A Linguagem Da Poesia - Amador Ribeiro Neto Org PDF
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A linguagem da poesia
2ª edição
A linguagem da poesia
Amador Ribeiro Neto
O volume que o leitor tem em mãos é uma viagem didática e crítica pelos
meandros da poesia. A poesia, esta arte que acompanha o homem antes mesmo de ele
aprender a narrar, como nos ensina Octavio Paz, embora seja tão antiga, permanece
como uma das mais difíceis artes da palavra. Dificuldade que vem acompanhada do
prazer da descoberta das invenções de linguagem que todo poeta se propõe.
Em outras palavras: todo poeta anseia pelo novo, pelo diferente, pelo singular.
Afinal interessa-lhe dizer algo com uma linguagem até então, se possível, desconhecida.
Por isto desconstrói a gramática normativa da língua e cria uma outra gramática. Cria um
outro mundo de significações.
Neste processo de invenção, nem sempre fica claro para o leitor o que o poeta diz,
nem o modo como o faz. Uma dificuldade inicial que só aumenta o deleite na fruição do
poema. O poeta e ensaísta Paul Valéry já disse que do prato interessa-lhe o magro. Na
mesma linha de reflexão, nosso João Cabral de Melo Neto diz-se enojado com as
adiposidades e por isto escreve sempre com as mesmas vinte palavras, tal como, segundo
ele, Graciliano Ramos o fazia. Ou escreve a poesia de quebrar dente, obstruindo “a leitura
fluviante, flutual”, como diz em um de seus mais célebres poemas.
Por não estar preso ao mercado de compras e vendas, o poeta tem toda a
liberdade para ousar. E ele ousa com a linguagem, que é o que caracteriza a poesia e a
diferencia da prosa.
Desde muito tempo a poesia é uma arte marginal, no sentido de angariar poucos
leitores. E no mundo pós-moderno, em que a rapidez das informações, bem como sua
objetividade e clareza, dão a tônica das relações com o universo, e seus códigos
multimídias, uma arte que requer tempo, reflexão densa e pensamento abstrato, é, de
fato, de difícil assimilação.
Este é o caminho que a poesia tem trilhado, e não cremos que será diferente com
o advento da era pós-humana. Mesmo com mais pessoas escrevendo “poesia”, como
constatamos hoje com o uso da Internet, a prática milenar de ousar com a linguagem não
tem sido observada neste meio. Tanto isto é fato que os recursos da Informática
raramente aparecem no uso da poesia, mesmo dos melhores poetas da Internet.
Aquilo que deveria ser uma regra geral para os novos poetas – o uso dos recursos
do computador – originado a chamada Poesia Digital, ainda é, repetimos, um recurso
parcamente utilizado.
Assim, a poesia continua sua busca por renovações do modo de dizer. Isto não
quer dizer que o poeta viva num mundo à parte, cavando uma linguagem hermética. O
poeta e ensaísta T.S. Eliot já disse que o poeta não pode distanciar-se da língua do povo,
sob pena de comprometer a poesia. Maiakóvski, na mesma direção, disse que o povo é o
“inventalínguas”.
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Sumário
Capítulo I
ABORDAGEM POÉTICA
1.1. O que é literatura
1.2. A comunicação poética
1.3. Elementos constitutivos do poema
1.4. Elementos constitutivos da canção popular
Capítulo II
ANÁLISE DE POEMAS
2.1. O método analítico
2.2. Sonetos: um barroco e outro modernista
2.3. Poemas contemporâneos
2.4. Análise de canção popular
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CAPÍTULO I
ABORDAGEM POÉTICA
Veremos aqui o que disseram e o que dizem alguns grandes estudiosos sobre o
que vem a ser literatura. Quais os principais teóricos? Quais são suas teorias mais
representativas? O que disseram de significativo e importante? O que torna um texto
literário? Quais os procedimentos estéticos? Enfim, como se apresenta a oposição entre
texto literário e não-literário? Antes de apresentar respostas para estas perguntas, faz-se
necessário deixar claro algumas questões básicas.
