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A linguagem da poesia
2ª edição

Amador Ribeiro Neto


Organizador

L755 A linguagem da poesia. 2 ed. / Amador Ribeiro Neto,


organizador, – João Pessoa: Editora da UFPB, 2014.
128 p. (Coleção Todas as Letras; 4)
ISBN: 978-85-0941-9
. 1. Teoria da Literatura. 2. Linguagem da poesia. I.
Ribeiro Neto, Amador.

Editora da UFPB Cidade Universitária, Campus I – s/n


João Pessoa – PB
CEP 58051-970
editora.ufpb.br
[email protected]
Fone: (83) 3216-7147
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A linguagem da poesia
Amador Ribeiro Neto

O volume que o leitor tem em mãos é uma viagem didática e crítica pelos
meandros da poesia. A poesia, esta arte que acompanha o homem antes mesmo de ele
aprender a narrar, como nos ensina Octavio Paz, embora seja tão antiga, permanece
como uma das mais difíceis artes da palavra. Dificuldade que vem acompanhada do
prazer da descoberta das invenções de linguagem que todo poeta se propõe.
Em outras palavras: todo poeta anseia pelo novo, pelo diferente, pelo singular.
Afinal interessa-lhe dizer algo com uma linguagem até então, se possível, desconhecida.
Por isto desconstrói a gramática normativa da língua e cria uma outra gramática. Cria um
outro mundo de significações.
Neste processo de invenção, nem sempre fica claro para o leitor o que o poeta diz,
nem o modo como o faz. Uma dificuldade inicial que só aumenta o deleite na fruição do
poema. O poeta e ensaísta Paul Valéry já disse que do prato interessa-lhe o magro. Na
mesma linha de reflexão, nosso João Cabral de Melo Neto diz-se enojado com as
adiposidades e por isto escreve sempre com as mesmas vinte palavras, tal como, segundo
ele, Graciliano Ramos o fazia. Ou escreve a poesia de quebrar dente, obstruindo “a leitura
fluviante, flutual”, como diz em um de seus mais célebres poemas.
Por não estar preso ao mercado de compras e vendas, o poeta tem toda a
liberdade para ousar. E ele ousa com a linguagem, que é o que caracteriza a poesia e a
diferencia da prosa.
Desde muito tempo a poesia é uma arte marginal, no sentido de angariar poucos
leitores. E no mundo pós-moderno, em que a rapidez das informações, bem como sua
objetividade e clareza, dão a tônica das relações com o universo, e seus códigos
multimídias, uma arte que requer tempo, reflexão densa e pensamento abstrato, é, de
fato, de difícil assimilação.
Este é o caminho que a poesia tem trilhado, e não cremos que será diferente com
o advento da era pós-humana. Mesmo com mais pessoas escrevendo “poesia”, como
constatamos hoje com o uso da Internet, a prática milenar de ousar com a linguagem não
tem sido observada neste meio. Tanto isto é fato que os recursos da Informática
raramente aparecem no uso da poesia, mesmo dos melhores poetas da Internet.
Aquilo que deveria ser uma regra geral para os novos poetas – o uso dos recursos
do computador – originado a chamada Poesia Digital, ainda é, repetimos, um recurso
parcamente utilizado.
Assim, a poesia continua sua busca por renovações do modo de dizer. Isto não
quer dizer que o poeta viva num mundo à parte, cavando uma linguagem hermética. O
poeta e ensaísta T.S. Eliot já disse que o poeta não pode distanciar-se da língua do povo,
sob pena de comprometer a poesia. Maiakóvski, na mesma direção, disse que o povo é o
“inventalínguas”.
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Então, a “dificuldade” da poesia reside mais no desconhecimento das linguagens


contemporâneas do que no desvendamento da linguagem poética.
Todavia, na “dificuldade” da poesia reside o prazer de deslindar uma linguagem
que procuramos, aqui neste livro, aclarar um pouco mais. Temas como o que é literatura,
quais os componentes da linguagem da poesia, bem como análise de poemas são
contemplados.
Já que a poesia nasceu com a música, e hoje estão de novo juntas, principalmente
com a diversidade da música popular brasileira, relações entre poesia e música são
estudadas e canções merecem análises cuidadosas.
Com tudo isto esperamos que você, leitor de poesia, possa ampliar seu leque de
possibilidades de entendimento e satisfação ao deleitar-se com esta arte milenar.
O texto que a seguir você lerá, pauta-se pela clareza, objetividade e didatismo,
além de ser generosamente rico em exemplos e citações que o ajudarão no
conhecimento mais verticalizado do que é a linguagem da poesia.
Boa leitura e que a poesia, ao final deste livro, seja mais uma companhia cotidiana
dentre as outras coisas boas das artes e da vida.
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Sumário

A LINGUAGEM DA POESIA – AMADOR RIBEIRO NETO

Capítulo I
ABORDAGEM POÉTICA
1.1. O que é literatura
1.2. A comunicação poética
1.3. Elementos constitutivos do poema
1.4. Elementos constitutivos da canção popular

Capítulo II
ANÁLISE DE POEMAS
2.1. O método analítico
2.2. Sonetos: um barroco e outro modernista
2.3. Poemas contemporâneos
2.4. Análise de canção popular
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CAPÍTULO I
ABORDAGEM POÉTICA

1.1. O que é literatura


Flaviano Maciel Vieira

Veremos aqui o que disseram e o que dizem alguns grandes estudiosos sobre o
que vem a ser literatura. Quais os principais teóricos? Quais são suas teorias mais
representativas? O que disseram de significativo e importante? O que torna um texto
literário? Quais os procedimentos estéticos? Enfim, como se apresenta a oposição entre
texto literário e não-literário? Antes de apresentar respostas para estas perguntas, faz-se
necessário deixar claro algumas questões básicas.
Primeiramente, vejamos o seguinte: podemos dizer literatura médica, literatura
filosófica ou literatura jurídica, como sendo um conjunto de escritos referentes a uma
determinada área do conhecimento, mas o termo literatura que nos serve (aos amantes,
estudantes e professores de Letras) diz respeito à arte da palavra.
Como se dá esta arte, qual é sua matéria, que relações estabelece com o mundo
real e como se organiza são questões que nos conduzirão no decorrer destes escritos. A
pergunta central é: o que é e do que é feita a boa literatura?
Em segundo lugar, é bom deixar claro que serão apresentadas conceituações e
não definições prontas e acabadas sobre o que seja literatura. Afinal, estamos nos
referindo a um objeto artístico, daí a dificuldade/impossibilidade de definição.
Em terceiro lugar, e finalmente, o objetivo maior deste texto é apresentar ao
aluno um olhar abrangente (não único, mas apenas um olhar) sobre a teoria literária.
Neste sentido, serão apresentados alguns dos principais conceitos teóricos sobre o
assunto. E ao longo do texto serão feitas referências a livros importantes e
imprescindíveis para a formação de um professor de língua e literatura.
Como será um olhar mais geral sobre os conceitos, não temos aqui a pretensão de
ir fundo em seus assuntos. Conceituações serão apresentadas para que se tenha um
conhecimento geral das teorias e dos teóricos, mas sem perder o essencial de cada um
destes conceitos. Cabe a cada aluno desenvolver seus estudos lendo na íntegra os livros
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citados, para que se possa conhecer cada vez melhor as teorias, enriquecendo, assim,
seus conhecimentos literários.

1.1.1. Teorias
Comecemos por um conceito apresentado por Aristóteles, um dos maiores
filósofos da Grécia antiga. Do século IV até nossos dias é inegável a enorme influência que
seus estudos exercem sobre o mundo Ocidental. Em sua Poética (texto que dá início ao
conjunto de estudos que temos hoje sobre questões de teoria literária), no primeiro
capítulo, intitulado “Da poesia e da imitação segundo os meios, o objeto e o modo de
imitação”, ele nos diz que “a epopeia e a poesia trágica, assim como a comédia, a poesia
ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se
enquadram nas artes de imitação” (ARISTÓTELES, 1969, p. 289).
Esta primeira tentativa de conceituação da arte da palavra, por parte de
Aristóteles, dizendo que esta arte é de imitação, já coloca questões relativas à relação do
real e do ficcional na composição da obra literária. O que acontece com o real nesta
imitação? Ele é exatamente demonstrado ou esta imitação nada mais é do que uma
transfiguração do real?
No desenvolvimento do livro, apresentam-se conceitos referentes ao estudo da
poesia como imitação de ações, e também ao estudo da tragédia e sua comparação com
a epopeia. Parte também importante dele é o capítulo quarto, onde Aristóteles faz um
levantamento histórico da poesia desde suas origens. Sem dúvida, obra indispensável
para aqueles que querem estudar literatura.
O que o pensador grego faz é mostrar a arte da imitação como aquela arte que
imita ações, paixões e caracteres por meio de palavras. Ele nos ensina que a imitação é
um ato da natureza humana e os homens sentem prazer neste ato criativo de imitar. Ou
seja, para ele é uma arte como recriação.
Passou-se o tempo e esta arte da palavra foi ganhando novos contornos e
conceituações. Terry Eagleton, em seu livro Teoria da Literatura: uma introdução, nos dá
um panorama de algumas das mais representativas teorias literárias que surgiram.
Para o autor “a literatura emprega a linguagem de forma particular (...). A
tessitura, o ritmo e a ressonância das palavras superam o seu significado abstrato. Existe
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uma desconformidade entre os significantes e os significados” (EAGLETON, 2001, p. 02-


03).
Eagleton inicia este giro geral sobre as teorias que se estabeleceram sobre a
literatura com os Formalistas Russos, mostrando o florescimento de suas ideias durante a
década de 20 do século passado. Diz o autor que a literatura para os formalistas não era
uma pseudo-religião, sociologia, ou psicologia, mas uma forma particular de se lidar com
a linguagem. Encarar a literatura com olhares sociológicos, psicológicos ou mesmo
estritamente históricos, não era válido nem fazia parte de suas discussões.
Essencialmente, os formalistas aplicaram estudos da linguística aos estudos da
literatura. Assim, puderam mostrar que a forma não era expressão do conteúdo, mas sim
o conteúdo era a “motivação” da forma, nada mais que um pretexto para um tipo
específico de realização formal.
Segundo o autor, os formalistas

rejeitavam as doutrinas simbolistas, quase místicas que haviam influenciado a


crítica literária até então e, imbuídos de um espírito prático e científico,
transferiram a atenção para a realidade material do texto literário em si
(EAGLETON, 2001, p. 03).

Um texto literário, para este grupo de estudiosos, apresentava uma linguagem


que se desviava da norma. Mas para que se pudesse identificar um desvio, seria
necessário identificar a norma da qual se desviava. A literatura, desta forma, deforma a
linguagem comum, o que causa um efeito de “estranhamento”.
Para os Formalistas, não existia uma essência da literatura. Seus objetivos não
eram definir literatura. Seu foco de estudos era como a linguagem se desautomatizava,
como ela perdia seu estado e função naturais e como ganhava este novo caráter literário.
Classificar um objeto como literatura, para eles, era muito instável. A preocupação dos
Formalistas Russos era com a “literaturidade”.
Eagleton ainda percorre teorias como a Fenomenologia (a ciência dos fenômenos
puros), que, segundo o autor, influenciou os Formalistas no campo da crítica literária, na
medida em que também separava entre parentes o objeto real. Para estes estudos, um
fenômeno poderia ser compreendido de maneira total e pura através do que nele há de
essencial e imutável.
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Em seguida, apresenta a Hermenêutica (a ciência ou arte da interpretação).


Mostra como ela vê a história como um “diálogo vivo entre o passado, presente e futuro,
e busca pacientemente eliminar obstáculos a essa interminável comunicação mútua”. Diz
ainda que “a hermenêutica tende a se concentrar nas obras do passado; as perguntas
teóricas que ela faz surgem principalmente desta perspectiva” (EAGLETON, 2001, p. 101).
Além destas, o autor ainda percorre questões sobre a Teoria da Recepção, teoria
que vê a obra como cheia de “indeterminações”, características que, para terem efeito,
dependem da interpretação do leitor. Diz Eagleton que

Diferentes leitores têm a liberdade de concretizar a obra de diferentes


maneiras, e não há uma única interpretação correta que esgote o seu potencial
semântico. Essa generosidade, porém, é condicionada por uma instrução
rigorosa: o leitor deve construir o texto de modo a torná-lo internamente
coerente. (EAGLETON, 2001, p. 111)

Como podemos observar, são muitos os estudos existentes sobre a literatura e sua
essência. Além dos já apresentados, temos ainda o Estruturalismo, que se ocupa do
exame das leis gerais pelas quais as estruturas funcionam. Diz Eagleton que

só nos tornamos estruturalistas convictos quando pretendemos que o


significado de cada imagem só exista em relação a outras imagens. As imagens
não têm um significado substancial, apenas um significado relacional
(EAGLETON, 2001, p. 130).

Este sistema objetivo de ver a obra em seus elementos relacionais, sem juízos
subjetivos de valor, era o foco dos estruturalistas. Supriram, assim, a necessidade que se
tinha de uma disciplina acadêmica rígida. “As unidades individuais de qualquer sistema só
tem significado em virtude de suas relações mútuas” (id. ibid.). Diz Eagleton que o
florescimento do estruturalismo literário, na década de 1960, foi resultado de uma
tentativa de aplicar os ensinamentos e métodos de Ferdinand de Saussure à literatura.
Segundo Eagleton:

A escola Linguística de Praga – Jakobson, Jan Mukarovski, Feliz Vodika e outros,


representou uma espécie de transição do formalismo para o estruturalismo
moderno. Esses teóricos desenvolveram as ideias dos formalistas, mas
sistematizaram-nas com maior firmeza dentro do quadro da linguística
Saussuriana. (EAGLETON, 2001, p. 136)
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Com a obra destes estudiosos, a palavra estruturalismo, segundo Eagleton,


aproximou-se de uma fusão com a palavra semiótica. Vejamos, então, as ideias de seu
fundador C. S. Pierce.
Com a Semiótica de Pierce (estudo sistemático dos signos), temos os signos
divididos em três tipos básicos: o signo icônico: ocorre quando o signo se assemelha ao
que representa (o retrato de uma pessoa, por exemplo); o signo indéxico: ocorre quando
o signo associa-se de alguma forma àquilo que é indicação (fumaça com fogo, etc.); e o
signo simbólico: ocorre quando o signo está de forma arbitrária ou convencional ligado ao
seu referente.
Além disso, Pierce distingue conotação e denotação, paradigma e sintagma, e
trata de metalinguagens, signos polissêmicos entre outras questões. Este olhar teórico
mostra que a obra literária, de forma contínua, transforma o sentido dicionarizado
enriquecendo-lhe, fazendo com que novas significações sejam produzidas através do
choque e da condensação de seus vários níveis.
Após um levantamento geral de algumas teorias literárias, sigamos agora
apresentando teóricos e críticos que muito influenciaram e ainda influenciam nos estudos
de literatura. Estes teóricos são citados aqui pelo grau de importância de suas obras.
Comecemos com um dos mais importantes estudiosos da linguagem e da literatura
(linguagem literária), Roman Jakobson (2007).
Diz ele que a literatura “é uma violência organizada contra a fala comum”. A
violência aqui é devido à falta, por parte da literatura, da objetividade e intencionalidade
comunicativa do uso das palavras que ocorrem na fala comum. A palavra poética não
comunica ou informa principalmente, como a palavra da fala comum, o seu uso e
combinação, pelo contrário, faz gerar diversos sentidos numa obra. Logo, a palavra
poética serve a uma estrutura polissêmica. Ou seja, é trabalhada apuradamente na busca
de sentidos múltiplos.
De acordo com Eagleton,

A influência de Jakobson pode ser percebida em toda parte no Formalismo, no


estruturalismo tcheco e na linguística moderna. Ele contribui particularmente
para poética por ele considerada parte do campo da linguística, formulando a
noção de que a linguagem poética consistia acima de tudo de uma certa relação
autoconsciente da linguagem para consigo mesma (EAGLETON, 2001, p. 135).
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Fator importante na obra de Jakobson são suas teorias da comunicação e das


funções da linguagem. Nestes estudos, ele mostra que toda comunicação apresenta
basicamente seis elementos: emissor, receptor, mensagem, canal, código e referente.
Assim, em todo ato comunicativo há uma intenção que atinge predominantemente um
destes elementos, podendo ser definida sua determinada função. Podem ser elas:
emotiva (o emissor em destaque); referencial (a informação contextual em destaque);
apelativa (o receptor em destaque); fática (o canal em destaque); metalinguística (o
código em destaque) e poética – esta que nos interessa particularmente (a própria
mensagem em destaque, através de sua elaboração singular).
A poética, para Jakobson, preocupa-se com o que faz de uma mensagem verbal
uma obra de arte. Ou seja, suas pesquisas dizem respeito aos problemas da estrutura
verbal da obra. Apresenta, para isso, dois critérios linguísticos da função poética: critério
de seleção e de combinação das palavras. A seleção é feita em base de equivalência,
semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia; já a combinação é feita com base
na construção da sequência, se baseia na contiguidade. Vejamos as palavras de Jakobson:
“a função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de
combinação” (JAKOBSON, 2007, p. 136).
A poeticidade, para ele, não acrescenta ao discurso ornamentos retóricos, mas,
sim, apresenta uma total reavaliação do discurso e de todos os seus componentes, sejam
eles quais forem. Neste sentido, na poesia, qualquer elemento verbal passa a ser uma
figura do discurso poético.
A poesia para Roman Jakobson é um tipo de linguagem. Sendo assim ela deve ser
inclusa pelo linguísta em seus estudos. Este não pode deixar fora de suas pesquisas a
função poética da linguagem e um especialista da literatura não pode deixar de lado em
seus estudos os problemas linguísticos referentes à composição da obra.
Enfim, para ele a função poética surge quando o eixo de similaridade se projeta no
eixo de contiguidade. Quando o paradigma se projeta sobre o sintagma.
Outro grande estudioso da literatura foi Roland Barthes, professor e crítico francês
que muito influenciou e ainda influencia os estudos literários. Em seu livro Aula, ele nos
mostra algumas definições sobre o que seja a literatura: “trapaça salutar”, “deslocamento
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sobre a língua”, “encena a linguagem em vez de utilizá-la” (jogo teatral das palavras); e
usa também “função utópica” (BARTHES, 2005).
Já no livro Crítica e Verdade, ensina- nos que a linguagem literária nunca aponta o
mundo, aponta a si mesma. Logo a obra literária não é uma mensagem, “é fim em si
própria”. Para Barthes, a literatura não se trata de sentido, mas de processo de produção
de sentido, isto é, processo de “significação”. Segundo ele, formas e conteúdos não são o
mais importante numa obra literária, mas o processo que vai de uns aos outros. Logo, o
mais importante seriam os modos como a sociedade se apodera dos temas para
transformá-los em elementos de sistemas significantes.
Leyla Perrone-Moisés (2009), na apresentação deste livro, nos lembra que o
estudioso francês parte do princípio de que tudo seja linguagem, concentrando-se, assim,
na elaboração de uma ciência tendo como base o estruturalismo linguístico.
Diz Barthes: “a literatura ‘mais verdadeira’ é aquela que se sabe a mais irreal, na
medida em que ela se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado
intermediário entre as coisas e as palavras” (BARTHES, 2005, p. 79).
Outro grande estudo sobre o assunto está no livro Que é a literatura?, publicado
em 1948, por Jean-Paul Sartre. Ele reflete sobre a natureza e função da literatura,
respondendo a três perguntas básicas: o que é escrever?; por que escrever? E para quem
escrever? Sartre nos diz que escrever é um ato de desnudamento, e que aquele que
escreve tem a consciência de revelar as coisas, os acontecimentos e solicita um pacto
com o leitor, que ele colabore em transformar sua realidade, o mundo.
A Literatura para Sartre seria a tentativa do escritor de criar uma realidade que
pudesse ser exibida no mundo real, modificando, assim, as estruturas da sociedade. Para
o teórico aquele que escreve pode até não levar em conta um determinado tipo de leitor,
mas certo tipo de leitor já vem implícito no momento da escrita, funcionando, segundo
Eagleton, como uma estrutura interna do texto.
Vejamos outro teórico literário russo, Mikhail Bakhtin, que, segundo Eagleton, é “a
mais coerente crítica do formalismo russo” (EAGLETON, 2001, p. 160). Para este teórico, o
signo devia ser considerado como um elemento ativo da fala, transformado a partir de
sua modificação de significados, decorrente de variados contextos e variadas condições
sociais específicas.
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Diz Eagleton que:

Não se tratava simplesmente de perguntar “o que significava o signo”, mas de


investigar sua diversificada história, na medida em que os grupos sociais ,
classes, indivíduos e discursos conflitantes tentavam apropriar-se dele e
impregná-lo de seus próprios significados. (EAGLETON, 2001, p. 160)

Na teoria de Bakhtin a linguagem é vista como um elemento ideológico: os signos


são a própria matéria geradora e veiculadora da ideologia. Ou seja, sem eles não existem
valores ou ideias. Diz acordo Terry Eagleton:

Bakhtin respeitava o que se poderia chamar de “autonomia relativa” da


linguagem, o fato de ela não poder ser reduzida a um simples reflexo de
interesses sociais; insistia, porém, em que não havia linguagem que não
estivesse envolvida em relações sociais definidas e que essas relações sociais
eram, por sua vez, parte de sistemas políticos, ideológicos e econômicos mais
amplos (EAGLETON, 2001, p. 161).

Enfim, segundo a teoria de Bakhtin a linguagem é um meio material de produção


que gera significado através de um processo de conflito social e de diálogo.
Dando continuidade a esse panorama sobre questões de literatura, veremos que
aqui no Brasil temos Antonio Candido, professor e crítico de literatura dos mais influentes
e que muito acrescentou aos estudos literários do país. Vejamos algumas de suas
principais ideias neste campo da literatura.
Em seu livro Literatura e Sociedade levanta questões referentes à relação entre a
obra e o seu condicionamento social. Esta relação, segundo ele, não deve ser exagerada
para não se errar na interpretação. Ou seja, numa análise não se pode desfigurar a obra.
Diz ele que “só a podemos entender [a obra] fundindo texto e contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2010, p. 13). Para Candido o externo (o
social) importa como um elemento que tem certo papel na composição da estrutura da
obra, tornando-se assim um elemento interno de sua constituição.
Segundo o autor, antes o aspecto social era visto como essência realizadora da
obra. Depois se tomou posição oposta em que a importância passou a ser dada ao
material formal, independente de qualquer contexto, sobretudo social, considerado
inoperante como elemento de construção.
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Vejamos suas palavras:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas (...). Tanto o velho ponto de vista que explicava fatores
externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é
virtualmente independente, se combinam como elementos necessários do
processo interpretativo. (CANDIDO, 2010, p. 13-14)

Observemos que a literatura para Candido é uma criação estética que se vale de
aspectos do social para sua composição. Estes elementos do social integrados à obra,
entretanto, não devem ser encarados como os mesmos de antes, da realidade histórico-
social que foi tirada, mas, sim, reencarados como elementos que atuam na organização
interna da obra, de maneira a constituir-lhe uma estrutura peculiar.
Para Antonio Candido, a estética da estrutura deve assimilar a dimensão social
como fator de arte. Assim, “o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica,
para ser apenas crítica” (CANDIDO, 2010, p. 17). Desta forma, ensina-nos o mestre
brasileiro, a crítica literária supera o sociologismo crítico (tendência equivocada que
procura tudo explicar por meio dos fatores sociais), e não supera a orientação sociológica,
sempre possível e legítima segundo o autor. Nesta busca do que seja o elemento literário,
diz ele que:

Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,


psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de
conduzirem a uma interpretação coerente. (...) Mas nada impede que cada
crítico ressalte o elemento de sua preferência, desde de que o utilize como
componente da estrutura da obra. (CANDIDO, 2010, p. 17)

Candido nos diz que o elemento social é levantado para explicar a estrutura da
obra e a essência de suas ideias, fornecendo, assim, fatores para determinar a sua
validade e seu efeito sobre os leitores. No entanto, os elementos de ordem social são
filtrados em meio a uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, metáfora esta
usada para falar do entendimento da singularidade e autonomia da obra.
Enfim, após percorrer alguns de suas principais ideias sobre literatura, fiquemos
com as palavras de Candido que nos orientam sobre como recorrer no trato de um objeto
literário:
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O primeiro passo (que apesar de lógico deve ser assinalado) é ter a consciência
da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a
realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois
a mimese é sempre uma forma de poiese (CANDIDO, 2010, p. 12).

