Arquitetura Socioeducativa
Arquitetura Socioeducativa
Arquitetura Socioeducativa
AR
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TE
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RA
SOCIO
EDUCA
TIVA
O espaço ressocializando pessoas
e curando a sociedade
Coleções CAU/RS
2015
Charles Pizzato
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
O espaço ressocializando pessoas,
curando a sociedade
Porto Alegre/RS
2016
CAU/RS – Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul
Rua Dona Laura nº 320, Rio Branco – Porto Alegre – RS
Telefone: (51) 3094-9800
www.caurs.gov.br
Capa:
Daniel Ramos Pereira | e21 agência de multicomunicação
Foto do Autor | acervo pessoal
Diagramação da Capa | Marcele Danni Acosta
Revisão Ortográfica da Capa | Gabriela Belnhak Moraes
Revisão ortográfica:
Nara Maria Crossetti Vidal
Impressão:
Corag – Cia. Rio-grandense de Artes Gráficas
Tiragem:
1.500 exemplares
Permite-se a reprodução PARCIAL desta publicação, sem alteração do conteúdo, desde que
citada a fonte e sem fins comerciais. Ressalta-se que a violação dos direitos autorais (Lei nº
9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.
17,6x25,3cm. ; 160p.
ISBN 978-85-7770-300-5
CDU 72.01:37.015.4
Entre essas tarefas, enquadra-se o presente projeto editorial, que procura esti-
mular os Arquitetos e Urbanistas a desenvolver produções intelectuais e científicas,
de modo que possam ser absorvidas pela comunidade profissional. No ano de 2015,
o CAU/RS se propôs a editar quatro livros, de iniciativa e autoria de profissionais
residentes no Rio Grande do Sul que, submetidos a uma Comissão Editorial, fossem
considerados habilitados para serem publicados por nosso Conselho.
André Huyer
Carlos Eduardo Mesquita Pedone
Célia Ferraz de Souza
Luiz Antônio Machado Veríssimo
AGRADECIMENTOS
À minha esposa Cris, por todo o apoio, carinho e companheirismo desses anos
todos que vivemos juntos, na dor e no amor. E pelas orientações em todos os
meus textos, sou um escritor mais coerente graças a ela – acreditem, eu poderia
ser bem pior...
À minha sogra Nara, pela revisão ortográfica em todos os meus textos publicados.
Graças a ela não aprimorei minha gramática, só fiquei mais preguiçoso.
Aos meus alunos e colegas professores das ULBRA Torres e Canoas, onde a cada
momento eu aprendia como ensinar – eterno desafio! É uma benção poder aprender
coisas novas! À minha parceirinha de ensino e amiga de todas as vidas, Cláudia Tit-
ton, que, com a graça e a leveza que lhe são ímpares, revigorou meu prazer da sala
de aula e, assim, me fez crer que esse livro era possível.
Quando entrei na FASE fui muito bem acolhido pelos colegas do Núcleo de Enge-
nharia, Paulo, Geraldo, Bruno e Neusa. Agradeço à Neusa Marques, especialmente,
por ter me ensinado tudo sobre ser um bom funcionário público e por ser uma gran-
de amiga, acima de tudo e de todos.
À Marli Claudete, por ter me resgatado no último minuto, quando eu já tinha joga-
do a toalha. Através dela fui colocado dentro de um grupo multidisciplinar de elite.
Foram oito meses de trocas de experiências que deram uma bela encorpada nesse
livro. Pensar que eu poderia publicá-lo antes dessa experiência, me parece agora
uma completa insensatez!
1º Prefácio...........................................................................................................................13
2º Prefácio...........................................................................................................................17
Introdução...........................................................................................................................21
O que é Arquitetura?.......................................................................................................... 23
Se por uma Arquitetura Social... Por que não uma Arquitetura
Socioeducativa?.................................................................................................................. 25
O que é Socioeducação (para arquitetos e engenheiros)?............................................. 29
Por uma Arquitetura que cura........................................................................................... 35
O Programa Arquitetônico Socioeducativo.......................................................................41
Implantações de CASE's: Aceitação de Ocupação Territorial e Desafios...................... 53
Tipologias Arquitetônicas .................................................................................................67
Patrimônio Histórico e Socioeducação.............................................................................75
Meio Ambiente e a Socioeducação................................................................................... 83
Sustentabilidade: Exemplo de Vínculo Social................................................................... 89
Dimensionamento e Conforto Ambiental: A Contribuição do Arquiteto........................ 93
Durabilidade e Manutenção: Desafio das Especificações do
Projeto Arquitetônico.......................................................................................................105
Estética da Segurança......................................................................................................113
Significados na Arquitetura Socioeducativa: A Estética à Serviço
da Socioeducação............................................................................................................127
O Espaço como Protagonista da Educação Cidadã.......................................................139
O Espaço que Propicia A Cura.........................................................................................149
Referências Bibliográficas................................................................................................157
13
1º PREFÁCIO
Não sei explicar bem o porquê, mas a leitura do livro de Charles Pizzato, associan-
do arquitetura e socioeducação, me permitiu fazer uma viagem ao início da década
de 90, reportando-me ao meu primeiro dia de trabalho como psicóloga na FEBEM1
(que se transformou na atual Fundação de Atendimento Sócio Educativo – FASE). A
unidade de atendimento era o Instituto Central de Menores – ICM2, que veio a ser
apelidada de Casa dos Horrores, devido às manchetes de uma série de reportagens
veiculadas em um jornal com grande circulação no estado do Rio Grande do Sul, na
época. Nesse local eram frequentes maus tratos, fugas em massa, motins e teve o
ápice de seu horror com a morte de nove adolescentes em um curto espaço de tem-
po. Essa unidade foi desativada no início dos anos 2000, talvez como uma tentativa
de apagar todo sofrimento absorvido por aquelas paredes. A decisão pela desativa-
ção do ICM trazia em seu bojo a intenção de demarcar uma mudança de paradigma,
principalmente por representar um modelo de instituição e de atendimento que de-
veria ser banido do sistema. Cabe considerar que sua estrutura física ficou abando-
nada, foi saqueada e depredada, e hoje é uma ruína incorporada à vila que se formou
no terreno da FASE, com invasões irregulares.
Após o fechamento de uma unidade com a dimensão do ICM, mais de 100 leitos
foram perdidos, culminando em superlotação nas demais unidades da capital, já
que inicialmente, no estado, só existiam unidades de internação em Porto Alegre.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA foi necessário fazer o
movimento contrário, a regionalização do atendimento aos adolescentes infratores,
para que pudessem cumprir sua medida socioeducativa próximos de seu local de
origem. Essas iniciativas marcaram concretamente o fim de uma era, dando início
à construção de novas unidades regionalizadas, chamadas Centros da Juventude –
CJ’s. Assim, extingue-se a FEBEM e começa uma nova fase com a FASE3 (desculpem
o trocadilho, mas não resisti!).
15
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Foi um longo caminho percorrido até aqui e hoje me sinto honrada com o convite
de Charles para prefaciar seu livro, discorrendo sobre algo que é parte de minha
história. Não ponderei o fato de nunca antes ter feito um prefácio, apenas me senti
presenteada com a possibilidade de ler seu livro prioritariamente e me deixar levar
pelas emoções e reflexões que o texto proporciona. A primeira delas, como já disse
no início, me reportou a algum lugar no passado, onde havia uma unidade com ar-
quitetura distanciada do que encontramos no modelo atual, mas que teve sua impor-
tância para chegarmos aos Centros de Atendimento Socioeducativo – CASE’s, que
no livro o autor denomina de unidades de terceira geração.
Uma das características mais notáveis no texto desenvolvido por Charles é sua
capacidade de estabelecer um ritmo de explanação, que favorece a compreensão,
não somente por arquitetos, urbanistas e engenheiros, como pelos demais profis-
sionais que se interessem pelo assunto da socioeducação. Sendo eu psicóloga, ao
longo dos capítulos que se seguem, apreciei o empenho do autor em demonstrar
a necessidade e a importância da interface entre o ambiente e comportamentos
humanos. O livro traz à tona a preocupação com a satisfação e com a qualidade de
vida dos usuários, bem como com o entorno da construção. De maneira bastante
instigante, o autor provoca e convida-nos a pensar sobre a influência da arquite-
tura no adoecimento físico e mental ou, por outro lado, sua contribuição à saúde
e à cura da alma.
transmitir, com a sensibilidade que o caracteriza, que tanto as energias sutis quanto
outras questões objetivas estarão sempre envolvidas na dinâmica dos relacionamen-
tos que ali se estabelecerem.
17
2º PREFÁCIO
Não consigo evitar um paralelo entre essa atividade que desenvolvíamos juntos
– até porque ela é justamente o elo que nos vincula – e a discussão que Charles
propõe neste livro: a de que a sociedade tem evoluído muito mais rapidamente do
que o conjunto de espaços que abriga suas atividades. Como bem coloca Charles, os
prédios – e, num sentido maior, a Arquitetura, responsável por eles – não conseguem
evoluir tanto, ou tão rápido, quanto os conceitos.
É o caso, como nos demonstra o autor, de grande parte das unidades de interna-
ção e acolhimento de adolescentes em conflito com a lei, em que a evolução das es-
truturas físicas não consegue acompanhar a evolução das práticas socioeducativas
e pedagógicas. Fenômeno bastante grave, uma vez que, em não estando o prédio
em consonância com o projeto pedagógico, pode ficar inviabilizado o atendimento
socioeducativo desejado.
Pois bem, por mais que o olhar aqui esteja direcionado à questão das institui-
ções socioeducativas, Charles toca, com extrema habilidade e sensibilidade, em um
problema que acredito ser um dos maiores e mais relevantes na Arquitetura e no
Urbanismo Contemporâneos e um desafio constante para o arquiteto em suas mais
diversas frentes de atuação: a rigidez, a complexidade e o tempo de maturação da
Arquitetura (tanto como ofício quanto como objeto) são qualidades diametralmente
opostas à flexibilidade e à rapidez de evolução das relações humanas. Fato que põe
em juízo a capacidade da disciplina em compor com as demandas dos seres huma-
nos e da cidade contemporânea.
19
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Charles também nos oferece reflexões sobre elementos imateriais que tornam o
lugar bem mais que seus edifícios, fazendo com que o âmbito do construído vá além
do que é estabelecido pelos sistemas tridimensionais aos quais atribuímos o nome
de Arquitetura. De Gallagher à Foucalt, tudo nos faz crer no poder do lugar na re-
cuperação das pessoas, uma vez que vínculos e identificações são constantemente
estabelecidos com os ambientes que nos contêm.
Digo insano, porque, quem, em sua sã consciência despenderia, nos dias de hoje,
tempo e energia para resolver problemas de habitabilidade em locais dentro dos
quais a parcela mais significativa de seus usuários nem sequer deseja estar? E que,
uma vez estando, estabelece com o mesmo uma relação destrutiva, já que, como diz
Charles, uma das consequências da privação de liberdade é o repúdio (consciente ou
não) pela edificação. Quem, por Deus, se importaria com o que está sendo oferecido
a quem fatalmente pode destruir, depredar, degradar? A quem talvez nem “mereça”
mais do que já está a receber...
E aí, a meu ver, está um dos maiores méritos desta obra. Reside no fato de promo-
ver não apenas a restauração do ser adolescente em conflito com a lei, no que tange
às suas relações com uma arquitetura adequada, mas também a do leitor-cidadão,
na medida em que se vê convidado a revisitar uma série de valores pessoais super-
ficialmente pré-estabelecidos.
20
CHARLES PIZATTO
O primeiro diz respeito a um Charles Urbanista que, com o olhar ampliado à macro
escala, mostra-se genuinamente preocupado com os impactos ambientais e sociais
da implantação física dos Centros de Atendimento Socioeducativo (CASE) na cida-
de, uma vez que são equipamentos de grande porte e que, idealmente, devem estar
inseridos em territórios intraurbanos, em prol da inclusão e não segregação dos
indivíduos. Desafio imensurável se tomarmos por conta os raros espaços disponíveis
na cidade contemporânea e o baixo grau de aceitação, por parte das comunidades
preexistentes, com relação a essa nova (e quase sempre indesejada) vizinhança.
Por fim, não menos relevante, está o olhar sensível do Arquiteto de Edificações,
imerso, nesse caso, em uma luta incansável para remediar e prevenir danos cons-
tantes às edificações, pois aqui, além de planejar e projetar espaços, o arquiteto
precisa lidar com um processo de deterioração agressivo e veloz sofrido pelos pró-
prios espaços. Chutes e socos contra os elementos arquitetônicos, o abrir e fechar
agressivo de portas e janelas, pedalaços, estoques, motins, assim como problemas
relacionados à alta demanda de uso, são alguns dos exemplos que configuram um
cenário que nós, meros arquitetos, externos aos CASE's, não estamos acostumados
a lidar. Impressiona, então, a “ginástica” da arquitetura para lidar com essa reali-
dade e oferecer espaços que sejam adequados funcionalmente e, quiçá, dignos de
alguma estética, fundamental para promover um incremento na saúde humana.
E a cura, como bem diz Charles, é social. Passa pela humanização do adolescente,
do arquiteto, a minha, a sua, através da sensibilização pelo outro e de atitudes res-
ponsáveis na construção de um mundo melhor, mais justo, igualitário, de fato para
todos. E aí, quem sabe, não precisaremos mais de CASE’s. Até lá, e para isso, preci-
samos de obras como essas e de pessoas como Charles.
21
INTRODUÇÃO
Trouxeram Pedro junto com os outros. Ainda bem que não algemado. Seria horrí-
vel vê-lo assim. Foram se distribuindo pelas cadeiras à volta da quadra. Estavam aos
pares, mas havia umas extras que iam sendo usadas por aqueles que tinham mais
de uma visita.
Ninguém mais quis vir com ela. "Melhor assim" – pensou. "Não fico de tro-lo-ló!"
Mas a verdade era que gostaria de ter alguém junto. Ajudaria a passar o tempo. Ago-
ra não importava. Importante era tê-lo visto. Viu. O coração bateu mais forte. E podia
ter desacelerado, mas agora queria pegar na mão dele, falar com ele, ouvir a voz.
Não sabia se o abraçava. Não só porque não sabia se podia (o que viu pelos outros
depois que sim), mas tinha um tanto de raiva. "Esse guri! Sempre me dando trabalho!"
Ele tratou de abraçar. Um abraço meio duro, meio mole. Parecia abraçar um bo-
neco. E disse: "Oi mãe." Pronto, bastou! Era o que queria. Só aí o coração parou de
bater forte. Antes parecia que ia saltar fora.
Sentaram. Ele baixou a cabeça. Ela ficou olhando para frente, um tanto aliviada.
Pensava no que fazer a seguir. Sempre teve receio de conversar sobre as coisas difí-
ceis com o filho. Se limitava a dizer: "Juízo, filho..." Agora era diferente. Mas a cabeça
ainda estava vazia, foi muita angústia acumulada que finalmente ia embora.
