Latusa Digital Ano 1, 6 - Desenha Aí, Ô, Ou Anorexia Epistêmica
Latusa Digital Ano 1, 6 - Desenha Aí, Ô, Ou Anorexia Epistêmica
Latusa Digital Ano 1, 6 - Desenha Aí, Ô, Ou Anorexia Epistêmica
Hoje há uma novidade, uma queixa nova, contemporânea aos chamados novos
sintomas e, porque não, em relação aos analistas de orientação lacaniana: a
queixa de uma interpretação difícil: “Não fiquei naquele analista porque não
entendia nada do que ele dizia”. Percebemos também que, a esses sujeitos,
não interessa muito entender... Um deles resumiu a queixa com um chiste.
”Tive vontade de dizer: desenha aí, ô”. Esta queixa não é, porém, privilégio de
jovens desprovidos, digamos, de facilidade de expressão e o chiste afinal é um
bom sinal da presença do Outro. Ela pode revelar algo que vai além da
demanda de amor incondicional, da demanda de imagem, da demanda de
facilitar a compreensão, da demanda de fechamento. Isto não é novo. O novo
é que isto vem se apresentando quase como uma epidemia em alguns sujeitos
que nos procuram hoje, nos quais encontramos um tipo de funcionamento
mental que os atrapalha em suas tentativas de seguir a trilha de um saber.
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Aderente da Escola Brasileira da Psicanálise (EBP).
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Estariam mais tontos nossos proponentes à análise, que nem sempre se
apresentam chistosos como aquele rapaz? O certo é que, grau acadêmico à
parte, eles demandam que o analista “desenhe”, com suas palavras, um
esquema de ordem e de paz. Não são pedidos de análise, poderíamos dizer,
são pedidos de cuidados. O trabalho com o saber fica só com o analista.
Lacan vai ligar a transferência ao saber. A interpretação não pode operar sem
o sujeito-suposto-saber, ou seja, sem a transferência. O matema do sujeito
suposto saber nos apresenta a face significante da transferência: a partir de
um significante qualquer do analista põe-se em marcha um movimento de
significação, o qual podemos chamar de busca de sentido, e que revela outro
movimento de estrutura, chamado por Miller de fuga de sentido. Este é o nome
de um de seus seminários1, no qual ele afirma: “Uma análise é fazer a
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MILLER, J.-A. “A fuga do sentido”. Em: Lo real y el sentido. Buenos Aires: Edigraf S.A, 2003.
Aula de 12/07/1995.
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experiência por excelência da fuga do sentido”. As queixas quanto à
interpretação citadas acima dizem respeito às vicissitudes dessa experiência.
Sabemos também que o analista não é só um sujeito suposto saber para seu
analisando, sua causa significante, mas encarna também sua causa objetal. A
cadeia significante deixa um resto.
Então, que interpretação para este sujeito? Em primeiro lugar, quem é esse
que se coloca como estando abaixo do que o Outro supostamente quereria? Ou
cujo Que vuoi é quase inaudível?
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LACAN, J. “La Tercera”. Em: Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires: Ediciones Manantial,
1988.
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do desejo, no curto-circuito imaginário. Ora, a inibição é uma resposta à
angústia que pode, como Freud assinala em “Inibição, sintoma e angústia”,
chegar à depressão. Uma defesa que pode levar o Eu a se esconder no porão.
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TROBAS, G. “Tres respostas del sujeto ante la angustia: inhibición, pasaje al acto y acting-out”
(2002). Em: Logos 1. Buenos Aires: Grama ediciones, 2003.
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Ora, estes indivíduos nos chegam no momento em que, em contato com o
último ensino de Lacan, toda uma questão com relação ao sentido, não só em
sua vertente imaginária, mas também simbólica, se apresenta.
Com esse panorama que vem sendo aos poucos mostrado, como que se
levantando uma cortina, um desafio vem se esboçando: que trabalho para o
analista de hoje? Nossa clínica é cada vez mais a do ato, do qual só podemos
dar conta a posteriori. Mas, e a outra vertente de nosso trabalho, a
interpretação? O que acontece com a interpretação? Creio que vale lançar na
mesa o esforço que estamos fazendo: de um lado, a anorexia epistêmica que
nada quer com a interpretação; de outro, um esforço de poesia, título do
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MILLER, J.-A. “O lugar e o laço”. Em: Lo real y el sentido. Buenos Aires:Edigraf S.A, 2003.
Aulas de 06 e 13 de junho de 2001.
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seminário de Miller do ano passado Para este, o último ensino de Lacan
relativiza a lógica para dar lugar à poesia – “um jogo sobre o sentido sempre
duplo do significante”. Mas para os que sofrem de anorexia epistêmica, há todo
um trabalho para fazer surgir uma “prosa” para depois fazermos poesia. Será a
poesia demais, de menos ou difícil para o sujeito contemporâneo, aí incluídos
os psicanalistas?