Vejamos a seguir alguns outros conceitos de literatura apresentados por alguns


estudiosos e esperamos que lhes sirvam para seus estudos literários. Décio Pignatari nos
ensina que “O poeta não trabalha com o signo, o poeta trabalha o signo verbal”
(PIGNATARI, 2005, p. 10). Já Jean Cohen no diz que “A frase poética é objetivamente
falsa, mas subjetivamente verdadeira” (COHEN, 1966, p. 171). Com Iuri Tinianov temos
que “A forma de uma obra literária deve ser entendida como uma entidade dinâmica”
(TINIANOV, 1983, p. 452).
Como pudemos perceber, desde Aristóteles até nossos dias, são muitos os
conceitos e estudiosos com suas teorias. Temos, aliás, aqui no Brasil, importantes teóricos
e críticos da linguagem literária, como Décio Pignatari, Haroldo de campos, Augusto de
Campos, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz e Otto Maria Carpeaux, por exemplo.
Enfim, o objetivo destes escritos foi apresentar alguns dos muitos caminhos que a
literatura vem percorrendo, além dos muitos teóricos que a representaram e ainda
representam. São esses, e outros mais, os conceitos com os quais devemos nos
familiarizar para nossa formação como professores. Independente das teorias acima
expostas, diferentes em suas abordagens, podemos dizer que todas elas trazem traços
teóricos comuns. Em todas elas é a palavra e seu uso que faz a diferença. Não qualquer
uso, mas um uso novo, singularizado, um uso literário das palavras.
A literatura em todas elas é vista como uma manifestação de arte, e a palavra é
seu material. É a linguagem que lhe dá vida. Mas não qualquer linguagem, mas, sim, uma
elaborada ao ponto de ser geradora de sentidos. Enfim, a forma como explora as
possibilidades verbais em seus vários níveis é seu traço essencial.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Edições de Ouro, 1969.
16

BARTHES, Roland. Aula. Trad: Leyla Perrone-Moisés. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

_________. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 3 ed. São Paulo: Perspectiva,
2009.

CANDIDO, Antonio. “Crítica e sociologia (tentativa de esclarecimento)”. In: ________.


Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 11 ed. Rio de Janeiro: Ouro
Sobre o Azul, 2010, p. 13-25.

COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. 2 ed. Trad: Álvaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1978.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 4 ed. Trad: Waltensir Dutra. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo


Paes. 22 ed. São Paulo: Cultrix, 2007.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.

TINIANOV, Iuri. “O ritmo como fator construtivo do verso”. In: COSTA LIMA, Luiz (seleção
e introdução). Teoria da literatura em suas fontes. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983, vol. I.
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1.2. Comunicação poética

Luís André Bezerra de Araújo


Carlos Eduardo Vieira do Carmo

A poesia é uma forma especial de manifestação da linguagem verbal. A sua


maneira de comunicar é permeada de especificidades, o que implica em regras também
específicas para sua abordagem e análise. Mas ainda antes de tudo isso, a poesia,
enquanto uma arte da palavra, já traz consigo ambiguidades. O grande poeta e teórico
Ezra Pound defende, por exemplo, que o estudo da poética deveria se dar na área de
música, artes plásticas ou arquitetura, mas não nas Letras.
A poesia traz consigo esta e outras peculiaridades que podem ser ditas como
“polêmicas”. Nas palavras de Décio Pignatari, ela parece ser um “corpo estranho nas artes
da palavra”, sendo também uma produção do anticonsumo.
Estamos lidando, portanto, com uma arte verbal, escrita, mas que atrai a atenção
de poucos leitores. E esse descaso não é de hoje. Historicamente, a poesia é consumida
por grupos restritos, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, vez ou outra esbarramos
com alguém dizendo “aventurar-se” na condição de poeta. Mas ser poeta é aventurar-se,
apenas? É lançar no papel qualquer “ideia interessante” que venha à mente? O que vem a
ser a poesia?
Para Ezra Pound, “literatura é linguagem carregada de significado” (POUND, 2006,
p. 32), e a linguagem é, naturalmente, utilizada para a comunicação. Então, qual a
característica peculiar da comunicação poética? Para responder tal questão, precisamos
enumerar palavras-chave, como: condensação, forma, ambiguidade, polissemia.
A poesia seria caracterizada como a arte verbal mais condensada, o que nada tem
a ver com a extensão física da sua criação. Trata-se de uma “condensação de ideias” e, no
poema, para que a linguagem atinja seu grau máximo de significação, os principais modos
utilizados são: a fanopeia (lançando imagens visuais na imaginação do leitor), a melopeia
(predominância do som e do ritmo) e a logopeia (construção de ideias e sentidos através
das associações entre as palavras).
Mas não se trata apenas de utilizar a linguagem para obter algum efeito. A poesia
caracteriza-se justamente pelo trabalho com a linguagem em si, o que leva Décio
Pignatari a afirmar que o poeta vive o conflito “signo vs. coisa”, por querer mergulhar
18

intensamente no trabalho do signo verbal, “fazendo linguagem”, trabalhando as raízes da


linguagem (PIGNATARI, 2005, p. 10-11).
E a importância da forma? E a ambiguidade? E a polissemia?
Se pensarmos um pouco, podemos perceber facilmente que estes três elementos
que havíamos mencionado anteriormente estão, de alguma forma, implícitos nas
definições e considerações sobre poema, que tomamos emprestadas de Pound e
Pignatari.
Quanto à forma, não se pode tomá-la isoladamente; ela está imbricada com o
conteúdo. Ora, se a poesia é o trabalho em si com a linguagem, e se sua forma e seu
conteúdo são indissociáveis, podemos dizer que esta forma não permite resumo.
Qualquer alteração da forma do poema significa uma mudança no trabalho com a
linguagem, o que altera a sua eficiência enquanto comunicação poética. Portanto, em se
tratando de poesia, a forma informa.
Ambiguidade e polissemia são características intrínsecas à feitura poética. O poeta
explora a ambiguidade sem limites, buscando o tal efeito de fazer linguagem com o
máximo de significados. Nesta busca de operar significados através de um jogo constante
entre som e sentido, dá-se naturalmente uma explosão polissêmica, uma proliferação de
significados, mostrando, antes de tudo, eficiência na sua comunicação poética. Voltando
a citar Ezra Pound: “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado
até o máximo grau possível” (POUND, 2006, p. 32).
Ainda contribuindo para essa variedade de sentidos que o poema pode assumir,
deve-se levar em consideração a relação estreita que há entre o texto e o contexto em
que este foi produzido. Situações como momento histórico e condições de produção do
poema podem interferir (e geralmente interferem) na significação da obra. Além, é claro,
do próprio posicionamento crítico do leitor. A sua maneira de ver o mundo, de perceber
as coisas, tem influência direta no sentido que extrai do poema. No entanto, cabe dizer
que nem toda interpretação é válida; qualquer afirmação que se faça sobre um poema
tem que ser comprovada com ele próprio.
Um bom poema não se esgota com o tempo. Sua leitura poderá operar variados
sentidos em diferentes tempos e lugares, sempre causando o fator estranhamento,
citado por Chklóvski. Para o formalista russo, toda vez que nos deparamos com o objeto
19

artístico é como se o estivéssemos vendo pela primeira vez. Tanto é assim que um
mesmo poema lido em momentos diferentes pelo mesmo leitor pode gerar
interpretações distintas.
Na tentativa de entendimento e análise de um poema, poderemos nos valer do
recurso da paráfrase, isto é, dizer, com nossas próprias palavras, o que o poema diz.
Importante lembrar que não se trata de um resumo, pois, como dissemos anteriormente,
a forma do poema é insubstituível. A paráfrase funciona apenas como um aliado durante
a análise, numa tentativa de melhor compreender os jogos de palavras criados pelo
poeta. Mas, utilizada a paráfrase, é imprescindível retomar a forma original do poema e, a
partir dos seus elementos estruturais, analisar o que ele tem a nos dizer.
Outro importante elemento que deve ser verificado na construção poética,
quando da sua análise, é o diálogo estabelecido com outros poemas e demais criações
artísticas. A esta relação entre textos da cultura damos o nome de intertextualidade.
Nenhuma criação artística está isolada no tempo e no espaço, o que lhe confere a
possibilidade de dialogar com diversas manifestações de comunicação e linguagem. O
poema dialoga, então, com diversas áreas do conhecimento, não se restringindo única e
exclusivamente a textos literários.
Fica, então, a cargo do receptor do poema a sua leitura, análise e interpretação. E
para obter êxito nesse processo é interessante que, em um primeiro momento, a atenção
esteja completamente voltada para os aspectos mais perceptíveis do texto: a sua forma;
que palavras são utilizadas e como se combinam; e ritmo e som que produzem.
Posteriormente (já em uma segunda leitura), cabe tentar fazer as conexões entre o dito
através do texto e o contexto histórico em que o poema foi escrito. Para tanto, na quase
totalidade dos casos, é necessário reler um mesmo poema repetidas vezes. Isso em muito
contribui para a compreensão do seu sentido, ainda que várias interpretações válidas
possam ser-lhe atribuídas.

1.2.1. Prosa e Poesia


Estamos discorrendo sobre textos literários, mas voltando nossa atenção
principalmente para a poesia – já que estamos tratando aqui sobre a teoria da poesia. E,
20

depois de já termos enumerado algumas características do texto poético, pensemos na


seguinte questão: em que a poesia difere do texto em prosa?
Inicialmente, recorremos a um princípio básico da nossa aprendizagem, já
mencionado aqui. Enquanto que, de um lado, a poesia trabalha a linguagem,
encharcando-a de ambiguidades (polissemia), de outro, o texto em prosa é mais objetivo,
trabalha com um grande destaque para o que está no seu conteúdo. O significado na
prosa, portanto, parece mais explícito, mais palpável, mais acessível que na poesia.
Esta pode parecer uma distinção simplista, ao priorizar conceitos mais tradicionais
da prosa e da poesia. Mas, didaticamente, serve como um ponto de partida. Porque logo
adiante começamos a lembrar exceções e os casos que nos fazem ver o quanto estas
relações não são estanques e podem separar prosa e poesia por uma linha bastante
tênue.
Com o advento da modernidade, não podemos ignorar uma profunda
transformação na linguagem de boa parte da produção literária em prosa. Para ficar
apenas em exemplos de escritores brasileiros, como ignorar a polissemia e riqueza de
linguagem na obra de João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Oswald de Andrade? E, até
mesmo voltando ao século XIX, como definir a narrativa de Machado de Assis? Parecem
ser exemplos suficientes para mostrar que a invenção (o trabalho com a linguagem em si)
não é mais exclusividade do texto poético.
E se alguém quiser definir a poesia como texto em versos? Ou se disser que a
diferença está no fato de a prosa narrar fatos? Para a primeira pergunta podemos
lembrar que, com a Poesia Concreta, na década de 1950, um dos tópicos discutidos foi o
da “morte do verso” e, de fato, passamos a ter poemas explorando a espacialidade da
folha em branco, fugindo da metrificação tradicional. Portanto, temos poemas sem
versos. Mas nunca sem palavra. Já para a segunda questão, podemos citar que um poema
épico tem uma grande narrativa, e que muitos poemas narram histórias; “Caso do
Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, é apenas um exemplo, em meio a tantos
outros.
Levantadas essas questões todas, vendo onde prosa e poesia se repelem, mas
verificando também que há casos onde se encontram e se confundem, recorremos à
definição de Roman Jakobson para o que seria o texto poético. E a explicação é esta:
21

temos linguagem poética quando o eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de


contiguidade. Ou melhor: o eixo paradigmático projetando-se sobre o eixo sintagmático.
Para melhor exemplificar, Décio Pignatari explica que “fazer poesia é transformar
o símbolo (palavra) em ícone (figura). Figura é só desenho visual? Não. Os sons de uma
tosse e de uma melodia também são figuras: sonoras” (PIGNATARI, 2005, p. 17-18). Assim
fica ainda mais fácil validar as definições de poesia já apresentadas, que a tomam como
sendo “condensação de ideias”, através dos modos apresentados por Pound: fanopeia,
melopeia e logopeia.
Assim sendo, podemos dizer que o poema possui sua própria gramática, e uma
operação muito particular da linguagem. Ou melhor, fazer poesia é fazer linguagem, com
bases em um dicionário próprio.
E a prosa? Também não se enquadra no que Barthes (2005) chama de “trapaça da
língua”, quando na sua definição do que é a literatura? Não está carregada de significado,
segundo definição de Ezra Pound? A resposta será sim para as duas questões. Mas o seu
nível de “manipulação” da linguagem é diferente do da poesia – é mais sutil.
A prosa irá sujeitar-se mais a uma ordenação de pensamento, para melhor
apresentar conteúdos, preocupando-se em encadear fatos. Mas lembremos sempre que
há gradações, pois devemos, antes de tudo, perceber formas. Seja em prosa, seja em
poesia. Mas podemos dizer com firmeza: na poesia, essencialmente.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Aula. Trad: Leyla Perrone-Moisés. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. 14 ed. rev. e atualizada. São Paulo: Ática,
2006.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 20 ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.
22

1.3. Elementos constitutivos do poema

Amador Ribeiro Neto


Luís André Bezerra de Araújo
Carlos Eduardo Vieira do Carmo

A compreensão de alguns conceitos acerca da estrutura de um poema pode


contribuir na sua análise e interpretação. A partir de agora, abordaremos estes aspectos
constitutivos que se referem diretamente à forma mais tradicional do poema.

Versificação (ou Metrificação)


Versificação diz respeito aos processos que envolvem a construção e estruturação
do verso no poema, abordando passo a passo os elementos que o compõem: os versos,
as estrofes, as rimas.
A escansão, a estrofação e o rimário fazem parte da Versificação (ou Metrificação).

1.3.1. Escansão
O poema comporta dois tipos de divisão silábica: a gramatical e a poética. Na
contagem gramatical, todas as sílabas são levadas em consideração. Já na divisão silábica
poética, computamos até a última sílaba tônica do verso. Além disso, consideramos os
casos de elisão vocálica, que consiste na junção das vogais finais de uma palavra com as
iniciais da palavra seguinte.
Fazer a escansão de um poema é, portanto, dividi-lo, a cada verso, em sílabas
poéticas. Assim, separando as sílabas do verso “A pena, como em prata firme”, do poema
“Profissão de fé”, de Olavo Bilac, teremos o seguinte:

A / pe / na / co / mo / em / pra / ta / fir / me
|... .|......|..... |......|.......|..... .|. ...|......| .....|
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
10 sílabas gramaticais

A / pe / na / co / moem / pra / ta / FIR (me)


23

|. ...|......|.. ...| .......|.. .......|......|. ....|


1 2 3 4 5 6 7 8
8 sílabas poéticas

Perceba que as sílabas gramaticais “mo” e “em” uniram-se, formando uma única
sílaba poética (ou seja, ocorreu uma elisão), e que a sílaba “fir” (última tônica) foi a última
considerada na escansão.
A título de explicação para um melhor entendimento sobre como se faz a
escansão de versos, perceba que: 1) utilizamos barras inclinadas para separar as sílabas
poéticas umas das outras; 2) a última sílaba tônica de cada verso está grafada em
maiúscula; 3) a(s) sílaba(s) átona(s), depois da última tônica fica(m) entre parênteses.
De acordo com a quantidade de sílabas poéticas, os versos recebem um nome
específico. A saber:

Versos monossílabos
São aqueles com apenas uma sílaba poética. Vejamos abaixo, um fragmento do
poema “Cocheiro bêbado”, de Arthur Rimbaud (tradução de Augusto de Campos), como
exemplo:

Dama DA (ma)
Tombo 1
Lombo TOM (bo)
1
Dói LOM (bo)
Clama: 1
Ai! DÓI
1
CLA (ma)
1
AI
1
24

Note que algumas palavras do poema têm duas sílabas gramaticais, mas apenas
uma sílaba poética, já que, como dito anteriormente, na escansão só se conta até a última
sílaba tônica do verso. Por isso, a sílaba átona posterior à última tônica fica entre
parênteses.

Versos dissílabos
São versos com duas sílabas poéticas, nos quais a tônica será, necessariamente, a
segunda. Como exemplo, a primeira estrofe do poema “O poeta ao espelho, barbeando-
se”, de José Paulo Paes:

o rito o / RI (to)
do dia 1 2
o ríctus do / DI (a)
do dia 1 2
o risco o / RÍC (tus)
do dia 1 2
do / DI (a)
1 2
o / RIS (co)
1 2
do / DI (a)
1 2

Versos trissílabos
São aqueles com três sílabas poéticas. Vejamos, como exemplo, um fragmento do
poema “A tempestade”, de Gonçalves Dias:

Vem a aurora Vem / au / RO (ra)


Pressurosa, 1 2 3
cor de rosa, pre / ssu / RO (sa)
que se cora 1 2 3
de carmim; cor / de / RO (sa)
as estrelas, 1 2 3
25

que eram belas, que / se / CO (ra)


tem desmaios, 1 2 3
já por fim. de / car / MIM
1 2 3
as / es / TRE (las)
1 2 3
quee / ram / BE (las)
1 2 3
tem / des / MAI (os)
1 2 3
já / por / FIM
1 2 3

Versos tetrassílabos
São versos com quatro sílabas poéticas. Como exemplo, a primeira estrofe do
poema “Primeiro tema bíblico”, de José Paulo Paes:

Dorme o profeta Dor / meo / pro / FE (ta)


De mãos cruzadas 1 2 3 4
Sob a folhagem De / mãos / cru / ZA (das)
Grave das barbas. 1 2 3 4
Sob / a / fo / LHA (gem)
1 2 3 4
Gra / ve / das / BAR (bas)
1 2 3 4

Versos pentassílabos
Também conhecidos como redondilha menor, são aqueles que possuem cinco
sílabas poéticas. Este tipo de verso é usado desde a Idade Média até os dias atuais. A
primeira estrofe do poema “Quero me casar”, de Carlos Drummond de Andrade, segue
como exemplo:

Quero me casar Que / ro / me / ca / SAR


na noite na rua 1 2 3 4 5
no mar ou no céu na / noi / te / na / RU (a)
26

quero me casar. 1 2 3 4 5
no / mar / ou / no / CÉU
1 2 3 4 5
que / ro / me / ca / SAR
1 2 3 4 5

Versos hexassílabos
São versos com seis sílabas poéticas. Para exemplificar o verso hexassilábico, um
trecho de “Uma faca só lâmina”, de João Cabral de Melo Neto:

Assim como uma bala A / ssim / co / mou / ma / BA (la)


enterrada no corpo 1 2 3 4 5 6
fazendo mais espesso en / te / rra / da / no / COR (po)
um dos lados do morto; 1 2 3 4 5 6
fa / zen / do / mais / es / PE (sso)
1 2 3 4 5 6
um / dos / la / dos / do / MOR (to)
1 2 3 4 5 6

Versos heptassílabos
São os versos que possuem sete sílabas poéticas. Também chamado de redondilha
maior, é um tipo de verso bastante tradicional, já utilizado desde as épocas medievais. De
Drummond, segue o poema “A gente sempre se amando”, como exemplo:

A gente sempre se amando A / gen / te / sem / pre / sea / MAN (do)


nem vê o tempo passar. 1 2 3 4 5 6 7
O amor vai-nos ensinando nem / vê / o / tem / po / pa / SSAR 1
que é sempre tempo de amar. 1 2 3 4 5 6 7
Oa / mor / vai / nos / en / si / NAN (do)
1 2 3 4 5 6 7
queé / sem / pre / tem / po / dea / MAR
1 2 3 4 5 6 7

1
Perceba que, para obedecermos à metrificação (de versos heptassílabos), não fizemos a elisão de “vê + o”.
Esta é uma das exceções possíveis, nas quais não fazemos a elisão de uma sílaba tônica.
27

O verso de sete sílabas, bastante popular, é usado abundantemente na literatura


de cordel. Para exemplificar o heptassílabo neste tipo de literatura, vejamos a terceira
estrofe de “Resposta de Patrão”, do poeta Patativa do Assaré:

No papel de mexerico No / pa / pel / de / me / xe / RI (co)


Tirei primeiro lugar, 1 2 3 4 5 6 7
Fui o leva-e-traz do rico Ti / rei / pri / mei / ro / lu / GAR
Que vive a politicar, 1 2 3 4 5 6 7
Quando fiado eu comprava, Fui / o / le / vae / traz / do / RI (co)
Depois a conta eu negava 1 2 3 4 5 6 7
E nunca me saí mal, Que / vi / vea / po / li / ti / CAR
E pra fazer mão de gato 1 2 3 4 5 6 7
Em favor de candidato, Quan / do / fi / a / doeu / com / PRA (va)
Já fui cabo eleitoral. 1 2 3 4 5 6 7
De / pois / a / con / taeu / ne / GA (va)
1 2 3 4 5 6 7
E / nun / ca / me / sa / í / MAL
1 2 3 4 5 6 7
E / pra / fa / zer / mão / de / GA (to)
1 2 3 4 5 6 7
Em / fa / vor / de / can / di / DA (to)
1 2 3 4 5 6 7
Já / fui / ca / boe / lei / to / RAL
1 2 3 4 5 6 7

Versos octossílabos
São versos compostos por oito sílabas poéticas. O trecho abaixo, do poema
“Surdina”, de Olavo Bilac, exemplifica:

No ar sossegado, um sino canta Noar / so / sse / ga / doum / si / no / CAN (ta)


Um sino canta no ar sombrio 1 2 3 4 5 6 7 8
Um / si / no / can / ta / noar / som / BRI (o)
1 2 3 4 5 6 7 8

Versos eneassílabos
São aqueles formados por nove sílabas poéticas. Como exemplo de verso
eneassilábico, um fragmento do poema “Canto do Piaga”, de Gonçalves Dias:
28

Não sabeis o que o monstro Não / sa / beis / o / queo / mons / tro / pro / CU (ra)
procura? 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Não sabeis a que vem, o que quer? Não / sa / beis / a / que / vem / o / que / QUER
Vem matar vossos bravos guerreiros, 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Vem roubar-vos a filha, a mulher! Vem / ma / tar / vo / ssos / bra / vos / gue / RREI (ros)
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Vem / rou / bar / vos / a / fi / lhaa / mu / LHER
1 2 3 4 5 6 7 8 9

Versos decassílabos
Com dez sílabas poéticas, estes versos são detentores de grande efeito sonoro. E é
justamente por conta desse seu caráter marcadamente musical, que esse tipo de verso
encontra-se constantemente em sonetos (forma fixa de poema sobre a qual trataremos
mais adiante).
Este tipo de verso pode ter duas classificações diferentes, de acordo com a
posição de suas sílabas tônicas. Chama-se decassílabo heroico, se a tonicidade recair
sobre a sexta e a décima sílabas. E chama-se decassílabo sáfico, se a quarta, a oitava e a
décima forem as sílabas tônicas do verso.
Como exemplo de um decassílabo heroico, temos o primeiro terceto do soneto
“Ao braço do menino Jesus quando aparecido”, de Gregório de Matos:

O braço de Jesus não seja parte, O / bra / ço / de / Je / SUS / não / se / ja / PAR (te)
Pois que feito Jesus em partes 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
todo, Pois / que / fei / to / Je / SUS / em / par / tes / TO (do)
Assiste cada parte em sua parte. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
A / ssis / te / ca / da / PAR / teem / su / a / PAR (te)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

E, para exemplificar o verso decassílabo sáfico, a terceira estrofe do soneto “Vita


nuova”, de Olavo Bilac:

Amo-te! A febre, que supunhas morta,


Revive. Esquece o meu passado, louca!
29

Que importa a vida que passou? Que importa,

A / mo / teA / FE / bre / que / su / PU / nhas / MOR (ta)


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Re / vi / vees / QUE / ceo / meu / pa / SSA / do / LOU (ca)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Queim / por / taa / VI / da / que / pa / SSOU / queim / POR (ta)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Versos hendecassílabos
São versos que contêm onze sílabas poéticas. A título de exemplo, segue um
trecho do poema “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias:

Acerva-se a lenha da vasta fogueira


Entesa-se a corda da embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis...

