Diversidade Étnico Cultural Livro

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ROMILDA MOTTA

SILVIA QUADROS
ORGS.

POR UMA EDUCAÇÃO


INCLUSIVA E CIDADÃ
Centro Universitário Adventista de São Paulo
Fundado em 1915 — www.unasp.edu.br

Missão: Educar no contexto dos valores bíblicos para um viver pleno e para a
excelência no serviço a Deus e à humanidade.

Visão: Ser uma instituição educacional reconhecida pela excelência nos serviços
prestados, pelos seus elevados padrões éticos e pela qualidade pessoal e
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Conselho Editorial: José Paulo Martini, Afonso Cardoso, Elizeu de Sousa, Francisca Costa, Adolfo Suárez,
Emilson dos Reis, Rodrigo Follis, Ozéas C. Moura, Betania Lopes, Martin Kuhn

A Unaspress está sediada no Unasp, campus Engenheiro Coelho, SP.


1a Edição 2017

Imprensa Universitária Adventista


Diversidade étnico-cultural: por uma educação
inclusiva e cidadã
Imprensa Universitária Adventista
1ª edição – 2017
Caixa Postal 11 — Unasp e-book
Engenheiro Coelho-SP 13.165–000
(19) 3858–9055

Editoração: Rodrigo Follis, Felipe Carmo


Revisão: Mauren Fernandes
Normatização: Giulia Pradela
Programação visual: Fábio Roberto
Ilustração da capa: Eduardo Kobra (© 2017, todos
www.unaspstore.com.br os direitos reservados)

Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Diversidade étnico-racial : discutindo conceitos, tecendo reflexões e possibilida-


des para uma educação inclusiva e cidadã / Romilda Costa Motta , Silvia Cristina
de Oliveira Quadros, (organizadoras). -- Engenheiro Coelho, SP : Unaspress - Im-
prensa Universitária Adventista, 2017.

ISBN: 978-85-8463-084-4
Praticando uma engenharia mais segura : ferramentas de gestão em segurança do trabalho / organi-
zadores Mário Barraza, Francisca Costa, Vandeni Kunz. -- 1. ed. -- Engenheiro Coelho, SP : Unaspress -
1. Educação
Imprensa inclusiva
Universitária 2. Política
Adventista, 2016. educacional 3. Relações étnico-raciais 4. Socio-
logia educacional I. Motta, Romilda Costa. II. Quadros, Silvia Cristina de Oliveira.

ISBN: 978-85-8463-043-1
17-05074 CDD-306.430981
1. Engenharia civil 2. Segurança do trabalho I. Barraza, Mário. II. Costa, Francisca. III. Kunz, Vandeni.
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil : Relações étnico-raciais : Sociologia
16-04123 educacional 306.430981 CDD-624
042033 - 2017

Editora associada:

Todos os direitos reservados para a Unaspress - Imprensa Universitária Adventista.


Proibida a reprodução por quaisquer meios, sem prévia autorização escrita da editora,
salvo em breves citações, com indicação da fonte.
COMISSÃO EDITORIAL

Dr. Afonso Ligório Cardoso


Centro Universitário Adventista de São Paulo
Pró-Reitor de Graduação

Dr. Eli Rocha Prates


Faculdade Adventista de Hortolândia - FAH-UNASP/HT
Diretor de pós-graduação, pesquisa e extensão.

Dr. João Batista de Jesus Félix


Universidade Federal do Tocantins
Tesoureiro Geral do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares
da África e dos Afro-Brasileiros NEAF/UFT.

Dr. Ubirajara de Farias Prestes Filho


Câmara Municipal de São Paulo
Supervisor do Arquivo Geral e Consultor Técnico Legislativo (História)
Sumário

11 Prefácio

15 Introdução

23 Repensando conceitos para


uma educação étnica
Silvia Cristina de Oliveira Quadros

47 Políticas afirmativas para a


educação das relações étnico-raciais:
definições, reflexões e desafios
Romilda Costa Motta

77 Do nacional ao diaspórico: transformações nas


identidades negras brasileiras no século 20
Flavio Thales Ribeiro Francisco

103 História da África hoje: ética e ciência


Muryatan S. Barbosa
121 A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil
Germana Ponce de Leon Ramírez

139 As culturas indígenas na sala de aula: tecendo


redes para desatar preconceitos
Daisy Fragoso

165 Posfácio
Apresentação dos Autores

Silvia Cristina de Oliveira Quadros


Pós-doutora em Educação pela FE/USP. Doutora em Letras pela FFLCH/
USP. Pesquisadora em Semiótica, Sociossemiótica e integrante do Núcleo
de Estudos da Diversidade Étnica (Nede - Unasp). Diretora de graduação
do Centro Universitário Adventista de São Paulo – Unasp-SP.
E-mail: [email protected]

Romilda Costa Motta


Doutora em História Social pela USP. Mestre em História Social pela USP.
Membro do Laboratório de Estudos de História das Américas – USP;
Professora no Centro Universitário Adventista de São Paulo; integrante
do Núcleo de Estudos da Diversidade Étnica (Nede - Unasp).
E-mail: [email protected]

Flavio Thales Ribeiro Francisco


Professor Adjunto do Bacharelado em Ciências Humanas e do Bacharela-
do em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (CECS-
-UFABC). Doutor (2014) pelo Programa de História Social da Universida-
de de São Paulo. Possui mestrado (2010) e graduação (2006) em História
pela mesma instituição. Tem experiência na área de História, com ênfase
em História da América, atuando principalmente nos seguintes temas:
História dos Estados Unidos, Identidades, manifestações político-culturais
transnacionais, Diáspora africana, Imprensa. É membro do LEHA (Labo-
ratório de Estudos de História das Américas) e integrante do Grupo de
Estudos de História dos Estados Unidos e Relações Interamericanas.
E-mail: [email protected]
Muryatan Santana Barbosa
Professor Adjunto do Bacharelado em Ciências Humanas e do Bacharela-
do em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (CECS-
-UFABC). Doutor em História Social – História da África pela FFLCH –
USP, mestre em Sociologia. Foi pesquisador visitante na Universidade de
Harvard e consultor da UNESCO-Brasil para o programa Brasil-África.
Pesquisador nas temáticas: História política da África contemporânea, do
terceiro Mundo e as chamadas Teorias do Sul – Pan-africanismo.
E-mail: [email protected]

Germana Ponce de Leon Ramírez


Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina,
mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pes-
quisadora e docente no Unasp-Engenheiro Coelho, atuando, principal-
mente no campo do conhecimento da geografia humana, com enfoque
na diversidade étnica e cultural brasileira. Coordenadora do Núcleo de
Estudos da Diversidade Étnica (Nede - Unasp).
E-mail: [email protected]

Daisy Fragoso
Mestra em Artes (com linha de pesquisa em Etnomusicologia) pela ECA/
USP e educadora musical formada em Licenciatura em Música também
na Universidade de São Paulo. É professora substituta no Departamen-
to de Artes e Comunicação da UFSCar. Trabalha com duas linhas de
pesquisa: as práticas musicais em escolas de pedagogias inovadoras, e as
músicas e brincadeiras dos Guarani Mbya.
E-mail: [email protected]
Prefácio

Antes de tudo, quero expressar meu sentimento de satisfação e


honra pelo convite para fazer a apresentação desta obra reconhecendo
que é tarefa desafiadora qualquer tentativa de buscar compreender e
de descrever algo sobre as complexas relações que se manifestam no
seio da sociedade humana. A despeito dos esforços empreendidos com
o especial propósito de aprofundar a compreensão dos elementos que
subjazem às evidentes contradições comportamentais, em particular,
aqueles que evidenciam discriminação, segregação, rotulação, alija-
mento e hostilidade, estamos longe vencer essa luta e, portanto, toda
tentativa de contribuir com este propósito é bem-vinda.
O estado brasileiro desenvolve ações no sentido de reparar essas
diferenças, quer criando políticas públicas, quer estimulando a so-
ciedade a considerar, nos seus múltiplos espaços e campos de atuação,
a necessidade da adoção de atitudes que, somadas aos esforços do
próprio Estado, revertam o quadro de tensão gerado pelo ódio, pre-
conceitos e, muitas vezes, ignorância.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

A construção de convivências harmônicas e pacíficas entre to-


dos demanda mais do que políticas, movimentos organizados ou leis.
A consciência de reconhecimento da existência da realidade da
diversidade humana e de que cada singularidade nesta ampla diver-
sidade deve ser objeto de respeito, consideração e valorização resulta
de esforços, objetividade e propósito e são o ponto de partida para o
seu enfrentamento
A intolerância exerce a sua tirania e crueldade de forma impla-
cável. Ela ignora quase que por completo que, por detrás das cortinas
do preconceito, há almas feridas pela dor da rejeição e, por extensão,
da exclusão. Uma educação que se apresente com a perspectiva de
refundar, na mente e no coração de cada um, os sentidos identitário
e igualitário, que devem caracterizar o entendimento de todo cida-
12 dão sobre si mesmo e sobre o outro, parece ser ainda o método mais
eficiente para derreter as geladas barreiras do preconceito e do ódio.
À universidade cabe o dever de examinar as mais diversas facetas
que compõem esta complexa teia de relações, buscando compreender seus
múltiplos contextos e propondo alternativas e caminhos, a partir de seus
próprios valores, para a superação de divergências, a reorientação de polí-
ticas, e, sobretudo, vociferando os clamores dos que não conquistaram ou
que perderem seus espaços reivindicatórios para se fazerem ouvir.
O Unasp explicita seu posicionamento de combater a toda e
qualquer forma de discriminação em sua Política de Responsabi-
lidade Social. Além de debater estes temas em evento internos, ao
introduzi-los nos currículos, também estimula à reflexão a própria
academia, desafiando-a a produzir trabalhos acadêmicos no esforço
Prefácio

de marcar sua clara posição colaborativa no processo de construção


de uma sociedade orientada pelos princípios do respeito e de uma
convivência harmônica e saudável.
A presente obra, fruto de iniciativas de docentes da instituição,
tem o propósito de contribuir com o fortalecimento e avanços das
ações institucionais. Ao disponibilizá-lo na forma eletrônica de aces-
so gratuito e irrestrito, por iniciativa dos próprios autores, a expec-
tativa é a de que mais leitores e pesquisadores possam tomar contato
com a obra, eliminando-se assim eventuais limitações que impedi-
riam aos interessados o acesso à informação.
Cumprimentamos e agradecemos os autores por sua disposição
altruísta e visão idealista, esperando que este trabalho promova nos
leitores o renovado desejo de engrossar o coro das vozes que se le-
vantam na promoção dos sentimentos da dignidade, do respeito e 13
do valor humano, na perspectiva de reforçar a visão bíblica e cristã
de que somos todos filhos de um mesmo Pai, e, portanto, iguais no
que tange não somente à forma como somos considerados por este
Ele, mas que essa seja a marca mais visível de nosso trato de uns para
com os outros como filhos e como irmãos.

Euler Pereira Bahia


Chanceler do UNASP
Introdução

Esta produção é resultado de reflexões realizadas por educado-


res (as) e pesquisadores (as) que atuam na educação superior e que, ao
longo de suas experiências profissionais e acadêmicas, têm se debru-
çado com interesse e dedicação sobre a temática da educação para as
relações étnico-raciais.
A proposta da produção deste livro foi pensada para atender ao
público que está inserido no contexto educacional, independente-
mente do segmento — básico ou superior. Objetiva trazer ao leitor
um repensar sobre o papel da comunidade acadêmica ao se ver dian-
te de situações e temas que merecem conhecimentos e reflexões mais
profundas do que as que circulam no contexto do senso comum.
A instituição de ensino é também responsável pelo processo de
socialização dos múltiplos sujeitos que a ela recorrem. Isso, desde os
anos iniciais até o curso superior. É por meio dela que se estabelecem
relações interpessoais de diferentes núcleos familiares e, inevitavel-
mente, de diferentes matrizes étnicas e culturais.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Os relacionamentos que se estabelecem na instituição de educação


caracterizam-se pela marca da diversidade, visto que engendram a plu-
ralidade e multiplicidade cultural e étnica dos atores que constituem a
comunidade acadêmica. Se, por um lado, o espaço educacional é um
lugar privilegiado para a expressão e predomínio do respeito e da tole-
rância e o binômio identidade-alteridade, frequentemente alvo de dis-
putas e tensões, poderá ser entendido como algo que represente, não
necessariamente, oposição, mas, aceitação; por outro lado, se o ambiente
educacional e todos (as) os (as) envolvidos (as) no processo de formação
de conhecimentos e valores éticos e de cidadania não cumprirem, efeti-
vamente, o que se espera que se resulte ali, no que tange ao viver e con-
viver com o “outro”, poderá se tornar, para muitos, o primeiro espaço
de vivência das tensões étnico-culturais, onde poder-se-ão desenvolver
16 ações de discriminação, segregação e exclusão social, cultural e étnica.
Isso, com a anuência — ainda que por ignorância ou omissão — daque-
les (as) que poderiam desconstruir estereótipos e trabalhar pelo respeito
e valorização da diversidade cultural e étnico-racial.
Trazendo a temática da valorização e promoção da diversidade
étnico-racial — ênfase nas etnias negra e indígena - como elemen-
to catalizador, o projeto reuniu textos e profissionais-pesquisadores
de áreas diversas: das Letras, da Geografia, da História e da Música.
Entendendo, dessa forma, que a visão multidisciplinar enriquece a
abordagem, ao trazer perspectivas de análises que ampliam as possi-
bilidades de reflexão sobre o tema.
No conjunto de textos produzidos pelos (as) autores (as), eviden-
ciou-se uma lógica que passa pelos principais aspectos relacionados a
Introdução

essa temática: análises de conceitos, perspectivas e análises históricas,


debates de questões atuais sobre identidades étnicas, ações afirmati-
vas, racismos e, no caso de um deles, uma abordagem metodológica
em sala de aula da temática indígena. 
No capítulo 1, “Repensando conceitos para uma educação ét-
nica”, Silvia Quadros trata da importância de se conhecer e refletir
sobre: preconceito, discriminação e racismo na perspectiva da teo-
ria semiótica, a ciência da significação. Segundo a autora, a reflexão
sobre o que significam os termos pode oferecer elementos para que
os sujeitos se apropriem do significado e atribuam a esses termos o
sentido que, de fato, direcione as ações para a construção de uma so-
ciedade embasada na visão de ser humano com plenos direitos de ci-
dadania, conforme preconizados na Constituição Brasileira. Nos ar-
gumentos presentes no texto, a docente-pesquisadora considera que 17
“o convívio social abrange essas questões em suas várias instâncias:
das discursivas às ações concretas, sendo, portanto, imprescindível
que se reflita sobre esses processos a fim de que sua compreensão
possa apontar para uma convivência saudável e baseada na equidade,
uma vez que o Brasil é um país constituído por uma população mul-
ticultural e pluriétnica”.
Os capítulos 2, 3 e 4, sob os olhares de historiadores, trazem
uma abordagem histórica dos contextos social e cultural dos perío-
dos analisados da história brasileira, quando se pensa a configura-
ção de identidades e de discursos relacionados ao tema — negros ou
“nacionais” — as leis relacionadas ao assunto complexo das distin-
tas teias identitárias que compõem o nosso país, bem como as leis
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

e medidas em pauta que englobam as chamadas identidades não


hegemônicas — negra e indígena.
Romilda Motta debruça-se sobre o tema das “políticas afirma-
tivas” voltadas para a educação das relações étnico-raciais. Incluiu
pesquisas de órgãos oficiais (PNAD, IBGE) sobre temas como edu-
cação, violência, analfabetismo, renda entre as etnias que formam
o “povo brasileiro” e, por meio desses números, evidenciou o quanto
ainda é persistente a situação de marginalidade e exclusão que atinge
parcela significativa da etnia negra. Não se esquivou da espinhosa
discussão sobre as “cotas”, abordando justificativas, concordâncias
e discordâncias mas avançou, deixando claro que as ações, projetos
e leis que formam o conjunto das “políticas afirmativas” são muito
mais amplos e envolvem responsabilidades, medidas para os distin-
18 tos níveis da educação e que dizem respeito aos setores públicos e
privados e diversos sujeitos.
No capítulo 3, Flávio Thales Ribeiro Francisco tece considera-
ções que estão dentro de um debate atual e pertinente, relacionado
ao tema das identidades transnacionais e a ideia de diáspora. Sob o
título “Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades
negras brasileiras no século 20”, o historiador inicia a sua análise
nos anos 1920, vendo-os como a década na qual foi possível perceber,
tanto a formação de identidades negras entre as diversas comunida-
des no país, como o sentimento de uma experiência compartilhada
com populações afrodescendentes nas Américas e com os africanos.
Por meio da abordagem histórica, o autor defende que as identidades
negras no Brasil sempre estiveram relacionadas às transformações
Introdução

da identidade nacional e elas passaram pela ideia de fraternidade ra-


cial, ganhando força, na década de 1950, através da expressão “de-
mocracia racial”. Os anos 1960 e a luta do Movimento pelos Direitos
Civis nos EUA confrontaram racismo e imperialismo, questionaram
a universalidade de uma civilização universal e trouxeram repercus-
sões sobre a militância negra brasileira, que passou a reelaborar a
sua identidade, passando a denunciar o racismo, questionar as hie-
rarquias raciais e a assumir uma identidade transnacional, que se
mostrou sensível e receptível a afirmar as raízes africanas.
No capítulo 4: “História da África hoje: ética e ciência”, o his-
toriador Muryatan Barbosa desenvolve reflexões sobre alguns prin-
cípios éticos e científicos que poderiam contribuir para uma agenda
antirracista dessa disciplina acadêmica e de sua prática didático-pe-
dagógica. Lembrando que a pesquisa e o ensino de História da África 19
passam por um momento de consolidação acadêmica e institucional,
o docente-pesquisador sublinhou os perigos de que os fundamentos
críticos da sua prática e a energia renovadora sejam desencaminha-
dos, seja por um “ativismo anti-intelectual” ou por um “academicis-
mo positivista”. A partir daí o autor passa a tecer reflexões nas quais
faz um balanço da implantação da Lei 10.639/03, que contemplou a
obrigatoriedade de inclusão de conteúdos que tratam da História da
África e Cultura afro-brasileira nos currículos. Em uma perspectiva
que priorizou a problemática historiográfica e científica, o autor dis-
cutiu fatores gerais e específicos que ainda prejudicam, apesar de um
trabalho intenso realizado, com que a lei seja implementada em suas
intenções e projeções mais amplas e efetivas.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

A Lei Federal 11.645/08 ampliou o que se encontrava na Lei


10.639/03 e incluiu a obrigatoriedade da educação sobre a história
dos povos e da cultura indígena. Esse também ainda é um assunto
que traz desafios profundos para a educação e educadores. Os dois
últimos capítulos tratam da temática desse grupo étnico.
No capítulo 5, com uma epígrafe do grande antropólogo Lévi-
-Strauss: “O certo é que tinham sido perseguidos tão ferozmente nos
cem anos anteriores, que se tornaram praticamente invisíveis”, Ger-
mana Ponce de Leon Ramírez comunica uma dimensão das questões
que desenvolve em seu texto. A autora trata dos porquês da “invisibi-
lidade” física e cultural das comunidades indígenas, tanto nos espa-
ços da política, quanto no da educação. Em sua escrita fica claro que,
desde a Conquista até os dias atuais, os povos indígenas têm lutado
20 e resistido bravamente para se fazerem vistos e respeitados como ci-
dadãos brasileiros, com demandas que precisam ser atendidas e uma
cultura que precisa ser conhecida e respeitada.
No capítulo que encerra essa obra, Daisy Fragoso Galvão in-
cumbiu-se de trazer reflexões sobre questões relacionadas à educa-
ção sobre os povos indígenas. Entre algumas das reflexões, a autora
aponta a relevância dos resultados pretendidos quando o educador
alia conhecimento e compreensão. A autora defende que, com o co-
nhecimento acompanhado da compreensão das questões relaciona-
das aos povos indígenas, haverá sentido, primeiramente, para o edu-
cador, que construirá o significado e compartilhará com o estudante.
O capítulo apresenta também uma abordagem prática em sala de
aula sobre a temática indígena.
Introdução

Esperamos que as ideias e questões abordadas aqui encontrem


acolhida entre os/as leitores (as) desse livro e que contribuam para
a ampliação do olhar sobre essa temática tão rica, complexa e hu-
mana e que, por isso, necessita ser estudada e refletida por toda a
comunidade acadêmica.

Romilda Costa Motta


Sílvia Cristina de Oliveira Quadros

21
Repensando conceitos para
uma educação étnica
Silvia Cristina de Oliveira Quadros1

O objetivo deste capítulo é apresentar uma reflexão sobre a im-


portância de se repensar os conceitos para a construção de uma edu-
cação étnica. E para tanto, parte-se do estudo dos conceitos: precon-
ceito, racismo e discriminação, e da importância da educação étnica,
considerando que o convívio social abrange essas questões em suas
várias instâncias: das discursivas às ações concretas, sendo, portanto,
imprescindível que se reflita sobre esses processos, a fim de que sua
compreensão possa apontar para uma convivência saudável e basea-
da na equidade, uma vez que o Brasil é um país constituído por uma
população multicultural e pluriétnica.


1
Pós-Doutora em Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Doutora em
Letras: Semiótica e Linguistica Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
versidade de São Paulo. MBA em Gestão Estratégica na Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

A reflexão sobre o que significa o preconceito, o racismo e a discri-


minação permite que os sujeitos se apropriem do significado e atribuam
a esses termos o sentido que de fato direcione as ações para a construção
de uma sociedade embasada na visão de ser humano com plenos direitos
de cidadania, conforme preconizados na Constituição Brasileira.
Para tanto, neste capítulo serão considerados os termos preconceito,
racismo e discriminação em suas acepções conforme apresentadas no Di-
cionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 2010) e em autores
que apresentaram suas reflexões sobre eles a fim de formar um quadro que
permita ampliar a consciência e apontar caminhos de construção de uma
convivência plena, principalmente, no microuniverso acadêmico.
Considerando a Linguística como ciência da linguagem, ressal-
ta-se, nos escritos de Benveniste (1995, p. 26), que “a linguagem repro-
24 duz a realidade […] e a realidade é produzida novamente por inter-
médio da linguagem. Aquele que fala faz renascer pelo seu discurso
o acontecimento e a sua experiência do acontecimento”. Isso significa
que conhecer de fato a palavra e seu significado social e cultural nos
leva a repensar os nossos discursos e ações que deles decorrem.
Com base nessa premissa, focaliza-se a educação, e em específico,
a educação superior, visto ser ela um espaço de formação de futuros
profissionais e pesquisadores que contribuirão para o desenvolvimento
da sociedade. No processo de formação dos graduandos, é imprescin-
dível ir além da conscientização, do cumprimento das diversas leis que
regulamentam os direitos de cidadania e construir uma consciência
da diversidade, da identidade, do preconceito, da discriminação e do
racismo de forma que o discurso e as ações sejam pautados em uma
Repensando conceitos para uma educação étnica

concepção cultural e linguística que retrate o respeito às diversidades


étnicas e culturais. O princípio dessa atitude tem início com a própria
consciência linguística dos termos que serão explicados aqui.
Tendo em vista, tanto a abstração das palavras, quanto a não consciên-
cia das ações que elas codificam, julga-se ser de importante contribuição uma
reflexão sobre as concepções que delas decorrem a fim de que, com a análise
se possa repensar a realidade e os caminhos a trilhar no universo educacio-
nal para uma convivência baseada no respeito ao outro e à diversidade étnica.

Preconceito, discriminação e racismo

Neste tópico, a reflexão tem como ponto de partida os termos pre-


conceito, racismo e discriminação com base nos temas apresentados 25
pelo dicionário. Como definição, “preconceito” possui as definições:

◆◆ conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação


ou conhecimento dos fatos; ideia preconcebida;

◆◆ julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os con-


teste; prejuízo;

◆◆ superstição, crendice;

◆◆ suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos,


religiões etc;
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Extrapolando as definições do dicionário e com base na teoria


semiótica (GREIMAS, 1973; 1975; PAIS, 1993), analisa-se: 1) que o
dicionário preconiza a existência de um crer anterior a um saber,
que se caracteriza em um não-saber. Assim, o crer se instaura sem
uma base cognitiva; 2) o lexema julgamento pressupõe a presen-
ça de um destinador-julgador que emite uma sanção sem avaliar a
competência do(s) sujeito(s) em julgamento. A definição traz, ainda,
a palavra prejuízo que o dicionário apresenta como ato ou efeito de
prejudicar, que significa:

◆◆ lesar, danificar;

◆◆ causar transtorno a, perturbar;


26
◆◆ diminuir o valor de, depreciar;

◆◆ tornar sem efeito, anular.

Essas quatro definições apresentam um percurso de oponên-


cia ao sujeito, que terá dificuldades de alcançar seu objeto de valor
(valorização social, direitos sociais), o que acarreta, consequente-
mente, um percurso de fracasso para aquele que sofre o preconceito.
Ainda, nessas quatro definições de prejudicar, é possível depreender
a premissa de que o preconceito é um crer-ser, atitude em que um
indivíduo crê-ser melhor que um outro, produzindo então, ações
negativas que o depreciarão.
Repensando conceitos para uma educação étnica

Retornando à definição de preconceito, 3) se encontra a palavra


superstição, que o dicionário define como:

◆◆ sentimento religioso baseado no temor ou na ignorância, e que induz ao


conhecimento de falsos deveres, ao receio de coisas fantásticas e à confiança
em coisas ineficazes; crendice;

◆◆ crença em presságios tirados de fatos puramente fortuitos;

◆◆ apego exagerado e/ou infundado a qualquer coisa.

Essas definições de superstição caracterizam o preconceito com


uma base insólita, carecendo de um fundamento racional, parte de
um não-saber para um crer-ser. 27
A quarta definição que o dicionário apresenta de preconceito: 4)
suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos,
religiões etc., exprime exatamente o relacionamento entre indivíduos
diferentes que vivem em uma relação de hostilidade, com uma raiva
contida, que transparece na sociedade por meio de ações discrimi-
natórias. Essa definição retrata relacionamentos sociais e impedem o
desenvolvimento de relações equânimes na sociedade.
As definições apresentadas pelo dicionário para preconcei-
to podem ser sintetizadas com as seguintes modalidades: crer-ser /
não-querer conhecer / querer afastar-se, atitudes que acarretarão a
discriminação. O preconceito é, portanto, a atitude primeira que de-
sencadeia a ação discriminatória, concretizando, então, o racismo.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Segundo Florestan Fernandes, Oracy Nogueira e João B. Pereira


(1971, p. 2), as pessoas no Brasil têm vergonha de dizer que têm pre-
conceito, formando “o preconceito contra o preconceito de ter pre-
conceito”. Schucman (2010, p. 46) apresenta:

a caracterização de Oracy Nogueira (1979) sobre o tipo de preconceito racial


brasileiro e quem são as vítimas dele ainda é válida e atual. Ao realizar uma
análise comparativa entre Brasil e EUA, o autor utiliza as denominações “pre-
conceito de marca” e “preconceito de origem”, sendo o fenômeno brasileiro
exercido essencialmente sobre a aparência, os traços físicos do indivíduo, e o
fenômeno americano definido sobre a ancestralidade.