Em todo caso ele estava ali. E pouco importavam os dias em que ficou sem saber
onde ele estava – só tinha aquela informação que era na polícia. Pouco importava
quantos telefonemas teve que dar até descobrir em que prédio ele estava e as regras
da visita (dia, hora, o que pode levar, o que não pode...). Pouco importavam as três
horas de espera do lado de fora do prédio, porque o ônibus tinha um só horário. E
nem depois o passar de funcionário a funcionário para entrar no prédio, cada um
falando uma coisa diferente, pedindo uma coisa diferente... Pouco importou ser re-
vistada, apesar de que ficou incomodada, como se estivessem achando que ela fosse
uma bandida.
Agora nada disso importava, tudo ficou para trás. A angústia de ver se o filho es-
tava bem passou. Maria deu um suspiro. Foi de alívio, mas não aliviou. Parecia que
outras coisas começavam a pular na cabeça. Outras preocupações.
23
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Então foi quase mecânico que Maria estendeu a mão e repousou sobre a mão de
Pedro. Ele quase não reagiu. Só mexeu um pouco os dedos e suspirou.
Aquele minuto que ficaram em silêncio passou lento como o dia estava passando
até então. Importante era que encontraram um lugar, no meio daquela novidade
toda para se encontrar e, quem sabe, conversar.
Maria e Pedro não existem. E existem todos os dias na rotina dos Centros de
Atendimento Socioeducativos. Para as pessoas se encontrarem, faz-se necessário
oferecer um espaço para esse encontro. Esse livro trata sobre a relevância desses
espaços.
24
O QUE É ARQUITETURA?
Certa vez ouvi que Arquitetura é a poesia das paredes. Vide as obras de Oscar Nie-
meyer, seus esboços iniciais e suas motivações para promover a estética das curvas
nas suas edificações. O uso reduzido, ainda que marcante, das cores e a ênfase nas
volumetrias brancas têm por objetivo enfatizar as linhas, que é por onde acompa-
nhamos com os olhos a beleza das formas, onde se dá a “leitura” poética.
25
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
26
SE POR UMA ARQUITETURA SOCIAL...
POR QUE NÃO UMA ARQUITETURA
SOCIOEDUCATIVA?
1 Aqui especificamente me refiro a todos os funcionários que trabalham nas instituições socioeducativas de inter-
nação, sejam no cargo de agente socioeducador ou outros.
27
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Como bem colocou Danielle Gomes de Barros Souza em sua dissertação de mes-
trado, o Projeto Arquitetônico é como um "[...] instrumento de valores, ideologias e
visões de mundo." (SOUZA, 2011, p.18) Para cada elemento arquitetônico adotado
em um prédio socioeducativo, há um jogo profundo e vigoroso de visões de mundo
e da alma do ser humano.
Aos gestores públicos, torna-se fundamental entender que um habitat com quali-
dade é um direito de todos e cabe ao arquiteto o dever de promover essa qualidade
através de suas qualificações profissionais. Além disso é direito de todos um espaço
planejado e construído através da participação nos seus mais diversos meios.
Se desejamos uma sociedade mais justa e que promova a inclusão, essa deve ser
completa. Não há espaço para a exclusão, pois que ao excluir parte da população,
por mais justificativas para que assim se proceda, tal exclusão sempre será sob o de-
terminado prisma de outras parcelas da população. Cada setor de nossa sociedade,
cada grupo de pessoas tem a tendência ao ato exclusivo. É da natureza humana a
exclusão, o distanciamento, o isolamento, o banimento. Mas o que é aceito por uns,
torna-se inapropriado para outros. Sendo assim, como saber o que é permitido e o
que não é? Esta construção coletiva é que se debate diariamente nas nossas rela-
ções sociais, em geral, terminando e sendo determinada pelas nossas leis.
28
CHARLES PIZATTO
se o adolescente está (como se diz nos meios socioeducativos) em conflito com a lei,
ele automaticamente é diferenciado por isso e, por consequência, deve ser isolado
da sociedade.
Caminha-se para uma sociedade mais justa e integrada. No entanto vemos que
há presente manifestações que clamam por exclusão; quando revestidas de falso hu-
manismo, clamam por distanciamento; e nos casos de adolescentes que cometeram
atos infracionais, vemos presente a voz da punição.
29
O QUE É SOCIOEDUCAÇÃO
(PARA ARQUITETOS E ENGENHEIROS)?
Aproveito este capítulo para repassar alguns conceitos correlatos aos arquitetos
e engenheiros, de forma prática, visando à melhor compreensão do livro como um
todo. No entanto não há a intenção de reduzir o tema em poucas páginas. A lida
socioeducativa é ampla e rica em desdobramentos, logo não há a intenção em pro-
mover reducionismos do tema. Para quem tiver interesse em aprofundar mais os
conhecimentos, já existe literatura farta nas áreas da assistência social, educação e
psicologia. Uma parte consta nas referências bibliográficas desse livro.
Já por ato infracional, consta no ECA, no seu artigo 103 que se trata de “[...] con-
duta descrita como crime ou contravenção penal”. Apesar de se aproximar, nos fatos
criminais, como sendo a mesma coisa, entende-se que a diferença está na responsa-
bilização e no tratamento jurídico que se dispensa ao adolescente, dentro da doutri-
31
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Difícil mesmo é entender o ser adolescente em conflito com a lei de uma maneira
"holística". Em geral deixamos que nossos valores pessoais (que não são plenos)
conduzam tal conceito.
1 FONSECA, Claudia (Coord.) e BARCELLOS, Daisy Macedo de (Coord.). Avaliação situacional, motivações e ex-
pectativas da população envolvida pelo sistema FEBEM - Relatório apresentado à Presidência da FEBEM à Empresa
de Comunicação Martins e Andrade. Porto Alegre, maio de 2001. Estudo realizado pelo Núcleo de Antropologia e
Cidadania (NACI), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS.
32
CHARLES PIZATTO
Se houve um ato infracional cometido por adolescente, é sinal que algum dos
seus direitos absolutos, garantidos pelo artigo 227 da CF, falhou. E essa falha deve
ser recuperada através da Medida Socioeducativa (MSE). São várias as MSE que po-
dem ser aplicadas, dependendo do ato infracional. Para definir qual, os Juizados da
Infância e Juventude seguem todos os preceitos de um julgamento legal. As MSE es-
tão definidas no artigo 112 do ECA e são elas a advertência, a obrigação de reparar
o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a semiliberdade
e a internação.
Todas as ações acima dispostas foram recentemente reguladas pela Lei do SI-
NASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), Lei Nº 12.524 de 18 de
Janeiro de 2012 e é também o SINASE, em diretrizes lançadas em momento anterior
à Lei, em 2006, que orientam grande parte das ações socioeducativas. Trata-se de
um sistema pois intenta relacionar-se com os sistemas educacional, de justiça, de
segurança pública, de saúde e de assistência social. Logo, as ações necessárias para
a socioeducação ocorrer são abrangentes e diversas. A infraestrutura necessária
para todas essas ações é que leva à complexidade do programa arquitetônico.
33
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
2 No presente ano, a sociedade trouxe à discussão o aumento do tempo de internação, ou ainda a redução da
maioridade penal, mas não pretendo abordar aqui esses assuntos.
34
CHARLES PIZATTO
3 Dependendo da gravidade das condições de saúde, a instituição em que o adolescente estiver internado pode se
valer de apoio das redes públicas de saúde.
35
POR UMA ARQUITETURA QUE CURA
Logo que começamos a estudar Arquitetura, vemos que ela objetiva o bem-estar
do ser humano. Ela promove a manutenção da saúde. E por saúde, podemos enten-
der uma saúde não só do corpo físico, mas também do corpo emocional, da mente,
do espírito e da alma1.
Em 1993 e 1994, participei de um workshop com o Arq. Carlos Solano sobre Feng
-Shui e Assentamentos Humanos. Aquele evento abriu minha mente à compreensão,
além do entendimento do tema até então. A Arquitetura pode realmente auxiliar o
corpo emocional a se cuidar e o corpo mental a se organizar e apaziguar os anseios
da alma.
Começava nessa época, no Brasil, um boom de terapias alternativas, como res-
posta às perguntas e necessidades que a medicina convencional não conseguia res-
ponder. As já existentes homeopatia, acupuntura e yoga (ciências de técnicas sérias
e profissionais respeitados) foram reforçadas e engrossadas pela quiropraxia, cro-
moterapia, radiestesia, Reiki, florais, meditações, geomancia, xamanismo, geometria
sagrada, Feng-Shui, magia e outras tantas vertentes que não cabem ser citadas
exaustivamente. A última década do século XX e a primeira do século XXI foram res-
pectivamente a ascensão e a derrocada dessas ciências alternativas. E digo alterna-
tivas apenas por não terem conseguido ingressar plenamente nos meios acadêmicos
oficiais e não poderem ser comprovadas plenamente pelos métodos científicos.
De todas essas ciências, sobre muitas me debrucei, pois elas detinham relação
direta com o espaço físico e a sua influência na saúde humana. Ainda acredito em
uma Arquitetura que possa ter um olhar sobre as energias sutis2 do nosso planeta.
1 Existem outras abordagens de saúde, mas que não cabem ao contexto desse livro.
2 Energias sutis seriam as energias eletromagnéticas que são em escala pequena demais para serem mesuradas
por aparelhos eletrônicos portáteis, restando às técnicas alternativas sua aferição, como a radiestesia, a rabdoman-
cia e a prospecção de mãos, por exemplo.
37
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
No entanto, quando me refiro à derrocada dessas ciências, talvez esteja sendo in-
justo e cartesiano, pois a vertente sociocultural que se seguiu é a que coloca valores
maiores na sustentabilidade. Com as ciências da virada do século, também vieram à
reboque reforços sobre ecologia, alimentações naturais, ações e políticas de preser-
vação ambiental, reconhecimentos de valores sobre sítios históricos e patrimônios
artísticos. Todos esses enfoques já existiam antes, mas sem a promoção da sensibi-
lização social ainda totalmente incorporada. Se existem méritos nas ciências alter-
nativas é a de que seus mestres e iniciados, mentores e seguidores, auxiliaram a en-
xertar nos discursos da sociedade o que poderíamos resumir como sustentabilidade.
E, como vamos ver mais adiante, a sustentabilidade pode ser sobre o viés social.
Os papéis sociais contribuem para uma sociedade autossustentável, que se renova e
recicla para garantir sua própria sobrevivência.
38
CHARLES PIZATTO
Está claro que o bem-estar dos usuários adolescentes passa por ações diretas e
intrínsecas do trabalho dos funcionários, em especial dos agentes socioeducadores,
como mesmo é postulado pelo CONANDA:
A visão do cientista social Erving Goffman já não é tão positiva, pois recai em uma
relação básica de vigilância comportamental.
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ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
com que todos façam o que foi claramente indicado como exi-
gido, sob condições em que a infração de uma pessoa tende
a salientar-se diante da obediência visível e constantemente
examinada dos outros. (GOFFMAN, 2010, p. 18)
4 O autor também traz um quadro esquemático que melhor estrutura os diversos níveis de delitos que vale a pena
ser consultado na sua própria publicação.
40
CHARLES PIZATTO
Isso deve ser levado em conta, porque cada adolescente trava um conflito interno
entre as influências positivas da família (ainda que não seja uma família de constitui-
ção tradicional) e as negativas dos grupos juvenis, afetos à prática de atos infracio-
nais, a que estão vinculados. Corroborando, o relatório do Núcleo de Antropologia e
Cidadania (NACI) da UFRGS diagnostica que para os adolescentes:
41
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
forma de indicar que a arquitetura não é resposta para toda a problemática. Aliás,
ela pode inclusive tornar-se um problema. Quanto mais próximos de uma arquitetura
segregacionista, mais próximos nos manteremos de comportamentos segregacio-
nistas, punitivos e de desintegração social. Quanto mais próximos de uma arquite-
tura que integra os internados às suas famílias e à comunidade mais próximos dos
ideais socioeducativos estaremos.
A cura é social. É sanar uma doença, a qual seria a desintegração do nosso corpo
social. A cada adolescente reintegrado como cidadão, mais próximos ficaremos de
uma sociedade mais justa e fraterna.
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O PROGRAMA ARQUITETÔNICO
SOCIOEDUCATIVO
1 BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Sistema Nacional de Atendimento Socioe-
ducativo – SINASE. Secretaria Especial dos Direitos Humanos, CONANDA, Brasília, DF, 2006. Atenta-se que é nesse
documento que aparece pela primeira vez o termo Arquitetura Socioeducativa, na página 58.
2 Os programas socioeducativos de Prestação de Serviço à Comunidade (PSC) e Liberdade Assistida (LA) também
são programas que necessitam de instalações físicas, mas como não há internação de nenhum tipo, não serão
abordados nesse livro.
43
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Internação
Aspectos físicos a serem considerados Semiliberdade Internação
Provisória
Condições adequadas de higiene, limpeza,
circulação, iluminação e segurança
Espaços adequados de refeições
Espaço para atendimento técnico individual e em
grupo
Condições adequadas de repouso dos adolescentes
Salão para atividades coletivas e/ou espaço para
estudo
Espaço para o setor administrativo e/ou técnico
Espaço e condições adequadas para visíta íntima
Espaço e condições adequadas para visita familiar
Área para atendimento de saúde/ambulatórios
Espaço para atividades pedagógicas
Espaço com salas de aulas apropriadas contando
com sala de professores e local para funcionamento
da secretaria e direção escolar
Espaço para a prática de esportes e atividades de
lazer e cultura devidamente equipados e em quan-
tidade suficientes para o atendimento de todos os
adolescentes
Espaço para a profissionalização
3 Considere-se que a maioria dos Centros de Atendimento de Semiliberdade existentes são casas alugadas, não se
tratando de sedes próprias e não havendo muitos projetos executados especificamente para esse programa.
44
CHARLES PIZATTO
Cabe aqui abordar a temática das chamadas instituições totais. Erving Goffman,
em seu livro Manicômios, Prisões e Conventos, coloca que o ser humano, na socie-
dade moderna possui diferentes lugares para dormir, brincar e trabalhar e que uma
instituição total é quando as barreiras que separam essas três funções se rompem,
unificando a edificação. Partindo dessa premissa, um CASE, por mais moderno que
seja, ainda funciona sob a lógica programática de uma instituição total.
4 No Rio Grande do Sul, existe ainda uma subdivisão da medida de internação: a Internação Sem Possibilidade de
Atividade Externa (ISPAE) e a Internação Com Possibilidade de Atividade Externa (ICPAE). A segunda é mais branda
que a primeira. A ICPAE difere da Semiliberdade por ter o acompanhamento de um agente socioeducador na ativida-
de externa, em geral, o cumprimento de um estágio, curso profissionalizante ou frequência à escola regular, além de
permitir a ida para casa nos finais de semana – cada situação avaliada de perto pela equipe técnica.
45
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
46
CHARLES PIZATTO
Esse setor deve conter sanitários e fraldário para atender os visitantes antes da
abertura dos portões, com área de descanso, considerando que uma parcela desses
indivíduos vem de pontos afastados do CASE e mesmo de outros municípios - esses
espaços podem configurar um Abrigo de Visitas. Para acessar o CASE, a área de re-
vista se faz necessária, bem como espaço de guarda-volumes. O ambiente de encon-
tro com os adolescentes pode ocorrer nas áreas mais internas do CASE, desde que
estejam preparadas para essa função, que sejam calmas, silenciosas e que transmi-
tam tranquilidade para que a conversa possa ocorrer sem interrupções, propician-
do o constante resgate do vínculo familiar. O amor e o carinho entre os envolvidos
devem ser cultivados e estimulados. Aconselha-se que a Unidade organize mais de
um espaço, tanto para atender diferentes condições climáticas quanto para se fazer
entender aos envolvidos que as situações são dinâmicas e cada momento difere do
outro – que existem mudanças e nem todo o processo de internação é uma longa
ação monótona, que carrega o sentimento punitivo.
