A Verdadeira Mãe Do Simplício: Fortunata Eugênia de Melo, A Primeira Jornalista Fake Da Literatura Brasileira
A Verdadeira Mãe Do Simplício: Fortunata Eugênia de Melo, A Primeira Jornalista Fake Da Literatura Brasileira
A Verdadeira Mãe Do Simplício: Fortunata Eugênia de Melo, A Primeira Jornalista Fake Da Literatura Brasileira
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Resumo
. "Diálogo político e instrutivo entre os dois homens da roça, André Raposo e seu
compadre Bolônio Simplício, acerca da Bernarda do Rio de Janeiro, e novidades de
mesma", texto anônimo, Rio de Janeiro, 1821.
O verdadeiro autor (ou a verdadeira autora): não há, atualmente, nenhum indício
que leve ao estabelecimento de uma autoria.
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Apresentação
"Simplício" não era um nome raro no Brasil no início do século XIX, tanto no
prenome quanto no sobrenome.
Como epônimo (nome próprio que designa algo além da pessoa, como um objeto, um
processo, um tipo humano etc.), o uso de "simplício" parece óbvio, por ser derivado de
"simples". A simplicidade, em termos de nível cultural, é muitas vezes associada
(preconceituosamente) à infantilidade, à ignorância e à despreocupação com as normas
sociais ― mas também com uma visão ingênua das situações que revela a verdade por
trás das aparências.
Essa última conotação prevaleceu nos jornais da "família dos Simplícios", que
caracterizaram a década de 30 do século XIX, no Brasil.
https://www.dicionarioinformal.com.br/simpl%C3%ADcio/
https://www.dicio.com.br/simplicio/
https://www.cultura.com/histoire-du-veritable-gribouille-9782812912887.html
https://www.amazon.com.br/Hist%C3%B3ria-do-verdadeiro-simpl%C3%ADcio-
Cl%C3%A1ssicos-ebook/dp/B07582GHZW
"Gribouille" já era um epônimo à época do seu uso por George Sand. Segundo esta
página do Centro Nacional de Recursos Textuais e Lexicais, da França, a primeira
menção ao nome data de 1548, em texto ficcional, convertendo-se depois na
denominação de um tipo humano caracterizado pela simplicidade e pela idiotice.
https://www.cnrtl.fr/definition/gribouille
https://www.cultura.com/la-soeur-de-gribouille-9782203135598.html
http://www.santoandre.sp.gov.br/PESQUISA/ebooks/366357.PDF
E a Biblioteca Nacional registra uma obra ainda anterior com esse nome, de escritor
brasileiro anônimo: "Diálogo político e instrutivo entre os dois homens da roça, André
Raposo e seu compadre Bolônio Simplício, acerca da Bernarda do Rio de Janeiro, e
novidades de mesma", publicada no Rio em 1821.
http://acervo.bn.br/sophia_web/info.asp?c=1197018
Periódicos baseados no personagem
Eis a lista cronológica, de 1831 a 1840, dos periódicos que utilizaram "Simplício"
como nome do protagonista de histórias e textos críticos aos costumes da época (com o
mês do lançamento, quando disponível).
https://pt.wikisource.org/wiki/P%C3%A1gina:Diccionario_Bibliographico_Brazileir
o_v1.pdf/234
http://memoria.bn.br/pdf/123021/per123021_1941_00071.pdf
https://ia800207.us.archive.org/24/items/revistadoinstit32unkngoog/revistadoinstit32
unkngoog.pdf
Repare também que Blake informa, em seu verbete: "Ela ["O Simplício"] deu origem
a várias outras publicações periódicas do mesmo gênero e estilo" (página 208).
Também a "Enciclopédia da Literatura Brasileira", de Afrânio Coutinho e J. Galante
de Sousa (Global Editora, 2001), em seu volume II, página 1508, informa no verbete "O
Simplício":
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1436
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1633
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1705
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1875
Um escritor brasileiro que venda 8 mil exemplares de seu novo livro, em um ano,
sente-se um best-seller. Agora imagine vender esse número de exemplares de uma
folhinha em 1831: "[...] esta folhinha é tão procurada que o Editor já vendeu para mais
de oito mil exemplares", informava o anúncio em outubro daquele ano, sobre a
"Folhinha do Simplício Poeta" para 1832.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2127
"A geração dos Simplícios não se extingue mais; aos que morrem sucedem outros
que nascem, e assim esta família perpertuar-se-á neste País enquanto os homens
gostarem do sal da crítica mais ou menos refinado". Assim era a introdução do
lançamento do "Simplício da Roça", publicação dominical do "Jornal do Commercio".