À vista disso, o sociólogo Oracy Nogueira classifica o preconcei-


28 to étnico existente no Brasil como dissimulado, assistemático, cons-
tituindo-se em um preconceito de marca, ou seja, o sujeito é classifi-
cado segundo seus traços físicos. O oposto ocorre nos EUA, onde há
preconceito sistemático, aberto e de origem, em que para ser conside-
rado negro basta ter um ascendente negro.
Sobre o preconceito, ressaltam-se, ainda, as colocações de
Lourdes Bandeira e Analía Soria Batista (2002, p. 126-127), no texto
sobre “Preconceito e Discriminação como expressões de violência”,
que o aborda como “um mecanismo eficiente e atuante, cuja lógi-
ca pode atuar em todas as esferas da vida” e, além disso, afirmam
as autoras que os vários tipos de preconceitos, seja de cor, classe
ou gênero, estão “presentes em imagens, linguagens, nas marcas
corporais e psicológicas […] com lógicas de inclusões-exclusões
Repensando conceitos para uma educação étnica

consequentes, porque geralmente associados a situações de apre-


ciação / depreciação / desgraça”.
Essas reflexões permitem compreender que, a partir do precon-
ceito, a discriminação ocorre, então, pela forma de percepção do ou-
tro. Nos quesitos cor e etnia, os sujeitos são divididos em dois grandes
grupos: o branco e o não branco (SCHUCMAN, 2010). Essa divisão,
assim estabelecida, é o ponto de partida para a discriminação, e sur-
ge, portanto, a necessidade de leis e ações para a equiparação de desi-
gualdades. Por outro lado, essa categorização gera o processo de de-
finição de identidade e da construção de política para a valorização
das etnias. O termo discriminação é definido no dicionário como:

◆◆ ato ou efeito de discriminar;


29
◆◆ faculdade de distinguir ou discernir, discernimento;

◆◆ separação, apartação, segregação.

Com base nessas definições, a discriminação ultrapassa o crer e


realiza um fazer com base no saber-ser diferente. É um processo que
provoca a evidência do diferente, e depende da valorização social - a
marginalização do diferente. A acepção do conceito de discrimina-
ção apresenta a palavra segregação, que o dicionário define como:

◆◆ ato ou efeito de segregar-se (pôr de lado, pôr à margem, separar, margina-


lizar, desligar, afastar, isolar);
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

◆◆ segregação racial: política que objetiva separar e/ou isolar no seio de uma
sociedade as minorias raciais, as sociais as religiosas, discriminação racial.

A segregação, conforme apresentada na definição, pressupõe a


discriminação social e étnica, que se constitui um fazer movido pela
crença de que um indivíduo é superior ao outro. Assim, o percurso
do sujeito discriminado é marcado pela disforia, ou seja, pela dis-
junção com o objeto de valor (cidadania). O sujeito não consegue
realizar seu percurso por ser marginalizado.
A discriminação pode ser definida com base nas modalidades:
crer-ser / dever-fazer / poder-fazer, que se fundamenta no racismo,
definido pelo dicionário como:

30 ◆◆ doutrina que sustenta a superioridade de certas raças;

◆◆ qualidade, sentimento ou ato de indivíduo racista.

Essas definições de racismo fundamentam a significação social de


um comportamento negativo em relação a minorias étnicas. É um fa-
zer-crer que leva a um fazer discriminatório. O racismo é caracterizado
pelas modalidades: crer-ser / poder-fazer-crer / dever-fazer / poder-fazer.
Assim, as atitudes racistas impulsionadas pelo preconceito no Bra-
sil são sutis. Normalmente, nega-se qualquer problema étnico ou de cor,
proclama-se a democracia racial. Qualquer manifestação racista é con-
siderada como uma prática individual, pois a imagem consagrada da
sociedade brasileira é a de uma sociedade igualitária em que todos têm
Repensando conceitos para uma educação étnica

a mesma oportunidade. Porém, com base na história brasileira, sabese


que esse ideologema não condiz com a realidade e o preconceito e a dis-
criminação são resultados de uma estratificação social e racial.
A ideia da democracia racial acarreta diferentes opiniões entre
autores. Para Fernandes (1965, p. 199), a democracia racial:

- generalizou um estado de espírito farisaico, que permitia atribuir à incapaci-


dade ou à irresponsabilidade dos negros os dramas humanos da ‘população de
cor’ da cidade, com o que eles atestavam como índices de desigualdade econô-
mica, social e política na ordenação das relações raciais.
- isentou o ‘branco’ de qualquer obrigação, responsabilidade ou solidariedade morais.
- revitalizou a técnica de focalizar e avaliar as relações entre ‘negros e bran-
cos’ através de exterioridades ou aparências dos ajustamentos raciais, forjando
uma consciência falsa da realidade racial brasileira. 31

Segundo essa citação, a democracia racial é inexistente e serve para
mascarar a responsabilidade do sistema social em relação aos cidadãos.
Além disso, em relação à democracia racial, Pais (1994, p. 325-
335) explora o conceito democracia, definindo-a como “o regime
caracterizado pela vontade da maioria, com respeito aos direitos
das minorias, sob o império da lei”, e formaliza-a quanto às mo-
dalidades e sobre determinações discursivas: poder-fazer-querer /
poder-fazerdever / ser/ fazer.
A democracia, conforme analisada por meio das modalida-
des, possui uma força atuante que, se colocada em prática, alcança-
ria o ideal para a convivência entre os cidadãos. Entretanto, a não
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

compreensão e não cumprimento da lei e das ideias democráticas im-


pedem que, de fato, seja estabelecida uma realidade em que prevaleça
a equidade e a não divisão da sociedade em etnias, mas a consciência
de uma sociedade constituída pelo pluralismo étnico, com a valori-
zação da contribuição de cada cultura e de cada povo. Dessa forma, o
racismo tenderia a ser enfraquecido e a se diluir nessa perspectiva de
igualdade de direitos tanto na legislação quanto nas relações sociais.
Entretanto, a discrepância entre o real e o ideal reafirma a neces-
sidade de constituição da identidade individual, étnica e social e, nessa
premissa, a constituição dessas identidades poderá garantir a preserva-
ção dos direitos e do respeito na coletividade das relações sociais.
Considerando que a concepção de identidade é semioticamente
construída com base na concepção de identidade ativa e dinâmica, não
32 abstrata, mas concreta e representada nas relações de comportamentos so-
ciais historicamente produzidos, e que “é um processo de construção que
não é compreensível fora da dinâmica que rege a vida de um grupo social
em sua relação com outros mundos distintos”, resulta, portanto, de um
processo e de uma construção em um contexto (MONTES, 1996, p. 56).
Jorge Ruedas (1994, p. 32-33) apresenta a seguinte definição
de identidade:

Em sentido amplo, a identidade do indivíduo seria sua própria identifi-


cação com seu próprio ser identificado com sua comunidade, com suas
tradições, com sua língua, com seus costumes. O ser humano reconci-
liado unilateralmente com a sociedade. No sentido estrito, o trabalhador
conciliado com o produto de seu trabalho. A busca da identidade seria
Repensando conceitos para uma educação étnica

o impulso de resposta do indivíduo, como ser social, à atomização, ao


estranhamento, a que lhe submete a ordem social.

A citação de Ruedas apresenta a identidade individual como o


sujeito ao encontro de si mesmo, com seus caracteres próprios, sua
aparência física, seus hábitos, costumes e língua, assim como os acon-
tecimentos de sua vida que propiciarão a formação de uma imagem
própria de si mesmo, seu status e seu papel na sociedade, que forma-
rão sua identidade social — a relação entre os indivíduos e sua posi-
ção no mundo, relacionada ao reconhecimento da sociedade.
Ainda quanto à identidade individual, Brandão (1986, p. 37) de-
clara que, para psicólogos clínicos e psicanalistas, identidade pode ser:

um conceito que explique por exemplo, o sentimento pessoal e a cons- 33


ciência da posse de um eu, de uma realidade individual que a cada um de
nós nos torna, diante de outros eus, um sujeito único e que é, ao mesmo
tempo, o reconhecimento individual dessa exclusividade.

De posse da noção de identidade individual, é possível com-


preender a identidade social como construída na relação eu/outro e
o mundo. O outro é definido como semelhante ou diferente. É com
base na diferença que o “eu” forma sua identidade E, no tocante à
identidade étnica, Montes (1996, p. 56) a define como “a identidade
de um grupo que se diferencia dos outros por um conjunto de ca-
racterísticas étnicas e que tem formas de cultura, costumes, valores
etc. que lhes são próprios”.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Para Teodoro (1996, p. 106) etnia se refere “a grupos, cujo dis-


curso faz vínculo social, na defesa de interesses próprios e levando
necessariamente em conta suas características raciais predominan-
tes”. Com base nessas considerações, entende-se que a identidade
étnica emerge da relação entre a identidade individual e social. As-
sim, a construção da identidade se dá na tensão dialética entre o
eu e o outro, no contexto social, e pressupõe o reconhecimento das
semelhanças e diferenças para sua afirmação.
A figura a seguir apresenta o percurso dialético da relação
social entre o convívio entre o eu e o outro que influenciará na
construção da identidade.
Figura 1
Td
Convívio
34
Inserção
Eu Outro
querer-se querer-não-ser
dever-se dever-não-ser
poder-se poder-não-ser

Auto suficiência Dependência limitação

Autonomia Contenção
não-querer-não-ser não-querer-ser
não-dever-não-ser não-dever-ser
não-poder-não-ser não-poder-ser
exclusão
Marginalidade

Fonte: Pais (1993)


Conforme a figura 1, no eixo da “tensão dialética” (td) os termos
eu e outro representam a convivência entre as diferenças. No eixo
Repensando conceitos para uma educação étnica

complementar entre o eu e a autonomia — a presença da autossu-


ficiência. No eixo outro e contenção — o contraste, a dependência,
a limitação. Entre a contenção e autonomia, ocorre a exclusão, e no
percurso da limitação para a exclusão surge a marginalidade social. E
no convívio e a autossuficiência — a inserção social. A questão é que,
em nossa sociedade, a existência da diferença é vista como negativa e
o diferente discriminado negativamente.
Para a construção da identidade, vários quesitos sociais defi-
nirão o indivíduo ou o grupo, como por exemplo, sua etnia, sua cor,
sua classe social, sua forma de expressão linguística, entre outros
aspectos. E, segundo Montes (1996, p. 60), “a identidade é um con-
ceito relacional e contrastivo, com uma dimensão política sem a
qual é impossível entendê-lo”.
Carlos Brandão (1986, p. 42), ao falar sobre identidade, vai além 35
da questão contrastiva, declarando que as identidades são mais do
que resultado da oposição por contraste, mas o próprio reconheci-
mento social da diferença. E esse reconhecimento da diferença preci-
sa estar livre de preconceito e ser, sobretudo, pautado no respeito ao
ser humano, na valorização do outro com sua identidade individual,
social, linguística e étnica.
Isso posto, pode-se inferir que o preconceito, a discriminação
e o racismo estão interligados, pelas modalidades: crer / fazer e ao
se tomar como base a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(ONU, 1948), tratado de suma importância que apresenta um deli-
neamento do relacionamento humano, pode-se projetar um crer /
fazer construído por meio da educação fundamentada no ideal de
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

respeito e convivência harmônica, visto que tal documento apre-


senta uma imagem de ser humano que se direciona à concepção de
fraternidade, liberdade e segurança.
O cumprimento do proposto pela Declaração dos Direitos Hu-
manos pela sociedade não admite espaço para o desenvolvimento
de ações voltadas para o preconceito, para a discriminação e racis-
mo, entretanto, o fato de se ignorar a compreensão dos direitos do
ser humano e de se construir o conhecimento do outro e da realida-
de, pautado na reprodução de discursos e atitudes voltados para o
cultivo de valores baseados em preconceitos, cria a necessidade do
estabelecimento de leis que garantam esses direitos e promovam a
convivência entre as pessoas.
Assim, considera-se que a reflexão proposta neste texto possa
36 proporcionar aos leitores o repensar de suas atitudes, sua posição
diante das ideologias que se estruturam nos discursos sociais e que
são reproduzidos pela maioria das pessoas.

O foco da legislação

Após a reflexão sobre os termos “preconceito”, “discriminação”


e “racismo”, é importante refletir, também, sobre a legislação a fim de
compreender sua abordagem, objetivo e foco.
Em relação ao trabalho na educação com a questão de pre-
conceito e racismo, a lei 10.639/2003 altera a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDBEN), a fim de incluir no
Repensando conceitos para uma educação étnica

currículo a obrigatoriedade do estudo da temática “História e


Cultura Afro-Brasileira” no ensino fundamental e médio. Os
parágrafos do artigo 26 apresentam:

§ 1o  O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá


o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e po-
lítica pertinentes à História do Brasil.
§ 2 o  Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas
de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Em 2008, a Lei 11.645/2008 altera novamente a LDBEN, acres- 37


centando ao artigo 26-A a questão indígena:

§ 1o  O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos


aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da socie-
dade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e
política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indíge-
nas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em espe-
cial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras (NR)
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Conforme trechos da lei, há um direcionamento para a seleção do


conteúdo, a fim de que o aluno possa conhecer a contribuição dos negros
para história e cultura brasileira, com foco nas áreas de formação de His-
tória, Artes e Literatura. Em 2013, também, no intuito de ampliar conheci-
mento sobre o tema já proposto, a Lei 12.796/20132 apresenta alterações da
LDBEN 9394/96 sobre as formações de profissionais da educação e aborda
em seu inciso XII — “consideração com a diversidade étnico-racial”.
Em específico para a educação superior, a Resolução CNE/CP
No. 1/20043, conforme Parecer CNE/CP 3/2004, estende a aplicação
da legislação sobre o estudo das questões étnicas para a educação su-
perior e, em especial, para as instituições que possuem cursos de for-
mação de professores, conforme explicitado em seu artigo 1º.
No primeiro parágrafo, do primeiro artigo, a Resolução
38 apresenta que:

§ 1° As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e


atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étni-
co-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito
aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004.

Dessa forma, a educação superior também passa a ter a obriga-


ção de ter em seu currículo a abordagem da questão da diversidade
étnica. O Parecer supracitado apresenta a forma de condução da te-
mática de maneira a que a instituição se responsabilize em promover

  Disponível em: <http://bit.ly/10nyFeZ>.


2

  Disponível em: <http://bit.ly/2psGyRO>.


3
Repensando conceitos para uma educação étnica

a conscientização política e histórica da pluralidade étnica e apresen-


ta as ações a serem priorizadas pelos níveis educacionais brasileiros.
Com essa obrigatoriedade da legislação, pressupõe-se que a cons-
ciência do estudante a respeito do preconceito, da discriminação e do
racismo seja formada já no ensino fundamental. Entretanto, a extensão
à educação superior ainda se faz necessária. E para que, de fato, o tema
seja uma prática na educação, o texto do Parecer CNE/CP 3/20044 ul-
trapassa a exposição da obrigatoriedade e apresenta a forma de abor-
dagem, avançando para sugestões de ações possíveis. Portanto, a com-
preensão dos termos, conforme explanada neste capítulo, vem a ser um
clarear para que a lei seja compreendida e aplicada no ambiente escolar.

Educação étnica 39

O processo de educação étnica extrapola o ambiente familiar e


desemboca na escola, visto ser o ambiente educacional um microu-
niverso da sociedade. Na educação superior, ações pedagógicas tam-
bém podem ser implantadas para que os jovens, em sua pluralidade
étnica, possam ter, além do acesso à educação superior, a permanên-
cia nela e a oportunidade para ingresso no mercado de trabalho.
É a partir da consciência linguístico-semântica, que atitudes e ações
podem esclarecer e combater o racismo, visto que na educação superior,
o estudante já vem com conceitos pré-formados tanto de sua formação

  Disponível em: <http://bit.ly/2oDSQmj>.


4
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

familiar quanto de seu período de estudo nos níveis fundamental e mé-


dio; e é com reflexão, discussão, desenvolvimento de uma consciência
multicultural que ele se preparará para ser um profissional que respeite e
saiba conviver em sociedade com as diferenças étnico-culturais.
Com a liberdade que a LDBEN 9394/96 outorga às instituições
para a constituição de seus projetos pedagógicos, é possível que cada
instituição planeje a abordagem da temática relativa às questões étnicas
de forma a não apenas fazer constar em documentos, mas que se tenha,
de fato, projetos e ações que modifiquem a conduta dos estudantes e da
comunidade acadêmica como um todo, fazendo com que a convivência,
as oportunidades de acesso à aprendizagem sejam equânimes.
Além disso, o desenvolvimento de trabalho com a comunidade
do entorno por meio de projetos de extensão pode ser um importan-
40 te elemento para a conscientização da pluralidade étnica e multicul-
tural que formam a nossa sociedade.
Tanto nos cursos de bacharelados, quanto nos cursos de formação de
professores, conforme indica a lei, a conscientização de futuros profissio-
nais e docentes perpassa pela consciência que os docentes universitários
têm da temática relativa aos estudos étnicos-culturais. Dessa forma, é im-
portante salientar a necessidade de se realizar um trabalho de preparação
do docente do ensino superior para essa tarefa de proporcionar a visão
sócio histórica das etnias e sua contribuição para a sociedade brasileira.
Para esse desenvolvimento, tanto do docente quanto do discente,
a interligação entre o ensino, a pesquisa e a extensão é um campo
fértil para que se possa ter o cultivo do trabalho com as diferenças.
A extensão fornece dados para a pesquisa e reflexões que podem se
Repensando conceitos para uma educação étnica

tornar material de estudo em sala de aula, principalmente, sobre o


conhecimento dos conceitos do preconceito, discriminação e racismo,
que ora é tratado neste capítulo, além de ações que deles decorrem.
A fim de realizar essa preparação de docentes e discentes, o Mi-
nistério da Educação e Cultura (MEC) criou em 2004 a Secretaria de
Educação Continuada Alfabetização e Diversidade (SECAD). Segun-
do o MEC, a SECAD tem o objetivo de:

articular as competências e experiências desenvolvidas, tanto pelos sistemas for-


mais de ensino como pelas práticas de organizações sociais, em instrumentos de
promoção da cidadania, na valorização da diversidade e de apoio às populações
que vivem em situações de vulnerabilidade social, entre elas, a população negra.
[…]. Visando tratar a diversidade étnico-racial como um valor que deve estar pre-
sente no processo de ensino aprendizagem e avançar no enfrentamento das desi- 41
gualdades existentes no espaço escolar, a Secad vem trabalhando em duas linhas de
ação: 1) “ações com o objetivo de elaborar e implementar programas educacionais
em prol do acesso e permanência de negros e negras na educação escolar em todos
os níveis”; 2) “ações que possibilitem a toda a sociedade a reflexão e o conhecimento
consistente para que sejam construídas relações baseadas no respeito e na valoriza-
ção da diversidade brasileira” (BRASIL/UNESCO, 2008, p. 15-16).

Conforme objetivos apresentados no excerto acima, por meio da SE-


CAD, o MEC tem realizado diversos projetos a fim de intervir no processo
educacional para que a inclusão dos grupos étnicos possa ocorrer de modo
eficaz, tais como: projetos de cursos pré-vestibulares e de superação de de-
sigualdades no sistema de ensino; Programa Diversidade na Universidade
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

(bolsa de permanência aos alunos egressos); promoção de Fóruns Esta-


duais de Educação e Diversidade Étnico-Racial; criação de comissão téc-
nica; Programa Brasil Quilombola; Programa Uniafro para a formação de
professores; Produção e distribuição de materiais para orientação de do-
centes; concurso de material didático, dentre outros projetos, que podem
ser encontrados na íntegra no material produzido pelo MEC/UNESCO —
Contribuições para a Implementação da Lei 10.639/2003 de 20085.
No processo da educação étnica, o uso e análise de material didáti-
co e paradidático é um tópico importante, pois literatura e materiais que
trazem conceitos equivocados, racistas devem ser evitados. E a análise de
material e a construção de outros sobre a questão étnica pela comunida-
de acadêmica poderá trazer contribuições para o estudo dessa temática.
Para o MEC, a política de formação e produção de material didático
42 e paradidático, aliadas ao trabalho com a revisão curricular, constituem
a base do trabalho para a implementação das Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. (BRASIL/UNESCO, 2008)
Assim, o trabalho com a linguagem, com a percepção do outro que
a linguagem proporciona, com as ideologias transmitidas nos diversos
discursos sociais, sejam eles veiculados em forma de publicidade, em for-
ma de humor ou de música, sejam eles expressados em quaisquer tipos de
textos, o universitário precisa ter consciência dos significados e sentidos
veiculados e não ser um mero repetidor dos discursos que porventura pos-
sam reforçar comportamentos e atitudes que levem ao racismo.

  Disponível em: <http://bit.ly/2oXFV1d>.


5
Repensando conceitos para uma educação étnica

Além da consciência linguística, a instituição pode desenvolver


projetos de inclusão, em que todos possam ter acesso ao aprender a
aprender, que pode ser concretizado por meio de programas de nive-
lamento, de acessibilidade ao aprimoramento do processo de apren-
dizagem, como programas de monitoria, de apoio psicopedagógico
que poderão ser um caminho para suprir o gap que o estudante pos-
sa ter como graduando na educação superior. Ainda nessa linha de
inclusão, a promoção da socialização cultural entre os grupos étnicos
no ambiente acadêmico pode ser uma estratégia que estimule a cons-
ciência da igualdade, da convivência e respeitabilidade, e também, o
sentido de pertencimento ao grupo institucional como um todo, além
da formação da identidade coletiva de universitários que abrange a
unidade na diversidade.
E, por fim, a implantação de ações voltadas para além da sala de 43
aula pode ser facilitada pela estruturação de um núcleo de estudos de
diversidade étnica na instituição como uma excelente forma de se ter
estudos, pesquisas, produção de material e assessoria para a comuni-
dade acadêmica no tocante a essa temática.

Considerações finais

O processo de educação étnica só poderá ter êxito se a comu-


nidade acadêmica tiver de fato consciência do que vem a ser o pre-
conceito, a discriminação e o racismo, a fim de poder construir uma
sociedade baseada na igualdade e na equidade.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

A compreensão dos conceitos e a não reprodução de discursos ideo-


logicamente voltados para o racismo em consonância com a ressignifica-
ção da convivência multicultural e étnica poderá trazer uma visão de que
a democracia racial pode deixar de ser um mito para ser uma realidade.
No mundo acadêmico, a compreensão e a discussão de políticas pú-
blicas convergem para a construção da identidade étnica, da valorização
do outro e o respeito às diferenças, com vistas a se ter oportunidades equâ-
nimes para a constituição da cidadania. Assim, o repensar os conceitos e
contribuir para o êxito do processo de educação étnica precisa extrapolar a
academia e fazer parte de atitudes e ações da sociedade em geral.

Referências
44
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Repensando conceitos para uma educação étnica

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46
Políticas afirmativas
para a educação das relações
étnico-raciais: definições,
reflexões e desafios
Romilda Costa Motta1

Este capítulo trata das “políticas afirmativas” para a educação


das relações étnico-raciais, e também traz à discussão um quadro
da atual situação da população afro-brasileira ou afrodescendente.
Ao incluirmos números e dados de órgãos oficiais de pesquisa à
análise, pretendemos oferecer elementos mais consistentes, ou seja,
referências empíricas para que o leitor tenha condições de avaliar

1
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Mestra em História Social pela
Universidade de São Paulo. Graduada em Licenciatura e Bacharelado em História pela Univer-
sidade de São Paulo.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

e julgar a pertinência das ações afirmativas implantadas que são


voltadas a esse núcleo étnico, deixando de lado opiniões pautadas,
apenas, no senso comum.
Os números da mais recente pesquisa realizada pelo IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas)2 indicaram que en-
tre os quase 200 milhões de habitantes do solo brasileiro, 53% desse
total se autodeclararam como “preto” ou “pardo”.3 O crescimento
da porcentagem relativa à cor preta foi de 2,2%, passando de 5,9%
do total de brasileiros para 8,1%. Embora, para alguns, esse seja um
dado irrelevante, os “iniciados” na temática sabem que esse resulta-
do merece mais reflexões.
O aumento da população preta e parda reflete, em parte, a for-
ma como o (a) brasileiro (a) afrodescendente tem assumido, paula-
48 tinamente, uma identidade racial/étnica que durante muito tempo
permaneceu negada por alguns. Esse fenômeno permanece e tam-
bém precisa ser pensado.
Atinemo-nos para o fato de que, desde o momento no qual
a história nacional começou a ser escrita, os vieses eurocêntrico e
etnocêntrico prevaleceram, favorecendo para que a situação assim
se estabelecesse. Diferentemente da parcela de descendência euro-
peia, os indígenas e os afrodescendentes foram apresentados como


2
O IBGE utiliza a categoria “cor”: preta e parda, que reúne o grupo genérico de negros; ama-
rela, branca e indígena. Esta última foi incluída em 1991. O termo “pardo” foi utilizado
pela primeira vez no primeiro Censo, em 1872 e então, servia para distinguir negros forros
dos escravizados. A partir de 1950 passou a constar definitivamente como uma opção cen-
sitária para abarcar a todos aqueles que assumiam algum tipo de ascendência africana

3
A categoria “parda” significa que o indivíduo possui e reconhece — já que o critério foi a
auto declaração — algum nível de ascendência negra.
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

coadjuvantes, quando não, silenciados. Imagens estereotipadas,


construídas pela historiografia do século 19 e início do 20, sobre es-
tes dois últimos elementos étnicos, contribuíram para que muitos
deles buscassem o distanciamento da identidade.
A título de exemplo, citamos o ensaio vencedor do concurso do
recém constituído IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro)
Como se deve escrever a história do Brazil (1843). Ali, o autor, Karl
Friedrich Von Martius (1794-1868), emitiu opiniões explicitamente
hierarquizantes ao afirmar que a “raça negra, degenerada e inferior,
iria contribuir com a construção de uma nova nação, à medida que
fosse assimilada, absorvida pela raça branca e caucasiana” (MOTA
apud PETRUCELLI, 2013, p. 14).
Noutra obra, encomendada pela Coroa, nos mesmos moldes do
IHGB, História Geral do Brazil, Adolfo de Varnhagen (1816-1878), es- 49
creveu que os africanos, trazidos e tornados escravos, fizeram mal ao
país “com seus costumes pervertidos, seus hábitos indecorosos e despu-
dorados, seus abusos, vestuários, comidas e bebidas inadequados”. Neste
mesmo texto, os nativos foram definidos como “gentes vagabundas, bes-
tas falsas e infiéis, inconstantes, ingratas, desconfiadas, impiedosas, des-
pudoradas, imorais, insensíveis, indecorosas e entrecortadas por guer-
ras, festas e pajelanças” (VARNHAGEN, 1854 apud ALMEIDA, 2006).
A persistência de preconceitos e intolerâncias étnicas contri-
buem para que, até os dias atuais, indígenas e suas culturas ainda se-
jam representadas em parte considerável do imaginário social como
o símbolo do “atraso” e, também, no caso do negro, muitas represen-
tações e imagens negativas se perpetuem.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Há um consenso de que o Brasil é caracterizado como uma so-


ciedade pluriétnica e, portanto, um país “mestiço” — biológica e cul-
turalmente. Contudo, não é demais sublinhar que, atendendo a inte-
resses políticos e ideológicos, a ideologia da mestiçagem, disseminada
e arraigada no imaginário popular, intentou, por meio desse discurso
da fusão de raças, construir e reforçar a ideia da unidade e da coesão
da nação. Se, por um lado, mostrou eficácia em seus propósitos, por
outro, trouxe consequências sérias às duas outras identidades não
hegemônicas — indígena e negra.
A obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, um clássico
da literatura sociológica brasileira, foi um dos instrumentos eficien-
tes para difundir a ideia de uma sociedade idílica que, historicamente
conviveu, de forma harmônica, com as diferenças étnicas. Culminou
50 no mito da “Democracia racial”, ofuscando e/ou negando realidades,
diferenças culturais, econômicas e sociais que separaram as distintas
etnias. Os prejuízos não foram poucos.
A seguir, queremos trazer alguns números de pesquisas. A par-
tir deles, acredita-se ser possível traçar um panorama breve relativo à
situação atual da população de negros no Brasil.4 Se, por um lado, os
índices crescentes de afrodescendentes afirmando-se como tal pode
ser interpretado como algo positivo, outros itens aferidos pelos ór-
gãos oficiais de pesquisa de amostragem não são tão animadores.
Os recentes resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD, 2013) apontaram para o que o já havia assinalado,


