Corpo Territorio Educacao Decolonial Repositorio
Corpo Territorio Educacao Decolonial Repositorio
Corpo Territorio Educacao Decolonial Repositorio
conselho editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo
E d u a rd o O. Mir a nda
proposições afro-brasileiras
na invenção da docência
ISBN 978-65-5630-030-6
CDD – 370.981
Editora filiada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br
[email protected]
Agradecimentos
De onde eu venho, o ato de agradecer precede qualquer ritual e
faz parte do corpo-território. Acreditamos que ninguém caminha
sozinho, que nenhuma encruzilhada é atravessada sem o comparti-
lhamento das energias vitais e ancestrais. Atravessamentos são cons-
truções de vários polos, de diversas intencionalidades, de anseios
coletivos, dos desejos comunitários. Portanto, abro os caminhos dos
agradecimentos debruçando-me aos pés de Exu para bater cabeça
e tornar públicas as saudações que cotidianamente fazem parte do
meu acordar e adormecer.
Exu, senhor dos caminhos e das possibilidades, muito obrigado
por mostrar ser possível ingressar no doutorado em Educação da
Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), percorrer os espaços da Faced e criar estratégias para falar
do meu povo. Meu pai Oxumaré, o que seria desta obra se não fosse
as trocas de peles oportunizadas por seus ensinamentos? Te agradeço
imensamente por tornar viável a desterritorialização do meu corpo-
-território, bem como o entendimento de que nada está acabado e que
a contestação social faz parte das nossas ações diárias. Já a rainha
Iansã, com seu poder de democracia, soprou ventos durante os quatro
anos da pesquisa de doutoramento, ao passo de fortalecer as minhas
intersubjetividades e traçar uma prática educativa que visa potencia-
lizar as vozes dos subalternos. Para além, agradeço a todas as ener-
gias da natureza que sempre emanam discernimentos para orientar
o meu Ori e me ajudam a compreender os caminhos que transito.
Ainda no campo da família, agradeço à mainha, Ana Suely Nunes
Oliveira, por acreditar nas minhas escolhas, por apoiar as minhas (in)
constâncias, por me ensinar muito do que a academia não consegue
compreender. Ser filho da senhora é ter a certeza de que indepen-
dente do contexto devo fazer o que sei de melhor, no meu caso: ser
um corpo-território-docente. A José Carneiro Miranda, painho, sou
extremamente grato por acreditar na educação dos seus filhos e inves-
tir com o seu suor para concretizar o sonho de ter um filho doutor.
Esse título acadêmico é nosso, mainha e painho. Às minhas irmãs,
Emanuella Miranda e Lorena Miranda, agradeço pelo universo me
permitir nascer e ser educado entre duas mulheres. Muito do que
sou, só foi possível por conta das experiências que tive com vocês na
infância, na adolescência e parte da fase adulta. À próxima geração,
dedico esta produção textual, me dirijo a Loren Thiely, nossa Tica,
a qual representa todos e todas que estão por vir. Deixo o legado da
educação para vocês.
Ao meu companheiro, Thiago Assunção, parabenizo por exercitar
a delicadeza de compreender o meu ritual de escrita. Obrigado por
me ensinar a ser menos acelerado e mais paciente. A sua chegada e
permanência contribuiu para o meu amadurecimento.
Sobre as amizades, agradeço à Hellen Mabel Santana Silva por ser
uma irmã ancestral, companheira, amiga-mãe, por confiar nas minhas
narrativas e contribuir para a construção do meu corpo-território mais
humanizado. Axé, minha irmã! Aos amigos, Flávio Menezes, Laerte
Miranda, Lázaro Damasceno, que bom ter vocês por perto, apesar
da distância geográfica. Morar em Salvador e deixá-los em Feira de
Santana apontou que quando a amizade faz sentido aprendemos a
conviver com a saudade e transformá-la em carnavais de rua.
Intensifico um sincero e respeitoso agradecimento à minha orien-
tadora Maria Cecília. Lembro-me de quando te olhei nos olhos, no
dia da entrevista, e te falei: já sei que serei o seu novo orientando.
O resultado da seleção confirmou a minha intuição, mas sobretudo,
ratificou que todo investimento em estudos, produções acadêmica e
afetos foram válidos para alcançar o projeto de ser um corpo-territó-
rio-docente com titulação de doutor em Educação. Ciça, ter a oportu-
nidade de ser seu orientando significa sentir de corpo todo o respeito
pelo lugar de fala dos subalternos. Reforcei com a sua postura que
compreender a nossa condição de privilégio racial deve ser utilizada
para escancarar as portas da universidade para as epistemologias
desumanizadas, neste caso, as produções do conhecimento afro-
-brasileira e indígena. Muita luz na sua caminhada. Estarei sempre
ao seu lado para multiplicar as possibilidades da educação corporal.
Aproveito para agradecer ao grupo de pesquisa História da Cultura
Corporal, Educação, Esporte, Lazer e Sociedade (HCEL) por oportu-
nizar discussões frutíferas na sistematização do meu conhecimento,
bem como por proporcionar conhecer e construir laços com o que-
rido Alex Marques e a querida Maiara Damasceno.
À UFBA, principalmente à Faced, sou grato por conhecer pessoas
dedicadas à educação. Ter a experiência de ser professor substituto
na Faced da UFBA transformou a minha perspectiva de formação
docente. Agradeço a cada educando que juntamente comigo cons-
truiu as aulas. Em especial, destaco as mulheres, negras, compro-
metidas com a educação, Quécia Damascena e Sara Santana, ambas
foram minhas alunas e, ao longo da jornada, construímos uma ami-
zade respeitosa, ancestral e com muita afetividade. Obrigado por
tudo, pretas! Ainda sobre a Faced da UFBA, agradeço a cada funcio-
nário técnico e administrativo que por todos os anos me receberam
com muito carinho e atenção.
Em relação aos copesquisadores do Atiba-Geo, agradeço com
muita alegria. Muito obrigado, Crislane Rosa, Valdir Plácido, Celso
Petitinga e Ronaldo Brito. A tessitura desta obra só foi possível por
conta do comprometimento de vocês em criar as narrativas dos nos-
sos encontros.
Aos membros da banca examinadora da tese que originou este
livro, inicio agradecendo ao professor Luis Vitor Castro Jr., o edu-
cador responsável por me apresentar os caminhos da pós-gradua-
ção, que me orientou na tessitura da dissertação de mestrado. Vitão,
grato por ter você na minha travessia acadêmica. Com você, aprendi
a exercitar a sistematização da escrita e da fala. Aproveito para agra-
decer por ter me apresentado o corpo como uma categoria de produ-
ção científica e experiencial. Também sou grato ao grupo de pesquisa
Artes do Corpo da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS),
coordenado por Luis Vitor, por ser a minha casa originária de pen-
sar, existir e criar o fazer acadêmico.
Ainda sobre os membros da banca, agradeço à Simone Santos por
incentivar, em 2012, a minha caminhada pela pós-graduação. Os seus
conselhos e escuta sensível fizeram diferença em um momento que
estava tão desacreditado da educação. Obrigado com muita sinceri-
dade. À professora Shara Adad, sou grato, inicialmente, à sociopoé-
tica, por inusitadamente me conduzir aos seus textos. Fui seduzido
por sua escrita, por suas pesquisas e logo em seguida tive o prazer de
te conhecer pessoalmente e confirmar quão generosa és a sua pes-
soa. A sua amizade e respeito ao meu processo de escrita reverberam
em toda a minha escrita. Ao professor Roberto Macedo, o conheci em
um dos componentes curriculares obrigatórios do doutoramento.
Ainda estava tentando ocupar o meu espaço na Faced da UFBA e as
suas aulas se constituíram como uma territorialidade de conforto
para o meu corpo-território. Muito grato pelo seu olhar, escuta e ora-
lidade sensível às demandas de muitos educandes da pós-graduação.
À minha querida Ivy Guedes, que bom ter a oportunidade de ser de
uma geração que te tem como referência. A sua narrativa crespa dia-
loga profundamente com a perspectiva de mundo que nutre o meu
corpo-território-docente. Educar de corpo todo é possível com “um
abraço negro, um sorriso negro” e isso aprendo com você e todas as
outras mulheres que te veem como propulsora do legado afroestético.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), por financiar a minha pesquisa. Apesar das dificul-
dades, torço para que os meus que estão por vir tenham a oportuni-
dade de produzir cientificamente e academicamente com o auxílio
dessa agência federal. A transformação social pela pesquisa só é
possível com o investimento em investigações que traga as narra-
tivas subalternas como campo, corpo, oralidade e socializadora do
conhecimento. Aprendemos com os nossos ancestrais que resistir
é subjetividade latente no corpo-território-oprimido. E como fruto
desse projeto, nasce na UEFS o grupo de pesquisa Corpo-território
Decolonial, o qual se consolida como um coletivo de pesquisadoras
e pesquisadores que voltam as suas inquitações de corpo-território
como postulados de investigações insurgentes.
Axé!
sumário
Prefácio 13
capítulo 1
pele i • aprender a transgredir para trocar de pele 37
capítulo 2
pele ii • rachaduras decoloniais 65
capítulo 3
pele iii • travessias do atiba-geo 79
capítulo 4
pele iv • documentos oficiais e discussão
sobre currículo e a lei nº 10.639/03 123
capítulo 5
pele v • barreiras na implementação
da lei nº 10.639/03 131
capítulo 6
pele vi • contra-análise 157
capítulo 7
pele vii • caminhos e possibilidades:
pela não obrigatoriedade da conclusão 191
Referências 197
Prefácio
1
LARA, A. Encruzilhada. In: LARA, A. Poemas. 4. ed. Porto: Vertente, 1984. p. 47.
2
LARA, A. Encruzilhada. In: LARA, A. Poemas. 4. ed. Porto: Vertente, 1984. p. 47.
13
Essas me impulsionam a um palpável e infinito patrimônio de
conhecimentos, matrizes e epistemes pouco conhecidas no espaço
escolar, embora presentes no cotidiano das cidades, dos territórios
do interior e das capitais brasileiras. E, na escala da humanidade,
da história e cultura africana e afro-brasileira. Necessário, portanto,
narrar a importância de uma educação dos corpos-territórios afro-
-brasileiros na formação docente. E foi assim que nos encontramos,
pelas escolhas, em meio a caminhos, em diálogos corporais (atuais/
ancestrais) para desnudar outras histórias. Trajetórias.