Primeiramente, vejamos o seguinte: podemos dizer literatura médica, literatura
filosófica ou literatura jurídica, como sendo um conjunto de escritos referentes a uma
determinada área do conhecimento, mas o termo literatura que nos serve (aos amantes,
estudantes e professores de Letras) diz respeito à arte da palavra.
Como se dá esta arte, qual é sua matéria, que relações estabelece com o mundo
real e como se organiza são questões que nos conduzirão no decorrer destes escritos. A
pergunta central é: o que é e do que é feita a boa literatura?
Em segundo lugar, é bom deixar claro que serão apresentadas conceituações e
não definições prontas e acabadas sobre o que seja literatura. Afinal, estamos nos
referindo a um objeto artístico, daí a dificuldade/impossibilidade de definição.
Em terceiro lugar, e finalmente, o objetivo maior deste texto é apresentar ao
aluno um olhar abrangente (não único, mas apenas um olhar) sobre a teoria literária.
Neste sentido, serão apresentados alguns dos principais conceitos teóricos sobre o
assunto. E ao longo do texto serão feitas referências a livros importantes e
imprescindíveis para a formação de um professor de língua e literatura.
Como será um olhar mais geral sobre os conceitos, não temos aqui a pretensão de
ir fundo em seus assuntos. Conceituações serão apresentadas para que se tenha um
conhecimento geral das teorias e dos teóricos, mas sem perder o essencial de cada um
destes conceitos. Cabe a cada aluno desenvolver seus estudos lendo na íntegra os livros
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citados, para que se possa conhecer cada vez melhor as teorias, enriquecendo, assim,
seus conhecimentos literários.
1.1.1. Teorias
Comecemos por um conceito apresentado por Aristóteles, um dos maiores
filósofos da Grécia antiga. Do século IV até nossos dias é inegável a enorme influência que
seus estudos exercem sobre o mundo Ocidental. Em sua Poética (texto que dá início ao
conjunto de estudos que temos hoje sobre questões de teoria literária), no primeiro
capítulo, intitulado “Da poesia e da imitação segundo os meios, o objeto e o modo de
imitação”, ele nos diz que “a epopeia e a poesia trágica, assim como a comédia, a poesia
ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se
enquadram nas artes de imitação” (ARISTÓTELES, 1969, p. 289).
Esta primeira tentativa de conceituação da arte da palavra, por parte de
Aristóteles, dizendo que esta arte é de imitação, já coloca questões relativas à relação do
real e do ficcional na composição da obra literária. O que acontece com o real nesta
imitação? Ele é exatamente demonstrado ou esta imitação nada mais é do que uma
transfiguração do real?
No desenvolvimento do livro, apresentam-se conceitos referentes ao estudo da
poesia como imitação de ações, e também ao estudo da tragédia e sua comparação com
a epopeia. Parte também importante dele é o capítulo quarto, onde Aristóteles faz um
levantamento histórico da poesia desde suas origens. Sem dúvida, obra indispensável
para aqueles que querem estudar literatura.
O que o pensador grego faz é mostrar a arte da imitação como aquela arte que
imita ações, paixões e caracteres por meio de palavras. Ele nos ensina que a imitação é
um ato da natureza humana e os homens sentem prazer neste ato criativo de imitar. Ou
seja, para ele é uma arte como recriação.
Passou-se o tempo e esta arte da palavra foi ganhando novos contornos e
conceituações. Terry Eagleton, em seu livro Teoria da Literatura: uma introdução, nos dá
um panorama de algumas das mais representativas teorias literárias que surgiram.