5 Ainda que o texto foi construído para definir a internação provisória, os sentimentos envolvidos estão constan-
temente presentes em todas as etapas da internação.
47
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
des que eram elaboradas coletivamente, são convidados a refletir sobre atitudes
e comportamentos mais imediatos. Esse "isolamento" dos demais internos não
significa, no entanto, privação dos seus direitos básicos e de um ambiente con-
fortável, higiênico e assistido pelos funcionários da Unidade.
48
CHARLES PIZATTO
• que sejam silenciosos para as horas de dormir e descanso. Não há nada mais
reparador para a saúde que uma boa noite de sono. Na ausência dessa, todo
o ser humano tem seu humor afetado negativamente, o que contribui para a
proliferação de conflitos. Daí a importância de ser trabalhada a acústica, se
possível.
• que nesse bloco, quando não dentro do dormitório, possa haver espaço para
que cada adolescente encontre um canal de expressão individual, seja escre-
vendo uma carta, organizando seus pertences pessoais como lhe aprouver,
dispondo cartazes e fotos na parede (nos moldes e espaços predeterminados
pela direção da Unidade), etc. O objetivo é que haja um mínimo de vinculação
ao espaço físico, o que irá garantir um maior cuidado e zelo do adolescente
para com a infraestrutura que está disponível.
• que as aberturas (portas e janelas) possam oferecer visuais que não sejam
monótonas e propiciem conforto ambiental adequado7.
8. ESCOLA: tanto para se falar sobre uma das atividades mais nobres da nos-
sa sociedade e que tão relegada a planos inferiores ela se encontra, introduzo o
tema, citando uma reflexão do arquiteto Louis Khan (2010, p. 9 e 10):
E Kahn (2010) segue propondo que se retorne ao princípio das coisas para se
proceder a melhor arquitetura, mais alinhada aos anseios dos seres humanos e que
algumas instituições que se tornaram as escolas hoje são funcionais, mas vazias
desse princípio. A Escola no ambiente de internação socioeducativa deve ser repen-
sada constantemente, pois não é exatamente a mesma Escola do ambiente público
cotidiano. Os adolescentes vêm de realidades escolares distintas, nos mais diversos
anos de formação, com muitas defasagens que parecem insuperáveis em alguns
casos. Os horários de ensino são entrecortados pelas demais rotinas da Unidade e
inclusive desmobilizadas sempre que há uma alteração dessa rotina, como ausências
para tratamentos de saúde, passagens pela Convivência Protetora, visitas familiares
e audiências judiciais. Não sobra muito espaço para uma rotina de ensino, mas deve-
se buscar abordagens para uma rotina de aprendizagem. E o que dizer da arquitetura
para tais ambientes? O programa prevê uma visão mais convencional, com espaços
de áreas certas e predestinadas, mas, quando possível, permitir que se rompa com
o formalismo e criem-se espaços mais dinâmicos e instigantes.
Ainda importa destacar a diferente necessidade da escola entre Internação Pro-
visória (IP) e Internação, da planilha acima, postulada pelo SINASE. A justificativa
subentendida é que o tempo máximo em IP de um adolescente seria de 45 dias, o
49
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
que tornaria desnecessária a atuação escolar. Na prática ocorre que por vezes os
45 dias – tempo previsto para as avaliações técnicas ao adolescente e deliberações
judiciais do ato infracional que direcionam a MSE a ser cumprida – são extrapolados.
Somam-se o entendimento que a escola, ainda por um curto período, é ambiente
positivo na ação socioeducativa. Assim, deve-se considerar espaços de sala de aula
e biblioteca ao programa arquitetônico no atendimento de todos os adolescentes
internados, independente da MSE em vigor.
10. ESPORTES: inegáveis são os benefícios dos exercícios físicos para a mente e
o corpo nos dias de hoje. Existem argumentos depreciativos e irreais que seriam
como "treinar" os adolescentes para seguirem na promoção dos atos infracio-
nais após concluída a medida de internação. O fato é que quem participa das
atividades esportivas no CASE (que podem incluir os funcionários) termina por
extravasar tensões e revisitar conceitos como disciplina e respeito às regras e aos
adversários. Em geral uma quadra esportiva resolve tudo, mas outras atividades
podem ser incorporadas, como salas de atendimento em grupo, oficinas e mesmo
áreas de arquibancadas. Os parâmetros arquitetônicos do SINASE não preveem
a participação dos visitantes em encontros esportivos especiais8, mas são temas
que merecem reflexão pela Instituição, caso a caso. No mesmo viés reflexivo, sa-
be-se que existem Unidades em outros Estados que implantaram piscinas, para
práticas esportivas e de lazer. Em todo caso, há de se cuidar sobre o significado
cultural que um equipamento esportivo pode suscitar para a comunidade local e
zelar pelo seu uso9. Existe muito preconceito envolvendo adolescentes em cum-
primento de medida socioeducativa. e deve-se estar atento em gerar mais repú-
dio por parte da opinião pública.
8 A quadra esportiva, com espaço de arquibancada pode não ser para eventos esportivos em si, mas atividades
coletivas entre adolescentes e familiares, como festas de fim de ano, por exemplo. Pode-se incorporar a função de
auditório, ou então prever-se estas funções em outros espaços consolidados.
9 A piscina ainda é muito vista pela nossa sociedade como um lazer elitista.
50
CHARLES PIZATTO
Como existem mais de um tipo de círculo restaurativo, alguns podem nem ser
passíveis de ocorrer no interior de Unidades, mas em "campo neutro", como nas se-
10 Adolescentes internados entre os 18 anos completos até atingirem os 21 anos de idade. Situação que vem sen-
do revista no sistema socioeducativo através de propostas de alteração da lei quanto à redução da maioridade penal.
51
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
CIRCULAÇÃO
Mesmo dentro do complexo, os adolescentes passam por critérios de conduta
para circular entre os espaços de diferentes atividades. Se as atividades forem sepa-
radas por módulos construtivos, o deslocamento dos adolescentes implica corredo-
res e espaços abertos11. Já a saída da Unidade somente se dá com acompanhamento
de funcionários preparados para tal tarefa – chamada de custódia.
52
CHARLES PIZATTO
Lembrando que os adolescentes são divididos em Alas, pois cada grupo de dor-
mitórios não pode ultrapassar 15 vagas – e o máximo de vagas por cada CASE é de
90 – atenta-se com os fluxos das Alas entre si, quando forem circular para as outras
atividades. Essa logística deve ser discutida em conjunto com a (futura) direção da
Unidade.
O CASE deve ter seus espaços como um: "[...] elemento promotor do desenvolvi-
mento pessoal, relacional, afetivo e social do adolescente em cumprimento de medi-
da socioeducativa." (BRASIL, 2006, p. 79)
CONCLUSÕES
Uma das reflexões mais importantes para concluir o capítulo, é que devemos nos
despir de preconceitos quanto ao programa e ao projeto. Estamos tratando de seres
humanos que cometeram atos, algumas vezes bárbaros e cruéis, mas ainda assim
seres humanos. Não nos esqueçamos dos demais envolvidos junto aos adolescentes
que estão cumprindo medidas de internação: familiares, vítimas e mesmo os funcio-
nários. É curioso perceber como cada um deles deve lidar com as dificuldades e o
negativismo que os adolescentes carregam e ajudá-los a eliminar essa carga, pur-
garem suas piores emoções no processo e recebê-los novamente no seio familiar, na
comunidade e na sociedade.
Se partes do programa ainda não podem ser implantadas por falta de equipe
técnica preparada, falta de receptividade da instituição, do poder judiciário envol-
vido ou mesmo por pressão da mídia e da sociedade, verifique se esses fatores são
mais fortes que estabelecer um Projeto Arquitetônico completo. O contrário significa
dividir a obra em etapas, o que, inevitavelmente leva a onerar os recursos humanos
e financeiros do Estado. Digo isso porque pode ocorrer que setores como a Justi-
ça Restaurativa, Encontros Íntimos ou Oficinas não sejam inicialmente executados
(para poupar recursos ou falta de maturidade no Programa de Atendimento ou de
experiência das equipes técnicas). No entanto, sua ausência pode tornar-se um pro-
blema após a implantação do CASE.
53
IMPLANTAÇÕES DE CASE's: ACEITAÇÃO DE
OCUPAÇÃO TERRITORIAL E DESAFIOS
1 Há de se considerar ainda que um CASE pode atender adolescentes de diversas comunidades e cidades vizinhas.
Assim sua atuação e repercussão ultrapassa os limites municipais, levando ao âmbito regional.
55
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Sustento que também seria pertinente que o CASE ficasse próximo de uma comu-
nidade constituída, afinal de contas, devemos lutar contra a extratificação dos espa-
ços urbanos e buscar a miscigenação, o espaço democrático. É na aproximação das
pessoas, por sua diversidade, que se torna possível diminuir os conflitos urbanos e
não o contrário.
Já mais próximo do nosso objeto de reflexão, temos que os prédios utilizados para
internação de crianças e adolescentes seguiram por dois caminhos no Rio Grande
56
CHARLES PIZATTO
57
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Os CJ’s do interior tinham suas localizações em áreas afastadas dos centros urba-
nos. O CASE Pelotas é o que foi implantado mais próximo do tecido urbano, em zona
industrial. Similarmente o CASE Santa Maria, está localizado com acesso pela BR
158, também em zona industrial, mas com área residencial muito próxima, separada
pela mesma rodovia federal. Os CASE’s Caxias do Sul e Santo Ângelo eram em zonas
mais afastadas, com pouca urbanização, mas hoje já envolvidas pelo crescimento
das cidades. O CASE Uruguaiana é o único que mantém uma característica mais
rural, ainda muito afastado do centro urbano e de construções vizinhas, na BR 472.
58
CHARLES PIZATTO
que os terrenos mais valorizados são aqueles que agregam condições de acesso,
investimentos em infraestrutura e serviços, características físico-ambientais e suas
possibilidades legais de construção – as mesmas características necessárias a um
CASE. A perspectiva de condomínios horizontais de alto padrão serem vizinhos de
um CASE, ainda que distantes, gera polêmica e promove movimentos políticos nos
quais estão expressos (ou não) esses preconceitos.
Esses fatores terminam por limitar mais ainda as possibilidades de terrenos dis-
poníveis, mesmo que tenham uma topografia e dimensionamento aceitáveis para
as futuras implantações. Mas não é só isso que compele a lentidão de novas im-
plantações. Somam-se movimentos das comunidades que variam entre a aceitação
e a repulsa. É o jogo de forças políticas que se estabelece. As comunidades mais
próximas – e independe de perfil socioeconômico, podendo ser vilas populares ou
condomínios fechados de luxo – renegam a implantação de um CASE2. Às vezes mu-
nicipalidades inteiras posicionam-se nas instâncias oficiais e extra-oficiais contra
a implantação de um CASE, valendo-se das mais diversas alegações. Começa a se
estabelecer uma série de mitos que se refletem e são reflexo de todo o trabalho da
rede socioeducativa – todos eles tendo como pano de fundo a criminalidade violenta.
2 Um Centro de Atendimento de Semiliberdade passa por pressões similares, às vezes em proporções muito maiores.
3 Manifestações colhidas na ocasião por participantes do protesto.
59
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
“Eu moro aqui nessa casa, sozinha com duas filhas pequenas.
Que garantias vocês nos dão de que esses guris não vão en-
trar na minha casa e pegar minhas filhas?”
Existem aqui duas preocupações de mesma raiz, mas que terminam por serem
divergentes. A primeira revela um sentimento de que o bairro não é valorizado4 e o
poder público impõe um equipamento urbano que, em primeiro lugar, não traz be-
nefício direto aos moradores do entorno imediato. Não é uma escola, um posto de
saúde, uma delegacia. A comunidade sente-se desvalorizada. No CASE, a máquina
institucional está trabalhando em prol de uma melhora da sociedade em um nível
mais macro e à médio prazo. Isso não ajuda à comunidade do entorno imediato, a
qual tem que lidar com o novo empreendimento na microescala e a curto prazo. É ne-
cessário que o Estado promova contrapartidas para haver um mínimo de aceitação
ao CASE estarei sugerindo como ao final desse capítulo.
Parece que essa revolta popular não é exposta se, em outra situação, um lote
fosse ocupado por um criminoso de verdade, digamos, a residência de um trafican-
te. Por medo de uma retaliação – motivo óbvio – todos os vizinhos silenciariam. Mas
curiosamente isso não causaria uma queda dos valores do mercado imobiliário...
4 E arrisco generalizar essa situação pelo exposto anteriormente, de que os bairros com possibilidades de re-
ceberem CASE’s são aqueles que têm baixa densidade demográfica e consequentemente baixo investimento na
infraestrutura pela municipalidade.
60
CHARLES PIZATTO
Muitos não desejam CASE’s em suas cidades por acharem que a imagem – a
“fama” do município – pode ser associada à função da edificação. Pensam e ver-
balizam que podem ser denominados como “cidade-presídio”, “cidade-cadeia” ou
outros apelidos. Existem duas maneiras dessa condição se proceder.
5 Em muitos casos, os familiares não têm ligação direta com os atos infracionais cometidos pelos adolescentes. O
ir e vir deles é angustiante, desgastante e transforma-se em injusta punição.
61
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Outro viés seria supor que, diante da implantação de um CASE em uma cidade,
seus habitantes venham a alterar sua percepção ambiental do lugar. Isso decorre
diante do fato de que as qualidades do dado espaço do CASE se tornariam mais sig-
nificativas e valoradas que outras qualidades dos demais espaços daquela cidade.
Já Lineu Castello (2007, p. 31) explica que “[...] estímulos projetados, via de
regra, buscam reforçar a imagem de urbanidade que um lugar deve conter e poder
transmitir às pessoas, seja de forma visual, sensorial ou informacional.” Assim é
possível, ainda que pouco provável, que uma nova edificação altere a percepção de
lugar de uma comunidade.
62
CHARLES PIZATTO
Abrindo bem o jogo, vemos que o que está por trás de cada manifestação, pessoal
e coletiva, de repulsa e revolta diante da presença de um CASE na sua vizinhança,
no seu bairro e mesmo na cidade, é um clamor por punição, por vingança mesmo.
Também aparece o preconceito de querer generalizar todos os atos infracionais de
maneira simplista sem atentar para o contexto de cada caso.
Um CASE é um equipamento urbano como outro qualquer. Traz no seu simbolismo
a incapacidade que a sociedade tem de lidar com situações adversas nos ambientes
mais amplos, assim como os hospitais psiquiátricos, os cemitérios, as delegacias de
polícia e tantos outros equipamentos urbanos. Negar a implantação de uma edifica-
ção com essas funções configura um processo coletivo de negação de um problema.
E é sabido que negar um problema não leva à solução do problema em si.
