensos a abraçar causas
e implantar ações visando à diminuição de desigualdades e injustiças
sociais” (ROSEMBERG, 2008, p. 194).
O simples fato de o estudante conseguir uma bolsa de estudos
para cursar mestrado ou doutorado não se configurava como novidade.
Agências de fomento à pesquisa também concediam (e concedem) bolsas
para estudantes que são aprovados em processos seletivos, habitualmente
com base no mérito, contemplando os candidatos que conseguem melhor
desempenho. O que torna relevante a condição dos bolsistas, sujeitos desta
pesquisa, é o pertencimento aos grupos representados e as singularidades
de cada um. São sujeitos que, necessariamente, pertencem a uma das
categorias que o IFP chama de “sub-representadas na pós-graduação
brasileira”, porém possuem forte potencial acadêmico. De acordo com o
relatório apresentado por Rosemberg (2013), o processo seletivo foi sempre
realizado em três etapas, por equipes distintas e perseguindo dois objetivos
complementares: o da ação afirmativa e o do mérito acadêmico.
Desse modo, cada candidato precisava enviar ao programa um
dossiê completo, contendo o comprobatório das informações prestadas e
as respostas ao Formulário para Candidatura. Em seguida, avaliava-se o
pertencimento aos grupos específicos. Posteriormente, dentre aqueles,
eram selecionados os candidatos que apresentavam melhor potencial
acadêmico. Dessa forma, não se corria o risco de selecionar candidatos
apenas pelo pertencimento à categoria de sub-representação e nem
apenas pelo mérito acadêmico. A seleção acontecendo nesses moldes
respeitava a justiça ao grupo e ao indivíduo, pois, graças à metodologia
adotada, a primeira análise permitia identificar os candidatos que teriam
menor chance de concluir o ensino superior e chegar à pós-graduação,
constituindo assim, um grupo mais homogêneo. Já na fase subsequente,
dentro do grupo, selecionavam-se os indivíduos que apresentavam melhor
potencial acadêmico.

80
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Além desse processo seletivo baseado no pertencimento de


origem e potencial acadêmico, o que diferenciou o IFP de algumas
medidas de ação afirmativa realizadas no âmbito do poder público, como
a Lei 12711/2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais
e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, foi o fato de
tratar-se muito mais do que concessão de bolsas, ou inclusão por cotas.
Esse programa caracterizou-se por oferecer ao estudante condições
de acesso e permanência. A partir do momento em que o bolsista era
selecionado, iniciava-se o processo de seu acompanhamento com base em
uma fase denominada de “pré-acadêmica”, na qual os indivíduos tinham
a oportunidade de se preparar para os processos seletivos dos Programas
de Mestrado e Doutorado no Brasil e no exterior. Esse era o momento de
fortalecimento acadêmico do bolsista, quando ele poderia desenvolver
ainda mais o seu potencial, estudar língua estrangeira e se organizar para
as seleções. Cada bolsista poderia, com o auxílio financeiro do programa,
participar de até quatro processos seletivos, bem avaliados pela CAPES.
Rosemberg (2013) informa que essa fase contribuiu para que 92,5% dos
bolsistas fossem aprovados em programas avaliados com pelo menos
nota 4 pela CAPES. Essa não era uma fase solitária, pois os bolsistas
eram acompanhados por profissionais renomados das diversas áreas
contempladas pela Fundação Ford. Embora nem todos tenham participado
dessa fase, alguns porque já haviam ingressado na pós-graduação e outros
porque não puderam ou não se dispuseram a participar, essa fase foi muito
importante, pois, “sem dúvida nenhuma, o Treinamento pré-acadêmico foi
uma atividade indispensável para que bolsistas concorressem, com bom ou
razoável preparo, a vagas no acirrado processo seletivo da pós-graduação
brasileira” (ROSEMBERG, 2013, p. 47).
Após o ingresso na pós-graduação, o bolsista continuava a ser
acompanhado pela equipe do programa. Essa fase buscava garantir que o
objetivo do IFP fosse alcançado, ou seja, que todos os bolsistas pudessem
se beneficiar das mesmas oportunidades e que lideranças com forte
compromisso social adquirissem uma formação acadêmica de qualidade.
Os principais instrumentos utilizados para esse acompanhamento eram:

81
a exigência de relatórios periódicos, com o retorno de um parecer da equipe
para o bolsista, e, principalmente, o diálogo entre as partes envolvidas
no processo, equipe do IFP, FCC, orientadores, bolsistas e Instituições
de Ensino Superior.
Esse processo de acompanhamento fez-se necessário muito em
função das especificidades da pós-graduação brasileira. Esse já é um sis-
tema que está consolidado e, ao contrário da educação básica que recebe
críticas constantes com relação à qualidade, é considerado de muito su-
cesso. O grande problema é que esse sistema, tal qual a graduação brasileira
nas universidades públicas, tem reproduzido, até mesmo com maior eli-
tismo, a estrutura de desigualdades do país. Como consequência, ele atua
mais como um instrumento de distinção entre seus participantes, pelas
hierarquias que estabelece, do que como instrumento de equacionamento
das disparidades regionais. Nesse sentido, garantir o acesso poderia não ser
suficiente para que os bolsistas pudessem concluir com êxito os programas
para os quais tinham sido selecionados.
Ainda em relação às especificidades do Programa é importante
ressaltar que não se tratava apenas de uma bolsa mensal, mas sim um
conjunto de recursos para atividades próprias ao mundo acadêmico e que
permitiam aos bolsistas viver plenamente a sua condição de estudante
de pós-graduação.
Um dos argumentos contrários à adoção de medidas de ações
afirmativas na modalidade de cotas, sejam elas sociais ou raciais, para
ingresso no ensino superior, tem sido o da meritocracia. De acordo
com os defensores dessa premissa, o ingresso diferenciado contraria
o princípio do mérito acadêmico, ao permitir que sujeitos com notas
inferiores acessem vagas que “deveriam” ser ocupadas por aqueles que
possuem notas superiores. Porém, para levarmos a cabo esse debate é
necessário refletir sobre o que seria o mérito acadêmico, e mais ainda,
em que condições ele é constituído. O mérito seria um dom, constituído
pelo nascimento, ou o resultado de investimentos pessoais e familiares,
que são mais ou menos possíveis de acordo com a condição social e em
muitos casos, a raça dos sujeitos? Se pensarmos no mérito como um dom,

82
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

elegeremos como iluminados, por exemplo, os sujeitos que dominam


línguas estrangeiras, sem levarmos em consideração, as oportunidades de
estudar e desenvolver as habilidades de apropriação de um novo idioma.
De acordo com Dubet(2004),

as desigualdades entre os sexos e entre os grupos sociais persistem


e, desde o início, os mais favorecidos têm vantagens decisivas.
Essas desigualdades estão ligadas às condições sociais dos pais, mas
também ao seu envolvimento com a educação, ao apoio que dão aos
filhos, bem como à sua competência para acompanhá-los e orientá-
los.(DUBET, 2004, p.4).

Nesse sentido, para se alcançar o mérito que a academia espera,


principalmente as famílias das classes médias, que veem na escola um meio
de alcançar ascensão ou a possibilidade de manutenção de alguns privilégios,
investe na formação dos filhos desde o início do processo de escolarização,
tendo em vista a constituição do mérito acadêmico que os levará a vencer a
disputa por vagas em instituições de ensino de prestígio.
No IFP, desde o início, houve a compreensão que não existe
mérito individual espontâneo e que em condições desiguais o mérito se
torna atingível para alguns e inatingível para outros. O mérito sempre foi
visto como uma construção e não algo pertencente à essência do indivíduo.
Nesse contexto, pode-se entender que, para alcançar a pós-graduação, os
filhos das classes mais abastadas chegam com um conjunto de condições
que a academia denomina “mérito” e que foram se constituindo ao longo
da sua trajetória. Esse conhecimento e essas condições favoráveis não
nasceram com os indivíduos: antes, foram se constituindo ao longo das
múltiplas experiências e oportunidades vivenciadas durante seu percurso
escolar e de vida.
Para Dubet (2004), em uma sociedade democrática o mérito
pessoal é a única forma de construir desigualdades legítimas, já que as
outras, principalmente as de nascimento, seriam inaceitáveis. Entretanto,
para que esse postulado seja possível, torna-se necessário que as condições

83
de oferta também sejam justas e que todos tenham acesso a essas mesmas
condições. Se comparássemos a justiça meritocrática a uma competição
esportiva, seria necessário que as regras do jogo fossem claras e explícitas
para todos os competidores, que o juiz fosse totalmente imparcial e que as
condições do campo fossem as mesmas para todos os jogadores. Porém, isso
não ocorre nem mesmo nos países onde a igualdade de oportunidades já
está implantada, como a França (DUBET, 2004), quiçá no Brasil, em que as
condições de acesso ainda são desiguais. Esse sociólogo ao se referir à escola
meritocrática, indica que esse modelo deve ser combinado com outros,
especialmente com medidas de discriminação positiva, pois essas podem
garantir a igualdade distributiva, ao reconhecer as desigualdades reais e
tentar compensá-las. Assim, dar o mesmo a todos não é suficiente para que
a meritocracia seja levada a cabo, pois nem todos são iguais e partem do
mesmo ponto.
A discriminação positiva se torna necessária, pois possibilita a
democratização do acesso aos espaços mais concorridos e seletos do sistema
escolar. No entanto, apenas o acesso não dá conta de resolver as injustiças
que são produzidas na sociedade e, em muitos casos, até mesmo pela escola,
pois, ao ingressarem nesse sistema, os estudantes que trazem desvantagens
em sua formação escolar nem sempre terão os mesmos conhecimentos das
regras do jogo, pois suas trajetórias não foram desenhadas desde o início
da formação com vistas à longevidade escolar e, ainda, poderão estar em
condições desiguais com relação ao capital cultural valorizado e exigido pelas
instituições de ensino. Essas medidas contribuem ainda para que se evite a
formação de “guetos da cultura, do dinheiro e da qualidade de um lado e de
guetos da pobreza e das dificuldades de outro” (DUBET, 2004, p. 7).
Nesse sentido, o Programa Internacional de Bolsas contribuiu para
que os bolsistas pertencentes a categorias pouco representadas na pós-gra-
duação estivessem presentes em espaços que historicamente não lhes tem
acolhido e, ainda, proporcionou-lhes a constituição de condições para a cons-
trução do “mérito acadêmico”, em especial por meio da fase pré-acadêmica,
em que havia o acompanhamento e a preparação para os processos seletivos
para os programas de mestrado e doutorado, e ao longo da permanência dos

84
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

bolsistas nos programas de pós-graduação, por meio dos recursos financei-


ros, que lhes permitiam estar integralmente no espaço acadêmico.

A construção do percurso de longevidade


escolar: o conceito de disposições
O processo de longevidade escolar dos sujeitos da pesquisa, que
deu origem a esse texto, não se constituiu em único momento e também não
pode ser creditado como influência de apenas uma instituição social. Ao longo
das trajetórias escolares e de vida, as disposições para a longevidade escolar
foram se constituindo e se fortalecendo nos diversos espaços por onde os
sujeitos circulavam. A compreensão de disposições está em consonância com
as formulações elaboradas por Lahire (2004, 2006), ou seja, compreende-se
esse termo como hábitos, costumes, tendências ou persistentes maneiras
de ser, que podem se manifestar, ou não, ao longo da vida dos indivíduos de
acordo com as múltiplas instâncias de socialização em que estão inseridos.
Essas disposições podem ser longas ou breves, dependendo do
contexto em que se manifestam e das condições mais ou menos favoráveis
para a sua permanência. Uma disposição pode ser duradora, se encontra
possibilidade de se atualizar ao longo da trajetória de vida; ou transitória,
por não encontrar espaço para se atualizar e perpetuar. Não se pode falar
em disposições a partir de um único episódio ou acontecimento isolado;
as disposições têm o caráter de recorrência e permanência, assim também
como não são estáticas. A noção de disposições nos ajuda a conhecer
e compreender algumas trajetórias de longevidade escolar nos meios
populares e analisar as suas singularidades.
A pesquisa que deu origem a este artigo demonstrou que não
houve a predominância de uma única instituição; no entanto, algumas
foram relevantes em mais de uma trajetória. Essas instituições ou grupos
sociais contribuíram para que esses sujeitos pudessem desenvolver e colocar
em ação disposições ascéticas para a escolarização que contribuíram para o
alcance de longos e exitosos percursos escolares.

85
O perfil reconstituído a seguir constitui-se de uma trajetória
acadêmica iniciada no final dos anos 70 e início dos anos 80 do século XX,
e que foi marcada por experiências singulares, porém com características
comuns a sujeitos de meios populares. Dentre essas marcas destacam-se as
dificuldades financeiras, a falta de linearidade nos percursos e a necessidade
de grande esforço dos próprios estudantes.

Disposições ascéticas para a longevidade


escolar: a influência inicial da escola básica

Augusta, advogada e mestre em Direito, ingressou na escola


tardiamente, aos nove anos de idade, embora sempre manifestasse o desejo
de estudar. Filha de trabalhadores rurais, de uma família de nove irmãos, foi
a única que conseguiu avançar além do ensino médio. Ao final do quarto
ano ficou um tempo sem estudar, pois vivia na zona rural e não havia escola
que ofertasse o segundo segmento do ensino fundamental. Somente, alguns
anos depois, quando a família se mudou para uma cidade maior, ela pode dar
prosseguimento ao seu percurso escolar.
A trajetória de Augusta nos autoriza a dizer que foi na escola
básica que se iniciou o seu processo de construção de disposições ascéticas
para a longevidade escolar. Desde a “formatura” do primário, quando foi
para a Câmara dos vereadores da cidade, em um momento solene, receber
o “diploma”, até a presença de professores que a incentivaram a estudar e a
ajudaram a compreender melhor a realidade em que estava inserida:

Eu considero que foi um dos pontos marcantes da minha vida... da


minha longevidade no processo de educação, de formação. Foi uma
professora de História. Eu tive uma professora de História que foi
muito importante na minha carreira, porque ela trabalhou muito
bem e trouxe algumas respostas para questões que eu não tinha
compreensão, sobre a questão do social e sobre a questão racial. Ela
sempre dizia: “Você deve continuar e nunca pare! “(ENTREVISTA
concedida em 2014).

86
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

A percepção do funcionamento da sociedade, a partir de vivências


na escola e da participação ativa de alguns professores, foi ressaltada por
Viana (1998), e observada na trajetória de Augusta que, influenciada por
alguns docentes, passou a se interessar de forma efetiva pelo estudo e, de
modo particular, por algumas disciplinas. Dessa forma, Augusta passou a
se interessar de modo especial pela disciplina de História e a questionar
o tratamento dado à história do negro dentro da formação da sociedade
brasileira. Além do gosto pela escola, essa trajetória é marcada pela solidão
diante dos estudos, pois, filha de pais analfabetos, não encontrava em casa
com quem dialogar sobre os conhecimentos construídos e aprendidos na
escola e, menos ainda, quem a auxiliasse nos deveres e tarefas escolares.
Assim, pouco a pouco ia encontrando e desenvolvendo suas próprias
estratégias para sobreviver e alcançar êxito no espaço escolar.
Augusta, quando saiu da zona rural para uma cidade maior,
encontrou mais dificuldades com o conhecimento escolar e até mesmo
com a língua falada na escola. A dificuldade com a língua enfrentada por
ela e por seus irmãos foi também sentida por outros jovens de camadas
populares diante da linguagem oral exigida e valorizada pela escola. Em um
dos relatos colhidos por Souza (2009) em sua tese de doutorado uma jovem
afirma que se sentia como um “peixe fora d’água, pois quando migrou do
seringal para a cidade e foi matriculada na escola a língua que ela usava
em casa parecia não ser a mesma que se falava na escola. Apesar dessa
limitação, permaneceu na escola e buscou apoio tanto na própria escola
quanto fora dela para continuar a sua trajetória.

O movimento negro como espaço de


construção de conhecimento

Além da escola básica, a participação nos movimentos sociais foi


central para a longevidade escolar de Augusta, pois ela conseguiu encontrar ali
novas possibilidades de interação e formação que favoreceram a permanência
no espaço acadêmico, contribuíram para que vislumbrasse as possibilidades
de prosseguir na trajetória acadêmica e propiciaram a constituição de novas

87
estratégias para a prolongação do percurso de escolarização. Pode-se afirmar
que, nesse espaço, ela também encontrou algumas possibilidades de consti-
tuição e fortalecimento do mérito acadêmico, tão reivindicado pelos grupos
contrários às cotas.
Os movimentos sociais surgiram por meio das atividades
pastorais. Inicialmente ela participava dos grupos de jovens e do coral da
igreja católica. A partir desses grupos religiosos ela começou a participar
de grupos sociais organizados, como associações de bairro e, sobretudo,
do Movimento Negro. No período da graduação, destarte as dificuldades
enfrentadas, as disposições ascéticas para a longevidade escolar foram
se reativando por encontrarem condições favoráveis, especialmente pela
influência do movimento negro organizado, no qual essa bolsista conseguiu
encontrar uma formação paralela:

Eu considero que eu tive, assim, uma formação assim, paralela,


que foi muito importante e que me trouxe muito conteúdo. Nesse
período eu já estava participando do movimento negro. Tinha
muitos dias de estudos com professores acadêmicos. A partir daí
eu comecei a pegar um pouco dessa linguagem acadêmica, de
textos acadêmicos, que eu não tinha acesso. Foi muito importante.
(ENTREVISTA cedida em 2014).

