A Verdadeira Mãe Do Simplício: Fortunata Eugênia de Melo, A Primeira Jornalista Fake Da Literatura Brasileira

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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A "Verdadeira Mãe do Simplício": Fortunata Eugênia de Melo, a primeira


jornalista "fake" da literatura brasileira

Resumo

Tema: o periódico "Verdadeira Mãe do Simplício, ou a Infeliz Viúva Peregrina"


(1831), atribuído à "jornalista" Fortunata Eugênia de Mello, na verdade uma criação
ficcional de jornalista desconhecido.

O personagem Simplício em textos literários

a) Antes da publicação do periódico.

. "Diálogo político e instrutivo entre os dois homens da roça, André Raposo e seu
compadre Bolônio Simplício, acerca da Bernarda do Rio de Janeiro, e novidades de
mesma", texto anônimo, Rio de Janeiro, 1821.

. "Tio Simplício", peça teatral de Almeida Garrett, Lisboa, 1840.

b) Depois da publicação do periódico.

. "Histoire du Véritable Gribouille", romance de George Sand, Paris, 1851 (lançado


no Brasil como "História do Verdadeiro Simplício").

. "La sœur de Gribouille", romance da Condessa de Ségur (Sophie Rostopchine),


Paris, 1862 (lançado no Brasil como "A Irmã do Simplício").

Periódicos baseados no personagem (de 1831 a 1840)

. "O Simplício", janeiro de 1831.

. "Defesa das Sras. contra o Simplício", março de 1831.


. "O Filho do Simplício", maio de 1831.

. "O Simplício Poeta", junho de 1831.

. "O Neto do Simplício", julho de 1831.

. "Verdadeira Mãe do Simplício", agosto de 1831.

. "Folhinha do Simplício para o ano de 1832", agosto de 1831.

. "Folhinha do Simplício da Roça para o ano de 1832", outubro de 1831.

. "O Simplício da Roça", novembro de 1831.

. "O Simplício Rigorista", 1831.

. "A Mulher do Simplício ou a Fluminense Exaltada", fevereiro de 1832.

. "O Simplício Pernambucano", fevereiro de 1832.

. "A Mulher do Simplício Poeta", fevereiro de 1832.

. "A Filha Única da Mulher do Simplício", março de 1832.

. "O Simplício às Direitas, Posto no Mundo às Avessas", 1833.

. "A Simpliciazinha", 1833.

. "O Simplício Velho", 1836

. "O Simplício Endiabrado, ou Folha das Inferneiras e das Diabruras", 1839.

. "Novo Simplício Poeta", 1840.

Fontes que atribuem o periódico a Fortunata Eugênia de Mello

. "Imprensa feminina e feminista no Brasil: Século XIX", Constância Lima Duarte


Editora Autêntica, 2018.

. "Catálogo da Hemeroteca do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (Cedap),


Versão atualizada de 2012", página 351, Tania Regina de I. Luca (organizadora),
Universidade Estadual de São Paulo (UNESP).

Única menção conhecida a "Fortunata Eugênia de Mello": o trecho do


"testamento" que revela os nomes dos pais de Simplício.

Provas da natureza humorística do periódico e da natureza ficcional da autora:

. A integração de "Verdadeira Mãe do Simplício" aos periódicos da "família dos


Simplícios" (o sexto, em ordem cronológica), todos com o nome do personagem no
título e com o propósito de usar o humor para realizar a crítica social.
. A natureza fantasiosa da história contada no jornal, típica dos contos de aventuras
daquela época, contendo elementos de intriga, traição, viagens, dissimulações, disfarces
físicos, vingança, crime, coincidências impossíveis e internação em mosteiro, além do
clássico vilão incorrigível.

3. A menção, na história, ao periódico com o título "O Simplício", reconhecimento


explícito de que teria havido uma publicação anterior àquela.

4. O conteúdo do "testamento" reproduzido no jornal, em que todos os itens de


doação de Simplício aos herdeiros são irônicos e servem de veículo à crítica de
costumes, exatamente o conteúdo dos demais periódicos que se aproveitaram do nome e
do personagem Simplício.

O verdadeiro autor (ou a verdadeira autora): não há, atualmente, nenhum indício
que leve ao estabelecimento de uma autoria.

__________________________________________

Apresentação

Na década de 30 do século XIX, vários periódicos brasileiros utilizaram o


personagem denominado Simplício como veículo de críticas à sociedade da época,
visando atingir tanto os cidadãos comuns quanto os governantes.

Um desses periódicos (o sexto em ordem cronológica) intitulava-se "Verdadeira Mãe


do Simplício, ou a Infeliz Viúva Peregrina". Lançado em agosto de 1831, dele se
conhece apenas uma edição (a primeira), disponível na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.

Duas importantes fontes utilizadas em trabalhos acadêmicos afirmam que Fortunata


Eugênia de Melo seria a fundadora e a redatora do jornal. Por esse motivo, o nome dela
faz parte da história do jornalismo brasileiro.

Só há um problema: Fortunata Eugênia de Melo nunca existiu. Era apenas uma


personagem de história ficcional em que seu autor, de maneira criativa, utilizava a trama
para embutir críticas sociais na parte do testamento atribuído a seu suposto filho,
Simplício. O nome de Fortunata só é mencionado somente nessa parte da história,
justamente a mais inverossímil, se comparamos o texto do testamento no jornal com o
conteúdo de um testamento verdadeiro.