Talvez a condição básica mais importante na implantação de um CASE, para a
localidade que irá recebê-lo seja a segurança. Nenhum cidadão gostaria de ver seu
bairro tornar-se mais inseguro e violento por conta de alterações urbanas. Faz-se
necessário esclarecer que a preocupação é a mesma, inclusive no sentido inverso,
pelos agentes públicos do Sistema Socioeducativo.
Esse respaldo de seguridade inicia-se pelo próprio Estado. O mesmo Estado que
deve garantir a segurança do adolescente que cumpre medida socioeducativa de
internação, como é expresso nas diretrizes do SINASE (BRASIL, 2006, p. 28):
63
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Já o caso do Morro Santa Teresa na capital, a situação atual é mais crítica, pois
não somente o terreno foi cercado pela cidade regular, mas também foi invadido por
habitações irregulares (vide Figura 2). Estima-se que hoje o terreno esteja compro-
metido com áreas invadidas em 17% do seu total (de aproximadamente 73 hecta-
res), sendo algumas dessas habitações muito próximas dos prédios de internação.
É nesse momento em que a análise da malha viária, com mapas, fotos de satélite e
levantamentos planialtimétricos de diversos períodos históricos trazem informações
para serem geoprocessadas, transformadas em análise de evolução urbana para
então formular diagnósticos.
64
CHARLES PIZATTO
No caso desse terreno, pode-se afirmar uma estimativa do avanço das ocupações
irregulares em 2,2 hectares a cada 4 anos (o tempo de uma gestão governamen-
tal). Ao arquiteto acostumado ao trabalho no setor privado, essa frase pode parecer
estranha, mas cada vez mais se consagra que muitas ações devam acontecer no
período de uma gestão governamental – lembrando que estamos tratando de um
equipamento urbano de responsabilidade da esfera estadual – e talvez isso seja um
dos maiores erros: achar que situações que às vezes interferem na macroescala da
cidade possam ser resolvidas e efetivadas em 4 anos. Ao se tratar esse porte de obra
pública, deve haver a clareza (e a tranquilidade por parte dos gestores) de que o
planejamento e sua execução podem muito bem extrapolar esse tempo.
Não estamos lidando apenas com um (único) objeto de uma licitação, mas são
ações agregadas que começam unitariamente (no equipamento em si) e se desdo-
bram em uma série de atuações, que vão desde o relacionamento com a vizinhança
imediata até as interferências nas estruturas urbanas (viária, abastecimento de luz,
água, esgoto, vigilância pública, transporte coletivo, serviços de recolhimento de
lixo e manutenção dos espaços públicos, etc) e passando por criações de grupos
de trabalho de esferas públicas, comissões, conselhos consultivos. Cada terreno
possui um conjunto de características que leva a uma problematização que deve
ser respondida.
Torna-se difícil tratar sobre segurança pública quando não ocorre antes disso
um tratamento respeitoso com as comunidades de assentamentos irregulares. To-
dos nós precisamos estar morando em um bairro consolidado. A precariedade que
enfrentamos no nosso cotidiano dá início ao sentimento de insegurança. A ausência
de uma calçada com meio-fio constituído, o lixo jogado no chão pela falta de lixeiras
públicas, a insuficiência da iluminação pública e tantos outros fatores são antes de
mais nada um desrespeito a todo o cidadão. Somos levados a sermos desrespeitosos
e descuidados com o vizinho, que também sofre com o desrespeito público. Reside
aí a base de cobranças que a população deveria promover nas manifestações para
uma cidade melhor.
66
CHARLES PIZATTO
Loci7. Nos exemplos do Rio Grande do Sul, temos implantações que mostram ações
positivas quando se percebe uma interação do entorno e o CASE. O CASE Novo Ham-
burgo, localizado em zona de caráter industrial, estimula a participação em projetos
de profissionalização dos adolescentes. No CASE Uruguaiana, o entorno fortemen-
te rural levou a implementação de políticas públicas voltadas à lida do campo, à
agricultura de subsistência e ao cuidado com animais de pequeno porte. O reco-
nhecimento das características do entorno, do bairro em que foram implantados os
CASE’s contribui para a implementação de políticas socioeducativas e de integração
com a sociedade.
Ainda falando um pouco de Planos Diretores, cabe salientar que os gestores ur-
banos devem estar atentos e evitar uma transferência de preconceitos, negações e
segregacionismos nos instrumentos de planejamento urbano. Edificações com fun-
ções socioeducativas fazem parte da cidade, devem estar consideradas nos seus
Planos Diretores, em locais condizentes com as descrições e características de lotes
elencadas no corpo deste texto. As ações segregacionistas dos Planos Diretores se
dão por entendimentos preconceituosos motivados pela demanda da segurança pú-
blica. Essa condição alterada dá margem ao poder privado de atender suas próprias
demandas, dentro de uma ótica muitas vezes antissocial.
Diversos autores (JACOBS, 2011; CASTELLO, 2007; DEL RIO, 1990) sustentam
que é na diversidade de funções agregadas a um espaço que o mesmo se qualifica
e se revitaliza constantemente. É o que Nygaard (2010, p. 87) destaca como “[...] o
espetáculo da vida urbana.”
7 O Espírito do Lugar. Teoria que versa sobre o fato de que cada local possui um “espírito”, um ente de caracte-
rísticas próprias e singulares que favorece e amplia as ações humanas que ali se estabelecerem, se houver uma
coerência e harmonia entre elas.
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ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Por fim, mas não menos importante, aos indivíduos e cidadãos em geral, é consi-
derar que a aceitação da proximidade de um CASE da sua área de convívio não leva
a uma condição trágica no viver, mas a uma compreensão da capacidade de recu-
peração e reintegração social do adolescente que cumpre medida socioeducativa.
Essa condição é fundamental para a recuperação de um segmento da sociedade que
significa um incremento de recuperação da própria cidade. Na nossa comunidade
existem indivíduos que têm dificuldade em compreender a importância do convívio
humano. Ao reconhecermos isso, entendemos que nosso papel enquanto sociedade
é prestar o auxílio necessário. Todos somos humanos e imperfeitos. Nossas comu-
nidades são imperfeitas. O primeiro passo para uma sociedade mais humana passa
pelo reconhecimento interior (individual e coletivo) dessa realidade.
68
TIPOLOGIAS ARQUITETÔNICAS
A Lei do SINASE também orienta quanto aos princípios para execução das medi-
das socioeducativas, visando a fortalecer os vínculos familiares e comunitários no
processo socioeducativo. Vem ao encontro do Plano Nacional de Convivência Familiar
e Comunitário, que faz alusão aos espaços das instituições sociais como mediadores
das relações que os adolescentes estabelecem entre as partes (CONANDA, 2013).
69
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Com base na análise das informações acima, pode-se afirmar que o partido ar-
quitetônico (a volumetria inicial e geral de uma edificação) da maioria das unidades
de internação da FASE-RS está completamente ultrapassado. Para melhor entender
a importância da tipologia no projeto arquitetônico socioeducativo, faço uma análise
morfológica das edificações dessa instituição em que trabalho.
Figura 5 – Da esquerda para a direita, plantas esquemáticas dos prédios CASE POA II, CSE e CASE Fe-
minino. Tipologia de barras agrupadas – modelo centrífugo.
A disposição dos blocos, assim como sua interligação, dá-se por corredores que
seguem o sentido principal das barras, fazendo com que os deslocamentos dos usuá-
rios ocorram sempre por eles. O ir e vir das pessoas está representado por setas nas
figuras 4 e 5, por isso as maiores preocupações quanto à segurança ocorrem nesses
percursos. As linhas configuram o controle, mas, ao mesmo tempo, a concentração
dessas “forças” pode gerar maiores conflitos. Esse modelo de fluxo pode ser tam-
bém chamado de Modelo Centrífugo e é importante observar que essas edificações
são as mais antigas da Fundação.
70
CHARLES PIZATTO
Figura 6 – Plantas esquemáticas dos prédios CIPCS (esquerda) e CASE POA I (direita). Tipologia de
pátio interno – modelo centrípeto.
Por esse modelo, o foco da volumetria não está nas barras, mas no pátio central
ou quadra de esportes, o vazio maior. Para ela todos os olhares se voltam. O fluxo
deixa de ser central, tornando-se perimetral, circundando-o. Favorece a situação
de “todos vigiam todos”. Ainda restam fluxos lineares de circulação, principalmente
na parcela do prédio que abriga a função administrativa que antecede o acesso ao
pátio central.
Da proposta de máxima contenção para uma que busca ampliar a interação en-
tre os usuários, essa tipologia é centralizadora por natureza. Ainda que não seja a
questão do fluxo, mas a questão visual que opera nesse tipo de projeto, podemos
chamá-lo de Modelo Centrípeto.
71
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
72
CHARLES PIZATTO
Figura 7 – Esquema compositivo dos módulos do CASE Modelo – a mesma tipologia utilizada
nos CASE's Passo Fundo e Novo Hamburgo. Assim os módulos podem ser combinados de
diversas maneiras para terrenos diferentes.
Essa estratégia flexibiliza a implantação, pois possibilita utilizar uma gama maior
de terrenos e promover uma melhor inserção no contexto urbano, diminuindo os
impactos visuais e de domínio público X semipúblico, o que tem uma repercussão
indireta na aceitação desse tipo de equipamento urbano pela vizinhança.
73
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
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CHARLES PIZATTO
Apesar dos conceitos ideais do CASE Modelo apresentarem-se como o futuro pa-
drão para prédios socioeducativos de internação, a questão econômica é um grande
desafio. Um CASE Modelo tem um custo financeiro muito maior do que uma unidade,
de mesma área construída, nos moldes dos prédios da geração anterior. Isso ocorre
porque outros índices de custos entram no cálculo, como maiores áreas de fachadas,
maior terreno exigido, etc.
A realidade brasileira comprova, nos últimos anos, que, frente à carência de re-
cursos, a substituição de todos os CASEs considerados inadequados, frente ao SI-
NASE/CONANDA, por novos prédios significa um montante financeiro por demais
oneroso. Propostas que visam à demolição e novas construções significam um gasto
aos cofres públicos maior, ainda que indireto, por ocorrerem em momentos e locais
diferentes.
O resultado é que a esperada evolução das estruturas físicas não consegue acom-
panhar a evolução das práticas socioeducativas e pedagógicas, gerando muitos dos
conflitos e desgastes explicados anteriormente. Exemplificando: a construção de um
novo CASE com 60 vagas possui um custo estimado de R$ 14.000.000,001.
Figura 10 – Estudo preliminar de revitalização tipológica para um modelo centrípeto (CASE POA
I). Os volumes mais claros são os existentes, enquanto o muro perimetral, as guaritas e os módu-
los, em cinza mais escuro, são propostas de construção.
1 Conforme orçamento do segundo semestre de 2013 de obra para a FASE-RS, desconsiderando custo de compra
do terreno.
75
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
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PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
SOCIOEDUCAÇÃO
4. Agora como arquiteto, verifique qual o partido geral que o projeto original
segue. Faça um croqui volumétrico e esquemático de cada um.
7. Verifique se as datas que você anotou fecham com o estilo arquitetônico que
você identificou.
77
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Sob o foco das experiências humanas positivas, pode-se pensar uma atenção ao
ser humano e seus patrimônios – cultural, histórico, ambiental e seus recursos em
geral. É na valorização desses fatores que o indivíduo se valoriza. E, no resgate de
seus valores, ele torna a se inserir saudavelmente na sociedade.
A preservação do Patrimônio Histórico reforça e concretiza as histórias indivi-
duais através da história coletiva. É a nossa inserção em um todo maior que nos traz
o sentimento de pertencimento a um lugar. No entendimento de que a história é um
processo dinâmico, deve-se preservar e zelar pela constante releitura desse passa-
do, que é muito brutal e entristecido, se visto na ótica das ações dos adolescentes
(dos menores, se como visto no passado)1. No entanto é nas ações de resgate e
“cura” que ele se torna belo – e essa visão só se atinge a longo prazo.
Em se considerando que muitas edificações de internação, ainda em uso, foram
construídas muito antes da existência dos preceitos socioeducativos, implica saber
que estão defasadas – em termos arquitetônicos. Quando encaramos essa realida-
de, reconhecemos as discrepâncias que separam passado do futuro e daí podemos
seguir por um caminho mais humano e em sintonia com o que se propõe no SINASE.
Como ensinar valores de história pessoal aos indivíduos, se não valorizamos a
história coletiva? Como ensinar às novas gerações a importância do que foi construí-
da até então (ainda que ultrapassada) para poder haver a clareza de como agir no
futuro? Essa seria a maior lição a se tirar do nosso Patrimônio Histórico e Cultural.
Agora volte à lista que você montou e verifique quais edificações poderiam guar-
dar valores históricos, tanto em arquitetura quanto em ações humanas. Quantas
abrigaram orfanatos? Quantas foram centros profissionalizantes ou escolas? É im-
possível que ações socioeducativas não consigam servir-se dessas histórias para
contar a nova história e os rumos que a socioeducação toma no nosso país.
1 Refiro-me a que, em geral, as instituições socioeducativas surgiram de instituições de assistência social, sob a
legislação da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), ou ainda mais antigo.
78
CHARLES PIZATTO
Agora pense em utilizar esse patrimônio histórico com verbas públicas de incen-
tivo à preservação, em unir esforços com as áreas de turismo histórico, podendo
envolver cursos e atividades socioeducativas.
Não é por estarmos tratando de histórias tristes que não se faz necessário o va-
lor histórico de preservação. No centro histórico de Ouro Preto, a Casa de Câmara e
Cadeia foi restaurada e passou a abrigar um dos museus da cidade. Em Alcântara,
no Maranhão, o pelourinho é preservado para mostrar a todos mais um exemplo da
história da escravatura no nosso país monárquico. São exemplos classificados como
negativos, mas nem por isso devem ser sumariamente destruídos. A sua obliteração
pode ser vista como uma tentativa de mascarar ou minimizar fatos. O significado de
haver incentivos em programas oficiais como os acima citados era condição funda-
mental para elevar o estado de um povoado à vila e eram assim estimulados pela
Coroa, em alguns casos, tais construções, erguidas em espaços urbanos que foram
consolidados e criaram a ambientação de muitas cidades tradicionais.
Assim, as histórias dos espaços urbanos históricos contam as histórias das cida-
des e de nossos antepassados, como eles viviam e quais eram suas crenças e valo-
res. Com esse olhar, conseguimos ver o quanto avançamos em termos de cidadania
e diante da nossa condição humana.
79
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Logo, se houver condições de que algum prédio possa ser enquadrado nas leis de
preservação do patrimônio histórico, seria interessante ponderar se isso não pode
ser visto como um investimento a longo prazo pelos órgãos envolvidos.
O restauro de edifícios públicos tombados que estão em uso por órgãos de execu-
ção de medidas socioeducativas pode inclusive adquirir recursos de leis de incentivo
à cultura, além dos convencionais recursos da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República. Não existe limitação financeira, mas sim sua ampliação.
Aconselha-se que cada órgão tenha uma noção clara de sua realidade quanto à in-
fraestrutura predial e possa dela fazer uso da melhor forma possível. Os investimentos
necessários para obras de restauro devem ser analisados criteriosamente na relação
custo X benefício de cada caso. Essas condições levam ao bom planejamento que, em
se tratando de prédios que serão conservados historicamente, são de longo prazo.