A / cer / va / sea / le / nha / da / vas / ta / fo / GUEI (ra)


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
En / te / sa / sea / cor / da / daem / bi / ra / li / GEI (ra)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
A / dor / na / sea / ma / ça / com / pe / nas / gen / TIS
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

Versos dodecassílabos
São os versos compostos por doze sílabas poéticas. Também conhecidos como
versos alexandrinos, são muito utilizados desde a Antiguidade Clássica. Há duas formas
mais comuns de posicionamento das sílabas tônicas no verso alexandrino. A primeira, e
mais recorrente, é a que divide o verso exatamente ao meio, com a sexta e a décima
segunda sílabas tônicas. A segunda forma usual de distribuição das sílabas tônicas neste
tipo de verso é a que acentua a quarta, a oitava e a décima segunda sílabas. Cada uma
das partes iguais (duas ou três) nas quais o verso alexandrino é dividido recebe o nome
de hemistíquio. Às pausas, incidindo sobre as tônicas, damos o nome de cesura.
30

Como exemplo de verso alexandrino dividido em dois hemistíquios (duas partes


iguais), temos o seguinte fragmento do poema “O caçador de esmeraldas”, de Olavo
Bilac:

Do mundo por nascer que trazias no seio,


Reboavas ao tropel dos índios e das feras!

Do / mun / do / por / nas / CER / que / tra / zi / as / no / SEI (o)


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Re / boa / vas / ao / tro / PEL / dos / ín / dios / e / das / FE (ras)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Como exemplo de verso alexandrino divido em três hemistíquios (três partes


iguais), com sílabas tônicas na quarta, oitava e décima segunda posições, temos o
segundo verso da primeira estrofe do soneto “Amor”, de Cruz e Souza:

O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...

Oa / mor / é / SEM / preo / vi / nhoe / NÉR / gi / coi / rri / TAN (te)


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Versos com mais de doze sílabas


Há, ainda, versos maiores que os alexandrinos. Geralmente são versos livres,
largamente produzidos, sobretudo, desde o modernismo. Há afirmações de que este tipo
de verso é, na verdade, composto por dois versos menores: com 15 sílabas, formado por
um de sete e outro de oito; ou com 13, formado por um de seis e outro de sete, por
exemplo. Mas, esta é uma afirmação contestável. A seguir, um fragmento do poema
“Ceia”, de José Paulo Paes, como exemplo:

Pesca no fundo de ti mesmo o peixe mais luzente.


Raspa-lhe as escamas com cuidado: ainda sangram.
Põe-lhe uns grãos do sal que trouxeste das viagens
E umas gotas de todo o vinagre que tiveste de beber na vida.
31

Pes / ca / no / fun / do / de / ti / mes / moo / pei / xe / mais / lu / ZEN (te)


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
Ras / pa / lheas / es / ca / mas / com / cui / da / doa / in / da / SAN (gram)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
Põe / lheuns / grãos / do / sal / que / trou / xes / te / das / vi / A (gens)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Eu / mas / go / tas / de / to / doo / vi / na / gre / que / ti / ves / te / de / be / ber / na / VI
(da)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19

O verso, como já deve estar entendido até aqui, é cada linha do poema, composta
de uma ou mais palavras, e que assume uma unidade rítmica.
Os versos podem ser classificados em três tipos básicos:
Versos regulares. São os que já vimos até aqui, regidos pelas regras clássicas
ditadas pela métrica. Tais regras determinam, entre outras coisas, a disposição das sílabas
tônicas ao longo do verso e a construção de rimas, que marcam a semelhança sonora no
final e/ou no interior de cada verso.
Versos brancos. Também seguem as mesmas regras de versificação e acentuação
que os versos regulares, mas diferenciam-se destes por não possuírem rimas. Um bom
exemplo de versos brancos está na primeira estrofe do poema “O elefante”, de Carlos
Drummond de Andrade:

Fabrico um elefante Fa / bri / coum / e / le / FAN (te)


de meus poucos recursos. 1 2 3 4 5 6
Um tanto de madeira de / meus / pou / cos / re / CUR (sos)
tirado a velhos móveis 1 2 3 4 5 6
talvez lhe dê apoio. Um / tan / to / de / ma / DEI (ra)
E o encho de algodão, 1 2 3 4 5 6
de paina, de doçura. ti / ra / doa / ve / lhos / MÓ (veis)
A cola vai fixar 1 2 3 4 5 6
suas orelhas pensas. tal / vez / lhe / dê / a / POI (o)
(...) 1 2 3 4 5 6
Eo / en / cho / deal / go / DÃO
1 2 3 4 5 6
de / pai / na / de / do / ÇU (ra)
1 2 3 4 5 6
A / co / la / vai / fi / XAR
1 2 3 4 5 6
su / as / o / re / lhas / PEN (sas)
1 2 3 4 5 6
32

Perceba que todos os versos têm seis sílabas (hexassílabos, portanto), mas não
possuem rimas entre si.

Versos livres. São versos que não estão submetidos a qualquer restrição métrica.
Diferentemente dos regulares e dos brancos, não obedecem às regras de posicionamento
da sílaba tônica, nem de existência ou regularidade de rimas. Utilizados largamente,
sobretudo a partir do modernismo, estes versos podem variar quanto ao número de
sílabas poéticas.
Como exemplo, vejamos uma estrofe de “Meninos Carvoeiros”, de Manuel
Bandeira:

Só mesmo estas crianças raquíticas


Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles...
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
- Eh, carvoero!

Só / mes / moes / tas / cri / an / ças / ra / QUÍ (ticas)


1 2 3 4 5 6 7 8 9
Vão / bem / com / es / tes / bu / rri / nhos / des / ca / dei / RA (dos)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
A / ma / dru / ga / dain / gê / nua / pa / re / ce / fei / ta / pa / ra / E (les)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Pe / que / ni / nain / gê / nua / mi / SÉ (ria)
1 2 3 4 5 6 7 8
A / do / rá / veis / car / vo / ei / ri / nhos / que / tra / ba / lhais
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
[ co / mo / se / brin / CÁ (sseis)
14 15 16 17 18
Eh / car / vo / E (ro)
1 2 3 4
33

1.3.2. Estrofação
Estrofe é um agrupamento de dois ou mais versos. De acordo com a quantidade
de versos que possui, cada estrofe recebe um nome específico. Desta forma:

Quantidade de versos Nome da estrofe


Dois versos Dístico
Três versos Terceto
Quatro versos Quadra ou quarteto
Cinco versos Quinteto ou quintilha
Seis versos Sexteto ou sextilha
Sete versos Sétima ou septilha
Oito versos Oitava
Nove versos Novena ou nona
Dez versos Décima

Há algumas formas fixas de poemas. O soneto, por exemplo, comumente com dois
quartetos e dois tercetos (totalizando 14 versos), é uma das formas fixas mais conhecidas:

Para uma tela desbotada


(Glauco Mattoso)

Ari Barroso é mesmo um convencido!


Querer que essa “Aquarela” represente
a síntese, em canção, da nossa gente
é muita pretensão! Disso eu duvido!

Francisco Alves até nem vê sentido


algum nesse “inzoneiro”, que acrescente
um rótulo ao mulato irreverente
que Ari diz ser o símbolo querido.
34

Cantava “risoneiro”, ou algo assim,


o Chico. E esse “coqueiro que dá côco”?
Coqueiro dá castanha? Amendoim?

Se quis fazer um hino, fez um oco


glossário de clichês que, para mim,
nem chega aos pés dum lírico barroco.

Outras formas fixas do poema:


Balada: composta por três oitavas, geralmente com versos de oito sílabas.
Haicai: um terceto, tradicionalmente formado por versos de cinco, sete e cinco
sílabas, respectivamente.
Quadrinha: composta por apenas um quarteto.
Rondel: formado, em geral, por um quarteto, um terceto e um quinteto,
respectivamente.
Rondó: normalmente constituído por um quinteto, um terceto e outro quinteto.
Sextina: composta por seis sextilhas e um terceto.
Triolé: formado por uma ou mais oitavas, com versos de sete ou oito sílabas.
Vilancete: constituído por um terceto e duas oitavas.

Há, ainda, casos em que um ou mais versos se repetem ao longo do poema. É o


chamado refrão, que serve para facilitar a memorização. Vejamos um trecho do poema
“Belém do Pará”, de Manuel Bandeira:

Bembelelém
Viva Belém!

Belém do Pará porto moderno integrado no equatorial


Beleza eterna da paisagem

Bembelelém
Viva Belém!

Cidade pomar
(Obrigou a polícia a classificar um novo tipo de delinquente:
O apedrejador de mangueiras
35

Bembelelém
Viva Belém!

A estrofe “Bembelelém / Viva Belém!”, por meio da repetição, acaba por reiterar o
tema central do poema, já apresentado no título.

1.3.3. Rimário
Rimário é o estudo das rimas de acordo com suas posições no verso e na estrofe.
As rimas podem ser classificadas em internas ou externas.

Rima externa. Acontece quando a semelhança sonora é percebida em sílabas


situadas ao final dos versos, como no primeiro quarteto do soneto “À virgem santíssima”,
de Antero de Quental:

Num sonho todo feito de incerTEZA,


De noturna e indizível ansIEDADE
É que vi teu olhar de pIEDADE
E, mais que piedade, de trisTEZA.

As rimas [teza] e [iedade] são do tipo externas.

Rima interna. Acontece, geralmente, entre a palavra final de um verso e outra no


interior do verso seguinte. Mas pode se dar, ainda, entre palavras no interior de um
mesmo verso ou de versos distintos. A condição para que uma rima seja interna é que
pelo menos uma das palavras envolvidas na rima esteja no interior de um dos versos. No
exemplo que se segue, o trecho de “Poema final”, de Camilo Pessanha, apresenta rima
interna entre palavras no interior de versos distintos:

Que toda a noite erRAIS, doces almas penando,


E as asas laceRAIS na aresta dos telhados,
E no vento expiRAIS em um queixume brando.
36

Apresentamos outro exemplo ainda mais sofisticado de rima interna, presente no


fragmento da letra de “Escândalo”, de Caetano Veloso:

Agora, nada de machado e sândalo


Eu já estou sã da loucura que havia em sermos nós

Perceba que “sândalo” rima com “sã da loucura”, presente no verso seguinte.

Com relação aos fonemas envolvidos na rima, podemos classificá-la em consoante


ou toante.

Rima consoante. É aquela em que estão envolvidas consoantes e vogais, como no


exemplo do poema de Antero de Quental, em que as rimas [teza] e [iedade] são formadas
tanto por consoantes quanto por vogais.

Rima toante. É aquela em que apenas as vogais tônicas das palavras rimam entre
si, sem o envolvimento de consoantes ou vogais átonas. O fragmento do poema “Novo
Éden”, de Sousândrade, funciona como exemplo:

Fundo silêncio estava dia e nOite


Na sombria mansão: de longe em lOnge,
Como rasgam-se as brisas açoitAdas
Por vergônteas, manhãs d’esto, etérea Aura

Perceba que apenas as vogais tônicas rimam entre si: o *o+ de “nOite” e “lOnge” e
o *a+ de “açoitAdas” e “Aura”.

Tipos de rimas externas


Para facilitar na análise, convencionou-se atribuir a cada rima diferente, dentro de
um poema, uma letra do alfabeto, na sequência A, B, C..., como exemplificaremos a
37

seguir. Antes, porém, convém dizer que as rimas externas podem ser de quatro tipos:
cruzadas, emparelhadas, interpoladas e misturadas.

Rimas cruzadas. Também chamadas de rimas alternadas, são aquelas em que as


sílabas com semelhança sonora se apresentam em versos alternados. Para exemplificar,
um trecho do poema “Dados biográficos”, de Carlos Drummond de Andrade:

Mas que dizer do poETA rima A


numa prova escolAR? rima B
Que ele é meio patETA rima A
e não sabe rimAR? rima B

A alternância ABAB classifica essas rimas em cruzadas ou alternadas.

Rimas emparelhadas. Rimas que podem ser chamadas, também, de paralelas, são
aquelas que aparecem em versos seguidos. Vejamos o primeiro quarteto do “Soneto de
fidelidade”, de Vinicius de Moraes.

De tudo ao meu amor serei atento rima A


Antes e com tal zelo e sempre e tANTO rima B
Que mesmo em face do maior encANTO rima B
Dele se encante mais meu pensamento rima A

As rimas em [anto] (B) aparecem em versos seguidos, formando, portanto, um


caso de rimas emparelhadas.
Rimas interpoladas. São as que, como o próprio nome diz, ficam nos polos da
estrofe. Podem ser chamadas, também, de opostas. Repetimos a estrofe de “Soneto de
fidelidade” para exemplificar:

De tudo ao meu amor serei atENTO rima A


Antes e com tal zelo e sempre e tanto rima B
Que mesmo em face do maior encanto rima B
Dele se encante mais meu pensamENTO rima A
38

Perceba que as rimas [ento] (A) situam-se nas extremidades da estrofe, formando
um caso de rimas interpoladas.
Ou seja, a rima A é do tipo interpolada e a rima B é emparelhada.

Rimas misturadas. São aquelas que não obedecem aos critérios dos tipos
anteriores, adotando uma sequência aleatória. Para exemplificar, um fragmento do
poema “O rapaz”, de Amador Ribeiro Neto:

o rapaz surgiu inesperado


feito carta depositada

anônima às escondidas
na caixa ao lado

num flash
da madrugada

pintou sem ninguém ter ficado


pesar pesares nunca mais

jamais idas
nevermore crash

veio sem que nada


ninguém nenhuns ais

sumiu num repente


de desnortear nordestino

um violeiro alado
nada mais

surpresa gente
desatino

(...)
Define-se, ainda, por rima órfã (ou rima perdida) aquela em que uma sílaba no
final de um verso não rima com qualquer outra dos outros finais de versos do poema.
Como exemplo, veja uma estrofe do poema “O mito”, de Drummond:
39

E daí não sou criança


Fulana estuda meu rosto.
Coitado: de raça branca.
Tadinho: tinha uma gravata.

Note que “criAnça”, “brAnca” e “gravAta” formam rima toante entre si, na vogal
tônica “a”. E o segundo verso, em “rosto”, não rima com o final de nenhum outro verso,
ou seja, compõe uma rima órfã.

Rimas agudas, graves ou esdrúxulas. Aqui, o critério a ser utilizado na


classificação da rima é a posição da sílaba tônica final de cada verso.
Se as últimas palavras dos versos que rimam entre si forem oxítonas, dá-se a rima
aguda. Exemplos: [manhã] e [cunhã]; [sapé] e [picolé]; [caqui] e [tupi]; [alô] e [avô];
[tambaú] e [cururu].
Se as últimas palavras dos versos que rimam forem paroxítonas, dá-se a rima
grave. Exemplos: [caneta] e [gaveta]; [sutilmente] e [avidamente]; [constança] e
[bonança].
Se as últimas palavras dos versos que rimam entre si forem proparoxítonas, dá-se
a rima esdrúxula. Exemplos: [elástico] e [plástico]; [atlântico] e [transatlântico];
[tristíssimo] e [felicíssimo].

Rimas ricas e pobres. Para estabelecer a classificação das rimas em ricas e pobres,
são levados em consideração dois critérios: um gramatical e um fônico. A partir do
critério gramatical, uma rima será pobre se a semelhança sonora se der entre duas
palavras de mesma classe gramatical, e rica, se for entre palavras de classe gramatical
diversa. Assim, [cama] e [lama] compõem uma rima pobre, por ambas pertencerem à
mesma classe gramatical (substantivo); [triste] e [existe] formam uma rima rica, já que a
primeira é adjetivo e a segunda, verbo.
Segundo o critério fônico, as rimas serão pobres se a semelhança sonora se der
apenas a partir da vogal tônica, e serão ricas se essa semelhança começar antes da vogal
tônica. Desta forma, “vida” e “partida”, compõem uma rima pobre, já que rimam apenas
a partir da vogal tônica “i”; “convencimento” e “aparecimento”, por sua vez, formam
40

uma rima rica, pois rimam desde as letras “c”, “i” e “m”, que vêm antes da vogal tônica
“e”.

1.3.4. Elementos complementares na constituição do poema

Enjambement. Também chamado de encadeamento, o enjambement é a


continuação sintática, semântica e rítmica no verso seguinte. Sempre que algo a ser dito
em um verso só se completar com o verso posterior, dá-se o enjambement, que transmite
essa ideia de continuidade, de sequência, de prosseguimento. Exemplo disto aparece na
passagem do primeiro para o segundo verso do poema “Desencanto”, de Manuel
Bandeira:

Eu faço versos como quem chora


De desalento... de desencanto...

Perceba que o verbo “chora”, no final do primeiro verso, exige um complemento


que só vem no segundo verso: “De desalento... de desencanto”.

Anáfora. É a repetição de uma palavra, ou um grupo delas, no início, meio ou fim


de dois ou mais versos. Para exemplificar, quatro versos do poema “O cão sem plumas”,
de João Cabral de Melo Neto:

O mar e seu incenso,


o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago (...)

“O mar” se repete no início de cada um destes quatro versos. É esta repetição que
recebe o nome de anáfora. Agora vejamos uma estrofe do poema “Infância”, de Manuel
Bandeira, na qual a anáfora aparece no final dos versos:

A casa da Rua da União.


O pátio – núcleo de poesia.
41

O banheiro – núcleo de poesia.


O cambrone – núcleo de poesia (“la fraîcheur dez latrines!”)

Metalinguagem. Acontece quando o autor se utiliza da linguagem para falar sobre


a própria linguagem. É como fazer fotos de fotografias ou de pessoas fotografando. Ou
um filme que trate sobre a feitura de um filme. Assim, em poesia, quando um poema
discorre sobre poesia ou sobre a linguagem ou o modo de fazer o poema, tem-se a
metalinguagem. O poema “Catar feijão”, de João Cabral de Melo Neto, é um bom
exemplo de poema metalinguístico:

Catar feijão se limita com escrever:


jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele.
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

Aliteração. É a repetição de uma consoante, ou um grupo delas, no corpo de


alguns ou de todos os versos de uma estrofe ou de um poema. Em um dos versos do
poema “Catar feijão”, de João Cabral de Melo Neto, há a repetição do fonema /g/:

Jogam-se os grãos na água do alguidar

Assonância. É a repetição de uma vogal, oral ou nasalizada, no corpo de um ou


mais versos de uma estrofe, e/ou ao longo do poema. Um bom exemplo de assonância,
42

com a letra “i”, encontra-se no poema “Quadro completo da primavera”, de Maiakóvski


(tradução de Haroldo de Campos):

Filhinhas.
Linhas. Zibelinas só-
zinhas.
Onomatopeia. Trata-se da simulação de algum som por meio dos fonemas. Por
exemplo, “tic-tac”, que representa o funcionamento de um relógio, ou “toc-toc”, que
simula o som de batidas em uma porta. Na poesia, este recurso é utilizado por muitos
poetas de forma mais complexa. No fragmento do poema “Trem de ferro”, de Manuel
Bandeira, os fonemas das palavras dão a ideia do som do trem:

Café com pão


Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Vejamos, em um trecho do poema “Bonde”, de Oswald de Andrade, um exemplo


mais elaborado de onomatopeia:

O transatlântico mesclado
Dlendlena e esguicha luz
Postretutas e famias sacolejam

O termo “Dlendlena” faz alusão ao som de um sino, que era um acessório dos
bondes (importante meio de transporte coletivo no início do século XX).

Neologismo. Trata-se da criação de novos vocábulos. Pode acontecer a partir da


junção de duas ou mais palavras já existentes, ou usando a mescla de criatividade e
liberdade para inventar novos termos. Augusto de Campos, por exemplo, na tradução de
um texto de Lewis Carroll, usa o termo “homenino” (homem+menino) e Guimarães Rosa
usou “descreviver” (descrever+viver).
43

Antítese. Consiste na exposição de uma ideia através de conceitos ou


pensamentos opostos, confrontando-se. Tomemos fragmentos do poema “O mínimo do
máximo”, de Paulo Leminski, que já traz a antítese no título:

Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
(...)
quando me aproximo,
simplesmente me desfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo.

A antítese, aqui, se dá entre as palavras “lento” e “rápido”, entre “mais” e


“menos”, e entre “mínimo” e “máximo”.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Carlos Drummond de. José & outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

_________. Antologia poética [organizada pelo autor]. 63 ed. Rio de Janeiro: Record,
2009.

_________. Declaração de amor: Canção de namorados. Rio de Janeiro: Record, 2009.

ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de


uma poética sertaneja). Fortaleza: Editora UFC / São Paulo: Nankin Editorial, 2003.

ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. 2 ed. São Paulo: Globo, 2003.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 5 ed. 1 reimp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009.

BILAC, Olavo. Poesia. Organização de Alceu de Amoroso. Rio de Janeiro: Agir, 1958.

CAMPOS, Augusto de. Verso reverso controverso. 2 ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1988.

DIAS, Gonçalves. Últimos cantos. Rio de Janeiro: Typographia de F. de Paula Brito, 1851.

GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. 14 ed. rev. e atualizada. São Paulo: Ática,
2006.
44

LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2002.

MATOS, Gregório de. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1992.

MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.

________. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

MORAES, Vinicius de. Antologia poética. 5 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PAES, José Paulo. Poesia completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

PESSANHA, Camilo. Clepsidra. São Paulo: Núcleo, 1989.

QUENTAL, Antero de. Antologia. Org. José Lino Grunewald. Rio de Janeiro: Nova fronteira,
1991. (Coleção Poesia de Todos os Tempos).