As provas dessa afirmação vêm a seguir.


O personagem Simplício

"Simplício" não era um nome raro no Brasil no início do século XIX, tanto no
prenome quanto no sobrenome.

Como epônimo (nome próprio que designa algo além da pessoa, como um objeto, um
processo, um tipo humano etc.), o uso de "simplício" parece óbvio, por ser derivado de
"simples". A simplicidade, em termos de nível cultural, é muitas vezes associada
(preconceituosamente) à infantilidade, à ignorância e à despreocupação com as normas
sociais ― mas também com uma visão ingênua das situações que revela a verdade por
trás das aparências.

Essa última conotação prevaleceu nos jornais da "família dos Simplícios", que
caracterizaram a década de 30 do século XIX, no Brasil.

Curiosamente, os dicionários profissionais disponíveis online, como o "Michaelis", o


"Aulete" e o "Priberam", não apresentam o verbete "simplício", ao contrário dos antigos
dicionários impressos como o da "Enciclopédia Mirador" e o "Moderno Dicionário da
Língua Portuguesa" (Michaelis), ambos com a única definição: "Aquele que só diz
tolices".

Dicionários amadores online, porém, registram a palavra.

https://www.dicionarioinformal.com.br/simpl%C3%ADcio/

https://www.dicio.com.br/simplicio/

O uso de "simplício" naqueles periódicos não derivou, como poderia parecer, da


influência de cultura estrangeira. Duas histórias famosas associadas ao nome (não por
ter sido escolhido por suas autoras, mas por causa da tradução) foram escritas após o
lançamento dos periódicos.
A "Histoire du Véritable Gribouille", de George Sand (pseudônimo da escritora
Amantine Lucile Aurore Dupin, 1804-1876), lançada na França em 1851, é conhecida
no Brasil como "História do Verdadeiro Simplício".

https://www.cultura.com/histoire-du-veritable-gribouille-9782812912887.html

https://www.amazon.com.br/Hist%C3%B3ria-do-verdadeiro-simpl%C3%ADcio-
Cl%C3%A1ssicos-ebook/dp/B07582GHZW

"Gribouille" já era um epônimo à época do seu uso por George Sand. Segundo esta
página do Centro Nacional de Recursos Textuais e Lexicais, da França, a primeira
menção ao nome data de 1548, em texto ficcional, convertendo-se depois na
denominação de um tipo humano caracterizado pela simplicidade e pela idiotice.

https://www.cnrtl.fr/definition/gribouille

E nessa condição de epônimo, "Gribouille" apareceu também no título de uma obra


de outra famosa escritora francesa (esta, de origem russa) do século XIX, a Condessa de
Ségur (Sophie Rostopchine, 1799-1874): "La sœur de Gribouille", livro lançado em
1862.

https://www.cultura.com/la-soeur-de-gribouille-9782203135598.html

A tradução brasileira: "A Irmã do Simplício".


Pouco antes, em 1840, o escritor português Almeida Garrett havia composto a peça
teatral (de um só ato) "Tio Simplício", cujo protagonista é um indivíduo rico, mas
provinciano e simplório.

Texto completo da peça

http://www.santoandre.sp.gov.br/PESQUISA/ebooks/366357.PDF

E a Biblioteca Nacional registra uma obra ainda anterior com esse nome, de escritor
brasileiro anônimo: "Diálogo político e instrutivo entre os dois homens da roça, André
Raposo e seu compadre Bolônio Simplício, acerca da Bernarda do Rio de Janeiro, e
novidades de mesma", publicada no Rio em 1821.

http://acervo.bn.br/sophia_web/info.asp?c=1197018
Periódicos baseados no personagem

Eis a lista cronológica, de 1831 a 1840, dos periódicos que utilizaram "Simplício"
como nome do protagonista de histórias e textos críticos aos costumes da época (com o
mês do lançamento, quando disponível).

. "O Simplício", janeiro de 1831.

. "Defesa das Sras. contra o Simplício", março de 1831.

. "O Filho do Simplício", maio de 1831.

. "O Simplício Poeta", junho de 1831.

. "O Neto do Simplício", julho de 1831.

. "Verdadeira Mãe do Simplício", agosto de 1831.

. "Folhinha do Simplício para o ano de 1832", agosto de 1831.

. "Folhinha do Simplício da Roça para o ano de 1832", outubro de 1831.

. "O Simplício da Roça", novembro de 1831.

. "O Simplício Rigorista", 1831.

. "A Mulher do Simplício ou a Fluminense Exaltada", fevereiro de 1832.

. "O Simplício Pernambucano", fevereiro de 1832.

. "A Mulher do Simplício Poeta", fevereiro de 1832.

. "A Filha Única da Mulher do Simplício", março de 1832.

. "O Simplício às Direitas, Posto no Mundo às Avessas", 1833.

. "A Simpliciazinha", 1833.

. "O Simplício Velho", 1836

. "O Simplício Endiabrado, ou Folha da Inferneiras e das Diabruras", 1839.

. "Novo Simplício Poeta", 1840.