Cabe ressaltar ainda alguns aspectos do que se entende por Restauro. O Restauro
aplica-se a uma preexistência. Como postulado na Carta de Veneza (1964), baseia-
se em elementos construtivos e documentos autênticos, desconsiderando situações
baseadas em hipóteses que não podem ser comprovadas. Nesse sentido, uma obra
de restauro que invista em reconstrução sem a certeza do objeto original... não é
uma reconstrução, mas uma livre interpretação – coisa que é permitida a qualquer
um de nós, sem comprovações históricas de que assim o era.
Nesses casos, inserções arquitetônicas podem acontecer, desde que se deixe bem
claro o que é original e o que é novo enxerto (ver figura 14). O objetivo é não confun-
dir os dois ao observador comum. Se no restauro não cabe a invenção do passado,
ao arquiteto cabe a criatividade consciente de complementar sem adulterar uma
obra histórica.
81
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Foi assim que ocorreu com Centro do Jovem Adulto, prédio construído em 19622
e no ano de 2002 seu fechamento estava praticamente consolidado. A tentativa de
investimentos para reforma e readequação do prédio aos preceitos da FASE, que
nascia naquele mesmo ano, foram frustradas por negação de reserva financeira por
parte do Governo Federal3. O Estado vinha lentamente esvaziando o prédio para ade-
quá-lo à nova visão da Fundação, mas a pá de cal veio com a inação do Governo
Federal e, daí por diante, não houve nenhum auxílio de custo de manutenção. Assim
o prédio, que foi conhecido como “a casa dos horrores” na década de 90, foi aban-
donado e entregue à sua própria sorte, sendo hoje somente ruínas no alto do Morro
Santa Tereza.
82
CHARLES PIZATTO
Por isso, tenhamos muita cautela nos rompantes de demolir “prédios ruins”, “pôr
fim em capítulos tristes da nossa história”, em “sermos marcos da nova sociedade”
- discursos empregados por alguns gestores públicos e empreendedores. Somos
quem pudemos ser e quem poderemos ser. Não há volta ao que foi perdido. Nossos
erros são parte da nossa história, com eles temos que conviver e é isso que se deve
ensinar aos adolescentes que cometeram atos infracionais.
83
MEIO AMBIENTE E A SOCIOEDUCAÇÃO
1 Nos Parâmetros Arquitetônicos para Unidades de Atendimento Socioeducativo, mas para haver trânsito de veí-
culos de grande porte, como caminhões de bombeiros, e melhor insolação e ventilação natural entre os prédios,
recomenda-se extrapolar esse mínimo.
85
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Figura 16 – Os veículos de grande porte devem ter acesso e aproximação de todos os prédios.
Não é à toa que uma área construída de um CASE, estimada em 4.700,00 m²,
necessite de um terreno com 2,5 hectares, no mínimo. Não se trata de uma pequena
inserção arquitetônica no espaço urbanizado, mas sim um equipamento urbano de
grande porte. E terrenos desse porte, nas cidades onde as comarcas do poder judi-
ciário estão estabelecidas, são encontrados, via de regra, em áreas mais afastadas
dos centros urbanos.
É claro o cuidado que se deve ter ao implantar uma obra desse porte com o meio
ambiente. Suas implantações serão sempre objeto de Estudo de Impacto Ambiental
86
CHARLES PIZATTO
(EIA) e Relatório de Impacto do Meio Ambiente (RIMA), realizados por técnico qua-
lificado.
Não é sempre que tais áreas estarão livres de elementos naturais, como arroios,
matas, vegetação nativa, etc. O Projeto Arquitetônico deve oferecer uma resposta
adequada à preservação dos elementos naturais, que estão previamente garantidos
por lei, já em todo o território nacional.
Mais uma vez, assim como na preservação do patrimônio histórico, pode haver
muita resistência, por parte de gestores públicos, à preservação do patrimônio na-
tural. Muito alimenta-se a visão de que o meio ambiente é um obstáculo ao desen-
volvimento. Duas facetas do mesmo valor final – o meio ambiente habitado por seres
humanos – sua preservação garante uma diversidade de riqueza cultural que ainda
hoje é pouco reconhecida. Devemos estar mais atentos ao entendimento que a pre-
servação do meio ambiente natural é garantia da biodiversidade.
87
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Figura 20 – Barreira vegetais podem ser aliadas tanto na garantia de um bom conforto térmico
como suavizar na estética de um conjunto de elementos mais agressivos, como cercas e muros.
89
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
nova visão de que o meio ambiente deva estar integrado ao desenvolvimento e não
seja antagônico ao mesmo.
Diante das presentes leis de preservação ambiental e havendo terreno com aporte
ambiental, a melhor estratégia que cabe ao gestor público seria a criação da área
protegida, destacando suas características naturais. Sempre deve-se classificar a
área como de uso sustentável, o que irá garantir a exploração do ambiente e garantir
os recursos naturais.
90
SUSTENTABILIDADE: EXEMPLO DE
VÍNCULO SOCIAL
91
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Por isso é fundamental compreender que para qualquer processo projetual é ne-
cessário definir parâmetros de referência, que orientarão a construção de ambientes
mais sustentáveis. Os parâmetros são definidos dentro de cada área estratégica em
sustentabilidade. Em artigo apresentado no Encontro Latino-americano de Edifica-
ções e Comunidades Sustentáveis de 2013, NERBAS e ANDRADE (2013) reconhe-
cem as principais:
1. Paisagem natural e construída: o entendimento sensível e a apropriação dos
espaços conduz à harmonia que deve ocorrer entre os espaços abertos e os in-
ternos. Passamos tão pouco tempo nos espaços abertos, e tão confinados nos
ambientes fechados que são nos momentos de integração entre ambos que con-
quistamos qualidade de vida. O projeto sustentável passa por fazer uma leitura
dos elementos naturais disponíveis e incorporá-los ao projeto de cada CASE.
92
CHARLES PIZATTO
Nada do que for proposto como nova tecnologia pode ser agregada se não houver
1 Esse tema foi mais aprofundado no capítulo Implantações de CASE’s: Aceitação de ocupação territorial e desafios.
93
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
94
DIMENSIONAMENTO E CONFORTO
AMBIENTAL: A CONTRIBUIÇÃO DO
ARQUITETO
Louis Kahn (2010) afirma que o ar e a luz seriam presenças simples e duradouras
na arquitetura, tão importantes quanto as considerações estéticas que se devem ter
sobre arquitetura.
1 Pensamento zen-budista.
95
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
efeitos de sombras das janelas e das alterações de tons das cores das paredes com
o passar das horas, pode levar a uma reflexão sobre a vida, a rever o passado e a
prospectar o futuro, assim como o passar do dia e as mudanças cromáticas do céu,
tendo a certeza de que haverá outro dia amanhã.
2 Apesar da citação ser referente à evento estadunidense, os mesmos eventos geográficos ocorreram no Brasil.
96
CHARLES PIZATTO
Considerando o exposto até aqui, podemos trazer algumas reflexões sobre nos-
sos prédios e ambientes dedicados à socioeducação, em especial, às medidas de
internação, a começar pela permanência excessiva no interior das edificações.
Pelas noções ambientais passadas até aqui, tem-se claro que, quanto mais ativi-
dades em ambientes abertos, mais próximo de uma condição de saúde estaremos
oferecendo aos adolescentes. Também, nesse sentido, o CASE que for ordenado em
prédios modulares independentes é benéfico, pois o translado de um prédio ao ou-
tro, para exercer as diferentes atividades, propicia uma reciclagem do ar e um ree-
quilíbrio da regulação térmica corporal de cada um.
3 Um dos outros efeitos seria a vasodilatação, o que significa uma maior concentração do sangue no interior do
corpo, quando muito frio e uma maior circulação do sangue para as extremidades do corpo, quando muito quente.
Também o surgimento de tremores no corpo, em temperaturas baixas, tem por objetivo queimar energia acumulada
e produzir calor.
4 Síndrome do Edifício Doente.
97
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Um banheiro coletivo mal ventilado (sem ventilação natural cruzada e sem exaus-
tores mecânicos) pode começar a conduzir a umidade para os compartimentos vizi-
nhos, elevando os problemas de corrosão dos metais e proliferação de mofo e outros
agentes patógenos.
Solução simples para esses casos seria buscar a possibilidade de promover ven-
tilações cruzadas nos ambientes. Por motivos econômicos, utilizamos somente uma
fachada com janelas por compartimento, mas, sempre que possível, utilize duas, ou
programe aberturas em paredes internas, desde que haja imediata remoção de ar
desse compartimento anexo. O importante é promover a troca do ar interior.
98
CHARLES PIZATTO
Figura 22 – Em situações com corredores e compartimentos que necessitam ser ventilados plena-
mente, pode-se abrir vãos internos.
99
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Figura 25 – ... Por alterações do programa, os vãos internos foram sendo lacrados, prejudi-
cando a ventilação por diferença de temperatura.
100
CHARLES PIZATTO
Figura 27 – ... Que podem ser trabalhadas com elementos arquitetônicos na edificação.
101
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Gráfico 1 – Relação entre a área de cada dormitório e a área das suas respectivas alas.
A começar pelos prédios mais antigos, da década de 1970, até o CASE POA I6, de
1998, nota-se um tênue crescimento. Os CASE’s seguiam princípios funcionais ao
incorporarem o maior número e área de compartimentos nas alas, deixando poucas
oportunidades de deslocamento dos adolescentes para outras áreas da edificação
para exercerem outras atividades. Também buscavam enxugar as áreas dos dormi-
5 Essas funções variam conforme cada CASE existente, pois foram construídos quando não havia uma padronização.
Os compartimentos mencionados compõem o programa básico de alas dos Parâmetros Arquitetônicos do SINASE.
6 O CASE POA I foi denominado inicialmente Centro da Juventude e foi implantado em outras regionais, como
Caxias do Sul, Santa Maria, Santo Ângelo, Pelotas e Uruguaiana.
102
CHARLES PIZATTO
tórios ao mínimo possível. Essas medidas iam ao encontro da maior contenção e das
estruturas totais da época. Não haviam muitas possibilidades de atividades fora das
edificações, exceto às previstas no ECA, como as duas horas de sol obrigatórias. O
depoimento posto em relatório elaborado pelo Núcleo de Antropologia e Cidadania
(NACI) da UFRGS, de 2001 expressa a inapropriação a que esse modelo arquitetô-
nico chegou:
Já o mais recente construído, o CASE Novo Hamburgo (CASE NH), com os olhos
nos Parâmetros Arquitetônicos do SINASE, tratou de pulverizar atividades dos ado-
lescentes, como ter salas de aula e de atendimento foras das alas, no entanto, man-
teve a diretriz de dormitório mínimo, o que não provocou grande alteração na pro-
porção Ala/Dormitório.
7 Ainda hoje, o prédio mais antigo de internação da FASE-RS pode abrigar até 8 adolescentes, devido a grande
área de cada dormitório. E ainda que existam documentados alguns testemunhos de adolescentes que prefiram
esses dormitórios, por serem de maior dimensão, no planejamento estratégico da instituição, aponta-se que esse
seria o primeiro prédio a ser desativado quando novos CASE’s forem construídos.
103
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Goffman (2010) sinaliza que diante do contato mútuo e exposição entre os interna-
dos, ocorre mais um passo na aniquilação do indivíduo. Também é importante sa-
lientar que se o dormitório for individual, para o adolescente, há uma dificuldade em
classificar seu tempo de permanência nesse cômodo, sozinho, e o possível período
de permanência em dormitório da Convivência Protetora – ambos podem parecer
momentos de “castigo”8.
À conclusão que se chega é que, mais importante que aumento de custos da obra
devido ao aumento das áreas construídas, é a diminuição de áreas das Alas que faz
com que os adolescentes se desloquem mais de um prédio ao outro, para suas di-
ferentes atividades, o que traz benefícios indiretos de bem-estar. Ao promover-se o
deslocamento entre os prédios, o sair e entrar de um ambiente noutro reduz a sen-
sação de confinamento constante, diminuindo tensões entre os usuários, como já foi
explanado no capítulo das Tipologias Socioeducativas.
104
CHARLES PIZATTO
Gráfico 3 – A primeira coluna (cinza claro) de cada par estabelece a relação entre a área do dor-
mitório e a área da janela. A segunda coluna (cinza escuro) de cada par soma as áreas de todos os
compartimentos de uma ala pelo somatório das janelas da mesma ala.
9 Apesar do Código de Obras do Município de Porto Alegre especificar fatores de aberturas apenas para compar-
timentos isolados e não áreas como um todo, adotei o fator 6,0 quando me refiro à área de Alas (vários comparti-
mentos reunidos), como referência. Uma área considerável da Ala é destinada para banheiros e circulações (fator
12,0), mas simplifiquei a uma média de maior qualidade, apenas como estudo de caso, sem nenhuma referência a
diferenças de ações de ventos.
105
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Pensar que janelas mais generosas são incrementos de conflitos humanos e risco
para eventos indesejados como motins, rebeliões e fugas são um grande equívo-
co em termos de pensar a arquitetura dos espaços socioeducativos de internação.
Quando ocorrem, são eventos isolados e eventuais. A ventilação e a iluminação de
espaços ocupados por muitas horas ao dia são a constante do trabalho socioeduca-
tivo, beneficiando adolescentes e funcionários.
E, claro, não basta considerar esse fator de ventilação em si, mas elaborar o Pro-
jeto Arquitetônico, estudando a ação dos ventos em cada caso, verificando suas dire-
ções nas diversas estações do ano, intensidades e zonas de pressão e sucção frente
ao conjunto edificado, como foi explanado anteriormente.
Essa consideração leva a um último assunto neste capítulo que gostaria de abor-
dar, que é a utilização de projetos padrões para todo o país. Eventualmente, vemos
o Governo Federal propor políticas para implantar modelos arquitetônicos em todo
o território nacional. Nada mais falho em termos de arquitetura que desconsiderar
diferenças regionais em um país de proporções continentais como o nosso. Achar
que uma edificação modelada nacionalmente possa responder de igual forma qua-
litativa às diferenças climáticas é não perceber o óbvio de toda noção básica de
sustentabilidade.
Você não pode esquecer que a luz de certo caráter tem a ver
com aquela que distingue a arquitetura de uma região da de
outra. (KAHN, 2010, p. 42)
106
DURABILIDADE E MANUTENÇÃO:
DESAFIO DAS ESPECIFICAÇÕES DO
PROJETO ARQUITETÔNICO
Quando comecei a trabalhar com arquitetura socioeducativa, uma das falas que
mais me impressionou foi a de que o tempo entre a reforma de um espaço de uso de
adolescentes e a próxima reforma do mesmo espaço seria somente de cinco anos.
Um dos principais fatores para esse curto espaço de tempo é o padrão de apro-
priação dos usuários. Como já colocado em outros momentos, os adolescentes, em
sua condição de fragilidade social, são dados a uma relação destrutiva com o es-
paço. Uma das consequências da privação de liberdade é o repúdio (consciente ou
não) pela edificação. As paredes, piso, tetos, portas, janelas e mobiliários são alvo
de vandalismo.
107
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
O simples mau uso das peças e mobiliário também reduz o tempo de vida útil da
edificação. O mesmo abrir e fechar de registros, o abrir e fechar de portas e janelas,
muitas vezes implica uma falta de cuidado, de zelo pelo bem público. E isso não é
algo exclusivo dos adolescentes, os funcionários e visitantes também são partícipes
desse processo de deterioração acelerada.