4
Ao usar a terminologia “negro (s) ” terei em conta todos (as) que se autodeclararam como
“pardos” e “pretos”, segundo as categorias do IBGE.
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

na amostra de 2010, qual seja, uma nítida assimetria entre os grupos


étnicos brasileiros. Em diversos aspectos observados — mortalidade
infantil, educação, violência, renda, desemprego — o quadro mos-
trou-se nitidamente desfavorável à população afro-brasileira.
Dados referentes à mortalidade infantil permanecem desanima-
dores. Embora, nesse quesito, os números estejam menos atualizados
(1993-1994), o que foi aferido é que, enquanto no Brasil a taxa para me-
nores de 5 anos de idade por mil para as crianças brancas é de 45.7, entre
a população negra a taxa é de 76.1 por mil (SANTANNA, 2003, p. 10).
Observando o item “renda”, vê-se, por meio dos resultados
da coleta de dados, que a pobreza está mais concentrada entre ne-
gros. O rendimento médio das famílias brancas é 2,3 vezes superior
(R$481,6) ao das famílias afrodescendentes (R$ 205,4). Quando é fei-
to o cruzamento de dados, contemplando gênero, recorte etário e re- 51
gional, revelam-se contornos sensíveis das diferenças existentes entre
homens e mulheres brancos e homens e mulheres afrodescendentes,
ainda que diferenciados, de acordo com a região.
Mesmo levando em conta que os índices de analfabetismo têm
mostrado um decréscimo no conjunto da população do país, o que
é positivo, as análises apontam que as assimetrias étnico-raciais
permanecem, mostrando contornos que trazem preocupações.5 Em
2001, as taxas de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais,
que é a faixa etária utilizada para comparações internacionais, de-
tectaram que a população negra apresentou um índice duas vezes

5
Diversos indicadores como alguns dos citados foram fartamente analisados em
Sant’ Anna (2003).
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

maior: 18,0%. Entre a população “branca” a porcentagem foi de 8,0%


(SANT’ANNA, 2003, p. 61). Verificou-se, ainda, que 8% dos meni-
nos afrodescendentes entre 10 e 14 anos estão na condição de analfa-
betos. Essa situação atinge apenas a realidade de 2,4% dos meninos
brancos. Ou seja, um resultado 10 vezes desfavorável à população
negra. Quando o perfil dos pesquisados envolveu gênero, a situação
mostrou-se ainda mais inquietante. No caso das meninas afrodes-
cendentes entre 10 e 14 anos, 4,5% encontravam-se na condição de
analfabetas, enquanto essa realidade atingia apenas 1,3% das meni-
nas brancas. A taxa de analfabetismo das meninas afrodescendentes
é, igualmente, quase quatro vezes mais elevada.
Entre os adultos de 25 a 44 anos, as disparidades permanecem
amplas, agravando-se pelo fato dos objetos da pesquisa serem pes-
52 soas que deveriam estar atuando no mercado de trabalho e é sabido
que a ausência ou baixa escolaridade é um fator de exclusão. Nes-
sa faixa etária, 15,7% dos homens afrodescendentes são analfabetos
enquanto os homens brancos nessa condição são 5,2%. A taxa de
analfabetismo dos homens afrodescendentes é três vezes mais eleva-
da. Entre as mulheres afrodescendentes, 12,1% e 4,1% das mulheres
brancas são analfabetas, demonstrando resultados que evidenciam
uma taxa de analfabetismo três vezes mais elevada do que entre mu-
lheres não negras (SANT’ANNA, 2003, p. 18).
No quesito anos de escolaridade, embora a média de anos de estu-
dos entre os afrodescendentes tenha crescido 1 ano, no cômputo geral
ainda permanecem descompensados em relação à população branca.
Em todas as regiões do Brasil, como já identificado, historicamente,
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

continua a diferença de 2 anos na média de anos de estudos entre


brancos e afrodescendentes (SANT’ANNA, 2003, p. 19). Completan-
do as informações sobre o tema acesso à educação, foram pesquisadas
pessoas com 15 a 17 anos de estudos, ou seja, aquelas que possuem o
Ensino Superior e/ou outro estudo adicional de pós-graduação. Os nú-
meros mostram que apenas 2,5% dos afrodescendentes tiveram acesso
a esse grau de instrução. Por sua vez, a população não negra chega a
10%, uma taxa quatro vezes maior (SANT’ANNA, 2003, p. 19).
E, finalmente, quando o tema foi violência, a assimetria étni-
co-racial também se mostrou patente no cômputo do IBGE. Os nú-
meros da pesquisa deste órgão foram apresentados e discutidos no
estudo Homicídios e Juventude no Brasil, do Mapa da Violência 2013
e apontaram que, no Brasil, por homicídio, morrem 153,4% mais
negros do que brancos. As comparações relativas aos números da 53
violência foram realizadas usando como referência registros desde
2002. Daqueles primeiros cômputos, verificou-se que morriam 42,9%
mais negros do que brancos. Já, em 2010, esse número havia atingido
149%. Os índices são mais aterradores quando se considera a idade
das vítimas da violência — 12 a 24 anos. Os valores de 2011 apresen-
taram índices ainda mais preocupantes: 153,4%. De acordo com os
dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério
da Saúde, 71,4% das 49,3 mil vítimas de homicídios, em 2011, eram
negras — o que corresponde a 35,2 mil assassinatos.
De acordo com Julio Waiselfisz, um dos pesquisadores que ana-
lisaram esses dados coletados, deve-se observar que houve um íngre-
me crescimento da violência homicida, tanto branca quanto negra,
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

avolumada, significativamente, até os 20/21 anos de idade das víti-


mas. Por sua vez, o pesquisador chama a atenção para o fato de que:

Se esse crescimento se observa tanto entre os brancos quanto entre os negros,


nesse último caso o incremento é marcadamente mais elevado: entre os 12 e
os 21 anos de idade as taxas brancas passam de 1,3 para 37,3 em cada 100 mil,
aumenta 29 vezes. Já as taxas negras passam, nesse intervalo, de 2,0 para 89,6,
aumentando de 46 vezes (WAISELFISZ, 2012, p. 27-28)

Os números obtidos também foram analisados e discutidos de-


moradamente em Vidas perdidas e racismo no Brasil, desenvolvido
por Daniel Cerqueira, diretor de “Estudos e Políticas do Estado, das
Instituições e Democracia”, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômi-
54 ca Aplicada), em parceria com Rodrigo Leandro de Moura, da FGV
(Fundação Getúlio Vargas). Foram examinadas as mais de 1 milhão
de mortes violentas ocorridas no Brasil entre 1996 e 2010. Alguns
dos parâmetros escolhidos na comparação de análise foram: percen-
tual de jovens negros e brancos na população total, taxa de desem-
prego e renda média do trabalho, gênero, estado civil, escolaridade,
local do incidente, dia da semana e raça/cor das vítimas. Uma das
constatações patentes foi o fato de que “o indivíduo de cor preta ou
parda (negro) possui uma chance em torno de 7,5 pontos percentuais
de ter sido vítima de homicídio em relação ao de cor branca”.
Uma questão logo nos ocorre ao observarmos essas assimetrias ét-
nicas, também, no quesito “vítimas de violência”: quais motivos favore-
cem tanta diferença? Cerqueira e Moura, acima citados, ressaltam que
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

apenas 20% da diferença nas taxas de homicídio de negros e não negros


nos municípios pode ser explicada por disparidades socioeconômicas
e demográficas das vítimas. Para os autores: “o componente de racis-
mo não pode ser rejeitado para explicar o diferencial de vitimização por
homicídios entre homens negros e não negros no país” (CERQUEIRA;
MOURA, 2013, p. 5). Portanto, segundo a análise, embora não possa
afirmar qual o percentual esteja ligado diretamente ao racismo, acredi-
tam que este esteja “escondido” em meio aos 80% restantes.
O quadro delineado nos permite afirmar — ainda que não se
ignorem avanços e conquistas — que se torna impossível desprezar
o fato de que, passados quase 130 anos da abolição da escravatura a
realidade socioeconômica deste grupo étnico — e também da popu-
lação indígena — ainda se mostra claramente desfavorável.
Essa constatação reforça uma ideia que já havia sido apresenta- 55
da desde os anos 1960, por Florestan Fernandes, em A integração do
negro na sociedade de classes (1965), um marco na literatura socioló-
gica brasileira. Especialmente, porque Fernandes ousou questionar o
cristalizado “mito da democracia racial”, alimentado pela, também,
magistral obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala (1ª edi-
ção 1933). Ali, o eminente sociólogo brasileiro analisou a entrada do
negro na ordem capitalista, alertando para o fato de que a abolição
da escravatura não representou o mesmo que a integração do ne-
gro nessa sociedade que se pretendia “moderna”. A partir dessa ideia,
alertou para o que ficou conhecido como “abolição incompleta”. Jus-
tificou, apontando para a constatação de que a liberdade jurídica dos
negros representou, também, exclusão e marginalização.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

A perspectiva que subjaz na obra de Fernandes é a de interven-


ção, pois o sociólogo deixa muito evidente a necessidade de ação por
parte de diferentes grupos e instâncias. Segundo sua ótica, seria ur-
gente, além da mobilização da parte dos diretamente afetados com
tais disparidades, a introdução de serviços especiais e planejamento
por parte dos poderes públicos para a absorção e acesso dessa parcela
excluída a espaços e oportunidades. Só assim, segundo o autor citado,
seria produzida a diminuição da desigualdade dos grupos aqui dis-
cutidos ao mercado de trabalho e o Brasil daria passos importantes
para se tornar, de fato, uma sociedade mais democrática.
Mesmo antes das contribuições teórico-sociológicas de Flores-
tan Fernandes, há registros da importante atuação do movimento
negro no histórico de longos esforços de denúncias concernentes ao
56 racismo no Brasil e em prol da diminuição de desigualdades.
Foi a participação ativa dos diversos movimentos negros que
tornou possível ser ouvida a prédica de que seriam necessárias de-
terminações legais para que algumas distorções fossem corrigidas.
Entre os grupos estruturados, podemos citar a frente negra brasileira
que, nos anos 1930, já se empenhava no compromisso de luta por
uma educação que incluísse a história da África e dos povos negros,
assim como o combate de práticas discriminatórias sofridas por alu-
nos no ambiente escolar.
Nos anos 1970, o Movimento Negro Unificado (MNU) conti-
nuou a levantar a questão e na década de 1980, o Movimento Social
Negro, contando com a participação de intelectuais e pesquisadores
da área de educação, produziram debates que propunham medidas
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

de valorização da diversidade étnico-racial; a necessidade de se co-


nhecer a história e a cultura dos afro-brasileiros para que esses fos-
sem respeitados e valorizados como participantes e construtores da
história do país. As perspectivas que já se encontravam presentes
nas propostas iniciais eram que o racismo ocorre, não somente, mas,
também, por ignorância. Agride-se, discrimina-se o “outro” por des-
conhecer a sua história, seu legado, seus valores, suas contribuições.
A proposta, que foi ganhando contornos cada vez mais delinea-
dos, como os que conhecemos no presente, já trazia em seu bojo a
clareza de que os objetivos seriam realizados com maior eficácia se
ocorressem a partir de conteúdos ministrados e debates realizados no
ambiente escolar. Evidentemente, sem excluir as demais possibilidades,
lugares, espaços e responsabilidades de outros grupos e sujeitos. Não
podemos ignorar que, contraditoriamente ao que se pode esperar, o 57
ambiente escolar ainda é o espaço no qual muitas vítimas sofrem as
primeiras manifestações racistas, que deixam marcas indeléveis em
sua alma, assim, exatamente por isso se faz tão urgente a tarefa de tra-
balhar conteúdos e propor reflexões que incluam essas questões.
Encerraremos essa parte com duas constatações claras. A pri-
meira trata-se do fato de que, a partir dos dados empíricos, é nítida
a situação de desequilíbrio e desvantagem entre a população negra
e “branca” e isso deixa evidente que os desafios para governantes e
sociedade civil permanecem grandes e devem ser enfrentados. A se-
gunda, segue no sentido de afirmar que, a despeito do contexto cla-
ramente desfavorável, não podemos negar avanços que se estendem
em diversos aspectos. Um deles, conforme já citado, refere-se ao fato
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

de que crescem os índices daqueles que se autodeclaram como “ne-


gros”. Devido ao grau de miscigenação entre a população brasileira,
acrescentado o fato da desfavorável realidade social e das inúmeras
imagens negativas relacionadas ao negro, reconhecer-se e auto decla-
rar-se como negro tem um significado relevante, pois trata-se, fun-
damentalmente, de um posicionamento político.
Além de considerarmos as implicações das múltiplas lutas do
movimento negro, no sentido de defender que essa identidade fosse
assumida por esse grupo étnico (lembremos de campanhas que cir-
cularam, do tipo “100% negro”; “Sou negro, sou lindo”), não pode-
mos desconsiderar o fato de que algumas das ações afirmativas têm
favorecido, por motivos pragmáticos, que esse número se amplie.

58
Políticas Afirmativas e Direitos Humanos

Torna-se necessário, ao tratar sobre elas, definir o que se enten-


de por Políticas — ou Ações — Afirmativas. São entendidas como
medidas de reparação ou como um “conjunto de ações políticas diri-
gidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para a
oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens
e marginalizações criadas e mantidas por estrutura social excluden-
te” (BRASIL, 2013, p. 85). Conforme mostramos, não devem ser in-
terpretadas como “dádivas” de Governos — embora não se ignore
que algumas vertentes políticas sejam mais e outras menos simpáti-
cas à ideia — mas, resultado de lutas da comunidade afro-brasileira.
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

Também é importante dizer que a implementação de polí-


ticas afirmativas não é uma “invenção brasileira”, ou seja, local.
A prática está dentro de um panorama mais amplo pois, além de
atender ao determinado pelo Programa Nacional de Direitos Hu-
manos, segue compromissos internacionais assumidos pelo Brasil
e demais nações, com o objetivo de combater o racismo e as dis-
criminações (Convenção da UNESCO, 1960; Conferência Mun-
dial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Discriminações Correlatas, 2001).
O exercício da cidadania está intrinsicamente ligado à apreen-
são do significado e exercício de posse dos direitos humanos que se
estendem em civis, políticos, econômicos, sociais, culturais. Em seu
“Preâmbulo”, na Declaração Universal dos Direitos Humanos lemos:
“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos 59
os membros da família humana e de seus direitos iguais e inaliená-
veis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
A ideia de humanidade, que nada mais é que a apreensão do ser
humano como um ser que deve ser visto como dotado desses direi-
tos inalienáveis — igualdade e de liberdade — tem sido a orientação
para as sociedades e culturas que se pretendem “modernas”. Con-
tudo, à medida que o significado e o alcance dessa ideia moderna
de humanidade foram se aperfeiçoando, viram-se atravessadas por
tensões entre as duas exigências. Especialmente porque a extensão
desses direitos universais esbarra em algumas situações, em choques
de interesses, visões de mundo, noções distintas sobre quem e como
estes devem ser colocados em prática.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Nota-se, no trecho citado, a visão de que, no exercício pleno da


cidadania não deve estar excluída a possibilidade de que os mais di-
versos grupos conheçam sua história, manifestem sua cultura em si-
tuações de liberdade e igualdade.
A Constituição brasileira de 1988, no artigo 3º, afirma que a Na-
ção, seus governantes devem trabalhar para oferecer condições para
que os dois princípios magnos — liberdade e a igualdade — sejam
estendidos a todos os cidadãos, sendo grupos “minoritários” ou não.6
Entre os objetivos estabelecidos ali, lê-se:

I - Construir uma sociedade livre, justa e solidária;


II - Garantir o desenvolvimento nacional;
III - Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
60 e regionais;
IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Portanto, entendemos que as ações em curso, implantadas pelo


MEC (Ministério da Educação e Cultura) respondem às expectativas
de setores da sociedade que desejaram ver o Estado sair da “neutra-
lidade” e assumir responsabilidades, aderindo aos principais instru-
mentos de direitos internacionais de promoção, defesa e proteção aos
direitos humanos; representam, conforme assinalado, o reconheci-
mento da luta dos diversos movimentos por equidade de acesso e


6
A concepção aqui presente sobre “minorias” ou “grupos minoritários” não se restringe à
quantidade numérica, mas contempla, muito mais, a questão das relações de poder.
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

permanência na universidade. São, portanto, parte da responsabili-


dade do Estado em contemplar, por meio de políticas públicas, a pro-
moção e valorização da diversidade dos grupos étnico-culturais.
Traduzem, ainda, parte da premissa de que a temática da edu-
cação para as Relações Étnico-Raciais não deve ser uma atribuição,
ou um tema e responsabilidade voltados, somente, a grupos ligados
ao movimento negro ou de “simpatizantes”. A irrefutável relevância
da participação do Estado está no fato de ser o agente que viabiliza as
políticas públicas de promoção da igualdade racial e de combate ao
racismo, especialmente, a partir do campo da educação.

As Políticas Afirmativas voltadas para


os distintos níveis da Educação 61

As resoluções, propostas e exigências do MEC são interpretadas


como experiências de “ações afirmativas”. Inicialmente, não devemos
perder de vista que as ações são diversificadas. Eventualmente, quan-
do esse tema é discutido em uma roda informal, pensa-se, de pronto,
nas “cotas”. Elas são parte da questão, mas as políticas não se res-
tringem a elas e, exatamente por isso, entendemos ser importante dar
uma visão mais extensa sobre a amplitude do assunto.
A aprovação e implementação da LDB — Lei 9394/96 (Lei de
Diretrizes e Bases), de dezembro de 1996 e os PCNs (Parâmetros Cur-
riculares Nacionais), foi um dos primeiros e importantes passos na
efetivação das políticas públicas voltadas à temática. O documento
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

produzido trouxe orientações e referências relacionadas ao tema da


valorização da pluralidade cultural, indicando que deveria ser tratado
de forma transversal e externando a concepção de que as instituições
educacionais têm melhores condições de enfrentamento estratégico
de culturas e práticas discriminatórias e racistas institucionalizadas
e, muitas vezes presentes no cotidiano do espaço escolar.
As Políticas Afirmativas também passam pela criação de coor-
denadorias especiais, secretarias de ensino ligadas ao MEC, leis que
regulamentam as práticas nas instituições de ensino, produção de
materiais, formação de professores e outras medidas, que trataremos
no decorrer deste texto. Quem acompanha a questão, sabe que os
resultados encorajadores revelados por algumas ações indicam um
rumo positivo nas políticas públicas dos últimos anos.
62 A criação da SEPPIR, (Secretaria Especial de Políticas de Pro-
moção da Igualdade Racial), em 2003, em nível federal, reivindicação
antiga do movimento negro em âmbito nacional e internacional, foi
um marco. A SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabe-
tização, Diversidade e Inclusão), em 2004, concebida para fornecer
meios institucionais para enfrentar as diversas facetas das desigualda-
des educacionais do país foi outro marco. Seu aparecimento foi fruto
da demanda pela implementação de políticas de inclusão educacional,
contemplando os fatores específicos dos contornos de desproporções
que perpassam as diversidades étnico-raciais, culturais, de gênero, so-
cial, ambiental e regional no país (BRASIL, 2013, p. 15). As Secretarias,
nos mais distintos níveis (Federal, Estadual e Municipal), têm o com-
promisso de propor e/ou apoiar fóruns de educação em instituições
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

públicas ou privadas que proponham debates acerca dos temas da va-


lorização das diversidade étnico-racial e cultural.
Em uma outra dimensão das ações, está o destaque para datas sig-
nificativas para a população negra — nos âmbitos regionais e nacionais.
Os dias 13 de maio, 20 de novembro e 21 de março são algumas delas. A
primeira, não mais vista como uma menção ao ato de “dádiva” da Princesa
Isabel, mas, ressignificada como o “Dia Nacional de Denúncia contra o Ra-
cismo”, priorizando o dia como espaço para denúncia das repercussões das
políticas de eliminação física e simbólica da população negra no pós-abo-
lição e de divulgação dos significados da Lei Áurea para os afro-brasileiros
(BRASIL, 2013, p. 95) (BRASIL, 2004). O 20 de novembro, aniversário da
morte do líder negro Zumbi, do Quilombo de Palmares, foi escolhido pe-
los movimentos sociais para celebrar o “Dia da Consciência Negra”. 21 de
março, data menos citada entre nós, é uma data que não se circunscreve 63
aos limites nacionais, pois trata-se do “Dia Internacional pela Eliminação
da Discriminação Racial”. Pode-se imaginar que se trata apenas de sim-
bolismos, mas as comemorações têm uma função importante, pois opor-
tunizam condições para debates, conscientização e denúncias acerca das
tensões raciais ainda vigentes entre nós e no mundo inteiro.
Contemplando medidas do ponto de vista legal, o fato da lei nº
10.639/03 ter sido incorporada na LDB, foi outro passo importante.
Assinada em 9 de janeiro de 2003, alterou a de nº. 9.394/96, para in-
cluir no currículo oficial das redes de ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira. Nessa mesma direção,
a Resolução CNE/CP nº 01/2004, homologada em junho de 2004,
instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-


-brasileira e Africana e, em 2008, buscando atingir um nível de in-
clusão mais amplo, a Lei 11.645/08, estabeleceu a obrigatoriedade do
ensino de História e Cultura Indígenas.
A partir disso, foram estabelecidos princípios para o fortaleci-
mento de identidades e direitos, bem como determinações que se-
guem o objetivo de incluir a discussão da questão da educação para
as relações étnico-raciais como parte integrante da matriz curricular,
tanto nos cursos de licenciatura, para Educação Infantil, nos anos ini-
ciais e finais da Educação Fundamental, Educação Média, Educação
para Jovens e Adultos.
Para a Educação Básica, nos diferentes níveis e modalidades, a
proposta para o ensino de Cultura Afro-brasileira e Africana indica
64 que o conteúdo deve aparecer, especialmente, em disciplinas como
História, Literatura, Educação Artística, mas isso não exclui a possi-
bilidade de participação de outras matérias ou que a temática esteja
presente nos laboratórios de ciência e informática, bibliotecas e salas
de leitura, áreas de recreação, quadras de esporte e outros ambientes
escolares (BRASIL, 2013, p. 94).
No que tange à História e Cultura Africana, algumas das deter-
minações do documento passam pela indicação de que a ênfase não
recaia somente na história dos sofrimentos dos seus povos, nas denún-
cias de pobreza, doenças e discriminações que atingem o Continente,
mas, que se ressaltem valores positivos e identitários; articulação com
a história dos afrodescendentes no Brasil, abordagem sobre reinos e ci-
vilizações que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

humanidade; tratamento sobre o tráfico, a formação compulsória da


diáspora, a escravidão — sob a perspectiva dos africanos; as lutas por
liberdade e independência política dos países africanos. O ensino dessa
temática afro-brasileira abrange outros conteúdos, iniciativas e organi-
zações negras, incluindo a história dos quilombos e remanescentes de
quilombos (BRASIL, 2013, p. 95). Não deixando de incluir referências
a personagens nacionais e da história universal — suas atuações profis-
sionais e contribuições de criação tecnológica, artística ou lutas sociais.
Pode-se observar que as metas estabelecidas nos PCNs se coadunam
com a proposta elaborada na ‘Declaração dos Direitos do Homem’ que traz
proposições que ressaltam a importância da cultura como forma de um in-
divíduo realizar a sua personalidade. Neste sentido, seguindo orientações
das propostas elaboradas por membros e representantes da ONU, a edu-
cação tem um papel que deve ser assumido, que é apresentar a diversidade 65
cultural não somente como um bem que se deve preservar, mas, também
um recurso que é necessário promover, nomeadamente em domínios nor-
malmente distanciados de uma noção estrita de cultura (ONU/UNESCO,
2009, p. 3). A percepção profunda da existência da diversidade cultural
deve redundar em questionamento e alternativas para mudanças de pers-
pectivas e comportamentos que dizem respeito à visão sobre o “outro”.
A convicção que move os idealizadores das alterações curri-
culares é/foi a premissa de que, por meio da educação e da infor-
mação, preconceitos e estereótipos podem ser desconstruídos. A
proposta de incorporar os outros elementos étnicos que formam
“o brasileiro” resulta da adoção da compreensão de que a educa-
ção deve ser plural e inclusiva e isso representa tomar dimensão e
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

conhecimento de suas práticas culturais e suas histórias. Parte-se


da premissa que uma formação mais abrangente é uma medida
relevante na busca do propósito de superação de manifestações de
racismo e preconceito racial vigentes.
De acordo com os teóricos e militantes, a obrigatoriedade de in-
clusão de História e Cultura Afro-brasileira e Africana é algo que
não se restringe ao interesse da população negra, mas “diz respeito a
todos os brasileiros, uma vez que devem ser educados enquanto cida-
dãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica,
capazes de construir uma nação democrática” (BRASIL, 2013, p. 91).
Parte dos avanços concernentes ao tema tem sido mais bem per-
cebidos e mais efetivos na Educação Básica, mas, segundo destaca
Nilma Lino Gomes (2008, p. 102), a sanção da Lei 10.639/03 e a imple-
66 mentação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana são medidas de ação afirmativa voltadas para
a educação básica, mas que pressionam, também, o ensino superior.
Dar conta dos desafios propostos pressupõe a necessidade de ca-
pacitação de professores e acesso a materiais didáticos. Dois suportes
didático-pedagógicos importantes que podem ser mencionados são
os kits do material A Cor da Cultura (2005) e a tradução e atualiza-
ção dos oito volumes da coleção História Geral da África (2010), que
foram distribuídos para instituições de ensino do território nacional.
A formação continuada presencial e à distância de professores (as)
nessa temática também foi compromisso e responsabilidade assumi-
dos por estes órgãos públicos, a partir da implantação da Lei 10.639/03.
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

Em 2013, quando a Lei 10.639/03 completava 10 anos, foi or-


ganizada uma comissão pelo MEC para a formulação do Plano Na-
cional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana. É mais um passo no processo
ligado às políticas afirmativas de Educação para as Relações Étni-
co-Raciais. Além de tratar dos objetivos do Plano Nacional — ques-
tões desenvolvidas neste texto — o documento explana as atribui-
ções dos sistemas de ensino, explicitando as ações de cada um, nos
níveis federal, estadual e municipal. Também, dos Conselhos de
Educação — rede pública e privada; as responsabilidades das IES
(Instituição de Ensino Superior), coordenações pedagógicas, gru-
pos colegiados e núcleos de estudos.
A proposta de não deixar o tema restrito à educação básica tem 67
sido perseguida. EJA (Educação de Jovens e Adultos), a Educação
Tecnológica e Formação Profissional e a Educação Escolar Quilom-
bola também estão contempladas nas diretrizes estabelecidas. Para
o Ensino Superior, o MEC estabeleceu que os cursos das IES não se
eximam de apresentar e discutir temas ligados à educação para as
relações étnico-raciais. Especialmente os de Licenciatura.
Ainda deve ser sublinhado que o Plano Nacional de Implementação
das Diretrizes, onde se estabeleceram eixos, tais como: 1) Fortalecimento
do Marco Legal; 2) Políticas de Formação de Gestores (as) e Profissionais
da Educação; 3) Políticas de Material Didático e Paradidático; 4) Gestão
Democrática e Mecanismos de Participação Social; e 5) Avaliação e Mo-
nitoramento. A partir deles, foram estabelecidas metas, nomeando os
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

atores envolvidos (MEC, INEP [Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-


sas], SEPPIR, SEE [Secretaria de Educação Especial], Fóruns de Educa-
ção e Diversidade Étnico-Racial, SECADI, MP [Ministério Público], IES,
SME [Secretarias Municipais de Educação], SEE [ Secretarias Estaduais de
Educação], SESU [Secretaria de Educação Superior], CONSED Conselho
Nacional de Secretários de Educação], NEABs [Núcleos de Estudos Afro-
brasileiros] e as respectivas responsabilidades.
Ainda dentro da categoria “políticas afirmativas”, voltadas ao Ensi-
no Superior, estão dois programas federais que visam oferecer meios de
acesso e permanência às universidades de grupos étnicos e sociais menos
favorecidos historicamente. O primeiro deles, o PROUNI (Programa Uni-
versidade para Todos), dirigido aos estudantes egressos do Ensino Médio
da rede pública ou da rede particular na condição de bolsistas integrais,
68 desde que a renda per capita familiar não ultrapasse três salários míni-
mos. Segundo dados do MEC, 47,9% dos beneficiados é de negros (pardos
e pretos) (BRASIL, 2013, p. 11). O outro, o REUNI (Programa de Apoio
a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) que,
associado ao SISU, por meio de notas obtidas na prova do ENEM, tem
ampliado as possibilidades de acessos às Universidades Públicas.

