A Imaginação Totalitária

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"A imaginação totalitária" investiga os laços entre política, religião e esperança

Entrevista no G1 por Luciano Trigo Domingo, 17/07/2016.

“A experiência radical de estar certo e desejar que todos estejam igualmente certos a partir dessas nossas crenças
radicalizadas constitui a chave de compreensão das sangrentas catástrofes políticas – o último estágio das grandes
certezas ideológicas, a exclusão completa de todo aquele que atrapalha efetivamente nossas realizações. (...) O fato é
que nenhum terrorista nutre algum sentimento de dúvida acerca de suas mais nobres convicções. Todos, sem exceção,
partiram, pelo menos no nível do apego sentimental a uma crença, da experiência de que valeria muito a pena lutar
e, acima de tudo, matar e morrer por uma grande verdade”. O trecho, atualíssimo depois do atentado terrorista na
França, é do livro “A imaginação totalitária – Os perigos da política como esperança”, do professor de Filosofia
Francisco Razzo (Record, 336 pgs. R$ 49,90).

Dialogando com a obra de diferentes pensadores, de William James a Zygmunt Bauman, passando por Henri Bergson,
Hannah Arendt e Isaiah Berlin, Razzo afirma que cada indivíduo, seja ele de esquerda, direito ou centro, é o responsável
pela jaula ideológica em que vive. A origem dos regimes autoritários está nas pessoas e na sua compulsão a abraçar
verdades absolutas – e a depositar no sistema político uma esperança exagerada. Nesse processo, a política deixa de
ser entendida como mediação e passa a ser assumida como uma questão de fé, como fim último de todas as
expectativas humanas. “No meu livro procuro demonstrar que o totalitarismo é uma disposição mental e não o
conjunto de ideias que, em determinados contextos, podem ser consideradas de esquerda ou de direita”, explica Razzo
nesta entrevista.

- No Brasil, a política parece ter se tornado um substituto para a fé: pessoas de diferentes credos se agarram às suas
crenças de forma dogmática e até fundamentalista, deixando a realidade em segundo plano. Como surgiu esse laço
quase religioso de boa parte dos brasileiros com um partido ou ideologia? Quais são as consequências e possíveis
desdobramentos desse fenômeno?

FRANCISCO RAZZO: Não se trata de um fenômeno exclusivo de brasileiros, os brasileiros também estão atrasados
nisso. O secularismo — nome técnico para o processo no qual as religiões tradicionais já não oferecem mais qualquer
horizonte de significado para a vida pública — é um traço característico da modernidade e não do brasileiro. No Brasil,
vivemos os resquícios dessa experiência cujo epicentro foi a Europa do final do século 19 e início do século 20. Muita
gente encerra a noção e a história do secularismo como separação entre Igreja e Estado. No entanto, isso não é
suficiente. O secularismo alienou a própria cultura da religião. Paradoxalmente, a religião se tornou uma espécie de
utensílio sem muita utilidade. Como aquelas esteiras elétricas que você compra e, meses depois, só usa para pendurar
roupas, até se dar conta de que só serve para ocupar espaço na casa e não vê a hora de se livrar daquele estorvo. No
secularismo, a religião tradicional se tornou um peso morto. E isso teve um preço. O mais caro é a dissolução profunda
da ideia de fim último para o qual a vida humana tende.

Em outras palavras, trata-se da própria dissolução da ideia de verdade e de missão do homem no mundo. Hoje,
anunciar publicamente uma verdade no sentido cristão, por exemplo, isto é, no sentido de crença no mistério da
salvação, na imortalidade da alma, na misericórdia de Deus, é uma ofensa grave nos meios acadêmicos e do jornalismo
cultural. As ideias de Verdade — com inicial maiúscula — e anúncio eram compreendidas como a chave do mistério
de vida eterna e, consequentemente, da missão do cristão no mundo. A Igreja não era parte da vida, mas a forma do
todo, mas de um todo que não se resolvia completamente no mundo. O secularismo destruiu tudo isso. As duas ordens
— religiosa e secular — foram reduzidas a uma ordem só: a ordem do mundo. Na ordem secular, não há unidade que
resolva a vida em comunidade. Não há mais o todo expresso na distinção mundo e mistério. É pura fragmentação do
mundo. Luta pelo poder. Jogo de forças. Alguns enxergam nisso libertação, possibilidade de soberania do indivíduo e
do seu grupo. Eu enxergo submissão.