SCHNAIDERMAN, Boris et alii. Maiakóvski: poemas. 7 ed. 1 reimp. São Paulo: Perspectiva,
2006.

SOUSÂNDRADE, Joaquim de. Poesias. Antologia organizada por Augusto e Haroldo de


Campos. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1995. (Coleção Nossos Clássicos).

SOUSA, João da Cruz e. Poesia completa. Org. Zahidé Lupinacci Muzart. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura, 1993.
45

1.4. Elementos constitutivos da canção popular


Luís André Bezerra de Araújo

1.4.1. Poesia e letra de música (Amador Ribeiro Neto)2


Nos anos 1970 era comum ouvir que os poetas tinham migrado dos livros para a
música popular. A afirmação é originariamente atribuída ao poeta Paulo Leminski, ele
próprio um compositor bissexto. Autor da ácida “Verdura”, que lá pelas tantas atira: “De
repente vendi meus filhos pruma família americana / eles têm carro, eles têm grana / eles
têm casa e a grama é bacana / só assim eles podem voltar / e pegar um sol em
Copacabana”.
Letra que revolve as fibras do coração pater/materno num gesto inicial de
selvageria: vender os filhos. Mas logo a indignação ante a venda se depara com um gesto
de grande amor: “só assim eles podem voltar” e desfrutar do próprio país. Um chiste de
liames líricos e corrosivos. Um canto de amor e protesto. Leminski consegue em poucos
versos anular a falsa dicotomia lírico versus engajado; pessoal versus social. Em seus
versos (como nos de Chico Buarque, por exemplo) o sujeito é parte viva e integrante da
massa. O gesto individual está carregado de significação social. Assim, o poeta de
Caprichos e Relaxos dribla a armadilha de que obra engajada é obra panfletária. Ele prova
que aprendeu bem a lição de Maiakóvski: não há arte revolucionária sem forma
revolucionária.
Mas escrevíamos no parágrafo anterior: “letra que revolve as fibras, etc., etc.”.
Não seria melhor dizer “poesia que revolve as fibras, etc.”?
Por que é que quando escrevemos um texto não musicado nós o chamamos de
poesia e quando este texto é musicado vira letra? Sem dúvidas que há uma gradação de
sentido nesta distinção que fazemos até irrefletidamente.
Poesia é sempre algo a mais. Aquele algo que depura a palavra e lhe permite ser
uma figura singular e auto-suficiente. Letra é um pedaço de algo. De uma música, no
caso.

2
Este subtópico é a transcrição de um fragmento do artigo “Uma levada maneira: no ar, poesia e música
popular”, de Amador Ribeiro Neto (2000).
46

É mesmo? Sabemos que não era assim, por exemplo, na Grécia Antiga ou na
Provença. Música e poesia conviviam sem distinções e discriminações. Toda esta prática
era oral e transmitida de geração em geração sem conflitos. A ruptura entre música e
poesia se dá com o advento da escrita. Na folha de papel a palavra ganha autonomia. A
partir de agora elas podem ser fixadas segundo critérios que vencem de longe os limites
da memória. Da exploração dos meandros da palavra no papel à composição espacial dos
versos a poesia, via de regra, vai cada dia se distanciando mais e mais da palavra falada,
da memória oral dos povos.
A poesia vira um estatuto à parte. A música, por sua vez, verticaliza-se no
emaranhado de imagens sonoras e vale-se da palavra, quando muito, para enunciar o
nome dos compositores, o título das obras ou compor um libreto de características
literárias quase sempre discutíveis.
Com a Bossa Nova, a partir dos anos 1950, a coisa muda de figura no Brasil. Hoje é
muito difícil estabelecer a zona limítrofe entre uma “letra de música” e uma “poesia”.
Nem precisamos falar da produção de nomes consagrados de nossa MPB como Caetano
Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Paulinho da Viola, Alceu Valença,
entre outros. Podemos citar compositores “novos” como Chico Science, Arnaldo Antunes,
Chico César, Arrigo Barnabé, Adriana Calcanhoto, Luiz Tatit, Otto, Zeca Baleiro, Itamar
Assumpção, André Abujamra, etc.
Tomemos o caso de Arnaldo Antunes, que além de compositor de MPB é também
poeta “de livros” como Psia (1986), Tudos (1990), As coisas (1991), Nome (1993; também
é cedê e vídeo), Dois ou mais corpos no mesmo espaço (1997). Arnaldo começou nos Titãs
fazendo música e letra. Depois se deu conta de que algumas das letras (como a de “O
quê”) poderiam ser poesia de livro, quando transpostas para a folha de papel. No caso
deste poema a disposição gráfica na página em branco era essencial para a sua realização.
Cantado era puro rock de primeira. No livro revelou-se um belo poema concreto.
Neste caso a composição virou poema. Mas há o inverso. Do livro As coisas, Jorge
Benjor musicou “As árvores”, um poema em prosa que agradou muito ao compositor de
melodias tão imprevisíveis quanto singelas. Benjor, um mago das melodias e ritmos,
musicou o poema tão bem que parece que ele nasceu canção. No entanto, o próprio
Arnaldo não o tinha musicado porque via-o como “poesia de livro”.
47

A questão poesia de livro e letra de música é mais complexa do que julgamos à


primeira vista. Alguns críticos afoitos decretam que poesia é coisa de livro, e letra de
música é coisa cantada. Mas o próprio Platão (século V a.C.) já se interrogava: “o que são
os versos dos poetas quando se lhes tira o colorido que lhes empresta a música?”.
Assim, adianta pouco ou quase nada o poeta João Cabral declarar que não gosta
de música e o músico João Donato retrucar que odeia poesia. Os dois continuam
cruzando seus desafetos estéticos com a força da realidade: poesia é música e música é
poesia. Há muita música na poesia de Cabral. Como há muita poesia na música de João
Donato.
O próprio Arnaldo Antunes musicou o nosso grande Augusto dos Anjos. Está lá no
disco Ninguém o poema “Budismo Moderno”. Surpreendentes acordes bossanovísticos
associam-se à estridência de ruídos de um serrote e de uma guitarra distorcida
contrapondo-se a uma programação de cordas. Um resultado que na certa alegraria o
próprio poeta, afeito ao que era novo, inusitado, instigante, provocativo.
Há mesmo uma gradação hierárquica entre os conceitos de “letra” e “poesia”? Se
não há gradação de valor, o que as diferencia uma da outra? Nada? Então podemos
musicar todo e qualquer poema e/ou poeta? E toda letra de música é um poema?
Pode haver poesia sem música? Afinal, os próprios poetas contemporâneos
(muitos deles) se dão conta de que a poesia é mais música que letra. Não deveria ser
estudada no curso de Letras, mas sim em outros, como Música, Belas Artes, Arquitetura.
Uma questão e tanto para aqueles que (ainda) insistem em ler poesia como se ela fosse
prosa em versos.
A forma da poesia se aproxima muito da forma da música e das artes plásticas.
Não é à toa que a poesia, ao longo de toda a história de todos os povos, seja a arte verbal
menos consumida - embora a mais “praticada” e comentada. No Brasil mesmo calcula-se
que temos mais poetas que leitores de poesia. E este cálculo tem razões estatísticas para
ser verdadeiro: os livros de poesia raramente batem a marca dos míseros 3 mil
exemplares. Quer dizer: nem os próprios poetas se leem. É: poesia é um perigo.
Já a música popular vende como água. E, por acaso, quem ousaria dizer que não
ouvimos uma série de poemas quando um Gilberto Gil, um Caetano Veloso, um Chico
(Buarque, ou César ou Science) canta? Como ficamos?
48

1.4.2. Poesia e letra de música


Se analisar uma canção também implica uma análise do fazer poético, é natural
que o estudo da música popular brasileira desperte o interesse de críticos literários.
Buscamos agora, portanto, destacar pelo menos três importantes referências dos estudos
da canção no Brasil, que se intensificaram principalmente a partir do advento da Bossa
Nova, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960.
Enfatizamos inicialmente o trabalho do poeta concretista e crítico literário
Augusto de Campos, que compilou textos de sua autoria e de importantes nomes da
crítica da música brasileira, como o maestro Júlio Medaglia e Brasil Rocha Brito, no
antológico volume Balanço da bossa e outras bossas (2005). Contendo um riquíssimo
material que aborda principalmente a produção musical dos anos 1960, é um livro basilar
para compreender a reviravolta causada na música popular brasileira a partir de
movimentos como a Bossa Nova e o Tropicalismo. Depois desta publicação, o estudo da
canção no Brasil passou por uma nova fase: a busca por um espaço na universidade
brasileira, com destaque principalmente para a análise das letras das canções.
Seguindo na esteira de tal fenômeno, o crítico norte-americano Charles A. Perrone
deu um novo salto para os estudos da nossa canção nos anos 1980, com o lançamento de
Letras e letras da MPB. Na década seguinte, mais precisamente em 1996, surge outro
importante referencial, a publicação O cancionista, do professor de linguística, cantor e
compositor Luiz Tatit.
Neste tópico, lançaremos mão basicamente dos trabalhos de Perrone e Tatit para
discorrer sobre a relação da canção brasileira com a poesia e da aproximação entre a fala
e o canto (ou mais precisamente da flutuação entre o canto musicado e o canto falado).
Para o brasilianista Charles A. Perrone, sua referida obra busca sintetizar os
trabalhos até então existentes sobre a poesia da canção brasileira, dando um passo
adiante na busca de uma maior exploração dos aspectos musicais nas análises. Em outras
palavras, o professor norte-americano propõe que o estudo da canção não priorize
apenas a análise da letra em detrimento dos aspectos melódicos. Propõe considerar,
portanto, antes de tudo, que se trata de uma composição. E em música, quando falamos
49

de composição, referimo-nos ao resultado final da produção artística. A canção se


caracteriza pela composição que reúne letra e música.
Considerando-se o que Perrone nos apresenta em seu texto, continua em grande
evidência a estreita relação entre poesia e canção popular (mais especificamente na letra
da composição). O título do livro nos dá uma pista: Letras e letras da MPB. É o universo
dos estudos literários reconhecendo o vigor estético e cultural da música popular.
Todavia, ainda no primeiro capítulo o autor alerta para uma precaução necessária na hora
de analisar uma letra de canção: não podemos fazer julgamentos literários negativos da
mesma, afinal de contas ela nasceu para ser cantada, e não para ser estampada em livros
de poesia (embora, segundo o seu pensamento, depois algumas mereçam ter
reconhecida tal “ascensão estética”).
Nas palavras do autor “o que deve ser evitado é reduzir uma canção a um texto
impresso e, a partir dele, emitir julgamentos literários negativos” (PERRONE, 2008, p. 28).
É neste momento que podemos questionar a suposta defesa de uma hierarquização, na
qual o texto da canção estaria “num degrau abaixo do poema”. E voltamos à pergunta: a
letra de canção só é poesia quando for “muito boa”? Não poderíamos dizer que há letras
com má poesia, mas que no entanto continuam poesia? E se o que realmente interessa é
questionar sua eficácia enquanto criação artística, baseada em uma análise estética, não
seria melhor evitar a separação: “isto é poesia”, “aquilo deixa de ser poesia”?
Mesmo com o objetivo de destacar questões musicais paralelamente à riqueza
textual das canções, Perrone enfatiza constantemente em suas análises o que as letras
têm de poético, apontando as excelentes soluções que compositores e poetas
encontraram para despejar tamanha criatividade literária nos discos: nas canções e nas
letras (inclusive nas impressões do texto nos encartes dos discos, fato que passou a
ocorrer com frequência no Brasil apenas a partir dos anos 1970).
O brasilianista acaba por reconhecer em determinado momento que há uma
grande riqueza na aproximação das letras de canções com a prática literária. Em suas
palavras “considerar a natureza peculiar do lirismo musical não exclui, todavia, uma
comparação frutífera com a prática literária. [...] Relacionar letras da canção popular com
a poesia moderna é útil sob muitos aspectos” (PERRONE, 2008, p. 29).
50

A contribuição de Perrone permanece bastante válida para o estudo da canção:


confirmou uma pertinência analítica e ecoou uma ideia de tentativa de análise da letra —
embora sempre argumentasse que a grande eficácia da canção estava na sua transmissão
oral, no gesto de cantar.
Mas se Charles A. Perrone demonstrou com seu trabalho muito mais uma
capacidade de análise da letra — em detrimento dos aspectos estritamente musicais ou
da tensão existente entre letra e melodia — é importante destacar que existem trabalhos
que se aproximam bastante da análise da composição enquanto objeto uno, isto é,
resultado do casamento entre melodia e letra. Um passo adiante nestas pesquisas foi o
trabalho de Luiz Tatit, publicado em 1996 3, que assinalou uma nova etapa para o estudo
da canção, e é sobre sua pesquisa que trataremos a partir de agora.
No livro O cancionista: composição de canções no Brasil, como o próprio título
sugere, Tatit resolve investigar a maneira de compor do cancionista brasileiro. Apesar de
à primeira vista mostrar-se uma proposta bastante pretensiosa, o autor exibe nas suas
primeiras páginas uma firme e esclarecedora base argumentativa que pode ser
configurada como a formulação de seu fundamento principal sobre a “dicção do
cancionista”.
O autor lança mão de conceitos que possam analisar características recorrentes
em todas as canções, ou mais precisamente na “arquicanção”, que seria definida como
uma espécie de canção-modelo. Nas palavras do autor: “arquicanção é o conjunto dos
traços (ou processos) comuns às canções, a partir da neutralização dos traços específicos
que as opõem entre si” (TATIT, 2002, p. 26). Esclarecendo a demarcação de tal propósito,
retornamos às suas considerações sobre conceitos e processos que o fazem chegar à ideia
de “canção-modelo”.
Segundo Luiz Tatit, o cancionista — que pode ser o intérprete, o arranjador e,
principalmente, o compositor de canções — é um malabarista, por sua capacidade de
equilibrar “a melodia no texto e o texto na melodia”, valendo-se basicamente de artifícios
como manha, improviso e habilidade. E define o ato de cantar como a “gestualidade oral,
ao mesmo tempo contínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente

3
Nossas referências ao trabalho de Tatit indicarão a edição publicada em 2002.
51

equilíbrio entre os elementos melódicos, linguísticos, os parâmetros musicais e a


entoação coloquial” (TATIT, 2002, p. 09).
Durante todo o capítulo, a arte do cancionista é “desenhada” num plano que
exalta a destreza com que esses malabaristas operam soluções para dizer o que dizem em
forma de canção. E mais importante do que o dizer na canção, é a sua maneira de dizer,
resultante de um bom casamento entre texto e melodia. Com a melodia tem-se a
“linearidade contínua” e com o texto temos a “linearidade articulada”.
Partindo deste preceito, chega à conclusão de que o prolongamento de vogais no
cantar favorece o sentido melódico, opera no campo do /ser/, enquanto que a redução
da duração das vogais privilegia a marcação dos ritmos, a vigência da ação, operando no
campo do /fazer/. Explorando tal terreno, Tatit chega ao grande “ouro de mina” do seu
texto: a associação do cantar com o falar. Para o autor, o grande recurso por trás do
malabarismo da canção está no processo entoativo que faz a fala produzir o canto:
“compor uma canção é procurar uma dicção convincente. É eliminar a fronteira entre o
falar e o cantar. É fazer da descontinuidade da articulação um só projeto de sentido”
(TATIT, 2002, p. 11).
Preocupando-se exclusivamente com o cancionista brasileiro, Tatit explica e
exemplifica a estreita relação entre o falar e o cantar na nossa música popular. Se a fala,
de maneira geral, é instável e irregular no aspecto sonoridade, a canção, por sua vez,
preserva e acentua o aspecto sonoro, que passa a ser planejado e poderá ser perpetuado
com a obra, principalmente com a possibilidade do seu registro técnico através da
gravação. Aparece, então, o texto acentuado pela entoação, pois é justamente este o
ponto que faz um texto cantado se diferenciar do texto falado. Se na voz que fala o
principal é o que é dito, na voz que canta interessa a sua maneira de dizer.
Na análise da arquicanção (ou canção-modelo), há três níveis de compatibilidade
entre melodia e letra, denominados de figurativização, passionalização e tematização,
explicados na sequência:
Figurativização: neste processo, o elemento de destaque é a entoação, através da
qual surgem produções de sentido de um canto que tem grande aproximação com a
coloquialidade da fala. Trata-se de uma “programação entoativa da melodia e de
estabelecimento coloquial do texto” que sugere aos ouvintes “verdadeiras cenas (ou
52

figuras) enunciativas. Pela figurativização captamos a voz que fala no interior da voz que
canta” (TATIT, 2002, p. 21).
No seu trabalho escrito em parceria com Ivã Carlos Lopes, Tatit resume esse
modelo como “uma espécie de integração ‘natural’ entre o que está dito e o modo de
dizer, algo bem próximo de nossa prática cotidiana de emitir frases entoadas” (TATIT &
LOPES, 2008, p. 17). Tais entoações, enquadradas nas melodias, produzem as ideias de
hesitação, exclamação, indagação, etc. O exemplo extremista de tal caso poderia ser a
própria linguagem oral, com a qual estamos acostumados no cotidiano. Só que na canção
popular o uso da figurativização geralmente aparece com certa economia, já que os
elementos musicais não devem ser desprezados.
A explanação sobre a figurativização se encerra com alguns exemplos da
constante recorrência do modelo figurativo na canção popular brasileira. São as canções
que passam recados, as canções-cartas, as dicções que surgem com características
tipicamente regionais, a música de protesto, as canções respostas, etc., que estão
presentes em algum momento nas obras de Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Paulinho da
Viola, Noel Rosa, Zé Keti e quase na totalidade da obra de outros compositores, como
Jorge Ben Jor, por exemplo.
Tensões passionais: já mencionamos a importância da entoação no cantar
brasileiro, agora falemos dos processos de continuidade e segmentação da melodia. No
primeiro caso (continuidade), temos passionalização “ao investir na continuidade
melódica, no prolongamento das vogais (...) modalizando todo o percurso da canção com
o /ser/ e com os estados passivos da paixão (é necessário o pleonasmo)” (TATIT, 2002, p.
22).
Reduto emotivo da canção, em todas as épocas encontramos grande tendência ao
repertório passional. Tatit reconhece não saber se o predomínio de tal processo se deve à
maturidade de um movimento, estilo ou compositor ou se reflete a recaída da vitalidade
dos mesmos. Os exemplos são vários: quando lembra que o samba passou do ritmo
batucado ao samba-canção; quando a Bossa Nova, depois de revolução harmônica e
batida inovadora desanda em inúmeras canções românticas; Roberto Carlos, que de rei
do iê-iê-iê transforma-se no maior cantor romântico do país; etc. (TATIT, 2002, p. 23).
53

Tensões temáticas: a tematização puxa a tensão para um movimento inverso do


processo passional “ao investir na segmentação dos ataques consonantais, o autor age
sob a influência do /fazer/, convertendo suas tensões internas em impulsos somáticos
fundados na subdivisão dos valores rítmicos, na marcação dos acentos e na recorrência”
(TATIT, 2002, p. 23).
A tematização remete aos gêneros musicais de forma explícita: samba, rock,
marcha, etc. As batidas rítmicas aliam-se à reiteração de temas, criando uma marcação
que terá um texto segmentado, com maior demarcação consonantal e menor
prolongamento de vogais.
A breve explanação sobre tematização e passionalização no capítulo é chamada
por Tatit de “considerações estáticas”, pela falta de aprofundamento analítico, o que
acaba sendo ricamente compensado nos capítulos seguintes, nos quais são analisadas as
dicções de Noel Rosa, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano
Veloso entre outros. Para essa etapa de análise, Tatit lança mão do seu gráfico melódico,
que dispõe as sílabas da letra em uma pauta adaptada, que embora não ofereça detalhes
rítmicos da canção, destaca a entonação, a disposição melódica da letra.
As análises também mostram que os modelos de passionalização e tematização
nunca aparecem isoladamente: a dicção do cancionista “consiste num revezamento das
dominâncias desses dois processos, mais a figurativização” (TATIT, 2002, p. 24).
Tatit tratou de reforçar a aproximação entre os três elementos, ao afirmar que: a)
todas soluções musicais que despontam estão sendo “enunciadas” na figurativização; b)
haverá alguma coisa, mínima que seja, de passionalização na celebração (tematização); c)
sempre teremos partes de identidade melódica na passionalização. Caberá à análise
destacar e indicar os modelos dominantes em cada ponto (frase melódica) da canção
(TATIT & LOPES, 2008, p. 17-25).
Outro item que Tatit aborda no capítulo é a narratividade. Sobre este aspecto,
chama a atenção para questões que vão além das pequenas unidades da segmentação,
como os fonemas, por exemplo, que segundo ele não possuem autonomia semântica
(precisamos analisar palavras, frases e o tema abordado). Nestes casos, o projeto integral
da canção poderia ser definido como “projeto narrativo” — tópico amplamente
54

explorado em análises de outra publicação do autor: Análise semiótica através das letras
(2001).

Referências bibliográficas:

CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5 ed. 2 reimp. São Paulo:
Perspectiva, 2005.

PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. 2 ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2008.

RIBEIRO NETO, Amador. “Uma levada maneira: no ar, poesia e música popular”. In:
Conceitos - Revista da Associação de Docentes da Universidade Federal da Paraíba. João
Pessoa, v. 3, 2000, p. 21-27.

TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

________. O cancionista: composição de canções no Brasil. 2 ed. São Paulo: EdUSP, 2002.

TATIT, Luiz & LOPES, Ivã Carlos. Elos de Melodia e Letra: análise semiótica de seis canções.
Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2008.
55

CAPÍTULO II

ANÁLISE DE POEMAS

2.1. O método analítico do poema


Flaviano Maciel Vieira

“A literatura é um sistema de signos, um código


(...). constrói-se com a ajuda de uma estrutura, ou
seja, de uma língua; é pois um sistema
significativo de segundo grau, por outras palavras,
um sistema conotativo.”
(Tzvetan Todorov)

2.1.1. A crítica literária


A partir da transcrição acima, que nos diz que a literatura é um sistema
conotativo, podemos observar que caminhos deve tomar e qual a função da crítica
literária. Se esta função realmente existe, ela deve ser voltada principalmente para os
elementos presentes numa obra que podem ser interpretados de acordo com o código
literário.
Iuri Tynianov, integrante do célebre grupo dos formalistas russos demonstra que:

A unidade da obra não é um todo simétrico e fechado, mas sim


uma integridade dinâmica, com um desenvolvimento próprio,
entre seus elementos se coloca não o signo estático da audição e
da igualdade, mas sempre o signo dinâmico da correlação e da
integração. (TINIANOV, 1983, p. 452)

Diz ainda que:

O princípio construtivo é reconhecido não nas condições máximas


em que é previsto, mas sim nas mínimas, pois evidentemente
estas condições mínimas se ligam mais estreitamente a uma dada
construção, e, portanto, nelas devemos procurar as respostas
relativas ao caráter específico da construção. (TINIANOV, 1983, p.
458).
56

O que nos diz este grande estudioso da linguagem e da literatura? Parece claro
que, se existe um certo sistema significativo, correlacional e dinâmico na obra literária, o
crítico deve utilizar sua linguagem em torno destes traços correlacionais para melhor se
aproximar da natureza artística da obra.
Parafraseando Fernando Pessoa quando diz que a literatura é a confissão de que a
vida não basta, podemos dizer que a crítica é a confissão de que a literatura não basta. O
que acontece é que o crítico literário é aquele que expõe uma leitura da obra, decifrando
signos os quais segue atentamente. Deve, também, saber fazer um determinado recorte
para empreender suas leituras. Uma boa crítica depende, entre outras coisas, de um
embasamento válido e consistente para as análises que serão feitas. O leque de
abordagens críticas que se tem traz leituras de base marxista, psicanalítica,
fenomenológica, estilística, estruturalista, semiológica, psicanalítica e outras mais.
Vejamos a seguir ideias de Roland Barthes, crítico literário francês, que assume,
aliás, todas as bases críticas citadas acima alternadamente ou ao mesmo tempo. Esta
alternância de abordagens faz parte de seu método abrangente. Na apresentação do livro
Crítica e Verdade (livro que traz uma seleção de artigos de Barthes sobre crítica e
literatura), Leyla Perrone-Moisés diz que “a abertura de Barthes à contemporaneidade,
sua permanente disponibilidade para o novo, são as qualidades que seus detratores veem
como defeitos” (PERRONE-MOISÉS, 2009, p. 08).
Um dos pontos-chave de sua obra é a afirmação de que a linguagem literária é
autônoma. Escrever para Barthes é um “verbo intransitivo”. Segundo sua ótica, a obra
literária não é mensagem. É fim em si própria. Além disso, ele faz a distinção básica entre
sentido e significação. Diz ele: “entendo por sentido o conteúdo (o significado) de um
sistema significante, e por significação o processo sistemático que une um sentido e uma
forma, um significante e um significado” (BARTHES, 2009, p. 09).
Para Barthes, a literatura não é simplesmente sentido, mas, sim, processo de
produção de sentidos, isto é, de significação. As perguntas norteadoras de seus estudos
são: como a obra chega a significar e qual o processo. Como se pode observar, temos,
numa análise como esta, um olhar crítico aguçado e voltado para atos concretos de
significação com os quais os signos se apresentam.
57

Ensina-nos ele que o ato da crítica é um ato de metalinguagem. Num dos ensaios
de Crítica e Verdade, intitulado “Literatura e Metalinguagem”, Barthes estabelece uma
distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem. A linguagem-objeto seria a própria
matéria que é submetida à investigação lógica; e a metalinguagem seria uma linguagem
forçosamente artificial, chamando a atenção para o fato de que a metalinguagem é uma
linguagem que fala da linguagem. Um código trabalhando outro código.
Os estudos de Barthes tentam deixar claro que o importante numa análise literária
não é “nem as formas, nem os conteúdos, mas o processo que vai de uns aos outros”
(BARTHES, 2009, p. 69). O crítico, neste sentido, deve basear-se na adaptação de sua
linguagem metalinguística para com a linguagem-objeto analisada, geradora de sentidos.
Procedendo assim, o crítico cria leituras coerentes a partir das possibilidades formais
características de um objeto literário.
É por causa deste papel reflexivo-atuante sobre a obra literária que o crítico, para
Barthes, é um escritor. Sobre esta fala da fala, ato básico da crítica, vejamos o que ele nos
diz: “esta é uma pretensão de ser, não de valor; o crítico não pede que lhe concedam uma
“visão” ou um “estilo”, mas somente que lhe reconheçam o direito a uma certa fala, que
é a fala indireta” (BARTHES, 2009, p. 69).
A atividade crítica para ele deve contar com duas espécies de relações: a relação
da linguagem crítica com a linguagem do autor observado, e a relação desta linguagem-
objeto com o mundo. Relação, diz o autor, com a devida justeza. O crítico, neste sentido,
é um “comentador” da obra, já que reconduz uma matéria (transmissor) e redistribui seus
elementos para lhe dar uma certa inteligência (operador).
Importante dizer é que Barthes foi um dos responsáveis pela Nova Crítica, aquela
que foi de encontro às análises que não tinham como objeto principal de observação a
estrutura significativa da obra. Nada de divagações filosóficas, psicológicas, sociológicas
ou quaisquer outras que fugiam ao concreto formal do objeto literário. Foi ele um dos
mais importantes responsáveis por esta guinada da crítica literária. Ainda no livro Crítica e
Verdade, ele firma que:

Enquanto a crítica tradicional teve por função julgar, ela só podia ser
conformista, isto é, conforme aos interesses dos juízes. Entretanto a verdadeira
crítica das instituições e das linguagens não consistia em julgá-las, mas em
distingui-las, em separá-las e duplicá-las. Para ser subversiva, a crítica não
58

precisa julgar, basta falar da linguagem, ao invés de a usar. (BARTHES, 2009, p.


190)

A visão que um aluno, ou mesmo um professor de Letras, deve ter sobre a crítica é
aquela onde a literatura é encarada como um certo tipo de linguagem, uma linguagem
incomum, com organização própria, simbólica, significativa, geradora de sentidos, ou seja,
uma obra aberta, como nos diz Umberto Eco.
Como podemos observar, o crítico literário é aquele que sabe “conectar” a obra,
sabe demonstrar as operações linguísticas que geram suas significações polissêmicas. Se o
poeta tem consciência da linguagem literária, o crítico tem consciência da linguagem
literária e da linguagem metalinguística que pode captar tal linguagem literária.
Enfim, para Barthes, o crítico é aquele que escreve (cria) sobre uma escrita
(criação). A linguagem crítica é uma linguagem segunda, aquela que capta o caráter
literário de uma determinada linguagem. É segunda porque é criação de uma criação.
Após um levantamento importante das ideias de Barthes, necessárias para melhor
entendermos o caráter metalinguístico e criador da crítica, vejamos agora o que nos diz
um dos mais importantes e discutidos poetas do século XX, o também crítico literário Ezra
Pound.
No texto Como ler, de 1928, esclarece-nos que a primeira coisa a se cobrar de um
crítico é sua noção do que é bom, do que ele considera como um escrito de sólida
qualidade literária. Assim, para Pound, o crítico saberá onde se pisa.
Saber onde se pisa para Pound é ter consciência da linguagem literária. Crítica
literária para ele não envolvia questões relacionadas ao poeta, mas sim ao poema. É o
poema que deve ser focado, são sua estrutura e composição que devem ser analisadas,
em sua condensação e polissemia. Diz ele que identificamos o mau crítico quando ele
começa a discutir o poeta em vez do poema.
O olhar dos biologistas para ele era o mais adequado para se estudar literatura. O
que deveria acontecer numa crítica, assim como fazem os biólogos, é um exame direto e
cuidadoso da matéria, comparando-a com outras estruturas, outras matérias. É a análise
precisa do que é, do que está lá, da forma que informa.
59

O método analítico desenvolvido por Pound é por ele chamado de método


ideogrâmico. Esta abordagem visa encarar o poema como uma estrutura condensada que
gera diversas configurações, cada uma delas representadas por significações particulares
e parciais que, quando unidas, geram um sentido que apresenta unidade significativa.
Gera-se um sentido outro que é propriamente literário.
Este sentido captado através do método ideogrâmico poundiano é o resultado de
uma correlação de traços estruturais que são percebidos na obra pelo crítico numa
análise atenta e minuciosa. Permite um acesso válido ao objeto. Ocorre que num
ideograma, dois ou mais blocos de ideias interrelacionam-se simultaneamente,
criticando-se reciprocamente. Daí a natureza de muitas ideias em poucas formas, que
geram sentidos quando unidas, relacionadas.
Para Pound, literatura realmente grande é aquela que apresenta uma linguagem
carregada de significado em seu máximo grau. Diz ainda que “literatura é novidade que
permanece novidade” (2006, p. 33). Na análise ideogrâmica desta linguagem singular, diz
ele, não importa por onde começar o exame crítico, desde que se volte coerente e
recorrentemente às camadas para se atingir a unidade da obra, ou seja, que se volte
novamente ao ponto de partida.
Importante destacar também na obra de Pound, em seu livro ABC da Literatura, é
sua divisão de três modalidades de poesia: 1) Melopeia: as palavras estão repletas de
uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta seu significado; 2) Fanopeia: poesia
repleta de imagens sobre a imaginação visual; e 3) Logopeia: “a dança do intelecto entre
as palavras”, (domínio específico das manifestações verbais).
Vejamos algumas categorias de crítica vistas como válidas por Pound: 1) crítica
pela discussão; 2) crítica via tradução; 3) crítica pelo exercício no estilo de uma época; 4)
crítica via música e crítica via poesia. Enfim, diz Pound que os melhores críticos
contribuem efetivamente para dar mais qualidade às obras que analisam. Portanto, um
crítico não deve ser considerado pela excelência de seus argumentos, mas pela alta
qualidade de suas escolhas.
Depois de averiguar os benefícios que Pound nos legou com seus estudos críticos
e sua obra, daremos, agora, sequência à nossa tentativa de expor, em linhas gerais,
algumas das mais importantes abordagens teóricas sobre poemas.
60

Vejamos, então, o que nos ensina Antonio Candido em seu livro O método
analítico do poema, produto de um curso que ele ministrou em 1963 para alunos do
quarto ano do curso de Letras. Serão abordados aqui os pontos principais da obra,
buscando, de forma geral, apresentar os conceitos ali levantados.
De início, fiquemos com duas passagens retiradas da introdução, para que se fique
claro quais os conceitos de Antonio Candido sobre literatura. Logo em seguida serão
apresentados os elementos de análise que ele indica para serem levados em conta na
abordagem crítica de um poema.

A literatura é o conjunto das produções feitas com base na criação de um


estilo que é finalidade de si mesmo e não instrumento para demonstração ou
exposição. Mais restritamente, é o conjunto de obras de um estilo literário que
manifestam o intuito de criar um objeto específico, fictício em maior parte.
(CANDIDO, 1987, p.13)

Para Candido, a poesia é “a forma suprema de atividade criadora da palavra,


devido a intuições profundas e dando acesso a um mundo de excepcional eficácia
expressiva” (CANDIDO, 1987, p. 14). É esta tal expressividade rica de sentidos que o
crítico deve buscar. É justamente esta eficácia expressiva profunda que deve ser captada
em sua realização formal. Neste sentido, Candido esclarece que sua abordagem visa ao
poema e não à poesia. Para ele, são esferas diferentes na medida em que “a poesia não
se contém apenas nos chamados gêneros poéticos, mas pode estar autenticamente
presente na prosa de ficção” (CANDIDO, 1987, p. 03).
Outro esclarecimento básico feito por Candido diz respeito às distinções que
devem ser feitas em relação às palavras análise e interpretação. Diz ele que em sua
abordagem há mais análise do que interpretação. Esta seria decorrência daquela. A
análise como comentário seria uma preliminar “indispensável” para o trabalho do
professor de língua e literatura.
Segundo Candido,

O comentário é essencialmente o esclarecimento objetivo dos elementos


necessários ao entendimento adequado do poema. (...) O verdadeiro
comentador experimenta previamente todo o encanto do poema, para em
seguida aplicar-lhes o instrumento de análise. Depois desta, a interpretação
61

deve surgir como um reforço daquele encantamento, e não como seu


sucedâneo ou diminuição. (CANDIDO, 1987, p. 16)

A investigação adotada por Candido passa por duas etapas: a do comentário


analítico e da análise interpretativa. Diz ele que estes termos são intimamente ligados,
mas que podem dissociar. Sua análise traz em si um aspecto de comentário puro e
simples, sendo este o levantamento de “dados exteriores da emoção estética”,
principalmente dados históricos e filosóficos. Mas traz também um aspecto mais ligado à
interpretação, que é a análise propriamente dita, o levantamento analítico de elementos
internos do poema, principalmente os relacionados à sua construção fônica e semântica,
o que resulta numa desconstrução do poema em elementos até suas menores partes.
O comentário para Candido é a fase inicial da análise, mas a análise e a
interpretação não deixam de lado a manifestação do gosto, “a penetração simpática do
poema”. Segundo ele comenta-se qualquer coisa, no entanto só se interpretam os
poemas que nos dizem algo. A análise estaria a meio caminho, podendo ser mais voltada
para análise-comentário ou para análise-interpretação.
Enfim, para o autor:

Análise e interpretação representam os dois momentos fundamentais do


estudo do texto, isto é, os que se poderiam chamar respectivamente o
“momento da parte” e o “momento do todo”, completando o círculo
hermenêutico, ou interpretativo, que consiste em entender o todo pela parte e
a parte pelo todo, a síntese pela análise e a análise pela síntese. (CANDIDO,
1987, p. 20)

Basicamente, Candido apresenta esta abordagem decompondo o poema nas


seguintes características: 1) Os fundamentos do poema (Sonoridade – Ritmo – Metro –
Verso); 2) As unidades expressivas (Figura – Imagem – Tema – Alegoria – Símbolo).
Vejamos a seguir como Candido trata algumas destas questões. Diz ele que “todo
poema é basicamente uma estrutura sonora (...) um dos níveis ou camadas da sua
realidade total” (CANDIDO, 1987, p. 25). É assim que ele inicia sua abordagem sobre a
sonoridade do poema.
Cita Grammond para mostrar que:
62

Todos os sons da linguagem, vogais ou consoantes, podem assumir valores


precisos quando isto é possibilitado pelo sentido da palavra em que ocorrem; se
o sentido não for suscetível de os realçar, permanecem inexpressivos
(GRAMMOND apud CANDIDO, 1987, p. 36).

A sonoridade para Candido é um elemento fundante da obra porque gera um


efeito total devido à combinação de elementos parciais. São necessariamente o acúmulo
e a combinação destes sons que definem o rumo geral da expressividade, nunca fugindo
da orientação dada pela ideia.
Ainda no campo da sonoridade, mostra que o ritmo (alternância de sonoridades
mais fracas e mais fortes, formando uma unidade configurada), “é a alma, a razão de ser
do movimento sonoro, o esqueleto que ampara todo o significado” (CANDIDO, 1987, p.
48). Sendo assim, o ritmo é parte essencial para se conseguir efeito na expressão estética
no poema. Diz ele que:

O ritmo está ligado intimamente à ideia de alternância: alternância de som e


silêncio; de graves e agudos; de tônicas e átonas; de longas e breves,- em
combinações variadas. (...) O ritmo me é dado não pela divisão silábica, mas sim
pela divisão em tais unidades, que compõem o movimento de ondulação de
todos os versos nas línguas neolatinas (id. ibid., p. 50-51).

Dando continuidade aos elementos fundantes do poema, Candido apresenta


conceitos de metro, sendo este o número de sílabas poéticas de um verso, assim como,
diz ele, o número de segmentos rítmicos chama-se ritmo. Chama a atenção para o fato de
que o metro pode ter uma distribuição variada de acentos tônicos, ou seja, tem várias
modalidades eventuais de ritmos. Para o autor, o ritmo é o responsável pela unidade
sonora do verso; as palavras são as responsáveis por sua unidade conceitual e a unidade
sonora e a unidade conceitual formam a integridade do verso, que há na unidade do
poema. Deixa claro também que: “verso, unidade do poema, cuja alma vimos ser o ritmo,
e não o metro” (CANDIDO, 1987, p. 48).
Depois de observado a essência da abordagem sonora do poema, teremos a seguir
questões relacionadas às suas unidades expressivas que, de acordo com Antonio Candido,
são: figura, imagem, tema, alegoria, símbolo.
63

Segundo o autor, a criação do poeta parte de três princípios: 1) o uso da palavra


em sua acepção corrente; 2) o uso da palavra em sua acepção diferente da corrente, mas
que é aceita por um grupo; e 3) uso da palavra dotada de uma acepção criada pelo
próprio poeta, e que pode ou não tornar-se convencional. O poeta, diz ele, constitui o seu
significado geral (da palavra). Diz-nos que “é preciso possuir também um senso apurado
dos significados que a palavra pode ter – desdobrando-a, aproximando-a de outras,
extraindo significações insuspeitas” (CANDIDO, 1987 p. 70).
É na busca de tais significados que as palavras são empregadas como imagem ou
como símbolo. Diz ele que este sentimento de analogia, esta capacidade de substituir,
correlacionar e transpor é próprio das imagens. Vejamos suas palavras:

A analogia está na base da linguagem poética, pela sua função de vincular os


opostos, as coisas diferentes, e refazer o mundo pela imagem. Por isso é que
vimos como a unidade rítmica do verso é função do significado. (CANDIDO,
1987, p.72)

Este emprego da linguagem figurada nos poemas deve ser, como bem explica o
autor, devidamente realizado. Isso porque temos as metáforas realizadas na linguagem
corrente e também na linguagem poética. Enfatiza a importância de que

É preciso, portanto, distinguir, a linguagem figurada espontânea, que


representa um modo normal da expressão humana, e a linguagem figurada
elaborada, construída com intenção definida, visando a determinado efeito. (id.
ibid. p. 76)

Como pudemos perceber, o estudo destes tópicos possibilita um abrangente olhar


sobre os fundamentos do poema e suas unidades expressivas, tendo nas imagens,
metáforas, símbolos e alegorias, juntamente com o metro, o verso, a rima e o ritmo, os
elementos necessários na abordagem crítica de um poema.
Dando continuidade a um giro sobre questões de literatura e alguns métodos
analíticos do poema, conheçamos, agora, as ideias de três grandes teóricos da literatura
brasileira e mundial: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari.
Trataremos do que eles criaram e defendem como sendo a teoria da poesia concreta.
64

O movimento da poesia concreta dá continuidade aos experimentos já realizados


no Brasil com o modernismo. O grupo de teóricos e poetas citado acima criou uma nova
postura frente aos conceitos já estabelecidos sobre literatura.
É interessante lembrar que o concretismo surgiu paralelamente em vários locais
do mundo, como na Alemanha, na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, por
exemplo, e em muitos casos não se sabia da existência um dos outros. O surgimento
oficial aqui no Brasil ocorreu em 1956 com a Exposição Nacional de Arte Concreta,
realizada no Museu de Arte Moderna, em São Paulo, apesar do grupo intitulado
“Noigandres” (Haroldo, Augusto e Décio) já existir desde 1952. O movimento trazia em
sua essência a herança visual de Stéphane Mallarmé, a veia antropofágica de Oswald de
Andrade, além do formalismo de Pound.
Com a poesia concreta tivemos o desenvolvimento de uma teoria poética sem
precedentes em nossa história literária, com objetivos artísticos bem delineados
(linguagem direta, economia das palavras, arquitetura etc.). O concretismo influenciou a
poesia brasileira contemporânea com a possibilidade da palavra-coisa, palavra pura,
trazendo os ideogramas de Pound, as inovações de Maiakovski, as imagens de Mallarmé,
entre outros conceitos revolucionários.
Destaquemos as principais características desta poesia que muito repercutiu e
influenciou, e ainda influencia nossa literatura. Temos a evolução viva das formas – a
palavra viva (uso da palavra de forma inédita, transformando sua forma estática em uma
forma dinâmica); o espaço gráfico como elemento estrutural (elemento “espácio-
temporal”); uso do isomorfismo (fundo-forma e espaço-tempo); criação de ideogramas
(as ideias são representadas por meio de signos visuais, não-verbais); poema objeto
(auto-suficiência dos signos) e o poema verbivocovisual (valoriza a carga semântica da
palavra em todos os seus sentidos de comunicação, de som e de forma visual).
Vejamos algumas passagens do plano-piloto da poesia concreta criado pelo grupo
de teóricos paulistas:

poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas. dando por


encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia
concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente
estrutural. Espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de
desenvolvimento meramente temporístico-temporal. Daí a importância da ideia
de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu
65

sentido específico (fenollosa/pound) de método de compor baseado


na justaposição direta- analógica, não lógico-discursiva - de elementos.
(CAMPOS et alii, 2006, p. 215)

Mais adiante temos:

(...) linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso.


Poesia concreta: tensão de palavras-coisas no espaço-tempo, estrutura
dinâmica: multiplicidade de movimentos concomitantes. (...) apelo à
comunicação não-verbal. O poema concreto comunica a sua própria estrutura:
estrutura - conteúdo. O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não
um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas.
Seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). (...) ritmo:
força relacional. O poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma
sintaxe analógica, cria uma área linguística específica - "verbivocovisual" -
que participa das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das
virtualidades da palavra, com o poema concreto ocorre o fenômeno da
metacomunicação. (id. ibid., 216)

Enfim, a poesia concreta não é mais feita no Brasil. No entanto, sua influência é
inegável no campo da literatura, principalmente na área emergente da literatura digital.
Esta nova forma de fazer poesia gerou polêmica na cultura literária, na medida em que
era, segundo Augusto de Campos, uma novidade absoluta.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 3 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2009.

CAMPOS, Augusto et alli. Teoria da poesia concreta. 4 ed. Cotia: Ateliê Editoral, 2006.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: FFLCH/USP, 1987. (Col.
Terceira Leitura, v. 2)

PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Apresentação”. In: BARTHES, Roland. Crítica e verdade. 3 ed.


São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 07-12.

POUND, Erza. Como ler, 1928 in Literary essays of Erza Pound. Faber, Londres.
66

____________. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes, São Paulo:
Cultrix, 2006.

TINIANOV, Iuri. “O ritmo como fator construtivo do verso”. In: COSTA LIMA, Luiz. (seleção
e introdução) Teoria da literatura em suas fontes. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983, vol. I.

TODOROV, Tzvetan. “A herança metodológica do formalismo”. In: ______. As estruturas


narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
67

2.2. Sonetos: um barroco e outro modernista

Amador Ribeiro Neto

Vamos analisar um soneto barroco de Gregório de Matos e um soneto modernista


de Fernando Pessoa.
Escolhemos o soneto por ser uma forma fixa de poesia. O formato de soneto
escolhido é o petrarquiano: dois quartetos e dois tercetos, totalizando 14 versos.

2.2.1. Um soneto gregoriano

A uma dama
(Gregório de Matos)

Vês esse Sol de luzes coroado?


Em pérolas a Aurora convertida?
Vês a Lua, de estrelas guarnecida?
Vês o Céu de planetas adornado?

O Céu deixemos: vês naquele prado


A rosa com razão desvanecida?
A açucena por alva presumida?
O cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado: vem cá, minha adorada:


Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina...


Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.