Em seu "Dicionário Bibliográfico Brasileiro" (volume 1, 1883, páginas 208-209),


Sacramento Blake listou várias dessas publicações.
https://pt.wikisource.org/wiki/P%C3%A1gina:Diccionario_Bibliographico_Brazileir
o_v1.pdf/233

https://pt.wikisource.org/wiki/P%C3%A1gina:Diccionario_Bibliographico_Brazileir
o_v1.pdf/234

Duas fontes concordam em atribuir a data de 8 de janeiro de 1831 para o lançamento


da primeira dessas publicações, "O Simplício", atribuída por Sacramento Blake a
Antônio José do Amaral (1782-1840).
"O Observador Econômico e Financeiro" (RJ), número LXXI, dezembro de 1941,
página 63, primeira coluna.

http://memoria.bn.br/pdf/123021/per123021_1941_00071.pdf

"Revista do Instituto Historico Ethnographico Brasileiro", página 198 (página 431 do


volume), tomo XXVIII, 4.º trimestre de 1865.

https://ia800207.us.archive.org/24/items/revistadoinstit32unkngoog/revistadoinstit32
unkngoog.pdf

Repare também que Blake informa, em seu verbete: "Ela ["O Simplício"] deu origem
a várias outras publicações periódicas do mesmo gênero e estilo" (página 208).
Também a "Enciclopédia da Literatura Brasileira", de Afrânio Coutinho e J. Galante
de Sousa (Global Editora, 2001), em seu volume II, página 1508, informa no verbete "O
Simplício":

"Daí se originou a família humorística dos Simplícios: O Simplício da Roça, O


Simplício Endiabrado, O Simplício Poeta, A mulher do Simplício e outros."

Aparentemente, a primeira publicação inspirada no "Simplício" original foi "Defesa


das Sras. contra o Simplício", cuja segunda parte foi anunciada no "Diário Mercantil ou
Jornal do Commercio" em 18 de março de 1831, pouco mais que dois meses após o
lançamento daquele periódico.

"Diario Mercantil ou Novo Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 18/3/1831,


número 175, página 2, primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1436

No mesmo jornal anunciou-se, em 19 de maio daquele ano, a publicação do sexto


número de "O Simplício", assim como o lançamento de "O Filho do Simplício".

"Diario Mercantil ou Novo Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 19/5/1831,


número 223, página 2, primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1633

Menos de um mês depois, em 14 de junho de 1831, saía o primeiro periódico poético


com o nome já consagrado: "O Simplício Poeta". No anúncio, um soneto revelava os
propósitos da publicação.
"Diario Mercantil ou Novo Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 19/6/1831,
número 240, página 2, segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1705

Em 5 de agosto, mesmo mês do lançamento de "Verdadeira Mãe do Simplício", saía


o segundo número de "O Neto do Simplício". Portanto, o primeiro teria sido publicado
no mínimo uma semana antes, perfazendo pelo menos cinco periódicos anteriores
àquele atribuído a Fortunata Eugênia de Melo.
"Diario Mercantil ou Novo Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 5/8/1831,
número 280, página 2, segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1875

A "Folhinha do Simplício" para o ano de 1832 já era anunciada em 24 de agosto de


1831, revelando a popularidade do nome.

"Diario Mercantil ou Novo Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 24/8/1831,


número 295, página 4, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/1937

Um escritor brasileiro que venda 8 mil exemplares de seu novo livro, em um ano,
sente-se um best-seller. Agora imagine vender esse número de exemplares de uma
folhinha em 1831: "[...] esta folhinha é tão procurada que o Editor já vendeu para mais
de oito mil exemplares", informava o anúncio em outubro daquele ano, sobre a
"Folhinha do Simplício Poeta" para 1832.

"Diario Mercantil ou Novo Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 20/10/1831,


número 41, página 2, segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2127

"A geração dos Simplícios não se extingue mais; aos que morrem sucedem outros
que nascem, e assim esta família perpertuar-se-á neste País enquanto os homens
gostarem do sal da crítica mais ou menos refinado". Assim era a introdução do
lançamento do "Simplício da Roça", publicação dominical do "Jornal do Commercio".
"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 2/11/1831, número 51, página 1,
segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2168

Em 20 de fevereiro de 1832, juntamente com o décimo sexto número do "Simplício


da Roça", aparecia "A Mulher do Simplício".

"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 20/2/1832, número 136, página 2,


primeira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2541

Esse novo lançamento foi um sucesso, o que levou a outro: "A Mulher do Simplício
Poeta".

"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 22/2/1832, número 138, página 1,


primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2551

Os redatores desses periódicos dialogavam entre si, um contestando as afirmações do


outro. E isso se deu desde o início do modismo, como vimos acima: "Defesa das Sras.
contra o Simplício", o segundo na ordem cronológica, era uma resposta ao primeiro, "O
Simplício".

No anúncio abaixo, lê-se no segundo parágrafo:

"Domingo 26 do corrente sairá o N. 6 do SIMPLÍCIO POETA, o qual deve interessar


muito ao público. Ele contém duas respostas à 'Mulher do Simplício', retrucando-lhe
contra o que ela disse, e isto com os mesmos consoantes e palavras finais de cada verso
[...]".
"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 25/2/1832, número 141, página 3,
primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2564

O sucesso do "Simplício da Roça" levou à adoção do sistema de assinatura semestral


do periódico, publicado pelo "Jornal do Commercio".