- Quais seriam, de forma resumida, os perigos da política como esperança, apontados no subtítulo do seu livro?

RAZZO: Nessa suposta experiência de libertação e autodeterminação da soberania do grupo, o mundo se torna o
ambiente privilegiado para o advento das ideologias políticas. Nesse sentido, toda ideologia é expressão de uma
religião política. De uma verdade que pretende responder pelo todo — aqui e agora. Não mais um horizonte de
mistério. A ideologia sempre será um pensamento total que precede a realidade. Todo ideólogo sempre forçará a
realidade a assemelhar-se ao seu discurso. É um sistema de certezas inequívocas. A consequência da política como
esperança só pode ser guerra e violência. É o jogo de forças para ver quem sempre tem razão. Se o sacerdote anuncia
o mistério da Fé e prescreve o salto — para o homem religioso o horizonte último era sempre mistério —, o ideólogo
mostra a força de sua razão e aponta seus inimigos. Na política como esperança, o pensamento do ideólogo será
sempre total. Só o seu pensamento é total. Não pode haver concorrência no sistema de certezas de um ideólogo. O
ódio ao inimigo, portanto, é absoluto. A política como esperança encerra um sistema de certezas políticas, imanentes,
e, consequentemente, de brutalidade ao extremo.

- Você afirma que as “chaves” esquerda e direita não são mais suficientes para entender o totalitarismo. O que
definiria hoje os conceitos de esquerda e direita? Por que eles não dão mais conta da compreensão do mundo?

RAZZO: Esquerda e direita são termos relativos e devem ter seus significados demarcados a partir de uma pluralidade
de ideias sobre economia, política e sociedade. Não são termos “soltos” e autorreferentes. Sozinhos não significam
nada. Muito menos são termos normativos. Me parece absurdo tentarem normatizar o que deveria ser apenas
descrição de um estado de coisas. Esquerda e direita descrevem e classificam sua posição dentro de um espectro
político. E isso envolve uma variedade de crenças sobre uma variedade de assuntos. Quando eu digo que sou de direita,
isso serve para me diferenciar daquele que é de esquerda. Diferencia dentro de um contexto de fala e me posiciona
em relação a algum tema de economia, política e cultura. Só faz sentido, portanto, pensar os termos direita e esquerda
em um ambiente não polarizado, mas pluralizado. Do ponto de vista econômico, posso tomar uma decisão
considerada, hoje, de esquerda, e isso não anula que do ponto de vista político eu venha a ter crenças consideras de
direita e por aí vai. Todavia, o totalitarismo pretende-se absoluto. Em vista disso, um conjunto de ideias que poderiam
ser consideradas de esquerda ou de direita não passam de um mero acessório para um totalitário.

O ideólogo totalitário precisa apagar, cedo ou tarde, qualquer oposição. Não há oposição na mente de um totalitário.
Não há interlocutor. Deste modo, no poder, pouco importa ser de esquerda ou de direita. O importante, para o
totalitário, é ser a expressão acabada da verdade – consequentemente, não faz sentido falar de esquerda tendo em
vista que não faz sentido falar de direita e vice-versa. No meu livro procuro demonstrar que o totalitarismo é uma
disposição mental e não o conjunto de ideias que, em determinados contextos, podem ser consideradas de esquerda
ou de direita. Sinceramente, considero direita e esquerda termos muito imprecisos para uma compreensão mais
abrangente do ato político. Eu os adoto, claro, e me considero, no contexto em que vivemos, de direita. É um rótulo.
Funciona até um limite. Porém, mesmo dentro da atual “direita”, eu posso estar, para alguns mais devotos do purismo
ideológico, mais à esquerda. É tudo uma questão de como nossas perspectivas se movimentam na história. Quer um
bom exemplo? Liberalismo, em sua origem, poderia ser considerado de esquerda. O conservador, de direita. Hoje,
temos o liberal-conservador. O libertário, o social-conservador etc. Enfim, veja no Brasil quão deplorável é nossa
situação semântica: a socialdemocracia é considerada de direita; o liberal, um fascista.

- A emergência de grandes manifestações populares, com diferentes motivações, é um fenômeno importante na


política recente. Como você interpreta isso?