Para o autor “a literatura emprega a linguagem de forma particular (...). A
tessitura, o ritmo e a ressonância das palavras superam o seu significado abstrato. Existe
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Como podemos observar, são muitos os estudos existentes sobre a literatura e sua
essência. Além dos já apresentados, temos ainda o Estruturalismo, que se ocupa do
exame das leis gerais pelas quais as estruturas funcionam. Diz Eagleton que
Este sistema objetivo de ver a obra em seus elementos relacionais, sem juízos
subjetivos de valor, era o foco dos estruturalistas. Supriram, assim, a necessidade que se
tinha de uma disciplina acadêmica rígida. “As unidades individuais de qualquer sistema só
tem significado em virtude de suas relações mútuas” (id. ibid.). Diz Eagleton que o
florescimento do estruturalismo literário, na década de 1960, foi resultado de uma
tentativa de aplicar os ensinamentos e métodos de Ferdinand de Saussure à literatura.
Segundo Eagleton:
sobre a língua”, “encena a linguagem em vez de utilizá-la” (jogo teatral das palavras); e
usa também “função utópica” (BARTHES, 2005).
Já no livro Crítica e Verdade, ensina- nos que a linguagem literária nunca aponta o
mundo, aponta a si mesma. Logo a obra literária não é uma mensagem, “é fim em si
própria”. Para Barthes, a literatura não se trata de sentido, mas de processo de produção
de sentido, isto é, processo de “significação”. Segundo ele, formas e conteúdos não são o
mais importante numa obra literária, mas o processo que vai de uns aos outros. Logo, o
mais importante seriam os modos como a sociedade se apodera dos temas para
transformá-los em elementos de sistemas significantes.
Leyla Perrone-Moisés (2009), na apresentação deste livro, nos lembra que o
estudioso francês parte do princípio de que tudo seja linguagem, concentrando-se, assim,
na elaboração de uma ciência tendo como base o estruturalismo linguístico.
Diz Barthes: “a literatura ‘mais verdadeira’ é aquela que se sabe a mais irreal, na
medida em que ela se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado
intermediário entre as coisas e as palavras” (BARTHES, 2005, p. 79).
Outro grande estudo sobre o assunto está no livro Que é a literatura?, publicado
em 1948, por Jean-Paul Sartre. Ele reflete sobre a natureza e função da literatura,
respondendo a três perguntas básicas: o que é escrever?; por que escrever? E para quem
escrever? Sartre nos diz que escrever é um ato de desnudamento, e que aquele que
escreve tem a consciência de revelar as coisas, os acontecimentos e solicita um pacto
com o leitor, que ele colabore em transformar sua realidade, o mundo.
A Literatura para Sartre seria a tentativa do escritor de criar uma realidade que
pudesse ser exibida no mundo real, modificando, assim, as estruturas da sociedade. Para
o teórico aquele que escreve pode até não levar em conta um determinado tipo de leitor,
mas certo tipo de leitor já vem implícito no momento da escrita, funcionando, segundo
Eagleton, como uma estrutura interna do texto.
Vejamos outro teórico literário russo, Mikhail Bakhtin, que, segundo Eagleton, é “a
mais coerente crítica do formalismo russo” (EAGLETON, 2001, p. 160). Para este teórico, o
signo devia ser considerado como um elemento ativo da fala, transformado a partir de
sua modificação de significados, decorrente de variados contextos e variadas condições
sociais específicas.
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Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas (...). Tanto o velho ponto de vista que explicava fatores
externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é
virtualmente independente, se combinam como elementos necessários do
processo interpretativo. (CANDIDO, 2010, p. 13-14)
Observemos que a literatura para Candido é uma criação estética que se vale de
aspectos do social para sua composição. Estes elementos do social integrados à obra,
entretanto, não devem ser encarados como os mesmos de antes, da realidade histórico-
social que foi tirada, mas, sim, reencarados como elementos que atuam na organização
interna da obra, de maneira a constituir-lhe uma estrutura peculiar.