"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 2/11/1831, número 51, página 1,
segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2168
Esse novo lançamento foi um sucesso, o que levou a outro: "A Mulher do Simplício
Poeta".
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2551
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2564
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2797
"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 8/5/1832, número 198, página 1,
segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2806
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/3191
Por fim, uma piada com o personagem Simplício publicada pela "Revista Ilustrada"
já em 1886, mostrando como ele se havia incorporado ao folclore popular do século
XIX.
"Revista Illustrada" (Rio de Janeiro, RJ), 1886, número 427, página 5, primeira
coluna.
http://memoria.bn.br/docreader/332747/3043
A importância da datação de "Verdadeira Mãe do Simplício"
https://books.google.com.br/books?id=rXF_DwAAQBAJ&lpg=PT52&ots=4iFdWk3
j33&dq=%22a%20verdadeira%20m%C3%A3e%20do%20simpl%C3%ADcio%22&hl=
pt-
BR&pg=PT52#v=onepage&q=%22a%20verdadeira%20m%C3%A3e%20do%20simpl
%C3%ADcio%22&f=false
O ponto importante: "[...] deu origem a outros que parecem brincar com o seu
título,...".
Em outro trecho do mesmo livro, relativo à publicação "A Filha Única da Mulher do
Simplício", lemos:
https://books.google.com.br/books?id=rXF_DwAAQBAJ&lpg=PT65&ots=4iFdWk2
q4_&dq=%22ostentando%20o%20t%C3%ADtulo%20de%20Simpl%C3%ADcio%22&
hl=pt-
BR&pg=PT65#v=onepage&q=%22ostentando%20o%20t%C3%ADtulo%20de%20Sim
pl%C3%ADcio%22&f=false
Essa questão é importante porque, sendo Fortunata uma pessoa real, mereceria o
honroso posto de primeira jornalista brasileira. A gaúcha Maria Josefa da Fontoura
Pereira Pinto (1775-1837), fundadora do jornal "Belona Irada Contra os Sectários de
Momo", em novembro de 1833, é considerada a nossa pioneira nessa área profissional.
Como se pôde ler acima, a historiadora Constância Lima Duarte afirma a existência
de uma pessoa chamada Fortunata Eugênia de Melo como a autora do texto do
periódico.
O capitão é obrigado a ir ao Rio e então conta ao Vice-Rei que o Cristo está bem
guardado em um caixão, juntamente com um valioso diadema do próprio militar, e que
há registro legal dessa captura. O Vice-Rei ordena que o pai de Fortunato leve o caixão
ao Rio, de modo a conferir a veracidade do relato do militar.
Nasce o filho de Fortunata, batizado como Pompeu. Receosa de que seja alvo do
Vice-Rei, ela o envia aos cuidados de um tio no Pará, e depois entra para um convento.
O tio de Pompeu tem um único filho, Simplício, do qual o sobrinho se torna como
um irmão. Simplício falece quando Pompeu estava com 12 anos de idade, e o tio propõe
cuidar dele como um filho biológico, na condição de que assumisse o nome do garoto
falecido. Pompeu e Fortunata concordam com a proposta.
Simplício cresce e vai morar na Europa. Um dia, na França, recebe uma carta
informando sobre a morte do tio. No retorno ao Brasil descobre, em Portugal, que o
verdadeiro pai quase conseguira comprar a própria liberdade. Quando tudo parecia
decidido, o Vice-Rei, chegando a Lisboa, atuou contra o acordo, e o capitão terminou
morto pela Inquisição.
Simplício decide ficar em Portugal e se vingar do responsável pela morte de seu pai e
infelicidade da mãe. Compra joias, e disfarçado como Reinaldo adota o disfarce de
comerciante na província onde mora o Vice-Rei, conseguindo cativá-lo a ponto de ser
contratado como guarda-roupa do fidalgo.
Descobre então que o frade que denunciou o seu pai tornou-se o capelão do Vice-
Rei. Essa circunstância feliz permite-lhe planejar a vingança ideal contra os vilões que
desgraçaram a sua família. Numa noite em que só os dois estão dormindo na casa,
Simplício incendeia a residência, matando seus inimigos.