Cotas — acesso e permanência às universidades


— justificativas, concordâncias e divergências

Conforme demonstrado no presente texto, as políticas (ou


ações) afirmativas não ficam restritas às cotas, mas elas não estão
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

excluídas das demandas do movimento negro, que as entende como


um instrumento eficiente para possibilitar maior igualdade de aces-
so e permanência do negro nas universidades públicas. Não é pro-
pósito desse texto fazer um longo exame do tema, mas não pode-
mos, tampouco, ignorá-lo.
Seja por questões ideológicas ou fruto da configuração de um
quadro de desinformação acerca do cenário histórico das assimetrias
étnico-raciais brasileiras, é comum ouvirmos opiniões contrárias às
políticas afirmativas. Entretanto, é necessário avaliar se os argumen-
tos são sustentáveis. Procuraremos discutir algumas das alegações
contrárias, problematizando-as, ainda que sem espaço e tempo para
o necessário aprofundamento que o tema requer.
Faz-se necessário sublinhar que o sistema de cotas não está res-
trito à questão étnico-racial. Quando passa pela discussão da cor- 69
reção de desigualdades de oportunidade de acesso a espaços, a am-
bientes de trabalho, a categoria gênero tem sido debatida. No caso do
acesso às universidades, as interfaces classe-raça aparecem no centro
dos debates, que têm se mostrado candentes. Não há consenso entre
os diversos setores da sociedade: leigos, políticos ou intelectuais.
A partir de visões de mundo, conhecimentos e interesses, cada
grupo debate a necessidade ou não e/ou se deveriam ser étnico-ra-
ciais, sociais ou socioracias? Que porcentagem seria destinada? 20%?
50%? Um dos argumentos contrários ao estabelecimento de políticas
reparadoras baseadas em quesitos raciais é de que a exclusão social
no Brasil não está determinada pela cor da pele, mas pela pobre-
za. Assim, advogam que apenas critérios econômicos poderiam ser
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

válidos para o estabelecimento de cotas em vestibulares. Algumas


universidades que adotaram o sistema de cotas o têm feito de forma
concomitante com políticas afirmativas usando critérios sociais, pri-
vilegiando o público amplo de escolas públicas.
Porém, para os defensores do critério étnico-racial, é importan-
te que não se perca de vista e nem se negue o grau histórico de ex-
clusão das populações negras, o que demanda, na visão desses, uma
ação específica em favor da população negra. 7
Entre os (as) que são contra as cotas, outro argumento fre-
quente passa pelo debate acerca da constitucionalidade das ações
afirmativas. Argumentam que as cotas “ ferem o princípio da igual-
dade”, além de “subverterem” o princípio da “meritocracia”. Sabe-se
que vestibulares e concursos públicos são uma forma, mas não a
70 única maneira de selecionar candidatos e não garantem, necessa-
riamente, a classificação dos mais inteligentes e capazes para as va-
gas. Outros afirmam que o acesso de alunos reduziria o nível das
universidades e que o problema maior não seria o acesso do negro
à universidade, mas a permanência e conclusão.
Para analisar esse argumento, é interessante deslocar o olhar para
os dados de pesquisas recentes a respeito do desempenho de alunos
cotistas em faculdades públicas e privadas. Nelas, revela-se que o de-
sempenho de alunos cotistas é, em determinados casos, até superior
que os demais alunos no ensino superior. Na Universidade Federal de
Minas Gerais, por exemplo, que passou a adotar políticas afirmativas


7
“Inclusão Social. Um debate necessário? ” Disponível em: <http://bit.ly/2pe1r20>. Acesso:
03 mar. 2016.
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

em 2013, as notas dos cotistas chegam a ser até 50% superiores aos dos
não cotistas em alguns cursos. Em pesquisa realizada na UnB, não foi
encontrada diferença significativa entre os dois grupos.8
Quanto aos argumentos de índices de maior evasão, suposta-
mente causados pela falta de qualificação dos alunos, as pesquisas
mostram que os cotistas têm demonstrado mais perseverança e con-
cluem os cursos tanto ou mais que os demais universitários.
Sobre o argumento da suposta inconstitucionalidade, em 2012,
foi levada uma ação ao STF Supremo Tribunal Federal contra o pro-
grama de cotas raciais, na UnB. A análise realizada pelos membros
daquela corte levou ao entendimento unânime dos Ministros que as
ações afirmativas, longe de criarem qualquer discriminação, são fa-
tores de inclusão social e de correção de desigualdades históricas e
meio de oportunidades de acesso à educação e ao trabalho, o que 71
está previsto na Constituição. Neste mesmo documento, consta que
cabe ao  Estado o dever da promoção da equidade.9 A partir dessa
compreensão, a tese foi rejeitada.
Um dos argumentos mais polêmicos, e que suscita debates can-
dentes, pela destituição de fundamentos sólidos sobre o que representa
e o que está por traz do racismo, segmentos argumentam que “as cotas,
sim, produziriam o racismo” ou acirrariam as tensões raciais.
O antropólogo Peter Fry, é um desses intelectuais que protagonizam
o debate que se encarrega de indagar se as políticas de identidades “raciais”,


8
“Diferença de desempenho entre cotistas e não cotistas é de apenas 0,25” Disponí-
vel em: http://bit.ly/2oEWk8a. Acesso em: 03 out. 2016.

9
Ver Políticas públicas de ação afirmativa e reserva de vagas em universidades públicas — 1.
Disponível em: <http://bit.ly/2ootEE3>.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

de modo especial, da identidade negra, não ameaçariam a unidade ou a


identidade nacional, por um lado e, por outro, não reforçariam a exaltação
da consciência racial. Fry (2005 apud MUNANGA, 2006, p. 53) escreve:

a ação afirmativa não veio somente para compensar negros pelo passado
de escravidão e pelo presente da discriminação. Veio desfazer a ‘mistura
racial’ para produzir só duas raças. Antes uma sociedade de classes que
recusa reconhecer as identidades raciais, o Brasil é agora imaginado como
uma sociedade de ‘raças’ e ‘etnias’ distintas. As políticas de ação afirma-
tiva racial terão a consequência de estimular os pertencimentos ‘raciais’,
assim fortalecendo a crença em raças.

Em uma linha oposta, outro intelectual, Kabengele Munanga,


72 refuta esse argumento que trata de afirmar que as cotas “dividiriam”
o Brasil em “raças”. Para este respeitado antropólogo, o debate que
traz maiores contribuições é “aquele que acompanha a dinâmica da
sociedade através das reivindicações de seus segmentos e não aquele
que se refugia em uma teoria superada de mistura racial”.
Para Munanga, esse discurso foi responsável por congelar, por
longos anos, o debate sobre a diversidade cultural no Brasil, que era
visto como uma cultura sincrética e como uma identidade unicamen-
te mestiça. Esse intelectual escreve que:

Não vejo como, salvo numa imaginação criativa, a ação afirmativa possa des-
fazer a “mistura racial”, desafiando as leis da genética humana e a ação volun-
tarista dos homens e das mulheres, que continuarão a manter os intercursos
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

sexuais interraciais. Se as leis e barreiras raciais contra relações sexuais inter-


-raciais nos Estados Unidos e na África do Sul (apartheid) não conseguiram
desfazer a “mistura racial”, como é que isso pode ser possível somente no Brasil
por causa das cotas? Isso seria atribuir à ação afirmativa um poder mágico que
na realidade não possui (MUNANGA, 2006, p. 53).

Considerações finais

Distanciando-nos dos embates intelectuais, e partindo para


os fatos, esses atestam que não há evidências de que as políticas
de inclusão de negros, pardos e indígenas, adotadas em institui-
ções públicas no Brasil há mais de uma década, tenham provoca-
do conflitos e tensões maiores do que as já existentes. Pelo con- 73
trário, a inclusão tem sido benéfica para aumentar a diversidade
étnica e social nas universidades públicas. Entre os poucos casos
existentes, seria interessante avaliar se as cotas “produziram esse
racismo” manifestado ou se apenas tornou evidente e patente um
racismo que já se encontrava em estado de latência e encontrou
uma justificativa para se expressar.
Para quem é contrário a essa política afirmativa, outra ale-
gação recorrente é que o sistema de cotas mascararia as deficiên-
cias da Educação Básica. No entender desse grupo, o Estado de-
veria investir maiores recursos nos ciclos anteriores e não buscar
um “remendo”, por meio das cotas. Ainda que não ignorem os
problemas apontados na Educação Básica e concordem que esse
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

seria o plano ideal, os defensores das cotas como acesso às uni-


versidades argumentam que isso não impede que sejam adotadas,
simultaneamente, políticas compensatórias para as gerações que
tiveram um ensino marcado por alguns déficits.
Alguns entendem que o caráter pontual e centralizado com
as quais as políticas são aplicadas traz dificuldades para que os
resultados sejam mais animadores para os segmentos direta-
mente envolvidos. Por sua vez, outros consideram que as políti-
cas de caráter universal — o fato de que há um número cada vez
maior de instituições e órgãos públicos e privados que passaram
a adotar programas de inclusão e/ou combate à discriminação e
o preconceito — tornam impossível desagregar o que é impacto
de ações afirmativas e o que é resultado das políticas de caráter
74 universal. O que nos é bastante evidente, dentro da discussão
“pontual”/ “universal” é o fato de que as mobilizações do Mo-
vimento negro e a promoção do debate sobre racismo no Brasil
têm obtido resultados que não devem ser interpretados como
desprezíveis, afinal, passaram a compor as pautas e ações de ór-
gãos públicos e privados, a despeito de estarem longe do que se
imagina e se deseja como ideal.
Algumas indagações devem fomentar a continuidade de es-
tudos e do diálogo intelectual. Que impactos as cotas e demais
ações afirmativas têm surtido para o avanço da promoção social
e mudanças na vida dos (as) negros (as) brasileiros (as) nos úl-
timos anos? Encerramos reforçando a necessidade do compro-
metimento de amplos setores da sociedade — principalmente o
Políticas afirmativas para a educação das relações étnico-raciais: definições, reflexões e desafios

ambiente escolar, independente do ciclo ou nível - nessa deman-


da de discutir e propor que a cidadania, o respeito à dignidade
humana sejam um direito de todos (as).

Referências

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Rio de Janeiro, Aimberê, ano 5, n. 31, set. 2006.

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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Institui Diretrizes


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Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012.
Do nacional ao diaspórico:
transformações nas identidades
negras brasileiras no século 20
Flavio Thales Ribeiro Francisco1

Em 2008, após uma longa disputa pela presidência dos EUA, Ba-
rack Obama, até então senador estadual pelo estado de Illinois, foi
eleito. As eleições norte-americanas, geralmente, tratadas como uma
festa cívica para celebrar uma democracia estável, entretanto, trans-
formou-se em um evento mais que especial: pela primeira vez os EUA
elegiam um afro-americano. Logo após a confirmação do resulta-
do, com uma grande repercussão nos noticiários norte-americanos
e mundo afora, em uma festa preparada pelo Partido Democrata,
Barack Obama subiu ao palco diante de milhares de eleitores para


1
Doutor em História Social da Universidade de São Paulo. Mestre em História pela Universidade de
São Paulo. Graduado em História pela Universidade de São Paulo.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

comemorar a sua vitória ao lado da esposa e das filhas. A imagem


de uma família negra, que habitaria a Casa Branca por pelo menos
quatro anos, teve grande apelo entre os norte-americanos, principal-
mente entre a população negra.
Pela primeira vez, o bairro negro do Harlem, em Nova Iorque
,foi centro de atenção nas eleições, com moradores tomando as ruas
para celebrar o primeiro presidente negro dos EUA. Nas esquinas,
pessoas dançavam ao som de James Brown e Michael Jackson, dois
grandes ícones da música negra. A euforia em torno de Obama entre
os negros, e para a sociedade em geral, tinha um significado histó-
rico, a nação norte-americana, marcada pela violência racial, dava,
supostamente, um passo importante para a superação dos problemas
raciais. Mas não somente isso, a família Obama passou a representar
78 uma imagem de excelência entre os afro-americanos, ajudando a aba-
lar um imaginário racista construído historicamente que reforçava a
inferioridade inata das populações negras.
O efeito Barack Obama não se restringiu aos EUA e teve gran-
de repercussão entre os brasileiros também. Assim como nas co-
munidades afro-americanas, os negros do Brasil também identifi-
caram na família do presidente uma referência de dignidade negra
que poderia ter um efeito pedagógico sobre todos os negros da diás-
pora. Nesse sentido, a imagem do presidente Obama seria evocada
e reivindicada por populações negras além dos EUA, reforçando a
capacidade de indivíduos negros para o exercício de ocupações de
alta qualificação, assim como a direção de uma das nações mais
poderosas do mundo.
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

O objetivo deste capítulo é ir além da discussão das representa-


ções do presidente norte-americano ou os seus efeitos globais, mas
compreender a construção de identidades negras no Brasil ao longo
do século 20, demonstrando o diálogo destas com a identidade na-
cional brasileira e também com a ideia de uma identidade diaspórica,
como um pertencimento a uma comunidade transnacional marcada
pela escravidão, o racismo e o colonialismo.

O nacional e o diaspórico na imprensa negra

Ainda que a noção de diáspora2 e identidades transnacionais


sejam recentes, desde a década de 1920 é possível perceber tanto a
formação de uma identidade entre as diversas comunidades negras 79
no país, como o sentimento de uma experiência compartilhada com
populações afrodescendentes nas Américas e com os africanos. Na
cidade de São Paulo, onde se formou uma imprensa negra com gran-
de variedade de publicações, a tendência nos primeiros anos do sécu-
lo 20 foi o de reivindicar a identidade nacional. Nesse período, de in-
tensa imigração de trabalhadores, formaram-se, principalmente na
cidade de São Paulo, comunidades étnicas de diversas origens. Italia-
nos, espanhóis, portugueses, libaneses e outros grupos, criaram suas
redes de sociabilidade e fundaram diversas instituições que ainda

2
Aqui o termo “diáspora” é utilizado como referência ao processo de dispersão de
povos africanos para outros continentes ao longo história, formando comunidades
negras fora da África.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

hoje fazem parte da paisagem da cidade. No caso dos negros não foi
diferente, com a formação de uma rede de clubes sociais e, poste-
riormente, a circulação de jornais que ilustravam as experiências da
população negra paulistana (DOMINGUES, 2004).
Em um primeiro momento, as publicações que circulavam
entre as associações negras retrataram as atividades recreati-
vas de uma pequena parcela de negros ascendentes. Esse grupo,
formado por lideranças empregadas no funcionalismo público,
procurava se colocar como uma referência para o resto da po-
pulação negra de São Paulo, considerada como alienada e não
preparada ainda para um longo período de transição entre a
escravidão e o capitalismo (BASTIDE, 1973; FERRARA, 1985).
A formação dos negros ascendentes deveria servir de modelo,
80 demonstrando um caminho árduo de trabalho duro, estudos e
renúncia ao lúdico, ainda que muitos clubes negros tenham se
caracterizado pelas festividades.
Essas entidades fomentaram a imprensa negra de São Paulo que,
com o passar dos anos, foi apresentando um conteúdo cada vez mais
combativo. O Alfinete (1915), um dos primeiros jornais a circular en-
tre a comunidade negra paulistana, caracterizou-se mais por suas co-
lunas sociais, alfinetando os negros que não seguiam as regras de eti-
queta que orientavam o grupo, como o cuidado com as vestimentas,
postura adequada no momento da dança ou controle no consumo de
álcool. Contudo, o mesmo periódico não deixou de publicar alguns
artigos que discutiam o problema do preconceito na sociedade brasi-
leira. Essa abordagem foi ganhando cada vez mais espaço ao longo da
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

década de 1920, à medida que novas publicações passavam a circular


entre a comunidade negra de São Paulo.
Cinco anos depois, já era possível identificar mudanças na abor-
dagem do conjunto de jornais dos negros da capital paulista e de al-
gumas cidades do interior de São Paulo. Em 1923, por exemplo, o
Getulino, na cidade de Campinas, notabilizou-se pela denúncia do
preconceito de cor e pelo debate sobre a situação dos negros brasi-
leiros. Já em São Paulo, O Clarim da Alvorada, de 1924, inicialmen-
te uma publicação de caráter literário, assumiu ao longo da década
uma postura combativa, com textos problematizando o processo de
marginalização da população negra paulista no pós-abolição. Logo
o jornal publicado por Jaime de Aguiar e José Correia Leite se trans-
formaria em um fórum de discussão de lideranças negras interessa-
das em uma articulação capaz de intervir na realidade. Estava, assim, 81
aberto o caminho para o ativismo negro através da publicação de
periódicos, que posteriormente ganharia fôlego com os jornais como
Progresso (1931) e a Voz da Raça (1933)
Em 1926, Lino Guedes e Gervásio de Moraes, duas das impor-
tantes vozes do jornal Getulino, juntaram-se ao grupo que publicava
O Clarim da Alvorada, reforçando a rede de ativistas negros que se
formava na cidade de São Paulo. No mesmo ano, foi criado o Cen-
tro Cívico Palmares, espaço que se transformaria em importante cen-
tro de mobilização dessas lideranças negras da cidade. Um dos atos
mais importantes do Centro Cívico Palmares foi o protesto contra
a discriminação racial na Guarda Civil do Estado de São Paulo, em
1928. Os ativistas negros fizeram um apelo para que as autoridades
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

encaminhassem a contratação de oficiais negros. Apesar do compro-


misso do governador Júlio Prestes para mudar a situação, a determina-
ção de contratação somente foi efetivada dois anos depois com a inter-
venção de Getúlio de Vargas após a pressão de Frente Negra Brasileira.
Essa organização foi fundada em 1931, após esvaziamento
institucional causado pelo fim do Centro Cívico Palmares (DO-
MINGUES, 2005). A Frente Negra foi um marco no ativismo
negro e paulista, com a mobilização de um enorme número de
sócios e a criação de unidades em outras cidades. Em 1936, os
membros da organização avaliaram a possibilidade de transfor-
mar a organização em um partido, indicando candidatos que pu-
dessem levar a causa dos negros brasileiros para a arena política,
contudo o golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas, em 1937, in-
82 viabilizou o projeto dos frentenegrinos.
Entretanto, o mais importante aqui é compreender o modo
como esses grupos imaginaram o lugar do negro na sociedade
brasileira. Os jornais da imprensa negra, o Centro Cívico Palma-
res e a Frente Negra Brasileira fizeram parte de um longo pro-
cesso de maturação do ativismo negro de São Paulo que confron-
tou os projetos racistas de intelectuais e políticos que pretendiam
transformar o Brasil em uma nação predominantemente branca,
apagando traços das populações indígenas e negras (ANDREWS,
1998). No pós-abolição, principalmente, em cidades que recebe-
ram os trabalhadores imigrantes, as autoridades públicas contri-
buíram de maneira efetiva para a marginalização de pardos e ne-
gros e a promoção de uma mão de obra de origem europeia.
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

Os projetos de imigração de trabalhadores, principalmente de


procedência europeia, haviam sido concebidos em um ambiente
no qual as ideias de raça biológica circulavam fortemente no cam-
po científico, influenciando uma série de políticas de controle sobre
as populações não brancas. Intelectuais brasileiros manifestaram o
pessimismo com o futuro de uma nação com uma enorme quanti-
dade de negros e pardos, grupos raciais considerados inferiores que
comprometeriam o progresso da nação. Raimundo Nina Rodrigues,
que afirmava a inferioridade dos negros e os perigos do processo de
miscigenação no Brasil, foi um eminente representante de um co-
nhecimento produzido no país que problematizava a formação racial
da sociedade brasileira (SCHWARCZ, 2007). A mistura “das raças”,
para ele, decretaria a decadência da população. Contudo, João Batis-
ta Lacerda deu uma grande contribuição e saída ao impasse causado 83
pela presença africana no país, afirmando que a população brasileira
poderia tornar-se branca em décadas através do embranquecimen-
to, a inferioridade dos negros se resolveria na própria miscigenação,
pois seria diluída pela superioridade racial de brancos em um pro-
cesso intenso de imigração.
O debate entre os ativistas negros, que foi registrado nas pu-
blicações da imprensa negra brasileira, questionava esse projeto de
nação que buscava um padrão europeu. Nas páginas dos jornais, os
colunistas, além de denunciarem os casos cotidianos de preconceito,
reforçavam a importância da população negra para a “edificação da
nação”. O argumento era o de que a economia do Brasil, desde o pe-
ríodo colonial, havia se estruturado a partir da força de trabalho de
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

africanos, independentemente dos ciclos econômicos; assim, havia


uma dívida da sociedade com os negros brasileiros. Nas primeiras
décadas do século, com a formação do mercado de trabalho em São
Paulo, os negros se transformaram em uma mão de obra de segunda
classe, ocupando-se em atividades domésticas ou outras fora da in-
dústria (ANDREWS, 1998; BUTLER, 1998). Nesse sentido, a chegada
de trabalhadores estrangeiros não era tratada como passo primordial
para o progresso nacional, mas a negação de uma história marcada
pelo protagonismo de africanos e seus descendentes.
A nação imaginada pelos ativistas deveria reconhecer o papel de
negros e indígenas, afirmando a existência de uma comunidade na-
cional que celebrasse a fraternidade entre as “três raças”. Portanto, as
narrativas que ajudariam a conceber a ideia de democracia racial não
84 foram somente difundidas por elites intelectuais supostamente in-
teressadas em desarticular a militância negra. Os negros brasileiros
— mesmo aquelas figuras que não tinham uma relação direta com a
militância paulista — utilizaram as narrativas das “três raças” como
uma forma de confrontar os projetos de um Brasil europeu. Em um
momento em que a população negra era considerada um problema
para o desenvolvimento da nação, a afirmação de uma fraternidade
racial tinha um caráter progressista, revelando a opção dos negros
pela assimilação à sociedade brasileira. Essa geração insistia em ma-
nifestar o sentimento patriótico.
Entretanto, a demonstração de lealdade pela nação não signifi-
cou necessariamente uma rejeição à identidade negra. Esta, sobretu-
do, em cidades paulistas com grandes concentrações de negros, foi
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

utilizada como um recurso para a mobilização política, construindo,


como vimos anteriormente, redes de entidades pelo estado de São
Paulo. Sendo assim, a luta pela inclusão à nação, deveria reforçar os
laços entre os negros; nação e raça eram categorias que simultanea-
mente estruturavam o protesto desta geração de ativistas. Nos perió-
dicos eram comuns expressões como “homens de cor”, “nossa raça”
e “pretos”, que indicavam o modo como a raça acabou definindo
uma identidade entre os negros ascendentes de São Paulo. Este gru-
po, como dissemos anteriormente, se considerava uma liderança que
deveria promover a ascensão dos negros a partir da denúncia do pre-
conceito, da afirmação de um sentimento patriótico e da definição de
uma imagem da população negra que estivesse alinhada à moderni-
dade brasileira. O negro que emergiu nas páginas da imprensa negra
paulista e no discurso do ativismo não estava associado às expressões 85
culturais de origem africana, mas assimilado a um padrão eurocên-
trico das elites daquele período.
O arranjo identitário dos ativistas negros, com uma identidade
negra sem a marca da africanidade, orientou as narrativas de inclu-
são dos periódicos que procuraram inserir as experiências negras em
um imaginário nacional brasileiro. Uma estratégia muito comum
nos jornais foi a de destacar a trajetória de figuras negras brasileiras
como José do Patrocínio, Juliano Moreira, André Rebouças e Luis
Gama, inserindo-as em uma história dos heróis do Brasil. Entre os
“heróis da raça”, contudo, não havia nenhuma figura feminina, as
mulheres foram representadas pela Mãe Preta, personagem tratada
nas páginas do jornal Clarim da Alvorada e outros como o símbolo
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

da nação, o elo entre negros e brancos no período da escravidão,


marcando sua presença na casa grande como a responsável pelos cui-
dados da prole dos senhores (SEIGEL, 2007).
Posteriormente, a Mãe Preta se transformaria em uma figura
que representaria a hipocrisia das relações raciais no Brasil, com a
celebração da subalternidade da mulher negra na ordem social es-
cravocrata. No entanto, é necessário compreendermos como essa
geração do ativismo negro articulou símbolos e narrativas em uma
perspectiva inclusiva. Se por um lado foi importante a denúncia do
preconceito de cor, por outro foi necessário forjar uma identidade
nacional que contemplasse negros e indígenas. A Mãe Preta, as nar-
rativas sobre a participação dos negros na economia brasileira e a
ascensão de figuras negras que participaram de importantes eventos
86 da história nacional fizeram parte de um amplo repertório de repre-
sentações difundidas através da imprensa negra de São Paulo no in-
tento de promover uma fraternidade racial brasileira.
No entanto, a identidade negra presente nos periódicos não se
restringiu ao contexto nacional, elementos de experiências negras
estrangeiras também foram mobilizados para o debate em torno
da situação do negro no Brasil. Em um primeiro momento os jor-
nais publicaram artigos sobre os EUA e o continente africano com
objetivo de diferenciar a vivência dos negros brasileiros, de negros
sul-africanos e norte-americanos, reforçando que o Brasil, apesar do
preconceito de cor, apresentava um padrão de relações raciais ain-
da propício à inclusão da população negra. Nesse sentido, os EUA e
a União Sul-Africana se transformaram em exemplos de violência
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

racial, demonstrando que a abordagem das lideranças negras deve-


ria ser distinta, evitando manifestar qualquer tipo de particularis-
mo negro e afirmando sempre a importância de uma fraternidade
racial brasileira (FRANCISCO, 2013). Jornais como o Progresso e O
Clarim da Alvorada publicaram inúmeras reportagens sobre eventos
relacionados às manifestações anticoloniais na África e linchamentos
de afro-americanos nos estados do sul dos EUA, confirmando uma
singularidade nas relações entre negros e brancos no Brasil.
Em 1930, entretanto, as experiências estrangeiras começaram
a ser retratadas como exemplos positivos para os negros do Brasil.
O exercício de comparação entre o Brasil e os dois países conside-
rados incontestavelmente como racistas foi deixado de lado e os
jornais abriram espaço para um quadro amplo com mobilizações
políticas e histórias de ascensão. A África que era tratada de forma 87
genérica e como espaço de atraso por vários periódicos negros se
transformou em símbolo de resistência negra, sobretudo a Etiópia e
a Libéria, os únicos países livres do imperialismo europeu naquele
momento. Com relação aos EUA, além de notícias sobre a articula-
ção de negros para confrontar o racismo, a formação de uma classe
média com negros educados em universidades chamou a atenção
dos brasileiros que insistiam na educação como recurso primordial
para a promoção da “raça negra”.
O aspecto interessante nessa identidade transnacional negra,
que emerge nas páginas dos periódicos negros, é que as fontes de
notícias sobre os acontecimentos da diáspora negra eram jornais
da imprensa afro-americana. Os exemplares dos jornais Chicago
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Defender e o Negro World, duas das publicações de maior circula-


ção entre os leitores negros, chegaram às mãos dos ativistas brasi-
leiros. Os redatores do Clarim do Alvorada estabeleceram contato
com o editor do Chicago Defender, que havia visitado o Brasil em
1923 e se tornara um entusiasta da nação brasileira, e receberam o
Negro World de admiradores do líder jamaicano Marcus Garvey.
Os dois jornais foram fundamentais para a mudança de abordagem
do ativismo de alguns jornais da imprensa negra paulista, que con-
tinuaram a apostar em uma fraternidade racial brasileira, mas pas-
saram a trabalhar com a ideia de que o projeto de inclusão dos ne-
gros à sociedade brasileira fazia parte de um quadro mais amplo de
mobilizações negras no continente africano e na diáspora. O Negro
World, por exemplo, diferentemente do Chicago Defender, não de-
88 fendia a integração dos negros nos EUA, a função do periódico era
a de difundir o retorno à África de negros da diáspora. Contudo, os
ativistas negros do Brasil, apesar de repudiarem qualquer tipo de
renúncia à cidadania brasileira, encontraram no discurso garveysta
do periódico questões importantes como o desafio às hierarquias
raciais e a concepção de uma dignidade negra que poderiam ser
incorporadas ao protesto dos negros do Brasil.
O que deve ser destacado aqui é que a identidade negra que
se configura entre os ativistas dessa geração está associada a um
projeto de inclusão da população negra à sociedade brasileira. A
incorporação simbólica do negro à identidade nacional só pode-
ria seguir adiante se o ativismo fosse capaz de mobilizar os negros,
transformando as questões consideradas específicas da população
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

negra em um problema da sociedade brasileira. As narrativas de


celebração de uma fraternidade racial no país foram utilizadas por
lideranças negras como uma estratégia para aquele período. Pos-
teriormente, em meados da década de 1930, principalmente com
a obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, a ideia de um
Brasil formado pela união de “três raças” ganhou força, prevalecen-
do sobre projetos de uma sociedade europeizada e sustentados por
ideias racistas. Entretanto, se a fraternidade racial concebida pelo
ativismo negro tinha um caráter progressista — considerando a in-
clusão da população negra através de uma narrativa do encontro
das três raças em uma perspectiva transnacional de luta dos povos
de ascendência africana —, com o tempo, ela se transfigurou em
mito de formação da nação incapaz de incluir negro, reforçando o
padrão pacífico das relações raciais no Brasil e desarticulando as 89
vozes que denunciavam a hierarquia racial brasileira.