Para Antonio Candido, a estética da estrutura deve assimilar a dimensão social
como fator de arte. Assim, “o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica,
para ser apenas crítica” (CANDIDO, 2010, p. 17). Desta forma, ensina-nos o mestre
brasileiro, a crítica literária supera o sociologismo crítico (tendência equivocada que
procura tudo explicar por meio dos fatores sociais), e não supera a orientação sociológica,
sempre possível e legítima segundo o autor. Nesta busca do que seja o elemento literário,
diz ele que:
Candido nos diz que o elemento social é levantado para explicar a estrutura da
obra e a essência de suas ideias, fornecendo, assim, fatores para determinar a sua
validade e seu efeito sobre os leitores. No entanto, os elementos de ordem social são
filtrados em meio a uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, metáfora esta
usada para falar do entendimento da singularidade e autonomia da obra.
Enfim, após percorrer alguns de suas principais ideias sobre literatura, fiquemos
com as palavras de Candido que nos orientam sobre como recorrer no trato de um objeto
literário:
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O primeiro passo (que apesar de lógico deve ser assinalado) é ter a consciência
da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a
realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois
a mimese é sempre uma forma de poiese (CANDIDO, 2010, p. 12).
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Edições de Ouro, 1969.
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BARTHES, Roland. Aula. Trad: Leyla Perrone-Moisés. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005.
_________. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 3 ed. São Paulo: Perspectiva,
2009.
COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. 2 ed. Trad: Álvaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1978.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 4 ed. Trad: Waltensir Dutra. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.
TINIANOV, Iuri. “O ritmo como fator construtivo do verso”. In: COSTA LIMA, Luiz (seleção
e introdução). Teoria da literatura em suas fontes. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983, vol. I.
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artístico é como se o estivéssemos vendo pela primeira vez. Tanto é assim que um
mesmo poema lido em momentos diferentes pelo mesmo leitor pode gerar
interpretações distintas.
Na tentativa de entendimento e análise de um poema, poderemos nos valer do
recurso da paráfrase, isto é, dizer, com nossas próprias palavras, o que o poema diz.
Importante lembrar que não se trata de um resumo, pois, como dissemos anteriormente,
a forma do poema é insubstituível. A paráfrase funciona apenas como um aliado durante
a análise, numa tentativa de melhor compreender os jogos de palavras criados pelo
poeta. Mas, utilizada a paráfrase, é imprescindível retomar a forma original do poema e, a
partir dos seus elementos estruturais, analisar o que ele tem a nos dizer.
Outro importante elemento que deve ser verificado na construção poética,
quando da sua análise, é o diálogo estabelecido com outros poemas e demais criações
artísticas. A esta relação entre textos da cultura damos o nome de intertextualidade.
Nenhuma criação artística está isolada no tempo e no espaço, o que lhe confere a
possibilidade de dialogar com diversas manifestações de comunicação e linguagem. O
poema dialoga, então, com diversas áreas do conhecimento, não se restringindo única e
exclusivamente a textos literários.
Fica, então, a cargo do receptor do poema a sua leitura, análise e interpretação. E
para obter êxito nesse processo é interessante que, em um primeiro momento, a atenção
esteja completamente voltada para os aspectos mais perceptíveis do texto: a sua forma;
que palavras são utilizadas e como se combinam; e ritmo e som que produzem.
Posteriormente (já em uma segunda leitura), cabe tentar fazer as conexões entre o dito
através do texto e o contexto histórico em que o poema foi escrito. Para tanto, na quase
totalidade dos casos, é necessário reler um mesmo poema repetidas vezes. Isso em muito
contribui para a compreensão do seu sentido, ainda que várias interpretações válidas
possam ser-lhe atribuídas.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. Aula. Trad: Leyla Perrone-Moisés. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005.
GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. 14 ed. rev. e atualizada. São Paulo: Ática,
2006.
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.