"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 5/5/1832, número 196, página 4,


segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2797
"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 8/5/1832, número 198, página 1,
segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/2806

No anúncio das Folhinhas de 1833 publicado em 29 de agosto de 1832, o editor


recomendava a "Folhinha do Simplício Poeta": "Esta, da qual se venderam mais de
dezessete mil exemplares no ano passado, é com justa razão procurada com o maior
empenho".

"Jornal do Commercio" (Rio de Janeiro, RJ), 29/9/1832, número 24, página 2,


segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_02/3191

Por fim, uma piada com o personagem Simplício publicada pela "Revista Ilustrada"
já em 1886, mostrando como ele se havia incorporado ao folclore popular do século
XIX.
"Revista Illustrada" (Rio de Janeiro, RJ), 1886, número 427, página 5, primeira
coluna.

http://memoria.bn.br/docreader/332747/3043
A importância da datação de "Verdadeira Mãe do Simplício"

A datação do periódico é importante porque há historiadores e fontes de qualidade


que afirmam ser "Verdadeira Mãe do Simplício" o primeiro periódico nacional a utilizar
esse nome, e que sua autora se chamava Fortunata Eugênia de Mello, uma pessoa real, e
não um personagem.

Em "Imprensa feminina e feminista no Brasil: Século XIX" (Editora Autêntica,


2018), a pesquisadora e historiadora Constância Lima Duarte, no capítulo reservado
àquela publicação, informa o seguinte:

https://books.google.com.br/books?id=rXF_DwAAQBAJ&lpg=PT52&ots=4iFdWk3
j33&dq=%22a%20verdadeira%20m%C3%A3e%20do%20simpl%C3%ADcio%22&hl=
pt-
BR&pg=PT52#v=onepage&q=%22a%20verdadeira%20m%C3%A3e%20do%20simpl
%C3%ADcio%22&f=false
O ponto importante: "[...] deu origem a outros que parecem brincar com o seu
título,...".

Em outro trecho do mesmo livro, relativo à publicação "A Filha Única da Mulher do
Simplício", lemos:

https://books.google.com.br/books?id=rXF_DwAAQBAJ&lpg=PT65&ots=4iFdWk2
q4_&dq=%22ostentando%20o%20t%C3%ADtulo%20de%20Simpl%C3%ADcio%22&
hl=pt-
BR&pg=PT65#v=onepage&q=%22ostentando%20o%20t%C3%ADtulo%20de%20Sim
pl%C3%ADcio%22&f=false

O ponto importante: "A pesquisadora [Gisele Ambrósio Gomes] também chama a


atenção para os diversos periódicos surgidos nessa época ostentando o título de
"Simplício", e informa que o primeiro teria sido O Simplício (1831-1833), de Antônio
José do Amaral (GOMES, 2009, p. 29), esquecendo-se que já havia circulado antes o
Verdadeira Mai do Simplicio ou a Infeliz Viuva Peregrina".

Além das informações e imagens já mostradas na seção anterior, que revelam o


contrário (o periódico, na verdade, foi o sexto com o nome do personagem, e não o
primeiro), veja a seguir as provas visuais da antecedência de "O Simplício" (8 de janeiro
de 1831) em relação a "Verdadeira Mãe do Simplício (agosto de 1831):
http://memoria.bn.br/DocReader/701882/1
http://memoria.bn.br/DocReader/701203/1

Só há um número do periódico disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca


Nacional, embora Sacramento Blake afirme que "poucos números saíram" (veja o
recorte mais acima).
A natureza ficcional da autora e da história do periódico

Resolvida a questão da origem do periódico "Verdadeira Mãe do Simplício" (uma


continuação inspirada em "O Simplício"), falta resolver a questão da autoria.

Essa questão é importante porque, sendo Fortunata uma pessoa real, mereceria o
honroso posto de primeira jornalista brasileira. A gaúcha Maria Josefa da Fontoura
Pereira Pinto (1775-1837), fundadora do jornal "Belona Irada Contra os Sectários de
Momo", em novembro de 1833, é considerada a nossa pioneira nessa área profissional.

Como se pôde ler acima, a historiadora Constância Lima Duarte afirma a existência
de uma pessoa chamada Fortunata Eugênia de Melo como a autora do texto do
periódico.

Outra fonte importante traz a mesma informação. O "Catálogo da Hemeroteca do


Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (Cedap)", da Universidade Estadual de
São Paulo (UNESP), em sua versão atualizada de 2012 e tendo como organizadora
Tania Regina de I. Luca, registra em sua página 351:
https://www.assis.unesp.br/Home/pesquisa/cedap/catalogo_hemeroteca.pdf

Há quatro chaves internas para a decifração do mistério da "jornalista" Fortunata


Eugênia de Melo.

1. A primeira chave é a própria data de publicação do periódico "Verdadeira Mãe do


Simplício" (agosto de 1831). Como já foi mostrado, seu autor simplesmente aproveitou,
como outros, a ideia do primeiro periódico da série, de nome "O Simplício" (lançado em
janeiro de 1831), para desenvolver a brincadeira, focada na crítica aos costumes da
época (como veremos adiante). O jornal atribuído a Fortunata fez parte da "família dos
Simplícios", ocupando o quinto lugar, cronologicamente, entre as imitações lançadas
após "O Simplício".

2. A segunda chave é a história contada no primeiro e único número do periódico,


obviamente fantasiosa e típica dos contos de aventuras daquela época, contendo
elementos de intriga, traição, viagens, dissimulações, disfarces físicos, vingança, crime,
coincidências impossíveis e internação em mosteiro, além do clássico vilão incorrigível.