Africanizando a identidade negra

Ao longo da década de 1970, novas organizações negras foram


surgindo em um contexto de ditadura militar. A partir daqui, tratare-
mos de uma outra geração do ativismo negro brasileiro que, influen-
ciada pelo marxismo e pela luta em prol da democratização, denun-
ciou o caráter falseador da democracia racial e o racismo brasileiro.
A diferença de quarenta anos entre o ativismo associativista dos
anos 30 e o movimento negro contemporâneo, contudo, não significa
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

um hiato na história do protesto negro. Organizações como o Teatro


Experimental Negro foram fundamentais para levar adiante ques-
tões relacionadas à marginalidade da população negra no Brasil. En-
tretanto, é importante tratar dessas duas gerações do ativismo para
que possamos compreender as diferenças de projetos e o lugar de um
discurso sobre a identidade negra que tem uma outra repercussão no
período de redemocratização da sociedade brasileira.
No momento em que a ideia de democracia racial se consoli-
dou entre os brasileiros, a partir da década de 1950, o país passou
por picos de crescimento econômico sem, no entanto, alterar as de-
sigualdades sociais e a hierarquia racial que assolavam a população
negra. Tal situação criou o descompasso entre uma celebração de
um paraíso racial e a reestruturação de um racismo já reconfigu-
90 rado ao capitalismo brasileiro (HASENBALG, 2005). O projeto as-
similacionista da geração da década de 1930 seria substituído ao
longo da década de 1970 por um discurso da diferença que rejeitou
a identidade nacional brasileira e ressaltou as particularidades da
cultura negra no país. Assim, se no período do associativismo ha-
via uma identidade negra preocupada em forjar uma imagem de
negro despida de africanismos, entre os ativistas contemporâneos
surgiu uma identidade negra que celebrava as expressões culturais
de origem africana, rompendo com os discursos de brasilidade.
O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, gal-
vanizou o ativismo negro no início da década de 1980, com um pro-
testo contundente e explícito sobre as práticas racistas da socieda-
de brasileira. A articulação desta organização se deu no interior da
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

Convergência Socialista, sob o nome de Movimento Negro Unificado


Contra a Discriminação Racial (MNUDR) e como um guarda-chu-
va para as lutas de mulheres, negros e indígenas. Posteriormente, o
MNU ganharia autonomia e se transformaria em um espaço privi-
legiado para o debate da questão racial em perspectiva nacional. A
abordagem da militância foi tratada por inúmeros segmentos da so-
ciedade como um atentado à harmonia racial brasileira, um grupo de
negros que procuravam mimetizar o movimento negro norte-ameri-
cano e criar problemas desconectados do ethos brasileiro.
Um dos eventos marcantes do movimento foi o protesto organi-
zado na escadaria do Teatro Municipal de São Paulo para denunciar
atos de discriminação racial, em 1978. O caso de discriminação de
jovens negros no clube esportivo Tietê promoveu a mobilização dos
ativistas em espaço público durante o regime militar. Com a aber- 91
tura democrática ao longo da década de 80, o movimento negro foi
atuando em diversas frentes, procurando, sobretudo, incluir uma
agenda antirracista na pauta dos partidos políticos que se reorgani-
zavam naquele momento (PEREIRA, 2013; RIOS, 2014). As articu-
lações feitas em partidos como o PMDB e o PDT possibilitaram a
criação de coordenadorias que fomentaram o debate e políticas de
enfrentamento do racismo brasileiro.
O ano de 1988 tem um significado importante para a ascensão e
compreensão do movimento negro contemporâneo, pois foi na cele-
bração do centenário da abolição da escravatura que o debate sobre re-
lações raciais transcendeu o universo acadêmico e militante. Enquan-
to segmentos da sociedade brasileira celebravam a democracia racial,
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

que supostamente havia se estruturado posteriormente à escravidão,


os ativistas negros criticaram o processo histórico, reforçando que a
abolição não havia causado mudanças profundas para a população
negra brasileira. A Princesa Isabel, figura histórica celebrada como a
emancipadora da “raça negra”, perdeu o status de heroína nas narra-
tivas do ativismo negro que desconsiderou a importância da abolição
da escravatura como uma etapa para a inclusão social. Nesse sentido,
o centenário, ao invés de reforçar uma identidade nacional baseada
na harmonia racial, estimulou o debate sobre o racismo brasileiro e a
marginalização dos negros no período pós-abolição.
Em meio a esse processo de organização do movimento negro
contemporâneo, a identidade negra do discurso dos ativistas passou
por uma transformação. Expressões culturais de origem africana
92 que foram rechaçadas por alguns grupos nas décadas de 1920 e 1930,
foram redimidas ao longo do século e ganharam centralidade em um
novo projeto político. A capoeira e o samba, por exemplo, haviam
se transformado em elementos importantes do imaginário nacional,
representando uma identidade brasileira que acomodava as culturas
europeia, indígena e negra. No entanto, os ativistas negros, no intui-
to de reforçar uma cultura especificamente negra, ressaltaram o ca-
ráter político dessas manifestações culturais enquanto referências de
uma resistência negra à escravidão e ao racismo no pós-abolição. As-
sim, as narrativas dos ativistas que antes se organizavam em torno de
uma história que anunciava a concepção de uma congregação racial
passaram a criticar uma ordem social brasileira racista e a valorizar
uma identidade negra reconfigurada a partir de matrizes africanas.
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

Essa mudança estava associada não somente ao contexto social


e político no Brasil, mas também a uma série de eventos interna-
cionais que influenciariam a diáspora negra a partir da década de
1960. A emergência do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA
e o seu legado posterior serviram como referência de organização
política entre os negros. Martin Luther King se transformaria no
símbolo de uma luta importante para desestruturar o aparato que
sustentava a segregação racial na sociedade norte-americana. Pos-
teriormente, no final da década de 1960 e na década posterior, o
movimento Black Power com uma postura mais incisiva e um dis-
curso de orgulho negro, além de enfrentar as práticas racistas que
transcendiam as leis segregacionistas, ajudou a difundir uma esté-
tica de valorização dos traços físicos dos negros através de um novo
tratamento aos cabelos crespos (PENIEL, 2006). 93
Por outro lado, no continente africano, iniciou-se o processo de
descolonização com a formação de nações independentes. Esse mo-
vimento contou com a atuação de importantes lideranças, muitas de-
las formadas e educadas na Europa, que desde a década de 1950 ques-
tionavam a opressão dos europeus sobre as populações africanas. Em
alguns casos, a emancipação foi conquistada através de negociação,
em outros através de guerras. O fato é que as lutas empreendidas por
figuras como Amilcar Cabral e Patrice Lumumba fizeram parte de
um quadro amplo com movimentos que confrontavam o imperialis-
mo e o racismo (JAMES, 2015). Nesse sentido, a ascensão do ativismo
negro contemporâneo encontrou parte de sua inspiração para além
das fronteiras do território brasileiro.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

A nova geração de ativistas, portanto, se articula em um pe-


ríodo pós-guerra, momento no qual intelectuais negros em redes
transnacionais, além de denunciarem a exploração imperialista,
constituíram um conhecimento que desconstruiu os elementos
estruturantes do racismo e do colonialismo. Essa conjuntura
abriu espaço para uma reinterpretação das culturas de origens
africanas, redefinindo uma estética negra com dimensões políti-
cas (RABAKA, 2009). Os blocos afros como o Ilê Ayê, criado em
1974, representam bem o fenômeno de reafricanização de algumas
entidades culturais e políticas no Brasil. Estes grupos se articula-
ram a partir de um discurso de valorização do continente africa-
no, criticando o processo de incorporação de expressões culturais
de origem africana à identidade nacional (PINHO, 2004). Nesse
94 sentido, o Ilê Ayê, um bloco formado exclusivamente por negros,
politizou a cultura negra a partir da defesa de uma “cultura au-
tenticamente africana”, que deveria ser patrimônio dos negros e
não necessariamente da sociedade brasileira.
No mesmo período, um outro fenômeno cultural se revelava en-
tre os negros do Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente entre os
jovens: o Soul, gênero musical criado pelos negros dos EUA, que se
transformou em trilha sonora do Movimento pelos Direitos Civis.
A recepção deste estilo de música foi tratada por alguns como
a tentativa de jovens negros de incorporar um elemento da cultura
afro-americana a uma estética negra descontextualizada da cultura
nacional. Porém, o Soul, como parte do Black is Beautiful foi assimila-
do e ajustado às experiências de brasileiros em uma cultura nacional
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

cujos símbolos e significados não contemplavam uma nova postura


dos negros frente a uma democracia racial que camuflava uma perver-
sa hierarquia. O gênero musical norte-americano, portanto, ajudou a
definir uma identidade negra brasileira sob uma identidade nacional
que valorizava um processo histórico de miscigenação.
Posteriormente, ao longo da década de 1980, após o sucesso do
Funk de James Brown na década anterior, os bailes negros cariocas e
paulistanos desenvolveram novas sonoridades, atraindo cada vez mais
a juventude negra. Em São Paulo, o Rap, elemento mais importante de
cultura Hip-Hop, inicialmente teve grande influência do Rap norte-ame-
ricano. Contudo o gênero musical passou a caminhar com as próprias
pernas, à medida em que os músicos foram incorporando elementos da
música brasileira e retratando a realidade das periferias. Assim, com
uma linguagem subversiva, o Rap, sobretudo com a ascensão do grupo 95
Racionais MCs, permitiu que uma juventude negra marginalizada pu-
desse se expressar e atuar politicamente, por meio da cultura, definindo
outros espaços para o questionamento do racismo brasileiro.
Esse quadro de mudanças no ativismo negro do Brasil e da
diáspora negra possibilitou a emergência de novas identidades ne-
gras que confrontavam os discursos que defendiam a harmonia ra-
cial dos brasileiros. O dia da Consciência Negra, hoje um feriado
em várias cidades do Brasil, foi criado ainda na década de 1970,
o objetivo principal era o de despertar os negros de uma suposta
“alienação”, provocada pela crença na ausência do racismo brasi-
leiro. Nesse sentido, os militantes negros deveriam se engajar em
um movimento de conscientização da população negra, que não
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

reconhecia a sua ascendência africana devido a uma série de atri-


butos negativos associados à negritude. Na década de 1980 e 1990,
as organizações negras através de campanhas procuraram demons-
trar a importância de o cidadão negro assumir a sua identidade ra-
cial, rompendo com a tendência de branqueamento ainda forte na-
quele momento, que estimulava os negros a se identificarem como
pardos e, até mesmo, como brancos.
A emergência do movimento negro desafiou a identidade na-
cional brasileira não somente com a crítica à democracia racial, mas
também,com a politização de identidades negras que desconstruíam
a imagem de um Brasil mestiço e harmonioso. Entretanto, até mea-
dos da década de 1990, a agenda dos ativistas negros não havia sido
incorporada pelo Estado para fomentar políticas para a população ne-
96 gra em nível federal. O debate sobre a questão racial tomou um outro
rumo em 1995, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso re-
conheceu oficialmente o racismo na sociedade brasileira, respondendo
à Marcha Zumbi, organizada por ativistas negros que reivindicavam
uma cidadania de primeira classe. Nesse sentido, um caminho insti-
tucional foi aberto para a reflexão sobre estratégias de combate ao ra-
cismo e à desigualdade racial. O debate sobre as questões raciais, até
então realizado predominantemente entre ativistas e pesquisadores
interessados no assunto, ganhou, ao longo da década de 1990, cada vez
mais espaço, provocando o posicionamento de outros atores sociais.
À medida em que se discutia a aplicação de políticas públicas,
surgiu a possibilidade de implementação de uma política de cotas
nas universidades brasileiras. Em um primeiro momento, a ideia teve
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

pouca repercussão entre os ativistas negros, o cálculo era o de que


propostas de ação afirmativa no Brasil não teriam apoio devido à
crença na democracia racial. Contudo, paralelamente ao debate bra-
sileiro, iniciaram-se os preparativos para a Conferência de Durban
contra o racismo — organizada pela ONU na África do Sul, em 2001
-, que teria a representação de uma delegação brasileira formada por
ativistas e membros do governo (SANTOS, 2012). As ações afirmati-
vas, tratadas com reservas, foram admitidas como política de comba-
te à desigualdade durante o evento, afirmando o compromisso brasi-
leiro de aplicá-las como estratégia de promoção da igualdade racial.
A possibilidade de criação de políticas específicas para a po-
pulação negra foi considerada por muitos estudiosos um atentado
a uma sociedade sem uma tradição de racialização das relações so-
ciais. Políticas de cotas para negros, além de outras modalidades de 97
ações afirmativas, eram nada mais do que a mera importação de uma
solução descontextualizada da realidade brasileira. Por outro lado,
ativistas negros que apoiavam a iniciativa enfatizavam as desigual-
dades sociais da sociedade brasileira e reforçavam a importância de
políticas de reserva de cotas em universidades como instrumentos
para a promoção de igualdade.
As ações afirmativas inseriram a questão racial na agenda
dos brasileiros. Independentemente da posição sobre as políti-
cas de cotas, a ideia de democracia racial foi perdendo força, as
narrativas sobre as hierarquias raciais constituídas durante a
escravidão e o pós-abolição, combinadas à série de dados sobre
as desigualdades entre negros e brancos, prevaleceram sobre os
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

discursos de harmonia racial brasileira. Por outro lado, emer-


giu com força maior uma identidade negra orientada pela ideia
de diversidade, recontextualizada em um discurso multicultu-
ral constituído internacionalmente, confrontando uma lógica
assimilacionista, orientada pela ideia de embranquecimento. O
imaginário de uma identidade nacional marcado pelos termos
“mistura racial” e miscigenação passaram a conviver com os pro-
jetos de uma particularidade negra.

Considerações finais

As identidades negras no Brasil estiveram sempre relaciona-


98 das às transformações da identidade nacional. Quando intelec-
tuais e políticos apostaram no projeto de uma nação majoritaria-
mente europeia, através de políticas como a imigração, ativistas
negros de diferentes regiões do Brasil reforçaram a importância
de uma identidade nacional que incorporasse simbolicamente ne-
gros e indígenas como parte da nação. Na imprensa negra paulista
é possível identificar discursos sobre o patriotismo dos negros,
afirmando a nacionalidade brasileira e a rejeição a qualquer iden-
tificação simbólica com a África. Ainda, nas primeiras décadas
do século 20, jornais como o Clarim da Alvorada revelaram uma
percepção diferente sobre os africanos, ainda que continuassem a
reivindicar o lugar do negro no imaginário nacional. Nesse sen-
tido, a ideia de uma fraternidade racial foi apoiada também pelo
Do nacional ao diaspórico: transformações nas identidades negras brasileiras no século 20

ativismo negro, ganhando força na década de 1950, por meio da


expressão “democracia racial”.
Entretanto, enquanto os brasileiros passavam a se imaginar como
uma comunidade nacional construída a partir da convivência pacífica
entre negros, brancos e indígenas, a hierarquia racial continuava a se
reproduzir na estrutura social. No plano internacional, o pós-guerra
foi marcado pela independência das nações africanas e a ascensão do
Movimento pelos Direitos Civis nos EUA que confrontavam o racismo
e a imperialismo, questionando a universalidade de uma civilização
ocidental. Este quadro, com a emergência do ativismo afro-americano
e africano, a partir de discursos da emancipação, teve grande influên-
cia sobre a militância negra no Brasil, que incorporaria discursos e
representações de dignidade negra, construídos internacionalmente
para questionar o racismo no Brasil. Neste momento, os ativistas ne- 99
gros reelaboram uma identidade negra — associada na década de 1990
a um projeto multicultural — que estabeleceu um outro projeto de
nação que passou a rivalizar com a “Democracia Racial”.
Todo esse processo consolidou uma perspectiva transnacional
de uma identidade negra concebida no Brasil e alinhada à ideia de
diáspora negra. Portanto, os negros no Brasil passaram de uma
identidade negra assimilada a uma fraternidade racial brasileira
para outra transnacional e sensível aos eventos que repercutem em
uma comunidade negra imaginada de caráter internacional, como
a eleição de um homem negro para a presidência dos EUA, os con-
flitos inter-raciais na África do Sul ou, até mesmo, as vitórias de
atletas negros em modalidades esportivas de alto rendimento.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

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102
História da África hoje:
ética e ciência1
Muryatan S. Barbosa2

A pesquisa e o ensino de História da África passam por um mo-


mento de consolidação acadêmica no Brasil. Vários são os cursos e as
disciplinas que difundem um conhecimento introdutório sobre o as-
sunto. Esses, sem dúvida, trarão frutos positivos para a formação de
um espírito antirracista entre as novas gerações. Por esses fatos, essa
área tem ganho muitos jovens adeptos. É justamente nesse momento,
entretanto, que os estudos sobre África necessitam estar atentos aos
fundamentos críticos da sua prática, para que esta energia renovado-
ra não seja desencaminhada, seja por um ativismo anti-intelectual,


1
Uma versão anterior deste ensaio foi publicada em Sankofa. Revista de História da África e
de Estudos da Diáspora Africana (2010).
2
Pós-Doutor e Doutor em História da África pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo. Mestre em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. Graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

seja pelo academicismo positivista. Afinal, o que a História da África


no Brasil será em um futuro próximo é consequência do que está
sendo consolidado hoje, enquanto saber humanístico, compromisso
político e institucionalização acadêmica.
É evidente o papel fundamental que a lei 10.639 de 2003 teve nes-
sa expansão recente. Hoje, alguns colegas parecem duvidar desse fato,
mas tal visão não nos parece justa e correta. Em seguida, expomos nos-
so ponto de vista sobre o assunto, antes de continuar com as questões
mais específicas relativas à disciplina História da África hoje.
É notório que o conhecimento sobre África da academia bra-
sileira foi raso até muito recentemente. Isto se deve a uma série de
razões que não cabe aqui examinar. Mas é certo que, para além de
alguns centros de pesquisa especializados e grupos de estudos mo-
104 bilizados por militantes do ativismo negro, geralmente autodidatas,
pouco se produzia sobre esse assunto no Brasil até o centenário da
Abolição, em 1988. Foi neste momento, altamente simbólico, que a
causa negra ganhou certa evidência, constrangendo as Universidades
Públicas e os Governos (Municipal, Estadual, Federal) a serem mais
proativos sobre esta questão. Sobretudo porque, neste momento, era
a imagem do país no estrangeiro que estava em jogo, como um país
supostamente mais harmônico em suas relações étnico-raciais.
O assunto foi sendo impulsionado em diversos encontros in-
ternacionais de que o Brasil participou desde então. Algo que, sem
dúvida, potencializou a luta do movimento negro brasileiro, em es-
pecial, após a Conferência de Durban (III Conferência Mundial Con-
tra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias
História da África hoje: ética e ciência

Correlatas), em 2001. A estratégia governista de então foi esperta. Se


não era mais possível defender a ideia de uma “democracia racial”,
cabia, ao menos, apresentar a questão étnico-racial no Brasil (em re-
lação ao negro brasileiro) como algo que poderia ser equacionado
de forma gradual e pacífica, com a adoção de políticas públicas es-
pecíficas. E foi isto o que foi feito. Mas a verdade é que, dessa forma,
acabou-se por desvirtuar as bandeiras históricas do movimento ne-
gro dos anos 1980, que apontavam para a necessidade de mudanças
estruturais da sociedade brasileira, na medida em que elas passaram
a ser tratadas como temáticas pontuais.
Nessa história, o movimento negro não foi uma vítima. Em
primeiro lugar, porque à época (assim como hoje) ele era mais
marcado por sua diversidade do que por sua unidade. Havia vá-
rios movimentos negros. Algo que era um complicador, quando 105
se pensava em caminhos comuns a seguir, mas um facilitador
quando se tratava de lutas mais específicas, que poderiam ser
abarcadas em campos aparentemente distintos das políticas pú-
blicas: saúde, violência urbana, educação etc. Secundariamente,
porque se acreditou, com certa razão, que aceitar tal focalização
era o único meio para que pelo menos parte das demandas do
movimento dos anos 1980 pudessem ser concretamente enfren-
tadas pelo Estado brasileiro. Daí o consenso em torno das Ações
Afirmativas, que foi sendo construído.
Hoje, quase duas décadas depois, os erros e acertos desta op-
ção começam a se tornar mais visíveis. Porém, em relação à inclu-
são da temática étnico-racial na academia e, mais particularmente,
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

na prática didático-pedagógica, após a 10.639/2003, penso que as


conquistas foram significativas, na medida do possível. Ou seja,
na medida em que temos por premissa que vivemos em uma so-
ciedade estruturalmente racistas3.
Há alguns artigos de balanço sobre este assunto (FERNANDES,
2005; SANTOS, 2005; SILVA, 2007), assim como dezenas de disserta-
ções e teses que não puderem ser analisados neste curto ensaio. Ade-
mais, há trabalhos que estão sendo finalizados e que tiveram por mote
os dez anos de promulgação da 10.639/2003. Já há inclusive sistematiza-
ções desse material. Contudo, em geral, trata-se de pesquisa não publi-
cada. De um ponto de vista meramente opinativo, portanto, diria que
se pode constatar que houve um trabalho intenso de implementação
da lei referida desde 2003, mas que é prejudicado tanto por questões
106 gerais (falta de recursos, falhas na coordenação de políticas, racismo
institucional, despreparo dos docentes) quanto específicas (sobretu-
do, desinteresse dos envolvidos: docentes, coordenadores pedagógicos
etc.). Ou seja, como toda lei, sobretudo as que favorecem as populações
subalternizadas, a 10.639 depende de uma correlação de forças para
ser implementada. E, por isso, tal concretização, depende do esforço
de cada um nesta luta. Quanto mais neste momento histórico em que
vivemos, em que há claros sinais de retrocesso democrático no país.