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1.3.1. Escansão
O poema comporta dois tipos de divisão silábica: a gramatical e a poética. Na
contagem gramatical, todas as sílabas são levadas em consideração. Já na divisão silábica
poética, computamos até a última sílaba tônica do verso. Além disso, consideramos os
casos de elisão vocálica, que consiste na junção das vogais finais de uma palavra com as
iniciais da palavra seguinte.
Fazer a escansão de um poema é, portanto, dividi-lo, a cada verso, em sílabas
poéticas. Assim, separando as sílabas do verso “A pena, como em prata firme”, do poema
“Profissão de fé”, de Olavo Bilac, teremos o seguinte:
A / pe / na / co / mo / em / pra / ta / fir / me
|... .|......|..... |......|.......|..... .|. ...|......| .....|
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
10 sílabas gramaticais
Perceba que as sílabas gramaticais “mo” e “em” uniram-se, formando uma única
sílaba poética (ou seja, ocorreu uma elisão), e que a sílaba “fir” (última tônica) foi a última
considerada na escansão.
A título de explicação para um melhor entendimento sobre como se faz a
escansão de versos, perceba que: 1) utilizamos barras inclinadas para separar as sílabas
poéticas umas das outras; 2) a última sílaba tônica de cada verso está grafada em
maiúscula; 3) a(s) sílaba(s) átona(s), depois da última tônica fica(m) entre parênteses.
De acordo com a quantidade de sílabas poéticas, os versos recebem um nome
específico. A saber:
Versos monossílabos
São aqueles com apenas uma sílaba poética. Vejamos abaixo, um fragmento do
poema “Cocheiro bêbado”, de Arthur Rimbaud (tradução de Augusto de Campos), como
exemplo:
Dama DA (ma)
Tombo 1
Lombo TOM (bo)
1
Dói LOM (bo)
Clama: 1
Ai! DÓI
1
CLA (ma)
1
AI
1
24
Note que algumas palavras do poema têm duas sílabas gramaticais, mas apenas
uma sílaba poética, já que, como dito anteriormente, na escansão só se conta até a última
sílaba tônica do verso. Por isso, a sílaba átona posterior à última tônica fica entre
parênteses.
Versos dissílabos
São versos com duas sílabas poéticas, nos quais a tônica será, necessariamente, a
segunda. Como exemplo, a primeira estrofe do poema “O poeta ao espelho, barbeando-
se”, de José Paulo Paes:
o rito o / RI (to)
do dia 1 2
o ríctus do / DI (a)
do dia 1 2
o risco o / RÍC (tus)
do dia 1 2
do / DI (a)
1 2
o / RIS (co)
1 2
do / DI (a)
1 2
Versos trissílabos
São aqueles com três sílabas poéticas. Vejamos, como exemplo, um fragmento do
poema “A tempestade”, de Gonçalves Dias:
Versos tetrassílabos
São versos com quatro sílabas poéticas. Como exemplo, a primeira estrofe do
poema “Primeiro tema bíblico”, de José Paulo Paes:
Versos pentassílabos
Também conhecidos como redondilha menor, são aqueles que possuem cinco
sílabas poéticas. Este tipo de verso é usado desde a Idade Média até os dias atuais. A
primeira estrofe do poema “Quero me casar”, de Carlos Drummond de Andrade, segue
como exemplo:
quero me casar. 1 2 3 4 5
no / mar / ou / no / CÉU
1 2 3 4 5
que / ro / me / ca / SAR
1 2 3 4 5
Versos hexassílabos
São versos com seis sílabas poéticas. Para exemplificar o verso hexassilábico, um
trecho de “Uma faca só lâmina”, de João Cabral de Melo Neto:
Versos heptassílabos
São os versos que possuem sete sílabas poéticas. Também chamado de redondilha
maior, é um tipo de verso bastante tradicional, já utilizado desde as épocas medievais. De
Drummond, segue o poema “A gente sempre se amando”, como exemplo:
1
Perceba que, para obedecermos à metrificação (de versos heptassílabos), não fizemos a elisão de “vê + o”.