Foi também por intermédio dos movimentos sociais que ela


obteve conhecimento do processo de seleção para a bolsa do Programa
Internacional de Bolsas da Fundação Ford, pois, após a graduação,
ela começou a trabalhar como professora na formação de soldados e
permaneceu na sua militância social, atuando, inclusive, como Conselheira
Tutelar. Ao analisar essa passagem da trajetória de Augusta nos remetemos
ao conceito de Capital Social, conforme proposto por Coleman (1988, apud
Carnoy 2009), que pode ser compreendido como as relações e redes que
contribuem para o aumento do desempenho escolar dos indivíduos. Estar
inserida em grupos que possuíam informações acerca das possibilidades de
escolarização prolongada e das vantagens desse processo de escolarização

88
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

para a vida dos sujeitos que a adquiriam foi importante para que ela pudesse
construir estratégias a fim de alcançar uma longevidade escolar. Mediante
a participação no movimento social, Augusta pôde se beneficiar do capital
social produzido por aquele grupo.
O Movimento Negro, além de oferecer suportes que contribuíram
para o fortalecimento acadêmico ao possibilitar o encontro com intelectuais,
possibilitou a ela acreditar e projetar um futuro acadêmico diferente daquele
que se desenhava como mais provável para a maioria das pessoas do seu
ambiente de socialização primária. É importante ressaltar que essa possibilidade
de formação paralela à instituição de ensino, vivenciada pela bolsista, não se
trata de um caso isolado no contexto do país, pois o Movimento Negro, desde
os anos 1970, já se preocupava em formar uma intelectualidade negra,
buscando construir e fortalecer suas lideranças. Dentre as medidas tomadas,
tendo em vista a concretização desse objetivo, estavam a busca da elevação
da escolaridade e a melhor distribuição dos representantes das batalhas contra
o racismo em diferentes espaços de lutas e intervenções sociais, propiciando
espaços para estudo e formação. De acordo com Santos (2007), essa estratégia
levou um número significativo de membros da militância para academia,
onde concluíram graduações, mestrados e doutorados, sobretudo nas áreas
da Educação e das Ciências Humanas.
Nessa perspectiva pode-se compreender a centralidade dos mo-
vimentos sociais, sobretudo do Movimento Negro, para a construção da
longevidade escolar de Augusta, que levou para a pós-graduação um objeto
de estudos que dialogava com as questões das relações étnico-raciais.

Considerações finais

Em um esforço para garantir, não a conclusão, mas o fechamento


do texto, serão retomados alguns pontos para reflexão. Por meio do
conhecimento e análise das trajetórias dessa bolsista foi possível perceber o
que já havia sido constatado por Souza (2009), que um longo percurso escolar
não se constrói em apenas um espaço, e menos ainda recebe influência
de apenas uma instituição onde os sujeitos se inserem ao longo da vida.

89
Nesse sentido, cada trajetória tem que ser vista em sua individualidade, mas
também, na teia de relações sociais nas quais o indivíduo está imbricado.
As disposições para longevidade escolar podem ser constituídas
na infância, porém o indivíduo só conseguirá traçar um longo percurso
acadêmico se encontrar condições que lhe sejam favoráveis. Nesse sentido,
para a bolsista retratada neste texto, duas instituições contribuíram de
forma mais significativa para a escolarização prolongada, a escola básica,
de maneira mais tímida e os movimentos sociais, sobretudo por meio do
movimento negro. Nesse espaço ela encontrou suportes que contribuíram
para que as disposições construídas na infância encontrassem condições
para se desenvolver e se fortalecer. As possibilidades de estudo, os encontros
de formação e o capital social produzido pelos movimentos sociais foram
fundamentais para que Augusta conseguisse permanecer e concluir a
graduação e, posteriormente, conhecer e se preparar para a participação na
seleção para a bolsa do IFP. É importante reforçar que esse Programa, desde
o início, levava em consideração dois pressupostos: o pertencimento aos
grupos prioritários e o mérito acadêmico, ou seja, as reais possibilidades de
o bolsista selecionado ter condições de ingressar e concluir um programa
de pós-graduação.
Embora o IFP, considere e valorize o mérito acadêmico, esse é
compreendido como uma construção e, nesse sentido, as políticas de ações
afirmativas, como o Programa Internacional de Bolsas, que possuem um
alcance que vai muito além do ingresso por meio de cotas, são fundamentais
para a constituição desse mérito. Para Augusta, tanto o Movimento Negro
quanto o IFP tiveram relevância na constituição do mérito, por meio de
ações que promoviam o fortalecimento acadêmico.

90
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Referências Bibliográficas:

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Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2013. Rio
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médio e dá outras providências. Brasília, 2012.

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brasileiro: a tensão entre raça/etnia e gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n.
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populares: algumas condições de possibilidade, 1998, 264f. Tese (Doutorado
em Educação)- Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1998.

92
ACESSO DA POPULAÇÃO
NEGRA AOS CURSOS DE PÓS-
GRADUAÇÃO: uma reflexão
a partir de apontamentos
teóricos metodológicos

Fábio Leão / Mestre em Educação FAE- UEMG
Santuza Amorim da Silva / Professora do PPGE/FAE/UEMG
Introdução
Nos últimos anos, o ensino superior brasileiro passou por mudanças
significativas. As políticas de expansão desse sistema de ensino, que se deu,
principalmente, via setor privado, possibilitou a ampliação das oportunidades
de acesso das camadas populares e, em particular, da população negra.
Diante dessa realidade, buscou-se empreender uma investigação
com o foco em análise de trajetórias de estudantes negros que frequentaram
o curso de Formação Pré-Acadêmica Afirmação na Pós e, em seguida,
ingressaram em programas de mestrado. Um dos objetivos que norteia a
investigação tratou-se de compreender os fatores que influenciaram essa
inserção, tendo como base as experiências e disposições adquiridas ao longo
das trajetórias desses estudantes em instâncias sociais, tais como a escola,
a família, o trabalho, a igreja, os movimentos sociais, os grupos de pares,
entre outros, e como essas experiências constituíram-se como dispositivos
que possibilitaram o acesso e a permanência nesses programas.
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Além disso, outra intenção da investigação trata-se de compreender


se a questão racial exerceu influência ao longo das trajetórias dos sujeitos
pesquisados e de que maneira ela se faz presente nessa caminhada, tendo em
vista os poucos estudos que se referenciam ao tema da presença de estudantes
negros na pós-graduação e, também, pelo fato dos estudos sociológicos que
tratam da longevidade escolar de estudantes oriundos das camadas populares
não problematizarem a questão racial.
Cabe destacar a importância do curso de Formação Pré-Acadêmica
Afirmação na Pós para o desenvolvimento dessa pesquisa. Esse curso foi
viabilizado através de uma política de ação afirmativa que utilizou recursos
financeiros via iniciativa privada. Em 2011, a Fundação Ford, em parceria
com a Fundação Carlos Chagas lançou um edital24 que visava selecionar
universidades públicas e privadas de todo o Brasil para que implementassem
cursos de formação para potenciais candidatos aos Programas de Pós-
graduação reconhecidos pela Capes.
Em Minas Gerais o Afirmação na Pós surgiu através do consórcio
entre a Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e a Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e contou com a parceria do Centro Federal
de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG).
O Curso teve como objetivo a preparação de candidatos para
participarem da seleção de programas de pós-graduação (stricto sensu) em
nível de mestrado. Para atingir este objetivo o curso ofereceu disciplinas que
auxiliaram na elaboração dos projetos de pesquisa, promoveu seminários,
ofereceu disciplina de língua estrangeira instrumental, produção de textos
e acompanhou os(as) candidatos(as) desde a construção dos projetos até a
inscrição nos processos seletivos de diferentes programas de pós-graduação.
A seleção dos alunos para cursar o Afirmação na Pós priorizou
aqueles pertencentes a grupos historicamente excluídos do acesso aos
cursos de pós-graduação como negros, indígenas, pessoas provenientes de
famílias com poucas oportunidades econômicas e educacionais, pessoas com

24 Tratou-se do Concurso de Dotações para Formação Pré-acadêmica: equidade na pós-


graduação.

95
deficiência, egressos de programas de ações afirmativas no ensino superior,
na modalidade de cotas ou bônus.
A participação dos negros na história do país sempre esteve atrelada
à escravidão, ao trabalho braçal e a situações precárias de sobrevivência.
Sendo assim, pouco tem sido abordado sobre a participação desses sujeitos
na produção científica, tecnológica, na literatura, entre outras áreas. Nesse
sentido, nos interessa compreender como esses sujeitos, negros e oriundos
de camadas populares, conseguiram ultrapassar os limites estatísticos e se
tornaram “sobreviventes” no sistema educacional brasileiro.
Para responder à problemática colocada em torno do objeto aqui
discutido, estabeleceu-se um diálogo com o referencial teórico da Sociologia
da Educação, especificamente nos estudos sobre trajetórias de estudantes de
camadas populares, e os estudos que vêm sendo produzidos no campo das
Relações Étnico- Raciais.
Vários estudos (Lahire, 1997; Viana, 1998; Portes, 2000; Piotto,
2008; entre outros) vêm demonstrando uma série de fatores que influenciam
as trajetórias escolares “improváveis” de estudantes das camadas populares
e experiências bem sucedidas25 no meio educacional. Essas pesquisas
abordam os destinos escolares atípicos, de sucesso, ou, mais precisamente,
as trajetórias singulares de estudantes que mesmo pertencendo à grupos
socialmente desfavorecidos obtêm êxito nos estudos.
Tendo em vista que a pesquisa se propõe à uma análise das
trajetórias de estudantes negros, assumimos o desafio de relacionar os
estudos sobre trajetórias singulares produzidos pelo campo da Sociologia da
Educação com o arcabouço teórico e metodológico do campo das Relações
Raciais. Partimos da ideia de que a categoria “camadas populares” não pode
ser homogeneizada, sob o risco de invisibilizarmos as questões referentes à
população negra, que vivencia cotidianamente o racismo e a discriminação
racial disseminados na sociedade brasileira.

25 Assim como aponta Piotto (2008), entendemos trajetórias escolares bem sucedidas como
a permanência no sistema escolar até o ensino superior.

96
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Utilizando a definição de Hall (2003):

(...) raça é uma construção política e social. É a categoria discursiva


em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico,
de exploração e exclusão – ou seja – o racismo. Todavia, como
prática discursiva, o racismo possui uma lógica própria. Tenta
justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão
racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, na
natureza (p. 69).

A dualidade do conceito de raça, ora usado pelo senso comum no


sentido de superioridade racial e o seu uso político, impõe um dilema não
só do ponto de vista ideológico, político e cultural, como também social
(Coelho, 2006). Portanto, assim como Guimarães (2002), assumimos que
“raça” não é apenas uma categoria importante na resistência ao racismo
no Brasil, como também uma categoria analítica relevante, pois revela que
as discriminações e desigualdades na sociedade brasileira, que marcam
principalmente a população negra, são relacionadas à questão racial e não
somente a classe.
Nesse estudo adotamos uma abordagem qualitativa, para
entender as nuances que levam alguns sujeitos a tomarem determinadas
decisões que os diferenciam em meio ao grupo ao qual pertencem, além de
apreendermos as múltiplas realidades, concretas e subjetivas, vivenciadas
pelos sujeitos ao longo de suas trajetórias.

A opção por uma abordagem qualitativa deve ter como principal


fundamento a crença de que existe uma relação dinâmica entre o
mundo real, objetivo, concreto e o sujeito; portanto, uma conexão
entre a realidade cósmica e o homem, entre a objetividade e a
subjetividade. Ou, mais precisamente, na abordagem qualitativa
o pesquisador deve ser alguém que tenta interpretar a realidade
dentro de uma visão, complexa, holística e sistêmica (...).
(OLIVEIRA, 2012, p.60)

97
Nesse sentido, este estudo ouviu, de maneira cuidadosa, os
sujeitos investigados a fim de analisar os variados fatores e instâncias
sociais que influenciaram suas trajetórias escolares. Nos últimos anos,
presenciamos uma mudança nas análises sociológicas que voltaram sua
atenção para os processos sociais vividos na família, nas escolas, na relação
família-escola, movimentos sociais, entre outros temas. Nesse contexto,
as análises microssociológicas com abordagens qualitativas ganharam
relevância (ZAGO, 2004).
Os indivíduos constituem suas trajetórias em um contexto
social complexo, no qual a realidade objetiva não é suficiente para explicar
seus destinos escolares. Os valores, sentimentos e as formas de agir dos
indivíduos são mediadas pelo campo das subjetividades. Sendo assim, a
abordagem qualitativa é relevante para a compreensão de casos singulares
de trajetórias escolares.
O método utilizado nesse estudo embasou-se na construção
de perfis de configurações sociais26 para compreender como os estudantes
investigados, mesmo com as disparidades raciais que marcam a sociedade
brasileira, em particular o acesso à pós-graduação, conseguiram ingressar
em programas de pós-graduação. A partir de suas narrativas, buscamos
construir e apreender as experiências que marcaram suas vivências em
diferentes instâncias sociais e resultaram em disposições que contribuíram
nessa caminhada.
De acordo com a abordagem metodológica de Lahire, as realidades
individuais não podem ser reduzidas a manifestações generalizantes em
uma escala macrossociológica. Como aponta Nogueira (2013, p. 5) em seu
artigo sobre as contribuições de Lahire para a Sociologia:

O fato de sabermos, por exemplo, que o nível de escolaridade dos


pais está diretamente relacionado ao desempenho escolar dos filhos

26 Lahire utilizou perfis de configurações sociais, a partir de uma sociologia em escala


individual. Em seu estudo, comparou os perfis em um contexto de redes de interdependência
no meio familiar e escolar.

98
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

não nos permitiria deduzir que determinado adolescente, filho de


pais altamente escolarizados, tem ou terá bom desempenho escolar.

Esse modelo teórico-metodológico apontado por Lahire nos


pareceu apropriado para essa investigação, principalmente por se tratar de
compreender as trajetórias dos estudantes negros de camadas populares,
grupo sub-representado no espaço acadêmico, cientifico e tecnológico. Os
programas de pós-graduação são caracterizados pela presença majoritária
de professores, pesquisadores e alunos brancos. O modelo proposto por
Lahire serviu como base para compreender o que torna possível a trajetória
desses estudantes, a despeito da acentuada desigualdade racial presente na
pós-graduação. Essa perspectiva permitiu apreender suas estratégias, como
teceram suas relações pelas múltiplas instâncias sociais em que circularam
e as experiências relacionadas ao fato de serem negros numa academia,
majoritariamente, branca.
A noção de “configuração social ”27 formulada por Norbert Elias
(1994) também se desponta de maneira relevante nesse processo investigativo.
De acordo com o autor, todas as pessoas desenvolvem redes de interação
interdependentes e a partir desses laços relacionais vão se transformando no
que são. Nessa perspectiva, os sujeitos só podem ser compreendidos a partir
das suas relações com os outros. A noção de configuração social implica em
considerar os indivíduos no constante entrelaçamento das relações e das
experiências (SOUZA, 2009). Nesse sentido, esse autor aponta que a partir
da teia de interações e as formas específicas de interdependência as quais
esta submetido um sujeito é possível compreender aspectos da realidade
social, sua constituição e suas transformações.
Em sua pesquisa, Souza (2009, p. 93-94) afirma que a noção de
configuração social proposta por Elias possibilita a compreensão, a partir da
dinâmica configuracional, de “aspectos da realidade social, sua constituição,
movimentos e transformações”.

27 Cabe destacar que Lahire construiu os perfis a partir da noção de configuração social
elaborada por Elias (1994).

99
“a noção de configuração social tornou-se um modelo de
inteligibilidade do social de grande auxílio para a compreensão
conjunta, relacional e interdependente das diferentes instâncias
de construção social, favorecendo a consideração dos aspectos
objetivos e subjetivos da realidade social e da forma como eles se
interpenetram e se codeterminam.

É a partir da perspectiva metodológica de Lahire que buscamos


analisar as trajetórias de cinco estudantes negros egressos do curso
Afirmação na Pós, que ingressaram em programas de pós-graduação strictu
sensu. Para compreender essas histórias singulares, nos lançamos na tarefa de
reconstruir suas trajetórias individuais e a redes de interdependência as quais
estão inseridos. Para isso, utilizamos o modo de inteligibilidade do social
proposto por Lahire (2004), que privilegia a singularidade de cada percurso
escolar e baseia-se na reconstrução de perfis de configurações sociais.
Nesse sentido, a adoção de entrevistas semi-estruturadas como
instrumento de coleta de dados na análise das trajetórias dos egressos
do Afirmação na Pós poderá trazer detalhes da vida cotidiana de cada um
deles, que nos permitirá identificar experiências que, ao longo de suas
histórias de vida, contribuíram de maneira decisiva na orientação de suas
trajetórias, escolhas, atitudes e oportunidades. Assim, nos apoiamos em
uma análise individual do social, reiterando que, dessa forma, o social se
apresenta de maneira mais complexa e plural do que quando analisado de
maneira coletiva (LAHIRE, 2005).

Contribuições teóricas do campo da


Sociologia da Educação e das Relações
Étnico-Raciais

A orientação teórica assumida para responder às indagações


sobre as trajetórias escolares “improváveis” dos sujeitos pesquisados
fundamenta-se nos trabalhos do teórico francês Bernard Lahire (1997;

100
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

2002; 2004; 2005) e de trabalhos que vêm sendo produzidos em âmbito


nacional (Portes, 1993; Lacerda, 2006; Piotto, 2007; Souza, 2009).
Cabe destacar a relevância das formulações acerca do conceito
de disposições elaboradas por Lahire (2004; 2005). Segundo esse teórico,
as disposições individuais são constituídas a partir das múltiplas experi-
ências socializadoras vivenciadas pelos indivíduos ao longo de suas vidas
e podem ser compreendidas como hábitos, tendências, inclinações, ca-
pacidades, competências. Na sociedade contemporânea os indivíduos
participam e estabelecem vínculos em diferentes instâncias sociais e, é a
partir dessas experiências, simultâneas e até mesmo contraditórias, que
esses indivíduos incorporam essas disposições e constroem histórias
singulares (SOUZA, 2009).
Em sua obra, Sucesso escolar nos meios populares: as razões do
improvável, Lahire (1997) demonstra as especificidades de uma análise
sociológica em escala individual e a possibilidade de compreender
sociologicamente os indivíduos através da investigação minuciosa dos
processos de socialização e dos contextos de ação. As crianças pesquisadas por
Lahire, embora se assemelhem em relação a realidade objetiva, apresentando
variáveis comuns, tais como baixo nível de escolaridade e origem semelhante
do ponto de vista econômico, apresentam “diferenças secundárias” em
relação às práticas e dinâmicas familiares. Essas experiências socializadoras
diversificadas vivenciadas por esses indivíduos possibilitam a incorporação
de um patrimônio de disposições diferenciado e contribui para que tenham
uma relação singular com a escola e os processos de ensino e aprendizado.
A partir dessa análise, Lahire explicita os limites das explicações
macrossociológicas. Nesse sentido, os indivíduos não podem ser vistos como
simples representantes de uma classe ou categoria social, sob o risco de se
produzir generalizações que negligenciam a complexidade da realidade
individual. Esse autor acredita que, nem as condições objetivas, nem os
recursos materiais e culturais das famílias são capazes de determinar
as trajetórias escolares de seus filhos. De acordo com Lahire é necessário
investigar como cada família utiliza os recursos que tem, de acordo com sua
dinâmica interna e seus laços afetivos.