Por ser um poema barroco, a linguagem dista-se da que usamos normalmente,


tanto coloquial como cultamente. Para isto é bom esclarecer o uso de determinadas
palavras.
“A açucena por alva presumida” indica que a flor açucena (por extensão, lírio)
toma-se como branca, toda vaidosa.
“(...) a esfera cristalina / em sucessivo aljôfar desatada” são as lágrimas da mulher
bela. Mas são também os pequenos cristais de pérolas brilhando nas ondas do mar.
68

O eu-lírico compara a natureza – o Sol, a Lua, o Céu, a Aurora, o prado, o mar – ao


rosto (à beleza) de Catarina e conclui que “tudo é nada”, tais os encantos da amada.
O soneto é cortado por nove pontos de interrogação, invocando a amada para as
belezas naturais, como se a natureza se avivasse diante das observações do eu-lírico. O
Sol, a Lua, o Céu, a Aurora aparecem transcritos em maiúscula com o fito de serem ainda
mais importantes do que são para o homem.
O Sol, para se destacar na sua riqueza de luzes, aparece “de luzes coroado”; a
Aurora converte-se em pérolas; a Lua surge “de estrelas guarnecida” e o Céu “de planeta
adornado”. O cenário é de esplendor. Tudo brilha e resplandece.
Feita a apresentação do belo da natureza, o eu-lírico suspende o juízo sobre o
visto e desvia o olhar da amada sobre o prado, a rosa, a açucena e o cravo. Novamente
ele suspende a observação: “deixa o prado”, ele condensa tudo o que vê. E chama a
atenção da amada para o mar, que “parece aos olhos ser de prata fina...”. E convidando-a
a olhar tudo com atenção – “Vês tudo isto bem?” – , conclui, barrocamente, que “tudo é
nada” face à beleza da amada.
É um poema lírico, geograficamente demarcado pela natureza. Todavia, a
natureza não é vista como fantasia ou sonho. Ao contrário: é a natureza na sua phisis, na
sua materialidade, na sua concretude. É a beleza do natural que encanta o poeta e o faz
remeter-se à amada, numa comparação simples e singela. O que há de metafórico no
soneto chega ao leitor através de uma comparação direta e clara.
A linguagem poética de “A uma dama” não se dá inviesadamente através de
figuras de linguagem rebuscadas. O belo é descrito descomplicadamente. Não há
inversões sintáticas e semânticas à mancheia. No segundo verso (“Em pérolas a Aurora
convertida”) encontramos uma leve inversão sintática (A Aurora convertida em pérolas),
que dista bastante do barroquismo de segunda mão.
Gregório de Matos, nosso poeta barroco por excelência, prima por uma linguagem
que, sem deixar de ser barroca, não incorre nos modismos barroquistas. Sua poesia
amorosa, satírica ou religiosa – e ele foi grande nas três modalidades – revela um domínio
singular do fazer poético. Não é por nada que, passados mais de três séculos de sua
morte, ele permanece como o mais expressivo poeta do barroco luso-brasileiro.
69

Vamos escandir o soneto e classificar suas rimas a fim de verificarmos como o


aparato formal do poema interage com o sentido do mesmo.

Vês/e/sse/Sol/de/LUZ/es/co/ro/A/(do)?
Em/pé/ro/las/aAu/RO/ra/com/ver/TI/(da)?
Vês/a/Lu/a/dees/TRE/las/guar/ne/CI/(da)?
Vês/o/Céu/de/pla/NE/tas/a/dor/NA/(do)?

O/Céu/dei/xe/mos:/VÊS/na/que/le/PRA/(do)
A/ro/sa/com/ra/ZÃO/des/va/ne/CI/(da)?
Aa/çu/ce/na/por/AL/va/pre/su/MI/(da)?
O/cra/vo/por/ga/LÃ/li/son/je/A/(do)?

Dei/xao/pra/do/vem/CÁ/mi/nhaa/do/RA/(da):
Vês/de/sse/ma/raes/FE/ra/cris/ta/LI/(na)
Em/su/ce/ssi/voal/JÔ/far/de/sa/TA/(da)?

Pa/re/ceaos/o/lhos/SER/de/pra/ta/FI/(na)...
Vês/tu/do/is/to/BEM/Pois/tu/doé/NA/(da)
À/vis/ta/do/teu/ROS/to/Ca/ta/RI/(na).

Os versos são todos decassílabos heroicos. Esta regularidade rítmica remete-nos à


serenidade do cenário natural e da beleza de Catarina. Tudo é harmonioso, sereno, belo.
Forma e fundo complementam-se para que o leitor tire mais proveito das imagens do
poema.
A fanopeia, na terminologia poundiana (POUND, 2006), contempla todo o soneto,
da primeira à última estrofe. Por isto podemos afirmar que é um poema plástico.
Lembremo-nos de que a visualidade é uma das grandes metas do barroco, tanto na
arquitetura como na pintura. Gregório reflete a visualidade em seu soneto.
Analisemos agora as rimas.
70

No primeiro quarteto temos:


coroADO = A
convertIDA =B
guarnecIDA = B
adornADO = A

No segundo quarteto temos:


prADO = A
desvanecIDA = B
presumIDA = B
lisonjeADO = A

Nos dois tercetos temos:


adorADA = C
cristalINA = D
desatADA = C
fINA = D
nADA = C
CatarINA = D

As rimas são todas consoantes, reforçando a musicalidade do decassílabo heroico.


Nos quartetos as rimas em “A” são interpoladas e as “B” são emparelhadas.
Nos tercetos as rimas em “C” e “D” são cruzadas.
Se pensarmos no que diz o soneto, vemos que há uma comparação entre a
natureza e a amada. Esta comparação se apresenta, formalmente, de duas maneiras:
comparação direta, com as rimas emparelhadas ou interpoladas. E quando o eu-lírico
pede à amada que esqueça tudo que viu e se dê conta de que a beleza dela é superior a
tudo que há na natureza, os versos cruzam-se, como se cruzar o resultado das
comparações fosse o caminho para se atingir o resultado almejado.
Esta disposição formal e semântica reaviva uma das posturas barrocas, qual seja, a
de espelhar imagens e ideias visando a um objetivo. No caso, o objetivo é realçar a beleza
71

de Catarina. E a exposição das ideias e das rimas confirma que o que subsiste é uma sutil
formação silogística das ideias.
A beleza do soneto reside em sua limpidez imagética e analógica (ou na fanopeia e
na logopeia), bem como na sua estrutura rítmica reiterativa (melopeia). O poeta
consegue falar da amada interagindo fundo e forma – isomorficamente – de modo a
impressionar o leitor e a dar-lhe a sensação de que está diante da beleza da amada como
se da primeira vez (CHKLÓVSKI, 1973), tal sua singularidade perceptiva.

2.2.2. Um soneto pessoano

Fernando Pessoa é um dos mais importantes poetas da literatura mundial. Sua


projeção dá-se, em grande parte, pela produção de uma obra marcada por heterônimos.
Dentre os vários que criou, três merecem destaque: Álvaro de Campos, Ricardo Reis e
Alberto Caeiro. Além da obra assinada como Fernando Pessoa.
Alberto Caeiro é o poeta da Natureza e apresenta-se como um simples “guardador
de rebanhos”, sempre em comunhão com ela. Ele é o Mestre de Fernando Pessoa e dos
outros heterônimos. Seu estilo é coloquial e espontâneo. Seus versos são livres e claros.
Para ele, “pensar é estar doente dos olhos”, como afirma num poema. Caeiro, segundo
sua biografia inventada, não teve uma profissão definida e sempre viveu no campo.
Interessam-lhe, antes de mais nada, as sensações: as cores, os sons, os gostos, as
texturas, sobressaem em sua poesia. Cursou apenas o ensino primário, mas escreveu
versos como:

“Sejamos simples e calmos,


Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e regatos,
E dar-nos-á verdor na primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...”

“Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações”.

“Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido”.
72

Ricardo Reis é o poeta clássico e epicurista. Para ele a fugacidade das coisas é
parte natural da vida. Defensor do carpe diem, basta-se com a imediatidade das coisas.
Embora não atinja nunca a tranquilidade tão buscada. Na biografia inventada, foi
educado em colégio de jesuítas e é helenista autodidata. Tem, assim, interesse profundo
pela cultura clássica, a saber, a grega e a romana antigas. Busca não ceder aos impulsos
instintivos, visando tanto à felicidade como à calma na vida. Escreveu versos como:

“Dia após dia, a mesma vida, é a mesma.


O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
Igualmente decorre”.

“Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Pões quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.

Álvaro de Campos fez os estudos iniciais em um liceu. Depois estudou Engenharia


Mecânica e Naval. É vanguardista tendo no futurismo sua mola propulsora de emoções.
Exalta a civilização moderna, o progresso e a velocidade. É um poeta cosmopolita
vivenciando o isolamento e as ebulições das grandes cidades. Segundo Fernando Pessoa,
um poema, para Álvaro de Campos, “é a projeção de uma ideia em palavras através da
emoção. A emoção não é a base de sua poesia: é tão-somente o meio de que a ideia se
serve para se reduzir a palavras” (PESSOA, 1986, p. 297). Este poeta é aquele que busca
sem cessar. Que se move entre ansiedades contínuas. Que vive a euforia das grandes
cidades. E também a depressão a que estes centros urbanos levam as pessoas. É um
poeta da desterritorialização e reterritorialização do homem.
São versos de Álvaro de Campos:

“É antes do ópio que minh´alma é doente.


Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente”.

“À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


73

Tenho febre e escrevo.


(...)
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r- eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!”

“Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?


Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?”

“Nada me prende a nada.


Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne”.

“Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

“Coitado do Álvaro de Campos!


Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!”

Depois deste breve voo sobre a poesia dos heterônimos de Fernando Pessoa,
vamos analisar um soneto assinado por Álvaro de Campos:

Ah, um soneto...

Meu coração é um almirante louco


que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco


nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.


Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração


que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?...
74

É um soneto decassílabo com onze versos heroicos (3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13 e


14); dois versos sáficos (1 e 2), e um verso decassílabo que, à primeira escansão não é
heroico nem sáfico (12). A saber:

Meu/co/ra/ÇÃO/éum/al/mi/RAN/te/LOU/(co)
Quea/ban/do/NOU/a/pro/fi/SSÃO/do/MAR/
e/quea/vai/re/lem/BRAN/do/pou/coa/POU/(co)
em/ca/saa/pa/sse/AR/a/pa/sse/AR/

No/mo/vi/men/toeu/MES/mo/me/des/LO/(co)
nes/ta/ca/dei/ra/SÓ/deoi/ma/gi/NAR/
o/mar/a/ban/do/NA/do/fi/caem/FO/(co)
nos/mús/cu/los/can/SA/dos/de/pa/RAR/

Há/sau/da/des/nas/PER/nas/e/nos/BRA/(ços).
Há/sau/da/des/no/CÉ/re/bro/por/FO/(ra).
Há/gran/des/rai/vas/FEI/tas/de/can/SA/(ços).

Mas/es/taé/bo/ae/ra/do/co/ra/ção/
Queeu/fa/la/vaeon/de/DIA/boes/toueu/a/GO/(ra)
Com/al/mi/ran/teem/VEZ/de/sen/sa/ÇÃO/

O verso “Mas - esta é boa! - era do coração” pode ser escandido:


a) Mas/es/taé/bo/ae/ra/do/co/ra/ção/;
b) Mas/es/taé/boa/e/ra/do/co/ra/ção;
c) Mas/es/ta/é/boae/ra/do/co/ra/ção.

Em nenhum dos modos há tônicas que possibilitem a definição por verso heroico
ou sáfico, sem mexer na prosódia, que é o modo corrente de pronunciar um vocábulo.
Considerando tal possibilidade, na alternativa “b” teríamos um decassílabo heroico:
Mas/es/taé/boa/e/RA/do/co/ra/ÇÃO.
75

Assim, dos quatorze versos dois seriam sáficos e doze heroicos. Antes de buscar
entender o que significa esta variação rítmica, analisemos o uso das rimas.
Todas as rimas são consoantes:

As rimas do primeiro quarteto são:


lOUCO = A
mAR = B
pOUCO = A
passeAR = B

As do segundo quarteto são:


deslOCO = A
imaginAR = B
fOCO = A
parAR = B

As dos dois tercetos são, respectivamente:


brAÇOS = C
fORA = D
cansAÇOS = C
corAÇÃO = E
agORA = D
sensAÇÃO = E

São todas rimas alternadas: A-B-A-B-A-B-A-B-C-D-C-E-D-E


O moderno, modernista, contemporâneo Álvaro de Campos, em meio a poemas
longos como “Tabacaria”, sai-se com um soneto que é pura ironia sobre esta forma fixa
de fazer poesia. Já no título há algo que cheira ao paródico: “Ah, um soneto...”. A
interjeição e as reticências nos empurram para, no mínimo, uma inquietação. Que diabos
este título quer dizer? “Ah” é um suspiro ou uma impaciência?
76

Lemos o poema. Todos os versos são decassílabos, com acento nas sextas e
décimas sílabas ou quartas, oitavas e décimas – ressalva feita ao verso 12, como vimos
acima. São versos heroicos e sáficos. Com esta marcação de tônicas, o ritmo do poema se
impõe. O poema passa a ser marcadamente musical. Até aí, novidade alguma para um
sonetista.
Acontece que, entre os versos heroicos, outros, de outras formas, também se
interpõem. Aparecem novas acentuações musicais. Agora as tônicas podem ser a quarta,
a oitava e a décima. Para este tipo de acentuação tônica dá-se o nome de verso sáfico –
como atestam os versos 1 e 2.
Então o soneto está marcado por duas frequências musicais. Isto quer dizer
alguma coisa ou é mero exercício técnico de contagem silábica? Pois não é que o poema
fala de um eu-lírico que se aposentou do mar e agora vive em casa a sonhar com o
vaivém das ondas marítimas? A oscilação das tônicas ganha expressão significativa,
levando o leitor a vivenciar os movimentos do mar. Mas não é só: o eu-lírico está sentado
numa cadeira de balanço que é a figura dos movimentos até então sugeridos. E, para falar
que está preso a uma cadeira, ele cria dois versos entrecortados, destacados por
parênteses que se abrem num verso e só se fecham no seguinte. É a figura dos
movimentos da cadeira, do mar e, por que não dizer, dos movimentos da memória do
antigo marinheiro? Ele contempla o mar de fora. E o que carrega dentro de si.
O uso dos enjambements, que são os versos que continuam no seguinte, sintática,
semântica e ritmicamente, dão ao poema uma dinamicidade própria, simétrica ao
movimento que o eu-lírico percorre dentro da casa, com os olhos apontados para o mar.
O enjambement está presente nos dois quartetos e no último terceto – à exceção
apenas do último verso de cada estrofe. Esta movimentação é isomórfica ao movimento
de ir e vir das ondas do mar, bem como do ir e vir da memória. O eu-lírico revolve-se em
passos largos pela casa enquanto a memória se agita em lembranças do tempo de
marinheiro.
A memória é o motor do poema: despojada da carga romântica, ela descreve o
que foi com a imparcialidade que lhe é possível. O coração é um almirante. O eu-lírico é
um marinheiro. O almirante é louco por abandonar “a profissão do mar”? Talvez sim, já
que ele é consumido pelas memórias dos tempos do mar. No movimento de recordação,
77

o corpo assume o compasso do coração e se desloca na cadeira, tal como o coração-


marinheiro se deslocava no mar. Os músculos cansam não de trabalhar no navio, mas por
estarem parados, longe do mar. Ao invés da ação, o eu-lírico vive a contemplação. Apenas
o movimento da cadeira reverbera nas saudades (colocadas em anáfora, nos versos 9 e
10). Assim como o movimento de ir e vir das ondas do mar, também as anáforas, os
enjambements, os versos decassílabos heroicos e sáficos iconizam o movimento das
águas e da memória.
Tudo parece mover-se. No entanto a ação circunscreve-se ao passado. O coração-
marinheiro toma conta do poema e configura-o. E num rasgo de ironia que, como vimos,
corta o poema desde o título, a interrogação da última estrofe visa confundir o leitor: o
eu-lírico permanece falando do coração, na metáfora do almirante, mas se faz a
pergunta-chave da ironia: “ (...) e onde diabo estou eu agora / com almirante em vez de
coração?...”.
Voltam as reticências do título. O soneto remete o leitor ao seu início. O caráter
repetitivo do mar, com suas oscilações, está contido no ritmo do verso decassílabo,
predominantemente heroico, mas também reservando espaço para o contramovimento
do ritmo sáfico.
As rimas alternadas cruzam os movimentos das ações e das recordações, como
uma rede de uma só malha.
Se o título ironiza o soneto, metaliguisticamente o poema ri de si mesmo ao deixar
o leitor a ver navios com a escansão do verso 12. A prosódia alterada é uma possível
solução, mas ela não esconde o forjar maquiavélico da metrificação. Exatamente no verso
em que irrompe a mais clara expressão da coloquialidade: “Mas – esta é boa! – era do
coração / que eu falava (...)”.
Era ao coração que o eu-lírico se referia. O compassado coração das sístoles e
diástoles. Neste exato verso a ironia crava sua garra: toma o verso e esquarteja-o num
sufocado decassílabo heroico.
O ponto de interrogação seguido por reticências lança o poema para o alto e
estende-o rumo ao infinito, ao mesmo tempo. A entonação como a mola propulsora do
questionamento: de fato a sensação vem ocupar o lugar do coração? Não é o coração,
sensação? Não é ele loucura, como dito no verso inicial?
78

Para Álvaro de Campos as sensações dirigem a vida. E são elas que sobram ao final
do soneto. Sensação de ser. Sensação de ter estado. Sensação de continuidade, mundo e
águas afora, mundo adentro.

Referências bibliográficas

CHKLÓVSKI, V. “A arte como procedimento”. In: ______ et al. Teoria da Literatura:


Formalistas Russos. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski et alii. Porto Alegre: Globo, 1973, p.
39-56.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.
79

2.3. Poemas contemporâneos

Amador Ribeiro Neto

2.3.1. Os haicais de Saulo Mendonça

Saulo Mendonça é paraibano de Alagoa Seca, mas vive em João Pessoa há


décadas. É publicitário por formação e funcionário público por necessidade de
sobrevivência. Poeta, acima de tudo, é autor do livro Libélula, prefaciado por Olga Savary
e publicado em 1990. Em 2001 publicou Pirilampo, que logo obteve segunda edição, fato
raro na poesia brasileira. Em 2008, Luz de Musgo premia os leitores com 33 haicais,
escolhidos a dedo, para marcar os 33 anos da poesia sauliana.
O haicai, sabemos, é originário do Japão. Em meados do século XVII, Matsuo
Bashô (1644-1694), filho de samurai, aos vinte anos escreveu o primeiro haicai de que se
tem notícia. É um terceto totalizando 17 sílabas, sem título, sem o uso da rima,
abordando a natureza, refletindo sobre ela e sendo um poema que basta por si mesmo.
Quando o haicai cruza os mares e chega aos trópicos, em especial ao Brasil,
aclimata-se e passa por modificações: com Guilherme de Almeida ele alcança boa
repercussão, passa a ter título e a obedecer a uma estrutura rítmica rígida. Com Paulo
Leminski, o haicai amplia seu público leitor. Nos anos 70 sua produção destaca-se frente
aos destemperos da contemporânea Poesia Marginal. Leminski mistura chiste com
condensações advindas da Poesia Concreta. O rigor “relaxado” é sua marca poética. Com
Haroldo de Campos temos as traduções mais fieis aos poemas de Bashô. Não se
ocupando das rigorosas metrificações japonesas, o poeta de Galáxias transcriou os
haicais numa linguagem ideogramática. Com Olga Savary, Alice Ruiz e Saulo Mendonça, o
haicai chega aos nossos dias com toda sua beleza antropofágica.
Por isto, ler Saulo é mergulhar de cabeça na mais fina e elaborada poesia, feita
com simplicidade. Elaborado e simples: isto pode parecer paradoxal. Mas não é. O
simples que ele consegue é admiravelmente inventivo: condensa imagens e constrói
reflexões com a leveza de uma pluma ao vento.
80

Sua poesia nasce de observações do cotidiano doméstico. Ele faz do local um


prolongamento do internacional. Por isto pode ser compreendido por povos das mais
variadas culturas. Saulo sabe o caminho das pedras, dos rios, das terras, das plantas, dos
mares, dos fogos, dos ventos, dos céus. Caminhos que todos nós trilhamos dia após dia.
Aqui ou alhures.
A linguagem do poeta Saulo é a dos profetas em dia de anúncio: ela sempre tem o
que nos dizer. Sejamos nós parte dos incluídos ou excluídos. Nos vários setores da vida
contemporânea. E/ou pós-moderna. O cordelista e o poeta digital convivem na poesia
sauliana na mais harmoniosa confluência. Dos afluentes ao rio principal.
Há redondilhas (maiores e menores) em Saulo. Influência da oralidade da poesia
popular. E também, aplicação (abrasileirada, é claro) da forma japonesa de haicai. Não
mais uma única estrofe com versos de 5, 7 e 5 sílabas, respectivamente, como ensina o
mestre Bashô. Mas a liberdade silábica, temática e até o uso da rima. Enfim: encontro de
dois modos seculares da fôrma e da forma poéticas.
Em Saulo, o poeta vive e respira sem estardalhaços. Contido. Por isto mesmo,
essencial. Tal como Heidegger, que uniu o existencialismo proferido por Kierkegaard e a
fenomenologia de Husserl, eliminando as fronteiras entre corpo e alma, ser e parecer,
subjetividade e objetividade, Saulo opera em seus haicais o uno e o múltiplo, na casa do
ser. Isto mesmo: o eu-lírico é a linguagem do ser. A palavra: morada do ser – preconiza o
filósofo do Ser e Tempo. A poesia como a mais acolhedora morada da palavra. Ali onde a
palavra é, sem adjetivações, mora cada haicai de Saulo. Haicai, para usar aqui uma
expressão cara a Augusto de Campos, é língua(via)gem.
Certa feita, falando de Picasso e de Duchamp, Octavio Paz pontuou: “os quadros
do primeiro são imagens; os do segundo, uma reflexão sobre a imagem”. Pois a poesia de
Saulo é imagem e reflexão sobre a imagem e sobre as ideias. Impossível ficar calado sobre
seus haicais – que calam fundo em cada leitor. Se não há estardalhaço na cidade é porque
o poema elegeu como seu lugar o templo sem imagens, sem sons. Para que ele, poema,
seja imagem, som e sentido.
A palavra em Saulo é expressão da busca de sentidos. Para as coisas mais
corriqueiras. Para os sentimentos mais naturais. O amor natural. A natureza natural. O
homem natural. Mas não pensemos que este poeta seja um neorromântico ou um
81

romântico anacrônico. Longe disto. Ele sabe a geografia da libido dos homens. E conhece
o fetiche que mobiliza tempos pós-modernos cada vez mais megametropolitanos. A
sedução do natural em Saulo é voz para os falantes, gritantes, brincantes. É a pureza do
“mix”. Do “plus”. Do “hard”. Curiosa e instigantemente posta a serviço da libido, mãe-
mestra da Vida.
Os haicais de Saulo trazem a oxigenação extraordinária que resgata o amoroso de
cada planta, animal, pedra ou indigesto. Há betume asfáltico? Pois há também perfume
citadino e campesino.
O haicai nas mãos saulianas tem Natureza. Filosofia. Presentidade. Numa entrega
total à poesia-raiz de Matsuo Bashô. Na Paraíba, Saulo escreve:

À tardinha, no Sanhauá
o velhinho fitava o rio
com seu olhar poente.

O Sanhauá é um rio paraibano. Então já há um referente geográfico logo de saída.


Local que se celebrizou como ponto turístico: a praia do Jacaré, no rio Sanhauá, é um dos
pontos obrigatórios para todos os que amam a natureza.
A mesma natureza de que o poeta se vale para metaforizá-la como símbolo do
entardecer da velhice. Interessante observar que o uso do pronome possessivo “seu”
pode referir-se tanto ao velhinho como ao rio. No entanto, ele se refere ao sol, a grande
estrela que está ausente do poema. E que é a figura central deste haicai.
Aí está a maestria elaborada e simples de Saulo. O leitor voraz passa pelos 3
versos e morre na praia. O sol está em “à tardinha”, que desaparece como o sol ao
poente. Todavia, em “seu olhar poente”, o sol se infiltra na linguagem para ganhar o
leitor. E ganha, na maior parte das vezes, numa adesão inconsciente. Eis: “Seu OLhar
poente” – o sol se interpõe entre as palavras “seu” e “olhar”, obliquamente, como
convém a um pôr-de-sol.
Para a Copa Mundial, nada melhor que um slogan formado por duas redondilhas
maiores, de forte matiz musical e de uso tão frequente entre nossos cantadores
populares:
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Copa do Mundo:
O coração perde a forma
Quando em bola se transforma.