Desnudar esse provocado por uma investigação interessada e com-
prometida de Eduardo Oliveira Miranda, o belo, de olhos que brilham
e sorriso que anuncia a vontade de uma travessia emancipatória e
decolonial pela vida, nos transporta para uma viagem prazerosa pelos
caminhos da educação, recheado de histórias ainda invisibilizadas
de nosso povo negro, das criações imagéticas oportunizadas pelo ins-
tigar dos desenhos e pelo desabrochar das memórias escondidas de
cada um numa perspectiva de inventar a docência para uma nova e
outra forma de educar.
O convite para a escrita deste texto de abertura do livro Corpo-
-território e educação decolonial: proposições afro-brasileiras na inven-
ção da docência, fruto de seu estudo doutoral, foi recebido com uma
alegria extraordinária. Sobretudo pelas relações oportunizadas no
período em que as trocas entre o rigor da academia e a sabedoria do
saber ancestral do lugar de pertencimento, do corpo-território de Edu
e dos territórios corporais que participaram de uma práxis investi-
gativa e educacional anunciadores.
Convite fruto dos sonhos, batalhas e trincheiras pela preserva-
ção de sonhos utópicos vividos e compartilhados na e pela atuação
docente na universidade pública e, especialmente, pelas conexões
conceituais, poéticas, corporais, explicitadas nas sincronias e encru-
zilhadas deste encontro e transmutadas em rimas e métricas de uma
história e cultura singular e fundadora do povo brasileiro e descon-
siderada pelo conhecimento escolar.
14
Assim, anunciar um pouco sobre esta potente publicação que você
se depara e tem em mãos, que reune os caminhos e encruzilhadas
da pesquisa desenvolvida em seu estudo doutoral, mas entrelaçado
com estudos e investigações anteriores, desde as suas inquietações
da graduação, ou antes dela, sugere mais algumas linhas e entreli-
nhas que, mesmo tortuosas como o andar de uma serpente, se tor-
nam fundamentais.
Para Freire,3 educar é uma experiência eminentemente humana
e, como tal, “a educação é uma forma de intervenção no mundo.
Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal
ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução
da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento”. Algo bem
maior que instruir para adquirir conteúdos.
Para esse autor, educar implica a assunção da dimensão cultural
no processo de transformação social, enraizada na cultura dos povos.
Uma atividade que necessita da interação da educadora/educador e
de uma decisão, uma escolha. Ou continuar a seguir o que as classes
que detêm a hegemonia da sociedade definem como conhecimento
a ser tratado na escola – numa lógica colonizadora –, ou decidir por
seguir outro caminho e desmascarar a situação de dominação e sub-
jugação de parte da população, seus corpos, suas histórias, memó-
rias e culturas, no sentido da emancipação humana e social. Educar
seria, assim, um ato eminentemente político.
Com essa prerrogativa, apreende-se que considerar o patrimônio
imaterial dos afro-brasileiros significa ampliar a história e cultura de
nosso povo. E Eduardo propõe esse caminhar pelo corpo-território.
Raros são os termos que possuem um poder de evocação forte como
estes dois: “corpo” e “território”. E, quando combinados, podem nos
colocar atentos e fortes, sem tempo de temer a imposição colonial e
colonizadora empreendida pelos europeus, desde a invasão do ter-
ritório latino-americano e brasileiro.
3
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários para a prática educativa.
35. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 98.
15
A partir de então, foi forjada em nosso corpo-território uma história
que confere mais oportunidade a uns e menos oportunidade a outros.
Fundamental a educação olhar e trabalhar com a diversidade de his-
tórias, culturas e corpos presentes. Importante a educação se deter
em corpos-territórios afro-brasileiros e seu saber ancestral. E de se
colocar no lugar da escuta de outras histórias, de múltiplas memórias.
Necessário, igualmente, matar o opressor dentro de nós. Não é
novidade que encruzilhada é o lugar em que as estradas se cruzam
e, por analogia, pode ser considerado um local central, que nos leva
a uma pausa, que nos exige reflexão e rupturas, para não ficarmos
como no poema de Lara,4 sós em alguma encruzilhada.
Nos exige decisões que, muitas vezes, nos jogam para fora da
estrada, nos tiram da zona de conforto, nos levam a outros rumos.
Nesse caso, significa seguir outro rumo, conhecer a nossa história,
saber sobre a nossa realidade e a do outro, respeitar. Compreender
as lógicas coletivas e individuais entrecruzadas e interrelacionadas
por culturas outras.
Fundamental o exercício da invenção da docência que promova
uma reflexão situada de nossa realidade e dos seus problemas, que
permita a compreensão da diversidade humana, que desmascare
para poder extinguir discriminações raciais e étnicas presentes em
nosso território, que respeite e considere a riqueza da cultura do
povo preto, do povo indígena e de todos os demais que nos consti-
tuíram como nação.
As narrativas que denunciam ao tempo em que nos oportunizam
conhecer a origem social das desigualdades para saber as origens
4
LARA, A. Encruzilhada. In: LARA, A. Poemas. 4. ed. Porto: Vertente, 1984. p. 48.
16
de uma história de exclusão e discriminação dos afro-brasileiros
em nosso país. Uma narrativa fundada no discurso médico desde o
século XIX no Brasil, em que a intelectualidade, baseada nos prin-
cípios produzidos por Comte, em que se justificaria o autoritarismo
“pelas qualidades intelectuais dos seus promotores em que a biolo-
gia, sob a forma de racismo, assumia importância para uma ideo-
logia burguesa teoricamente igualitária, pois deslocava a culpa das
evidentes desigualdades humanas da sociedade para a natureza”.5
Do conceito de “corpo-território” às histórias de cada um. Conhe-
cer-se. Conhecer o outro. Reconstruir histórias, entrecruzar caminhos,
permanecer nas encruzilhadas para alargar e romper fronteiras que
limitam. Esse é o desafio do humanizar-se. E, nesta obra, há a pes-
quisa sobre uma das possibilidades de promover uma educação deco-
lonial que promova a possibilidade de abrir-se ao novo e seguir um
novo rumo, ao invés de se perder em alguma encruzilhada.6
Desejo que não nos percamos, que possamos seguir juntos por
novos caminhos, pelos trajetos abertos da história de nosso povo
afro-brasileiro, por seu corpo-território. Para tal, desejo que este livro
possa circular em redes de pessoas interessadas e promover a circu-
laridade de possíveis invenções de docência a partir das provocações
dele derivadas. Mas, igualmente, que percorra outros territórios cor-
porais, outras vizinhanças profissionais, outros caminhos circula-
res até que não se saiba onde se iniciou e onde termina a vontade de
inventar docências e provocar uma nova educação.
Quando se trata do alargamento do conceito de corpo-território, há
um desejo implícito de alteração da compreensão do ser humano, em
5
SILVA, M. C. P. Do corpo objeto ao sujeito histórico: perspectivas do corpo na his-
tória da educação brasileira. Salvador: Edufba, 2009. p. 247.
6
LARA, A. Encruzilhada. In: LARA, A. Poemas. 4. ed. Porto: Vertente, 1984. p. 48.
17
grande parte influenciada por sensíveis avanços na área das huma-
nidades, da antropologia, da sociologia, da educação. A ideia de uma
educação com base na lógica do desenvolvimento de habilidades e
memorização de conteúdos avança para outro lugar, o do crescimento
e disseminação da ideia de uma educação cultural.
Abordar a educação a partir da perspectiva da cultura oportuniza
a constatação de uma polissemia, um convite e um desafio investi-
gativo. Isso porque, ao considerar a perspectiva decolonial, é neces-
sário buscar as brechas e trabalhar nas fronteiras, considerar as lutas
de resistência como lutas políticas e abarcar práticas, ações, deci-
sões educacionais.
Para Fanon,7 a reorganização da sociedade pós-colonial é neces-
sária, pois o mundo colonizado significa um mundo cindido. As
possíveis alterações sugerem a explicitação dos conflitos, subjuga-
ções, disputas políticas. Este trabalho ora apresentado se inscreve
nessa arena de apresentar essas possibilidades, descortinar confli-
tos, apresentar caminhos que contribuam para um novo caminhar.
Certamente não com o horizonte de fechar os significados, ou de
esgotar o conhecimento.
Mas, no sentido de permitir estabelecer outras possibilidades e
construir conhecimentos a partir de outra perspectiva epistemoló-
gica que enseja a relevância do debate sobre o patrimônio imaterial
cultural da população afro-brasileira, bem como a sua valorização e
acima de tudo, apropriação.
A educação de corpos e culturas, de forma hegemônica, ancora-
se a valores definidos pela cultura europeia. A perspectiva aqui apre-
sentada vincula-se a valores históricos centrados na historiografia da
população afro-brasileira. Lara8 nos leva a balançar por entre mar-
cas e resistência, em seu poema “Presença Africana”:
E apesar de tudo,
ainda sou eu mesma!
7
FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
8
LARA, A. Presença africana. In: LARA, A. Poemas. 4. ed. Porto: Vertente, 1984. p. 57.
18
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sangrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto [...]
19
Mais precisamente, um caminho que oportunizou narrativas
diversas e promoveu, por consequência, o fortalecimento de micror-
resistências pela educação, pela invenção da docência. O acervo
documentado não poderia ser outro, senão, o mais diverso possível.
O encontro com essa proposta nos leva a uma importante refle-
xão acadêmica com as contradições e cicatrizes do corpo-território
afro-brasileiro e do histórico processo que forjou a formação dessa
população, após mais de um século de economia escravista e após a
abolição da escravatura no Brasil.
É necessário exigir diálogo e escuta no campo da educação em uma
perspectiva decolonial. Alegra-me, portanto, passear pelas páginas
deste livro e encontrar uma valiosa colaboração para a defesa de um
olhar acurado que nos leva a visitar corpos-territórios afro-brasilei-
ros por muito tempo esquecidos pela educação formal.
Desejamos que este documento siga na dinâmica de ampliar os
espaços do pertencimento dos corpos-territórios no ensino supe-
rior e na sociedade. E, quiçá, possa figurar como central, visto a
emergência de se eliminar o racismo que impera na sociedade até o
tempo presente.
Necessário compreender o espaço educacional como propício para
o debate, conscientização e enfrentamento dos desafios relativos ao
campo da formação de uma docência compromissada com as propo-
sições ligadas à valorização e consideração das culturas subalterni-
zadas pela lógica hegemônica. Para tal, a expectativa recai na arena
da docência e da sua necessária (re)invenção.
Importa inventar uma docência que possibilite tornar visível his-
tórias e culturas afro-brasileiras invisibilizadas por ideologias hege-
mônicas para tencioná-la, ressignificá-la. Torna-se também relevante
a recuperação de memórias coletivas da população afro-brasileira e
a construção dessas identidades, os corpos-territórios traduzidos
pelo processo cultural.