101
O problema apontado pelo autor é que os estudos sociológicos,
ao definir categorias coletivas de análise, simplificam a realidade e se
distanciam das realidades individuais concretas, dando ênfase a pesquisas
que se caracterizam por apresentar comportamentos homogêneos entre
indivíduos de uma dada categoria social. A realidade individual só pode ser
compreendida se levarmos em consideração que as pessoas constituem teias
de interdependência ou configurações sociais de diferentes tipos, tais como
família, escola, trabalho, camadas sociais. Nessa perspectiva, é necessário
compreender que é a partir dos processos sociais e dessa rede de interações
interdependentes que os indivíduos se constituem (ELIAS, 1980).
No caso da proposta de pesquisa em discussão, para compreender
as trajetórias escolares de estudantes negros que chegaram à pós-graduação,
faz-se necessário deslocarmos nosso olhar para suas configurações
familiares. Observar as experiências socializadoras vivenciadas por esses
indivíduos e os laços de interdependência que foram se constituindo ao
longo de suas trajetórias de vida nas diversas instâncias sociais em que
estiveram inseridos, possibilitará entender as disposições e estratégias
utilizadas por esses estudantes para chegarem à pós-graduação.

A questão racial e os estudos sobre


trajetórias escolares de estudantes
de camadas populares
Ao apoiarmos teoricamente e metodologicamente nos estudos
sobre trajetórias escolares de sucesso de estudantes oriundos de camadas
populares, sabíamos que enfrentaríamos um grande desafio. Isso porque
os estudos da Sociologia da Educação que versam sobre essa temática, de
maneira geral, tendem a homogeneizar, através da categoria “camadas
populares”, todos os estudantes que se caracterizam por apresentarem um
baixo perfil socioeconômico.
Nessas análises, a questão racial fica subsumida ou até mesmo é
ignorada no tratamento dado às camadas populares. Isso indica que, apesar
do campo da Sociologia da Educação ter modificado significativamente

102
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

seus padrões de análise nos últimos anos, partindo de uma esfera


macrossociológica para recortes temporais e temas de pesquisas mais
específicos, buscando entender a complexidade de fatores que permeiam as
ações dos sujeitos, ainda assim a questão racial é tratada apenas como uma
variável, não recebendo maiores problematizações.
Embora tenha contribuído muito para a compreensão de
trajetórias escolares improváveis, esses estudos, ao deixar em segundo plano
o “peso” da categoria raça nas complexas relações sociais brasileiras, deixam
lacunas para um melhor entendimento da complexidade experimentada nas
trajetórias dos estudantes negros, suas histórias de vida, o pertencimento
racial estigmatizado histórica e culturalmente e a diversidade de estratégias
adotadas para constituírem-se como sobreviventes no sistema educacional
brasileiro, conquistando vagas em Programas de Pós-Graduação.
Para compreensão do nosso objeto, torna-se relevante compreender
como o fator racial influencia nos processos de socialização vivenciados por
esses estudantes. Em outras palavras, torna-se necessário identificar quais
elementos presentes nas vidas desses sujeitos contribuíram para que fossem
construindo disposições favoráveis em suas trajetórias escolares em meio a
uma sociedade marcada por uma expressiva desigualdade racial.
Por tratarmos das trajetórias de estudantes negros de cama-
das populares que frequentaram o Afirmação na Pós e ingressaram em
Programas de Pós-Graduação strictu sensu somos levados a nos aten-
tar para a necessidade de utilizar a categoria “raça”, não como uma
variável periférica, mas como conceito central, que opera em uma posi-
ção estrutural de desigualdade social entre as raças na sociedade brasileira
(Guimarães, 1999).
Assim, buscamos compreender como a dimensão racial se articula
às trajetórias escolares desses sujeitos e a outras dimensões de suas vidas.
Isso implica compreender as estratégias de escolarização adotadas por esses
indivíduos ao longo de suas vidas, suas experiências em outras instâncias
sociais, bem como os caminhos que envolveram a chegada e a permanência
desses sujeitos na pós-graduação, nível de ensino que apresenta acentuada
desigualdade racial.

103
Para avançarmos nesse debate, torna-se relevante desnaturalizar
a visão de que a desigualdade racial seria um subproduto da desigualdade
socioeconômica. Nesse sentido, é necessário entender as dimensões e as
particularidades das desigualdades raciais brasileiras, evidenciando os seus
mecanismos de reprodução e reconfiguração.

Centrando em trajetórias escolares de


estudantes negros

Por tratarmos das trajetórias de estudantes negros de camadas


populares que ingressaram no universo da ciência e da pesquisa, é relevante
destacarmos a presença histórica de negros nos meios escolares28, a despeito
de uma visão recorrente entre pesquisadores da área da história da educação
que, até recentemente, davam como tardio esse acesso.
A partir de uma revisão historiográfica, nos últimos anos, alguns
estudos empreendidos pela área da história da educação vêm desconstruindo
essa ideia e demonstrando a presença de negros ao longo da constituição da
educação brasileira. O pesquisador Marcus Vinicius Fonseca é um desses
revisionistas e em seus estudos (2001; 2007; 2007a) busca apreender como
os negros vêm sendo tratados nas narrativas da historiografia educacional.
Esse autor problematiza as formas de abordagem sobre a escolarização da
população negra e contesta a maneira como essa parte da população foi
tratada na escrita da história.

As concepções, que durante muito tempo imperaram na


historiografia, reduziram os negros à condição de objetos. Um ser
em situação de absoluta dependência, ao qual tudo era negado e
que não possuía nenhuma capacidade de ação e reação dentro da
sociedade escravista e patriarcal. A sua condição de sujeito não foi
simplesmente negada, mas absolutamente desconsiderada em favor

28 Fonseca (2007a) demonstra em sua pesquisa que já nos primeiros estágios do processo de
colonização, havia mobilização entre os negros para obter acesso à educação.

104
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

da descrição de um quadro que delimitava lugares sociais muito


precisos para eles enquanto grupo racial (2007a, p. 14 – 15).

Para o autor, somente a partir da década de 1980, com a


produção de diversos estudos sociológicos demonstrando as desigualdades
educacionais entre brancos e negros, que as questões relativas à população
negra passaram a ter destaque no debate educacional. Esse debate levou
muitos pesquisadores educacionais a reconhecer a importância da categoria
raça para compreensão da sociedade brasileira, embora essa categoria ainda
tenha um lugar periférico na maioria das produções.

A questão do “confinamento racial”

O professor da Universidade de Brasília (UnB), José Jorge de Carvalho (2006),


a partir de um levantamento informal realizado em algumas das principais
universidades do país, revela a baixa representatividade de professores
universitários negros. Admitindo uma margem de erro nas amostragens
reunidas, revela “que em nenhuma universidade considerada como referência
nacional na pesquisa esse número parece não passar de 1%”(p. 91).
Para o autor, os docentes das universidades públicas brasileiras
vivenciam uma situação de “confinamento racial” herdada de gerações
passadas de acadêmicos. Para ilustrar essa questão aponta

Se juntarmos todos os professores de algumas das principais


universidades de pesquisa do país (por exemplo, USP, UFRJ,
Unicamp, UnB, UFRGS, UFSCAR e UFMG), teremos um
contingente de aproximadamente 18.400 acadêmicos, a maioria
dos quais com doutorado. Este universo está racialmente dividido
entre 18.330 brancos e 70 negros; [...] Se escolhermos aleatoriamente
um professor desse grupo, o perfil básico que encontraremos será
o seguinte: esse professor (ou professora) foi um estudante branco
que teve poucos colegas negros no secundário, pouquíssimos na
graduação e praticamente nenhum no mestrado e doutorado;

105
como aluno sempre estudou com professores brancos. [...] Como
consequência desse confinamento, em algumas faculdades mais
fechadas e elitizadas, é perfeitamente possível que um docente e
pesquisador desenvolva por décadas o seu trabalho acadêmico sem
conviver jamais com um estudante negro ou com um único docente
negro; quando muito, conviverá com alguns docentes negros, com
os quais estabelece relações de pouca ou nenhuma identificação.

A segregação racial no meio acadêmico, embora não tenha sido


imposta pelos meios legais no Brasil, vem sendo concretizada através do
silenciamento de boa parte da academia, que pouco tem se debruçado sobre
esse assunto.
Por outro lado, Carvalho ressalta a importância de considerar “a
experiência inversa de confinamento” (p. 92) que afeta os poucos professores
negros que ocupam esses espaços.

Por exemplo, uma colega negra da UnB trabalha há décadas em


um instituto com mais de 100 professores no qual ela é a única
negra. A questão racial deveria entrar nos seus temas de trabalhos,
porém sofre a inibição constante da convivência com os colegas,
que se mostram incomodados quando a questão racial aparece
explicitamente em alguma discussão sobre os temas de pesquisa de
interesse do instituto (p. 92).

As desigualdades raciais no meio acadêmico apoiam-se na falta de


leis estatais que obriguem a implementação de políticas de inclusão racial
entre alunos, professores e pesquisadores nas instituições superiores de
ensino. Para Carvalho, é necessário ponderar a conexão entre o universo
acadêmico e as teorias interpretativas das relações raciais no país. Essa
produção têm sido chefiada por acadêmicos brancos que pouco (ou nunca)
questionam essas desigualdades e não geram “conflito nem com as autoridades
estatais permissivas da continuidade da segregação nem com as comunidades
negras e indígenas excluídas do nosso meio”(p. 95).

106
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

A ideia de confinamento racial elaborada por Carvalho é de grande


relevância nessa pesquisa. A investigação das trajetórias de estudantes negros
de camadas populares exige dar atenção ao fato do universo da pesquisa ser
composto majoritariamente por professores, alunos e pesquisadores brancos.
Acreditamos que esse pode ser um ponto importante para compreensão
de como se dá a ocupação desse espaço por sujeitos que possuem baixa ou
nenhuma referência de representatividade racial acadêmica.

Á guisa de Considerações Finais

É consenso no Brasil a importância do campo educacional na construção


de uma nação mais soberana e democrática. Tanto em nível coletivo, quanto
individual, a educação é compreendida como fator relevante para superar
mazelas sociais e garantir melhores condições objetivas para os indivíduos.
Contudo, as disparidades educacionais entre brancos e negros no
ensino superior, ganharam centralidade nos debates referentes ao acesso
a esse nível de ensino na década de 1990. A redemocratização do estado
brasileiro, encerrando um longo período de restrição de direitos civis
e políticos no final da década de 1980, possibilitou que a sociedade civil
organizada pudesse reivindicar abertamente seus direitos e denunciar a
desigualdade presente na sociedade.
O debate sobre ações afirmativas ao ensino superior ganhou força
no início do século XXI. O contexto pós-Durban trouxe para a discussão a
questão das desigualdades raciais presentes no ensino superior brasileiro e
a necessidade de políticas de ação afirmativa que pudessem corrigi-las.
Feres Júnior e Daflon (2015) apontam que para resolver a situação
do ensino superior, o governo Lula da Silva atuou com vistas a viabilizar o
acesso de estudantes de baixa renda às instituições privadas, via Fies e Prouni.
Além disso, implantou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e
Expansão das Universidades Federais (Reuni), que ampliou o número de
vagas nas universidades federais, ao mesmo tempo em que incentivava as
mesmas a adotarem políticas de ação afirmativa.

107
Em termos raciais, o sistema de pós-graduação tem sido ainda mais
perverso. Os dados raciais revelam a baixa participação de estudantes negros
no universo da pesquisa29. Tendo em vista que esse nível de ensino possui
amplo reconhecimento na sociedade, e considerando que a população negra,
em termos quantitativos, é a maior do país, é relevante problematizarmos o
“por quê?” dessa situação.
Considerando a pós-graduação, os dados do IBGE (2010)
indicam que 74,6% dos estudantes eram brancos, enquanto 25,4% eram
negros. A análise por renda dos estudantes de pós-graduação indica um
abismo entre brancos e negros. Enquanto 44,2% dos homens negros e
45,2% das mulheres negras concentram-se na faixa mais baixa da renda
(até salário mínimo), homens brancos e mulheres brancas se distribuem
de maneira equilibrada, aproximadamente 25% para cada grupo. Esses
dados demonstram como o fator racial opera na estrutura social, sendo
dispositivo de ascensão social ou não.
Para corrigir as desigualdades raciais na pós-graduação, algumas
iniciativas foram tomadas nos últimos anos. Caso pioneiro na implantação de
políticas de ação afirmativa nesse nível de ensino foi o Programa Internacional
de Bolsas da Fundação Ford (IFP), que concedeu bolsas de estudos, entre os
anos de 2002 e 2010, em cursos de pós-graduação strictu sensu para estudantes
brasileiros oriundos de grupos sub-representados nesse nível de ensino.

29 Torna-se relevante ressaltar que o Programa Nacional de Pós-Graduação 2011 – 2020


não apresentou informações sobre cor/raça referentes aos docentes e discentes na pós-
graduação. As principais agências de fomento à pesquisa no Brasil, Capes e CNPq, também
não apresentam informações para a variável cor/raça, assim como os Censos do Ensino
Superior, que não apresentam dados específicos para a pós-graduação, somente para os
cursos, matrículas e docentes da graduação. Por se tratarem de instituições comprometidas
com a pesquisa, acreditamos que esses dados deveriam estar disponíveis para consulta
pública. Esse questionamento é ainda mais relevante no contexto histórico que estamos
vivenciando. As ações afirmativas no ensino superior, principalmente na pós-graduação
têm demonstrado a importância do recorte racial para a implementação de políticas
públicas para a igualdade racial no ensino superior.

108
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

O curso de Formação Pré-Acadêmica Afirmação na Pós é um


desdobramento dessa experiência. A urgência de políticas de ação afirmativa
na pós-graduação para grupos sub-representados, em especial para a
população negra, que busque reverter o cenário de exclusão nesse nível de
ensino é um desafio. Dessa maneira, as políticas de ação afirmativa para o
ingresso de estudantes negros na pós-graduação não devem ser pensadas
apenas como estratégias de ampliar o acesso desses estudantes, mas também
de assegurar a permanência e o sucesso deles.
Em suma, as reflexões aqui empreendidas em torno dessa questão,
nos leva a inferir que uma metodologia que se propõe à interpretar os dados
e os achados de uma investigação dessa natureza a partir do arcabouço
teórico aqui apresentado, sob o viés da Sociologia da Educação e das Relações
Étnico-Raciais, podem indicar caminhos importantes para superarmos as
desigualdades raciais que marcam a pós-graduação brasileira.

109
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112
PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS,
CLASSIFICAÇÃO E IDENTIDADE
RACIAL: limites e possibilidades

Ana Amélia de Paula Laborne / Professora da Escola Guignard – UEMG


e integrante do Programa Ações Afirmativas na UFMG

Nilma Lino Gomes / Professora Graduação e PPGEd/ FAE/UFMG


Introdução
No Brasil, a raça, entendida como uma construção social (MUNANGA,
2006), elabora-se em uma dimensão relacional e tal construção pode variar
de acordo com os diversos contextos e espaços sociais. Essa categoria, tomada
do ponto de vista sociológico, ajuda a compreender e desvelar a complexidade
do quadro de desigualdades entre negros e brancos no Brasil. Dessa maneira,
as raças são, para a Sociologia, segundo Antônio Sérgio Guimarães (2003),
discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem
à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais e
psicológicas. Diante dessa discussão podemos afirmar que, sociologicamente,
as raças existem. Mais que isto, elas determinam nossos relacionamentos.

Se pensarmos em “raça” como uma categoria que expressa um


modo de classificação baseado na idéia de raça, podemos afirmar
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

que estamos tratando de um conceito sociológico, certamente não


realista no sentido ontológico, pois não reflete algo existente no
mundo real, mas um conceito analítico nominalista, no sentido de
que se refere a algo que orienta e ordena o discurso sobre a vida
social. (GUIMARÃES, 2003, 15)

Corroborando essa perspectiva, os estudos de Hasenbalg e Silva


(1992), Guimarães (2003), Telles (2003) e Silvério (2002) afirmam que
as desigualdades que caracterizam o Brasil ocorrem em uma sociedade
racialmente heterogênea. Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1992),
ainda enfatizam que tal situação não deve ser explicada como mera herança
de um passado escravista. Na realidade, a persistência histórica do racismo
no Brasil deve ser entendida a partir das desigualdades produzidas entre
os sujeitos socialmente classificados em categorias raciais, levando em
consideração a complexa teia das relações de poder entre os segmentos da
sociedade. A experiência de miscigenação racial, tão presente no Brasil,
serve para tornar esse processo mais complexo, dependendo da situação,
mas não é suficiente para eliminar esse conceito e sua operacionalidade.
(TELLES, 2003). Articulado a essas discussões, o presente artigo tem como
principal objetivo entender como se dão as aproximações e divergências
entre classificação de cor e identidade racial de docentes universitários
negros30, bem como as nuances, conflitos e dilemas vividos por estes no
contexto das relações raciais brasileiras.
Diante da inexistência de informações sobre a classificação racial dos
professores na instituição estudada, foi necessário, em um primeiro momento,
realizar uma coleta de dados quantitativos que pudesse facilitar o contato com
eles para uma possível entrevista. Dentre os 224 (duzentos e vinte e quatro)
docentes que responderam a um questionário aplicado nas faculdades que
compuseram a amostra31, 181 (cento e oitenta e um) declararam-se brancos,
29 (vinte e nove) pardos e apenas 1 (um) declarou-se preto.32

30 A pesquisa foi realizada no âmbito da Universidade Federal de Minas Gerais.


31 A saber: Faculdade de Medicina, Escola de Arquitetura e Urbanismo, Instituto de
Geociências e Faculdade de Letras.
32 Ao ordenar os cursos utilizamos a relação candidato/vaga baseada na média dos quatro

115
A partir do entendimento que só seria possível compreender os
processos de construção da identidade racial desses docentes por um estudo
qualitativo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 5 (cinco)
docentes autodeclarados pretos e pardos, sendo 4 (quatro) homens e 1 (uma)
mulher: Pedro (45 anos, Geografia); Carlos (41 anos, Letras); Alex (49 anos,
Arquitetura e Urbanismo); Cristiano (39 anos, Geografia) e Simone (idade
não declarada, Medicina).33 Ao selecionar os sujeitos de acordo com a forma
como se auto-identificavam mediante as categorias de raça/cor do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística e, posteriormente, na realização das
entrevistas, a pesquisa lidou o tempo todo com as interpretações sobre raça,
classificação de cor e construção de identidade racial. É exatamente essa
complexa articulação que o presente artigo pretende discutir.