Observe como a Copa do Mundo absorve o coração do torcedor: ele se transforma


em bola e bate no peito, como a marcação acompanhada passo a passo. Mas o mais
interessante está no verbo embolar resultante da aproximação fonética de “Quando em
bola se transforma”. O coração embola, se transforma. O passe é feito com a bola, com o
coração transformado em bola e pelo embolar do coração ou do jogo, que não é raro se
embola no meio do campo.
Agora atente para o uso reiterativo da vogal “o” como ícone da bola de futebol. E
do coração metamorfoseado em bola. A forma do coração se transforma. Ou seja, vai
além da forma. A sequência de nove “os” vai de um verso a outro: cOpa dO mundO O
coraçãO fOrma quandO bOla transfOrma.
A reiteração da vogal “o” cria a imagem da bola e de seu movimento. Como num
passe de bola. Como num jogo. Como o pulsar do coração. O ludismo é a matéria visual e
sonora deste jogo. Vê-se e ouve-se o tum-tum do coração e a zoada da plateia em ondas
de olas. De ritmos. De significados.

Chuva passando
tarde escurecendo...
É tempo de tanajura!

O entardecer encerra em si a metáfora da passagem. Da transição. Nem dia, nem


noite. Algo no interregno. Saulo gosta deste tempo indefinido. Ele aparece em muitos de
seus haicais, com acepções diversas. Neste, o gerúndio dá continuidade a duas ações.
Numa, a ação se processa como etapa para parar ou ir-se (“Chuva passando” é tanto a
chuva que chove, como a chuva que passa e vai-se embora). Noutra, o gerúndio aponta
para o crescimento da ação (“tarde escurecendo...”). A ação de anoitecer amplia-se pelo
uso do gerúndio. É como a noite que vai aos poucos surgindo e encobrindo tudo com sua
negritude. Além disto, neste verso, as reticências indiciam o prolongamento indefinido da
ação. Por fim, quando se espera o aparecimento da noite, algo surge. De forma
inesperada. Dito exclamativamente. E desautomatizando a percepção do leitor: “É tempo
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de tanajura!”. As tanajuras, além do sentido dicionarizado, podem ser também as


mulheres-tanajuras, aquelas de nádegas generosas, à semelhança do poema
drummondiano em que um garoto se embola na rede com a lavadeira: “Uma lavadeira
imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde”. Uma lavadeira imensa, de tetas
imensas, só pode ser uma mulher-tanajura! O leitor se diverte com Saulo. Haicai e humor.
Ah, amor! Ah, humor! Oswald também dixit.
Augusto dos Anjos é homenageado em

Frondoso tamarindo.
Em seu lugar vazio
verdes lembranças.

O tamarindo frondoso foi-se. Mas o lugar da memória guarda-lhe uma geografia


singular: a da infância. Os verdes anos de Casimiro de Abreu. Com quantas
intertextualidades se faz um haicai sauliano? O contexto e a linguagem deste haicai
remetem-nos ao Romantismo com seu elogio desbragado das lembranças, ao mesmo
tempo que contempla a natureza, presença marcante (e obrigatória nos haicais
japoneses), e saúda Augusto dos Anjos na figura do tamarindo.
Um desafio aos estudiosos da poesia deste poeta de silêncios e cantos serenos.
A saudade é imensa, frondosa, velha e amiga como a árvore. Não é à-toa que a
árvore foi escolhida para figurar como coadjuvante do mundo edênico. Sem ela, nem
cobra, nem Eva, nem Adão. Nem memória do pecado. A maldição lançada. O paraíso
perdido. E a infância não é este céu-inferno de crueldades e belezas? (Vide o diretor de
cinema Carlos Saura, tão comentado nos anos 70 e 80, tão esquecido nos anos 2000). O
lugar vazio é preenchido pela matéria da vida. Vida que tem raízes na infância. Nos
tempos verdes. Nos locais verdes. O eu-lírico sabe disto. Assim, brinca com Casimiro e
Augusto. Com a bíblia. Com o cinema. Com a psicanálise. Como se a história fosse um
lance de dados do acaso. Não é: ele sabe. Mas quer buscar o não-saber do memorável em
aberto.

No céu, quantos trovões!!


Gozos espalhafatosos
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das nuvens quando cruzam.

A primeira coisa que chama a atenção do leitor é o uso do verbo cruzar em suas
acepções de atravessar e de acasalar. Não há novidade nisto. E a semântica debulhada de
“gozos” induz a leitura imediata: a libido está nos céus. No alto. Mas gera trovões. Que
são espalhafatosos.
Se no céu as forças naturais gozam em estripulias, por que nós, no baixo, na terra,
devemos nos conter? Do baixo nasce o alto, nos lembra Bakhtin ao analisar o contexto de
François Rabelais. A leitura, de primeira mão, esconde, mais uma vez, outra. Nas
entrelinhas, nas entrenuvens, nos entregozos. O eu-lírico diz a que veio: ao novo e
simples. Ao novo e refinado. Ao novo e bem-sentido, bem-pensado. Prazeroso. Os
trovões metaforizam os sons dos gozos celestes: gozos das nuvens, literalmente, e gozo
nas nuvens, figuradamente.
A poesia de Saulo Mendonça nos leva a muitos tempos e geografias. É preciso
estar atento. Desautomatizado. De olhos, mente & coração abertos. Porque o jogo
poético sauliano é partida para dois ou mais. Ou um, desde que polissêmico.
Pra encerrar, transcrevo este haicai de olhar pelo avesso. Este desvendar do
mistério. Esta alegria alegria brotada do choro da descoberta. Da epifania. Da revelação.
Do dentro para fora, heideggeriano:

Estalactites.
Lágrimas da terra
quando chora por dentro.

A sonoridade do vocábulo estalactites associada a um brusco ponto final. A


imagem se conforma aos jogos vocálicos em /a/ e /i/. O /c/ mudo isomórfico à
interrupção da pontuação. Deste jogo de som e sentido nasce o sentido de estalactites,
no plural, para formatar a imagística e imagética da palavra.
Lágrimas da terra projetam a imagem para fora de si, enquanto o verso a seguir é
o recolhimento da imagem que “chora por dentro”. Visualmente o terceto é formado por
versos que crescem um a um, reforçando a ideia da placa/caverna de estalactites.
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Em Saulo Mendonça o haicai nasce da fonte mais pura. Límpida. Translúcida. Da


busca da linguagem mais econômica & representativa. Milimetricamente posta no
estreito caminho. Da estrofe de apenas três versos. Em filigranas. Numa historicidade
poética secular. A poesia de Saulo é paraibana, brasileira e universal.

2.3.2. Um poema de Arnaldo Antunes

“O quê” foi primeiramente letra de rock, gravado pelos Titãs no disco Cabeça
dinossauro, de 1987. A letra, tal como se encontra no site de Arnaldo Antunes, é a
seguinte:

O quê

Que não é o que não pode ser que


Não é o que não pode
Ser que não é
O que não pode ser que não
É o que não
Pode ser
Que não
É
O que não pode ser que
Não é o que não pode ser
Que não é o que
O quê?
O quê?
O quê?
Que não é o que não pode ser que não é

Esta letra de rock, que é um poema discursivo sucinto e muito bem realizado
poeticamente, apresenta uma ideia pela sua negação. O que importa é o que não é, que
não pode ser. Todavia, ao mudar as pausas do rock, ou dos versos – que podem ser lidos
como enjambement – neste caso, a pontuação (propositalmente ausente) abre
possibilidades de novos ritmos, novas sintaxes e novos sentidos. “O que não pode ser” de
repente transforma-se em “pode ser que não”. Este jogo de deslocamentos confere ao
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poema inúmeras leituras, que sempre se transformam. E terminam com uma


interrogação: “o quê?”.
O verbo ser, ponto nevrálgico de toda a cultura ocidental, é tomado no seu
aspecto mais excludente: ser e não ser. Esta bipolaridade essencial – no que se refere à
essência das coisas e entes, como nos ensina a filosofia – contrapõe elementos
aparentemente díspares. Todavia, o poema não endossa esta dicotomia. Antes,
questiona-a, como se aquilo que é também seja aquilo que não é, concomitantemente. O
verbo ser, que define, por excelência, passa a ser trincado por dentro de seu sentido
ocidental (sentido afirmativo, como no exemplo “isto é aquilo”) e abre-se para o
pensamento oriental em que tudo pode ser e pode não ser. Tal como na simbologia do
yin e yang.
O poema é um questionamento da linearidade de pensamento, da
unidimensionalidade cultural. Em Semiótica da Cultura todo texto (verbal ou não-verbal)
encerra os mais variados aspectos culturais. E cultura aqui é entendida como realidade
imediata. Sem ele inexistem o objeto de pesquisa e o de pensamento. Em outras palavras,
chamamos de texto quaisquer conjuntos de signos. Todavia, é importante que fique claro
que não há conjuntos puros de signos, já que todo texto é construído por um sistema de
linguagens. E as linguagens não são puras. Mas onde reside a particularidade do texto
então? Lá onde mora o significado habita o sentido do texto. Lá onde cada texto é visto
como enunciado.
Toda palavra possui um objeto e, por isto, ela é dialógica. A compreensão de um
texto se dá, então, pela refração, para usarmos aqui um termo caro a Bakhtin. Somente
na compreensão há dois sujeitos. Consideremos que a explicação é matéria de um
sujeito, de uma consciência. Na compreensão há, além dos dois sujeitos, um terceiro, um
quarto, etc.
Este poema de Arnaldo Antunes constrói-se através de relações dialógicas entre os
enunciados do todo e da parte, da negação e da afirmação, da rede de refrações que se
multiplica na polissemia. Daí o lúdico que se dá como convite ao leitor/ouvinte para que
seja co-autor do poema, ampliando-lhe o significado, as variedades e os matizes.
87

Segundo Lótman, “é precisamente o estudo do que significa ‘ter uma significação’,


do que é o ato de comunicação e qual é o seu papel social, que constitui a essência da
abordagem semiótica” (1978, p. 74).
Em “O quê” a busca pela significação, bastante evidente, é um movimento
contínuo de deslocamento de significados em busca da “essência da abordagem
semiótica”. Em momento algum o poema qualifica este “o quê” do título. Se é uma
afirmativa (como no título do poema) é também uma interrogação (como no corpo do
poema). Esta multivocalidade do poema talvez seja o traço mais característico da
Semiótica da Cultura e que a distinga das demais semióticas.
O texto desempenha três funções semióticas: a comunicativa, a geradora de
sentidos e a função mnemônica. Segundo Adriana Vaz Ramos et alii, na função
comunicativa “o texto é homo-estrutural e homogêneo”, na geradora de sentidos “o
texto é hetero-estrutural, constituído como manifestações de várias linguagens” e na
função mnemônica “há no texto uma tendência à simbolização ligada à memória” (2007,
31).
No poema citado a função comunicativa se dá pelo vocativo-
interrogativo/afirmativo presente em todo o poema. O texto é homo-estrutural porque, à
primeira vista, a função comunicativa se dá de imediato, como função primeira. É o nível
do que se diz e é compreendido. Claro que a comunicação poética se processa segundo
uma analógica singular, como bem a definiu Pignatari (2005). Em poesia o processo de
comunicação se difere substancialmente do processo de comunicação jornalístico, por
exemplo, em que a comunicação deve ser imediata e monossêmica.
O ritmo do poema, que segundo Antonio Candido (1987, 47) “é uma cadência
regular definida por um compasso”, passa por desdobramentos neste poema, e tal
procedimento imprimi-lhe um carácter circular, que depois será explorado por Arnaldo
Antunes em seu livro Psia:
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Visualmente o poema opera uma economia de versos: o que se estendia na letra


da música, condensa-se na materialização do poema. Todavia, o carácter regular do
poema é preservado. E como observa Antonio Candido,

além da rima, há outras homofonias, como a repetição de


palavras, de frases e de versos, que se chama Recorrência (...).
Quando a repetição é de verso próximo ao outro (...) temos a
homofonia absoluta, que de certo modo é o ideal da rima, a rima
das rimas. (CANDIDO, 1987, p. 45)

A musicalidade do verso, ao lado da exposição de ideias (denominadas,


respectivamente, por Pound como melopeia e logopeia) ganham expressividade tanto na
Recorrência dos versos e do poema escrito, como no poema visual.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Arnaldo. Psia. 3 ed. corrig. São Paulo: Iluminuras, 1991.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: FFLCH/USP, 1987. (Col.
Terceira Leitura, v. 2)
89

LÓTMAN, I. A estrutura do texto artístico. Tradução de Maria do Carmo Vieira Raposo e


Alberto Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.

MENDONÇA, Saulo. Luz de musgo. João Pessoa: Sal da Terra, 2008.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8. ed. São Paulo: Ateliê Editorial. 2005.

RAMOS, Vaz Adriana et alii. “Semiosfera: exploração conceitual nos estudos semióticos da
cultura”. In: MACHADO, Irene (org). Semiótica da cultura e semiosfera. São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2007, p. 27-44.
90

2.4. Análise de canção popular

2.4.1. À margem de A terceira margem


Amador Ribeiro Neto

O conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, tem merecido análises e


interpretações sob os mais variados enfoques: literário, filosófico, psicanalítico,
sociológico, linguístico, etc. Sem desqualificar qualquer um destes tipos de abordagem -
que, aliás, têm enriquecido os múltiplos olhares sugeridos pela obra roseana - faço dois
esclarecimentos:

1. vou ater-me aos enfoques teóricos da semiótica russa, via Bóris Uspênski, e da
semiótica francesa de viés barthesiano do franco-cubano Severo Sarduy;

2. interessa-me o conto enquanto material de sustentação para a canção A


terceira margem do rio, de Caetano Veloso (letra) e Milton Nascimento (música).

A terceira margem do rio

Oco de pau que diz:


Eu sou madeira, beira
Boa, da val, tristriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai.
Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai.
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Meio a meio o rio ri


Por entre as arvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O riu viu, vi
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai.

Caetano Veloso, ao produzir, em 1991, a letra da canção homônima conferiu —


sob a forma de poesia — ao conto uma abordagem crítico-criativa que defendo como
instigantemente criativa e esclarecedora. Desprezando os índices mais evidentes e
explícitos da abordagem teórico-contística, Caetano ateve-se ao processo de criação em
arte, interpretando o conto sob a forma de uma nova criação. Enfim: valeu-se do conto
para gerar um poema (uma letra de música) metacrítica e metacriativa. Ao que a música
de Milton Nascimento vem somar-se em perfeita unidade composicional. (Por perfeita
unidade composicional entendo aquilo que Luiz Tatit chama de “eficácia da canção”: letra
e música num bloco uno, tão engenhosamente construído, que se torna indissolúvel
enquanto obra, sem perder, evidentemente, as qualidades específicas de cada código: o
verbal e o musical).

Nesta comunicação viso detalhar a ótica de abordagem de Caetano Veloso,


buscando desvelar “o Rosa de Caetano”. Quer seja: viso enfocar, comparativamente, a
prosa do conto e a poesia da canção enquanto margens de um mesmo rio: o rio das
linguagens artística e crítica — sempre sob o signo da semiótica.
92

No conto a voz que fala é a da testemunha dos fatos: o filho, sem nome, que narra
a posteriori - ora sob a ótica pessoal, ora sob a ótica dos familiares e amigos. Assim, a
dubiedade se instaura onde mesmo se buscava mais objetividade: no ponto de vista do
outro, em confronto com o do personagem-narrador. Acontece que tudo aqui passa pelo
crivo do olhar e das palavras do filho. A fala das testemunhas chega ao leitor através do
reconto do filho. Se o próprio título já remete o leitor a um universo indeterminado de
significação, o personagem-narrador vem apenas bulir mais nestas águas nada límpidas.
Para torná-las mais turvas. Ou seja: para que converta-se mais e mais no território da
poesia - terreno fugidio, avesso a configurações delimitatórias, pleno de discursos
antidiscursivos.

Estamos, enfim, diante de um narrador tipicamente moderno, que convive


simultaneamente, segundo Walter Benjamin, com estruturas arcaicas e modernas da
narração. Acrescente-se: também das estruturas arcaicas e modernas da poesia. A
subjetividade do narrador perpassa a forma tradicional de narrativa impingindo-lhe
pseudo-objetividade.

Na letra de Caetano é o barco quem fala. Melhor dizendo: é o oco de pau que diz.
O ouvinte (estamos tratando de uma música popular) de imediato é mergulhado no
universo poético das representações: aceitar que a madeira tenha voz é mergulhar no
universo das representações poéticas e aceitar como verossímil, não a lógica dos
acontecimentos, mas a analógica deles, arquitetada pelo próprio texto. Não a organização
cartesiana do pensamento, mas a semiótica.

Outra voz, todavia, se insere nesta narrativa: a de um eu-poético, um outro sujeito


que se soma ao sujeito (objeto) madeira. Esta fusão, todavia, não se dá por exclusão de
um dos narradores. Suas vozes entretecem-se num amálgama só, conferindo à canção
novo nível de ambiguidade. Agora a informação através de outro canal, um canal
igualmente poético, mas que ao surgir confere um distanciamento às informações da
madeira. O eu-poético atua como autoridade. Melhor dizendo: atua como alteridade do
discurso.

O ouvinte sente o chão faltar-lhe, como se estivesse dentro de uma canoa, à


revelia das águas. O movimento das águas iconiza-se neste titubear de compreensões.
93

Enquanto no conto a terceira margem transparece como um mistério não-decodificado,


desde o título, na letra de Caetano o significado rarefaz-se numa radial de significantes,
como diria Sarduy. Há um desperdício de sonoridades, imagens e ideias (melopeia,
fanopeia, logopeia, na terminologia poundiana) que levam o significante a índices de
requinte e encantamento, próprios da música. E é isto que Milton Nascimento percebe
bem na letra, ao isomorfizar numa melodia rítmico-melancólica, o objeto inominado e
perdido. A harmonia é requintada, montada sobre acordes de delicadezas, de sutilezas
próprias da canção popular pós Bossa Nova, em especial.

Letra e música, ou seja, a canção é encontro modelar dos jogos de significantes. A


melodia apresenta dois momentos: um bem ritmado, que Luiz Tatit chama de
tematização: o predomínio dos ataques consonantais imprime movimento que chega ao
corpo do ouvinte, levando-o a mover-se: dançando, batucando, balançando a cabeça, os
pés, etc. O segundo momento é marcado por um alongamento das vogais, principalmente
as de final de verso, levando o ouvinte a ficar em estado de relaxamento. Aqui a melodia
toma contornos mais subjetivos, levando o ouvinte à sensação de, muitas vezes,
melancolia. No caso, a letra, que não define seu objeto de tensão, leva o ouvinte a oscilar
entre euforia e depressão. Sempre sem saber conscientemente por quê ele, ouvinte,
reage assim. A esta indefinição quanto ao objeto de desejo Freud chamou melancolia. A
esta resposta assertiva à canção, Luiz Tatit chamou eficácia.

Todavia, se o objeto não se explica fora da letra, como uma referência a algo
exterior, a semiótica nos orienta a buscar o objeto na construção dele mesmo, na
edificação da linguagem, nos torneios de significantes que pulsam e orientam o ouvinte
sem que este (o ouvinte) se dê conta logicamente. A razão não está mais no
aristotelismo-cartesiano, por exemplo, mas na similaridade paradigmática do eixo de
seleção, que aproxima os elementos por semelhança dos significantes, construindo
significados. A moldura da canção não se esgota (aqui me valho de Eikhenbaum) nos
limites do seu objeto dado; antes: estende-se na interação e intersecção de linguagens de
diferentes códigos e da resultante destas confluências e conflitos.

Por isto mesmo a leitura que Caetano Veloso faz do conto de Rosa é uma leitura
que recorta a palavra e seu lugar no texto literário como mote, como motivo, como razão
94

da letra que compõe. Não é uma letra simplesmente adaptada do conto ou feita a partir
dele. É uma letra que associa criação e crítica numa mesma obra. A terceira margem não
é, para Caetano Veloso, nenhum referente exterior ao conto: é a própria palavra, tema do
conto e da canção que compôs. A voz do eu-lírico observador de terceira pessoa (meio a
meio o rio ri) é também da personagem participante de primeira pessoa (por entre a risca
da canoa / o rio viu, vi) que se funde na primeira pessoa do pretérito perfeito e/ou a
segunda do plural do imperativo (ouvi, ouvi, ouvi / a voz das águas).

O canto da palavra transparece claro ao final: a hora clara, nosso pai / quando não
se diz nada fora da palavra. E a enumeração triádica final é também um qualificativo: rio,
pau enorme, nosso pai. O rio, a canoa, o pai: os 3 elementos que formam as 3 margens.
Ou, o rio, que é um falus enorme, é nosso pai. O rio enquanto metáfora do tempo. O
tempo é nosso pai. O tempo que o próprio Caetano já definiu em outra canção como
compositor de destinos, senhor de todos os ritmos.

Referências bibliográficas

CHKLÓVSKI, V. “A arte como procedimento”. In: ____ et al. Teoria da Literatura:


Formalistas Russos. Trad. Ana Mariza Ribeiro Filipouski et al. Porto Alegre: Globo, 1973, p.
39-56.

ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: ______. Primeiras estórias. 10 ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 27-32. (Col. Sagarana, v. 90)

SARDUY, Severo. “O barroco e o neobarroco”. In: MORENO, César Fernández (org.)


América Latina em sua literatura. Trad. Luiz João Gaio. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.
161-178. (Col. Estudos, v. 52)

TATIT, Luiz. “Dicção do cancionista”. In: _____. O cancionista: composição de canções no


Brasil. São Paulo: EdUSP, 2002, p. 9-27.

USPÊNSKI, B.A. “Elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte. Princípios


gerais de organização da obra de arte em pintura e literatura”. In: SCHNAIDERMAN, Boris
(org). Semiótica russa. Trad. Aurora Bernardini, Boris Schnaiderman e Lucy Seki. São
Paulo: Perspectiva, 1979, p. 163-218. (Col. Debates, v. 162)

Referência discográfica:
95

VELOSO, Caetano & NASCIMENTO, Milton. "A terceira margem do rio". In: VELOSO,
Caetano. Circuladô. Philips/PolyGram, 1991, faixa 9.