Simplício volta a Lisboa, onde é informado que seus avós faleceram de desgosto, em
Angola. Tendo somente a mãe e a tia como parentes, retorna ao Pará, mas descobre que
a tia também faleceu. Desiludido, vende o que pode e envia à mãe o dinheiro
arrecadado.
Fortunata abandona o convento, mas, sem dinheiro (apesar da quantia recebida antes
do filho), é obrigada a viajar andando, de Santa Catarina ao Rio. Disfarçada de
peregrina, consegue viver de esmolas até chegar à cidade.
Descobre que Simplício faleceu num hospital, e depois consegue abrigo na casa da
viúva do enfermeiro-mor. Então (em uma coincidência típica dos folhetins da época),
Fortunata encontra por acaso o testamento de Simplício sobre a mesa do oratório
daquela residência, onde ela costumava rezar com a viúva.
Os bens de Simplício no Pará são destinados a "casar seis órfãs honestas, contanto
que os noivos não sejam petimetres [vaidosos] de chapelinhos de palha vã, calças de
funil, casaca com abas de folha de cajueiro, sapatos econômicos, espartilho e
chicotinho; e antes sejam europeus de fala grossa e mãos calejadas, porque estes são
como formigas que ajuntam de verão para comer no inverno".
A rede de camarão servirá "para pescar os tumultuosos que fizeram barulho contra o
Governo que nos rege".
O balcão da Prainha com escada por fora "servirá para dançarem o miudinho na
corda bamba, os cabeças do povo armado que se juntar[em] para fazer barulho
inquietando a Sociedade Constitucional".
A cabeleira de rabicho "servirá de modelo para todas as que usarem os carecas que
esperam a recolonização do Brasil".
Portanto, a alegação de que o periódico estaria sendo vendido para custear fundos
para a mãe do Simplício, Dona Fortunata Eugênia de Melo, é falsa. Muito
provavelmente este nome foi inventado, assim como os dos demais membros da
"família" de Fortunata.
Nesse sentido, ela é uma jornalista "fake", a primeira da história da ficção brasileira.
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ou
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Este periódico se publicará para mostrar ao público que o Simplício não tem filhos,
netos, nem outros parentescos que [além de] sua mãe há pouco chegada de Santa
Catarina, e os leitores igualmente saberão a vida do pai, da mãe e do filho, contada por
ela mesma.
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A vós, fiéis esposas e carinhosas mães dos frutos dos vossos amores, onde
contemplais os verdadeiros retratos de quem lhes deu o ser, eu vos peço que escuteis
uma infeliz que, tendo perdido a seu marido, muito digno deste nome, igualmente busca
um filho, único penhor que lhe deixou seu adorado pai, mas que inutilmente tem
malogrado aquilo que muito preza e procura, mendigando de província em província e
de porta em porta, tendo perdido a consolação de tornar a ver o arrimo de sua velhice;
portanto ouvi a história da minha vida, a de meu marido e a de meu filho.
Eu nasci na Ilha de Santa Catarina, e a seu tempo sabereis o meu nome, o de meu
marido, o de meu filho Simplício e o motivo por que adotou este nome.
Tanto [Logo] que chegou, foi à presença do Vice-Rei, que perguntou a meu marido
pelo mencionado Cristo, e respondeu que estava em um caixão, juntamente com o
diadema que lhe pertencia, o qual também era ouro cravado de brilhantes, de muito
valor; mas que tudo constava da relação da descarga das presas, a qual estava assinada
por ele, pelo Comissário e pelo escrivão da fragata e por meu pai, como depositário.
Com esta declaração, foi meu marido preso, incomunicável, na Ilha das Cobras, e
quando eu o esperava, chegou uma escuna do Rio com ordem do Vice-Rei para meu pai
ser remetido preso, trazendo o caixão de que se trata, e assim que chegou o navio a esta
capital, teve meu pai a sorte de meu marido, e o caixão foi para o gabinete de Sua
Excelência.
Quanto a meu infeliz e inocente marido, não pude saber mais dele, ainda mesmo que
remeti [mesmo eu tendo remetido] para Lisboa algumas joias e o dinheiro que pude
salvar do confisco da Justiça.
No meio de tantos desgostos dei à luz um menino, que sendo perfeito retrato de seu
pai, e a única riqueza que possuía, mandei batizar com o nome Pompeu, a quem mandei
criar ocultamente com receio de ser vítima do déspota; e tanto que pôde passar o mar
[assim que pôde viajar], remeti-o ao tio, que residia no Pará, onde foi educado até certo
tempo, e eu me recolhi a um mosteiro para gozar o resto da vida chorando a desgraça de
meu marido, e pedindo a Deus que me deixasse tornar a ver meu filho.