A complexa discussão sobre a


classificação racial no Brasil

Para Antônio Sérgio Guimarães (2003), a classificação de cor no


Brasil não pode ser entendida como uma categoria objetiva. Na verdade, é
orientada por um discurso sobre qualidades e atitudes, ou seja, por uma
ideia de raça. Corroborando essa linha de análise, é importante ressaltar
que a percepção social da cor e a escolha e/ou atribuição de categorias de
cor é uma operação complexa que envolve uma apreensão de características
fenotípicas, imbuídas de valor e carregadas de significado. Além disso,
essas características compõem um sistema e tal operação processa-se
num contexto de interação social. Desde o século XIX o Brasil mantém
uma tradição de coleta de dados censitários, produzindo, dessa maneira,
estatísticas públicas sobre essa questão. A partir dos estudos de Schwarcz
(2000), podemos perceber que desde os primeiros Censos brasileiros a

últimos vestibulares (2004, 2005, 2006 e 2007) por acreditar que essa variável expressa, em
alguma medida, o valor social atribuído aos cursos. 

33 Os nomes dos docentes entrevistados nesse trabalho são fictícios, de acordo com as normas
éticas da pesquisa científica. 

116
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

problemática da raça misturou-se com o tema da cor. A autora aponta para


uma certa confusão nesse campo, o que demonstra, segundo ela, como a
temática da classificação e das relações raciais é escorregadia no Brasil.

No Brasil, a mistura de definições baseadas na descrição da cor


propriamente dita, e mesmo na situação econômica e social, teria
gerado uma indeterminação e um uso elástico da cor, que revela não
apenas uma confusão, como, paradoxalmente, uma valorização do
tema. (SCHWARCZ, 2000, 113)

Analisando a evolução histórica e as questões em torno das


categorias raciais, José Luís Petruccelli (2007) afirma que o sistema de
classificação brasileiro e o levantamento de informações sobre raça têm sido
objetos de discussão a partir da segunda metade do século XX. Segundo
o autor, a importância dos recenseamentos e das pesquisas das agências
governamentais está justamente na certeza de que a produção desses dados
é mais que uma simples operação de contagem. A partir da análise dos
resultados dessas estatísticas públicas “são construídas representações do
mundo social situadas na interseção do jurídico, do político e do imaginário
nacional, em forma de categorias” (PETRUCCELLI, 2007, 120). Nesse
sentido, é preciso entender como se estabeleceram as categorias raciais que
utilizamos hoje nas estatísticas oficiais.
No primeiro Censo (1872) a população foi classificada em livre e
escrava, cabendo ao recenseado livre definir sua cor e a de seus escravos. As
opções de classificação eram: branco, preto, pardo ou caboclo. É interessante
observar que a distinção entre escravos e livres dividia a sociedade. Segundo
Lilia Schwarcz (2000), a complexidade originou-se da alforria de escravos e
do nascimento de indivíduos mestiços livres. Esses indivíduos provocaram a
necessidade de criação de novas categorias sociais que precisavam ser ajustadas
à hierarquia social. Ainda segundo essa autora, no período pré-abolição as
“pessoas de cor” livres formavam um grupo heterogêneo com pessoas de várias
origens, habilidades, graus de aculturação e cores que, na maioria das vezes,
eram tratadas com desprezo e obrigadas a lidar inclusive com limitações legais.

117
No recenseamento seguinte, de 1890, o termo “pardo” foi
substituído por “mestiço”. Uma possível explicação para essa modificação,
segundo Renísia Garcia (2007), poderia apontar para uma crescente
diferenciação que se estabelecia no período pós-abolicionista entre os libertos
e os nascidos livres, que seriam os “verdadeiros” cidadãos brasileiros. Nas
relações costumeiras, o ex-escravo recém-liberto era tratado como preto ou
negro. Os mestiços ou pardos eram os nascidos livres, posição cada vez mais
associada aos brancos. A autora considera que a autoidentificação como
mestiço ou pardo, e não mais como negro ou preto, poderia ser entendida
como uma forma encontrada pelos libertos para afirmarem a experiência
de liberdade. Os Censos que se seguiram não incorporaram a variável raça.
Segundo José Luís Petruccelli (2007), nesse período surgem dúvidas quanto
à validez das informações coletadas, principalmente no que diz respeito
à população mestiça. O quesito “cor” volta a ser pesquisado no Censo de
1940, sendo a classificação referida a brancos, pretos e amarelos para
incluir os imigrantes asiáticos e seus descendentes. Um quarto grupo, sob
a denominação de pardos, seria formado para os que não se enquadrassem
nas categorias apresentadas, englobando, assim, diversas respostas e
variados significados.
Nos Censos de 1950 e 1960, a categoria “pardo” é reincorporada
como uma das opções de resposta, juntamente com as outras três. Desde
então, a única alteração no sistema classificatório, não incorporado na
década de 1970, foi o acréscimo da categoria “indígena” no Censo de
1991. Modifica-se, também, o quesito na sua formulação ao incorporar
explicitamente o termo raça, consolidando as cinco categorias em uso nos dias
atuais. (PETRUCCELLI, 2007). Outras pesquisas que utilizaram a categoria
“cor” foram a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1976
e a Pesquisa Mensal de Emprego de 1998. Em ambos os levantamentos
foram incluídas perguntas subjetivas, de resposta espontânea, e objetivas,
apresentando uma pré-codificação. Os dados fornecidos apontam para uma
multiplicidade de termos que, na verdade, geraram o debate sobre a validade
do sistema classificatório de cor no Brasil.

118
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

A partir desta multiplicidade de categorias a princípio encontradas,


é que se desenvolve corriqueiramente a idéia da suposta enorme
complexidade do sistema classificatório brasileiro. Com mais uma
pequena derrapagem conclui-se que aqui no Brasil não é possível
saber quem é negro e quem não é, conseqüentemente, se chega à
suposta impossibilidade de definir quem poderia se beneficiar com o
regime de cotas ou de políticas de ação afirmativa. (PETRUCCELLI,
2007, 124 e 125)

Remontar a esse histórico significa perceber que o debate em torno


da classificação utilizada nas pesquisas oficiais, na verdade, reflete a dinâmica
das relações e identidades raciais na sociedade brasileira. Reflete, também, as
relações de poder nas quais essa dinâmica está imersa. Nesse contexto, apesar
de estarem ausentes nos Censos, os termos “moreno” e “negro” representam
bem a tensão e a ambiguidade das classificações raciais no Brasil. O depoimento
abaixo retoma essa questão.

Eu não me considero negro. (...) Quando eu falo que eu já sofri preconceito


pela questão da cor de pele, as pessoas acham que eu estou brincando,
que eu estou inventado ou que é uma ironia. Eles relevam isso como
se fosse uma coisa assim... “Ah! Não é possível!” Mas eu sei o quê que
é. Eu sei o que é não poder usar um penteado de cabelo x, que você é
considerado... Mas eu me considero moreno. (Alex)

A declaração do professor pode ser analisada a partir das representações


sociais do “moreno”, na classificação racial brasileira, como a expressão máxima
da mestiçagem no Brasil. De acordo com Rafael Osório “moreno, além de não
implicar uma ascendência africana ou o porte de traços estéticos que marcam
os negros, é algo positivo, prezado.” (OSÓRIO, 2003, 31). Para Edward Telles,
“o termo ‘moreno’ é símbolo da flexibilização do sistema brasileiro tradicional
ao passo que o termo ‘negro’ busca resgatar o orgulho na identidade negra, que
há muito tem sido estigmatizada.” (TELLES, 2003, 133)

119
Eu sou negro. Eu me considero negro. Agora por outro lado também,
eu sei de outras pessoas que preferem ser consideradas pardas do
que negras, porque acham que o negro é pejorativo. (Carlos)

Apesar de ainda existirem no imaginário social brasileiro muitas


representações negativas construídas a partir da categoria ‘negro’, observa-
se, nos últimos anos, o fortalecimento e a valorização da negritude, buscando
uma ‘ressignificação’ positiva da identidade racial da população negra no
Brasil. Tal mudança no cenário político e o crescente aumento de investi-
gações que problematizam a questão racial no contexto acadêmico têm o
Movimento Negro como um dos protagonistas. Parte considerável dessas
pesquisas, a partir dos anos 90, tem sido produzida, inclusive, por pes-
quisadores e pesquisadoras negras. Esse processo acarreta mudanças de
perspectivas, destaques na discussão da temática racial no campo político e
no campo do conhecimento e a indução de políticas afirmativas.
Nesse contexto, podemos refletir que quando as características que
nos permitem identificar pessoas são extrapoladas como determinantes de
uma série de atributos, sejam eles positivos ou negativos, possibilitam, além
de diferenciar, hierarquizar essas diferenças.

A forma como são percebidos segmentos da população nacional e,


portanto, como são classificados e hierarquizados em categorias,
sejam estas acadêmicas ou populares, condiciona a vida de cada
indivíduo em sociedade, resultando em provações diversas para
aqueles aos que se atribuem características estigmatizadas.
(PETRUCCELLI, 2007, 113)

A questão da classificação racial, no Brasil, vai mais longe. Como


apontou Oracy Nogueira (1985), em nosso país a discriminação racial
incide sobre os fenótipos dos sujeitos, indicando um preconceito que
costumamos chamar de “preconceito de marca”. Entre esses fenótipos estão
a tonalidade da cor da pele, o tipo de cabelo, o formato do nariz e dos lábios.
Nesse “preconceito racial de marca” a questão da origem racial de um

120
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

indivíduo seria pouco relevante. O sujeito é, assim, classificado socialmente


como negro e, no contexto do racismo, poderá ser discriminado não pela
porcentagem de genes de ascendência negra e africana que carrega no seu
genoma, mas sim por sua aparência física. Uma aparência cuja história
está eivada de estigmas. É ela que orientará a representação social que recai
sobre esses sujeitos.
No entanto, exatamente pelo caráter relacional e fluido dos
processos de identificação é importante ressaltar que nem sempre a
autoidentificação racial do indivíduo aproxima-se de uma alter-classificação.
É interessante considerar, também, que a escolha de uma categoria de cor,
de acordo com os critérios do IBGE, é carregada de autoreflexão, construções
e reconstruções identitárias, nem sempre perceptíveis quando analisamos
os dados de forma fria e neutra. Por mais esclarecedoras que sejam as
análises da realidade racial e das desigualdades advindas da inserção das
categorias de cor nas pesquisas oficiais, faltam-nos ainda investigações que
se aproximem dos sujeitos que se autoclassificam, a fim de compreender
como os mesmos articulam a classificação racial solicitada e suas vivências
identitárias. É o que revelam os entrevistados nos seus depoimentos.

Então, eu botei pardo, porque eu venho de uma descendência negra


e branca. Então eu sou mestiça, então eu não posso dizer que eu
sou morena ou que eu era branca, por mais que a pele seja clara.
Porque na verdade branca eu não sou, já que meus pais e meus
avós são todos negros, negros mesmos. E eu fui miscigenada, fui
miscigenada. Então, na verdade eu tenho que dizer, que eu sou
parda, não tem jeito de eu dizer que eu sou branca de pele. É branca
a pele, mas a característica é de raça negra. Eu tenho cabelos, o
nariz, tudo que representa, não tenho a cor da pele (...) Então, na
verdade eu estou dentro da raça negra, que é parda mesmo. (...) Eu
me considero da raça negra. (Simone)

Mas como eu acredito que é uma construção e eu me vejo mais com


traços de negro do que de pardo. Eu tenho o lábio grosso, como

121
minha mãe falava beiço grande, o meu cabelo é crespo, o meu nariz
não é o formato... (Carlos)

Na realidade, não há como negar que o Brasil é um país de população


mista. Para a construção de um Brasil moderno o discurso da igualdade
racial, inspirado na profunda miscigenação e na forma como a mesma passa
a ser vista pelos grupos no poder, emerge nas décadas de 1920 e de 1930,
negando a estrutura da histórica discriminação brasileira. Em seu lugar
erige-se o mito da democracia racial, da “fábula das três raças” – convivência
pacífica entre brancos, negros e índios. Segundo Roberto da Matta (1997,
35), no Brasil “o sistema inclui e hierarquiza de modo complementar, de
acordo com o princípio do ‘desigual, mas junto’.” Nesse sentido, “todas as
etnias se completam para a formação do ‘povo brasileiro’, pois o que falta
em uma, existe de sobra na outra.” (DA MATTA, 1997, 35). Nesse universo,
experiências históricas de segregação e discriminação foram camufladas e
desconsideradas e, consequentemente, tornaram-se imperceptíveis para a
maioria da população. Na verdade, falar em “raça”, “racismo”, “identidade
racial”, “identidade negra”, mestiçagem e classificação de cor significa levar
em consideração uma realidade muito mais complexa, mais flutuante e
muito mais variável segundo o contexto social no qual ocorre o encontro
entre indivíduos e grupos.

Identidade racial: processo


em construção

É importante destacar que a construção da identidade é um


fenômeno histórico e se dá no jogo das relações sociais. Assim, no caso da
identidade racial brasileira, não é possível falar de construção identitária sem
considerar a dinâmica de nossas relações raciais, uma vez que as relações
cotidianas estabelecidas nos diversos espaços de socialização atravessam o
processo de construção das identidades e são atravessadas por ele. Dessa
maneira, devemos ter claro que a identidade racial é uma construção
social, histórica e cultural. Nenhuma identidade é construída no vazio, no

122
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

isolamento, mas sempre resulta de uma relação. Os sujeitos constroem


suas identidades raciais sempre a partir de suas trajetórias sociais e das
relações que estabelecem nesse percurso. Deparam-se, nesse processo, com
distintos olhares sobre sua cultura, seu pertencimento racial, sua trajetória.
Nessa mesma perspectiva, segundo Jacques d’Adesky,

(...) Porque a identidade, para se constituir como realidade,


pressupõe uma interação. A idéia que um indivíduo faz de si
mesmo, de seu “eu”, é intermediada pelo reconhecimento obtido
dos outros em decorrência de sua ação. E sua verdadeira identidade
é a que ele mantém na realidade social decorrente de sua ação.
Melhor dizendo: o homem procura o reconhecimento de sua
individualidade no interior do grupo em que se encontra inserido e
também em relação aos outros grupos que o cercam. Essa interação
não é um campo amorfo, afirma Ledrut, mas é estruturada durante
um dado período por forças e sistemas. É aí que intervém o papel
das elites, das minorias, da ideologia e do imaginário, das estruturas
do poder, etc, acrescenta Ledrut.34 (D’ADESKY, 2001, 76)

Dada a maneira complexa como a raça opera nas relações entre


negros e brancos no Brasil e os dilemas trazidos pela forma como a
miscigenação cultural e racial foi e ainda é vista, podemos dizer que negros
e brancos constroem identidades raciais. Ambos são educados e reeducados
como um “eu” e um “outro” no interior das classificações sociais brasileiras.
Neste, a raça opera como forma de distinção social, como maneira de ver
a si mesmo e ao outro. Portanto, as relações raciais brasileiras também
dizem respeito aos processos de classificação racial construídos no contexto
histórico, social, cultural e político e estão imersas em um jogo complexo:
a relação entre a construção da identidade e a classificação racial. Nesse
sentido, “sabemos (...) que a classificação não se resume a um jogo aleatório

34 Raymond Ledrut, “Représentations de l´espace et identities régionales”, In: Espaces et


culture, Berna, Editions Goergi/1813 Saint-Saphorin, 1988, p. 89.

123
e voluntarioso. Ao contrário, sua lógica fala de representações internalizadas
e valorações culturais de longa data.” (SCHWARCZ, 2000, 125). Estamos
diante de uma relação complexa entre diferentes processos identitários.
Os discursos sobre as representações do conceito de identidade parecem
concordar com essa perspectiva.

O que é um processo, por isso eu falei pra você, o reconhecer-se


negro é um processo, é uma construção identitária. Eu não acredito
em identidade, acredito em identidades, no plural. Eu acho que é
uma construção, na minha infância eu não gostava de ser negro e
depois... “Pera aí, porque não?” (...) Hoje eu me sinto negro, se me
perguntar eu sou negro. (Carlos)

As pessoas buscam se afastar desse tipo de identificação, mas eu


acredito que é um processo, é um crescente. São alguns aspectos,
até mesmo sociais, que a gente percebe que isso vai se construindo.
Eu acredito que dentro de uma geração, daqui uns vinte, trinta anos
essa coisa vai mudando. E certamente vai aumentar o contingente
de negros. (Pedro)

A construção dessa identidade racial diz respeito ao lugar


ocupado pelos sujeitos no contexto das relações raciais. É importante
não nos esquecermos desse aspecto. Estamos, portanto, no campo das
representações sócio-raciais e do seu peso na vida dos sujeitos e da
sociedade. No caso da presente pesquisa, os sujeitos são professores de
uma instituição federal de ensino superior, que se autodeclaram pretos e
pardos em um processo de classificação racial. Nesse sentido, ao serem
escolhidos para a entrevista, são chamados a falar do lugar de uma
identidade racial. Analisando os depoimentos, buscamos entender como se
dão esses processos de construção de identidades raciais que podem ser
negras ou não, mestiças ou não, brancas ou não. Estamos diante de uma
elaboração ainda mais complexa, que implica a possibilidade de construção
de múltiplas identidades raciais no contexto das relações raciais brasileiras.