Um resumo. Em 1801, a mãe de Simplício, a catarinense Fortunata Eugênia de Melo,


vive um amor à primeira vista com o comandante de uma fragata portuguesa, envolvido
em conflito contra os espanhóis e franceses (a Guerra das Laranjas). Casa-se com ele e
engravida, mas o marido tem de voltar logo à guerra, acompanhado de um frade
capturado em batalha contra os espanhóis.

Este frade consegue chegar ao Rio e denuncia o marido de Fortunata ao Vice-Rei,


pelo suposto furto de um Cristo de ouro maciço enviado pelo governo espanhol para
Buenos Aires, na embarcação capturada, onde o frade viajava.

O capitão é obrigado a ir ao Rio e então conta ao Vice-Rei que o Cristo está bem
guardado em um caixão, juntamente com um valioso diadema do próprio militar, e que
há registro legal dessa captura. O Vice-Rei ordena que o pai de Fortunato leve o caixão
ao Rio, de modo a conferir a veracidade do relato do militar.

Ao chegar ao Rio, o pai de Fortunata é preso juntamente com o marido dela (o


capitão), e o caixão segue para as mãos do Vice-Rei. Este alega depois que, ao abri-lo,
nada encontrou. O capitão é enviado para julgamento pela Inquisição em Lisboa, e os
pais de Fortunata são exilados em Angola. Os bens da família são confiscados, mas
Fortunata consegue enviar ao marido algumas joias que preservou, na esperança de vê-
lo comprar a liberdade.

Nasce o filho de Fortunata, batizado como Pompeu. Receosa de que seja alvo do
Vice-Rei, ela o envia aos cuidados de um tio no Pará, e depois entra para um convento.

O tio de Pompeu tem um único filho, Simplício, do qual o sobrinho se torna como
um irmão. Simplício falece quando Pompeu estava com 12 anos de idade, e o tio propõe
cuidar dele como um filho biológico, na condição de que assumisse o nome do garoto
falecido. Pompeu e Fortunata concordam com a proposta.

Simplício cresce e vai morar na Europa. Um dia, na França, recebe uma carta
informando sobre a morte do tio. No retorno ao Brasil descobre, em Portugal, que o
verdadeiro pai quase conseguira comprar a própria liberdade. Quando tudo parecia
decidido, o Vice-Rei, chegando a Lisboa, atuou contra o acordo, e o capitão terminou
morto pela Inquisição.

Simplício decide ficar em Portugal e se vingar do responsável pela morte de seu pai e
infelicidade da mãe. Compra joias, e disfarçado como Reinaldo adota o disfarce de
comerciante na província onde mora o Vice-Rei, conseguindo cativá-lo a ponto de ser
contratado como guarda-roupa do fidalgo.

Descobre então que o frade que denunciou o seu pai tornou-se o capelão do Vice-
Rei. Essa circunstância feliz permite-lhe planejar a vingança ideal contra os vilões que
desgraçaram a sua família. Numa noite em que só os dois estão dormindo na casa,
Simplício incendeia a residência, matando seus inimigos.

Simplício volta a Lisboa, onde é informado que seus avós faleceram de desgosto, em
Angola. Tendo somente a mãe e a tia como parentes, retorna ao Pará, mas descobre que
a tia também faleceu. Desiludido, vende o que pode e envia à mãe o dinheiro
arrecadado.

Ainda no convento, Fortunata lê um periódico do Rio escrito por um tal de


"Simplício", e resolve perguntar ao filho se a história de vingança contada pelo
jornalista é verdadeira. O filho confessa o crime e a autoria do relato. E informa que está
impedido de visitá-la, mas gostaria de lhe dar o "último adeus".

Fortunata abandona o convento, mas, sem dinheiro (apesar da quantia recebida antes
do filho), é obrigada a viajar andando, de Santa Catarina ao Rio. Disfarçada de
peregrina, consegue viver de esmolas até chegar à cidade.

Descobre que Simplício faleceu num hospital, e depois consegue abrigo na casa da
viúva do enfermeiro-mor. Então (em uma coincidência típica dos folhetins da época),
Fortunata encontra por acaso o testamento de Simplício sobre a mesa do oratório
daquela residência, onde ela costumava rezar com a viúva.

O restante do texto é o conteúdo do testamento, no qual Simplício confirma a


existência da própria mãe, a natural herdeira. Segue-se a solicitação de auxílio por parte
de Fortunata, visando pagar custas judiciais para evitar que o "filho, neto e primo" de
Simplício (jamais mencionados na história) contestem o testamento na Justiça.

Obviamente, trata-se de uma história de ficção.

3. A terceira chave é a menção, na história, ao periódico com o título "O Simplício",


reconhecimento explícito de que teria havido uma publicação anterior àquela.

4. A quarta chave, a mais óbvia de todas, é o próprio conteúdo do "testamento".


Todos os itens de doação de Simplício aos herdeiros são irônicos e servem de veículo à
crítica de costumes, exatamente o conteúdo dos demais periódicos que se aproveitaram
do nome e do personagem Simplício.