3
Ou seja, uma sociedade em que o racismo é elemento central de reprodução social. Em
nossa opinião, no caso brasileiro, por permitir a naturalização de cinco formas de explo-
ração/dominação: a) super-exploração do trabalho; b) invisibilidade da desigualdade so-
cial; c) violência como forma de controle social; d) obstrução da consciência de classe e
da solidariedade intergênero; e) formação de um ideal de nacionalidade de grande poder
ideológico, baseado em uma valorização acrítica e seletiva da miscigenação; f) ideologia da
brancura, congregando a eurodescendência.
História da África hoje: ética e ciência

Nesse particular, vale lembrar a máxima de todas as lutas contra


discriminações sociais: se um indivíduo não faz nada contra ela, é
porque ele é, na prática, copartícipe dela. No caso que se discute: não
há “meio racista”. Em uma sociedade racista como a brasileira, ou o
indivíduo luta contra o racismo ou ele é na prática racista, mesmo
que inconscientemente, pois ajuda a perpetuar tal discriminação.
Buscando contribuir para o avanço deste debate dentro da área
de nossa especialização, a história da África a seguir se reflete sobre al-
guns princípios éticos e científicos que poderiam contribuir para uma
agenda antirracista desta disciplina acadêmica e de sua prática didáti-
co-pedagógica. Ao fazê-lo, buscou-se dar ênfase ao contexto brasilei-
ro, assim como fugir de qualquer dogmatismo. Como toda ciência se
constrói sobre valores éticos, este ensaio começa pela discussão destes,
para depois abordar a problemática historiográfica e científica. 107

História da África: questões éticas

A história da África se constituiu, como disciplina acadêmica,


como um saber inserido nas lutas anticoloniais e antirracistas. Essa
premissa da disciplina não deve ser esquecida, pois daí advém sua
força acadêmica e legitimidade política. Se a história da África se
afastar desta característica fundante, ela gradualmente tornar-se-á
mais um saber vazio e formalista, como outros do campo acadêmi-
co. Para se adequar a esse pressuposto, entretanto, os historiadores
de África têm que estar atentos às especificidades do racismo que
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

ele pretende combater. Isto porque, embora todos tenham o mesmo


objetivo, os racismos são de diferentes conteúdos e formas, de acordo
com sua gênese social e contexto histórico. É por isto que cabe ao
historiador de África estudar e se atualizar das discussões acerca das
questões étnico-raciais de sua sociedade e do mundo contemporâneo.
Isto porque, querendo ou não, sua disciplina está inserida nesta luta
antirracista mais ampla, sobre a qual ele terá que se posicionar. É por
esta razão que, para ser um bom historiador de África, não basta ser
um bom pesquisador. É preciso ser um intelectual público, atento
para o contexto e o modo como o seu saber será socializado.
Para um historiador brasileiro deste campo este posiciona-
mento implica algumas consequências, que abordaremos de forma
sintética. A força ideológica do racismo brasileiro, que é histórica e
108 intelectualmente ligado ao ideal de branqueamento e a miscigenação,
está em ter conferido lugar próprio ao negro e ao indígena no imagi-
nário nacional: a cultura popular. O gênio de Gilberto Freyre foi ter
teorizado isto, além de tê-lo exposto com inegável competência lite-
rária. O que ele “explicou” é que, enquanto o português (assim como
os demais imigrantes europeus posteriores) teria contribuído com a
civilização, os negros e os indígenas teriam contribuído com a cultu-
ra popular. Trata-se de uma ideia que se perpetuou no senso comum
do brasileiro. E que impõe dificuldades a todo antirracismo brasilei-
ro que se pretende basear na defesa da cultura negra e/ou africana.
Veja-se, por exemplo, o mal-entendido sobre o multiculturalismo no
Brasil. Afinal, para o senso comum do brasileiro, a cultura negra (e
indígena) já seria valorizada. Por conta disto, a história da África no
História da África hoje: ética e ciência

Brasil tem que se formar para além de narrativas “culturalistas” so-


bre o africano e o negro brasileiro. Mais do que a cultura, é preciso,
pois, mostrar o caráter civilizatório da presença do negro, como já
pedia Manuel Querino. Sobretudo, em relação à categoria trabalho,
essência de toda práxis humanas. Trata-se, em outras palavras, de
definir esta civilidade em termos que abarquem o que usualmente se
chama “cultura africana” (enquanto um tipo de espiritualidade), mas
que não se limite a ela. Esta me parece uma particularidade impor-
tante para a história da África no Brasil.
Outro ponto que se julga importante é necessária ênfase na his-
toriografia africana. A história da África se forma internacionalmen-
te no mundo acadêmico como uma disciplina que pudesse prescindir
do ponto de vista da intelectualidade africana sobre a sua própria
história. Ninguém confessa isso em público, mas é o que se realiza na 109
prática na Europa e nos EUA. Por isto, os autores africanos, quando
são citados, são na qualidade de realizadores de pesquisas empíri-
cas, enquanto que os europeus e estadunidenses se colocam como
aqueles responsáveis pelas sínteses gerais. Trata-se de uma divisão
perversa do trabalho intelectual. Por certo, alguém poderia afirmar
que este é um fato sociológico “normal”. Afinal, há uma grande desi-
gualdade de status e qualificação acadêmica no plano internacional,
entre os países africanos e, por exemplo, outros da Europa Ociden-
tal, como França ou Inglaterra. Ocorre, entretanto, que a aceitação
complacente deste fato é algo imoral e antiético, pois não é verdade
que a academia nada poderia fazer contra. Compactuar com isto é
acomodar-se a uma postura colonialista, que é uma das razões dessa
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

subalternização dos autores africanos. Só esta postura explica a cren-


ça que se poderia compreender uma realidade histórica tão antiga e
complexa, ignorando a experiência existencial e o arcabouço teórico
construído pela intelectualidade africana de ontem e hoje. Se nin-
guém faz isto com a França ou o Brasil, porque dever-se-ia aceitar
que isto ocorresse com os países africanos?
No Brasil, este fato também é contumaz. Aqui, entretanto, tem-
-se uma justificativa bibliográfica, visto que as editoras nacionais têm
preferido publicar livros de pesquisadores europeus ou estaduniden-
ses sobre história da África, em vez de livros de autores africanos. Pu-
blicaram-se, por exemplo, livros interessantes como os de Paul Love-
joy (A escravidão na África), Roland Oliver (A experiência africana),
John Thorthorn (A África e o mundo atlântico), H. L. Wesseling (Di-
110 vidir para dominar) e muitos outros. Há também um pequeno núme-
ro de livros mais recentes de autores africanos, como Elikia M’Bokolo
(África Negra), Hampaté Bã (Amkoullel, o menino fula), Joseph Ki-
-Zerbo (Para quando África?), Boubacar Barry (Senegâmbia: o desa-
fio da história regional). Contudo, não existem publicações nacionais
de livros clássicos da historiografia africana, como os de Cheikh Anta
Diop, T. Obenga, Bethwell Ogot, A. Ajayi, A. W. Andah, D. T. Niani,
Ali Mazrui, J. Inikori e A. Boahen. Salvo melhor juízo, a única fonte
bibliografia sobre estes no Brasil são os artigos da portentosa História
geral da África (UNESCO), que só recentemente teve seus oito volu-
mes publicados em português. É muito pouco. Para reverter essa si-
tuação, cabe uma decisão ética dos intelectuais nacionais. Isto impli-
ca duas coisas: buscar por conta própria essa tradição historiográfica
História da África hoje: ética e ciência

africana; e, secundariamente, promover (ou pressionar) a publicação,


em português, de alguns clássicos desta bibliografia, essenciais para
se compreender a história do continente. A publicação da Síntese da
coleção história geral da África busca colaborar neste sentido.
Penso que esses dois postulados cobrem, grosso modo, as ca-
racterísticas éticas de uma história da África, em nível internacional.
Destes se procurou enfatizar alguns aspectos que dizem respeito à
história da África no Brasil. Existem outras questões, entretanto,
que não dizem respeito aos princípios éticos desta disciplina, mas
científicos, desde sua pertença ao campo historiográfico. Desde tal
perspectiva, cita-se mais três postulados que me parecem funda-
mentais à formação da disciplina. Mais uma vez, dar-se-á ênfase ao
contexto desta no Brasil.
111

História da África: questões científicas

Não se discutirá, neste capítulo, sobre o caráter científico da


historiografia como campo específico do conhecimento. A posição
adotada é que a cientificidade da historiografia não é um a prio-
ri lógico, mas uma possibilidade. Quanto mais a historiografia se
aproxima de um determinado padrão científico humanístico, uti-
lizando-se, para isto, de métodos, argumentação racional e traba-
lho empírico, mais científico ela tenderá a ser. Isto, evidentemente,
não a isenta de erros. Entretanto, isso a caracteriza como um saber
específico, construído na busca da verdade histórica. Ou melhor,
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

daquilo que, em cada geração, tem-se por verdade na história, até


que se prove sua falseabilidade.
É importante perceber que este padrão de cientificidade histórica
— composto de método, trabalho empírico e argumentação racional
— foi o padrão corrente da historiografia sobre a África em sua for-
mação disciplinar, na segunda metade do século 20. Isto se comprova
pelo fato de não se conhecer, salvo melhor juízo, nenhum historiador
importante de África que tenha abandonado a normatização cientí-
fica como ideal regulador de seu trabalho. Isso vale inclusive para a
chamada “afrocentricidade”, de Molefi Asante. As polêmicas, quan-
do bem encaminhadas, giram em torno do quanto um historiador
específico (ou uma corrente), na busca de comprovar suas hipóteses,
desvirtuou o padrão de cientificidade que ele próprio dizia seguir.
112 Estes dois fatos mostram que, nesta especialização, a ciência ainda é
um ideal regulador, independente das divergências que se tenha em
torno do seu estatuto. Há, ali, pois, um entendimento tácito de que
mesmo as questões políticas e ideológicas mais candentes da socieda-
de deveriam ser resolvidas dentro da argumentação e comprovação
científica. Este é, sem dúvida, um ganho desta disciplina, especial-
mente em tempos de domínio pós-moderno no trabalho acadêmico.
Essa tradição continua sendo seguida no Brasil. Aqui, entretan-
to, tem-se um problema marcante em sua realização, que é a dificul-
dade de promover pesquisas empíricas sobre a história do continente
africano. A razão mais evidente para isto é a falta de recursos. To-
davia, enquanto não se suplantarem tais dificuldades, faz-se neces-
sário que os historiadores brasileiros se qualifiquem também para o
História da África hoje: ética e ciência

trabalho teórico. Afinal, se alguém quiser de fato pesquisar a África


(e não a história dos colonizadores em África), as fontes primárias
serão sempre de difícil acesso. Assim, ler a “contrapelo” é somente o
início do percurso. Penso que aceitar este desafio é melhor do que fal-
sear a pesquisa, atribuindo como fontes primárias pesquisas alheias,
geralmente, realizadas por historiadores africanos.
Outro ponto importante é o caráter antieurocêntrico desta disci-
plina. A história da África é favorecida, em sua jovialidade, por ter-se
estabelecido em uma época em que as ciências humanas começavam
a se despir de suas prerrogativas eurocêntricas, enraizadas em sua for-
mação. Neste particular, inclusive, creio que historiadores de África
tiveram um papel decisivo, ainda pouco reconhecido. Continuar nes-
te caminho, entretanto, talvez implique em radicalizar os caminhos
abertos por esta geração formadora do pós-guerra (II Guerra Mun- 113
dial). Algo que possibilita a crítica a certo viés evolucionista que, por
vezes, acompanhou alguns autores clássicos da disciplina; incluindo-
-se principalmente alguns autores africanos que, por vezes, viam no
Estado e a Nação aparecem como ethos teleológico (NEALE, 1985).
Isto é possível porque esta crítica do evolucionismo pode ser
embasada em diversas filiações teóricas, dentro e fora da tradição
acadêmica europeia. Em verdade, o fato deste debate já estar em cur-
so, ajudou a projetar uma desconfiança prudente de termos antes
inquestionáveis, como progresso, civilização e modernidade. Neste
ponto, entretanto, penso que mais vale a ressignificação conceitual
do que a desconstrução. Nesse sentido, cabe repensar quais os valo-
res adequados que representariam hoje os ideais de Bom e Belo que
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

estão engendrados nessas categorias. Por exemplo, não é Belo e Bom


que uma sociedade específica, historicamente datada, consiga valori-
zar o bem-estar de sua população, sem que isto implique exploração
(direta ou indireta) de povos alheios? Sendo, assim, por que não es-
tudar, por exemplo, em sociedades particulares, a possível existência
de um modo civilizado de vida comunal — ou de relação econômica
— mais voltado para a pacificação social, do que para a exploração de
classe? Estas são os tipos de questões que podem nortear o trabalho
intelectual. Trata-se, pois, de pensar as perguntas adequadas a serem
respondidas, pois o passado sempre será algo em aberto.
No Brasil, tem-se atualmente uma estranha ojeriza acerca
deste debate sobre o caráter eurocêntrico das ciências humanas,
que se difunde internacionalmente a partir de tradições diversas:
114 Pós-colonialismo, Estudos Subalternos, teorias do Sistema-Mun-
do, Afrocentrismo, Colonialidade do Poder etc. Nesse particular,
as linhas investigativas centradas na relação histórica entre Brasil
(América Portuguesa) e África buscaram inovar, é verdade. Vale
lembrar também que, por aqui, há pioneiros na crítica teórico-
-metodológica ao eurocentrismo, como o sociólogo Alberto Guer-
reiro Ramos (Redução sociológica, 1958). Contudo, ainda é muito
pouco perto do que poderia ser feito. O ensino (e parte da pes-
quisa) em história antiga no Brasil, por exemplo, é sabidamente
eurocêntrica em sua obsessão greco-romana enquanto origem da
chamada “civilização ocidental”. Não cabe aqui pensar o porquê
deste fato. Todavia, para uma história da África ainda embrio-
nária, em que a tradição não pesa tanto, poder-se-ia realizar um
História da África hoje: ética e ciência

diálogo maior com este debate internacional, de viés Sul-Sul. É di-


fícil prever o que este esforço de descolonização da história traria
para a uma reconstrução pós-eurocêntrica da história da África.
Todavia, para uma disciplina que nasce com dificuldades na uti-
lização de fontes, como já foi citado, esta seria uma possibilidade
criativa de produção científica, ainda pouco explorada.
Esse ponto nos leva ao debate sobre a interdisciplinaridade. De
fato, a história da África só poderia ser desenvolvida com uma am-
pliação teórico-metodológica, que diversificasse as fontes e os obje-
tos de estudo da História tradicional do século 19. A razão primor-
dial para isso é que a África é um continente em que, salvo exceções
(egípcios, meroitas, cartagineses etc.), a documentação escrita so-
bre sua história foi realizada e guardada pelos povos estrangeiros,
sobretudo árabes e europeus. Por mais louvável que seja o traba- 115
lho de releitura “a contrapelo”, limitar-se a tal documentação seria,
em última instância, reproduzir uma percepção tradicionalista do
trabalho historiográfico, já superada internacionalmente. Por es-
sas duas razões, a interdisciplinaridade foi na prática teórica algo
corriqueiro para os historiadores de África — indo, inclusive, para
além das ciências humanas. Esse fato fez com que, desde algumas
décadas, as discussões mais atuais sobre a questão da interdiscipli-
naridade na história da África não se colocassem mais no plano ou
não de sua utilização, mas do como fazê-lo. Estaria um historiador
apto, por exemplo, a realizar o trabalho de um arqueólogo? Nesse
sentido, a interdisciplinaridade seria um estágio transitório para
a transdisciplinaridade? Ou, a interdisciplinaridade, na prática,
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

significaria apenas a utilização de dados trazidos por disciplinas


para além do campo historiográfico? Questões como essas nortea-
ram, por exemplo, muitas polêmicas no projeto da História geral
da África (UNESCO), em que o trabalho interdisciplinar tornou-se
central à reconstrução de uma nova história da África.
Enquanto herdeiro dessa tradição de estudos, a história da
África, no Brasil, tende a reproduzir, em princípio, essa posição
consensual de ter por premissa a abordagem interdisciplinar. Esse
é o caminho correto a seguir. Todavia, tanto aqui quanto “lá”, creio
que os saberes e as fontes derivadas desta opção pela interdiscipli-
naridade deveriam estar sempre abertos à uma apreciação crítica
historiográfica. Só assim poder-se-ia garantir que essa abertura
dialógica da interdisciplinaridade seja algo frutífero para a história
116 da África, do ponto de vista científico e político. Darei um exem-
plo: muitos intelectuais, nos EUA, pressionaram para que a história
da África se tornasse parte integrante de uma área de estudos co-
mum à dos estudos da diáspora africana. A esse conjunto dá-se, por
vezes, um nome específico: Africana. Esse objeto de estudo novo
ajuda a legitimar a concretização de novos programas de pesquisa,
instituições, departamentos acadêmicos. Os historiadores de Áfri-
ca, no Brasil, devem refletir sobre os custos e os benefícios de uma
agência como esta. Por um lado, este projeto poderia angariar mais
recursos para a área, além de possibilitar uma formação acadêmica
antirracista ímpar aos seus discentes. Por outro lado, traria o peri-
go da exotização, tão comum ao racismo e ao antirracismo brasilei-
ro. Tem-se que antecipar esta discussão.
História da África hoje: ética e ciência

Considerações finais

Os cinco pontos aqui levantados — antirracismo, ênfase na histo-


riografia africana, verdade histórica, história pós-eurocêntrica e inter-
disciplinaridade — são o cerne deste capítulo, pois expõem, a nosso ver,
as prerrogativas fundamentais para uma agenda contemporânea para
a história da África, buscando sua contextualização no Brasil. O modo
como esses pontos foram apresentados, entretanto — enquanto crité-
rios éticos e científicos — é algo que merece uma consideração final.
Os alunos que estão se formando na área de ciências humanas
tendem a acreditar que só existem duas posições em relação ao co-
nhecimento humanístico: o positivismo ou o relativismo absoluto. O
primeiro implicaria, em um sentido vulgar, ser “cientista”; o que sig-
nificaria a busca pela verdade absoluta, a partir de uma posição supos- 117
tamente neutra e objetiva. O segundo implicaria ser “pós-moderno”,
que trataria da relativização de qualquer conhecimento, já que tudo
não passa de um “jogo de linguagem”. Tais posições ortodoxas encon-
tram ressonância no campo intelectual. Todavia, vale lembrar que a
maior parte dos cientistas e intelectuais hoje não se coloca efetivamente
em nenhum destes dois extremos. Eles são intermediários. Acreditam
na cientificidade, mas a veem mais como um ideal regulador do que
uma realidade efetiva, que conduziria à verdade absoluta sobre os fatos.
Este ensaio se coloca deste ponto de vista. Aqui, a ciência é vista como
um saber relativo, transitório, até que se comprove sua falseabilidade. A
história da África não foge a isto. Neste sentido, defendemos a ideia de
uma perspectiva africana para a história da África (BARBOSA, 2012).
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Grande parte deste mal-entendido vem de uma incompreen-


são dos predicados científicos específicos do campo das ciências
humanas, visto que estes são diferenciados do tipo padrão de neu-
tralidade e objetividade das ciências naturais, matemáticas ou
biológicas. Para resumir esta diferenciação, poder-se-ia dizer que,
nas ciências humanas, é impossível que o cientista se desfaça dos
seus valores para fazer o seu trabalho; assim como, supostamen-
te, o químico faria no laboratório. Pelo contrário, como diriam os
hermeneutas, é apenas assumindo estes valores como pressupostos
deste trabalho, que a ciência humana poderia se tornar, de fato,
uma ciência. Isso porque, só assim ela estaria controlando a sub-
jetividade inerente à sua objetividade, tornando esta inevitabilida-
de dos valores um pressuposto explícito da sua pesquisa. Daí, por
118 exemplo, as hipóteses de trabalho, que podem ou não ser validadas.
Entrementes, quando se citam esses valores, não se está falando de
qualquer tipo de valores, especialmente, aqueles mais particulares.
Fala-se dos valores que são importantes e incontornáveis na prática
teórica de um campo de estudos, como a história da África. Ao
distinguir valores éticos e científicos, neste ensaio buscou-se, por-
tanto, dar consequência a este fato. Por isso, a ética veio antes da
ciência. Isto foi assim colocado porque, de fato, a ética representa
estes valores essenciais sobre os quais os historiadores deste campo
de estudo têm que assumir, ou, ao menos, se posicionar, antes de
se colocar como o “cientista”. Ou seja, não se pode adentrar neste
ramo passando ao largo deste debate antirracista, de onde surgiu a
própria história da África contemporânea.
História da África hoje: ética e ciência

Se esta mensagem permanecer, creio que este ensaio cumpriu o


seu dever. Fora isto, só o tempo dirá qual o rumo que os historiadores
e os educadores desta jovem disciplina seguiram.

Referências

BARBOSA, M. S. A África por ela mesma: a perspectiva africana na História Geral


da África (UNESCO). Tese. (Doutorado em História). Departamento de História,
São Paulo, 2012.

FERNANDES, J. R. O. Ensino de história e diversidade cultural: desafios e


possibilidades. Cadernos Cedes, v. 67, Set/Dez., 2005.
119
NEALE, C. Writing “independent” history: African historiography 1960-1980.
New York: Greenwood Press, 1985.

SANTOS, S. Q. S.; MACHADO, V. L. C. Políticas públicas educacionais: antigas


reivindicações, conqusitas (lei 10.639) e novos desafios. Ensaio: Avaliação de
Política Públicas Educacionais, Rio de Janeiro, 2005.

SILVA, P. B. G. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil. Educação, v. 3,


v. 63, Set/Dez, Porto Alegre, 2003.
A invisibilidade dos povos
indígenas no Brasil
Germana Ponce de Leon Ramírez1

O certo é que tinham sido perseguidos tão ferozmente nos cem


anos anteriores, que se tornavam praticamente invisíveis.
(Lévi-Strauss, 1996).

Propõe-se aqui uma reflexão sobre a invisibilidade dos povos indí-


genas no território brasileiro, considerando o debate atual sobre o assunto,
que é de extrema importância para a compreensão da história do Brasil e,
portanto, do povo brasileiro. Sabe-se que essa temática não é uma novida-
de, tampouco perdeu a atualidade. Este trabalho parte da inquietação que
se tem pela escassez de informação ou desinformação acerca dos povos


1
Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Geografia pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina. Graduada em Geografia pela Universidade Federal da Paraíba.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

indígenas. E, ainda, pela estereotipada ideia que se tem desses grupos so-
ciais que já habitavam as Américas antes dos europeus chegarem, bem
como pelo estranhamento, por muitos, em participar desse debate.

Conquista, dominação e desrespeito

O silêncio e a invisibilidade acerca das populações indígenas se devem


pela caracterização e necessidade de legitimação do Estado Nação instituí-
da como unidade organizadora das relações sociais e, principalmente, pela
imposição da imagem dos grupos dominantes. As sociedades indígenas,
classificadas como primitivas ou despossuídas das simbologias e significa-
ções da civilização, foram condenadas a um primitivismo oriundo de um
122 pensamento etnocêntrico que perdura na contemporaneidade.
Um conjunto de elementos associados, tais como a perda do
controle da posse da terra; a redução populacional ocasionada por
doenças diversas; as guerras de conquistas; o excesso de trabalho im-
posto; os suicídios; os maus tratos e o infanticídio foram responsáveis
por acelerar a desestruturação ou reestruturação social e produtiva
desses povos, que apesar de resistirem à conquista e domínio impos-
tos pelo colonizador, viram-se obrigados a buscar novas formas de
convivência e sobrevivência no mundo colonial (PARAÍSO, 2014).
É importante ressaltar que, em se tratando de colonização, a
ideologia existente, desde o século 17, é a de civilizar os povos indí-
genas por meio de guerras e de expedições com o objetivo de retirar
indígenas à força, tanto adultos quanto crianças, de suas habitações
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

para o mercado escravo. Ribeiro (2009) relata que se calcula cerca de


mil a 2 mil indígenas que desciam por ano para o mercado escravo de
Belém no Pará e São Luís no Maranhão, perfazendo um total de 100
a 200 mil indígenas vendidos em um período de um século. O pensa-
mento era predominantemente racista, classista e capitalista.
O extermínio de povos indígenas também é fruto da busca pelo
prazer e diversão, como relata Berta Ribeiro na obra intitulada O índio
na história do Brasil. A legitimação da violência, escravidão e morte por
meio do pretexto da fé cristã era um substrato ideológico para a implan-
tação de uma empresa mercantilista. A coroa portuguesa e, por conse-
quência, os jesuítas, enxergavam os povos indígenas à luz do pensamento
eurocêntrico, considerando esses povos como inferiores e necessitados
de ordem e disciplina. Desconsiderava-se totalmente o modo de vida de
cada povo que habitava no que iria ser chamado de Brasil a posteriori. 123
As atrocidades, a destruição de muitos indígenas e a vida sofrida
que os sobreviventes tinham instituída pelos europeus, legalizada, em
sua maioria, pela coroa portuguesa, proporcionava a fuga desse mas-
sacre e impulsionava processos migratórios com direções variadas. O
extermínio por meio da conquista, imbuída de desrespeito, faz parte
da história dos povos indígenas no mundo e no território brasileiro.
Mediante esse contexto de pessoas que rejeitaram e resistiram à im-
posição de uma religião e outro modo de vida, tiveram suas culturas
modificadas, transformadas é que a história do Brasil se estabelece.
Muitos indígenas de culturas diversas foram mortos sem a
chance de resistir, sem ter a consciência do papel dos europeus no
processo de extermínio. Como por exemplo, a contaminação da água
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

fluvial com animais ou pessoas mortas nas nascentes dos rios próxi-
mos às aldeias, para então contaminar a quem bebesse essas águas.
Diversas outras estratégias foram aplicadas nesse contexto de con-
quista a todo custo, e certas formas são descritas por Paraiso (2014)
ao relatar que os europeus doavam roupas contaminadas com ru-
béola para que muitos indígenas morressem doentes, e muito deles
morreram de fome por não possuírem reservas de alimentos.
Cabe ressaltar que mesmo após as Guerras Justas2, as políti-
cas de alianças com os povos indígenas, principalmente, na área da
zona do Tampão3, vai se caracterizar como mais uma estratégia de
dominação dos povos indígenas. Essas alianças se desdobravam em
construir aldeamentos que, por fim, não irão funcionar no sentido
de superação de conflitos. Novos atrativos estratégicos são utiliza-
124 dos para a inserção de indígenas como trabalhadores nos projetos
de colonização e desenvolvimento econômico das províncias. Nesse
contexto, por exemplo, o deslocamento dos Botocudo, dos Pojixá e
dos Jiporok desencadearam graves conflitos e mortes.
Em muitos episódios grupos indígenas são forçados a abando-
nar seus territórios por serem locais já com condições mínimas para
a sobrevivência dos europeus no intuito de se instalarem, pois essas
áreas estavam situadas, adequadamente levando em consideração a
proximidade de meios para a subsistência como: rio, área desmatada,


2
Os colonos viam as Guerras Justas como uma opção para adquirirem mão-de-obra e con-
seguirem assim, desenvolver suas atividades econômicas. Para os religiosos, o barbarismo
justificava a necessidade da catequese e transformava o religioso em um mártir a serviço de
Deus. Era preciso transformar “bestas humanas” e feras em cristãos (RAMINELLI, 1996).

3
Área que compreende parte do estado da Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais na atualidade.
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

caminho de terra. Nesse parecer, têm-se como exemplo, os Krenak


que resistem ao abandono de suas terras e, por conseguinte, são le-
vados de caminhão para a cidade de Machacalis (MG) e são abando-
nados ali, para depois serem transferidos e, assim, conviverem com
os Kaingang em São Paulo. Diante disso, muitos indivíduos Krenak
morreram de febre e de fome (PARAÍSO, 2014).
No contexto de desrespeito à diversidade étnica e territorial pensou-
-se que os povos indígenas estariam determinados ao extermínio, pela
história de massacre por um longo período de tempo, tanto no litoral
quanto na porção oeste do Brasil, como também pelo descaso das auto-
ridades governamentais em épocas históricas distintas, que muitas vezes
sem preparo, impunham costumes de uma sociedade eurocêntrica. Povos
como os Xetá (no Paraná), Krêjé (no Maranhão), Kayapó do Pau D’arco
(no Pará), Baenan (na Bahia), Avá-Canoeiro (no Tocantins), Juma e Uru- 125
-eu-wau-wau (ambos em Rondônia), tiveram redução de pessoas ou já não
possuem, atualmente, indivíduos representantes (GOMES, 2015).
O desrespeito é visto em crimes contra os povos indígenas que
acontecem até os dias de hoje. Comumente, esses delitos são invisí-
veis, porque não interessa à sociedade não indígena como um todo
que ganhem visibilidade. Mulheres, crianças, homens e jovens indí-
genas são mortos por capangas de fazendeiros, garimpeiros, madei-
reiros constantemente. O interesse capitalista tem destruído aldeias
e povos quase completamente e reduzido sociedades culturais a três
ou dois indivíduos, como é o caso dos dois únicos sobreviventes, os
irmãos Auré e Aurá, encontrados no Pará e que vivem no Maranhão
sem saber a qual povo pertencem (GOMES, 2012).
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

O crime contra os povos indígenas também se configura na


contemporaneidade por meio da negação da ancestralidade indí-
gena por parte da sociedade brasileira. Essa negação acontece em
vários níveis como, por exemplo, a negação da história familiar que
tinha a presença indígena; a história de um lugar que nega a pre-
sença de povos indígenas, suas línguas e costumes; a divulgação de
uma imagem estereotipada de preguiçosos e alcoólatras nas comu-
nidades próximas a aldeias indígenas.
Diante dos massacres e estratégias de extermínio, na atualidade,
há uma dificuldade em determinar um número populacional de po-
vos indígenas ou indivíduos tanto no passado, no período anterior ao
Brasil colônia, quanto na atualidade. O processo migratório desses
povos e seus muitos motivadores, como também, a carência de esta-
126 tísticas acerca das populações indígenas torna a estimativa distante
da realidade. Todavia, como registro, mesmo incerto, tem-se como
informação que há cerca de 200 povos indígenas dentre os quais pos-
suem 180 línguas diversas, em todo território brasileiro.

O imaginário coletivo acerca dos


povos indígenas no Brasil

A imagem do indígena, no período colonial, remete a de uma pessoa


ingênua, sem religião e disposta a aceitar toda e qualquer imposição cultu-
ral. Essa ideia é fruto de um pensamento positivista que a posteriori vai ser
ratificada com o darwinismo social, ao estabelecer uma hierarquia racial
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

ou étnica no século 19. Assim, o pensamento de uma sociedade primitiva


é reafirmado pela ciência. É nesse alicerce racista que a construção social
da imagem dos povos indígenas se constitui e se perpetua na consciência
social em meios distintos de divulgação de conhecimento.
O termo “índio” é utilizado, atualmente, tanto pela mídia quanto
pelo senso comum. É uma nomenclatura que generaliza e, consequen-
temente, invisibiliza toda a diversidade cultural dos povos indígenas. As
características identitárias e singulares que distinguem um povo do ou-
tro são, simplesmente, desconsideradas. A palavra índio é estereotipada
e fruto de uma construção coletiva reafirmada pelas ideais etnocêntricas.
Krüger (2004) define estereótipo como sendo uma crença coleti-
vamente compartilhada diante de algum atributo. Ou seja, caracterís-
ticas, traços psicológicos, moral ou físicos conferidos a um grupo so-
cial. Esses atributos são definidos como positivos ou negativos. Quem 127
afirma essa ideia é Leite e Batista (2008, p. 134-135) ao relatarem que

Os estereótipos sociais são divididos em atributos positivos e negativos e so-


-frem também duas mobilizações: a que se dirige para o grupo ao qual o in-
divíduo pertence (auto-estereótipo) e a que indica um grupo distinto (hétero-
-estereótipos). […] o estereótipo negativo apresenta-se pela sua forma nefasta
que inscreve grupos sociais e seus membros em categorizações de atributos
profundamente depreciativos e de descréditos.