124
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Ao ser questionado sobre porque marcou “pardo” na questão sobre raça/cor


do questionário, um professor reflete.

Eu sempre respondo isso com um incômodo. Quando me


perguntam: “Você se considera negro?” Eu falo sim e não. Sim,
porque a minha identidade não depende do meu olhar. Eu vejo
que em vários contextos eu sou identificado com uma pessoa mais
próxima da negritude. (...) Quando eu falo não, por dois motivos.
Primeiro, eu lido com contextos em que eu sou praticamente um
branco. Por exemplo, às vezes eu vou à periferia, converso com as
pessoas sem me apresentar como pesquisador... Às vezes... Um
sentimento que é circunstancial, ele não é permanente certo?
É um olhar que me aproxima do de ser branco. O olhar... Você
percebe o olhar dessas pessoas para você... E aí quando você se
apresenta, fala, não de ser professor da UFMG, a representação
geral, ela infere que... “Essa trajetória aí, não é uma trajetória
comum a nós. (Cristiano)

O depoimento é emblemático para mostrar como a reflexão sobre


si mesmo do ponto de vista racial e identitário apresentada pelos docentes
não dependeu apenas da resposta ao quesito “cor” no questionário. Na
realidade, esse quesito foi o desencadeador de um questionamento sobre
o seu “lugar racial” na sociedade, a partir da sua própria visão e da forma
como são vistos pelos “outros”: a família, os moradores da periferia, a
universidade. Nota-se uma construção identitária que fala mais da vivência
íntima e privada do sujeito e não necessariamente de um discurso pautado
em uma consciência política como é feito, por exemplo, nos fóruns da
militância. Identificar-se como pardo ou indagar-se como pardo é, portanto,
um lugar de tensão, reflexão e autoquestionamento. Pensando no lugar
do “pardo” nas relações raciais brasileiras, afirmar que o povo brasileiro
é majoritariamente mestiço não significa dizer que esses mestiços sejam
rigorosamente iguais em termos físicos e nem que possuem uma mesma
interpretação sobre o seu pertencimento étnico-racial. Ao analisarmos o

125
lugar do “pardo” nessa pesquisa, e como ele pode expressar um lugar de
mestiçagem, nos reportamos a alguns depoimentos.

Pois é, às vezes a gente vive situações que inclusive, como eu disse,


ser pardo em uma situação é diferente de ser pardo em outra
situação. (Cristiano)

No dia que eu te respondi aquele e-mail, eu fui ali e perguntei aos


meus bolsistas: “Vocês acham que eu sou preto ou branco?” Eles
ficaram meio sem entender. Eles não conseguiram responder.
Eu falei: “Deixa eu ver como é que as pessoas me vêem.” E eles
não conseguiram responder. “Vocês acham que eu posso dar
uma entrevista para uma pesquisa que está entrevistando os
professores negros da Arquitetura?” “Nossa de jeito nenhum. O
quê que é isso? Muitas pessoas não me vêem como negro, pardo,
nada. Moreno é uma coisa que as pessoas falam, mas não é nem
categoria racial. (...) Eu não consigo dizer que eu sou branco,
porque de fato eu não sou. E não consigo dizer que eu sou negro,
na concepção brasileira porque eu não sou. (...) Eu me identifico
como pardo quando me perguntam. porque eu não sou branco,
não sou negro também... (Alex)

Os depoimentos são bons exemplos para refletir como a construção


da identidade racial e o lugar da mestiçagem nela envolvido relaciona-se o
tempo inteiro com o olhar do outro, com o contexto e a posição social e com
as representações sobre quem é negro no Brasil. A pesquisa revelou que os
autodeclarados “pardos” vivem maior situação de ambiguidade, oriunda de
si mesmo ou do olhar do outro. A permeabilidade da linha de cor, reservada
a indivíduos racialmente não muito distantes dos brancos, os mestiços, tem
sido o paradigma para se pensar a fluidez das classificações raciais no Brasil.
Nesse contexto, Iray Carone afirma que a construção sociológica do mulato é
entendida como “a ‘saída de emergência’ do sistema social que funcionaria
como redutor de tensões raciais ou uma ‘válvula de escape’ para evitar as
polarizações antagônicas entre negros e brancos.” (CARONE, 2002, 186).

126
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Pensando nessa complexidade do sistema de classificação racial


brasileiro, ao considerarmos a identidade racial como uma construção
relacional devemos levar em consideração que as escolhas que envolvem
esse processo transitam em um certo limite. Isso significa que, por mais
amplo, ambíguo e abrangente que possa ser esse sistema, cada indivíduo
guarda em si, baseado em suas características físicas, um campo de
possibilidades de autoclassificação e de heteroclassificação. (VELHO,
1994). Evidentemente esse campo de possibilidades não é o mesmo para
todos os sujeitos e apresenta-se de forma mais ampliada para os “pardos”,
os mestiços. Na verdade, algumas reflexões dos depoentes são reflexos
da especificidade do nosso sistema de classificação racial, construído a
partir do olhar de cada um, sendo, dessa forma, definido relacionalmente.
(TEIXEIRA, 2003). Vários depoimentos reforçam a existência desse campo
de possibilidades e a forma como ele opera em seus limites e fronteiras.

Eu respondi pardo porque no meu registro está pardo. Como eu


coloco aí, eu me considero negro, mas no meu registro está pardo,
não sei o quê é pardo. Pardo é... Minha mãe falava negro encardido.
Eu me considero um negro encardido. Você entende encardido? No
sentido de desbotado? Sabe roupa quando fica desbotada? Hoje tem
marrom bombom, que está lá no pagode, tem chocolate. Eu não sei
se o pardo é o politicamente correto. Eu me vejo como negro, mas
sempre é o que está no seu registro. Eu sei de pessoas que está negro
ou até preto no registro. Então, eu respondi no seu questionário
pardo porque é assim que está no meu registro. Mas como eu
acredito que é uma construção e eu me vejo mais com traços de
negro do que de pardo. Hoje eu me sinto negro, se me perguntar eu
sou negro. Eu tenho o lábio grosso, como minha mãe falava beiço
grande, o meu cabelo é crespo, o meu nariz... (Carlos)

No caso brasileiro, ainda que possamos observar uma grande


mobilidade e flexibilidade na identificação do “pardo” existe, também para
ele, um limite de possibilidades para a formulação de identidades raciais,

127
o que demonstra que elas “não operam no vácuo, mas sim a partir de
premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos.”
(VELHO, 1994, 46). A ambiguidade tem sido um traço marcante de nossa
classificação racial. No entanto, segundo Valter Silvério essa fluidez

não tem impedido que uma parcela significativa da população


negra seja permanentemente “racializada” no cotidiano e que, por
isso mesmo, tenha assumido sua identidade negra de forma não
ambígua e contrastante em relação ao seu outro, branco. (SILVÉRIO,
2002, 224)

Para alguns depoentes, a despolarização da classificação racial


entre brancos e negros é somente virtual, pois, na prática cotidiana, é pela
parcela de suas características negras que os mestiços são discriminados.

É claro isso, a gente vê que para ter preconceito a gente não tem
nenhuma dificuldade de identificar quem é negro. Ninguém tem
dúvida não é? De longe na rua, você sabe quem é negro e quem
não é. (Alex)

No meu registro está pardo, eu não sei porque que está pardo. É
uma categoria que eu acho estranho, o quê que é pardo? Eu me sinto
negro, se me perguntar eu sou negro. (Carlos)

Esse negócio de pardo... Eu não identifico muito esse negócio


de pardo não. Esse negócio de pardo é um termo talvez que se
aproxime. Não querem falar negro, falam pardo. Pardo não existe. É
negro, é branco, é índio ou é oriental e acabou. Não vejo esse negócio
não. (Pedro)

Os estudos sobre mestiçagem têm se debruçado sobre os dilemas


da construção da identidade racial daqueles que a expressam na sua cultura,
nas suas representações e corporeidades (MUNANGA, 2006). É nesse processo

128
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

que se destacam o corpo negro e o cabelo crespo como símbolos identitários


de expressão e resistência, mas também como opressão e negação.

Na minha família aparece muito isso, tenho um irmão que é um


pouco mais negro, outro um pouco mais claro, tem uma irmã que
tem praticamente o tom da sua pele... Mas tem o cabelo que é...
Coitada! Ela fica lá revoltada com ele, esticando e tem os traços,
o nariz, a boca, os lábios grossos. A mistura está bem presente
nela. (...) Tenho uma sobrinha, sobrinha-neta já, ela odeia o cabelo.
Cabelo é marca! Então agora ela esticou o cabelo e fica o tempo
todo... Isso pequenininha, com sei lá, vai fazer três ou fez três
anos. A mãe dela teve que esticar o cabelo dela e meu sobrinho é
negro, negão mesmo. E a mãe tem os seus traços, mas tem o cabelo
também tratado, o cabelo dela não é “bom”. Então ela não tinha
outra possibilidade de ter cabelo, coitada. Coitado para o quê ela
quer... (Carlos) (Grifo nosso)

O relato do professor sobre a tensão provocada em sua família pela


questão do cabelo crespo nos aproxima das análises de Nilma Gomes (2006).
Segundo a autora, a rejeição do cabelo pode levar a uma sensação de inferioridade
e de baixa estima, contra a qual se faz necessária a construção de outras estratégias,
diferentes daquelas usadas durante a infância e aprendidas em família. Para
essa autora o cabelo não funciona sozinho no contexto das relações raciais e
das classificações sociais. Geralmente ele vem acompanhado das impressões
sobre a cor da pele. A dupla cabelo e cor da pele opera como marcadores
identitários na construção da identidade racial. A importância destes, sobretudo
do cabelo, na maneira como o negro se vê e é visto pelo outro, inclusive aquele
que consegue algum tipo de ascensão social, é algo marcante. Mesmo para esse
sujeito, o cabelo não deixa de ser uma forte marca identitária e, em algumas
situações, continua sendo visto como estigma de inferioridade (GOMES, 2006).
É preciso destacar que dentre os professores que responderam ao
questionário somente um declarou-se preto. Quando entrevistado, revelou
que no processo de construção da sua identidade racial a identidade negra

129
tem sido orientadora a partir de sua ação como homem negro no mundo.
Ou seja, apesar da ambiguidade ser um traço marcante da classificação
racial brasileira, há uma parcela da população brasileira que, diante da
permanente “racialização” do cotidiano tem assumido sua identidade negra
de forma não ambígua e contrastante em relação ao seu outro, o branco.
Essa assunção não ambígua, é, aparentemente, desveladora da trama do
nosso universo de classificações que tem permitido, por meio do uso e abuso
da multipolaridade, a subordinação funcional dos não-brancos (SILVÉRIO,
2002, 224 e 225).

É um processo... (...) Coloquei preto e quando eu digo, me autodeclaro


negro, eu tenho essa percepção. Os meus filhos eu vou passar isso
pra eles. Não vejo problema. Não acho que é nem enaltecedor nem
depreciativo. É uma constatação, eu acho. (Pedro)

No depoimento acima percebemos que, para esse professor


autodeclarado preto no questionário e que se afirma como negro, a
construção de uma identidade negra positiva é resultado de um processo.
Um processo que deve ser alavancado por uma mudança social, coletiva,
que possibilite uma construção positiva também de uma identidade
coletiva. Outro docente marcou a categoria “pardo” e, ao mesmo tempo,
apresentou um discurso reflexivo revelando a construção afirmativa da
identidade negra. Esse exemplo revela que entre a autoclassificação rígida
das categorias de cor e a afirmação da identidade negra existem nuances,
histórias e indagações que somente um processo de pesquisa que trabalhe
com a aproximação e recolha dos depoimentos dos sujeitos conseguirá, de
alguma forma, deslindar.
Nessa perspectiva, a identidade negra não deve ser vista como
algo determinado e fixo. No entanto, não se pode negar que se trata de
um processo em construção, apoiado em algum tipo de fixidez que se
revela na forma como as relações entre negros e brancos se dão na cultura
e na sociedade, não se limitando, porém, ao âmbito das relações raciais.
À medida que o sujeito tem contato com outros sistemas simbólicos, pode
vir - e vem - a dar novos sentidos à sua experiência identitária.

130
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Considerações Finais
A literatura sociológica e antropológica aponta que a mestiçagem e
a ideologia do branqueamento tiveram fortes implicações no conceito de raça
no Brasil. Diante da realidade de miscigenação racial, como afirma Edward
Telles (2003), tornou-se desnecessária a regulamentação de regras formais
de classificação racial. Segundo o autor, como resultado, a classificação
racial no Brasil tornou-se mais complexa, ambígua e mais fluida. Esse
processo está intimamente relacionado à construção das identidades raciais
– dentre elas a identidade negra e mestiça - e à forma como as diferenças
são vistas e interpretadas na cultura. Nessa perspectiva, é preciso considerar
que as identidades raciais são construídas a partir de um complexo jogo
de semelhanças e diferenças, de aproximações e distanciamentos, sempre
levando em conta as diferentes maneiras como essa diversidade é tratada
pela sociedade (GOMES, 2006).
No que diz respeito à classificação racial, apesar de identificarem
um lugar social distinto para o “pardo”, esses sujeitos expressam um “campo
de possibilidades” no qual as escolhas que envolvem tal construção não são
totalmente abertas, pois transitam dentro de um certo limite. Por mais
amplo, ambíguo e abrangente que possa ser o sistema de classificação racial
brasileiro cada indivíduo guarda em si, baseado em suas características
físicas, um campo de possibilidades que serve de referência para a
construção de sua identidade racial. Fica evidente nas trajetórias desses
professores que esse campo de possibilidades não é o mesmo para todos os
sujeitos. Ele se apresenta de forma mais ampliada para os “pardos”, ou seja,
para os mestiços que possuem características fenotípicas tanto de negros
quanto de brancos. No entanto, em alguns depoimentos percebe-se que
a despolarização da classificação racial entre brancos e negros é somente
virtual, pois, na prática cotidiana, é pela parcela de suas características
negras que os mestiços são discriminados. Diante desse processo complexo
de construção das identidades raciais é imprescindível pensar em que
medida essas discussões têm sido contempladas pelo atual sistema de
classificação de cor oficial brasileiro, embora saibamos que qualquer forma
de classificação é arbitrária e não consegue abarcar a complexidade das
relações sociais.

131
Não é nossa intenção apresentar respostas para as questões
formuladas. Muito menos pretendemos esgotar um tema tão complexo
nesse artigo. No entanto, ao longo da pesquisa e ao analisar as entrevistas
foi possível perceber as nuances, os conflitos e os dilemas vividos por esses
sujeitos no contexto das relações raciais em que estão inseridos. Conforme
dito anteriormente, existem argumentos sociológicos, estatísticos e políticos
para agregarmos as categorias “pretos” e “pardos” e entendermos os sujeitos
que delas fazem parte como “negros”. No entanto, se do ponto de vista teórico
essa relação é possível, do ponto de vista identitário, no que se refere à forma
como esses sujeitos se veem, não é tão simples assim. Estamos imersos em
questões que se referem à construção da identidade racial e da identidade
negra, à mestiçagem e ao contexto das classificações raciais.

132
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Referências Bibliográficas

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134
DESIGUALDADES REGIONAIS,
TRABALHO E EDUCAÇÃO NA
IMPLEMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR QUILOMBOLA35

José Eustáquio de Brito / Universidade do Estado de Minas Gerais


e Faculdade de Educação/ FaE-UEMG
35 Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG.
Introdução
O processo instituinte desencadeado ao longo do segundo semestre
de 2011, por iniciativa do Conselho Nacional de Educação, visando construir
as bases para o estabelecimento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, foi composto por momentos
privilegiados de interlocução entre lideranças de comunidades quilombolas,
militantes do movimento social negro, pesquisadores e educadores de várias
regiões do País e gestores públicos situados em várias esferas de governo. Em
pauta, promovia-se o debate acerca das estratégias necessárias à garantia do
direito constitucional à educação das populações habitantes de comunidades
quilombolas. Nesse período, foram realizadas audiências públicas nos
municípios de Itapecuru-Mirim, no estado do Maranhão e em São Francisco
do Conde, Bahia, concluindo a fase preliminar de consultas com a audiência
pública ocorrida em Brasília, em novembro desse mesmo ano.
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

O texto de referência produzido com a finalidade de subsidiar


os debates nessas audiências públicas reconhece que “a Educação Escolar
Quilombola não pode prescindir da discussão sobre a realidade histórica e
política que envolve a questão quilombola no país” (Brasil, 2011, p. 08). Essa
realidade, constituída ao mesmo tempo de configurações locais e regionais
particulares, bem como de referências históricas comuns, situam essas
comunidades como herdeiras de um passado marcado pela resistência ao
regime escravista que se manifesta, por exemplo, em sua territorialidade:

As comunidades quilombolas ocupam os sítios localizados


atualmente nos espaços rural, urbano e periurbano do Brasil;
constituem territórios étnicos de resistência secular; de identidade
marcante; de resgate histórico e de manutenção das heranças
africanas sobreviventes no país. As questões desses sítios
tradicionais se configuram como emergenciais por constituírem,
sobretudo, espaços de risco de desestruturação social, econômica,
política e territorial do sistema do Estado brasileiro. O processo de
reconhecimento e regularização oficial desses territórios étnicos
de matriz africana constitui um dos principais resgates, ainda
necessário e pendente, da territorialização da população afro-
brasileira (Anjos, 2009, p. 09).