Os bens de Simplício no Pará são destinados a "casar seis órfãs honestas, contanto
que os noivos não sejam petimetres [vaidosos] de chapelinhos de palha vã, calças de
funil, casaca com abas de folha de cajueiro, sapatos econômicos, espartilho e
chicotinho; e antes sejam europeus de fala grossa e mãos calejadas, porque estes são
como formigas que ajuntam de verão para comer no inverno".

A rede de camarão servirá "para pescar os tumultuosos que fizeram barulho contra o
Governo que nos rege".
O balcão da Prainha com escada por fora "servirá para dançarem o miudinho na
corda bamba, os cabeças do povo armado que se juntar[em] para fazer barulho
inquietando a Sociedade Constitucional".

A cabeleira de rabicho "servirá de modelo para todas as que usarem os carecas que
esperam a recolonização do Brasil".

E assim por diante. Não se trata, é claro, de um testamento verdadeiro.

Portanto, a alegação de que o periódico estaria sendo vendido para custear fundos
para a mãe do Simplício, Dona Fortunata Eugênia de Melo, é falsa. Muito
provavelmente este nome foi inventado, assim como os dos demais membros da
"família" de Fortunata.

Nesse sentido, ela é uma jornalista "fake", a primeira da história da ficção brasileira.

A propósito: não se conhece nenhuma outra menção a "Fortunata Eugênia de Melo"


em qualquer outra fonte do século XIX disponível aos pesquisadores.
O texto integral do primeiro número

____________________________________________________________

N. 1 AGOSTO DE 1831 Preço 80 rs.

VERDADEIRA MÃE DO SUMPLÍCIO

ou

A INFELIZ VIÚVA PEREGRINA

___________________________________________________________

Este periódico se publicará para mostrar ao público que o Simplício não tem filhos,
netos, nem outros parentescos que [além de] sua mãe há pouco chegada de Santa
Catarina, e os leitores igualmente saberão a vida do pai, da mãe e do filho, contada por
ela mesma.

___________________________________________________________

Rio de Janeiro, na Tipografia do Diário, 1831.

Vale a mentira, enquanto

Não aparece a verdade.

A vós, fiéis esposas e carinhosas mães dos frutos dos vossos amores, onde
contemplais os verdadeiros retratos de quem lhes deu o ser, eu vos peço que escuteis
uma infeliz que, tendo perdido a seu marido, muito digno deste nome, igualmente busca
um filho, único penhor que lhe deixou seu adorado pai, mas que inutilmente tem
malogrado aquilo que muito preza e procura, mendigando de província em província e
de porta em porta, tendo perdido a consolação de tornar a ver o arrimo de sua velhice;
portanto ouvi a história da minha vida, a de meu marido e a de meu filho.

Eu nasci na Ilha de Santa Catarina, e a seu tempo sabereis o meu nome, o de meu
marido, o de meu filho Simplício e o motivo por que adotou este nome.

No tempo da antiga guerra dos portugueses com os espanhóis do Sul, o comandante


de uma fragata lusitana, indo refrescar àquela ilha, foi hospedado em casa de meu pai, e
no primeiro dia que nos vimos, tivemos aquele choque de simpatia que experimentam
os novos amantes, sem que as nossas inclinações causassem suspeitas a meus pais, que
me adoravam como filha única. O comandante foi cruzar [navegar], e o meu
pensamento acompanhou aquele a quem amei desde o primeiro dia que o vi.

Antes de um mês voltou a fragata com duas presas [embarcações inimigas]


espanholas muito interessantes, e depositaram suas carregações nos armazéns de meu
pai. Passados alguns dias, o comandante me pediu para esposa, e nos recebemos
brevemente; e depois de alguns dias, com bem pena do meu coração, novamente saiu
meu marido a cruzar, levando consigo um frade, ex-capelão das presas que tinha feito, o
qual pediu passagem no primeiro navio que encontraram navegando para o Rio de
Janeiro, e assim que desembarcou foi denunciar ao Vice-Rei que meu marido tinha feito
derreter e reduzir a doblas um Cristo de ouro maciço que o governo espanhol mandava
para Buenos Aires em uma das presas que aprisionou, e foi mandado vir ao Rio,
debaixo de prisão.

Tanto [Logo] que chegou, foi à presença do Vice-Rei, que perguntou a meu marido
pelo mencionado Cristo, e respondeu que estava em um caixão, juntamente com o
diadema que lhe pertencia, o qual também era ouro cravado de brilhantes, de muito
valor; mas que tudo constava da relação da descarga das presas, a qual estava assinada
por ele, pelo Comissário e pelo escrivão da fragata e por meu pai, como depositário.

Com esta declaração, foi meu marido preso, incomunicável, na Ilha das Cobras, e
quando eu o esperava, chegou uma escuna do Rio com ordem do Vice-Rei para meu pai
ser remetido preso, trazendo o caixão de que se trata, e assim que chegou o navio a esta
capital, teve meu pai a sorte de meu marido, e o caixão foi para o gabinete de Sua
Excelência.

Passados alguns templos, soube-se que o Vice-Rei, mandando abrir o caixão


judicialmente, não se achou o que se procurava, porque se deve supor que Sua
Excelência teria feito sacar o Cristo e o seu diadema para o imputar a meu marido e a
meu pai, que sendo condenados na pena de roubo, foi o primeiro remetido à Inquisição
de Lisboa e o segundo a Angola, onde morreu, e /também/ minha mãe que o
acompanhou, tendo-nos confiscado /tudo/ quanto possuímos.