O imaginário coletivo sobre os povos indígenas tem fortes bases


no hétero-estereótipo construído pela classe social dominante. Os es-
tereótipos negativos aos indígenas desfavorecem uma reflexão sobre o
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

mundo real e isso tem como consequência a discriminação e o pre-


conceito. Para Goffman (2008), os estereótipos podem ser considerados
como estigmas tribais de raça, nação e religião que podem ser transmi-
tidos de geração a geração que contaminam todos os membros de uma
família; tais estigmas trazem repulsa e vergonha de si próprio.
É importante destacar que a palavra índio foi atribuída pelo coloni-
zador europeu que não era apenas diferente, mas que desconhecia a outra
cultura ou as outras culturas com as quais entrava em contato. O não en-
tendimento e, à vista disso, a não aceitação dos costumes, da língua e da
religião somada à intolerância da diversidade e a autodeclaração de so-
ciedade desenvolvida ou positiva, passa a ter o “poder” de definição dos
grupos desconhecidos, fazendo-o com a palavra índio. A linguagem é
educativa. Isto posto, o termo índio interfere, inclusive, na identidade in-
128 dividual, na definição do grupo, na denominação dada pelo seu próprio
grupo social, anulando a identidade e descaracterizando a autodefinição.
O primitivismo é declarado a esses povos indígenas, com base
nos escritos, principalmente, de Charles Darwin e Augusto Comte.
A incivilidade desses grupos sociais é reafirmada pelo fato de eles
não possuírem um modo de vida similar ao das sociedades europeias.
Nesse sentido, as questões que norteiam a concepção ou as percep-
ções sobre os povos indígenas são construídas socialmente ao longo
de séculos, com base em uma história contada sob a perspectiva do
explorador, do colonizador e exterminador. Aquele que tentou, usan-
do muitas estratégias, destruir as diversas culturas indígenas.
A historiografia brasileira tradicional não apenas silencia, mas
nega as histórias dos povos indígenas. É aprendida na escola a história
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

dos gregos, dos romanos, mas não existe a contação das histórias
dos povos originários do Brasil. O que se tem é uma fala sobre esses
povos de forma generalizada e, portanto, uma anulação da diversida-
de cultural indígena nas Américas e no território brasileiro. Cunha,
(2014) assevera que por mais que haja semelhança entre as socieda-
des indígenas no Brasil, até mesmo aquelas situadas geograficamente
distantes e com linguísticas desconectadas, a homogeneidade é irreal.
O imaginário coletivo acerca do indígena no Brasil é também cons-
truído tendo como base o material didático utilizado nas instituições de
ensino. Nesse contexto, os livros didáticos são veículos de informação,
muitas vezes, o único meio de conhecimento que uma pessoa tem acesso.
Essas informações, quando distorcidas ideologicamente e, portanto, longe
da realidade, seja contida no passado ou na contemporaneidade, causam
impactos na formação de uma construção social que será levada adiante. 129
Silva (2005) ressalta que o livro didático omite ou apresenta de
uma forma bastante simplificada, e até mesmo falsa, o cotidiano real,
as experiências e o processo histórico-cultural de diversos segmentos
sociais, inclusive sobre os povos indígenas. A ausência desses grupos
sociais, em suas variadas realidades, nas ilustrações dos livros didá-
ticos é outro ponto importante que reafirma a invisibilidade e des-
respeito com a história que fala do Brasil. No lugar dessa ausência de
ilustrações têm-se figuras caricaturadas como se os povos indígenas
fossem eternas crianças, ingênuas, frágeis e incapazes, reafirmando o
imaginário social de representação negativa dos indígenas.
Outro material, no âmbito escolar, que participa da constru-
ção do imaginário coletivo acerca dos povos indígenas é a literatura
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

brasileira que projeta imagens distintas ao longo dos anos conforme


os movimentos literários. Ora o indígena participa de uma ‘lenda de-
moníaca’ como relata Ribeiro, ora ele é visto na qualidade de exten-
são da fauna e flora do lugar. Ou ainda, tem-se a sua presença em um
cenário idílico, iluminado pelo sol, passando a ser herói após a con-
vivência com o europeu. As mudanças na visão do indígena são di-
retamente influenciadas, pelo olhar europeu, em conformidade com
a fase em que o Brasil vivia, ou seja, tanto na fase colonial quanto na
condição de país independente (RIBEIRO, 2009; SANTOS, 2009).
Com base no imaginário coletivo, no contexto histórico brasilei-
ro, no que tange ao entendimento do indígena como carente de amparo,
ou crianças ingênuas, há leis que passam a garantir proteção e domínio
sobre suas vidas. Isso se dá por meio do Serviço de Proteção ao Índio
130 (SPI), que vigorou de 1910 até 1967 e, posteriormente, pela Fundação Na-
cional do Índio (FUNAI) ao instalarem suas inspetorias com o intuito
de ‘tomar conta’ de vários povos, muitas culturas, sem levar em conta
essa diversidade étnica, muitas vezes. Contudo, ainda há um agravante,
nesse contexto, a referida FUNAI, em muitos estados brasileiros, não
tem levado em consideração as reais necessidades e direitos de grupos
indígenas, que têm lutado com os poucos recursos ou nenhum, resistin-
do às controversas situações de domínio territorial e cultural.
As culturas indígenas e a imagem construída desses grupos so-
ciais também são fruto da mídia que proporciona uma modelagem
no pensamento e, desse modo, no comportamento humano. As re-
presentações sociais descritas por Moscovici (2003) dialogam com a
comunicação social porque esta divulga uma ideologia que servirá
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

de base para o imaginário coletivo. A imagem do indígena nos filmes,


nas telenovelas, nas produções audiovisuais, de forma geral, não tem
uma representatividade significativa e, quando se sobressai, possui
uma visão estereotipada e preconceituosa.
Os meios de comunicação de massa podem resgatar antigos va-
lores, como também, impor outros. A força da propaganda reforça o
preconceito e reproduz a estereotipização no discurso social, avigoran-
do novos valores e visões de mundo, os quais dão abertura para outras
versões da realidade. O estereótipo não é uma manifestação recente nos
grupos sociais, estando presente nos contos de fadas, nas narrativas po-
pulares, nas canções em períodos históricos diversos. Muitos provêm
de rituais, de mitos, de comparações e metáforas, que, utilizadas e re-
petidas, tornam-se frases feitas (LEITE; BATISTA, 2008; DINIZ, 2006).
Braga e Campos (2012) reafirmam que a memória é construída 131
e reavivada pela mídia. Tudo aquilo que se divulga nos veículos de
mídia é validado, a princípio, como um definidor de identidades, mas,
sobretudo, definidor de quem deve ser pauta da notícia. Mesmo em
áreas onde há uma representatividade de culturas indígenas, os meios
de comunicação não apresentam como prioridade na pauta jornalís-
tica as demandas acerca de grupos “inexpressivos” no imaginário co-
letivo, como é o caso de grupos sociais indígenas.
A chamada cultura da mídia oferece à sociedade uma base para os
indivíduos construírem um senso comum, uma consciência de classe e de
etnia, auxilia na construção da identidade e na determinação do que seja
o ‘outro’. É ainda importante ressaltar que a maneira com a qual as men-
sagens da mídia são recebidas pode colaborar positiva ou negativamente
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

para propagação de estereótipos que, quando compartilhados, poderão fa-


zer parte da memória do indivíduo e da sociedade (BIROLI, 2011).
No contexto de construção histórica de estereótipos, no que se
refere ao indígena, muitos brasileiros ou latino-americanos, em geral,
mesmo sendo netos de indígenas, não se consideram como tal por se
sentirem estigmatizados pela sociedade. Ou seja, negam a própria iden-
tidade cultural por ser construída e ancorada no preconceito. Conside-
rando o preconceito como sendo uma ideia negativa e rígida que pode
afetar drasticamente um grupo social. A identidade cultural deveria ser
um meio pelo qual uma pessoa ou um grupo social se defina e ainda
deseja ser reconhecido. Entretanto, muitos indígenas têm preferido o
não reconhecimento de sua origem, devido ao imaginário coletivo dos
indígenas ser negativo e, portanto, estigmatizado (ROMO, 2006).
132

Resistência e respeito, uma


necessidade visível

Carlos Dias (1988) descreve o comportamento do indígena, na


época do Brasil colônia, que vai repercutir e reforçar uma constru-
ção social estereotipada dos povos indígenas que perdura na contem-
poraneidade. Esse comportamento estereotipado é de que os povos
indígenas são submissos e aceitam passivamente a dominação de seu
território, a exploração da força de trabalho, a erradicação de suas
culturas, a perda da liberdade, a tomada de seus filhos e de suas mu-
lheres. Isso ainda faz parte de uma história contada por muitos.
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

Entretanto, é preciso corrigir o pensamento estereotipado de uma


passividade indígena que ao longo do tempo vem se sedimentando e
criando raízes. É importante enxergar a resistência dos povos indígenas
no passado e no presente. A luta por não aceitar a escravidão caracterizada
pelas fugas para áreas de difícil acesso; o enfretamento com os europeus
corpo a corpo, mesmo sendo de forma injusta, devido ao armamento dos
europeus (armaduras de metal, roupas de couro, espadas, armas de fogo).
É bem verdade que muitos indígenas foram usados como apoio
aos franceses, holandeses, ingleses e até portugueses para a tomada de
territórios, para o mantimento em momento de luta e ocupação; no uso
de técnicas de sobrevivência na mata; no apoio para esconderijos. Em
geral, a relação era de um europeu para 10, 20, 30 ou mais indígenas,
em seu auxílio. Mas isso não significa que não houve resistência, nega-
ção aos enganos europeus, às estratégias maquinadas de conquista da 133
confiança desses povos. Além disso, pesquisas atuais revelam o prota-
gonismo dos indígenas na História, inclusive nas escolhas estratégicas
que faziam nas alianças com grupos europeus.
A resistência dos povos indígenas é vista quando se tem hoje
mais de 200 povos ocupando seus territórios, apesar de ainda ser
uma realidade a luta pelo mesmo espaço. É vista ainda quando mui-
tos povos têm ressignificada a sua identidade cultural por meio de
uma tomada de consciência em lutar por seus direitos, suas terras,
seus valores culturais. Como é o caso de grupos sociais que retomam
seus costumes no compartilhamento com os mais novos; povos que
reaprendem a música, a dança, o modo de fazer o alimento, como é o
caso de grupos Kaingang que ocupam o oeste paulista.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Outro exemplo de resistência é acometido pelo povo Truká que


reside hoje na maior ilha do rio São Francisco, no município de Ca-
brobó, PE. Esse povo habita a ilha desde 1722; todavia, muitos even-
tos naturais como inundações, ou questões políticas como tomada de
terras por posseiros ou arrendatários. Esses eventos retiram o direito
de posse da terra e duvidam da identidade cultural deles. Apenas
com base em estudos antropológicos somado à luta do povo, junto
aos órgãos públicos, é que, em 2002, conseguem legitimar-se como
povo Truká e ter a ilha delimitada como propriedade, apesar de ain-
da faltar a homologação pela presidência da república.
O emolduramento da imagem dos povos indígenas, construída
sob a perspectiva eurocêntrica e sua perpetuidade na história do Bra-
sil, faz a sociedade ser míope diante de um cenário político ideológi-
134 co sobre a questão indígena brasileira. Apesar do darwinismo social,
e consequentemente um racismo declarado aos indígenas, tem-se
alguns tímidos passos rumo a uma tomada de consciência. Como
exemplo, tem-se a Lei 11.645/08 que propõe a obrigatoriedade de in-
cluir, no currículo oficial da rede de ensino, a temática história da
África e cultura afro-brasileira e indígena. Todavia, a citada lei não
vem sanar o silêncio, que é real sobre os povos indígenas, na histo-
riografia brasileira, mas é um passo acanhado diante de um cenário
cujo pano de fundo é formado de preconceito, desrespeito, exclusão,
omissão. E isso exige que as instituições de ensino realizem uma re-
flexão sobre essas questões sociais e étnicas.
Paraíso (2014) traz à tona uma reflexão que se mostra pertinente
acerca dos profundos desarranjos sociais que os indígenas tiveram
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

que fazer ao longo dos anos, devido às políticas impostas a eles e


como esse contexto proporcionou a destruição do universo tradi-
cional de cada povo, como também, da autoimagem positiva. Essa
autora ainda ressalta que a classificação de ‘misturados com os civi-
lizados’ usada no século 19 é retomada nos dias atuais com o termo
legal ‘integrados’, significando a negação da sua própria identidade
étnica qdiferente dos não indígenas e, por conseguinte, dos direitos
inerentes à sua condição como tal.

Considerações finais

Diante de uma historiografia de invisibilidade dos povos indí-


genas na história do Brasil, um povo, cuja história identifica suas 135
características com adjetivos como: fragilidade, passividade, selva-
geria, rebeldia, incivilidade, primitivismo, essa história mal con-
tada tem se esquecido de suas estratégias e seus comportamentos
de resistência, de luta. Com uma visão etnocêntrica darwinista são
invisibilizadas as histórias reais de cada povo que ocupava as Amé-
ricas e, logo, o Brasil.
Por meio da reflexão acerca de todo processo de extermínio dos
povos indígenas, é preciso ter uma consciência histórica e política
do multiculturalismo para que, então, seja possível a valorização da
diversidade étnica cultural que é intrínseca à sociedade brasileira.
E, assim, entender a realidade indígena no Brasil tanto do passado
quanto do presente. Diante de todo o processo de construção social
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

carregado de estigma e estereotipo negativo, é preciso desconstruir


esse imaginário coletivo para construir uma imagem real acerca dos
povos indígenas, valorizando suas diversas culturas.
É importante fortalecer as identidades culturais indígenas que ainda
resistem ao longo dos séculos para então obter um melhor entendimen-
to da história da formação do povo, do território e da cultura brasileira.
Assim como valorizar a participação intensa dos povos indígenas no to-
cante a conquista, a economia e, sobretudo, na cultura brasileira. Além
disso, é necessário reconhecer a influência do povo indígena na língua
portuguesa do Brasil, no modo de ser de muitos, na forma de preparo
dos alimentos, nos nomes dos lugares, das ruas, dos animais e alimentos.
A escola é um dos espaços que pode contribuir na construção
de uma consciência histórica e política sobre a questão indígena no
136 Brasil e ter como foco a desconstrução da invisibilidade desses povos.
A consciência política do professor e da gestão escolar pode trazer
mudanças de perspectiva de tratar essa temática e desconstruir os
estereótipos negativos e construir, sob uma perspectiva crítica, uma
visão política realista e atual acerca dessa questão.
É preciso que o Estado-Nação brasileiro se posicione e garanta
os direitos aos povos indígenas que, em princípio, são resguardados
pela lei e que tenham um espaço garantido no palco das lutas sociais
na esfera nacional. A reflexão aqui proposta aponta para a necessi-
dade de mais ênfase no que concerne a questão indígena brasileira,
inclusive na construção de uma consciência cultural e coletiva que
possam dar origem a ações educativas de combate ao racismo e dis-
criminação a essas culturas, a essas pessoas.
A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

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K. (Org.). Superando o racismo na escola. 2ª edição revisada. Secretaria de
educação continuada, alfabetização e diversidade. Brasília: MEC, 2005.
As culturas indígenas na sala
de aula: Tecendo redes para
desatar preconceitos
Daisy Fragoso1

O objetivo deste capítulo é apresentar como a prática na sala


de aula contribui na construção da consciência dos alunos sobre as
culturas indígenas. Nesse contexto, a preocupação com a inclusão de
conteúdos que contemplem a temática indígena nos currículos esco-
lares não é exclusiva dos indigenistas, mas também, de educadores e
do próprio Estado. A lei federal nº 11.645, de 2008, prevê, por exem-
plo, a inclusão de conteúdos que tratam a temática “História e Cultu-
ra Afro-brasileira e Indígena”. Além disso, a garantia desses conteú-
dos nos currículos escolares, bem como a implementação de ações


1
Mestre em Artes (Etnomusicologia) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo. Graduada em Música (Licenciatura) pela Universidade de São Paulo.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

educacionais, que abranjam esta lei são metas traçadas no Plano Na-
cional de Educação (PNE), aprovado em junho de 2014. Já os Parâme-
tros Curriculares Nacionais (PCNs), por sua vez, defendem o estímu-
lo de posturas que promovam a tolerância por meio de trabalhos que
valorizem a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro e que
tratem de sua diversidade etnocultural, como aponta o texto abaixo:

O grande desafio da escola é reconhecer a diversidade como parte inseparável


da identidade nacional e dar a conhecer a riqueza representada por essa diversi-
dade etnocultural que compõe o patrimônio sociocultural brasileiro, investin-
do na superação de qualquer tipo de discriminação e valorizando a trajetória
particular dos grupos que compõem a sociedade (BRASIL, 1998, p. 117).

140 Entretanto, se tal conteúdo faz parte dos documentos nacionais


oficiais de educação, por qual razão parece que pouco tem sido fei-
to nas escolas brasileiras neste sentido? Ou, ainda, por que se tem a
impressão de que as questões indígenas são trabalhadas de maneira
superficial e pouco significativa com os alunos? Dentre as possíveis
razões, algumas serão listadas para que, ao pensar sobre elas, seja
possível questionar a própria prática em sala de aula, refletir sobre ela
e, consequentemente, transformá-la.
Tratar da inclusão da temática indígena em sala de aula vai além
de simplesmente cumprir o que já é previsto em lei e de seguir o que
foi definido nos PCN; exige do professor, antes de mais nada, a cons-
ciência de que este é um conteúdo que pode contribuir positivamente
para a formação do aluno por razões diversas (algumas das quais
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

serão discutidas mais à frente). Essa consciência já poderia mudar a


situação exposta pela primeira pergunta feita acima.
No entanto, o ato de incluir questões indígenas nos conteúdos
escolares e a consciência de que são relevantes para a formação do
aluno não podem ainda transformar o exposto na segunda questão.
Isso porque, essa última pergunta se refere primeiro à própria prá-
tica e formação docentes e, em seguida, à maneira como o educador
enxerga e compreende as questões indígenas e o quanto as conhe-
ce. Vale observar, além disso, que a compreensão e o conhecimento
de quem são os indígenas, quais são suas questões, quais são suas
histórias, suas culturas, seu papel na sociedade etc., influenciarão
diretamente a prática docente.
Conhecer as questões indígenas, porém, não é o mesmo que
compreender estas questões. Enquanto o primeiro verbo está associa- 141
do à elaboração do conhecimento em si, que pode ser, por exemplo,
saber quantos são os indígenas que vivem no Brasil, em quantas et-
nias estão divididos, quais são as regiões que ocupam, quais e quan-
tas línguas falam etc. O segundo tem um sentido maior: ser sensível
a essas questões e capaz de formar opinião a partir dos assuntos dos
quais tomou conhecimento.
Como se pode ver, a compreensão depende do conhecimento.
Já o conhecimento pode vir desacompanhado, ainda que este seja
igualmente necessário para o trabalho de questões indígenas em sala
de aula. Contudo, o que se pretende ressaltar é que a compreensão
das questões indígenas é capaz de transformar o trabalho do pro-
fessor em sala de aula na medida em que o conhecimento, gerador
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

dessa compreensão, adquire sentido primeiro para o professor e, em


seguida e por causa disso, para o aluno.
Para tanto, foi desenvolvido com um grupo de crianças de
5º ano do ensino fundamental um repertório musical que con-
tivesse pelo menos uma canção de cada matriz brasileira, ou
seja, aprenderíamos uma canção portuguesa, uma canção de al-
gum país do continente africano e outra de alguma etnia indíge-
na — os Guarani. A canção escolhida, traduzida do guarani Mbya
para o português, diz “Nós andamos pelo caminho acompanhados
de canções para que sejamos/nos façam alegres/felizes” (FRAGOSO,
2015, p. 58) e faz referência à crença dos Guarani de que estão em
constante caminhada até chegarem à yvy marã e’y, isto é, a “Terra
sem Mal”. Tanto é que, enquanto cantam esta canção, os Guarani ca-
142 minham formando um grande círculo (como se fosse uma roda, mas
sem se darem as mãos), simulando a jornada guiada por Nhanderu
(demiurgo guarani) até o destino pretendido.
Isso, no limite, contribui para o entendimento da relação que os
Guarani têm com a Terra. Como povo originalmente nômade, este gru-
po estava acostumado a escolher suas terras a partir do que Nhanderu
lhes revelasse. Quando lhes é imposta uma terra fixa pelo governo (como
acontece hoje), o sentido de caminhar até a “Terra sem Mal” é afetado,
assim como são afetadas suas crenças, sua cosmologia, sua cultura. Se
no passado a caminhada era literal, hoje, devido à política brasileira de
concessão de terras indígenas, os Guarani realizam-na simbolicamente.
Desse modo, ainda que o fato de conhecer uma canção guarani
bem como ter acesso à sua tradução sejam suficientes para conduzir
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

um projeto que envolva canções indígenas, como o exemplificado


acima, compreender o que esse povo entende dessa canção pode
transformar a maneira como o professor conduzirá o conteúdo. Uma
possível consequência desta abordagem é o estímulo à uma postu-
ra mais sensível — e autônoma — em relação às questões indígenas
como um todo (cultura, cosmologia, política etc.), afinal, tais ques-
tões são parte de uma rede, conectando todos estes elementos.
Além disso, a sensibilização provocada pela relação conheci-
mento/compreensão, isto é, pelo conhecimento do assunto aliado
à compreensão deste (no sentido como abordado acima), é cami-
nho promissor para a aprendizagem significativa; é caminho que
leva àquela aprendizagem que faz sentido, que encontra lugar con-
fortável e coerente no repertório de conhecimentos do aluno. Isso
porque o conteúdo a ser trabalhado não vem solto, mas de forma 143
contextualizada, permitindo ao aluno fazer relações com aqueles
prévios. Moreira (2005, p. 85), por exemplo, define a aprendizagem
significativa baseando-se nos estudos de David Ausubel como um
processo de interação cognitiva entre o novo conhecimento e o co-
nhecimento prévio. Se esta interação não acontecer, a aprendiza-
gem não será significativa, conforme afirma o pesquisador. Assim,
no exemplo da canção guarani utilizada acima, o conhecimento da
canção e mesmo o conhecimento de sua tradução pouco signifi-
caria ao aluno se estes viessem desacompanhados do contexto re-
ferido e do seu significado maior, que é a própria cultura guarani,
já que lhe seria pouco viável, parece-nos, fazer relações entre algo
cujo sentido a criança desconhecesse.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Não raro, deparo-me ao final do dia letivo, no dia 19 de abril


— “o dia do índio”, no Brasil —, com crianças que carregam à ca-
beça um cocar de uma única pena e que têm seus rostos pintados
com duas linhas paralelas em cada uma de suas bochechas. Tal si-
tuação leva-me sempre a questionar, ainda que comigo mesma, o
que essa representação (ou, infelizmente, fantasia, até) significou
para cada aluno que teve seu rosto pintado: quais relações os estu-
dantes puderam construir a partir dessa atividade? Houve pesquisa
com os meninos e meninas sobre o que significam as diferentes
pinturas corporais entre as diversas etnias? As crianças chegaram à
conclusão de que as pinturas são diferentes, depende da etnia? Elas
perceberam, inclusive, que as linhas paralelas, como costumam ser
pintadas no dia do índio, são raramente usadas entre os indígenas?
144 Elas sabem do que é feita a tinta que os indígenas usam para se pin-
tar e de onde vem essa tinta?
No caso do trabalho com questões indígenas com uma abor-
dagem descontextualizada pode causar alguns danos, além de não
promover meios para uma aprendizagem significativa. O tratamento
superficial em sala de aula de conteúdos que envolvam a temática
indígena é eficiente motor para o preconceito, na medida em que
não são descontruídos os estereótipos relacionados a esse assunto. E,
quando esses não são combatidos, o preconceito se dirige aos povos
dos quais tais temas falam, atingindo indivíduos, pessoas.
Assim, hoje, conforme orienta a legislação, os cursos de peda-
gogia devem abordar essa temática em seus currículos, a fim de que
o educador em formação tenha condições de tratar desses assuntos
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

com propriedade e segurança quando estiver em sala de aula, com


os estudantes. Mas isso não isenta os educadores da pesquisa e da
busca por fontes confiáveis que lhes permitam ampliar o quadro de
informações e conhecimentos sobre as questões indígenas, e que nos
possibilitem relacioná-las com a maior quantidade de elementos pos-
sível da cultura de que tratam. A necessidade desta relação se jus-
tifica exatamente no fato de que, assim como acontece em todas as
culturas, todos os elementos e manifestações de determinada cultura
indígena estão relacionados e são interdependentes, impossibilitando
a dissociação de qualquer um destes da cultura como um todo. Isto é,
se pretende-se falar da alimentação guarani, por exemplo, será preci-
so tratar da relação deste assunto com a cosmologia (porque alguns
alimentos são proibidos ou estimulados em determinados períodos
da vida ou do ano), com a geografia, com as ciências naturais, com a 145
política, enfim, com a cultura guarani. Nesse sentido,

A tentativa desta abordagem é justamente combater práticas de trabalho des-


contextualizadas que pouco — ou nada — significa para o aluno e para as co-
munidades indígenas. Não é significante para o aluno porque, como vimos, é
descontextualizada, não corresponde à realidade indígena. Para as comunida-
des indígenas, em nada os favorece porque não são desfeitos os estereótipos, ao
contrário, reforça-os, causando, em consequência, uma visão equivocada sobre
quem de fato são e, inclusive, sobre o que representam para a história do país,
para o meio-ambiente e para a sociedade. Para que esse tipo de prática seja
revogado, compreende-se aqui a sala de aula como um dos espaços favoráveis
à promoção de discussões que tratem das questões indígenas com seriedade,
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

correspondendo à atual — e real — situação de suas comunidades no país para


que, afinal, os estereótipos sejam desfeitos, e, em consequência disso, suas cul-
turas sejam, pelo menos, respeitadas. Desse modo, um trabalho que pretende
incluir canções indígenas [ou outros assuntos] de qualquer etnia [indígena], ou
mesmo de outras culturas, deve estar precedido de um trabalho de pesquisa
aprofundado sobre as culturas às quais tais canções pertencem e sobre os valo-
res que estas trazem consigo de modo que, a partir do (re)conhecimento destes
valores, o aluno possa compreender o que determinada canção [ou outra ques-
tão] representa para a sociedade estudada (FRAGOSO, 2015, p. 106).

Outra questão que aponta para a necessidade de trabalhar as ques-


tões indígenas em sala de aula de forma contextualizada tem a ver com
o movimento das impressões que as crianças têm sobre essa temática e
146 com a possibilidade de rearranjá-las. Essas impressões — às quais Lévi-S-
trauss chama de “referências” (2012) — tratam de intuições, ideias que os
estudantes têm sobre isso e que formará tais conceitos. Por isso, tais im-
pressões são passíveis de movimento, de rearranjo: porque se elaboram
e reelaboram durante a vida e a partir das experiências que vivemos, co-
locando em xeque as impressões anteriores, como explica o antropólogo:

Desde nosso nascimento, o círculo familiar e o social imprimem em nosso


espírito um sistema complexo de referências que consistem em julgamentos
de valor, motivações, centros de interesse, e até mesmo ideias que nos incul-
cam sobre o passado e o futuro de nossa civilização. Durante nossa vida, nós
nos deslocamos literalmente com esse sistema de referências, e os sistemas
de outras culturas, de outras sociedades, só são percebidos por meio das de-
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

formações que nosso próprio sistema lhes inflige, quando ele não nos torna
incapazes de ver alguma coisa (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 85 e 86).