Tais sentidos, enunciados nessa investigação, visam desestabili-
zar discursos naturalizados acerca da história e cultura brasileira e
conceber esse campo como aberto e constantemente atravessado por
20
relações de saber-poder da população afro-brasileira, quase sempre,
senão sempre, assimétrica.
As alternativas, portanto, não estão prontas, acabadas e incorpo-
radas como soluções mágicas e repentinas aos desafios educacionais.
Precisam ser inventados. Nesse sentido, pesquisas na área educacio-
nal se tornam imprescindíveis.
Fanon9 sugere que esse processo é imprescindível se quisermos
“que a humanidade avance um furo, se queremos levar a humani-
dade a um nível diferente daquele onde a Europa a expôs, temos de
inventar, temos de descobrir”.
Dessa maneira, ao convidá-l@s a um passeio por linhas e entreli-
nhas traçadas nas encruzilhadas e paradoxos entre a vida e a escola,
o que se deseja é apresentar um desenho de uma docência inven-
tada e ampliada coletivamente pelo grupo envolvido e, obviamente,
impulsionar inúmeros diálogos e reflexões a esse respeito. No tempo
presente, Silva10 nos alerta que
9
FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
p. 275.
10
SILVA, M. C. P. Do corpo objeto ao sujeito histórico: perspectivas do corpo na his-
tória da educação brasileira. 2. ed. Salvador: Edufba, 2020. p. 15.
21
educação articulada com o corpo-território situado. Um corpo enchar-
cado pela “Presença Africana”, Lara11
Baía de São Salvador, inverno de um ano que mal começou e que nos
invade, corpo inteiro, pela emoção pandêmica: a sanitária (Covid-19) e a
social (racismo), 2020.
11
LARA, A. Encruzilhada. In: LARA, A. Poemas. 4. ed. Porto: Vertente, 1984. p. 58.
12
FREIRE, P. Professora sim, tia não. São Paulo: Ed. Olho d’Água, 1997. p. 8.
22
Para inventar
o corpo-território
O negro do Pomba quando sai da Rua Nova,
ele traz na cinta uma cobra coral.13
13
Música consagrada pelo Afoxé Pomba de Malê.
14
Sobre “energia vital”, a pesquisadora Azoilda Loretto da Trindade (2010, p. 14) nos
diz: “A energia vital é circular e se materializa nos corpos, não só nos humanos,
mas nos seres vivos em geral, nos reinos animal, vegetal e mineral. ‘Na Natureza
nada se cria, tudo se transforma’, ‘Tudo muda o tempo todo no mundo’, ‘[...] essa
metamorfose ambulante’”.
O afoxé é entendido como a festa de terreiro na rua, fala reproduzida por uma das
15
16
O homem moderno, entretanto, tende a negligenciar o sentido do olfato. Seu meio
ambiente ideal pareceria requerer a eliminação de “cheiros” de qualquer tipo.
A palavra “odor” quase sempre significa mal cheiro. Essa tendência é lamentável,
pois o nariz humano, de fato, é um·órgão incrivelmente eficiente para farejar infor-
mações. Com a prática, uma pessoa pode classificar o mundo em categorias odo-
ríficas, tais como aliáceo, ambrosíaco, hortelã-pimenta, aromático, etéreo, podre,
perfumado, caprino ou nauseante. (TUAN, 2012, p. 27)
26 Corpo-território & Educação Decolonial
da audição17 e do tato.18 Exercitar esses sentidos é permitir ao corpo-
-território viver/existir a partir de sua própria experiência e não se
reduzir a viver pela linguagem e experimento do outro. Ou seja, olhar o
mundo, exclusivamente, pelas narrativas do outro pode se tornar pro-
blemático, já que o nosso corpo-território recai na leitura embaçada e
colonial sobre os elementos que compõem as suas espacialidades, em
que muito se perde, detalhes são minimizados, particularidades são
homogeneizadas. O corpo-território precisa experimentar o mundo
com leituras próprias, para sentir a energia vital presente no encon-
tro com o outro, “é fundamental viver a própria existência como algo
de unitário e verdadeiro, mas também como um paradoxo: obede-
cer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro. Então a exis-
tência é produtora de sua própria pedagogia”. (SANTOS, 2006, p. 57)
Comecei a perceber que o olho vê o mundo, mas é o corpo-territó-
rio que olha o mundo, que sente o outro, que se atravessa das expe-
riências, que rasura as nossas certezas, fervilha a nossa imaginação.
Então, vivendo dentro do Afoxé Pomba de Malê, senti a necessidade
de intentar compreender o significado da cobra coral, não pelo ver,
mas pelo olhar, nos toques do tato, com os cheiros que chegam ao
olfato, com os sabores provocativos do paladar. Para tal, mergulhei,
e ainda o faço, nas cosmovisões dos povos Yorubás19 para os quais a
cobra simboliza o orixá Oxumaré, originário do Daomé, atual Mali,
que atendia pelo nome de Dan. Após descobrir que a serpente pom-
balense é uma forma de homenagear Oxumaré, recorri aos membros
ambiente, do que os ouvidos, mas geralmente somos mais sensibilizados pelo que
ouvimos do que pelo vemos. (TUAN, 2012)
18
“Tato, o sentido háptico, de fato fornece aos seres humanos uma grande quanti-
dade de informações sobre o mundo. O tato é a experiência direta da resistência,
a experiência direta do mundo como um sistema de resistências e de pressões que
nos persuadem da existência de uma realidade independente de nossa imagina-
ção”. (TUAN, 2012, p. 24)
19
“IORUBÁ – sudaneses, povos que habitam a região da África Ocidental, predomi-
nante no território da Nigéria. Região que se estende de Lagos para o norte até o
rio Niger, de Daomei para leste até Benim, tem como capital religiosa Ifé e polí-
tica Oyó, espaço mitológico de criação da humanidade, língua maneira de falar
de um povo da África ocidental”. (SOARES, 2008, p. 179)
28 Corpo-território & Educação Decolonial
comunidades e realização de seus destinos”. (OLIVEIRA, 2007, p. 100)
Nesse viés, Oxumaré é o patrono dos contrastes existentes entre os
grupos humanos. Contrastar remete imediatamente ao arco-íris, outro
elemento emblemático de Oxumaré, composto por sete cores distin-
tas, cada uma com a sua relevância, com tons diferentes e provocati-
vas de sentimentos dispares em cada olhar. A policromia existente no
arco-íris, que tanto encanta e faz parte da mitologia de muitas civi-
lizações, abarca um efeito rizoma20 (DELEUZE; GUATTARI, 1995), é
o resultado da soma e integralidade das diferenças, que não devem
ser hierarquizadas ou comparadas, visto que cada uma com suas
intensidades realimentam o mosaico multicolorido que liga o céu à
terra: Òrun e o Àiyé.21
É justamente a dialética ancestral da continuidade, com ênfase
nos contrastes, que deve permear o forjar do corpo-território de qual-
quer ser humano. Acrescer nas suas intersubjetividades as possibi-
lidades de aprender e atualizar os conhecimentos ao longo das suas
caminhadas, posto que a imutabilidade do ser humano não faz parte
do viver. Ademais, expor uma serpente cíclica com canais de aber-
turas entre o interno e o externo é emblemático para comunicar que
as trocas devem acontecer das mais variadas esferas, o que significa
reforçar as alteridades, contemplar a infinidade das encruzilhadas,
ou como pontua Galeffi (2001, p. 315):
20
“[...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve
sê-lo. E muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A
árvore linguística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede
por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente
a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a
modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas,
etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também
estatutos de estados de coisas”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15)
“O àiyè é o universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habi-
21
30 Corpo-território & Educação Decolonial
longe. Todos queriam aproximar-se de Oxumarê,
mulheres e homens, todos queriam seduzi-lo
e com ele se casar. Mas Oxumarê era também
muito contido e solitário, preferia andar sozi-
nho pela abóbada celeste, onde todos costu-
mavam vê-lo em dia de chuva. Certa vez Xangô
viu Oxumarê passar, com todas as cores de seu
traje e todo brilho de seus metais, Xangô conhe-
cia a fama de Oxumare de não deixar ninguém
dele se aproximar, preparou então uma arma-
dilha para capturar o Arco-Íris. Mandou cha-
má-lo para uma audiência em seu palácio e,
quando Oxumarê entrou na sala do trono, os
soldados de Xangô fecharam as portas e jane-
las, aprisionando Oxumarê junto com Xangô.
Oxumarê ficou desesperado e tentou fugir, mas
todas as saídas estavam trancadas pelo lado de
fora. Xangô tentava tomar Oxumarê nos braços
e Oxumarê escapava, correndo de um canto para
outro. Não vendo como se livrar, Oxumarê pediu
ajuda a Olorum e Olorum ouviu sua súplica. No
momento em que Xangô imobilizava Oxumarê,
ele foi transformado numa cobra, que Xangô
largou com nojo e medo. A cobra deslizou pelo
chão em movimentos rápidos e sinuosos. Havia
uma pequena fresta entre a porta e o chão da sala
e foi por ali que escapou Oxumarê.22 (PRANDI,
2001, p. 226)
22
Extraído do mito “Oxumaré transforma-se em cobra para escapar de Xangô”.
23
Gilles Deleuze, em entrevista em vídeo.
24
“O conceito de interculturalidade é central à (re)construção de um pensamento
crítico – outro – um pensamento crítico de/desde outro modo, precisamente por
três razões principais: primeiro porque está vivido e pensado desde a experiência
vivida da colonialidade [...]; segundo, porque reflete um pensamento não baseado
nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua ori-
gem no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que
tem tido seu centro no norte global”. (WALSH, 2005, p. 25)
32 Corpo-território & Educação Decolonial
seria a arte da inservidão voluntária, algo de indocilidade refletida”.
(FOUCAULT, 1990, p. 38-39)
Então, quando a estrofe diz que “o negro do Pomba quando sai
da Rua Nova” está chamando atenção para o corpo-território que
sai da sua espacialidade comunitária, na qual os seus trânsitos cos-
tumam ser mais espontâneos e livres, visto que estão entre os seus
pares, circulam e experienciam os lugares e as territorialidades com
os seus semelhantes, o que não anula as possibilidades de conflitos.