Também há o caso em que os danos provocados não são o fim, mas o meio para
se atingir outros objetivos. Prática corriqueira em alguns prédios de internação é o
chamado pedalaço. Os adolescentes deitam no chão, de barriga para cima, e com os
pés encolhidos, vão “coiceando” as portas metálicas. O ato inicia em um dormitório
e é logo seguido pelos demais dormitórios – assim fica difícil identificar quem iniciou
o protesto e tomar uma contramedida. O barulho formado no corredor da ala é en-
surdecedor.
Outro ato comum é o uso dos materiais disponíveis ao alcance dos adolescentes
para construir estoques. A sensação de insegurança, que também atinge os adoles-
centes internados, leva-os a produzirem armas pérfuro-cortantes com pedaços de
telas metálicas, chapas expandidas, lascas de madeira ou cerâmicas. Os pregos e
parafusos mais pequenos podem ser envolvidos, a partir de suas cabeças, por reta-
lhos de pano em sucessivas camadas até adquirirem o tamanho de uma empunha-
dura que dê condição de manobra da peça.
Para cada caso, trabalha-se com especificações do Projeto Arquitetônico que são
muito exclusivas ao perfil de usuário.
Para evitar os estoques, muitas peças são soldadas, nunca aparafusadas. Raras
as especificações de madeiras nas alas. As placas cerâmicas são substituídas por
revestimentos de pinturas impermeáveis, como as tintas epóxi e a base de cal. Nos
pisos, evitam-se lajotas e placas em geral, investindo-se nos pisos monolíticos e
moldados in loco, como granitinas e cimentados.
108
CHARLES PIZATTO
Em muitos casos, essas especificações limitam o tempo de vida útil frente ao pa-
drão de manutenção imposto. Os pisos de granitina necessitam de aplicações com-
plementares de resinas líquidas para sua proteção, pois devido à sua porosidade,
rapidamente podem escurecer e deixar os ambientes com péssimo aspecto.
E mais uma vez, a remoção dos excessos de umidade dos ambientes internos
pode contribuir para a maior durabilidade das peças metálicas presentes, poster-
gando os efeitos da ferrugem.
As luminárias de alguns dormitórios são embutidas nas paredes (em suas espes-
suras) e protegidas de acesso. Ainda que isso possa diminuir a eficiência do objeto
luminoso, deve-se então majorá-lo para poder oferecer o mínimo de luminosidade
exigida por lei.
E toda situação de tubulação deve ser muito bem pensada e avaliada, pois no
caso de ser exposta, o que facilita o acesso e rapidez de manutenção, ela não pode
estar à mão do adolescente.
Em muitas alas, vasos e pias cerâmicas esmaltadas devem ser aquelas de acesso
exclusivo de funcionários, pois seus cacos são elementos extremamente afiados.
Nos banheiros das alas, recomendam-se as peças em chapas metálicas inox engas-
tadas em formas de concreto.
Nas impermeabilizações, quanto maior seu tempo de vida útil, maior seu custo.
Inicialmente podemos pensar em aplicações de produtos mais duráveis, sobrepondo
o ditado o barato sai caro. No entanto, como outros componentes do mesmo ba-
nheiro têm a tendência de se desgastar mais rapidamente, como exposto anterior-
mente, utilizar um impermeabilizante de longa durabilidade, pode ser considerado
um desperdício de dinheiro público. Se uma manta impermeável tem durabilidade de
25 anos, enquanto o banheiro em que ela está instalada deve ser reformado a cada
5 anos, talvez possamos especificar um impermeabilizante que tenha um tempo de
vida útil menor, digamos 10 ou 15 anos – e consequentemente saia por um preço
mais compatível com a realidade dos cofres públicos, além de igualmente eficiente.
Uma das conclusões é a atenção que devemos ter ao abordar estratégias de re-
formas, considerando as ações que serão necessárias para a manutenção dos pré-
dios. Ao alinharmos os tipos de reformas que somos levados a realizar, temos como
incitar padrões e estratégias de manutenção dos mesmos espaços. O primeiro passo
desse conceito começa em entender a distribuição das demandas. Segue exemplo
com estudo realizado pelo Núcleo de Engenharia da FASE no ano de 2010, coletando
dados de reformas realizadas nos prédios do Estado nos anos de 2006 a 20102.
Gráfico 4 – Distribuição de investimentos por tipo de reforma entre os anos de 2006 e 2010. Cerca
de 1/5 referia-se a “incrementos de programa socioeducativos (S.E.)”, ou seja, buscava dar a um
antigo prédio uma aproximação aos parâmetros arquitetônicos do SINASE.
Através desse gráfico, podemos ver que as ações de manutenção devem recair
muito mais sobre os elementos hidrossanitários que dos elementos elétricos – após
a reforma realizada. A relevância dos sistemas elétricos para a manutenção é que
110
CHARLES PIZATTO
precisam ser executados por profissionais especializados, devido aos riscos de vida
envolvidos.
O fator técnico precisa ser preponderante, ainda que por fator técnico entenda-se
tanto conceitos construtivos quanto os das ciências humanas.
111
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Essas obras irregulares, muitas vezes endossadas – quando não propostas – pe-
los gestores e diretores de Unidades ocorrem na tentativa de resolver os problemas,
atalhando etapas de levantamento e análise técnica. Levados pela ansiedade, muitas
situações são resolvidas de forma equivocada.
Deve-se avaliar a causa efetiva do problema. Muitas vezes, o mau uso de um ele-
mento ou um espaço não precisa levar a uma alteração dos elementos arquitetô-
nicos se o mesmo problema pode ser resolvido por uma mudança de postura, de
hábito ou de rotina dos usuários. Se os adolescentes promovem o mau uso ou o van-
dalismo de um elemento arquitetônico qualquer, esse é um bom momento para uma
ação socioeducativa, não uma ação desesperada que desconsidera as normativas da
construção civil.
Esses são alguns exemplos que não encerram a diversidade de estratégias pos-
síveis de abordagem. Há de se pensar ainda em planos de manutenção preventiva e
não só na manutenção corretiva. É no planejamento de ações que pode haver uma
diminuição dos impactos negativos de todo o mau uso que um prédio de internação
sofre. O denominador comum para um programa de manutenção preventiva é a ve-
rificação periódica dos elementos arquitetônicos listados como mais críticos para
a plena operacionalidade do prédio. A ideia é antecipar eventuais problemas que
causam gastos maiores com a manutenção corretiva. Tabelas de temporalidade para
limpezas e desentupimentos de caixas de inspeção dos esgotos cloacais e pluviais,
revisão de centrais de disjuntores elétricos, limpeza de pisos, pinturas, etc.
112
CHARLES PIZATTO
Para tanto, pode-se utilizar a ferramenta conceitual da matriz GUT (Gravidade, Ur-
gência e Tendência), a qual contribui para as tomadas de decisão, classificando e
priorizando necessidades.
TENDÊNCIA
NOTA GRAVIDADE URGÊNCIA
(“se nada for feito...”)
5 extremamente grave precisa de ação imediata ... irá piorar rapidamente
4 muito grave é urgente ... irá piorar em pouco tempo
3 grave o mais rápido possível ... irá piorar
2 pouco grave pouco urgente ... irá piorar a longo prazo
1 sem gravidade pode esperar ... não irá mudar
Tabela 2 – Classifica as demandas com notas de 1 a 5 nos quesitos Gravidade, Urgência e Tendência.
Goteira no telhado 5 4 3 60 2º
Janela emperrada
2 1 2 4 4º
(sem abertura)
Disjuntor em
5 5 4 100 1º
sobrecarga
Tabelas 3 – Atribuição de notas GUT em exemplo de Matriz GUT hipotético. Cada quesito recebe uma
nota que é multiplicada e aplicada uma sequência de atividades de execução pela equipe.
113
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Outro ponto que ainda deve ser considerado é quando a Unidade mantém-se por
um certo tempo com número de internados acima do número de vagas. Essa su-
perlotação representa uma deterioração mais acelerada, pois o mau uso do prédio
é ampliado exponencialmente. De fato, não há estudos que determinem o quanto a
superpopulação contribui na depreciação da edificação, o que poderia passar a ser
objeto de pesquisa.
Essa matemática perversa é sustentada pelos papéis que alguns setores da so-
ciedade forçam a ocorrer. O primeiro é a pequena destinação de recursos financeiros
para a construção de novas vagas3, afinal de contas, muitos entendem que não se
deve investir em infraestrutura e espaço de qualidade para quem cometeu atos infra-
cionais – segue-se uma lógica punitiva pela privação de liberdade sem as qualidades
humanitárias condizentes. O segundo é a pressão exercida no Poder Judiciário para
que tome sempre as atitudes necessárias, seja para remover determinado indivíduo
da sociedade, seja para punição da prisão, como visto acima.
Esses dois fatores trabalham associados, estabelecendo o pior quadro, que seria
a superlotação de espaços degradados e escassez de recurso humano de resso-
cialização. O processo socioeducativo fica comprometido como um todo e não há a
recuperação esperada pela mesma sociedade que clama por uma queda dos índices
de violência. A lógica é completamente contraditória. A mídia ainda entra no jogo e
muitas vezes traz uma visão negativa dos fatos, colocando como se fosse um simples
e consciente desejo dos poderes públicos oferecer condições desumanas de interna-
ção para adolescentes.
Essa lógica precisa ser repensada. A balança precisa ser reequilibrada.
114
ESTÉTICA DA SEGURANÇA
1 No ambiente urbano da cidade não é diferente. Quanto mais grades nas casas, câmeras de vigilância nos pré-
dios e outros aparatos, existe o objetivo de aumentar a segurança, mas paradoxalmente ocorre um aumento da
noção que aquele ambiente é inseguro. Esse é um tema explorado por Jane Jacobs (2011) em Vida e morte nas
grandes cidades.
115
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Talvez seja útil tomar algumas reflexões iniciais, a começar por uma reiteração
de que um CASE ainda mantém em sua essência o conceito de uma instituição to-
tal. Goffman (2010, p. 16) também pondera que toda instituição tem tendências de
"fechamento", ou seja, até certo ponto isola-se do mundo, criando regras que são
somente aceitas e seguidas no seu interior. Cada instituição possui graus de fecha-
mento diferenciados e o que caracteriza uma instituição total são suas barreiras
sociais (com o mundo externo) e físicas, que proíbem a saída dos internos.
Na verdade, muitos prédios mantêm suas funções básicas desde sempre. A fun-
ção que define uma biblioteca continua sendo guardar livros. Um hospital continua
sendo um lugar onde as pessoas se dirigem para curar-se de doenças. Um restau-
rante continua sendo um lugar onde as pessoas vão para se alimentar.
O que deve ficar claro é que a essência da instituição não se alterou drasticamen-
te, mas suas práticas diretas sim. Não o objeto e o objetivo foram alterados, mas a
metodologia, seu Programa de Atendimento.
Posto isso, podemos afirmar que uma das estratégias mais diretas de segurança
lançadas em um CASE é a das barreiras físicas. Ou, como postula Foucault (1987,
p. 122), uma das técnicas de ordenação espacial para privação da liberdade é a
cerca: "[...] especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em
si mesmo."
Apenas para reforçar e acrescentar o que já foi discutido na questão da vigilân-
cia, tenha-se claro que, mesmo diante de toda uma carga e pesar humano frente à
implantação de um CASE, trata-se de um equipamento urbano que priva a liberdade
do indivíduo. Em termos de funcionalidade arquitetônica, é regido por uma ordem
prisional. Não é uma prisão, mas os adolescentes ali internados somente saem com
ordem do Poder Judiciário. Muitos entendem essas afirmações como semântica, o
que traz inconvenientes à execução das medidas, pois abre-se caminho para inter-
pretações equivocadas.
116
CHARLES PIZATTO
Uma das formas dos funcionários suprimirem eventos que podem levar a um mo-
tim é a promoção da troca e apoio entre os agentes socioeducadores de diferentes
alas. As alas são o primeiro conjunto de dormitórios e podem haver mais de uma ala
dentro de uma única edificação (podendo haver mais de uma edificação de alas e seus
respectivos dormitórios). Nas alas, que é onde se concentram os adolescentes, os
conflitos tornam-se mais palpáveis. Os adolescentes com tendências mais agressivas
e contestatórias são objetos de constantes cuidados e atenção pelo corpo funcional.
Cada ala pode assim ser organizada para atender diferentes perfis de adolescen-
tes ou diferentes medidas socioeducativas, promovendo uma das técnicas discipli-
nares postuladas por Michel Foucault, a da classificação.
2 Estoques são os elementos caseiros pérfuro-cortantes que os adolescentes usam como instrumento de defesa
e ataque.
117
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
118
CHARLES PIZATTO
Figura 30 – O desenho conceitual do panóptico (esquerda) distribui as celas, todas voltadas para
o ponto central (P), onde ficavam os guardas, em eterna vigilância. No modelo da direita, a central
de vigilância era mais uma central de controle de acesso e distribuição – o interior das celas não
era possível ser totalmente avistado dessa central.
[...]
Cabe ressaltar que a abordagem radical do panóptico não deve comparecer nos
modelos de CASE’s, apenas a estratégia do zoneamento (modelo da direita da Figu-
ra 29). Dessa forma, o desuso da preponderância geométrica e do uso da luz como
controle de visuais não promove o “funcionamento automático do poder”, que seria
daninho ao trabalho socioeducativo. A ideia não é subjugar os adolescentes, mas
empoderá-los com autonomia no convívio social.
O controle existe e tem seu papel no CASE. O próprio aprisionamento não é mais o
puro aprisionamento – solução simplista e desumana. Deve-se trabalhar a arquitetu-
ra do CASE, cuidar os nichos e recantos, para que eles sejam usufruídos. Os gradis e
vazados não são barreiras físicas, mas filtros de sol, ventos, luz... Também são filtros
de atividades, de momentos de relaxamento e privacidade, espaços diferenciados
para adolescentes em estágios diferentes de medida socioeducativa. Cada elemento
arquitetônico é repensado além da contenção - o que ele pode oferecer a mais?
119
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Já as barreiras físicas são os exemplos mais utilizados, pois requerem baixo cus-
to de manutenção, mesmo que não tenham custo de construção tão baixo, em al-
guns casos.
120
CHARLES PIZATTO
reduzidos, o que pode ser um grande erro, quando não associado a um incremento
dos contratos de manutenção dos sistemas eletrônicos.
Ainda devemos estar atentos e sensíveis ao entorno imediato em que o CASE está
inserido, pois ele traz, eventualmente, outras barreiras físicas. Nos dias de hoje, as
propriedades vizinhas podem já conter barreiras lineares complementares às barrei-
ras do próprio CASE, formando naturalmente faixas de circulação restritas. Da mes-
ma maneira, acidentes geográficos naturais ou artificiais, como encostas íngremes
de morros, valões, talvegues, seriam pensadas como barreiras complementares, não
tirando o papel da vigilância ou da barreira linear principal, mas sendo muito úteis,
ainda mais se associadas às guaritas. Em cada caso, deve-se ter uma avaliação cri-
teriosa dessas barreiras, mesmo porque não se pode contar com elas como sendo
as únicas em ação.