Quanto a meu infeliz e inocente marido, não pude saber mais dele, ainda mesmo que
remeti [mesmo eu tendo remetido] para Lisboa algumas joias e o dinheiro que pude
salvar do confisco da Justiça.

No meio de tantos desgostos dei à luz um menino, que sendo perfeito retrato de seu
pai, e a única riqueza que possuía, mandei batizar com o nome Pompeu, a quem mandei
criar ocultamente com receio de ser vítima do déspota; e tanto que pôde passar o mar
[assim que pôde viajar], remeti-o ao tio, que residia no Pará, onde foi educado até certo
tempo, e eu me recolhi a um mosteiro para gozar o resto da vida chorando a desgraça de
meu marido, e pedindo a Deus que me deixasse tornar a ver meu filho.

Tendo-vos contado parte da história da minha vida, não deveis ignorar a do meu filho
Pompeu, e o motivo por que adotou o nome de Simplício. Tendo este mais de doze
anos, e seu tio tinha um único filho que se chamava Simplício, o qual era da mesma
idade do primo, ambos se amavam como irmãos; porém [o filho] sucumbiu de uma
grave moléstia. O pai e a mãe, que eram ricos, propuseram ao sobrinho que o adotariam
por filho se dali por diante se chamasse Simplício, em memória daquele que tinha
morrido, no que consentiu, e eu aprovei.
Depois de alguns anos, foi o meu fingido Simplício viajar nos países estrangeiros, e
ao mesmo tempo se instruir em diversas línguas, e achando-se na França, recebeu uma
carta da tia pedindo-lhe que voltasse porque seu marido era morto; e o meu Simplício
regressou por Lisboa, onde soube que seu pai, estando quase perdoado à custa de
dinheiro, chegou o Vice-Rei do Brasil e o acusou, a ponto que foi vítima das tiranias da
Inquisição para não se descobrir que Sua Excelência foi quem roubou o Cristo.

Aquele mau homem era um dos fidalgos da província, que o governo português
mandava nos reger para enriquecer à custa dos brasileiros, e meu filho, querendo vingar
a desgraçada morte de seu pai, comprou joias estrangeiras e foi vendê-las na província
onde residia o Excelentíssimo Senhor, para desta forma poder se introduzir em seu
palácio.

Com efeito, assim o conseguiu, e como sempre falou francês, o fidalgo o convida
para ser seu guarda-roupa, o que aceitou por um ano, até voltar a Nantes, onde fingiu ser
a sua pátria.

Eis o meu Simplício a servir o seu benfeitor, debaixo do nome de Reinaldo, e com o
tempo veio a conhecer que o capelão de seu amo era o tal fradinho que fez a falsa
denúncia de meu infeliz marido, e que era tão amigo do fidalgo que dormia no seu
quarto; porém o meu querido Simplício, ainda que fazia todas as vontades a seu amo,
desejava consumar a obra com segurança, até que um dia foi a família visitar os
parentes, ficando em casa somente o fidalgo, o frade e alguns criados à disposição de
meu filho, que sobre a manhã conseguiu incendiar o quarto dos tiranos, reduzindo-os a
cinza, e /a tudo/ quanto existia no palácio, excetuando o meu Simplício e seus
companheiros, que escaparam nus, e só meu filho sabia onde principiou a chama.

O povo da vizinhança vestiu o meu Simplício, que não somente lamentava a morte
do amo e do seu capelão, mas a perda do seu fato [suas vestes] e o valor das joias que
tinha vendido.

Alguns dias depois de chegar [retornar] a família, despediu-se com muitas lágrimas,
vindo para Lisboa são e salvo. Chegando a esta cidade, indagou com cautela o fim de
seus avós, e soube que, tendo-lhe a Inquisição confiscado seus bens, morreram de
desgostos, sem deixarem outros parentes que o filho, que morreu no Pará, e seu neto
Simplício adotivo; e Reinaldo, querendo fingir melhor o seu papel, voltou à França e
dali foi ao Pará, de onde me deu parte do que fica exposto.

Passado um ano, recebi de meu filho a seguinte carta:

"Adorada mãe, minha tia é morta, os remorsos do incêndio rodeiam meu coração, e a
cada passo temo pagar o que fiz; portanto reduzi à moeda quanto pude e deixo o resto
arrendado: remeto a Vossa mercê algum dinheiro: não sei o meu destino; e se Vossa
mercê. precisar, utilize-se do que fica; entretanto rogue a Deus queira dirigir meus
passos. S."
À vista desta carta, novos desgostos redobraram minhas aflições, sem que por muitos
anos pudesse ter notícia do meu Simplício, até que chegou ao meu poder um periódico
deste nome.

Indaguei, por interposta pessoa, quem seria este Simplício, e nada soube com certeza;
contudo me animei a escrever-lhe o seguinte:

"Senhor Simplício, sereis vós aquele filho que, não conhecendo a seu pai, vingou a
sua morte? Vossa mãe ainda existe, na esperança de tornar a vos ver, e não e a deixeis
morrer antes de vos beijar, qual retrato daquele que vos deu o ser".

A seu tempo, recebi a seguinte resposta:

"Querida mãe, eu tinha jurado não dar notícias minhas, porém a voz da Natureza é
mais forte que o poder humano. E me acho incapaz de sair de casa, e se Vossa mercê
ainda pode fazê-lo, dirija-se a esta em tempo de me dar o último adeus. S."