Ao sair da sua localidade e transitar pelas vias da cidade, o corpo-ter-
ritório assume outras leituras e se depara com a variedade de atra-
vessamentos sociais. Portanto, trazer “na cinta uma cobra coral” se
configura como uma forma de posicionamento e negociação cultural
às adversidades dos encontros. A serpente fortalece os pombalenses,
homens e mulheres negros e negras, a tentar legitimar o seu direito
à cidade, à cidadania, à democracia por completo. Trazer “na cinta
a cobra coral” me ensinou que outros marcadores sociais que estão
atrelados ao meu corpo-território também precisam ser problemati-
zados, inseridos ou não no processo de autoafirmação, se fortalecer,
ocupar os espaços, resistir e promover a libertação dos outros sujei-
tos que por diversas situações são ceifados dos seus direitos huma-
nos. Nesse quesito, Candau (2008) e Santos (2006) pontuam que os
direitos humanos precisam ser repensados e reconceitualizados com
as demandas atuais que articulem o direito a diferença étnica e cul-
tural, mas atrelada à igualdade das políticas públicas.
Destarte, o corpo-território na formação docente, que venho arti-
culando na minha escrita e na minha prática diária, busca aplicar os
ensinamentos da dialética ancestral de continuidade da epistemolo-
gia de Oxumaré, em que o sujeito precisa perceber que o seu “corpo é
lugar-zero do campo perceptivo, é um limite a partir do qual se define
um outro, seja coisa ou pessoa. O corpo serve-nos de bússola, meio de
orientação com referência aos outros”. (SODRÉ, 2003, p. 135) A concep-
ção da perspectiva do corpo-território elucida um pensar que provo-
que a perspectiva educacional que reafirma as territorialidades como
algo fixo e imutável. Se as nossas corporeidades performatizam pelas
34 Corpo-território & Educação Decolonial
do Afoxé Pomba de Malê, pois todas as vezes que preciso ressigni-
ficar o meu corpo-território, trocar de pele, para acentuar a postura
contra-hegemônica, lembro-me que “O negro do Pomba quando sai
da Rua Nova, ele traz na cinta uma cobra coral”.
pele i
Aprender a
transgredir para
trocar de pele
Geobiografar o corpo-território
que se torna educador
40 Corpo-território & Educação Decolonial
educadores. A educação para a democracia e para a emancipação
acontece com desafios às normas impostas pelo sistema. Confrontar
e questionar as imposições são práticas habituais do corpo-territó-
rio que é estimulado a utilizar o senso crítico para compreender de
que forma as ações hierarquizadas rebatem na sua leitura de mundo.
Caso contrário, as nossas escolas continuarão:
42 Corpo-território & Educação Decolonial
sendo assim, rico em geobiografias. A partir disso, as construções a
seguir buscam compor as narrativas formativas do meu corpo-terri-
tório e como as minhas itinerâncias elucidam as transformações das
minhas intersubjetividades.
Contudo, tento acessar às lembranças da passagem pela educa-
ção básica e aparecem momentos a partir do fundamental II, no qual
cursei até o oitavo ano em escola pública, no município de Feira de
Santana, Bahia. É muito latente como a educação que tive acesso, no
referido período, reforçava a transmissão de valores e informações
com a perspectiva de alunos desprovidos de experiências e sem pos-
sibilidades para contribuir com as propostas dos professores. A con-
cepção bancária elucidada por Paulo Freire (1968) ilustra, evidencia e
explica o contexto pelo qual passei. Ainda nesse cenário, a forma de
pensar e articular o corpo dos discentes também perpassavam pelo
ato de educar, para os quais, pelo menos os que consigo lembrar, dire-
cionava verbalmente ou com condutas não verbais o que poderia um
corpo masculino e o que cabia ao corpo feminino.
44 Corpo-território & Educação Decolonial
padronizante é desgastante, requer vigília constante acerca de como
se expressar. Toda essa mecânica artificial afasta da espontaneidade
humana e obriga o corpo-território a viver protagonizando uma per-
formance social incoerente com o real da espiritualidade. Suponho
que para um homem e uma mulher heterossexual, que neste exato
momento faz a leitura deste texto, é algo muito distante compreen-
der como um corpo gay, antes da sua autoaceitação por completo, se
sente angustiado em saber que diariamente vai sair de casa em dire-
ção à escola e com a certeza de que será mais um dia na tentativa de
se encaixar na heteronormatividade e com isso driblar as prováveis/
existentes agressões físicas e verbais.
Portanto, geobiografar a minha passagem pela educação básica e,
agora, adentrando na graduação é de suma relevância para entender-
mos como a educação formal contribuiu massivamente na constru-
ção de um corpo-território que sentia medo de falar, tirar dúvidas,
expor experiências, demonstrar afetividades, se apaixonar e vivê-la
plenamente. Resultou em silêncios, desgosto pelo espaço escolar,
desânimo e medo de participar das tentativas comunitárias no chão
da escola, afastamento do coletivo e, por conseguinte, criticidade
aquém do esperado.
O cenário evidenciado até agora começou a ser remodelado na gra-
duação, mas não por contribuição dos componentes obrigatórios da
licenciatura em Geografia. Muito pelo contrário, a matriz curricular
do período que estive na graduação não abarcava discussões que nos
motivassem a repensar a criticidade a partir dos marcadores sociais
evidentes em nossos corpos-territórios, no máximo, atrelavam-se as
problemáticas sociais às lutas de classes e todos os outros campos
deveriam ser inseridos na abordagem maior: marxista. O repensar
a partir do que afeta o meu próprio corpo só teve início com as pro-
vocações encontradas em uma gama de componentes curriculares
cursados em outros departamentos, entre eles: Psicologia social;
Educação e diversidade cultural; História da África etc.
Nessas descobertas, o olhar sobre o mundo passou a ser modifi-
cado, visto que a mudança começou a ser sentida de dentro para fora,
46 Corpo-território & Educação Decolonial
ser ouvido. [...], qualquer pessoa, qualquer ser humano deve fazer
essas coisas para poder ser feliz”.26 (PRETTO; SERPA, 2002, p. 29)
Os ensinamentos de Mãe Stella provocam, aos educadores da peda-
gogia libertadora, a necessidade de compartilhar com os demais as
possibilidades emancipatórias e ao mesmo tempo compreender que
ao se permitir ouvir o outro também se faz aprendente, também se faz
ativo na efetivação crítica da corporeidade do outro e do seu próprio
corpo-território. Nessa perspectiva, de ir na contramão da objetivi-
dade racional, tive mais uma surpresa durante o meu fazer pedagó-
gico no ensino superior, no qual, após discussões exaustivas sobre
as epistemologias do sul, cunhada por Boaventura de Souza Santos
(2002), e na tentativa de trazer o texto para a vida dos graduandos,
uma educanda nos brindou com o cordel “5 Modos da não existên-
cia”27 da cordelista e pedagoga Avaneide Rocha (2017, grifo do autor):
Monocultura do saber
Que saber, mais rigoroso
Esse modo do saber
Ele é muito poderoso!
Acredita que tudo pode,
Chega a ser vergonhoso!
26
Entrevista de Mãe Stella, no compilado presente no livro Expressões de sabedoria.
Título baseado na obra de Santos “Para uma sociologia das ausências e uma socio-
27
E a monocultura linear,
Alguém já ouviu falar?
Para onde ela nos leva?
Que direção vai nos dá?
Não se iluda companheiro
Essa também vai se achar!
Cultura única é a ideia,
No seu linear sem sentido.
Vai lineando, formulando
A terceira é cruel
Classificação social
Se tú é negro ou é pobre
Isso é mais que natural!
Se acostume que aqui
Quem manda é o capital
48 Corpo-território & Educação Decolonial
A última não existência
É a lógica produtivista.
Você produz, e eu lucro,
Essa não pode perder de vista!
Usa a mão do ser humano
Para atingir suas conquistas.
50 Corpo-território & Educação Decolonial
existir sem a repressão ao corpo. Para que um
homem se torne uma função do sistema ele
tem de reprimir todos os ritmos naturais de seu
corpo e começar a operar no ritmo estabelecido
pelo próprio sistema. O jogo e a eficiência não
caminham juntos. Enquanto você olha o reló-
gio, enquanto corre para tomar um ônibus ou o
metrô, entra na fábrica ou no asséptico mundo
da burocracia, todas as coisas repetem o mesmo
refrão: ‘o corpo deve ser vencido’. (ALVES, 1987,
p. 157, grifo do autor)
52 Corpo-território & Educação Decolonial
Estratégia crítica:
o corpo-território que verifica as ausências
e emergências na formação docente
“Cultura é o modelo de relacionamento humano com seu real. Este ‘real’ não deve
28
54 Corpo-território & Educação Decolonial
Ter o mito como um intercessor é pujante para interpretar o mundo
que vivemos. O olhar interpretativo de uma história ancestral parte
muito do que cada corpo-território traz de afetação. Quero destacar
que a minha compreensão dos mitos afro-brasileiros parte da ten-
tativa em deslegitimar o epistemicídio étnico-racial.31 (CARNEIRO,
2005) Para tal, provocado pela sociologia das ausências e das emer-
gências (SANTOS, 2002), verifiquei no mito supracitado como as rela-
ções entre o rei Xangô e o súdito Oxumaré é talhada justamente por
ambas conceituações sociológicas.
Diante do exposto, a sociologia das ausências se configura em
“transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles
transformar as ausências em presenças”. (SANTOS, 2002, p. 22) Já
a sociologia das emergências se preocupa em substituir “o vazio
do futuro segundo o tempo linear por um futuro de possibilida-
des plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que
se vão construindo no presente através das atividades de cuidado”.
(SANTOS, 2002, p. 46)
Perante tais discussões, evidencio que tenho buscado forjar o meu
corpo-território com o olhar estratégico para identificar as ausên-
cias e as emergências nas espacialidades que transito, sobretudo no
que tange à minha prática profissional: formação docente. A con-
ceituação filosófica de Oxumaré traz a estratégia da serpente como
o dispositivo de paciência e ao mesmo tempo agitação, a dualidade,
etapas indispensáveis para bagunçar as determinações coloniais.
Nesse processo, “sempre se está no meio do caminho, no meio de
alguma coisa” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 38) e, na escrita desta
obra, encontro-me na linha formativa, tanto a minha própria forma-
ção docente, como a dos educandos que transitam pelos espaços for-
mativos que articulo formações.
Trecho retirado do artigo “Ser negro no Brasil hoje”, escrito por Milton Santos, geó-
32
56 Corpo-território & Educação Decolonial
os afro-brasileiros. Opressão forjada por padrões morais e culturais
pautados no referencial eurocêntrico de civilização.