Esta é uma das exceções possíveis, nas quais não fazemos a elisão de uma sílaba tônica.
27
Versos octossílabos
São versos compostos por oito sílabas poéticas. O trecho abaixo, do poema
“Surdina”, de Olavo Bilac, exemplifica:
Versos eneassílabos
São aqueles formados por nove sílabas poéticas. Como exemplo de verso
eneassilábico, um fragmento do poema “Canto do Piaga”, de Gonçalves Dias:
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Não sabeis o que o monstro Não / sa / beis / o / queo / mons / tro / pro / CU (ra)
procura? 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Não sabeis a que vem, o que quer? Não / sa / beis / a / que / vem / o / que / QUER
Vem matar vossos bravos guerreiros, 1 2 3 4 5 6 7 8 9
Vem roubar-vos a filha, a mulher! Vem / ma / tar / vo / ssos / bra / vos / gue / RREI (ros)
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Vem / rou / bar / vos / a / fi / lhaa / mu / LHER
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Versos decassílabos
Com dez sílabas poéticas, estes versos são detentores de grande efeito sonoro. E é
justamente por conta desse seu caráter marcadamente musical, que esse tipo de verso
encontra-se constantemente em sonetos (forma fixa de poema sobre a qual trataremos
mais adiante).
Este tipo de verso pode ter duas classificações diferentes, de acordo com a
posição de suas sílabas tônicas. Chama-se decassílabo heroico, se a tonicidade recair
sobre a sexta e a décima sílabas. E chama-se decassílabo sáfico, se a quarta, a oitava e a
décima forem as sílabas tônicas do verso.
Como exemplo de um decassílabo heroico, temos o primeiro terceto do soneto
“Ao braço do menino Jesus quando aparecido”, de Gregório de Matos:
O braço de Jesus não seja parte, O / bra / ço / de / Je / SUS / não / se / ja / PAR (te)
Pois que feito Jesus em partes 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
todo, Pois / que / fei / to / Je / SUS / em / par / tes / TO (do)
Assiste cada parte em sua parte. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
A / ssis / te / ca / da / PAR / teem / su / a / PAR (te)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Versos hendecassílabos
São versos que contêm onze sílabas poéticas. A título de exemplo, segue um
trecho do poema “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias:
Versos dodecassílabos
São os versos compostos por doze sílabas poéticas. Também conhecidos como
versos alexandrinos, são muito utilizados desde a Antiguidade Clássica. Há duas formas
mais comuns de posicionamento das sílabas tônicas no verso alexandrino. A primeira, e
mais recorrente, é a que divide o verso exatamente ao meio, com a sexta e a décima
segunda sílabas tônicas. A segunda forma usual de distribuição das sílabas tônicas neste
tipo de verso é a que acentua a quarta, a oitava e a décima segunda sílabas. Cada uma
das partes iguais (duas ou três) nas quais o verso alexandrino é dividido recebe o nome
de hemistíquio. Às pausas, incidindo sobre as tônicas, damos o nome de cesura.
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O verso, como já deve estar entendido até aqui, é cada linha do poema, composta
de uma ou mais palavras, e que assume uma unidade rítmica.
Os versos podem ser classificados em três tipos básicos:
Versos regulares. São os que já vimos até aqui, regidos pelas regras clássicas
ditadas pela métrica. Tais regras determinam, entre outras coisas, a disposição das sílabas
tônicas ao longo do verso e a construção de rimas, que marcam a semelhança sonora no
final e/ou no interior de cada verso.
Versos brancos. Também seguem as mesmas regras de versificação e acentuação
que os versos regulares, mas diferenciam-se destes por não possuírem rimas. Um bom
exemplo de versos brancos está na primeira estrofe do poema “O elefante”, de Carlos
Drummond de Andrade:
Perceba que todos os versos têm seis sílabas (hexassílabos, portanto), mas não
possuem rimas entre si.