Assim que recebi a carta, e não tendo com que me transportar por mar, saí do
mosteiro, vesti-me de peregrina, vindo mendigando até esta capital, onde soube que o
meu caro filho Simplício tinha morrido. Com esta triste notícia, que me cobre o coração
de luto, procurei encobrir a mágoa que me devora, mas sendo recolhida em casa de uma
benfeitora, viúva do enfermeiro-mor do Hospital, e como esta não sabia ler, tinha
diversos papéis sobre a mesa do oratório do quarto onde eu dormia, e onde, ambas,
rezávamos o terço de todas as noites.

No primeiro sábado que me achei ali, ficou luz no oratório, e entre os papéis achei
um desta forma:

Testamento do Simplício

Creio em Deus Criador do Céu e da Terra, e creio em tudo quanto manda crer a
Santa Religião Cristã, debaixo de cuja fé espero que o Criador há de me salvar, e por
isso, e por me achar doente, mas de juízo perfeito, passo a fazer o meu Testamento do
teor seguinte:

Em primeiro lugar, declaro que sou cidadão brasileiro e que o meu próprio nome é
Pompeu, mas por interesses de família me chamo Simplício, usando por sobrenome
aquele que me deram ao batismo; e também declaro que sou filho do capitão de fragata
José de Melo da Gama e de Dona Fortunata Eugênia de Melo; e sou neto, pela parte
paterna, do chefe de esquadra Veriato de Melo e de Dona Ricarda de Alenquer e Melo,
portugueses; e pela parte materna, do capitão-mor Augusto Borges Brandão e Dona
Leonor Brandão, brasileiros da ilha de Santa Catarina.

Item [Da mesma forma], declaro que não tenho outros parentes que a [além da]
referida minha mãe, existente no Mosteiro da cidade de São Paulo, onde se recolheu por
falta de meu pai, a qual instituo por minha universal herdeira dos meus bens, com as
exceções declaradas.
Item dos bens que possuo no Pará, por falecimento de meu tio, o brigadeiro Alberto
João de Melo, e da sua mulher Dona Patornilha de Melo, que me adotaram por filho,
quero que a terça parte se divida em porções iguais para casar seis órfãs honestas,
contanto que os noivos não sejam petimetres [vaidosos] de chapelinhos de palha vã,
calças de funil, casaca com abas de folha de cajueiro, sapatos econômicos, espartilho e
chicotinho; e antes sejam europeus de fala grossa e mãos calejadas, porque estes são
como formigas que ajuntam de verão para comer no inverno.

Item, quanto aos bens que possuo nesta Corte, deixo a minha rede de camarão, para
pescar os tumultuosos que fizeram barulho contra o Governo que nos rege.

Item, o meu balcão da Prainha com escada por fora servirá para dançarem o
miudinho na corda bamba, os cabeças do povo armado que se juntar para fazer barulho
inquietando a Sociedade Constitucional.

Item, a minha cabeleira de rabicho servirá de modelo para todas as que usarem os
carecas que esperam a recolonização do Brasil.

Item, o meu relógio de despertador se venderá para repartir com os pobres de juízo
que acreditam no sonho da visão de Macacu [menção ao folheto político "Visão do Pico
do Itajuru", texto disponível no OneDrive, subpasta Investigações de Autoria e
Publicação], para não temerem o papão do Pai Amaro.

Item, o rendimento do meu moinho de vapor servirá para comprar sabão de cheiro
para repartir com as negras que lavarem as calças de fecha-fecha, em dias de barulho,
porque muitas barrelas talvez não lhes tirem as nódoas.

Item, deixou o meu espelho columbiano aos meus patrícios que têm a vista curta,
para nele se verem grátis.

Item, deixo ao Reverendíssimo Senhor Bispo-Capelão-Mor a imagem de Nossa


Senhora da União, para recomendar aos brasileiros que a festejem anualmente em todas
as paróquias do Brasil.

Item, tendo concluído meu Testamento, rogo aos meus patrícios e patrícias a quem o
meu Simplício tem ofendido, queiram perdoar, e lhes recomendo que todas as vezes que
se lembrarem dele rezem um "Creio em Deus Padre" pela minha alma.

Portanto, havendo declarado a minha universal herdeira na pessoa de minha querida


mãe, igualmente a nomeio minha Testamenteira, e na sua ausência peço aos Senhores
Deputados de Piauí queiram tratar do meu enterro sem aparato, dando alforria aos
negros que me carregarem e acompanharem, por ser esta a última vontade do seu muito
atento venerador – O Simplício."

À vista do sobredito documento se conhece que o filho, neto e primo do meu


Simplício hão de querer entrar em herança, e para se habilitarem terei uma demanda,
mas como poderei sustentá-la sem dinheiro? Contudo, não lhe acho outro remédio que
fazê-los comparecer diante do Juiz de Paz para se apurar isso no Tribunal da razão; e
entretanto peço aos meus patrícios e patrícias, e também rogo aos estrangeiros e
estrangeiras: queiram compram a minha história, para com o seu produto sustentar o
direito de uma pobre mãe, que de outra forma lhe faltam os meios de recorrer à Justiça;
e do que se passar, fará ciente aos seus protetores e protetoras.

____________________________________________________________

RIO DE JANEIRO, NA TIPOGRAFIA DO DIÁRIO, 1831.

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