Na tentativa de caminhar em paralelo ao modelo hegemônico de
cultura e educação, construí uma identidade docente com fortes
ligações advindas das minhas experiências na Associação Cultural
Movimento Negro Afoxé Pomba de Malê, movimento afro-brasi-
leiro situado no bairro da Rua Nova, maior territorialidade negra do
município de Feira de Santana, Bahia. Tal Afoxé evidencia-se como
espaço educativo não escolar responsável por me inquietar a com-
preender que a educação não está limitada a um espaço fixo, muito
pelo contrário, a educação faz parte das nossas corporeidades, das
nossas relações diárias, das interações articuladas cotidianamente.
Trazer, mais uma vez, o meu envolvimento com o referido Afoxé é
de suma importância visto que apresento um lócus que oportunizou
uma variedade de experiências que foram acrescidas ao saber cien-
tífico adquirido no processo de graduação, especializações e mes-
trado, assim como no doutoramento. Itinerâncias oportunas para
perceber na prática a relevância em pensar o ensino-aprendizagem
de Geografia, também, a partir da Lei n° 10.639/03. A pesquisa de
doutorado que proporcionou esta obra congrega uma série de pro-
posições, dentre elas contribuir com a intensificação e implemen-
tação da supracitada lei, ao defender a sua discussão no campo da
educação superior, sobretudo nos cursos de formação de professo-
res, onde comumente interpelo: por qual motivo a obrigatoriedade
da Lei n° 10.639/03 não abrange as Instituições de Ensino Superior
(IES) em sua totalidade curricular? É coerente exigir do educador do
nível básico o trabalho com uma discussão historicamente negligen-
ciada mesmo que a sua formação acadêmica não possibilita em com-
ponentes obrigatórios a mínima formação? Por quais motivos as IES
não abarcam componentes curriculares obrigatórios que contem-
ple a História e Cultura africana e afro-brasileira? O conhecimento
vivo e acumulado durante a inserção e passagem pelo Afoxé Pomba
de Malê repercutiu na constituição do meu ser/identidade docente.
Estabeleceu-se um processo de desconstrução de diversas ideologias
58 Corpo-território & Educação Decolonial
padrões com os quais constituímos nossos horizontes identitários,
ideais culturais de ser e bem estar no mundo”. (BORGES, 2015, p. 178)
Parte dessa ideologia que reforça os currículos escolares pautados
em epistemologias eurocêntricas tem sua fundamentação no Brasil
colônia, período que os negros, mesmo após a abolição da escrava-
tura, encontravam imensas dificuldades para ter acesso à educação
escolar, como nos apontam as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e
Cultura afro-brasileira e africana (BRASIL, 2004, p. 7):
60 Corpo-território & Educação Decolonial
Inclusão, respeitada a autonomia dos estabe-
lecimentos do Ensino Superior, nos conteúdos
de disciplinas e em atividades curriculares dos
cursos que ministra, de Educação das Relações
Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz
africana e/ou que dizem respeito à população
negra. Por exemplo: em Medicina, entre outras
questões, estudo da anemia falciforme, da pro-
blemática da pressão alta; em Matemática,
contribuições de raiz africana, identificadas e
descritas pela Etno-Matemática; em Filosofia,
estudo da filosofia tradicional africana e de con-
tribuições de filósofos africanos e afrodescen-
dentes da atualidade.
62 Corpo-território & Educação Decolonial
Para tal, propomos organizar os caminhos do livro intitulando os
capítulo de “Pele”. A escolha por essa terminologia se deve ao pro-
cesso de ressignificação do meu corpo-território, muito implicado
na tessitura desta pesquisa, o qual vai retirando camadas ao longo
das encruzilhadas formativas compreendidas com os olhos da filoso-
fia de Oxumaré. Além disso, o corpo-território dos copesquisadores
também é afetado pelas trocas das peles, em escalas distintas, alguns
com maior resistências, outros com desterritorialização mais facili-
tada. Então, no próximo movimento, “Pele II”, traremos a experiência
da minha travessia pelo Percurso – pesquisa + curso – em formação
sociopoética. Discutiremos a possibilidade da cartografia na pes-
quisa que se pretende acompanhar as ressignificações das corporei-
dades de todos os sujeitos envolvidos na produção dos confetos, pois
“[...] ao cartografar se produz uma espécie de desenho mutante que
só é possível mapear as transformações do mundo, as desterritoria-
lizações e reterritorializações que modelam a expressão dos afetos”.
(MARASCHIN; RANIERE, 2012, p. 42) Caminhando, colocamos no
círculo metodológico a sociopoética (GAUTHIER, 1999; ADAD, 2014)
como perspectiva responsável por compreender a total relevância
dos copesquisadores na produção dos dados, além de proporcionar
dispositivos para que a pesquisa ocorra de corpo todo. Associamos
a sociopoética às contribuições de Santos (2002) por perceber que
ambos intentam, com respaldo nas contribuições de Paulo Freire,
evidenciar as epistemologias dos grupos de resistências.
A “Pele III” é composta por três momentos interdependentes e
destaca a criação do Atiba-Geo, na qual oportunizamos a correla-
ção entre a teoria e as vivências, para, em seguida, compreender o
rebatimento desses diálogos na constituições do corpo-território dos
copesquisadores. Então, apresentamos a proposta da exunêutica do
desenho singular, intencionando evidenciar o dispositivo artístico-
-filosófico intitulado de Cartografia do desenho singular.
Na “Pele IV”, analisamos os documentos oficiais da licenciatura
em Geografia da Faced da UFBA a partir das ausências e emergên-
cias da Lei n° 10.639/03. Atrelado a isso, intencionamos evidenciar os
64 Corpo-território & Educação Decolonial
capítulo 2
pele ii
Rachaduras
decoloniais
Corpo meu
Tem deixado de ser
Por oras dono da razão
Não sei se ele ganha
Afirmo que ele perde?
Adormece ou anestesia-se?
Olha com as mãos
Cheira com os olhos
Degusta com as narinas
Compreende com o paladar
Dança com o corpo alheio
Se impõe, mas cede
Exige, mas entrega
Fala escutando
Escuta falando
Cartografa epistemes
E não temes se rachar
Se quebra para ampliar
O que sobrou?
Porquê devo te contar?
O mais gostoso é se despencar
(Racha e despenca)
68 Corpo-território & Educação Decolonial
corpo, já que vivi a experiência formativa intitulada Percurso (pes-
quisa + curso) de formação em sociopoética sob a medicação da pro-
fessora Shara Adad. Assumo o compromisso de expor neste livro a
referida atividade formativa por compreender que se faz de extrema
urgência a socialização dos princípios da sociopoética, bem como de
que forma as experiências por mim vividas atravessaram as minhas
corporeidades e possibilitaram a criação de outras perspectivas de
vida e atuação profissional.
A aproximação com a sociopoética se deu pela leitura do livro
Tudo que não inventamos é falso, no qual fui apresentado a uma
série de artigos com relatos da aplicabilidade desse recurso filosó-
fico e prático que teve bases fundadoras nas pesquisas do professor
Jaques Gauthier.
Após a leitura de algumas páginas, deparei-me com o artigo “A
Sociopoética e os cinco princípios: a filosofia dos corpos mistura-
dos na pesquisa em educação”, de autoria da educadora Shara Adad.
A seguir proponho, amparado no texto de Adad (2014), correlações à
crítica da razão indolente indicada por Santos (2002). Para tal, sigo
os cinco princípios da sociopoética, os quais são apresentados na
subseção deste capítulo.
70 Corpo-território & Educação Decolonial
Pesquisar com as culturas de resistência,
das categorias e dos conceitos que produzem
A terminologia “resistir” no contexto brasileiro apresenta diver-
sas aplicabilidades nas variadas esferas étnicas, culturais, de gênero,
entre tantas outras questões que são silenciadas, negligenciadas,
dicotomizadas e inferiorizadas pela razão indolente. É justamente a
dicotomia hierarquizada que a sociopoética, sobretudo no segundo
princípio, tenta desconstruir.
Em relação ao trato com a diversidade de cosmovisões, construí-
mos durante a passagem pelo percurso um corpo batizado de venta-
nia, o qual teve como objetivo geral reforçar os grupos de resistência
com ênfase na potência democrática de Iansã. O ato de criar o corpo
ventania não partiu da combinação de ideias entre os envolvidos na
formação, muito pelo contrário, a junção dos elementos aconteceu
sem hierarquias e sem acordos estéticos. Mais uma questão comum
uniu os corpos dos responsáveis pela invenção de ventania: autor e
autoras marcados por questões sociais que exigir um olhar aguçado
para as opressões.
É inquestionável que a sociedade é composta por questões dico-
tômicas, mas essas não devem ser padronizadas, igualadas ou sim-
plesmente soterradas vivas com organismos culturais pulsando pela
resistência. Destarte, ao propor pesquisar a cultura afro-brasileira a
partir do Atiba-Geo, procuramos levar em conta a prerrogativa de
descolonizar as ideologias, os currículos educacionais, as metodolo-
gias e epistemologias de pesquisas, enfim, uma série de fatores que
cotidianamente são utilizados para perpetuar a linearidade do tempo
ocidental, denominada por Boaventura de “razão proléptica”,34 bem
como o descarte irresponsável de saberes e experiências legítimas e
representativas de distintos contextos socioculturais. É justamente
esse desperdício que motiva o nosso desejo em “encontrar o que foi
34
“A razão proléptica, que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo
a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do
presente”. (SANTOS, 2002, p. 40)
72 Corpo-território & Educação Decolonial
Nessas articulações, os copesquisadores do Atiba-Geo foram con-
vidados a derrubar as suas autoarmaduras e acionar as indicações
do primeiro princípio da sociopoética que é de se colocar no lugar
do outro e depois retornar com outras assimilações. São movimen-
tos necessários para que todos os envolvidos tenham a possibilidade
de aprender com a história do outro e refletir sobre as suas subjeti-
vidades que ao ser sensibilizados “construímos um novo corpo-pes-
quisador”. (ADAD, 2014, p. 50) Diante do novo corpo-pesquisador,
Informação verbal – Diário das trocas de peles, Eduardo Miranda, primeiro semes-
36
tre de 2018.
74 Corpo-território & Educação Decolonial
padronizada pela razão metonímica.37 Já a concepção traçada a par-
tir das artes pretende o oposto, ensinar justamente o que é igno-
rado e para isso nos instrui “sair por aí transvendo ou estranhando o
mundo, [...], abandonar o conhecimento consagrado, instituir o não
saber na pesquisa, no ensinar e no aprender para abrir possibilidade
do novo”. (ADAD, 2014, p. 52)
Provocar instabilidades no processo formativo acompanha a inces-
sante prática de questionar as experiências humanas, as verdades
que nos são postas como absolutas, bem como as ações de inter-
pelações acerca de todas as vivências. Acrescido a isso, o grupo de
copesquisadores deve abusar das oralidades, dos afetos, das trocas
com os demais envolvidos no projeto coletivo. Movimentações con-
substanciadas pelos dispositivos artísticos pensados, organizados e
propostos pelos articuladores/pesquisadores das oficinas/pesquisa.