Nesse sentido, a reflexão acerca das configurações do mundo do


trabalho nas comunidades quilombolas apresenta para as políticas públicas
de forma geral, e para a política educacional em particular, um ingrediente
indispensável para a compreensão dos desafios postos a essas comunidades.
Para que seja possível alcançar uma compreensão crítica acerca da realidade
histórica, num contexto de risco de desestruturação social, econômica,
política e territorial, não do sistema do Estado brasileiro, mas das próprias
comunidades, torna-se necessário situar a dinâmica produtiva dessas
comunidades em sua relação de subordinação à estrutura do mercado de
trabalho nacional.

137
O objetivo desse artigo é refletir sobre a configuração do mundo
do trabalho na Comunidade Quilombola da Vila de Santo Isidoro, município
de Berilo, na região do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, destacando
as oportunidades de inserção ocupacional de jovens habitantes dessa
comunidade, de modo a derivar dessa análise questões que incidem sobre
a implementação da modalidade da Educação Escolar Quilombola nessa
comunidade, conforme determinado pela Resolução 08/2012, da Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação.
Num primeiro momento, o texto da Resolução será analisado
a partir da relação nele estabelecida entre as dimensões do trabalho e da
educação escolar quilombola. Em seguida, tendo em vista um conjunto
de evidências coletadas a partir do trabalho de campo da pesquisa sobre
educação escolar quilombola em Minas Gerais35, será apresentado um
quadro dos desafios presentes na dinâmica desse território quilombola
de modo a considerar a sistemática migração sazonal da população jovem
em busca de oportunidades de trabalho em regiões canavieiras e cafeeiras
do Sudeste e Centro-Oeste do País. A título de conclusão, serão tecidas
considerações sobre a necessidade de inserir a Educação Escolar Quilombola
num quadro mais amplo em que a questão do modelo de desenvolvimento
das comunidades quilombolas seja capaz de se articular a outros princípios
que norteiam a implementação dessa modalidade da educação básica.

35 Trata-se do projeto de pesquisa intitulado “Educação Escolar Quilombola em Minas


Gerais: entre ausências e emergências”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa
de Minas Gerais (Fapemig). A pesquisa analisa as condições para a implantação da
modalidade de educação escolar quilombola em Minas Gerais considerando experiências
em curso e situações incipientes, de modo a responder as seguintes questões: Que conflitos
estão abertos na ação dos movimentos sociais negros no sentido da construção da educação
escolar quilombola? Que dilemas se instauram? Que desestabilizações são produzidas no
âmbito das políticas educacionais municipais? Que respostas estão sendo construídas pelos
atores sociais envolvidos nessa implementação?

138
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

O tema do trabalho na Resolução sobre


educação escolar quilombola

A audiência pública realizada em Brasília, em novembro de 2011,


que encerrou o ciclo de consultas sobre a construção do texto da Resolução
sobre a Educação Escolar Quilombola revelou aos membros do Conselho
Nacional de Educação e autoridades públicas presentes que, na concepção
das lideranças quilombolas que tomavam assento do auditório do Conselho,
legislar sobre o tema em questão se constituía numa oportunidade para
adentrar numa realidade desafiadora em que a educação é parte de um
conjunto de demandas historicamente reivindicadas por essas comunidades.
Fizeram-se representar nessa audiência o movimento social quilombola de
várias regiões do país, bem como instituições de ensino superior, secretarias
de educação e órgãos públicos que desenvolvem ações de interesse das
populações quilombolas.
As intervenções feitas durante a audiência pública de Brasília,
especialmente pelos representantes das comunidades quilombolas, via de
regra, apontavam que o debate sobre a educação dizia respeito ao grau de
precariedade perceptível nas formas históricas de produção e reprodução
da vida nas diversas comunidades quilombolas dispersas pelo país. Uma
questão que foi objeto de várias intervenções por parte dos presentes dá
conta de que a educação escolar quilombola extrapola os limites da política
educacional. O reconhecimento das comunidades quilombolas por parte dos
poderes públicos, com a demarcação das terras e registro de titularidade é
uma condição fundamental para a implementação de políticas públicas
nessas comunidades. Por isso, a luta pela educação escolar quilombola se alia
a outras frentes de luta em que essas comunidades encontram-se inseridas.
Nesse sentido, discutir as proposições que balizariam as diretrizes nacionais
para a educação escolar quilombola se revestiria de uma importância política
capaz de proporcionar uma reflexão crítica sobre a situação histórica de
abandono a que essas comunidades têm sido relegadas pelo poder público.
Dessa forma, os representantes das comunidades quilombolas apontavam
para os presentes que, para além das considerações a serem feitas sobre

139
as formas de organização e funcionamento da escola quilombola, fazia-se
necessário incorporar no texto questões que aludissem à dinâmica do mundo
do trabalho como parte fundamental do processo de reprodução da vida.
Em conformidade com o preceito constitucional e à Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional, a Resolução da Educação Escolar Quilombola
reconhece, como parte integrante de seus princípios, “o trabalho como
princípio educativo das ações didático-pedagógicas da escola” (Art. 7º, Inciso
XVIII), bem como o “direito dos estudantes, dos profissionais da educação
e da comunidade de se apropriarem dos conhecimentos tradicionais e das
formas de produção das comunidades quilombolas de modo a contribuir para
o reconhecimento, valorização e continuidade” (Art. 7º, Inciso XVII). Esse
reconhecimento, no entanto, no texto da Resolução, aponta para a necessidade
de promover a adequação da educação escolar quilombola com um modelo de
desenvolvimento compatível com as características dessas comunidades, de
modo a expressar o conjunto de valores presentes nas formas de sociabilidade
historicamente constituídas nas relações estabelecidas com o território. Essa
prerrogativa apresenta-se no texto a partir do princípio que reconhece o

direito ao etnodesenvolvimento entendido como modelo de


desenvolvimento alternativo que considera a participação das
comunidades quilombolas, as suas tradições, o seu ponto de vista
ecológico, a sustentabilidade e as formas de produção do trabalho e
de vida (Art. 7º, Inciso X).

A referência ao trabalho como princípio educativo pressupõe a sua


tradução nas etapas e modalidades em que se organiza a educação escolar
quilombola. De acordo com o texto da Resolução, o locus privilegiado de
manifestação desse princípio encontra-se nas formas de organização e
funcionamento do Ensino Médio, na Educação de Jovens e Adultos e na
Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Elencam-se, abaixo, alguns
exemplos de manifestação desse princípio tendo por critério as etapas e
modalidades da educação básica presentes na Comunidade Quilombola da
Vila de Santo Isidoro, onde se desenvolve a pesquisa em curso:

140
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

No Ensino Médio:

Art. 19. As unidades escolares que ministram esta etapa da Educação


Básica na Educação Escolar Quilombola devem estruturar seus
projetos político-pedagógicos considerando as finalidades previstas
na Lei 9.394/96 visando:

(...) Inciso II. à preparação básica para o trabalho e a cidadania do


educando para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se
adaptar a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;

(...) Inciso IV. à compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos


dos processos produtivos, relacionando teoria com a prática.

Art. 20. O Ensino Médio na Educação Escolar Quilombola deverá


proporcionar aos estudantes:

Inciso I. participação em projetos de estudos e de trabalho e atividades


pedagógicas que visem o conhecimento das dimensões do trabalho,
da ciência, da tecnologia e da cultura próprios das comunidades
quilombolas, bem como da sociedade mais ampla.

Na Educação de Jovens e Adultos:

Art. 23. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) caracteriza-se como


uma modalidade com proposta pedagógica flexível, tendo finalidades
e funções específicas e tempo de duração definido, levando em
consideração os conhecimentos das experiências de vida dos jovens
e adultos, ligadas às vivências cotidianas individuais e coletivas, bem
como ao mundo do trabalho.

141
Complementa esse artigo de caracterização da EJA na modalidade
da Educação Escolar Quilombola uma referência à Educação Profissional que
é importante ser destacada:

Parágrafo 4. Na Educação Escolar Quilombola, as propostas educativas


de EJA, numa perspectiva de formação ampla, devem favorecer
o desenvolvimento de uma Educação Profissional que possibilite
aos jovens, adultos e idosos quilombolas atuar nas atividades
socioeconômicas e culturais de suas comunidades com vistas ao
fortalecimento do protagonismo quilombola e da sustentabilidade de
seus territórios.

O texto da Resolução 08/2012, como é possível perceber a partir do


conteúdo dos fragmentos citados, aponta para o vínculo entre trabalho e educação
visando ao fortalecimento das formas de vida nas comunidades quilombolas.
Essa relação se explicita no texto quando, ao tratar da elaboração do Projeto
Político Pedagógico na Educação Escolar Quilombola, a Resolução destaca que
esse Projeto “deverá estar intrinsecamente relacionado com a realidade histórica,
regional, política, sociocultural e econômica das comunidades quilombolas”
(Art. 32). Para tal, deverá considerar “os conhecimentos tradicionais, a oralidade,
a ancestralidade, a estética, as formas de trabalho, as tecnologias e a história
de cada comunidade quilombola” (Parágrafo 2º, Inciso II).
O caráter geral e abrangente do ordenamento jurídico objeto dessas
considerações apresenta-se como uma referência para a análise de situações
particulares que dizem respeito à dinâmica de comunidades quilombolas
historicamente situadas e datadas. As prerrogativas contidas na Resolução
devem ser, pois, confrontadas com as mais diversas configurações que adquire o
mundo do trabalho nas comunidades quilombolas, levando-se em consideração
o quadro de oportunidades ocupacionais apresentado aos segmentos que
compõem a população economicamente ativa dessas comunidades, com
destaque para a população jovem. Dessa forma, no próximo tópico, serão
apresentadas algumas considerações sobre a Comunidade Quilombola da
Vila de Santo Isidoro.

142
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Comunidade Quilombola da Vila de Santo


Isidoro: entre ausências e urgências

A realização do trabalho de campo da pesquisa foi precedida da fase


de levantamento de dados que indicaram aspectos da situação vivenciada
por comunidades quilombolas de Minas Gerais em relação à população,
abrangência e dispersão territorial, bem como à situação educacional
declarada por gestores públicos e apuradas pelo Censo Demográfico (IBGE)
e pelo Censo Escolar (INEP). De acordo com Miranda, a partir de dados
sistematizados em 2008 e atualizados em 2011,

No caso de Minas Gerais, constata-se a presença de 403


comunidades, das quais 145 se encontram certificadas, e apenas
uma alcançou a titularidade. Esse índice coloca o estado de Minas
Gerais em terceiro lugar nacional em relação ao número de
comunidades certificadas até 2011. O atendimento escolar em áreas
remanescentes de quilombos sinaliza um total de 140 escolas, entre
estaduais, municipais e privadas (Miranda, 2012, p. 375).

Ainda de acordo com Miranda (2012, p. 376), “a concentração


do atendimento escolar em áreas de comunidades remanescentes de
quilombos certificadas [em Minas Gerais] situa-se nos anos iniciais do
ensino fundamental”. Conforme as informações sistematizadas a partir da
consulta ao banco de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), havia, em 2010, 283 (duzentos e oitenta
e três) estudantes atendidos no Ensino Médio em áreas de comunidades
remanescentes de quilombos certificadas em Minas Gerais. A Escola
Estadual de Santo Isidoro contribui para a conformação desse quadro.
Situada no município de Berilo, localizado na Região do Médio
Jequitinhonha, a Comunidade Quilombola da Vila de Santo Isidoro
apresenta-se como um dos territórios de maior expressão histórico-cultural
da cidade. A Comunidade encontra-se certificada desde o ano de 2006 pela
Fundação Cultural Palmares. De acordo com dados do Censo Demográfico

143
de 2010, a cidade de Berilo tem uma população de 12.300 (doze mil e
trezentos) habitantes numa área de 587 km². Na década anterior, o Censo de
1991 havia contabilizado uma população de 17.745 (dezessete mil, setecentos
e quarenta e cinco) habitantes. A comparação dos dados apurados pelos
Censos revela que no intervalo de uma década o município de Berilo teve
sua população reduzida em aproximadamente 30% (trinta por cento)36.
De acordo com dados reunidos sobre comunidades quilombolas
em Minas Gerais pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
(Cedefes), “há aproximadamente 80 (oitenta) famílias residindo na
Comunidade Quilombola da Vila de Santo Isidoro, que possui escola de
ensino fundamental e médio, energia elétrica, telefone público e uma casa
de farinha37”. Além dessas informações, a partir do trabalho de campo da
pesquisa, pode-se perceber que o território quilombola em questão recebe
sinal de operadora de telefonia celular (Oi), além de quase totalidade de suas
residências receberem sinal de televisão via antena parabólica38.
Situada na região do Médio Jequitinhonha, a cidade de Berilo
enfrenta os desafios postos aos outros municípios que compõem a
região dadas as características climáticas, ocasionando baixos índices
pluviométricos durante o ano, e a concentração da propriedade fundiária,
repercutindo em oportunidades ocupacionais limitadas, principalmente

36 Cf. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=310650#. A página


do IBGE referente ao município de Berilo, Minas Gerais, disponibiliza informações sobre a
dinâmica econômica do município, destacando o peso das atividades do setor agropecuário
e de serviços.

37 Cf. http://www.cedefes.org.br/index.php?p=projetos_detalhe&id_pro=146. Informações


adicionais sobre essa comunidade podem ser acessadas nesse sítio. 

38 Para os propósitos dessa reflexão, é importante destacar que o sinal captado pelas antenas
parabólicas instaladas nas residências dá acesso às programações que veiculam conteúdos do
estado de São Paulo, de modo que as referências em relação a preferências dos jovens quanto
a clubes de futebol, por exemplo, sistematicamente fazem alusão a clubes paulistas.

144
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

para a população jovem. De acordo com o Plano Territorial de Desenvolvimento


Rural Sustentável do Território da Cidadania Médio Jequitinhonha39,

O Território é caracterizado pelo clima semiárido, que determina


a maioria das condicionantes climáticas, com predominância do
bioma caatinga e ocorrências de cerrado e mata atlântica. O Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) varia entre 0,595 e 0,689, sendo a
média de 0,651, sendo que a média de Minas Gerais é de 0,774. Com
índice de pobreza em torno de 46%, os municípios têm alto índice de
população rural e a agricultura familiar tem participação expressiva
na mão-de-obra rural, mas em contrapartida verifica-se alto índice
de concentração fundiária e forte migração da população rural (Apta,
2010, p. 12).

Na Vila de Santo Isidoro encontra-se presente uma das mais


importantes expressões culturais do município de Berilo: trata-se da Banda
Filarmônica da Comunidade Quilombola de Santo Isidoro, que promove
a formação musical de jovens da comunidade em estreita relação com a
escola estadual instalada no território. Tal comprometimento se deve ao fato
de a maioria dos integrantes da banda ser estudantes ou egressos da escola
quilombola. Durante a realização da primeira fase do trabalho de campo da
pesquisa, em julho de 2012, a Banda Filarmônica fez uma apresentação para a
Equipe de pesquisadores. Nessa oportunidade, indagada sobre o significado da
Banda Filarmônica para a escola, a diretora da escola assim se expressou:

39 Esse Plano foi realizado pelo Colegiado Territorial no período de setembro de 2009 a agosto
de 2010, viabilizado pelo Contrato de repasse (266.654-25/2008) entre a Articulação para
Transformações e Aprendizagens Apta (MG) e a Secretaria do Desenvolvimento Territorial do
Ministério do Desenvolvimento Agrário. O Plano do Médio Jequitinhonha é um dos quatro
Planos qualificados em Minas Gerais no ano de 2010, sendo os outros três o Noroeste de
Minas, Serra Geral e Vale do Mucuri.

145
Eu acho muito importante a presença da banda na comunidade
quilombola, sabe por quê? Porque até a organização, a disciplina, o
aprendizado, tudo isso faz parte desse trabalho realizado pela banda.
Tem a questão sentimental, a sensibilidade. A música, vocês sabem,
é tudo isso. Eu acho muito importante... é um ganho para nós da
escola a presença dessa banda. Eu me emociono quando vejo esses
meninos tocando porque todo mundo passou pelas minhas mãos
como aluno, como o Idelfonso40, o maestro. Eu me emocionei por
isso... (Diretora – julho de 2012)

Não obstante o papel desempenhado pela Banda Filarmônica da


Comunidade Quilombola de Santo Isidoro na preservação de uma tradição
cultural, que se atualiza de geração a geração na comunidade, na socialização
e incentivo à formação profissional dos jovens através da música, a quase
ausência de oportunidades ocupacionais na comunidade tem forçado a
migração sazonal da população masculina para áreas de cultivo de cana e
de café, nas regiões Sudeste e Centro Oeste do país. O fluxo migratório é
visto pelos mais jovens como única alternativa de sobrevivência, dadas as
condições precárias oferecidas para a reprodução da vida através do trabalho
na comunidade quilombola. Essa situação pode ser percebida a partir da fala
de um morador da comunidade:

Vocês estão falando sobre a questão dos recursos, questão financeira?


Se você vê a vontade que o pessoal tem de trabalhar, às vezes eles
querem ficar aqui mesmo, mas falta recurso. Aquele moço [fala
apontando para um senhor da Comunidade], ele está tentando

40 Idelfonso Alves dos Reis, regente da Banda Filarmônica, ocupa o cargo de Auxiliar de
Serviços Gerais na escola. Após a realização de suas atividades cotidianas no exercício
desse cargo, ele, então, dispõe de seu tempo livre para ministrar aulas teóricas de música
e orientar os integrantes da banda na execução de seus instrumentos. Além disso, com
formação autodidata na área de música, tornou-se responsável pela maioria dos arranjos
executados pela Banda.

146
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

montar um alambique, uma coisa maior, mas como é que ele tem
que fazer para juntar, ele tem que sair daqui, trabalhar lá fora pra
juntar um dinheirinho pra ver se consegue aumentar isso aí... se
eu ficar só naquilo ali, pra subsistência, não dá. Às vezes quer fazer
uma casa, uma coisa maior... não consegue (Liderança Quilombola
– julho de 2012).