Está claro que todos esses elementos associados, mais a presença de pessoal
que tem o exclusivo papel de fornecer a segurança do CASE não delimitam por si a
questão simbólica e de significância que as barreiras possuem.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Barreiras são intervalos.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Separam processos, funções e conteúdos.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Separam também seres humanos.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Goffman (2010, p. 24) afirma que a barreira entre o internado e o mundo externo
assinala a primeira mutilação do eu. Não é possível a plena expressão do indivíduo,
pois seus diversos papéis (membro de uma família, trabalhador, estudante, pacien-
3 Intramuros seria a região mais internalizada do CASE, onde se dão as atividades da Unidade com participação
dos adolescentes.
121
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
te, etc.) estão misturados e interligados nas suas rotinas dentro das instituições
totais. E se o indivíduo se encontra em desarmonia, sua saúde e integridade ficam
comprometidos. Essa ruptura entre o indivíduo e o mundo externo que é situação
intrínseca das instituições totais, nos centros de atendimento socioeducativo não
é diferente. O que ocorre são consequências antagônicas. Uma delas é o desliga-
mento com o mundo que o adolescente conhece e se relaciona (que em geral não
se apresenta como o melhor, ainda mais se o ato infracional está relacionado com
o tráfico de drogas). O outro é que o mesmo desligamento com o mundo externo
afeta sua identidade, pois nós somos alguém sempre em um determinado contexto
específico. A condição de internado, ao mesmo tempo que é esperada e faz parte do
processo de ressocialização, é dolorosa e perturbadora.
Goffman (2010, p. 150) analisa que organizações sociais que funcionam limita-
das fisicamente por barreiras exigem que seus integrantes participem visivelmente
das suas atividades programadas.
O muro é uma barreira física das mais concretas. Simbolicamente coloca-se como
intransponível, ou melhor, traz uma mensagem clara e direta: “daqui não se passa”.
Por um tempo, ainda não claramente determinado, o adolescente deve aceitar sua
condição de internado4. Muitos deles terminam encarando o vencer as barreiras
que os contêm como um desafio. É esse desejo de enfrentamento que estimula
muitas fugas.
Pareço ser tendencioso ao defender o uso de muradas como barreiras físicas pe-
rimetrais, mas é a experimentação dos espaços em diferentes gerações de CASE’s
que leva a certeza de que é o transitar entre diferentes prédios, de diferentes funções
que promove um destensionamento da Unidade de Internação. Muitos funcionários
que trabalham nesses CASE’s cercados por altos muros com passarelas no seu topo,
afirmam que, depois de um tempo, até esquecem que o muro está lá. O que importa
é o ambiente externo à edificação e as edificações e seus acessos em si.
122
CHARLES PIZATTO
visuais em três dimensões sempre tratam de nos fornecer uma linha do horizonte e
pontos de fuga5.
A falta de controle visual externo dado pelas cercas pode simbolizar uma ampli-
tude de visão conceitual e buscar uma compreensão de que o mundo é muito maior
do que costumamos perceber. No entanto, se a mensagem de “proibido passar” está
posta, não é contundente, nem mesmo eficaz. Vencer cercas é algo muito mais fácil
que muros, sendo ambos dotados de muita altura. Daí a necessidade de incrementar
a simples cerca com outros aparatos físicos, que desestimulem os adolescentes a
transpô-la. Refiro-me aos arames farpados, os cabos em espiral, os ouriços, as telas
laminadas, etc.
E as ações de fuga são cada vez mais desafiadoras, o que leva os dirigentes dessas
unidades a pensar que quanto mais forem os investimentos em segurança, mais com-
prometida com a noção de que essa sociedade em que vivemos não é segura. Parece
um contrassenso, mas é o que autores como Paul Dieter Nygaard (2010) e Jane Jacobs
(2011) postulam. Para quem transita em uma rua, quanto maior o número de prédios
e casas cercadas e/ou muradas maior é a percepção de insegurança. Do contrário,
quando a presença humana em cada lote se demonstra por jardins cuidados, ausência
de cercamentos, ausência de grades nas janelas, e outros tantos meios demarcatórios
de territorialidade em caráter propositivo, maior as chances de que entendamos esses
meios urbanos como bem cuidados e estruturados quanto à violência.
A força simbólica do muro não pode ser julgada olhando somente para ele. Esse
seria um julgamento cru. Deve-se olhar o contexto em que ele é inserido e principal-
mente o contexto que ele propiciará.
5 Sem no entanto desconsiderarmos que há um limite de tempo de vivência dessa espacialidade limitada, sendo
necessário, com uma certa frequência, que todo ser humano esteja em contato com visuais mais amplas que as que
2,5 hectares propiciam.
6 Para exemplificar formas de tratar a presença do muro na paisagem urbana, para quem está fora, basta ler o
capítulo Implantação de CASEs no meio urbano.
123
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
124
CHARLES PIZATTO
7 É claro que existe um limite para esse raciocínio e é bom entender que por mais investimentos físicos e tecnoló-
gicos de contenção, nunca pode haver a supressão do controle humano. E entenda-se que assim o recurso humano
pode ser voltado mais para a socioeducação em si.
8 Já ouvi alguns gestores e funcionários trazerem históricos de adolescentes específicos durante o trabalho como
se fosse uma curiosidade mórbida: “Aquele ali fez tal coisa...”
125
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
E, apenas para reforçar o que já foi discutido sobre manutenção do muro, o in-
cremento de passarela sobre ele oferece uma proteção às intempéries, reduzindo a
necessidade de manutenção (limpeza e pintura), o que, em uma grande extensão
de fachada, seria serviço de alto custo. Já no caso das cercas perimetrais, quan-
do há um rompimento das mesmas (situação muito mais suscetível a ocorrências),
“remendos” sempre são soluções paliativas, havendo por vezes a necessidade de
substituir grandes extensões de telas ou ainda sobreposições, o que também nunca
é feito com o melhor acabamento e termina por passar mensagens do tipo que o
cuidado com a segurança é enjambrada, não planejada.
São essas mensagens que passamos através da manutenção das edificações que
afetam em muito o significado das mesmas tanto para os adolescentes, e funcioná-
rios quanto para as pessoas que estão do lado de fora. Quando essa manutenção
não é bem realizada, as leituras das pessoas podem ser:
“Eles trabalham sem planejamento. Que lugar mal cuidado!”
Temos, além disso, que atentar para não tratarmos tudo como se fosse uma ques-
tão de segurança. A segurança da contenção não é a espinha dorsal das ações so-
cioeducativas e do projeto arquitetônico. Segurança é mais que sobreposições de
barreiras físicas, que são ações preventivas de situações perigosas. Segurança é
126
CHARLES PIZATTO
saber agir na medida exata diante de cada caso que se apresenta. Ou como diz Wen-
dy Reid Crisp:
Goffman (2010, p. 77) alerta ao cuidado de que temos que ter ao dar pesos e
interpretações diferentes a cada doutrina e como isso pode afetar todas as rotinas:
Nem tudo pode ser determinado em nome da segurança, mas pensado e refletido
frente ao significado de cada rotina, pois a segurança permeia todo momento do
CASE.
O pensamento de Louis Kahn, no início desse capítulo serve como reflexão entre
o ideal humanitário e o necessário cerceamento da liberdade. Em que haja necessi-
dade dos elementos arquitetônicos significarem algo, passarem uma mensagem, que
ao menos a mensagem seja a que realmente se almeja passar.
127
SIGNIFICADOS NA ARQUITETURA
SOCIOEDUCATIVA: A ESTÉTICA À
SERVIÇO DA SOCIOEDUCAÇÃO
Em toda ação existe uma significação. Por trás de toda inação, esconde-se uma
significação.
Estamos tão imersos em pensamentos que, para podermos agir com maior efi-
ciência, procuramos não transparecê-los a toda hora. Assim, o simples gesto de
beber um copo d'água pode significar o quanto eu cuido de mim.
Indo além da punição, pelo método do aprisionamento, existe ainda uma outra
mensagem, que eventualmente vem à tona na sociedade, a de que o aprisionamento
punitivo é um controle social. “Quem comete crimes vai preso, logo o número de
crimes deve cair.” Esse paradigma da prisão como forma de controle é explorada por
Foucault (1987, p. 149):
1 Winston Churchill
129
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
[...]
Na lei mais recente, do SINASE (Nº 12.524), o seu artigo 1º, coloca estrategica-
mente os objetivos da socioeducação. Temos a desaprovação da conduta infracional,
a responsabilização do adolescente e a sua integração social. Em suma, não é mais a
punição, a qual principia uma educação pela reprimenda – ainda que se pense que a
punição propicia uma educação pela reprimenda. A desaprovação do ato infracional
é dada pela sanção judicial e a medida socioeducativa aplicada, ainda que iniciada
pela privação de liberdade. Segue pela responsabilização do adolescente: ao erro
cometido é o próprio adolescente que deve responder pelas consequências, o que
pode significar a sujeição às regras da instituição. O terceiro objetivo, a integração
2 Antes do estilo penal de utilização do tempo (aprisionamento), havia o estilo penal do suplício (castigo). O cas-
tigo era aplicado ao corpo. Mas já ao fim do século XVIII e início do século XIX, passa a prevalecer “[...] uma certa
discrição na arte de fazer sofrer [...]” O cenário deixa de ser a praça pública e passa a ser a prisão. (FOUCAULT,
1987, p. 12)
3 Conceito expresso por PONZI, Carolina Tombini e GONÇALVES, Samantha Luchese. Internação. In LAZZAROTTO,
Gislei Domingas Romanzini et al. Medida socioeducativa: entre A & Z; Porto Alegre; UFRGS; Evangral, 2014. Páginas
132 a 135.
130
CHARLES PIZATTO
Mas a maioria da nossa sociedade ainda encara o significado punitivo como uma
situação desejada, associada à falsa ideia de avanço na segurança própria, graças
à remoção do indivíduo-problema do convívio social (do seu convívio social em par-
ticular)!
Se a sociedade se "beneficia" com a privação de liberdade do adolescente, não
podemos entender porque esse é um conceito pactuado por todos. O valor reside na
nossa estratégia de modelo socioeducativo enquanto resgate social, benéfica a cada
adolescente enquanto indivíduo. No entanto:
131
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
E também não estou com isso afirmando que deve haver castigos (oficializados
ou não) nem tampouco se eles devem ser suprimidos a zero. Precisa haver, sim, a
oficialização e o cumprimento dos padrões de relacionamento dos usuários do CASE.
Observa-se ainda uma dualidade do papel dos técnicos nas Unidades de Atendi-
mento, pois ao mesmo tempo que atendem os adolescentes, eles os avaliam (FON-
SECA e BARCELLOS, 2001). Essa situação, elevada ao plano institucional, promove
relações de desconfiança mútua, em que o adolescente não consegue vincular-se
plenamente aos preceitos do processo socioeducativo a que estão sujeitos e em
que os técnicos carregam certa desconfiança das falas dos adolescentes durante o
processo avaliativo.
4 Esse dilema já se fazia presente na FEBEM, instituição que antecedeu a FASE, quando aborda a “[...] tensão
criada entre as aspirações de um modelo educativo e os imperativos de um modelo disciplinar.” - (FONSECA e BAR-
CELLOS, 2001, p. 4)
5 Todo esse conceito é explorado por GOFFMAN, 2010, p. 22.
6 Fora os já estabelecidos por vinculações a gangues.
132
CHARLES PIZATTO
Muitas vezes quando me via diante de uma fuga ocorrida na qual o adolescente
arriscava sua própria integridade física como escalar uma grande altura ou atraves-
sar uma barreira composta de elementos pérfuro-cortantes, eu perguntava: "Por que
raios ele fez isso?"; e mais de uma vez ouvi a resposta: "Para provar que ele podia!"
Para quem está do lado de fora, as barreiras físicas precisam ser melhor mes-
cladas à paisagem urbana. Por isso os grandes recuos frontais, os jardins, praças
e equipamentos de lazer vem compor para uma harmonização em nível urbano. As
barreiras físicas funcionam como filtros, como já foram citadas anteriormente.
Existe um jogo de forças em constante movimento ao desenvolver um projeto de
CASE e mesmo durante sua operação: as forças, crenças e valores voltadas para a
contenção dos adolescentes e as forças, crenças e valores voltadas para a socioedu-
cação7. Cabe também observar que esse jogo de forças varia de Estado para Estado
da Federação, tendo em vista a composição estrutural em que cada instituição se
encontra. Essa polarização apenas reflete-se dentro de cada instituição, por espe-
lhamento do entendimento da sociedade.
Em todo caso, deve-se cuidar para que não se distancie em demasia o discurso
da prática. Não vale aparentar todo um discurso socioeducativo de ressocialização
quando na verdade se promove a privação de liberdade, a contenção de viés punitivo.
7 Essa dualidade é amplamente discutida em FONSECA e BARCELLOS (2001). Apesar de tratar-se de estudo ain-
da do tempo da FEBEM, que foi reformulada e parte da mesma tornou-se FASE, muito conteúdo conceitual ainda é
apropriada para avaliar a presente instituição.
8 Refere-se o texto específico ao monitor, atual cargo de socioeducador, mas pode-se estender a apropriação de
conceitos para os demais funcionários.
133
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Devido a essa problemática, deve-se ter claro que são usuais as semelhanças
entre os elementos arquitetônicos, as configurações espaciais e algumas tipologias
entre prédios de função prisional e outros equipamentos urbanos, inclusive CASE's.
Como exemplo, cito os muros e suas guaritas, os padrões de portas e suas trancas e
as disposições e acionamentos das peças hidrossanitárias dos dormitórios.
O mais importante é compreender que essa condição deve ser tratada com nor-
malidade e procurar tratar em outras escalas do labor arquitetônico os diferenciais
que darão identidade socioeducativa aos CASE's.
As tecnologias construtivas não são somente os meios para chegar aos fins. Al-
gumas nos remetem a conteúdos mais apropriados à contenção e isso pode so-
brecarregar a parcela de significado da contenção, em detrimento da parcela da
socioeducação. Exemplo claro seria o uso do chamado concreto de alto desempenho
(CAD) - técnica construtiva de base de estruturas pré-moldadas, de resistência e
acabamento superior ao concreto convencional moldado in loco e mesmo de es-
truturas pré-moldadas convencionais. Alguns materias, como o CAD, podem passar
a mensagem que esse nível de contenção é necessária, agravando a impressão de
periculosidade que a sociedade tem daqueles que lá estão contidos. Assim como o
CAD, outros tantos elementos construtivos transmitem essa mensagem equivocada,
reforçando o afastamento e exclusão dos adolescentes da sociedade – e esses ado-
lescentes são frutos da mesma sociedade.
134
CHARLES PIZATTO
135
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Christopher Day fala em uso de cloisters, que seriam espaços parcialmente exter-
nalizados nos prédios cercados por ajardinamentos. Corredores poderiam ser confi-
gurados como cloisters e proporcionar recantos que significam não somente locais
de passagem.
Da mesma maneira para vencer os filtros de acesso ao interior do CASE, nos quais
os usuários vão experienciando as “camadas da cebola”10, podemos entender que
essas sequências de filtros e espaços sucessivos seriam preparados com caracterís-
ticas acolhedoras e integradoras, em maior ou menor grau, conforme as exigências
de segurança forem permitindo.