Nesse ínterim, o Atiba-Geo por diversas vezes solicitou da entrega
de todo o corpo dos copesquisadores. Contudo, por ser o facilitador e
também ter tido uma formação em Geografia, cujo curso apresenta
intensos engessamentos da criatividade humana, optei por seguir
um ritmo que não assustasse os envolvidos na pesquisa, visto que
desde o início da pesquisa constatei que alguns tinham dificuldades
em externar as suas intersubjetividades, ao passo que as dificulda-
des foram intensificando por conta dos trabalhos que necessitavam
da criatividade artística.
Tanto as dificuldades quanto as habilidades de fácil demonstração
foram problematizadas com a finalidade de que cada copesquisador
identificasse as suas potencialidades, assim como suas limitações e,
a partir disso, avançar em ambas dicotomias, sobretudo, na perspec-
tiva de “viver uma outra história, criar outros devires, novas singu-
laridades”. (GAUTHIER, 1999, p. 54)
37
“A razão metonímica, que se reivindica como a única forma de racionalidade e,
por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o
faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria-prima”. (SANTOS, 2002, p. 40)
76 Corpo-território & Educação Decolonial
copesquisadores: “O professor Eduardo diferentemente dos outros pro-
fessores é o que menos fala em sala de aula”. Com certeza, essa fala
magoaria muito dos meus colegas educadores, mas a recebo como
um abraço caloroso, como um olhar sincero, posto que compreendo
a sala de aula como um espaço de diálogos, de entrega individual e
coletiva. Portanto, a observação desse educando/copesquisador me
encoraja a continuar com as propostas da sociopoética, nas quais não
sou e não pretendo assumir a centralidade unilateral, a hierarquia
professor x aluno. A partilha deve favorecer a todos e todas imbuí-
dos do processo de construção da educação. Outra copesquisadora
desta pesquisa me enviou um e-mail, logo nos primeiros encontros,
com a seguinte colocação:
pele iii
Travessias
do Atiba-Geo
Formação docente do corpo-território:
para a colonialidade ou para a
decolonialidade?
39
Ver: https://www.geledes.org.br/ensino-de-historia-da-africa-ainda-nao-esta-
nos-planos-pedagogicos-diz-professora/.
40
Reforma de Temer legaliza o “apartheid educacional” no Brasil de Frigotto (2016).
Ver: http://www.tijolaco.com.br/blog/reforma-de-temer-legaliza-o-apartheid-
educacional-no- brasil-por-gaudencio-frigotto/.
41
Trecho da música “Flutua” de Johnny Hooker.
42
Anteprojeto de lei municipal e minuta de justificativa (Escola Sem Partido). Ver:
http://www.programaescolasempartido.org/municipal.
43
Base Nacional Comum Curricular. Ver: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/.
https://espacoacademico.wordpress.com/2016/06/29/escola-sem-partido-imposi-
cao-da-mordaca-aos- educadores/.
82 Corpo-território & Educação Decolonial
ção, ou seja, o neoliberalismo se empenha para desarticular a escola,
mas ao mesmo tempo não vislumbra a sua extinção, pois se apro-
pria do chão do espaço escolar para engessar e docilizar os corpos
subalternizados. Nesse ínterim, o professor Libâneo (2017, p. 5) des-
taca que “o monitoramento da eficácia dessa estratégia [neoliberal]
se faz por avaliações externas cujos resultados servem para o con-
trole das escolas e dos professores, afinal coagidos como responsá-
veis pelos resultados escolares”.
Na condição de formador de professores para a educação geográ-
fica, tenho dedicado esforços na tentativa de exercitar o olhar crítico
em relação às políticas públicas direcionadas à educação escolar de
nível básico e superior. Dentre as ações determinadas pelo Ministério
da Educação (MEC), destaco a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), a qual teve a sua primeira versão socializada em 16 de setem-
bro de 2015, aproximadamente quatro meses antes do meu início
como professor substituto da Faced da UFBA. Desde esse período,
passei a acompanhar os encaminhamentos do documento oficial para
compreender qual a perspectiva educacional direcionada pelo MEC.
A leitura do primeiro documento socializado pelo MEC contem-
pla as características neoliberais difundidas nas políticas públicas
brasileira desde 1990 pelo Banco Mundial, para o qual os valores
de eficácia, eficiência, produtividade e concorrência não deveriam
ser explanados apenas na esfera econômica, mas também diluídos
nas reformas educacionais, por exemplo, 20 anos depois: a BNCC.
A partir disso, caminhamos para um documento oficial com uma
série de imposições curriculares padronizadoras dos conteúdos, das
didáticas, assim como a desvalorização docente. A terceira versão
do documento teve a sua aprovação em 2017, de acordo com a Lei
n° 13.415/17.45 Em relação ao componente curricular Geografia, o docu-
mento garante a sua presença no percurso do ensino fundamental.
Entretanto, o mesmo não está garantido no ensino médio e provoca
instabilidade nos cursos de licenciaturas pela não definição fede-
45
Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm.
84 Corpo-território & Educação Decolonial
à colonialidade46 que fundamenta os ideais neoliberais, como pon-
tua Oliveira e Candau (2010, p. 17): “Graças à colonialidade, a Europa
pode produzir as ciências humanas como modelo único, universal e
objetivo na produção de conhecimentos, além de deserdar todas as
epistemologias da periferia do ocidente”. Inevitavelmente, retomo
mais uma vez a provocação: “qual a minha perspectiva de socie-
dade?”. Diante disso, volto a inquietar: “Na minha prática docente
devo problematizar a invenção de corpos-territórios para a colonia-
lidade ou para a decolonialidade?”.
Envolto a essas provocações, Quijano (2007, p. 93) aponta que a
colonialidade é “um dos elementos constitutivos e específicos do
padrão mundial do poder capitalista. Se funda na imposição de uma
classificação racial/étnica da população mundial como pedra angu-
lar deste padrão de poder”. Dessa forma, a concepção de raça desva-
loriza a contribuição biológica e pauta o discurso que atende, mais
uma vez, aos interesses do fundamentalismo capitalismo, em que
um grupo se sobrepõe e tem a sua epistemologia validada na repre-
sentatividade e construção intersubjetiva de todos os sujeitos infe-
riorizados. Repensar essa conduta de silenciamento e naturalização
dos privilégios sociais é reestabelecer o posicionamento político do
educador na construção do outro, dos educandos. Nesse bojo, políti-
cas públicas de formação de professores precisam efervescer a alte-
ridade do outro que habita em mim, pois:
ser, nos últimos 500 anos, mais profunda e duradoura que o colonialismo. Porém,
sem dúvida, foi forjada dentro deste, e mais ainda, sem ele não teria podido ser
imposta à inter-subjetividade de modo tão enraizado e prolongado”. (QUIJANO,
2007, p. 93)
86 Corpo-território & Educação Decolonial
totalmente estranho, da neve e do inverno que
nunca viu, da história e da geografia das metró-
poles; o mestre e a escola representam um uni-
verso muito diferente daquele que sempre a
circundou.
47
Colocação presente nos escritos do pesquisador Samuel Vida. Ver: http://correionago.
com.br/portal/quem-dorme-com-os-olhos-dos-outros-nao-acorda-a-hora-que-quer/.
88 Corpo-território & Educação Decolonial
a dialética ancestral da continuidade forjada pelos ensinamentos da
filosofia de Oxumaré.
Ter a dimensão do corpo-território-decolonial no contexto polí-
tico neoliberal é pujante para ir na contramão das imposições do
instituído, o ato é a insurgência, ao passo de revirar a normatização
eurocêntrica e pensar as práticas educativas por vieses epistêmicos
até então impedidos de serem evidenciados no espaço escolar. Um
corpo-território-decolonial não deve se sentir realizado por inserir
na estrutura estatal temáticas dos subalternizados, a estratégia da
pedagogia decolonial é produzir conhecimento que desestabilize
a geopolítica ocidental e rasure os corpos colonizados para repen-
sar as suas bases ancestrais que não se limitam ao legado eurocên-
trico, posto que “assumir esta tarefa implica um trabalho decolonial
dirigido a tirar as correntes e superar a escravização das mentes”.
(WALSH, 2007, p. 9)
Diante dessas colocações, venho propondo que a concepção de
educação geográfica dos professores em formação inicial ou con-
tinuada levem em conta um compromisso político que realinha a
historiografia oficial dos grupos subalternizados. Isso perpassa pela
crítica às determinações da BNCC, pelos retrocessos da Escola Sem
Partido, entre outras perspectivas ideológicas que, ao perceber a con-
tra-hegemonia dos grupos oprimidos, logo reagem com medo de ter
os seus históricos privilégios ameaçados.
Traçar esta linha de fuga e de raciocínio requer enorme desprendi-
mento por parte das epistemes que forjaram a minha infância, adoles-
cência e parte da minha fase adulta. É dolorido perceber que muito do
que o meu corpo-território é, só foi possível por apagamentos, silen-
ciamentos e negligencias de todos os valores não eurocêntricos. A for-
mação docente, neste livro, é perspectivada como a espacialização da
quebra do silêncio, não só da voz, mas do corpo todo.
Destarte, vamos continuar nas próximas movimentações da “Pele
III” intentando intensificar a discussão sobre formação docente,
sem ter o aspecto de estudo da arte, mas trazendo a discussão para
a práxis. Então, o momento a seguir denominado de “Cartografia do
90 Corpo-território & Educação Decolonial
seremos todos iguais’: relações étnico-raciais no espaço escolar”
(MIRANDA; SILVA, 2012, p. 1), em que apresento uma experiência
docente como estagiário de Geografia na educação básica pública e
de que forma tal ação me conduziu a (re)construir a minha identi-
dade afro-brasileira. Saliento que a referida experiência docente não
teve ligação oficial com o curso de licenciatura em Geografia, e sim
uma ação educativa extracurricular.
Os educandos aceitaram realizar a leitura da produção textual e o
debate se desenvolveu com muita entrega, inquietações, dúvidas e
ressignificações compartilhadas em rodas de diálogos. A partir dessa
leitura, a turma legitimou e solicitou que o componente curricular
versasse o ensino de Geografia e as epistemologias afro-brasileiras.