RAZZO: Toda grande manifestação popular representa um sintoma e não o fim último do ato político. Muita gente vê
nas manifestações a realização da própria política. É a ideia de liberdade enquanto participação ligada à ideia de que
o cidadão só é cidadão se estiver envolvido ativamente com política. Lamentável. É tanto absurdo que, nesse contexto
ideológico, até os atos de amamentar em público, andar de bicicleta, dar um “rolê” no shopping, comer bacon passam
a ser expressões de luta política. No que diz respeito às grandes manifestações, é preciso perguntar: e depois? O dia
seguinte é o problema. As ruas exercem certo fascínio, quase uma experiência catártica. Em uma era secular, exercem
mais significado religioso do que procissão religiosa.

Pessoalmente, sou bem cético. Entretanto, como observador, esse suposto otimismo das ruas me faz pensar naquilo
que as ruas, em um primeiro momento, escondem: para o manifestante a política se resolve na manifestação, como
domínio do estético, do mágico. Como se a vida em comunidade alcançasse perfeição aí. Há um esteticismo nas ruas,
quase um rito. Os manifestantes parecem o tempo todo estar comemorando a própria manifestação. É o ato político
como a síntese de uma experiência. Então, só que debaixo desse tecido otimista, há irracionalismo, e em política
irracionalismo significa não outra coisa senão violência, barbárie. Toda manifestação presume insatisfação. Penso
naquilo que um intelectual de esquerda como Paulo Arantes chamou de “uma era de perpétua emergência, em que
esquerda e direita confluem na gestão de programas de urgência”. As ruas sedimentam esse sentimento de
“urgência”. De que as promessas da política como esperança precisam, inevitavelmente, se realizar agora — custe o
que custar. Mas elas não realizam; elas frustram. A esperança política é sempre frustrante. Nesse caso, melhor ir para
procissão.
- Na extensa bibliografia citada, senti falta de alguns autores, com o Elias Canetti de “Massa e poder”, o Freud de
“O futuro de uma ilusão” e o Gramsci do conceito de hegemonia. Qual seria a interface de seu livro com esses
autores? Também senti falta de uma reflexão mais psicológica/psicanalítica, que seria útil, por exemplo, para
interpretar a culpa infinita da classe média brasileira e nossa compulsão ao autoengano.

RAZZO: Era preciso fazer opções teóricas. Fiz as minhas. E eu estava muito mais interessado em construir uma reflexão
filosófica do problema da imaginação política do que na descrição objetiva à luz da psicologia social. As opções são
condicionadas pelos nossos interesses e familiaridades teóricos. Sobre Canetti, em nenhum momento lido com a ideia
de massa, lido justamente com a condição de possibilidade para formação de imaginários políticos. Considero a massa
um tema secundário. Até onde me lembro, a tese de Canetti diz respeito ao “medo originário” e como a massa se
torna a concentração de indivíduos para um objetivo comum. É um resumo grosseiro, mas penso que antes de haver
massa é preciso compreender como esses objetivos se formam para uma mentalidade totalitária. Considero que esses
objetivos comungados posteriormente pela massa nascem na mente de alguém, deriva de uma experiência concreta.
Muitos teóricos veem o totalitarismo como fenômeno de massas; eu, antes, queria ver o fenômeno se desenvolvendo
como crenças totalizantes para um indivíduo lutando com a sua consciência.

Sobre Freud, sua definição de religião como ilusão não é suficiente para compreensão de uma consciência religiosa.
William James e Henri Bergson, na minha opinião, dão respostas muito mais interessantes sobre a religião. Tentei lidar
com o fenômeno da violência política em outras chaves, e não considero ser possível reduzir a experiência religiosa a
fenômenos da realização psicológica do desejo trabalhado por Freud. Prefiro seguir René Girard e o problema do
desejo mimético, mas isso já é outra história. Sobre Gramsci, não tenho qualquer familiaridade com sua obra. Como
disse, fiz opções teóricas. Minha discussão foi demarcada pela reflexão e especulação filosófica. Não tenho
familiaridade com a psicologia/psicanálise. O mais distante da filosofia que eu consigo chegar é a antropologia. E,
nesse caso, meu livro peca por não ter tratado com um autor como René Girard, por exemplo, que considero
imprescindível para entender a natureza da violência e da culpa enraizado na natureza humana e não em uma classe-
conceito, aliás, que eu também descarto — do que qualquer outro. Minha relação com a psicologia do ato de filosofar
foi inspirada na obra de William James, que faz uma espécie de “redução fenomenológica” das disputas filosóficas a
partir do conceito de temperamento — racionalista ou empirista.