Tendo-vos contado parte da história da minha vida, não deveis ignorar a do meu filho
Pompeu, e o motivo por que adotou o nome de Simplício. Tendo este mais de doze
anos, e seu tio tinha um único filho que se chamava Simplício, o qual era da mesma
idade do primo, ambos se amavam como irmãos; porém [o filho] sucumbiu de uma
grave moléstia. O pai e a mãe, que eram ricos, propuseram ao sobrinho que o adotariam
por filho se dali por diante se chamasse Simplício, em memória daquele que tinha
morrido, no que consentiu, e eu aprovei.
Depois de alguns anos, foi o meu fingido Simplício viajar nos países estrangeiros, e
ao mesmo tempo se instruir em diversas línguas, e achando-se na França, recebeu uma
carta da tia pedindo-lhe que voltasse porque seu marido era morto; e o meu Simplício
regressou por Lisboa, onde soube que seu pai, estando quase perdoado à custa de
dinheiro, chegou o Vice-Rei do Brasil e o acusou, a ponto que foi vítima das tiranias da
Inquisição para não se descobrir que Sua Excelência foi quem roubou o Cristo.
Aquele mau homem era um dos fidalgos da província, que o governo português
mandava nos reger para enriquecer à custa dos brasileiros, e meu filho, querendo vingar
a desgraçada morte de seu pai, comprou joias estrangeiras e foi vendê-las na província
onde residia o Excelentíssimo Senhor, para desta forma poder se introduzir em seu
palácio.
Com efeito, assim o conseguiu, e como sempre falou francês, o fidalgo o convida
para ser seu guarda-roupa, o que aceitou por um ano, até voltar a Nantes, onde fingiu ser
a sua pátria.
Eis o meu Simplício a servir o seu benfeitor, debaixo do nome de Reinaldo, e com o
tempo veio a conhecer que o capelão de seu amo era o tal fradinho que fez a falsa
denúncia de meu infeliz marido, e que era tão amigo do fidalgo que dormia no seu
quarto; porém o meu querido Simplício, ainda que fazia todas as vontades a seu amo,
desejava consumar a obra com segurança, até que um dia foi a família visitar os
parentes, ficando em casa somente o fidalgo, o frade e alguns criados à disposição de
meu filho, que sobre a manhã conseguiu incendiar o quarto dos tiranos, reduzindo-os a
cinza, e /a tudo/ quanto existia no palácio, excetuando o meu Simplício e seus
companheiros, que escaparam nus, e só meu filho sabia onde principiou a chama.
O povo da vizinhança vestiu o meu Simplício, que não somente lamentava a morte
do amo e do seu capelão, mas a perda do seu fato [suas vestes] e o valor das joias que
tinha vendido.
Alguns dias depois de chegar [retornar] a família, despediu-se com muitas lágrimas,
vindo para Lisboa são e salvo. Chegando a esta cidade, indagou com cautela o fim de
seus avós, e soube que, tendo-lhe a Inquisição confiscado seus bens, morreram de
desgostos, sem deixarem outros parentes que o filho, que morreu no Pará, e seu neto
Simplício adotivo; e Reinaldo, querendo fingir melhor o seu papel, voltou à França e
dali foi ao Pará, de onde me deu parte do que fica exposto.
"Adorada mãe, minha tia é morta, os remorsos do incêndio rodeiam meu coração, e a
cada passo temo pagar o que fiz; portanto reduzi à moeda quanto pude e deixo o resto
arrendado: remeto a Vossa mercê algum dinheiro: não sei o meu destino; e se Vossa
mercê. precisar, utilize-se do que fica; entretanto rogue a Deus queira dirigir meus
passos. S."
À vista desta carta, novos desgostos redobraram minhas aflições, sem que por muitos
anos pudesse ter notícia do meu Simplício, até que chegou ao meu poder um periódico
deste nome.
Indaguei, por interposta pessoa, quem seria este Simplício, e nada soube com certeza;
contudo me animei a escrever-lhe o seguinte:
"Senhor Simplício, sereis vós aquele filho que, não conhecendo a seu pai, vingou a
sua morte? Vossa mãe ainda existe, na esperança de tornar a vos ver, e não e a deixeis
morrer antes de vos beijar, qual retrato daquele que vos deu o ser".