O respaldo da turma tranquilizou parte das minhas dúvidas, sobre-
tudo, a possível imposição da prática docente em discutir um tema
tão complexo e com irrisória visibilidade na formação de professo-
res em Geografia.
Nesse cenário, visualizei que a pesquisa ganhava novos contor-
nos. Uma outra dimensão teórico-metodológica perpassava pelos
meus desejos e anseios. Impulsos de motivação em pesquisar, desco-
brir, desconstruir e provocar estabeleciam conexões com o espanto
e ressignificações apresentadas nas aulas: tanto por mim quanto
pelos discentes.
Em conversa com os educandos e educandas, relatei o desejo de
transformar todas as nossas construções em problemática de pes-
quisa para o doutorado em Educação. Tive o aval da turma e, em
conjunto, decidimos nomear, com critérios de identidades, o nosso
trajeto. Voltei ao meu arcabouço corporal e sugeri o termo “Atiba”.49
Discutimos mais um pouco e criamos o projeto “Atiba-Geo: narrativas,
formação e educação afro-brasileira”. Propus a leitura do ideograma
Sankofa (Figura 2) com a prerrogativa de instaurar o compromisso
de que “Nunca é tarde para voltar ao passado e recolher os conheci-
mentos que ficaram para trás”.
49
Palavra em Yorubá que significa “Conhecimento”. Termo que nomeia um dos
projetos educativos do Afoxé Pomba de Malê.
92 Corpo-território & Educação Decolonial
Traçar as primeiras linhas dos direcionamentos metodológicos
desta produção textual significa apreender a necessidade de voltar
ao tempo, acessar à memória, reanimar as lembranças e perceber o
que de fato se tornou experiência significativa no trato com a minha
própria identidade docente.
(Re)visitar a construção das subjetividades se configura como dis-
positivo indispensável no ato de compreender a formação dos sujeitos
que, de alguma forma, atravessam ou atravessaram as minhas itine-
râncias profissionais. Vislumbro esses momentos como encruzilhadas
indispensáveis para frutificar tantas outras formas de fazer, pensar e
constituir a educação nos mais diversos níveis. Sobretudo, os disposi-
tivos metodológicos relevantes no ensino-aprendizagem dos futuros
educadores que cotidianamente movimentaram os direcionamen-
tos do Atiba-Geo: narrativas, formação e educação afro-brasileira.
Uma série de teorias da educação transitam no imaginário e ten-
tam ganhar algumas linhas, mas que corpo é esse que se utiliza das
minhas memórias para invocar e evocar saberes acumulados ao longo
das minhas itinerâncias acadêmico/profissional/pessoal? Aqui o
chamaremos de corpo-território por defender “a visão de corpo para
além das questões genéticas, em que a cultura é o ponto de partida
e, sendo assim, compõe o fluido mosaico das experimentações diá-
rias”. (MIRANDA, 2015, p. 13)
Destaco que o Atiba-Geo no semestre 2015.2 teve como base pro-
pulsora a turma matriculada no componente curricular Estágio
Supervisionado em Geografia I, com o total de 14 graduandos con-
vidados no primeiro dia de aula a trabalhar com a invocação de suas
memórias. Entreguei a cada um dos envolvidos um escudo dividido
em três quadrantes, com as seguintes proposições: 1° quadrante (pri-
meiro dia de aula) – Como se deu o seu caminhar na educação básica?;
2° quadrante (em meados do semestre) – As discussões em Estágio
I acrescentou algo na formação da sua identidade docente?; 3° qua-
drante (último dia de aula) – Após os meses de discussões, qual a sua
compreensão sobre educação e ensino de Geografia?
94 Corpo-território & Educação Decolonial
limitar ao compasso das palavras. Muito antes das palavras, da lei-
tura gráfica, do rebuscar da caligrafia, exercitamos o conhecimento
do mundo. Aprisionar o corpo-território às sílabas é limitante para
a pluralidade do ato de comunicar, trocar, sentir e afetar por outros
sentidos próprios dos seres humanos, mas que hierarquizados por
culturas padronizantes.
Tenho a sensação que as práticas pedagógicas enraizadas no posi-
tivismo-empirista refutam qualquer indício de partilha das inter-
subjetividades dos graduandos e graduandas. Justamente por opor
a essa prática desprovida de afetividade e emoções, intento propor
o que inicialmente denominei de “hermenêutica do desenho sin-
gular”, mas, ao trilhar outras perspectivas teóricas e experienciais,
enxerguei uma vertente epistêmica referenciada nas encruzilhadas
afrodescendentes o que fez imenso diferencial e levou-me a poten-
cializar a “exunêutica do desenho singular”.
Ao buscar a origem etimológica da palavra “hermenêutica”, encon-
tramos a ligação com Hermes, um dos deuses grego responsável pela
comunicação entre o plano dos mortais e dos imortais. Constatamos
intensa familiaridade entre as possibilidades de Hermes com o Orixá
Exu, também possui a função de realizar o diálogo entre o Òrun e o
Àiyé,50 ou seja, “cabe a ele levar as oferendas dos humanos aos Orixás”.
(SOARES, 2008, p. 39) Ainda sobre a entidade Exu, encontramos nos
escritos do filósofo Soares a afirmativa de que todo ser humano traz
consigo as ações do referido orixá, posto que ele é o responsável pela
vida e por toda:
50
“O àiyè é o universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habi-
tam, portanto, mais precisamente, os arà-àiyè, ou aràiyè, são os habitantes do
mundo, a humanidade. Já o òrun corresponde ao espaço sobrenatural, o outro
mundo, o além, algo imenso e infinito. Nele habitam os arà-òrun, que são os seres
ou entidades sobrenaturais”. (LUZ, 2000, p. 109)
96 Corpo-território & Educação Decolonial
afinal tem sido natural nos programas de pós-graduação em Educação,
em nível nacional, investigar infância e ludicidade pelo olhar herme-
nêutico, currículo da escola pública baiana pela perspectiva herme-
nêutica, educação especial com veios da hermenêutica, entre outras
que naturalmente aparentemente apenas Hermes consegue poten-
cializar. A exunêutica compreende essa naturalização como espaço
de poder e se inscreve em par de igualdade como viés responsável
por, também, estudar e compreender, investigar, analisar infância
e ludicidade, educação especial, currículo, entre demais temáticas
que fomente a pesquisa e a complexidade da educação brasileira.
Associada a essas questões, a exunêutica do desenho singular
se constitui com ênfase em três categorias/perspectivas: exunêu-
tica; desenho; singular. A primeira se configura como o processo de
interpretação de um determinado “real”. (SODRÉ, 1983) A categoria
“desenho” perpassa pelo ato de conceber (imaginário) e represen-
tar (material ou imaterial) o processo de comunicação. (MIRANDA,
2014) Por sua vez, o “singular” está atrelado ao campo das vivências,
experiências, da cosmopercepção que são próprias de cada indivíduo
e tem contribuições do coletivo que o circunda. (MACHADO, 2002)
Ao unir essa tríade, caminhamos para a autorização do próprio ator
e atriz social, em realizar um movimento que exige:
• olhar para dentro de si (dialogar com o seu real, com o seu pro-
tagonismo);
• escutar o que as suas memórias tem para dizer (a autoescuta
desestabiliza a racionalidade europocêntrica e contraria a hege-
monia capitalista);
• desenhar para viabilizar o processo de comunicação (expor, por
uma comunicação não linear, o que afeta o nosso corpo-terri-
tório).
98 Corpo-território & Educação Decolonial
bojo, construo articulações entre as contribuições de Sodré (1942)
com às proposições da exunêutica. Se Exu é diversidade e transita
por todos os espaços e se o transito é permitido por ele, com isso, a
universidade não pode se pautar por um único viés epistemológico.
A exunêutica se configura como mais uma opção de evidenciar que
o estudo sobre culturas geralmente legitima a universalização das
diferenças, o que ratifica padrões de signos e símbolos na produção
e reprodução social. Nesse âmbito, optamos em expandir o campo
conceitual por compreender que se debruçar para compreender a cul-
tura/intersubjetividade do outro deve-se levar em conta que “cultura
é o modelo de relacionamento humano com seu real. Este ‘real’ não
deve ser entendido como a estrutura histórica globalmente conside-
rada nem mesmo como um conjunto de elementos identificáveis”.
(SODRÉ, 1942, p. 48) O real aqui apresentado contrapõe o universal,
ou seja, abarca a singularidade e faz com que outros indivíduos, a
partir do convívio, da escuta, das observações e, sobretudo, das alte-
ridades, compreenda o que é simbolicamente relevante para os gru-
pos étnicos que pretende tecer compreensões.
Nesse ínterim, a perspectiva da exunêutica do desenho singular
adota o pressuposto de que é necessário extrapolar o campo das apa-
rências (SODRÉ, 1983), já que no Ocidente a palavra “aparência” pas-
sou a ser empregada com cunho pejorativo e universalizante, pois
proporciona um antagonismo entre o real e o irreal:
51
Epistemologia desenvolvida na pesquisa de mestrado de Eduardo Oliveira Miranda
O negro do pomba quando sai da rua nova, ele traz na cinta uma cobra coral: os dese-
nhos dos corpos-territórios evidenciados pelo Afoxé Pomba de Malê em 2014.
52
A escolha do nome está atrelada às lembranças do seu pai, o qual queria batizá-lo
com o nome de Dondeville.
53
Optou pelo nome porque de acordo com a sua explicação entende “que agora é o
momento de pegar peso para transformação da educação”.
54
A opção refere-se a força do país africano e sua contribuição na formação do Brasil.
55
“Porque tô sempre na luta”, afirmou sobre a escolha do seu nome.
56
Fala de Dondeville ao explicar a composição do seu desenho.
57
Narrativa expressa pelo copesquisador Peão. Diário das trocas de peles, 2016.
58
Narrativa expressa pelo copesquisador Peão. Diário das trocas de peles, 2016.
Por esse viés, Gana destaca que a África também deve ser consi-
derada um polo produtor de saberes e ainda reforça que as diáspo-
ras foram responsáveis por fazer com as epistemologias africanas se
espalhassem pelo mundo, mesmo que tais informações não constem
nos documentos oficiais, como elucida Lima (2008, p. 154):
59
Narrativa expressa pelo copesquisador Peão. Diário das trocas de peles, 2016.
60
Narrativa expressa pelo copesquisador Gana. Diário das trocas de peles, 2016.