Nas narrativas elaboradas por algum de nossos interlocutores em


relação ao problema da migração do segmento jovem da comunidade qui-
lombola, encontram-se também referências a transformações ocorridas nas
aspirações de consumo, que contrastam com o ideário das gerações passadas:

Quando eu era mais nova, se eu tivesse essa roupa pra vestir e a


comida para comer, estava bom! Hoje eles [os jovens] já têm outros
desejos. O sonho é ter uma moto; se o outro tem, eles também
querem ter. Eles têm esses anseios (...). Esses jovens ainda têm
essa dificuldade, porque pensam que nós estamos em outro tempo.
Estamos no tempo do consumismo. Então, mesmo que as famílias
já melhoraram de condições de vida, hoje não tem mais uma família
como a gente tinha antes. Mais ainda assim, é difícil para eles. Eles
pensam assim: “eu vou tirar cinco anos da minha vida para estudar?
O que é que eu vou fazer? O que é que eu vou vestir? Como eu
vou andar? Então eles, no meu ponto de vista, eles pensam nisso...
(Professora – julho de 2012)

Apesar de haver no momento atual um conjunto de ações na Co-


munidade Quilombola da Vila de Santo Isidoro visando a contribuir para
o combate à pobreza e à promoção de potencialidades locais de desenvol-
vimento41, a realidade da migração sazonal dos mais jovens apresenta para

41 Identifica-se como exemplo de ação em curso na Comunidade Quilombola o Programa


Brasil Sem Miséria, desenvolvido pelo Governo Federal. De acordo com Dedecca (2012, p.
114), “a iniciativa propõe fazer atendimento integral da população com renda per capita

147
a comunidade uma situação que desafia a construção de alternativas de
trabalho e sobrevivência dignas no território quilombola. A migração para
áreas de cultivo da cana é agenciada por uma série de intermediários das
usinas processadoras da cana-de-açúcar que, a partir de um perfil de tra-
balhadores previamente construído, encontra na comunidade quilombola
espaço fértil para o recrutamento de trabalhadores temporários.
De acordo com Novaes (2007, p. 169), “a expansão da agroindústria
canavieira está relacionada com as boas perspectivas do mercado
internacional do álcool, como alternativa de energia renovável e menos
poluidora que o petróleo”. Essa expansão, entretanto, tem contribuído para
aprofundar a dualidade do mercado de trabalho no setor, fazendo coexistir,
às vezes num mesmo empreendimento agrícola, dois sistemas de corte nos
canaviais: o sistema de corte manual, caracterizado pela intensificação do
trabalho manual, e o sistema mecanizado, que no quadro de modernização
tecnológica é caracterizado pelo uso de equipamentos nessa fase do ciclo de
produção. Ainda de acordo com o autor,

No sistema manual de corte (...) o tipo de contrato de trabalho é por


tempo determinado, contrato safrista. Nesse tipo de contrato, os
trabalhadores não recebem, por lei, o seguro desemprego no final do
contrato. No corte manual, os trabalhadores não estão subordinados e
dependentes do ritmo da máquina, não são apêndices da máquina. Para
a seleção dos trabalhadores no sistema de corte manual, priorizam-
se os critérios de habilidade, a destreza, a força e a resistência física

familiar de até R$ 70,00. (...) O programa amplia o escopo da política de combate à


pobreza, ao considerá-la como problema multideterminado. Isto é, somente será superada
se forem estabelecidas condições de acesso permanente a bens e serviços públicos e à atividade
produtiva, seja via mercado de trabalho seja como produtor ou trabalhador independente”.
O programa Brasil sem Miséria é uma iniciativa, portanto, que aborda a pobreza em uma
perspectiva multidimensional, associando o problema a diversas políticas sociais e exigindo
destas a articulação horizontal de programas e ações.

148
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

e o local de moradia distante do local de trabalho. A força física e a


destreza são critérios imprescindíveis para assegurar o aumento da
produtividade nesse sistema de corte que supõe a intensificação do
ritmo de trabalho. No sistema de corte manual não houve substituição
do instrumento de trabalho, o facão continua sendo o instrumento de
trabalho. As inovações se limitam a melhorias na lâmina e no cabo
(Novaes, 2007, p. 171).

Dadas as características das atividades desenvolvidas no


sistema de corte manual da cana, cumpre-nos indagar sobre que perfil
de trabalhador estaria sendo requisitado pelos empresários agrícolas para
realizar o corte manual da cana. Recorremos mais uma vez a Novaes para
descrever esse perfil de trabalhador:

Os trabalhadores que chegam do Nordeste possuem um perfil


condizente com o que se precisa hoje para o corte manual. Segundo eles
próprios, por terem sido, desde crianças, socializados no árduo e duro
trabalho da agricultura na sua região de origem, o trabalho no canavial
não os assusta. Além disso, segundo relato dos técnicos das usinas, eles
são preferidos pelos usineiros por serem mais dedicados ao trabalho e
gratos aos empregadores pela oportunidade do emprego, inexistentes
em suas regiões. A necessidade premente de ganhar dinheiro, para
assegurar a subsistência da família distante, tem funcionado como
um freio que os torna mais tolerantes com descumprimentos de
leis trabalhistas, com as injustiças e as distorções que ocorrem nas
medições feitas pelo fiscal de turma em sua produção diária no corte
da cana (Idem, p. 171).

As considerações feitas por Novaes acerca da origem geográfica


dos trabalhadores do corte manual da cana-de-açúcar, no contexto que
poderíamos apontar como de “modernização conservadora” do modelo de
desenvolvimento em curso, evidenciam as articulações presentes nos fluxos
do território que aproximam comunidades quilombolas – caracterizadas

149
pela ausência de estratégia endógenas de desenvolvimento – das condições
de trabalho que remontam ao passado colonial e escravista. A constatação
de que o desequilíbrio econômico entre as regiões do país apresenta-se
como um fator a impulsionar as migrações sazonais necessita ser melhor
qualificada para que se torne possível a indagação acerca das pretensões
manifestas pela Resolução da Educação Escolar Quilombola quando busca
articular trabalho e educação. No próximo tópico, a título de conclusão, serão
apresentadas algumas considerações sobre as perspectivas da Educação
Escolar Quilombola no contexto caracterizado pelo avanço das lutas
sociais em prol do reconhecimento do direito à diferença num quadro de
desequilíbrio regional.

Considerações finais

Ao assumir como ponto de partida da reflexão sistematizada nesse


artigo a relação entre trabalho e educação, com base no texto da Resolução que
define as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola
na educação básica, buscou-se uma aproximação entre o campo normativo
e uma configuração histórica particular a qual se destinam as prerrogativas
em questão. O texto da Resolução exibe um conjunto de referências que,
corroborando princípios consagrados em outros documentos, reafirma o
princípio educativo do trabalho, que também se incorpora à concepção da
educação escolar quilombola.
No entanto, as considerações feitas sobre a dinâmica do
mundo do trabalho na Comunidade Quilombola da Vila de Santo Isidoro
evidenciam que esse princípio, para que seja capaz de orientar ações em
prol do desenvolvimento sustentável do território quilombola, demanda ser
confrontado com os desafios postos à reprodução da vida nas comunidades
historicamente situadas.
Nesse sentido, evidências até o momento reiteradas a partir do
trabalho de campo da pesquisa em curso sobre educação escolar quilombola
em Minas Gerais, apontam que, frente a ausências ou insuficiências de
medidas visando ao desenvolvimento sustentável dessas regiões, percebe-se

150
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

uma tendência à desagregação das relações sociais que estruturam e


conferem identidade às comunidades que habitam territórios quilombolas.
A migração sazonal de jovens negros da comunidade quilombola estudada
para as regiões de cultivo de cana-de-açúcar, apresenta-se, no escopo da
pesquisa, como sintoma da divisão racial do trabalho numa sociedade que se
estruturou historicamente sobre os pilares do trabalho escravo. Além disso,
tal situação exibe os traços raciais da pobreza persistente no País, sobretudo
em regiões rurais. O enfrentamento desse quadro demanda um conjunto de
medidas que, de acordo com Dedecca (2012, p. 114) adotem uma “perspectiva
multidimensional da pobreza”, de modo a incorporar, como parte dessa
perspectiva, uma leitura crítica acerca do modelo de desenvolvimento
assentado nas formas de manifestação das desigualdades raciais.

151
Referências Bibliográficas

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cartografia étnica – territórios tradicionais. Brasília: Mapas Editora &
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152
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

DEDECCA, Cláudio Salvadori. Contribuições para a agenda de combate


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pobreza rural: desafios para as políticas públicas. Brasília: IICA, (Série
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SECAD, 2006, p. 141-163, p. 144.

153
TENSÕES, INTENÇÕES,
DESAFIOS E POSSIBILIDADES
NA FORMAÇÃO DE DOCENTES
DA EDUCAÇÃO BÁSICA DAS
COMUNIDADES REMANESCENTES
DE QUILOMBO EM MINAS GERAIS

Vanda Lúcia Praxedes / Professora Ensino Superior/Membro do


Programa Ações Afirmativas na UFMG

Sílvia Maria de Miranda / Graduada de Pedagogia FAE/UFMG. Bolsista do Projeto


Educação Escolar Quilombola FAE/UFMG e Membro Programa Ações Afirmativas na UFMG
Introdução
O debate sobre o reconhecimento das comunidades remanescentes
de quilombo não é recente na história brasileira. No entanto, podemos
sinalizar que essa discussão ganhou maior fôlego e visibilidade no contexto
de lutas pela redemocratização do país nos anos de 1980. O processo de
ruptura com um período de 20 anos de ditadura militar foi marcado, em
seus anos finais, pelos debates sobre democratização, participação popular,
cidadania e representação política na esfera pública. Contexto que trouxe à
cena sujeitos coletivos que insurgiam como sujeitos de direitos (e não de
carências), com destaque para os movimentos de trabalhadores, movimentos
de mulheres, movimentos negros, entre os quais se situa o quilombola.
É nesse cenário de lutas por direitos, por representação política, que as
comunidades remanescentes de quilombo acessaram algumas formas
de reconhecimento jurídico, cujo marco inicial foi a Constituição Federal

155
de 1988. A carta magna da Nação, no seu art. 2015, define a valorização
da cultura afro-brasileira; no art. 216, explicita os grupos formadores da
sociedade brasileira e define a proteção e o tombamento das reminiscências
históricas dos antigos quilombos; no art. 68 das Disposições Transitórias,
garante o direito da posse de terra aos remanescentes de quilombo.
Em síntese, pode-se dizer que os movimentos negros e quilombolas
configuram como partes de um mesmo contexto de lutas pela visibilidade
de suas demandas, inclusive jurídicas, por educação, reconhecimento,
redistribuição e representação, como uma das estratégias para a denúncia e
enfrentamento do racismo, da desigualdade vigente na sociedade brasileira,
a partir de então.
Nesse cenário é que em 2012 foram homologadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Resolução
CNE/ CEB Nº 8/2012), reiterando o reconhecimento desse grupo no
processo civilizatório nacional, estilhaçando um ideal de nação até então
vigente na sociedade brasileira.
Não obstante a lenta efetivação dos direitos sociais conquistados
e suas frequentes ameaças de perdas ou reduções, a avaliação do alcance
das lutas empreendidas pelo movimento negro não deve ser visto de
forma reducionista, restrita ao atendimento de demandas específicas
e reivindicações (MIRANDA,2011). É preciso levar em consideração os
discursos e as práticas, até certo ponto, desestabilizados. É nesse cenário
que se deve refletir sobre o reconhecimento de direitos das comunidades
remanescentes de quilombos e a implementação de políticas concernentes
a esses direitos.
Portanto, a implantação da modalidade de educação quilombola
insere-se, então, em um conjunto mais amplo de desestabilização de
estigmas que definiram, ao longo de nossa história, a inserção subalterna e
paradoxal da população negra na sociedade brasileira e no sistema escolar.

156
O processo de instituição da modalidade
educação escolar quilombola no Brasil

A partir das discussões da Conferência Nacional de Educação


ocorrida em 2010, e do I Seminário Nacional de Educação Quilombola,
com a decisiva participação da Confederação Nacional de Articulação das
Comunidades Quilombolas (CONAQ), a modalidade de Educação Escolar
Quilombola foi estabelecida no âmbito da educação básica por meio da
Resolução CNE Nº 4/2010 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para Educação Básica42. Nessa resolução a educação escolar
quilombola foi assim definida:

Art. 41 – a Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em


unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura,
requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-
cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro
docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional
comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira.
(BRASIL, 2010)

Com essa sinalização sobre uma educação específica e pedagogia


própria evidenciava-se um aspecto crucial para a implementação da
modalidade: a formação específica do quadro docente. A partir dai, o
Conselho Nacional de Educação assumiu a tarefa de regulamentar a
educação escolar quilombola como modalidade específica.
Em julho de 2012, foi aprovado o Parecer CNE/CEB N° 16/2012
referente às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola43. Vale ressaltar que a elaboração das Diretrizes Curriculares

42 A Resolução CNE Nº 4/ 2010 define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para


a Educação Básica.

43 Em 20 de novembro de 2012 foram homologadas na Resolução n° 8 de 2012 as definições


desse Parecer.  
Nacionais para educação Escolar Quilombola (Resolução Nº 08/ 2012),
foi resultado de um amplo processo de consulta à representação das
comunidades quilombolas, por meio de audiências públicas promovidas
pelo Conselho Nacional de Educação, Ministério da Educação e apoio da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Foram
realizadas 03 audiências, sendo uma em Itapecuru Mirim (Maranhão),
outra em São Francisco do Conde (Bahia) e a terceira em Brasília.
De acordo com o Art.53 da Resolução n° 08/2012, a formação
continuada de professores que atuam na Educação Escolar Quilombola deverá:

I - ser assegurada pelos sistemas de ensino e suas instituições


formadoras e compreendida como componente primordial da
profissionalização docente e estratégia de continuidade do processo
formativo, articulada à realidade das comunidades quilombolas e à
formação inicial dos seus professores;
II - ser realizada por meio de cursos presenciais ou a distância,
por meio de atividades formativas e cursos de atualização,
aperfeiçoamento, especialização, bem como programas de mestrado
ou doutorado;
III - realizar cursos e atividades formativas criadas e desenvolvidas
pelas instituições públicas de educação, cultura e pesquisa, em
consonância com os projetos das escolas e dos sistemas de ensino;
IV - ter atendidas as necessidades de formação continuada dos
professores pelos sistemas de ensino, pelos seus órgãos próprios
e instituições formadoras de pesquisa e cultura, em regime de
colaboração (BRASIL, 2012, p.17).

Com base nesse arcabouço jurídico-educacional, ficou evidenciado


que a Educação Escolar Quilombola constitui uma política educacional que
exige interface com outras políticas – como políticas de desenvolvimento
social e combate à fome, transporte, acesso à terra, direitos humanos,
cultura e patrimônio cultural, entre outras. E sua efetiva implementação
requer investimentos na formação continuada de professores/as que atuam

158
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

em escolas localizadas em territórios quilombolas e aquelas que atendem


alunos oriundos de quilombos e na formação inicial de professores. Para
tanto é necessário esforços coletivos que envolvam diversos atores sociais
em razão das singularidades e particulares que abarcam o atendimento
educacional destinado a essa população e da complexidade do tema dos
quilombos no Brasil.

Contexto das Comunidades Quilombolas


e da educação escolar quilombola
em Minas Gerais
Conforme dados da Fundação Cultural Palmares, o número de
comunidades quilombolas certificados em Minas Gerais até maio de 2016
consiste em 229 (duzentas e vinte e nove), com maior concentração dessas
comunidades nas regiões Norte, seguida pelo Vale do Jequitinhonha. A
região Sul do estado de Minas Gerais é a que apresenta a menor presença
de comunidades quilombolas.
O Censo Escolar de 2014 aponta a existência de 191 escolas em Minas
Gerais localizadas em comunidades remanescentes de quilombos, sendo 23
escolas estaduais, 165 municipais e 3 instituições privadas/comunitárias. Os
dados possibilitam a reflexão sobre a quantidade de escolas quilombolas em
comunidades de remanescentes de quilombos. Como podemos verificar há
uma presença maior de escolas municipais do que estaduais. Isso pode ser
explicado pelo fato de que a maior parte das escolas localizadas em áreas
remanescentes de quilombos possue apenas o ensino fundamental, com
concentração nos anos iniciais. De todo modo, esse quadro demonstra a
necessidade e urgência de uma ação mais incisiva por parte dos municípios,
tanto no que se refere ao atendimento dessa população, quanto em relação
às propostas de formação continuada de professores.
Note-se ainda a disparidade entre o número de comunidades
quilombolas certificados no município e o número de escolas declaradas
em áreas de remanescentes de quilombo. São casos, como por exemplo,
Januária, onde se localizam 25 comunidades quilombolas certificadas e

159
apenas 14 escolas assim declaradas e Virgem da Lapa, com 11 comunidades
certificadas e apenas 03 declaradas. Há ainda casos, como em Diamantina
e Monte Azul, em que ocorre o inverso. Em Diamantina e Monte Azul
registram-se 03 comunidades quilombolas certificadas e 04 escolas
registradas como situadas em áreas de remanescentes de quilombos. Essa
disparidade é um dado relevante que merece ser investigado com cuidado e
um indicador importante que aponta para a necessidade de investimentos
do poder público, tanto local, quanto federal. Ressaltamos que, no caso
da formação docente, o público alvo constitui-se das escolas situadas em
comunidades quilombolas certificadas e aquelas que atendam estudantes
oriundos das comunidades certificadas.
Outro elemento importante a ser observado nesses quadros
relaciona-se à dispersão das comunidades quilombolas pelo estado de Minas
Gerais. Como já foi observado, há uma concentração no Norte de Minas,
seguido do Vale do Jequitinhonha, Noroeste Mineiro e Vale do Rio Doce.
Segundo (MIRANDA, 2012) em suas pesquisas, estudos e análises
sobre a Educação Escolar Quilombola em Minas Gerais está cada vez mais
evidente que a educação escolar destinada à população remanescente de
quilombos, de modo geral, e em Minas Gerais, em particular, encontra-se,
ainda, em situação incipiente e adversa, marcada pela ine¬xistência ou
poucas escolas localizadas nas comunidades ou pelo funcionamento precário
das escolas existentes.