136
CHARLES PIZATTO
Figura 37 – Sequência de espaços, que vão oferecendo diferentes relações espaciais, preparando
a entrada ao interior do CASE.
Ainda essa estratégia pode ser usada em situações com menor número de se-
quências, mais internalizadas, como em alas de dormitórios, por exemplo.
137
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Ao projetarmos muros, por exemplo, eles delimitam espaços, além de serem bar-
reiras. Os muros perimetrais, apesar do seu forte caráter de contenção, podem ser
suavizados, com chanfros em suas quinas. Nos mesmos chanfros seriam incorpora-
das as guaritas.
138
CHARLES PIZATTO
Figura 40 – Os muros com guaritas nas quinas oferecem melhor visualização externa, no entanto
os que têm as quinas dos muros chanfrados oferecem mais suavidade ao volume e adequam-se
melhor ao trânsito de veículos interna e externamente.
139
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
O bom projetista pensa o espaço, ajusta as formas, refina nos elementos paisa-
gísticos, pensa o Projeto Arquitetônico para melhor configurar uma estética que sig-
nifique positivamente à alma, e enfim, é aquele que contribua para a socioeducação.
140
O ESPAÇO COMO PROTAGONISTA DA
EDUCAÇÃO CIDADÃ
A segurança pública tem se tornado cada vez mais matéria em pauta. Mais mas-
sivo que o aumento da criminalidade é o aumento com os gastos para combatê-la.
A conscientização desse fato só reforça a ideia de que vivemos tempos dominados
pela violência urbana.
Cada um de nós pode ler a citação e lembrar de exemplos presentes e bem pró-
ximos no seu município. Não é de se estranhar que, quando se toca no assunto de
inserir um equipamento urbano do porte e uso de um CASE, haja resistência dos
mais diversos setores da sociedade.
Mais do que entender, necessário é compreender que é na miscigenação de usos
e atividades que se dá o "espetáculo da vida urbana" (NYGAARD, 2010, p. 87). Do
contrário, os espaços podem expressar uma estagnação da vida urbana, caso não
142
CHARLES PIZATTO
Christopher Day (1995) chama isso de transformar partes de uma cidade em lu-
gares como um passo essencial para proporcionar saúde às pessoas.
Gallagher (19--, p. 22), em seu livro Buscando um lugar para ser feliz, estabelece
nas primeiras páginas que:
Dessa forma, fica claro que as fronteiras físicas, por mais que
funcionem como elementos simbólicos da segregação urbana,
não funcionam de forma tão eficaz na eliminação da capaci-
dade de ação e do discurso do indivíduo internado [...]
143
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Mais próximo dos conceitos do arquiteto e urbanista, está a teoria dos cinco ele-
mentos de Kevin Lynch. A proposta aqui é fazer uma “leitura” do CASE com base
nesses conceitos.
Lynch dizia que toda a cidade se estrutura em elementos que promovam a capa-
cidade do ser humano em conectar-se ao espaço, utilizando-se das suas percepções
sensoriais para deslocar-se, usufruir e mesmo sobreviver nele.
O que Lynch estabelece como condição básica é que o ambiente que cerca os
seres humanos seja possível de ser interpretado da maneira mais prática e possível
de estabelecer uma localização, respondendo à questão básica “Onde estou?”. Esse
conceito é o de legibilidade – como um espaço pode ser reconhecido e organizado
em um modelo coerente.
144
CHARLES PIZATTO
Um espaço fortemente legível tem por finalidade garantir o bem-estar do ser hu-
mano. Essa estratégia aplica-se tanto para estabelecer premissas de desenho urba-
no para uma cidade quanto pode ser aplicada para grandes equipamentos urbanos
de complexidade funcional, como um CASE, por exemplo. A estratégia é trazer esse
conceito para a arquitetura socioeducativa.
Temos então os cinco elementos da teoria de Kevin Lynch que formam a imagem
da cidade ou, no caso, a imagem do CASE: as vias, os limites, os bairros, os pontos
nodais e os marcos.
145
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
As vias: são os canais de circulação dos usuários. Elas articulam e organizam ou-
tros elementos ambientais. No CASE elas seriam ainda predestinadas por diferentes
usuários e veículos – adolescentes, funcionários (e podem discriminar os perfis de
funcionários), veículos de funcionários e veículos de segurança. Mas o mais relevan-
te são as vias utilizadas pelos adolescentes, que demarcam diferentes graus, con-
forme o trânsito ao longo de um dia – número de vezes que um caminho é utilizado.
Os limites: são considerados os elementos lineares, mas que não possuem a fun-
ção de via. Tratam-se das barreiras, fronteiras que delimitam espaços de usos dife-
rentes, para usuários diferentes. Essas barreiras podem ter graus de permeabilida-
de, por usuário ou horário. Em alguns casos, os limites estariam associados às vias.
Esses elementos, em geral, estão vinculados às diretrizes de segurança, pelas quais
as próprias edificações devem ser localizadas no complexo, entendendo-as como
elementos de limite.
146
CHARLES PIZATTO
147
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Utilizar os elementos de Kevin Lynch não implica utilizar seu método – desenho
de mapas e questionário com uma pequena amostra de usuários do ambiente (ado-
lescentes e funcionários). Pode se tratar apenas de uma aplicação pelos arquitetos
urbanistas envolvidos no Projeto Arquitetônico, contribuindo na identificação dos
elementos, o que levaria a promover a sua legibilidade1.
A leitura dos elementos de Lynch, que estudou sua aplicação na grande escala da
cidade, pode seguir parecendo estranha e desconfortável ao aplicá-la em um equi-
pamento urbano, ainda que o mesmo ocupe área de 3 hectares, mas o autor ressalta
que é possível o uso em diferentes níveis de operação.
Por fim, é importante ressaltar que a forma dos elementos é fundamental para
1 No entanto, a ideia pode ser instigante resultado de pesquisa sobre uso e apropriação do espaço.
148
CHARLES PIZATTO
149
O ESPAÇO QUE PROPICIA A CURA
É da condição humana ferir e magoar outras pessoas, na maioria dos casos sem
nem nos darmos conta. Eventualmente todos passamos por isso. Então, o que nos
difere de adolescentes que cometeram atos infracionais? A gravidade das situações
envolvidas? Existem tantos "pecados" morais os quais não são cobertos pelo regime
da Lei – ou que seriam aparentemente ridículos frente ao conjunto de crimes contra à
vida humana – que são tão ou mais agressivos que os artigos do Código Civil Criminal.
E, ainda assim, muitos de nós nos mantemos com reservas e exclusões frente aos
atos infracionais cometidos por adolescentes. Dois mil anos depois, seguimos jogan-
do a primeira pedra, como se nada tivéssemos aprendido nessa jornada.
Erving Goffman (2010) tem uma opinião sobre isso: de que, no caso específico da
delinquência, a sociedade civil responde com um conjunto maciço de rupturas, ter-
minando mesmo por impedir que se verifiquem se houve alterações positivas quanto
à conduta do indivíduo que fora internado, no caso, o adolescente. Como já havia
citado a fala de um futuro vizinho de um CASE no capítulo Implantações de CASE's:
Por que negar uma segunda chance? Por que descarregar frustrações de injusti-
ças em casos do nosso cotidiano? Por que não olharmos honestamente no espelho?
Por que sermos tão certos de nossas certezas?
151
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
O lugar, o espaço não é tudo, mas ele é partícipe. Ele não é o princípio, também
não é o fim, mas ele comparece em algum momento, no seu momento.
Em geral, ainda prevalece uma desconsideração pelo espaço, pelo ambiente que
deve se propiciar e os sentimentos que devem prevalecer.
Isso ocorre porque muitos conceitos sobre ações de assistencialismo social e so-
cioeducação tiveram fortes evoluções na segunda metade do século XX até os dias
de hoje. Foi como se saíssemos da Idade Média em menos de cinquenta anos. Isso
foi uma revolução, a qual ainda não cessou.
Mas prédios não conseguem evoluir tanto quanto conceitos, ao menos não da mes-
ma maneira. São necessários identificar os conceitos, incorporá-los aos futuros usuá-
rios e daí promover reformas. Como toda estrutura física possui limites de adaptação,
alguns casos são impossíveis. E daí vivemos e estabelecemos regras de convívio e con-
duta e rotinas em espaços que lutam contra nossos próprios parâmetros. Isso termina
por promover conflitos internos e entre os diferentes usuários do espaço.
Vou trazer um exemplo prático de uma das gerações de prédios que possuíam
áreas cobertas, que ligavam blocos de dormitórios ao núcleo central do prédio onde
se localizavam as funções administrativas e técnicas. Essas áreas cobertas foram
ampliadas, porém fechadas, para poder acomodar outras funções como salas de
aulas. Amplia-se a atividade educativa, mas omite-se o trânsito em ar puro de um
setor ao outro. Descuida-se da alma, do aliviar tensões, impede-se a descontração,
estimulam-se os conflitos.
Outro exemplo: se antes toda a roupa suja dos adolescentes era lavada fora, em
um prédio específico para isso, agora parte da vestimenta, se for o caso e o interesse
do jovem, ele mesmo pode lavar. Mas pode não haver no prédio uma lavanderia do-
méstica, não há mesmo um tanque. O adolescente usa a pia do banheiro (coletivo).
Novamente, surge a alteração das rotinas e a ampliação dos conflitos, sem falar do
uso duplicado do mesmo equipamento sanitário (lavatório do banheiro como tan-
que), sobrecarregando o uso, diminuindo o tempo de vida útil e ampliando o trabalho
de manutenção. Quando há tanque, pode não existir um espaço configurado para va-
ral, restando aos adolescentes secar sua roupa em cordas improvisadas no dormitó-
rio, presas entre a janela e a porta. E mais uma vez, usos inapropriados dos espaços,
152
CHARLES PIZATTO
153
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
Por fim, ainda que um pouco deslocado e distante dos outros capítulos sobre ur-
banismo, no capítulo do espaço como protagonista da educação cidadã, utilizei das
premissas de Kevin Lynch para poder justificar o espaço arquitetônico gerado pelo
CASE e os cenários necessários para a socioeducação acontecer. Seria um voltar aos
conceitos explorados no capítulo sobre as tipologias arquitetônicas e sobre as inser-
ções no meio urbano, mas focando no fechamento do livro, no qual volto a abordar a
"cura" de problemas sociais que atingem o indivíduo que são o tema deste capítulo.
O avanço se dará com a aceitação (mais que o entendimento) de que o meio am-
biente e os espaços que nos circundam fazem diferença na nossa realização pessoal.
154
CHARLES PIZATTO
lamos. Deixamos de lado uma boa parte de nossa individualidade para correspon-
dermos aos personagens que o cenário de comportamento estabelece. Existe uma
previsibilidade nos eventos que se processarão em um determinado espaço.
Muitos dos adolescentes internados por atos infracionais perderam essas rela-
ções com o meio físico, ou nunca as tiveram.
Usar um banheiro adequadamente, ter postura de aluno em uma sala de aula, ter
espírito esportivo em um jogo de bola, esperar um carro passar antes de atravessar
uma rua (ou passagem de veículos que se assemelha a uma rua), são exemplos de
ações socioeducativas, relacionando-se aos nossos cenários de comportamento.
mas cabe colocar que, mesmo nesses casos, mudanças de cenários de comporta-
mento podem ter um efeito benéfico maior do que se imagina.
A mudança de ambiente por si só pode trazer nova luz sobre eventos e compor-
tamentos, da mesma maneira que manter o vício (seja ele qual for) em horário e/
ou local alternado do regular, pode provocar uma reação muito mais intensa que a
normalmente sentida – mesmo porque as reações que o próprio organismo se vale
para atenuar os efeitos tem o respaldo do ambiente de costume.
156
CHARLES PIZATTO
não durariam muito tempo ali. Talvez a cidade não seja a desejada, mas serão de-
sencadeados mecanismos de compensação em outros espaços, como na residência
em si, ou mesmo no local do trabalho, ou ainda no barzinho para aonde se dirigem
ao fim de todas as tardes. As identificações podem ser as mais diversas conforme as
diferentes escalas espaciais e de relacionamentos.
É devido a isso que muita gente busca refúgios naturais quando tira férias. Exis-
te uma necessidade de "recarregar as baterias", pois sofremos de fadiga mental, o
que ocorre com todos nós que precisamos nos ausentar de nossas vidas. Reduzir o
número de estímulos a que nos sujeitamos nos outros onze meses do ano é um pro-
cesso similar ao que se dá com os adolescentes em regime de internação.
Quando internado, ocorre uma redução brutal de estímulos. Dentro de uma Uni-
dade, não há muita variabilidade de rotinas. As novidades que o passar dos dias traz
ganham uma importância e dimensão desproporcionais, às vezes ao ponto do "con-
vulsionamento em grupo". Existe uma agitação coletiva, muitas vezes associada ao
momento que precede um motim ou rebelião. E se não há tempo e espaço dedicados
ao ambiente externo do prédio – prevalecendo o confinamento – esses momentos
tensos só vão crescendo em número. Prédios com modelos antigos, onde estão pre-
vistos apenas "pátios de sol" para atender o mínimo de contato com o exterior, têm
essa situação crítica como realidade.
157
ARQUITETURA SOCIOEDUCATIVA
to mais que nos ambientes internos. Aliás, fica muito mais fácil controlar o número e
intensidade de estímulos. Não é uma cidade, mas uma semelhança de cidade.
[...]
No entanto, não podemos esquecer o que levou esses adolescentes a serem in-
ternados. Os atos infracionais cometidos, em alguns casos, são classificados, no
Código Criminal como "crimes contra a vida" e mesmo "crimes hediondos". Falar
em recreação, lazer e contato com a natureza, para muitos, soa como uma "recom-
pensa" frente ao ato praticado. Nosso sistema judiciário, impulsionado pelo apelo de
segmentos da sociedade, ainda trabalha no paradigma do "crime e castigo". Alguns
afirmam que tratamentos mais brandos aos adolescentes significariam uma perda
da realidade.
Pesar prós e contras sobre como tratar esses adolescentes é tema que vem sen-
do debatido entre a sociedade com mais ênfase nos últimos tempos. E esse tema
vincula-se diretamente à outra discussão: se estamos tratando de seres humanos
fragilizados (e alguns usam essa palavra ao pé da letra) ou criminosos. Nada mais
do que entender se queremos um conjunto de ações restaurativas ou punitivas. Fico
pensando, depois de vivenciar situações do meu trabalho por quase dez anos, se
esse debate não é mais velho que o mundo. Estamos todos simbolicamente ou pas-
sando a mão na cabeça desses jovens ou tomando o chinelo nas mãos – ou ainda
flutuando entre uma coisa ou outra...
Talvez o caminho não seja uma escolha entre essa polarização, a qual inicialmen-
te todos tomam um partido, mas sim um caminho de restauração. Uma restauração
que começa pelo ser humano como indivíduo, mas que afeta positivamente toda a
sociedade.
158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Betina Warmling e GERMANO, Marco Andre. Justiça Restaurativa. In: LAZ-
ZAROTTO, Gislei Domingas Romanzini et al. Medida socioeducativa: entre A & Z.
Porto Alegre: UFRGS, Evangraf, 2014. p. 150-152
CRAIDY, Carmem Maria. Ato infracional. In: LAZZAROTTO, Gislei Domingas Romanzini
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