PELE IV
Documentos
oficiais e discussão
sobre currículo
e a Lei n° 10.639/03
Tecer esta parte do livro revela a necessidade de ir em busca e tor-
nar acessível a documentação oficial da UFBA no que tange à forma-
ção de professores de geografia, em especial, a Lei n° 10.639/03 e a
Lei n° 11.645/08. Inicialmente, busquei pelos documentos oficiais da
Faced da UFBA com a intencionalidade de identificar a organização
da matriz curricular da licenciatura em Geografia.
Constatei a formatação curricular legitimada em tantos outros espa-
ços de formação de educadores, ou seja, nenhum componente cur-
ricular obrigatório responsável por abarcar as provocações das Leis
n° 10.639/03 e n° 11.645/08, com a exceção do componente GEOA28
Organização Regional do Espaço Mundial com carga horário de 68h
e, de acordo com a ementa, deve abarcar discussões sobre alguns
continentes. Referente ao continente africano, pontua-se: “A desu-
manização e a difícil situação da África”. Já o conteúdo programático
enseja: “África: fatores internos e externos da crise”. De fato, o que
consta na ementa e no conteúdo programático são pontos altamente
necessários para a formação do licenciado em Geografia.
Porém, ao recorrer à Lei n° 10.639/03, encontra-se a prerrogativa
de estabelecer conteúdos que apresente a história e cultura do con-
tinente e não apenas a colonização europeia em África e os seus des-
dobramentos. Reduzir o continente africano a partir da presença
do colonizador europeu se configura como uma omissão ao legado
cultural, científico, político-administrativo, econômico, filosófico e
de humanização que se iniciou em terras africanas e se disseminou
por todas as partes da Terra. Portanto, a minha análise em relação à
ementa do componente Organização Regional do Espaço Mundial elu-
cida uma série de ausências e emergências no trato com as questões
61
“A razão arrogante, que não sente necessidade de exercer-se porque se imagina
incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar
a sua própria liberdade”. (SANTOS, 2010, p. 240)
pele v
Barreiras na
implementação
da Lei n° 10.639/03
Encruzilhadas para a implementação
da Lei n° 10.639/03
62
Diário das trocas de peles, Eduardo Miranda, 2017.
63
Diário das trocas de peles, primeiro semestre de 2018.
64
Diário das trocas de peles, Eduardo Miranda, primeiro semestre de 2018.
65
Atividade presente no artigo “Tudo que não inventamos é falso” de Oliveira,
Fernande e Adad em 2014.
66
Narrativa expressa pelo copesquisador Gana. Diário das trocas de peles, 2016.
67
Narrativa expressa pela copesquisadora Preta. Diário das trocas de peles, 2016.
68
Narrativa expressa pela copesquisadora Preta. Diário das trocas de peles, 2016.
Agora que estão sentados no chão, lápis na mão e um papel em branco na sua frente, coloque a
ponta do lápis sobre o papel. Afastem as pernas. Vamos fechar os olhos e respirar três vezes, pro-
fundamente. Imagine uma luz dourada que vem do alto, envolvendo todo o seu corpo e penetrando
em todos os seus órgãos. Essa luz vai te transportar para uma escola da rede pública... Pode ser
a escola que você estudou, pode ser uma escola que fez observação de estágio ou qualquer outra
unidade de educação por onde você tenha transitado... Sinta o cheiro do território que você está
acessando. Veja as pessoas circulando ao seu redor. Ouça os sons. Agora, com lápis na mão vamos
adentrar nos espaços da escola. Nesse percurso, tudo é cheio de surpresas! Com o lápis na mão,
rabisque o papel sem tirar o lápis do papel, aproveitando bem os espaços, experimentando os movi-
mentos, vamos rabiscar bem lentamente, explorando todos os espaços do papel. Agora, rabisque
rápido bem rápido, muito rápido... Neste exato momento, convido vocês a exercitar o olhar sen-
sível na escola que se encontra e visualizar como essa unidade executa a Lei nº 10.639/03. Veja
quais são as etnias que estão presentes na escola, na sala de aula. Observe a etnia dos professo-
res e professoras, dos educandos, da direção... quem é a pessoa responsável pela merenda, pela
portaria da instituição... veja, observe a etnia, cor/raça. Pare e respire profundamente por três
vezes. Transite mais um pouco pela escola. Neste momento, você se depara com o primeiro obs-
táculo que te impede de implementar Lei nº 10.639/03. Demarque no seu mapa um ponto em
destaque. Faça um símbolo que reforce a primeira referência destacada. Deixe a primeira barreira
seguir o seu trajeto e volte a circular pela escola. Você caminha com o lápis na mão, olha para os
lados, observa o caminho que te levará, de longe, visualiza algum funcionário da escola, dialoga
com ele segue o seu percurso. Virando para um dos lados, se esbarra no segundo obstáculo que
te impede de implementar Lei nº 10.639/03. Novamente, demarque em seu mapa e evidencie
quem ou o que representa essa barreira. Respire profundamente para seguirmos o transitar pela
escola. No corredor, você acaba de encontrar com um professor ou professora que te traz
lembranças positivas do seu tempo na escola. Olhe nos olhos dela e abrace com muito amor.
Converse sobre o que tiver vontade... Lentamente vá se despedindo... De repente, você enxerga de
longe uma ponte... Você chega até a ponte. Mas, só atravesse a ponte se você considerar que
está preparado para trabalhar com a Lei nº 10.639/03. Então, após encontrar obstáculos pela
escola, você se considera uma barreira ou uma via de implementação da lei? Você está atraves-
sando a ponte ou está com dúvidas? Reflita... Reflita... Retornando, você começa a voltar da via-
gem mexendo os pés, lentamente mexa as pernas e os braços. Respire profundamente, abra os
olhos. Não converse com ninguém para não perder a concentração.
69
Texto adaptado da atividade presente no artigo “Técnicas rabiscos rizomáticos da
alegria na escola”.
70
Narrativa expressa pelo copesquisador Gana. Diário das trocas de peles, 2016.
71
Narrativa expressa pelo copesquisador Gana. Diário das trocas de peles, 2016.
Além disso, tenho verificado que sujeitos que visualmente não são
enquadrados como negros serem tocados pela discussão, começam
a constatar que parte do seu discurso tem um cunho racista, um viés
de preconceito racial velado. Em alguns casos, são falas e gestuali-
dades reproduzidas automaticamente e que precisam ser debatidas
para que ocorra a desconstrução de posturas.
A busca por conhecer e trabalhar com o legado africano e afro-bra-
sileiro é pontual nas rupturas de paradigmas e identificações pes-
soais, compreendo isso a partir da oralidade de uma graduanda em
Geografia: “Conhecer a história do povo africano e afro-brasileiro e
ver pessoas parecidas com você provoca o encantamento”.72
Então, propor encantamentos é uma das nossas propostas, já que
esse encantamento traz consigo o trabalho com a autoestima, repre-
sentatividade, empoderamento, entre tantos outros aspectos que
contribuem para homens e mulheres negros ver significado no cur-
rículo escolar.
72
Narrativa de Suiane Leal, egressa da licenciatura em Geografia da [omitido para ava-
liação], ao cursar, sob a minha regência, o componente de Estágio Supervisionado
em Geografia e após ministrar a oficina Ancestralidade e ensino de Geografia.
pele vi
Contra-análise
Contra-análise: revisitando as primeiras
peles do Atiba-Geo
Ao olhar para o desenho escolhido, logo pensei: ele deve falar sobre
circularidade. Questionei-o pela escolha e o copesquisador apontou:
Contra-análise do corpo-esponja
Corpo-esponja
E ele foi
Procurou por 16 odus
Andou, caminhou, correu
Tropeçou, caiu, levantou
Viu gente feia
Olhou novamente e viu gente
Se desgastou, sorriu e atravessou
Em cada Odu
Um novo mundo
Um novo choque
Na mão levava uma esponja
Esfregava na pele e gritava:
Esponja, esponja minha
Existe gente menos importante do que eu?
Em cada esquina cruzava por velas
Passo a passo aproveitava para se derreter
E novamente gritou
O silêncio respondeu
E se fortificou
Preparando-se para as muitas luas que viriam
Trazendo outras descobertas
Para as buscas que ainda se fariam
O ser inacabado
73
“One Hour” no CBC Interview, entrevista de Tutu (2008).
Corpo-mundo
E ele foi
Procurou por dezesseis odus
Andou, correu
74
Copesquisadores e facilitador do Atiba-Geo (2018).
pele vii
Caminhos e
possibilidades
pela não obrigatoriedade
da conclusão
Construir um corpo-território que se descama, troca de peles e cria
outras camadas se configura um ritual de constantes inacabamen-
tos. Portanto, não pretendo com a “Pele VII” findar os nossos diálo-
gos. Vislumbro este momento para suscitar outras provocações que
podem, ou não, trilhar os próximos caminhos de pesquisa.
O Atiba-Geo apontou a ausência da Lei n° 10.639/03 na construção
identitária docente. Por isso, deixo registrada a necessidade em tra-
çar a afirmativa de que “É preciso africanizar o ensino de Geografia”.
Busco essa referência no texto “É preciso africanizar a universidade”
de autoria da pesquisadora Luz (2013), cuja produção textual eviden-
cia as estratégias ideológicas orquestradas para realçar a intelligent-
sia ocidental e ao mesmo tempo reafirmar que a “universidade não
acredita e não consegue conceber que há uma epistemologia africa-
no-brasileira legítima pulsando suas territorialidades negras, [...],
e que contemporaneamente entra na universidade através de gera-
ções de afrodescendentes”. (LUZ, 2013, p. 176)
Ainda em seu texto, Luz (2013, p. 176) evidencia o fato de que a
entrada de afrodescendentes no chão da universidade tem provo-
cado “fissuras profundas no cimento epistemológico europocên-
trico”. Nesse cenário, tomamos a liberdade de classificar as ações do
Atiba-Geo enquanto um dos recentes dispositivos que preza pela
efervescência da diversidade no compasso de descolonizar a cons-
trução do conhecimento.
Sendo assim, encontramos em Galeano (1999, p. 323) a seguinte
afirmação sobre a ciência geográfica: “O mapa mente. A geografia
tradicional rouba o espaço, assim como a economia imperial rouba a
riqueza, a história oficial rouba a memória e a cultura formal rouba a
75
Ver: http://www.geledes.org.br/mito-da-democracia-racial-faz-parte-da-educa-
cao-do-brasileiro-diz-antropologo-congoles-kabengele-munanga/#gs.2sfVxNY
Axé!
76
Luz aponta que Mestre Didi proferia há muito tempo o referido ditado nagô.
SANTOS, M. Ser negro no Brasil hoje. Folha de São Paulo, São Paulo,
7 maio 2000.