2.4.2. “Tropicália” e “Viajei de trem”: seus olhos grandes sobre mim


Luís André Bezerra de Araújo

Para o poeta e crítico Augusto de Campos, a canção “’Domingo no Parque’ *de


Gilberto Gil] joga palavras, música, som, ideia, numa montagem dentro dos moldes da
comunicação moderna: o layout, a arrumação, a arte final” (CAMPOS, 2005, p. 155). Este
mesmo tipo de observação Gilberto Gil faz em relação a “Alegria, alegria”, de Caetano
Veloso:

As palavras com sentido de atualidade e interesse — guerrilha,


Brigitte Bardot, coca-cola, caras de presidentes, espaçonaves —
despertam e encaminham a percepção das pessoas para o sentido
total das coisas que estão sendo ditas. (GIL apud CAMPOS, 2005,
p. 155)

Estas características de duas canções inaugurais do revolucionário movimento


Tropicalista (1967-1968) nos remetem à técnica de montagem cinematográfica, cujo
princípio pode ser empregado num texto poético, numa canção, numa peça de teatro,
etc. Um importante teórico do assunto é o cineasta russo Siérguei Eisenstein (2000), cuja
técnica de montagem (com cortes abruptos, closes, e a montagem dialética, na qual o
conceito-chave é “montagem é conflito”) vemos na prática em vários exemplos: no seu
longa metragem Encouraçado Potemkin, de 1925; nos vídeos-clipes (repletos de cortes)
da música pop atual; como também está fartamente empregado nos versos de “Domingo
no Parque”.
A canção “Tropicália”, de Caetano Veloso, também pode ser considerada um
modelo representativo das inovações propostas por Gil e Caetano no tropicalismo. A letra
dispõe uma colagem de eventos e cenários brasileiros, tanto arcaicos como modernos,
misturando tradição e modernidade, luxo e lixo. Para Augusto de Campos (2005, p. 163),
96

trata-se de uma “presentificação da realidade brasileira — não a sua cópia — através da


colagem criativa de eventos, citações, rótulos e insígnias do contexto”. O eu lírico aponta
e percorre diversos espaços do país, destacando símbolos culturais e fazendo uma
montagem que conflita contradições do panorama brasileiro. Vejamos a letra de
“Tropicália”:

Sobre a cabeça os aviões


Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central
Do país

Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça

O monumento é de papel crepom e prata


Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão

Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta

No pátio interno há uma piscina


Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira
Entre os girassóis

Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia

No pulso esquerdo bang-bang


Em suas veias correm muito pouco sangue
Mas seu coração balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
97

Pelos cinco mil alto-falantes


Senhoras e senhores ele põe os olhos grandes
Sobre mim

Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma

Domingo é o Fino da Bossa


Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da

A montagem delineia a forma utilizada para cantar um país que convivia com
turbulências, tensões, miséria, mas que não deixava de celebrar a vida com cores, música
e carnaval. Tem-se a representação da disparidade e das relações dialéticas em
ambivalência. Para Celso Favaretto, esta composição de Caetano “constitui a matriz
estética do movimento [tropicalista+” (FAVARETTO, 2000, p. 63). Em outro momento,
atesta este autor:

(...) elementos totalmente díspares são coordenados numa outra


temporalidade aparentemente neutra, em que nada se diz “a favor” ou
“contra”, desconstrói-se a ideologia oficial que transforma as inconsistências
histórico-culturais em valores folclorizados. A operação dessacralizadora
provém menos das referências ao contexto que do modo de construção. A
música se realiza na alternância de festa e degradação, em carnavalização e
descarnavalização, que são agenciadas pela enumeração caótica das imagens
na letra, entoação de Caetano e contraponto metalinguístico do arranjo de Júlio
Medaglia. (id. ibid., p. 64)

“Tropicália” configura uma paródia 4 de diversos registros musicais e literários


brasileiros. Na letra estão informações do folclore, do cancioneiro nordestino, do bom e
do mau gosto:

4
Toda vez que nos referirmos à paródia, serviremo-nos da abordagem de Haroldo de Campos, quando afirma
que “ela não deve ser necessariamente entendida no sentido de imitação burlesca, mas inclusive na sua
acepção etimológica de canto paralelo” (CAMPOS, 1989, p. 15-16).
98

O sonho (ou pesadelo) de uma noite de guerrilha e Brasília, a bossa e a palhoça,


a mata e a mulata, Iracema e Ipanema, a fala pura das crianças e a fala falsa dos
políticos, a velha e a jovem guarda, Carmen Miranda e a Banda. Um poema
joco-sério, recheado de paródias e citações (“os olhos verdes da mulata”, “o
luar do sertão”, “na mão direita tem uma roseira”, “Viva Maria”, “O Fino da
Bossa”, “que tudo mais vá pro inferno”, “A Banda”, etc. As enfiadas de rima e a
repetição em eco das sílabas finais do estribilho rimado dão uma sonoridade
única a “Tropicália”. (CAMPOS, 2005, p. 163, 164)

Sobre a forma discursiva realizada através de montagem, Augusto de Campos


exaltou as inovações propostas por Caetano, já que sua maneira de narrar era não-linear,
ao contrário do que geralmente se fazia na música popular brasileira da época. Para
Campos, Caetano utilizava, acima de tudo, uma linguagem típica da poesia, fazendo
justaposição de frases-feitas com estilhaços sonoros (CAMPOS, 2005, p. 163).
Outro exemplo de canção que representa a tensão entre os benefícios da
modernidade e a dificuldade social é o samba “Trancos e Barrancos”, composto e
interpretado por Raul Seixas no disco Sociedade da grã-ordem kavernista apresenta
sessão das dez, de 1971. Temos aqui um retrato irônico do projeto de vida pequeno-
burguês:

(Tá aí! Eu sou um cara que subi na vida


morava no morro e agora moro no Leblon)

Eu vou pendurado na janela,


vou mais pensando nela que esse sujo pelo chão
eu vou descascando a minha vida,
sujando a avenida com meu sangue de limão

Rio de Janeiro
você não me dá tempo de pensar com tantas cores
sob este sol
pra que pensar se eu tenho o que quero
tenho a ‘nega’, o meu bolero,
a TV e o futebol

Eu não vou levando nosso leite


troquei por um bilhete da roleta federal
eu vou pela pista do aterro
e nem vejo meu enterro que vai passando no jornal
99

A letra de “Trancos e Barrancos” também se utiliza do recurso da montagem para


lançar imagens visuais em seus versos. Os dois primeiros versos são falados pelo eu lírico
(“tá aí, eu sou um cara que subi na vida / morava no morro e agora moro no Leblon”),
caracterizando uma espécie de introdução para a letra que seria entoada na sequência
com a melodia. Recurso semelhante ao utilizado em “Tropicália”, que contém na
introdução a voz do baterista Dirceu declamando: “Quando Pero Vaz Caminha descobriu
as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao Rei: tudo que nela
se planta, tudo cresce e floresce. E o Gauss da época gravou...”.
A composição de Raul Seixas contém os elementos citados anteriormente por
Favaretto: carnaval, futebol e televisão. O carnaval é representado pelo próprio ritmo da
canção: um samba com forte marcação e ritmo acelerado, garantindo o caráter de
tematização. “A TV e o futebol” são citados como indícios de alienação, misturando
elementos pessimistas e eufóricos no mesmo contexto.
Saltando para outro momento, mais precisamente para a canção “Viajei de trem”,
de Sérgio Sampaio (1973), também temos uma viagem do eu lírico por diversos
contextos, presentificados na realidade daqueles tempos difíceis no Brasil (a saber: tempo
de Ditadura Militar, que teve início com o Golpe de 1964 e significou forte repressão
sócio-política no final dos anos 1960 e início dos 1970):

Fugi pela porta do apartamento


nas ruas: estátuas e monumentos
o sol clareava num céu de cimento
as ruas marchando invadiam meu tempo

Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu vi

O ar poluído polui ao lado


a cama, a dispensa e o corredor
sentados e sérios em volta da mesa
a grande família e um dia que passou

Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem (mas eu queria)
100

eu viajei de trem (eu só queria)


eu viajei de trem
e eu vi

Um aeroplano pousou em Marte


mas eu só queria ficar à parte
sorrindo distante, de fora, no escuro
minha lucidez nem me trouxe o futuro

Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu vi

Queria estar perto do que não devo


e ver meu retrato em alto relevo
exposto sem rosto em grandes galerias
cortado em pedaços, servido em fatias

Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem (mas eu queria)
eu viajei de trem (eu não devia)
eu viajei de trem (mas eu queria)
eu viajei de trem (eu não podia)
eu viajei de trem (eu não queria)
eu viajei de trem (eu só queria)
(viajar de trem)

Eu vi seus olhos grandes sobre mim

Temos novamente em “Viajei de trem” o recurso da montagem cinematográfica.


São diversas imagens numa composição que apresenta a narração de um passado,
reflexões sobre o presente e aponta a falta de perspectivas para o futuro. As imagens na
canção de Sérgio Sampaio escancaram um cenário de pessimismo pessoal e coletivo, que
envolve o desânimo no convívio familiar 5 (“todos sérios em volta da mesa”) e o cenário
pesado das ruas marchando, com suas estátuas e monumentos. “Viajei de trem” reflete e
refrata o conteúdo de “Tropicália”, segundo as concepções de Bakhtin, ao falar sobre o
signo e sua natureza ideológica:

5
Apresenta-se aqui a aversão a qualquer tipo de hierarquia, neste caso específico, a familiar.
101

Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-


se de um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da
palavra: não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os
signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam
socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim
um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada
pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio
ideológico e social. (BAKHTIN, 1986, p. 35, grifos do autor)

São cinco anos que separam as composições de Caetano Veloso e de Sérgio


Sampaio. Este último, capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, parece apontar, através do
eu lírico de sua letra, a direção por onde marcharam as imagens indicadas em
“Tropicália”, dando, entretanto, acentuado destaque às desilusões e preocupações de
uma época marcada pela acelerada evolução tecnológica e pela crescente repressão no
ambiente sócio-político.
Se em “Tropicália” há, em passagens como “viva a bossa”, “balança um samba de
tamborim”, “domingo é o fino da bossa”, uma celebração de aspectos culturais do Brasil
— verificável até pela maneira descontraída e vibrante com que o eu lírico canta os
estribilhos —, mesmo que estando dispostos de forma irônica (FAVARETTO, 2000, p. 71),
em “Viajei de trem” esta veia festiva está completamene descartada. A interpretação é
entoada de maneira arrastada e desanimada (quase que de forma declamativa — com
predomínio da figurativização), permeando os versos com imagens sombrias e
pessimistas.
A “viagem surreal pós-tropicalista” (MOREIRA, 2000, p. 79) de Sampaio, embora
não explicite a temporalidade dos fatos, parece permear um passado não muito distante,
que se aproxima da realidade do presente (“o ar poluído polui ao lado / a cama a
dispensa e o corredor / sentados e sérios em volta da mesa / a grande família e um dia
que passou”). O eu lírico faz um balanço de sonhos não realizados, cuja suposta lucidez
diante do mundo não significou garantia de dias melhores.
A reflexão parte do social e de ambientes externos (“ruas”; “ar poluído”; “céu
cinzento”) para depois ser transportado para um campo mais particular (do convívio
familiar, por exemplo), para retomar o social, ampliando ainda mais a tomada: relações
sociais nas grandes cidades e até mesmo da humanidade e sua relação com o avanço
102

tecnológico, quando cita “um aeroplano pousou em Marte / mas eu só queria ficar à
parte”.
Imagens de “Tropicália” são retomadas logo nos primeiros versos de “Viajei de
trem”: ruas, construções e monumentos. A voz que canta na composição de Caetano
falava em inaugurar um monumento no planalto central, que seria moderno, “de papel
crepom e prata”. O eu lírico de “Viajei de Trem” remonta o contexto: a fuga pelas ruas
representa deparar com estátuas e monumentos, mas que estão num cenário obscuro, ao
contrário do colorido exposto na primeira. O sol aparece em meio ao céu de cimento (que
pode referir-se tanto à poluição como à presença de arranha-céus nas grandes cidades —
além da metáfora de clima pesado, já que os versos expõem um pessimismo latente). A
imagem das ruas marchando fecha a estrofe, denunciando uma inversão dos papéis: são
as ruas (espaço de confluência e embate de pessoas e grupos heterogêneos) que
marcham e entram nas vidas das pessoas, quando poderíamos supor o contrário.
Para Favaretto, falando sobre carnavalização, a espacialização tem um significado
especial entre as características do movimento tropicalista. Em suas palavras,

As “ações” ocorrem nas ruas, praças públicas, parques, que são lugares de
passagem e mudanças rápidas; ou então, em interiores e exteriores
(psicológicos ou ideológicos) — salas de jantar, quintais, corredores, portões,
prateleiras, balcões. (FAVARETTO, 2000, p. 92-93)

A ideia do espaço interior de uma residência aparece na estrofe seguinte de


“Viajei de trem”. A figura da “grande família” desmascara o retrato do modelo burguês de
estrutura familiar, mostrando que seus membros vivem o dia-a-dia sem muitas alegrias
ou o que compartilhar na reunião à mesa. Há apenas o cumprimento de mais um dia na
rotina (“sentados e sérios em volta da mesa / a grande família e o dia que passou”), como
que pessoas ocupadas apenas em “nascer e morrer”, que encontramos nos versos da
canção Panis et Circensis, de Caetano e Gil, de 1968 (“mas as pessoas na sala de jantar /
são ocupadas em nascer e morrer”).
A imagem da sala de jantar como reunião da família está presente ainda em outras
canções tropicalistas, como:
103

“Miserere Nobis” (Gilberto Gil e Capinam, 1968): “calados e magros esperando o


jantar / na borda do prato se limita a janta”;
“Deus vos salve esta casa santa” (de Caetano Veloso e Torquato Neto, na voz de
Nara Leão, 1968): “oh, Deus vos salve / esta casa santa / onde a gente janta / com nossos
pais”;
“Eles” (Caetano Veloso, 1968): “em volta da mesa / longe do quintal / a vida
começa / no ponto final”;
“Sabor de burrice” (Tom Zé, 1968): “veja que beleza / em diversas cores / veja que
beleza / em vários sabores / a burrice está na mesa”.
Sempre a casa e, mais especificamente, a sala de jantar, representando um espaço
de obediência a superiores. Representação de um pequeno mundo ditatorial dentro dos
próprios lares.
Ao presentificar a realidade e percorrer diversos cenários brasileiros, o eu lírico de
“Tropicália” entrega-se à participação junto à coletividade, assume a posição de organizar
o movimento, orientar o carnaval e inaugurar o monumento. Sempre misturando a
participação de movimentos populares e culturais com a inserção nos meios já
oficializados. O eu lírico de “Viajei de trem” não consegue se entregar a essa participação
de maneira natural e parece fazê-la a contragosto: “mas eu só queria ficar à parte /
sorrindo distante, de fora, no escuro / minha lucidez nem me trouxe o futuro”, revelando
uma viagem “bem longe de um ‘alegre desbunde’, algo próximo a uma torturada viagem
psicodélica”6 (MOREIRA, 2000, p. 75).
Os estribilhos de “Tropicália” representam o ponto máximo da condensação de
imagens díspares do Brasil. Aproximando a bossa de palhoça (um representando um
movimento musical urbano de classe média, enquanto o outro é um elemento de
pauperização rural); Iracema de Ipanema (o primeiro que é anagrama de América e
remete à origem do Brasil, enquanto o segundo refere-se ao bairro da intelectualidade
carioca); e termina com a consagração do carnaval e a festa brasileira, aproximando “A

6
Vale mencionar que “viagem/viajar”, no contexto do desbunde significava também “experiência psicodélica
induzida por drogas, som, texto ou tudo junto. A expressão „viaja nessa‟ queria dizer „leve em consideração
isto que acabei de dizer‟” (BAHIANA, 2006, p. 82).
104

Banda” (composição de Chico Buarque) com a portuguesa que levou a música brasileira
para o mundo.
É o próprio Caetano Veloso quem enumera, no seu livro Verdade tropical, as
diversas relações intertextuais existentes nos estribilhos de “Tropicália” e toda polissemia
imbricada. Faz referências à Bossa Nova (“Garota de Ipanema”); iê-iê-iê (Roberto Carlos),
Chico Buarque (“A Banda”); a pronúncias das últimas sílabas de Carmen Miranda
misturando-se ao movimento Dada [Dadá], que ao mesmo tempo é o nome de uma
personagem central do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme de Glauber Rocha;
dentre tantas outras citações que abrem-se para a polissemia (VELOSO, 1997, p. 186-
187).
Na canção de Sérgio Sampaio que citamos como paródia tropicalista, o estribilho
insiste em proferir que o eu lírico “viajou de trem”. A insistente recorrência do verso
“viajei de trem” (com forte assonância em “ê”, indicando um lamento, um gemido
desesperançoso e acentuado pela interpretação com predomínio da figurativização)
somado às vozes que podem sugerir sentimento de culpa, desejos não realizados e
projetos cancelados — revelando impossibilidade de transformação da realidade (“mas
eu queria / eu não devia / eu não podia”, etc). O trem representa, neste contexto, a
máquina que proporciona o movimento, o deslocamento, de um passageiro que
permanece paralisado, capaz apenas de observar o ambiente que o cerca.
Há uma ironia com a repetição de “viajei de trem”: a repetição iconiza, a princípio,
um certo lirismo, na recordação de longas viagens de trem que poderiam lembrar
nostalgicamente o passado. Entretanto, a relação com as recordações, com os ambientes
de convívio social, e com espaços de agrupamento de pessoas, revela uma vinculação
individualista da ironia, quando o trem não mais representa o transporte coletivo, e sim a
ampliação do tempo que se revela solitário. Algo similar ao que nos fala Luiz Costa Lima
(2005), quando trata da incidência do princípio-corrosão na obra de Carlos Drummond de
Andrade. No estribilho da canção de Sérgio Sampaio “o lirismo encantatório fora cortado
pela ironia” (LIMA, 1995, p. 150), quando os versos passam a repetir “eu viajei de trem”
entrecortado pelos lamentos de “mas eu queria / eu não devia / mas eu queria / eu não
podia / eu não queria / eu só queria”.
105

O verso final da composição de Sampaio é uma citação direta de um verso de


“Tropicália”. Após repetir várias vezes “eu viajei de trem”, o final desvia o caminho da
frase, transformando-se em “eu vi seus olhos grandes sobre mim”. Desta maneira, a letra
encerra, denotando a percepção da vigilância, do acuamento em que o eu lírico parece
ter-se curvado “sozinho de longe, no escuro”, o que denuncia a apropriação de Sérgio
Sampaio de todo um universo crítico (sócio-político-histórico).
Em “Tropicália”, o tom do cancionista (no caso, o intérprete) quando canta
“senhoras e senhores ele põe os olhos grandes / sobre mim”, denuncia a mistura da
política com a música (FAVARETTO, 2000, p. 76-77), pois no início da estrofe ele falava
sobre a frágil e festiva esquerda brasileira, e transporta-se depois para o cenário de um
programa de tevê, com “senhoras e senhores”, misturando a vigilância do Estado com a
realidade do sucesso nos grandes meios de comunicação.

Referências bibliográficas:

BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud & Yara
Frateschi Vieira. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5 ed. 2 reimp. São Paulo:
Perspectiva, 2005.

CAMPOS, Haroldo de. Oswald de Andrade: trechos escolhidos. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir,
1989.

EISENSTEIN, Siérguei. “O princípio cinematográfico e o ideograma”. Trad. Heloysa de Lima


Dantas. In: CAMPOS, Haroldo de. (org.). Ideograma. Lógica. Poesia. Linguagem. 4 ed. São
Paulo: EdUSP, 2000, p. 149-166.

FAVARETTO, Celso. Tropicália alegoria alegria. 3 ed. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2000.

LIMA, Luiz Costa. Lira & antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2 ed. rev. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1995.

MOREIRA, Rodrigo. Eu quero é botar meu bloco na rua: a biografia de Sérgio Sampaio.
Niterói-RJ: Muiraquitã, 2000.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
106

Sobre os autores:

AMADOR RIBEIRO NETO: natural de Caconde-SP, radicado em João Pessoa-PB desde


1991, é poeta, contista e crítico literário. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-
SP e Mestre pela USP, é professor dos cursos de pós-graduação e graduação em Letras da
Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador registrado no CNPq, coordena a pesquisa
Poesia em novos suportes e o LES – Laboratório de Estudos Semióticos. Autor de
Barrocidade (poesia) e Imagens & Poemas (poesia em parceria com Roberto Coura).
Organizador e co-autor de Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (ensaios), de
Literatura na Universidade (ensaios) e de Epifania da poesia; ensaios sobre os haicais de
Saulo Mendonça (no prelo). Integrante das antologias Na virada do século: poesia de
invenção no Brasil (poesia; organizada por Frederico Barbosa e Cláudio Daniel), Chico
Buarque do Brasil (ensaios), Quartas histórias (contos) e Capitu mandou flores (contos)
organizadas por Rinaldo de Fernandes. Colaborador, por anos, do Jornal da Tarde (S.
Paulo), O Estado de São Paulo e A União (João Pessoa). Atualmente é colunista do Correio
das Artes (João Pessoa) e do site Cronópios. Colaborador do jornal Contraponto (João
Pessoa).
E-mail: [email protected]
Blog: www.augustapoesia.wordpress.com

CARLOS EDUARDO VIEIRA DO CARMO, natural de Crato-CE, radicado em João Pessoa


desde 2008, possui licenciatura plena em Letras (Inglês e Português) pela Universidade
Regional do Cariri (URCA, Ceará). Atualmente cursa Comunicação Social com habilitação
em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É redator e repórter do
portal de notícias Paraíba1. Ministrou minicurso de 12 horas, em Itapicuru, Bahia, (2011),
intitulado Poesia contemporânea brasileira: dos anos 80 aos nossos dias, pela UFPB Letras
Virtual. Tutor a distância da disciplina Teoria Literária I (Teoria da Poesia) desde abril de
2009.
E-mail: [email protected]

FLAVIANO MACIEL VIEIRA, natural de João Pessoa-PB, é professor de Literatura Brasileira


e Redação, atuando desde 2003 no Ensino Médio e em Cursinhos na rede privada de
ensino do Estado da Paraíba (João Pessoa e Guarabira). Além disso, é mestrando em
Letras na UFPB, com a dissertação intitulada As novas semioses do poema digital.
Participa do grupo de pesquisa orientado pelo professor Dr. Amador Ribeiro Neto,
intitulado Poesia em novos suportes, desde 2008. Desenvolve trabalho como tutor a
distância da cadeira Teoria Literária, no curso de Letras da UFPB VIRTUAL, desde 2009.
Ministrou minicurso de 12 horas, em João Pessoa (2010), intitulado Poesia
contemporânea brasileira: dos anos 80 aos nossos dias, pelo curso da UFPB Letras Virtual.
107

Tutor a distância da disciplina Teoria Literária I (Teoria da Poesia) desde 2009. É um dos
autores de Epifania da poesia; ensaios sobre os haicais de Saulo Mendonça (no prelo).
E-mail: [email protected]

LUÍS ANDRÉ BEZERRA DE ARAÚJO, natural de Orós-CE, formou-se em Letras pela URCA
(Universidade Regional do Cariri, Crato-CE), em 2003. Em 2009 defendeu a dissertação de
mestrado “Sérgio Sampaio e a paródia tropicalista em Eu quero é botar meu bloco na
rua”, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB (Universidade Federal da
Paraíba), onde atualmente desenvolve pesquisa de Doutorado, na área de Literatura e
Cultura. Faz parte do grupo de pesquisa do LES (Laboratório de Estudos Semióticos), que
desenvolve a pesquisa Poesia em novos suportes, estudando as produções poéticas
criadas e/ou divulgadas na rede mundial de computadores. É tutor a distância da
disciplina Teoria Literária I (Teoria da Poesia) do EAD – UFPB Letras Virtual desde 2008.
Ministrou minicurso de 12 horas, em Camaçari, Bahia, (2010), intitulado Poesia
contemporânea brasileira: dos anos 80 aos nossos dias, pela UFPB Letras Virtual. Integra a
equipe do blog O Berro (www.oberro.net).
E-mail: [email protected]

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