Formação de Docentes da Educação


Básica das Comunidades Remanescentes de
Quilombo em Minas Gerais
Os estudos e as pesquisas realizadas no âmbito do Programa
Ações Afirmativas na UFMG e do Observatório da Educação Indígena
e Quilombola da UFMG (OBEDUC) tem permitido reunir informações
acerca de comunidades quilombolas inscritas no Vale do Jequitinhonha e
no Norte do estado de Minas Gerais. Com base nesses alentados trabalhos
foram mapeados alguns municípios em duas regiões/polos, quais sejam,

160
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Norte e Jequitinhonha, os quais apresentaram formalmente a demanda por


formação continuada de professores.
Ficou constatado que a ausência da discussão da temática
étnico-racial e da problematização sobre os efeitos do racismo na
sociedade brasileira, além do desconhecimento sobre comunidades
quilombolas como conteúdo dos cursos para formação inicial para a
docência (licenciaturas) termina por refletir diretamente na prática
docente, evidenciado na dificuldade das/os educadoras/es para refletirem
e trabalharem com essas temáticas.
Nesse sentido, tanto gestores municipais, quanto os professores da
rede pública foram enfáticos ao apontarem a necessidade da oferta por uma
formação continuada que contemplasse o trabalho com a Lei nº 10.639/03
e com as Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Quilombola.
Diante dessa demanda optamos pela oferta do primeiro curso de
formação continuada para professores da educação básica das Comunidades
Remanescentes de Quilombo44, de modo a atender a demanda dos municípios,
já mapeados, do polo Vale do Jequitinhonha. Nesse polo procuramos contemplar
professores dos municípios: Berilo, Chapada do Norte, Minas Novas, Francisco
Badaró, Virgem da Lapa, Araçuaí e Turmalina. Nesse polo, o local de realização
do curso foi Berilo, conforme acordado com secretarias municipais e levando em
consideração as possibilidades de deslocamento manifestadas por profissionais da
educação da região. No polo Norte de Minas buscamos contemplar inicialmente
professores dos municípios de: Januária, Janaúba, Manga, São João da Ponte,
Monte Azul, Varzelândia e São Francisco. Também considerando as possibilidades
de deslocamento manifestadas por profissionais da educação, o curso ocorreu
em Januária. Os cursos foram realizados no período de setembro de 2014 a
maio de 2015, intercalados com atividades formativas que foram realizadas
fora das cidades-polo, como Belo Horizonte e Diamantina.
Essa formação teve como propósito inicial a capacitação de
docentes da educação básica para atuarem nas escolas situadas nas

44 Esse Curso foi realizado com recursos do Ministério da Educação – MEC/SECADI no


âmbito do Programa Educação Quilombola em 2014.

161
comunidades quilombolas ou que atendessem estudantes oriundos dessas
comunidades. O curso teve como elementos norteadores a Lei 10.639/03, as
Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Quilombola e os resultados
obtidos a partir da pesquisa “Educação Quilombola em Minas Gerais: entre
ausências e emergências45”. Uma vez que nessa pesquisa foram identificados,
além do quadro de precariedade dessas escolas em Minas Gerais, o
distanciamento entre os conteúdos escolares e os saberes, as referências
históricas e culturais das comunidades quilombolas e o tratamento ainda
marcado por preconceitos e estereótipos destinado aos estudantes e seus
familiares, deixou evidente a urgência dessa formação de professores.
A partir dessas evidências o objetivo geral do Curso assentou-se
na proposta de instaurar um processo de formação de profissionais da
educação que atuam em escolas quilombolas ou em escolas que atendem
ao público dessas comunidades para o conhecimento e/ou a compreensão
sobre o arcabouço da Educação Escolar Quilombola, amparado pelas
Diretrizes Curriculares, levando em consideração os conhecimentos e
saberes tradicionais formalizados nas comunidades quilombolas e os
conhecimentos científicos; os elementos da cultura manifestos nas práticas
tradicionais, nas formas de oralidade nos eventos de memória; os aportes
do etnodesenvolvimento e das lutas pela terra; e as dinâmicas do território,
entendido como base do trabalho, das trocas materiais, simbólicas e
espirituais da identidade.

45 A pesquisa “Educação Escolar Quilombola em Minas Gerais: entre ausências e


emergências”, foi realizada no período entre 2011/2013, sob a coordenação da Profa. Dra.
Shirley Miranda (UFMG), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e teve por objetivo verificar a dinâmica de
implementação da modalidade de educação quilombola considerando experiências em
curso e situações. De acordo com a autora o “título da pesquisa faz referência à teorização
de Santos (2008), que propõe uma sociologia das ausências capaz de identificar lógicas ou
modos de produção da não-existência, ao lado de uma sociologia das emergências, que visa
‘analisar, numa dada prática, experiência ou forma de saber o que nela existe apenas como
tendência ou possibilidade futura’” (Santos, 2008, p. 120)”.

162
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Em consonância com o objetivo geral, o curso pretendeu


discutir os elementos e dimensões que caracterizam uma comunidade
quilombola do ponto de vista do reconhecimento constitucional que as
mesmas alcançaram, compartilhar experiências exitosas e discutir práticas
pedagógicas com enfoque no território, história, memória e identidades das
comunidades quilombolas, abrangendo nessas dimensões a questão étnico-
racial, uma questão candente na sociedade brasileira.
A partir desse objetivo geral foram estabelecidos os seguintes
objetivos específicos:

• Orientar a construção de planos de ação pedagógica;

• Potencializar mecanismos de maior integração entre a escola, os


movimentos sociais e comunidades quilombolas na construção da
proposta da educação escolar quilombola;

• Oportunizar a construção de planos de ação pedagógica que con-


siderem o diálogo entre os conhecimentos tradicionais quilombolas
e conhecimentos escolares; a territorialidade, a cultura e a memória
quilombola;

• Construir e refletir sobre práticas pedagógicas que valorizem a


identidade étnico-racial e as comunidades quilombolas na estrutura
social do país;

• Possibilitar a análise, organização e circulação de materiais didáti-


cos específicos para a educação escolar quilombola;

• Reconhecer portadores de memória utilizados nas comunidades


quilombolas e inseri-los nas discussões sobre patrimônio material e
imaterial, dentre outros.
Considerando os desconhecimentos e invisibilidades ainda per-
sistentes na abordagem dos/as gestores/as em relação às comunidades

163
quilombolas e a importância de que esse público acesse uma formação
mais precisa e consistente para lidar com a temática, foram pensadas algu-
mas estratégias que envolvessem também os/as gestores com as questões
de viabilização e realização do curso, como por exemplo, identificação de
escolas; de professores, transporte dos cursistas para cidades-polo, apoio
logístico, dentre outras.
No que se refere ao desenho e estratégias metodológicas do curso,
foram propostos, inicialmente, como componentes curriculares: elaboração
e desenvolvimento de planos de ação pedagógica; incursões de pesquisa
a museus e outros espaços de memória e a territórios quilombolas e as
disciplinas: Políticas Sociais e Direitos Quilombolas; Práticas Pedagógicas
para a Educação Escolar Quilombola; Cultura, Memória e espaços Formativos;
Oralidade, Conhecimentos Quilombolas - contribuições para a Sociedade e
Território e Identidade Quilombola, distribuídas em 210 horas de curso.
No entanto, no processo de formação com a primeira turma, em
uma avaliação das primeiras oficinas, ficou evidenciado que deveríamos
fazer uma inflexão do ponto de vista metodológico/pedagógico e prover
a alteração no traçado metodológico do Curso, qual seja, transformar as
disciplinas em eixos norteadores com as questões de fundo que foram
emergindo a partir das narrativas dos sujeitos. Desse modo, as disciplinas
descritas passaram a compor os eixos norteadores: Memória, identidades,
território, cultura, oralidade e direitos.
Trabalhar esses eixos na formação dos professores exigiu, tanto
dos formadores quanto dos cursistas, um esforço reflexivo e uma atitude
mobilizadora, tanto do ponto de vista pedagógico quanto epistemológico,
amparados teoricamente pelo texto das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Escolar Quilombola.
O caráter inovador da experiência e do método foi criar dinâmicas
que tinham como pressuposto básico privilegiar a escuta, as experiências e
produção de sentido e significado diante do próprio conhecimento e saberes
acumulados, seja pelos cursistas e lideranças quilombolas, seja pela equipe
de formadores. Foram criadas condições e espaços de aprendizados, de modo
a conseguir efetivar a proposta pedagógica de potencializar o diálogo entre

164
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

os conhecimentos tradicionais formalizados nas comunidades quilombolas


e os conhecimentos científicos produzidos na Universidade.
Segundo uma das formadoras do Curso, “um dos principais
desafios que norteou a realização do trabalho consistiu em articular o
conhecimento acadêmico e o saber prático”.
Trabalhar com eixos norteadores tais como território, memória,
cultura, oralidade, articulando-os às experiências vividas e às tensões
produzidas no cotidiano, dentro e fora do espaço escolar, a partir das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, possibilitou
trazer à tona várias dimensões da cultura quilombola que deveriam estar
presentes nos currículos da Educação Básica e que precisam urgentemente
circular no espaço escolar. Segundo Nunes (2006:144), dentre os principais
aspectos dessa “cultura quilombola estão a ancestralidade, o território e a
oralidade”. E mais, pensando a realidade das populações quilombolas no
Brasil contemporâneo podemos observar que “[...] os vínculos entre educar e
formar são ancestrais, não são atributos exclusivos da escola; ancestralidade
é tudo o que antecede ao que somos, por isso ela nos forma [...]”.
Um dos pontos de tensionamento observado diz respeito à
construção da identidade quilombola no cotidiano. Segundo a narrativa de
algumas professoras/cursistas, se para algumas pessoas da comunidade a
discussão ou a construção identitária começa a ocorrer a partir do momento
que se instaura o processo de reconhecimento da comunidade, em outros
casos, principalmente entre a população mais jovem, a questão identitária
se torna um campo minado, cheio de tensão, pois, de modo recorrente,
esses jovens são tratados pelos colegas de classe de forma pejorativa, numa
associação perversa entre descendentes de escravizados e incapacidade
intelectual. Observamos que opera no senso comum um imaginário ainda
carregado de estereótipos negativos em relação aos povos de comunidades
remanescentes de quilombo e com a população negra de modo geral.
No que se refere à noção de território, na avaliação de nossas
formadoras, alguns dos resultados alcançados foram traduzidos pelos mapas
mentais elaborados pelos cursistas. Em sua maioria “continham um alto grau
de detalhamento dos espaços formativos, dos lugares de memória, que até

165
então não haviam sido identificados como tal. Espaços como o cruzeiro, as
mangueiras centenárias, a capela, a lagoa, a farinheira, a escola, as casas, etc.,
foram reconhecidos como sendo importantes para a construção e manutenção
de uma identidade quilombola ancorada, agora, sob um território”.
O trabalho com mapas mentais, segundo nossas formadoras,
revelou-se eficaz para trabalhar a noção de território, uma vez que foi identificado
que, para a maior parte dos cursistas, o termo território se apresentava de
maneira ainda bastante incipiente, tanto em suas práticas pedagógicas quanto
em sua potencialidade no contexto quilombola. Diante disso, foram instigadas
a construir estratégias de abordagem metodológica de maneira articulada com
os lugares de memória, de espaço formativo, no qual estavam inseridos.
Nesse contexto de aprendizagens mútuas, constituiu um desafio a
elaboração de estratégias de avaliação de aprendizagem que pudesse traduzir
e evidenciar as trocas de saberes, reflexões e conhecimentos proporcionados
pelo curso, conjugado com a realidade de cada comunidade e da escola. A
partir de discussões em equipe foi pensada a construção de um Plano de Ação
pelos cursistas, que pudesse ser implementado em suas respectivas escolas, a
ser apresentado no encerramento do Curso. Esse Plano de Ação deveria, entre
outras questões, levar em consideração o contexto, a realidade social, história
de cada comunidade onde a escola estava inserida.
Segundo Cláudia Elizabeth e Evely Aquino, formadoras encar-regadas
de mediar e dar suporte para a confecção dos planos de ação, uma questão que
merece destaque refere-se às contribuições do curso para o desenvolvimento de
uma “atitude indagativa” dos cursistas, uma atitude que se revelou relevante no
momento de elaboração dos planos de ação. Para além da questão da avaliação
da aprendizagem, o plano de ação, também, foi pensado como estratégia de
continuidade de estudos, da organização das atividades e práticas pedagógicas
dos docentes nas escolas onde atuam, na perspectiva de que contribuam
para implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Quilombola e da Lei 10.639/03, uma vez que a duração do curso, modalidade
Aperfeiçoamento, não permite o aprofundamento de todas as questões que
os cursistas/professores carregam consigo.

166
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Os planos de ação foram produzidos por todos os professores,


gestores e lideranças quilombolas que participaram do curso. Nesse
aspecto, as formadoras responsáveis pela orientação da confecção dos
planos observaram que todos “trouxeram como traço marcante o interesse
pela discussão da memória e identidade. Outro traço destacado foi o caráter
coletivo dessa produção, visto que os planos envolviam mais de um sujeito
e comunidade”.

À guiza de Considerações Finais

As pesquisas e experiência acumulada pelos pesquisadores do


Observatório da Educação Indígena e Quilombola da UFMG (OBEDUC) e
o próprio processo de execução do Curso de Aperfeiçoamento em Educação
Quilombola evidenciou o que já fora atestado por (MIRANDA, 2012), que a
Educação Escolar em Minas Gerais encontra-se em situação ainda adversa,
marcada pela ine¬xistência de escolas localizadas nas comunidades ou pelo
funcionamento precário das escolas existentes, quadro que somente de
2015 em diante começa a se modificar, ainda que lentamente. Um alento, se
levarmos em conta o quadro anterior. Além disso, as pesquisas evidenciam
uma perversa realidade, que é a incidência sobre essa população dos altos
índices de descontinuidade de estudos, abandono da escola e analfabetismo.
Observamos ainda que o descaso ou desconhecimento sobre
comunidades quilombolas, dificultam a implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, bem como da
Lei nº 10.639/03 nos sistemas de ensino.
Estudos e pesquisas apontam para experiências pedagógicas que,
de alguma forma, objetivam trabalhar essa temática. Há incipiência, e esta
pode ser ocasionada por dois fatores: ausência da discussão na formação
inicial e a defasagem na formação continuada desses professores.
Nesse aspecto constatamos que há desafios a serem enfrentados
no que se refere à formação docente e à prática pedagógica na escola e em
sala de aula, como por exemplo, as dificuldades dos docentes em lidarem
com um repertório que dê conta de tratar das questões que envolvem a

167
discussão sobre territorialidade, inclusive do ponto de vista simbólico; de
acessar as novas produções historiográficas do campo e em lidarem com
aspectos da cultura e identidade quilombola.
Durante a realização do curso e no diálogo permanente com os
docentes e lideranças quilombolas participantes, constatamos que a ausência
dessas reflexões nos cursos para formação inicial da docência (licenciaturas)
reitera as dificuldades das/os professoras/es para refletirem e trabalharem
com essa temática no cotidiano escolar.
Detectamos, por meio de pesquisas, levantamento, consulta de dados
e mesmo durante o período da formação docente, que vários municípios
não declaram a existência de unidades escolares situadas em comunidades
remanescentes de quilombos.46 Isso implica que a verba diferenciada para
a manutenção dessas escolas e atendimento digno a esses estudantes não é
acessada. Houve casos de municípios que perderam a chance de acessar recurso
federal para reformar ou construir escolas por ausência dessa declaração.
Nesse sentido ainda há outra questão a ser considerada, que é
o cadastramento das escolas quilombolas no censo escolar para acesso a
programas e recursos específicos, sobretudo aqueles destinados para a ali-
mentação escolar, e que depende de uma ação atenta e eficaz dos gestores
educacionais, o que via de regra não ocorre. Foi identificada, também, uma
série de processos, ainda ignorados por gestores de educação, tais como a
garantia de prioridade de atuação de pessoas das próprias comunidades nos
cargos disponíveis nas escolas – reservadas as exigências contratuais. Tem sido
constante a desconsideração da Lei 12. 960, que altera a LDBEN e determina
critérios que condicionam o fechamento de escolas do campo, indígenas e
quilombolas à manifestação dos Conselhos de Educação e das comunidades.
Há resistências e dificuldades de alguns profissionais, especial-
mente gestores, que têm de reconhecer a importância das comunidades e a
potencialidade de seus conhecimentos e saberes.

46 A relação entre comunidades certificadas e escolas declaradas destacadas nos quadros 01


e 02 respectivamente, podem ser evidencias dessa realidade em muitos municípios mineiros.

168
Educação e relações étnico-raciais: desafios, limites e possibilidades

Contribui para essa situação, a persistência do silenciamento e/ou a


reprodução de estereótipos negativos sobre essas comunidades em materiais
didáticos, que não contemplam sequer a existência de quilombos urbanos.
As experiências vividas no Curso Formação evidenciaram a
urgência de ações mais concretas e eficazes no sentido de buscar eliminar
os efeitos nocivos da circulação de estereótipos negativos, informações
parciais e conceitos equivocados, comprometedores de uma formação que
valorize os grupos sociais formadores da identidade nacional.
Portanto, é preciso insistir que a educação escolar quilombola exige
a recomposição das lógicas que organizam a instituição escolar, tanto do
ponto de vista do reconhecimento e difusão do conhecimento, quanto no
que concerne à sua função social. Desse modo, a formação continuada de
professores/as e dirigentes precisa ser impulsionada e redimensionada. O
campo da educação escolar quilombola em Minas Gerais é caminho que está
começando a ser trilhado e pavimentado há pouco tempo. Há muito por fazer.

169
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Este livro foi elaborado no âmbito de projeto da Editora UEMG, publicado no edital nº
002/2017, no Laboratório de Design Gráfico da Escola de Design da UEMG.

O texto foi composto em Scala. A capa, aberturas de capítulo e ficha técnica foram compostas
em Lato e Adam.CG Pro.

A capa foi impressa em papel couchê fosco 300 g/m². O miolo foi impresso em papel offset
120 g/m². Sua impressão foi feita na Gráfica CS, em Presidente Prudente, SP, no ano de 2017.
Tiragem de 300 cópias.

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