Por essa razão, é sobre a qualidade das experiências às quais as


crianças são expostas e sobre a maneira como elas são orientadas
que recairá a responsabilidade da elaboração de novas impressões,
da formação de novos conceitos e, assim, da formação do indivíduo
(FRAGOSO, 2014, p. 10). Nesse sentido, o educador exerce papel fun-
damental, pois é ele quem será o promotor, facilitador e mediador
desses movimentos ao instigar os estudantes ao rompimento das
impressões previa e preconceituosamente formadas. Tais impressões,
vale dizer, têm origem, em geral, nos estereótipos de índio já enraiza-
dos por meio dos veículos de comunicação e dos livros didáticos aos
quais as crianças têm acesso na escola e em casa. 147
Na pesquisa de mestrado que desenvolvi entre os anos de 2013 a 2015
(FRAGOSO, 2015), foi proposto que dois grupos infantis — um guara-
ni e outro não indígena — realizassem encontros por diversas vezes na
própria aldeia e fora dela para trocarem experiências musicais, sociais e
culturais. O primeiro grupo morava na a aldeia guarani Tenondé Porã.
Na primeira visita à aldeia perguntei a uma das crianças não indíge-
nas, denominada de Gabriela, como ela imaginava ser uma aldeia. A
resposta obtida foi: “Ah, não sei. Depois que eu vejo, eu esqueço como
eu imaginava antes de conhecer.”
Outra criança, aqui nomeada de João, antes da primeira visita à
aldeia, escreveu: “Estou com dúvida do que [os Guarani] vão fazer com a
gente: [se vão] ter medo [e] atirar na gente com flechas ou vão nos receber
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

educadamente.” No entanto, após um ano de trabalho na aldeia, João, a


fim de tranquilizar as crianças novas que recebíamos no grupo de pes-
quisa, diz-lhes sobre as visitas aos Guarani: “Não precisam se preocupar.
Eles não vão atirar flechas em vocês. Não é como todo mundo pensa.”
A resposta de Gabriela à minha pergunta e o caminho que João per-
correu desde a sua preocupação até o conselho dado aos novos colegas
explicam com precisão e eficiência o movimento de uma impressão à ou-
tra mais fiel à realidade guarani. Porém, mais uma vez, é preciso, atentar
para a qualidade das experiências às quais os estudantes são expostos se é
pretendido que este movimento aconteça, e, antes disso, promover espaço
para que essas discussões e reflexões aconteçam de forma significativa.
É preciso, portanto, engajamento e comprometimento do educa-
dor tanto com a formação dos estudantes, no sentido de buscar cami-
148 nhos que estejam aliados à uma prática significativa, quanto com as
questões indígenas, no que se refere ao conhecimento e à compreen-
são delas, à desconstrução de estereótipos e ao desencorajamento de
posturas preconceituosas sobre esse tema e sobre esses povos.

A temática indígena na sala de aula

O trabalho que contempla as questões indígenas em sala de


aula reivindica um formato mais aberto de abordagem, se compara-
do àqueles tradicionais. Isso porque um único tema a ser trabalhado
desencadeia, em rede, muitos subtemas sobre o mesmo assunto, to-
dos interdependentes, formando uma rede com fronteiras tênues, ou
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

mesmo sem fronteiras. Dessa maneira, a prática mais válida parece


ser aquela que envolve a maior quantidade de áreas (ou disciplinas)
e que com elas dialoga todo o tempo. Mais significativo ainda pa-
rece ser o processo que transcende — e transgrida? — as barreiras
disciplinares que segmentam os conteúdos, dando ao trabalho forma
fluida e elástica, desterritorializando-os. Isso não significa que não
seja possível tratar de um assunto apenas, em uma única disciplina.
Porém, como visto, qualquer assunto ou conteúdo referente a alguma
questão indígena tem relação com outros mais e deles depende.
O mesmo parece acontecer em qualquer área do conhecimento, le-
vando ao questionamento quanto à eficiência e coerência da segmentação
do próprio saber e do conhecimento — e a construção deles — em dis-
ciplinas, considerando seu caráter rizomático, termo este utilizado pelos
filósofos Deleuze e Guatari (2011, p. 22-23), e que aqui se aplica. O rizoma, 149
para estes autores, diferentemente da “árvore ou da raiz que fixam um
ponto, uma ordem”, descentralizam e conectam, como explicado abaixo:

o rizoma é feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação,


como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorizalização como
dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se meta-
morfoseia, mudando de natureza. Não se deve confundir tais linhas ou linea-
mentos com linhagens tipo arborescente, que são somente ligações localizáveis
entre ponto e posições. Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução
[…]. O rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre
desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saí-
das, com suas linhas de fuga (DELEUZE; GUATARI, 2011, p. 43).
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

E mais:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,
unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como
tecido a conjunção “e...e...e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir
e desenraizar o verbo ser (DELEUZE; GUATARI, 2011, p. 48).

As questões indígenas são rizomáticas; são todas “conectá-


veis” e não têm ponto de partida nem de chegada, o que permite
início em qualquer ponto e chegada a qualquer outro. Assim, um
tema nos levará a tantos outros, e estes a outros mais. Por essa
razão, optamos por apresentar abaixo um quadro de possibilida-
150 des geradas a partir de uma canção dos índios Tikmũ’ũn (Quadro
1) (TUGNY, 2013, p. 15 e 16).
Sabendo do que se trata essa música (que, neste caso, é a man-
dioca), o educador pode levantar muitas outras questões que dialoga-
rão com esta primeira, porque dela terão partido.
Antes do quadro referido ser apresentado, cabem algumas ob-
servações quanto ao uso de canções indígenas (e mesmo de outras
culturas) em sala de aula. Quando o professor decide utilizar uma
canção (ou poema etc.) de outra cultura e este estiver em outra lín-
gua, é extremamente relevante que o educador tenha acesso à letra
original, à correta pronúncia, à maneira como se escreve e à sua
tradução. Esse último item permitirá ao aluno que compreenda o
sentido da letra da canção, possibilitando as relações com outros
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

assuntos; já os anteriores serão responsáveis pelo contato da criança


com diferentes formas gráficas de registrar os sons da fala, com suas
diferentes possibilidades sonoras e variações, questionando a sua
própria língua e forma escrita ao compará-la, inevitavelmente, com
a da canção indígena aprendida. Isto é, ao conhecer outras formas
de registro gráfico da fala, a criança pode perceber que o seu, em vez
de ser o único e correto, é só mais uma das possibilidades de escrita
e registro dos sons. E este processo é extremamente rico, tanto do
ponto de vista pedagógico quanto social.
A comparação feita entre as diferentes maneiras de organiza-
ção de sociedades que não aquela da qual fazemos parte e a nossa
própria, quando a elas somos expostos, não é privilégio somente
da escrita. O mesmo acontece através do contato com qualquer ele-
mento cultural que esteja dialogando com outro de cultura distinta. 151
A língua, os sons da fala, a música, a escrita, os nomes, a comida, a
organização familiar, a religião, a aprendizagem, o ensino, enfim,
até a maneira como nos movimentamos são passíveis de compa-
ração, se forem distintas. E, se comparadas, farão com que perce-
bamos a nossa própria maneira de falar, de cantar, de se mover, de
aprender etc. Isso porque o exercício de perceber outra cultura per-
mite que percebamos a nossa própria de um outro ponto de vista,
fazendo-nos tomar consciência da nossa cultura e aguçando nossa
curiosidade em compreender porque fazemos determinadas coisas
de tal ou tal maneira (FRAGOSO, 2015, p. 18).
Alguns antropólogos escreveram sobre a maneira como
nos damos conta de nós mesmos através do contato com o outro.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Laplantine (1996, p. 21), por exemplo, diz que através do Outro, da-
quele que é diferente de nós mesmos, podemos enxergar o Eu, ou
melhor, através do Outro é que nos é revelado o Eu. A razão porque
isso acontece, de acordo com Boas (1940), consiste no fato de que é o
conhecimento de outros tipos de comportamento humano que nos
dá uma visão mais livre de nossas próprias vidas ou, ainda, de que
são “as lacunas entre mim e os que pensam diferente de mim — o
que equivale a dizer todos os outros, e não apenas os segregados por
diferenças de gerações, sexo, nacionalidade, seita e até raça — [que]
definem as verdadeiras fronteiras do self” (DANTO apud GEERTZ,
2001, p. 76); “e é por isso que vale a pena estudar outros povos, por-
que toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com
nossa própria cultura” (WAGNER, 2012, p. 61).
152 Além disso, a compreensão de que as pessoas se organizam de
diferentes maneiras e de que veem o mundo também de jeitos dife-
rentes, significa, ao final, compreender que muitos (se não infinitos)
são os “Eus” possíveis, e isto é, justamente, uma das chaves para a des-
construção de preconceitos: quando o “Outro” deixa de ser “Outro” e
passa a ser outro “Eu”.
Findada essa digressão, seguem abaixo dois quadros con-
tendo assuntos que podem ser trabalhados com os estudantes
a partir de um conteúdo indígena. Vale lembrar que a intenção
neste quadro foi apresentar a possibilidade de fazer uso de di-
versos conteúdos que não tratam diretamente de questões indí-
genas, mas que delas partem e com elas dialogam. Além disso, é
relevante mencionar que tais quadros contêm apenas sugestões
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

de trabalho e, por isso, não devem ser tomados como receita,


mas como gerador de ideias.
Seguindo os quadros, são explicados o tema em destaque
(que no Quadro 1 é a canção Ĩpupmaa dos índios Tikmũ’ũn, e,
no Quadro 2, é a brincadeira Mandi’o Nhemondoro dos Gua-
rani Mbya) e alguns dos subtemas gerados a partir deste maior.
Alguns subtemas não foram clarificados nem desenvolvidos em
função da especificidade de cada um, visto que pretendemos
oferecer ao educador referências somente àqueles assuntos que
faziam parte da temática indígena. Mesmo assim, maior pes-
quisa sobre cada subtema (e mesmo sobre o grande tema) seria
necessária, caso esses conteúdos fossem desenvolvidos com as
crianças em sala de aula.
Ainda que o foco aqui seja o trabalho com crianças, é possível 153
pensar em uma rede para os alunos mais velhos, considerando os
assuntos e conteúdos específicos para essa idade. Também é válido
dizer que minha formação em educação musical não é suficiente
para me capacitar a fazer as relações necessárias com os conteúdos
previstos nos PCN, de modo que cabe ao educador de cada área
(educador musical, educador físico, pedagogo etc.) fazer tais pontes
de acordo com o que pesquisa, bem como com o que objetiva.
Finaliza-se aqui, então, com os quadros e as exposições de al-
guns de seus subtemas gerados em cada rede, esperando que o ob-
jetivo maior do trabalho que envolve as questões indígenas seja al-
cançado: o de contribuir para a diminuição do preconceito com as
populações e culturas indígenas.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Quadro 1: Rede gerada a partir do trabalho com a canção Ĩpupmaa dos


índios Tikmũ’ũn

Tradução da canção (b)


Onde vivem os Tikmũ’ũn? (a) O cultivo da mandioca
entre os Tikmũ’ũn (f)
Letra e pronúncia da canção (b)
O cultivo da mandioca
entre os não indígenas (e)

Ĩpupmaa Significado da canção Ĩpupmaa (c)


Receitas com mandioca
(Canção dos índios Tikmũ’ũn)
(TUGNY, 2013, p. 16) A música entre os Tikmũ’ũn (d)
Raízes tuberosas,
bulbos e tubérculos
Kaibi Dukasela
Classificação dos alimentos (Canto dos índios Juruna para
e tipos de cultivo a época do plantio) (g)
Mandi’o nhemondoro (Brinca-
deira da colheita da mandioca
Alimentos orgânicos e não dos Guarani Mbya) (i)
orgânicos Cantos de trabalho (h)

154 Quadro 2: Rede gerada a partir do trabalho com a brincadeira Mandi’o


Nhemondoro dos índios Guarani Mbya

Divisão sexual de trabalho entre os


Divisão sexual de trabalho em não indígenas no Brasil (d)
algumas etnias indígenas (d) As questões de gênero

Receitas com milho e/ou


mandioca (e) Akuxi ojere (“A cotia corre” – brin-
Toke na mitã “Corre cotia”
quedo cantado guarani Mbya) (a)
(canção de ninar guarani Mbya) (c) (brinquedo cantado brasileiro) (b)

Mandi’o nhemondoro
Cantigas de ninar dos índios (Brincadeira da colheita da mandioca dos Guarani Mbya) A cotia e outros animais roedores
Juruna (f) (FRAGOSO, 2015, p. 92 e 93)

Mito da mandioca (i) Classificação dos animais

História do Iauaretê (Onça-Rei) (h)


Jogos de tabuleiro
Jogo da onça (origem Bororo) (g)

Jogos e brincadeiras de alguma(s)


Brinquedos de alguma(s) etnia(s) Jogos e brincadeiras
etnia(s) indígena(s) (m)
indígena(s) (n) de origem indígena

Brinquedos de origem indígena


As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

Como e onde vivem os Tikmũ’ũn?


Para pesquisar: Tugny (2013); <http://pib.socioambiental.org/pt>
e <http://pibmirim.socioambiental.org>

Letra, tradução e pronúncia da canção Ĩpupmaa

Letra Tradução livre


(TUGNY, 2013, p. 15 e 16) (TUGNY, 2013, p. 15 e 16)

Ĩpupmaa ãyĩpaxekaxex pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz bem grande
Ĩpupmaa ãyĩpanoxanox pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz comprida
Ĩpupmaa ãyĩpakũtaĩn pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz curta e grossa
155
Ĩpupmaa ãyĩpaxekaxex pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz muito grande
Ĩpupmaa ãyĩpanutanut pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz fina
Pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz bem escura
Ãyĩpahup pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz torta
Ĩpupmaa ãyĩpapeãpe pupmaa Debaixo do braço levando uma raiz achatada

*Pronúncia: uma ideia geral da pronúncia pode ser encontrada no


livro de Tugny (2013), onde consta a gravação da canção em questão.

Significado da canção Ĩpupmaa


DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Os Tikmũ’ũn têm diversos cantos que servem para enumerar e descre-


ver objetos, plantas e animais. Em Ĩpupmaa, este povo descreve a multiplici-
dade dos tipos de mandiocas que conhecem (TUGNY, 2013, p. 16).

A música entre os Tikmũ’ũn


Tratar da música de qualquer etnia indígena exige trabalho intenso
de pesquisa que não caberia aqui e muitos são os etnomusicólogos que
pesquisam as canções de povos indígenas. Sobre a música feita pelos ín-
dios Tikmũ’ũn, citamos como referência, os trabalhos da pesquisadora
Rosângela Pereira de Tugny, da Universidade Federal de Minas Gerais.

O cultivo da mandioca entre os não indígenas


A pesquisadora que recolheu esta canção, Tugny (2013, p. 16),
156 chama a atenção para o fato de que foram os povos indígenas que nos
ensinaram a usar e a cultivar a mandioca e a batata. Conhecer a ma-
neira como é feito o cultivo dessas raízes entre os não indígenas pode
fazer com que encontremos semelhanças com o jeito de cultivar de al-
guns povos indígenas e percebemos suas influências no nosso cultivo.

O cultivo da mandioca entre os Tikmũ’ũn


Dentre as possibilidades de pesquisa, a mesma autora referida
no item anterior. Além disso, a autora ainda propõe que se pesquise
a ciência indígena que transforma a mandioca-brava, que é venenosa,
em alimento por meio de uma ferramenta chamada tipiti, por exem-
plo (TUGNY, 2013, p. 16).
Kaibi Dukasela (canto dos índios Juruna para a época do plantio)
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

Para pesquisar: CD de Miranda, Fala de bicho, fala de gente, 2014.

Cantos de trabalho
Influenciado pelos trabalhos feitos a partir de canções indíge-
nas que tratem do plantio e cultivo de alimentos diversos, o educa-
dor pode conectar a este tema os cantos de trabalho. De acordo com
o Dicionário Musical Brasileiro, estes são cantos usados durante o
trabalho e destinados a diminuir o esforço e a aumentar a produção,
os movimentos seguindo os ritmos do canto” (ANDRADE, 1989,
p. 108) e são mais usados pelos trabalhadores rurais. Para pesqui-
sar mais sobre este assunto, consulte: Gianelli (2012), Cia Cabelo de
Maria (2007, CD) entre outros.

Mandi’o nhemondoro (Brincadeira da colheita da mandioca 157


dos Guarani Mbya) (FRAGOSO, 2015, p. 92 e 93)
Esta é uma brincadeira tradicional da colheita da mandioca re-
colhida na aldeia guarani Mbya Tenondé Porã, em São Paulo. A brin-
cadeira consiste em: uma criança indígena sentada no chão, abraçada
à base do tronco de uma árvore, enquanto outra a puxava por trás,
tentando, à força, fazer com que se soltasse do tronco as crianças sen-
tadas ao chão, enfileiradas e agarradas umas às outras, por trás (abra-
çando pelo plexo solar), como um trenzinho, sendo que a primeira
da fila se agarra à árvore. Outra criança, que não faça parte desta
corrente começa a puxar a última criança para que se solte daquela
a quem está abraçada. Assim segue até que todas as crianças sejam
arrancadas da corrente, como se estivessem colhendo mandioca.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Quadro 2. Rede gerada a partir do trabalho com a brincadeira


Mandi’o Nhemondoro dos índios Guarani Mbya

O Quadro 2 teve como ponto de partida um dos subtemas do


Quadro 1: a brincadeira Mandi’o nhemondoro. No entanto, esta foi
uma escolha nossa. Sendo assim, o educador pode partir do subtema
que achar necessário e não precisa ser um dos subtemas aqui sugeri-
dos. Ou seja, é possível — provável e razoável — que o professor crie
a sua própria rede de subtemas, considerando os assuntos os quais
deseja desenvolver com seus alunos bem como os objetivos a serem
alcançados ou mesmo o interesse do grupo.

Akuxi ojere (“A cotia corre” — brinquedo cantado guarani


158 Mbya) (FRAGOSO, 2015, p. 53-55).

Letra Tradução livre Guia de pronúncia


Akuxi ojere A cotia dá voltas A-cu-TCHII o-dje-RÊ
Pyávy ara py De noite, de dia Py-ÁU-vy a-RÁ PY
Uru ojapukai rã O galo cantou U-ru o-dja-pu-KÁI rã
Oo hoapa! A casa caiu! Ô ro-a-PÁ!

*Como se brinca: Para brincar, as crianças dão-se as mãos em


forma de roda, girando enquanto falam ritmicamente as palavras do
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

brinquedo, até que na última sílaba da última palavra (sílaba “pa” de


“hoapa”) todas se agacham.

“Corre cotia” (brinquedo cantado brasileiro)

Corre, cotia, na casa da tia / Corre, cipó, na casa da vó / Lencinho


branco caiu no chão / Moça bonita do meu coração

Toke na mitã (cantiga de ninar guarani Mbya) (FRAGOSO,


2015, p. 45-49)

Letra Tradução livre Guia de pronúncia


Toke na mitã Durma, nenê, To-qué na mi-TÃ
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Tove nderu Que seu pai traga Tôu-VÉ nde-RU
Vaka ra’y’i togueru Um filhotinho de vaca Va-ká ra-y-I to-güe -RU
Nerymbarã’i Para ser seu animalzinho; Ne-ry-mba-rã-I

Tapixi nambikue’i togueru Que seu pai traga uma orelhi- Ta-pi-TCHI na-mbi-kuê-I
nha de [coelho [to-güe -RU
Nderuparã’i
Para que de sua pele seja feita Nde-ru-pa-rã-I.
uma
Avaxi para’i [caminha
Áu-va-tchi pa-rá-I
Deavaxirã’î Ele trará milho sagrado
Déau-va-tchi-rã-Ĩ
Para você plantar.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Divisão sexual de trabalho em algumas etnias indígenas e di-


visão sexual do trabalho entre os não indígenas
Estes dois subtemas foram gerados a partir da canção Toke na
mitã, em função da menção que feita à caça e à busca por alimento
quando diz que o pai trará animais para o bebê brincar e milho
para plantar. Muitas são as etnias que têm atividades exclusivas
para cada sexo. Os Sateré Mawe, por exemplo, durante o fabrico
do pão do guaraná, dividem-no quanto ao sexo e à idade. Há mo-
mentos no fabrico que só os podem realizar, outros que cabem às
mulheres, e outros aos mais velhos ou idosos2.

Receitas com milho e/ou mandioca


Em um dos trabalhos desenvolvidos com alunos meus, foi
160 proposto, por exemplo, que cozinhássemos o milho como fazem
os Guarani: na grelha e sem sal. As crianças recolheram grave-
tos para que fizéssemos uma fogueira sobre a qual colocaríamos a
grelha para assar o milho.

Cantigas de ninar dos índios Juruna


De acordo com Marlui Miranda, em trabalho de recolha de can-
ções de ninar dos Juruna, essas cantigas “trazem em si uma referência
de um passado mitológico, quando aos animais era facultado o poder
de falar por Selaã, o criador”. Dessa forma, parte dessas canções tem
os animais como locutores de suas letras.


2
Para saber mais sobre o fabrico, pode-se consultar o trabalho de Araujo e Torres (2010) e
as informações disponibilizadas pelo ISA em: <http://bit.ly/2pmuS01>.
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

Jogo da onça (jogo de origem Bororo)


De origem Bororo, este é um jogo de tabuleiro. Formado por
uma onça e quatorze lobos-guará, a tarefa deste grupo é encurralar
o felino na toca. Para saber mais, basta uma rápida pesquisa nos
sites de busca.

História do Iauaretê (Onça-Rei)


Para pesquisar e ouvir, sugiro o trabalho fonográfico do Grupo
Manuí: Nhemonguatá (2012, CD).

Mito da mandioca
Silva (1990, p. 32) conta-nos a seguinte história:

Certa noite, em sonho, Mara, filha de um cacique de uma aldeia 161


indígena, conheceu um jovem não indígena e por ele se apaixonou.
Depois de haver conquistado o coração da moça, ele desapareceu,
deixando Mara em profunda tristeza.
No entanto, mais tarde, Mara percebeu que esperava um filho do
jovem que conhecera em seu sonho, mas seu pai passou a desprezá-la,
pois não acreditava no que ouvia.
A história, para surpresa de todos, era verdade. E a moça deu à
luz a uma menina mestiça. Sua mãe a chamou de Mandi e todos na
aldeia adoravam-na como se fosse uma divindade.
Pouco tempo depois, Mandi adoeceu e morreu. Mara enterrou
sua filha numa oca porque não queria se separar dela e por ela chorava
todos os dias, deixando cair o leite que ainda estavam em seus seios.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Até que um arbusto brotou, fazendo com que Mara pensasse


que era a pequena Mandi que desejava sair dali. Então a mãe re-
solveu remover a terra e encontrou apenas raízes brancas, tingidas
pelo seu leite que caíra.
Naquela mesma noite, conta o mito, o jovem não indígena
apareceu em sonho ao pai de Mara, contando-lhe que sua filha
havia dito a verdade. Também disse que a pequena Mandi havia
vindo à Terra para que seu corpo fosse transformado no primei-
ro alimento indígena.
O cacique perdoou a filha e o novo alimento recebeu o nome de
“mandioca”, pois Mandi havia sido enterrada numa oca.

162 Referências

ANDRADE, M. Dicionário Musical Brasileiro. Rio de Janeiro: USP, 1989.

ARAUJO, W. R. M.; TORRES, I. C. Trabalho e gênero na comunidade Sateré-


Mawé I’nhaã-bé em Manaus, AM. In: FAZENDO GÊNERO — DIÁSPORAS,
DIVERSIDADES, DESLOCACAMENTOS, 9. Anais do congresso. Santa
Catarina: UFSC, 2010. Disponível em: <http://bit.ly/2pCRnAO>.

BOAS, F. Race, language and culture. New York: The Macmillan Company, 1940.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e Eequizofrenia. São Paulo:


Editora 34, 2011. v. 1.
As culturas indígenas na sala de aula: Tecendo redes para desatar preconceitos

FRAGOSO, D. A. Entre a opy e a sala de música: arranjos entre crianças guarani


Mbya e crianças não indígenas. Dissertação. (Mestrado em Música). Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.

GEERTZ, C. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

GIANELLI, C. G. S. Quando a Natureza rege: relatos de cantos de trabalho. História


oral, v. 1, n. 15, p. 35-53, jan.-jun. 2012.

LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo, Editora Brasiliense, 1996.

LÉVI-STRAUSS, C. A antropologia diante dos problemas do mundo moderno.


São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
163
MOREIRA, M. A. Aprendizaje significativo crítico (Critical meaningful
learning) Indivisa. Boletin de Estudios e Investigación, La Salle Centro
Universitario Madrid, España, n. 6, p. 83-102, 2005. Disponível em: <http://
bit.ly/2pCRnAO>.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos:


apresentação dos temas transversais. Secretaria de Educação Fundamental:
Brasília: MEC/SEF, 1998.

SILVA, W. A. S. Lendas e mitos dos índios brasileiros. Freiburg: Editora Brigitte


Goller, 1990.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

TUGNY, R. P. (Org.). Cantos Tikmũ’ũn para abrir o mundo. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2013.

WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

164
Posfácio

Nos últimos anos, ganhou notoriedade nos meios educacio-


nais brasileiros a discussão sobre a temática étnico-racial. Ape-
sar da resistência de alguns setores da sociedade, avançou-se no
reconhecimento dos problemas que são resultado do passado es-
cravista em nosso país.
Até pouco tempo atrás, nos cursos de licenciatura não se falava
sobre a História da África, por exemplo. Hoje existem profissionais
dedicados a esse estudo, e a expectativa é que esse conhecimento seja
difundido com maior rigor teórico e metodológico, colaborando
para a formação dos professores.
No que se refere à história indígena, vemos também avanços
nas pesquisas, e os especialistas tem apontado para o protagonismo
dos diferentes povos nativos na formação do Brasil. Por muito tem-
po essa história foi relegada, mas chegamos ao tempo em que novas
narrativas surgem, colaborando para reinterpretação de episódios
consagrados na historiografia.
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL

Assim, seria redundante justificar a publicação de uma obra


como essa. Trata-se de um tema atual e considerado fundamental na
formação dos educadores.
Isso não significa que seja um assunto consensual no Brasil.
Pelo contrário, as consequências dessas novas perspectivas são alvo
de grandes controvérsias, e geram calorosos debates. É um campo de
estudo com disputas, algumas delas bastante polarizadas.
O livro em questão reúne textos que apresentam posições pes-
soais dos autores a respeito do debate. A despeito das diferentes po-
sições e entendimentos que existem, os capítulos colaboram para
provocar discussões e ações. Mesmo para aqueles que se opõem a
discutir os problemas da diversidade no Brasil, não se pode negar a
importância da discussão teórica e ética a respeito da trajetória de
166 inúmeros povos que colaboraram para formar nosso país.
Os autores desta obra entendem que o Brasil continua sofren-
do as consequências de seu passado desigual. Em comum, possuem
o interesse em garantir o respeito e os direitos a negros e índios,
cujos percursos históricos foram marcados por estratégias de so-
brevivência e resistência.
Os textos explicam conceitualmente as questões étnico-raciais
no Brasil, discutem pesquisas históricas e antropológicas bastante
fundamentadas, posicionam-se diante do problema e apontam su-
gestões de trabalho. Em alguns momentos, os textos são provocati-
vos, mas é isso que se espera de um campo polêmico como esse.
O Unasp é um Centro Universitário marcado pela diversidade
étnico-racial, inclusive com alunos de outros continentes. Por isso,
Posfácio

entendo que é importante apoiar a iniciativa das organizadoras dessa


obra, que registram debates que já são realizados em eventos institu-
cionais que contam com a participação de alunos de diferentes cursos.


Dr.Ubirajara de Farias Prestes Filho
Consultor Técnico Legislativo, na área de História, da Câmara
Municipal de São Paulo.
Autor de livros didáticos de História pela Casa Publicadora
Brasileira.

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