"Querida mãe, eu tinha jurado não dar notícias minhas, porém a voz da Natureza é
mais forte que o poder humano. E me acho incapaz de sair de casa, e se Vossa mercê
ainda pode fazê-lo, dirija-se a esta em tempo de me dar o último adeus. S."
Assim que recebi a carta, e não tendo com que me transportar por mar, saí do
mosteiro, vesti-me de peregrina, vindo mendigando até esta capital, onde soube que o
meu caro filho Simplício tinha morrido. Com esta triste notícia, que me cobre o coração
de luto, procurei encobrir a mágoa que me devora, mas sendo recolhida em casa de uma
benfeitora, viúva do enfermeiro-mor do Hospital, e como esta não sabia ler, tinha
diversos papéis sobre a mesa do oratório do quarto onde eu dormia, e onde, ambas,
rezávamos o terço de todas as noites.
No primeiro sábado que me achei ali, ficou luz no oratório, e entre os papéis achei
um desta forma:
Testamento do Simplício
Creio em Deus Criador do Céu e da Terra, e creio em tudo quanto manda crer a
Santa Religião Cristã, debaixo de cuja fé espero que o Criador há de me salvar, e por
isso, e por me achar doente, mas de juízo perfeito, passo a fazer o meu Testamento do
teor seguinte:
Em primeiro lugar, declaro que sou cidadão brasileiro e que o meu próprio nome é
Pompeu, mas por interesses de família me chamo Simplício, usando por sobrenome
aquele que me deram ao batismo; e também declaro que sou filho do capitão de fragata
José de Melo da Gama e de Dona Fortunata Eugênia de Melo; e sou neto, pela parte
paterna, do chefe de esquadra Veriato de Melo e de Dona Ricarda de Alenquer e Melo,
portugueses; e pela parte materna, do capitão-mor Augusto Borges Brandão e Dona
Leonor Brandão, brasileiros da ilha de Santa Catarina.
Item [Da mesma forma], declaro que não tenho outros parentes que a [além da]
referida minha mãe, existente no Mosteiro da cidade de São Paulo, onde se recolheu por
falta de meu pai, a qual instituo por minha universal herdeira dos meus bens, com as
exceções declaradas.
Item dos bens que possuo no Pará, por falecimento de meu tio, o brigadeiro Alberto
João de Melo, e da sua mulher Dona Patornilha de Melo, que me adotaram por filho,
quero que a terça parte se divida em porções iguais para casar seis órfãs honestas,
contanto que os noivos não sejam petimetres [vaidosos] de chapelinhos de palha vã,
calças de funil, casaca com abas de folha de cajueiro, sapatos econômicos, espartilho e
chicotinho; e antes sejam europeus de fala grossa e mãos calejadas, porque estes são
como formigas que ajuntam de verão para comer no inverno.
Item, quanto aos bens que possuo nesta Corte, deixo a minha rede de camarão, para
pescar os tumultuosos que fizeram barulho contra o Governo que nos rege.
Item, o meu balcão da Prainha com escada por fora servirá para dançarem o
miudinho na corda bamba, os cabeças do povo armado que se juntar para fazer barulho
inquietando a Sociedade Constitucional.
Item, a minha cabeleira de rabicho servirá de modelo para todas as que usarem os
carecas que esperam a recolonização do Brasil.
Item, o meu relógio de despertador se venderá para repartir com os pobres de juízo
que acreditam no sonho da visão de Macacu [menção ao folheto político "Visão do Pico
do Itajuru", texto disponível no OneDrive, subpasta Investigações de Autoria e
Publicação], para não temerem o papão do Pai Amaro.
Item, o rendimento do meu moinho de vapor servirá para comprar sabão de cheiro
para repartir com as negras que lavarem as calças de fecha-fecha, em dias de barulho,
porque muitas barrelas talvez não lhes tirem as nódoas.
Item, deixou o meu espelho columbiano aos meus patrícios que têm a vista curta,
para nele se verem grátis.
Item, tendo concluído meu Testamento, rogo aos meus patrícios e patrícias a quem o
meu Simplício tem ofendido, queiram perdoar, e lhes recomendo que todas as vezes que
se lembrarem dele rezem um "Creio em Deus Padre" pela minha alma.
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http://memoria.bn.br/DocReader/701203/1
http://memoria.bn.br/DocReader/701203/2
http://memoria.bn.br/DocReader/701203/3
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http://memoria.bn.br/DocReader/701203/6
http://memoria.bn.br/DocReader/701203/7