- Bertrand Russell escreveu que nunca morreria por suas crenças (“pois posso estar errado”, justificou). Um traço
distintivo da política brasileira é negar o erro até o fim, o que se reflete na atitude mental dos militantes de
diferentes partidos. De onde vem essa teimosia? É algo deliberado ou consequência inconsciente de um processo
persistente de manipulação e lavagem cerebral que se processa inclusive no meio acadêmico?

RAZZO: Concordo com Russell nesse particular. Morrer por crenças é a coisa mais estúpida que alguém pode fazer.
Mas o Russell tem um problema: não ver com bons olhos as crenças religiosas. Eu faço uma distinção entre crença
política e crença religiosa. O problema está na construção de mártires políticos e não na busca de santidade, isto é, na
sacralização da política. Além do mais, o amálgama religião e política é problemático. Trabalhei no livro com a distinção
do Michael Oakeshott, “política de fé” e “política de ceticismo”, que considero imprescindível para entendermos esse
problema. O falibilismo é fundamental para a vida em sociedade. Mundos possíveis são construídos desde que o crente
político leve em consideração esse estado agonístico — combativo — e falível de nossas opiniões. Na experiência
religiosa, a Verdade é mistério de salvação. No cristianismo, matar em nome dessa verdade expressa uma contradição;
já para um terrorista, expressa o salto de fé para vida eterna. No meu livro, procurei identificar as raízes filosóficas
dessa disposição no otimismo racionalista à luz do conceito de temperamento do William James. Não acredito em
manipulação e lavagem cerebral. O crente político seduzido pela disposição totalitária também precisa ser responsável
de alguma forma. A ideia de lavagem cerebral, como força externa à mente de um indivíduo, pode limitar a
importância das nossas responsabilidades pessoais, amputar a ideia de que o problema também é de cada um de nós.
A atitude mental do militante é atitude de todo ideológico: a de ter sempre razão. Ele acredita piamente nisso. E é
preciso lutar internamente contra essas tentações.

- Num contexto de crise duradoura, você enxerga o perigo de disseminação de uma mentalidade autoritária que
possa desaguar no surgimento de salvadores da pátria de diferentes ideologias e no acirramento das tensões
políticas no Brasil? Ou considera que, ao contrário, estamos vivendo o fim de um ciclo de polarização e radicalismo,
No Brasil e na América Latina?

RAZZO: Há sempre o risco. Esse é o lado “mágico” da política: anunciar crises. O PT por alguns anos cumpriu bem esse
papel. Lula tinha o carisma típico de um “salvador”. Agora a narrativa do PT não convence nem a dona Maria da
quitanda. Porém, salvadores são sempre aguardados. É um ciclo eterno. Por outro lado, e não penso que uma coisa
anule a outra, nós temos um ambiente de radicalização e não de polarização, polarizar é o efeito aparente do
radicalismo. Radicalizar é o fenômeno descrito acima, isto é, do apego irrestrito de todo ideólogo ao seu sistema de
certezas. Radicalizar é anular as diferenças e afirmar taxativamente o que não se está disposto a colocar na balança.
A polarização, que é a superação das distinções até duas partes extremas, tende a se anular no radicalismo. Por isso
eu prefiro lidar com a noção de pluralização. E considero a pluralização saudável para a vida política — pensada aqui
na ideia de viver em comunidade.

O que estamos vivendo, na verdade, é o fim do PT e tudo o que ele representa na esquerda latino-americana. O fim
de uma narrativa que fez da política uma promessa muita atraente e significativa. O PT era a expressão completa da
política como esperança. Quando dá “certo”, o resultado é uma Venezuela. Quantos intelectuais e clérigos não foram
seduzidos? Acabou. O tipo de esquerda defendida por petistas é coisa do passado. Hoje, com o advento da Internet
no espaço político, novas ideias e novas formas de fazer política estão surgindo. As mídias sociais mudaram a
percepção de como se faz política. Mudou não só o senso de espaço público, mas o de “tempo público”. São muitas
vozes falando ao mesmo tempo e de muitas ideias. No entanto, representam os velhos perigos numa nova roupagem.
A Internet fez emergir uma nova Babilônia. E, para lembrar Santo Agostinho, a tensão entre os dois amores ainda
sobrevive: “o amor de si até ao desprezo de Deus; e o amor de Deus até ao desprezo de si”. Esta é a tensão permanente
do homem, a crise duradoura.

- Onde o indivíduo e a sociedade devem colocar sua esperança?

RAZZO: Na família, nos amigos, na culinária, na cerveja artesanal, no futebol, no jazz, na religião; enfim, menos na
política.

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