Versos livres. São versos que não estão submetidos a qualquer restrição métrica.
Diferentemente dos regulares e dos brancos, não obedecem às regras de posicionamento
da sílaba tônica, nem de existência ou regularidade de rimas. Utilizados largamente,
sobretudo a partir do modernismo, estes versos podem variar quanto ao número de
sílabas poéticas.
Como exemplo, vejamos uma estrofe de “Meninos Carvoeiros”, de Manuel
Bandeira:
1.3.2. Estrofação
Estrofe é um agrupamento de dois ou mais versos. De acordo com a quantidade
de versos que possui, cada estrofe recebe um nome específico. Desta forma:
Há algumas formas fixas de poemas. O soneto, por exemplo, comumente com dois
quartetos e dois tercetos (totalizando 14 versos), é uma das formas fixas mais conhecidas:
Bembelelém
Viva Belém!
Bembelelém
Viva Belém!
Cidade pomar
(Obrigou a polícia a classificar um novo tipo de delinquente:
O apedrejador de mangueiras
35
Bembelelém
Viva Belém!
A estrofe “Bembelelém / Viva Belém!”, por meio da repetição, acaba por reiterar o
tema central do poema, já apresentado no título.
1.3.3. Rimário
Rimário é o estudo das rimas de acordo com suas posições no verso e na estrofe.
As rimas podem ser classificadas em internas ou externas.
Perceba que “sândalo” rima com “sã da loucura”, presente no verso seguinte.
Rima toante. É aquela em que apenas as vogais tônicas das palavras rimam entre
si, sem o envolvimento de consoantes ou vogais átonas. O fragmento do poema “Novo
Éden”, de Sousândrade, funciona como exemplo:
Perceba que apenas as vogais tônicas rimam entre si: o *o+ de “nOite” e “lOnge” e
o *a+ de “açoitAdas” e “Aura”.
seguir. Antes, porém, convém dizer que as rimas externas podem ser de quatro tipos:
cruzadas, emparelhadas, interpoladas e misturadas.
Rimas emparelhadas. Rimas que podem ser chamadas, também, de paralelas, são
aquelas que aparecem em versos seguidos. Vejamos o primeiro quarteto do “Soneto de
fidelidade”, de Vinicius de Moraes.
Perceba que as rimas [ento] (A) situam-se nas extremidades da estrofe, formando
um caso de rimas interpoladas.
Ou seja, a rima A é do tipo interpolada e a rima B é emparelhada.
Rimas misturadas. São aquelas que não obedecem aos critérios dos tipos
anteriores, adotando uma sequência aleatória. Para exemplificar, um fragmento do
poema “O rapaz”, de Amador Ribeiro Neto:
anônima às escondidas
na caixa ao lado
num flash
da madrugada
jamais idas
nevermore crash
um violeiro alado
nada mais
surpresa gente
desatino
(...)
Define-se, ainda, por rima órfã (ou rima perdida) aquela em que uma sílaba no
final de um verso não rima com qualquer outra dos outros finais de versos do poema.
Como exemplo, veja uma estrofe do poema “O mito”, de Drummond:
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Note que “criAnça”, “brAnca” e “gravAta” formam rima toante entre si, na vogal
tônica “a”. E o segundo verso, em “rosto”, não rima com o final de nenhum outro verso,
ou seja, compõe uma rima órfã.
Rimas ricas e pobres. Para estabelecer a classificação das rimas em ricas e pobres,
são levados em consideração dois critérios: um gramatical e um fônico. A partir do
critério gramatical, uma rima será pobre se a semelhança sonora se der entre duas
palavras de mesma classe gramatical, e rica, se for entre palavras de classe gramatical
diversa. Assim, [cama] e [lama] compõem uma rima pobre, por ambas pertencerem à
mesma classe gramatical (substantivo); [triste] e [existe] formam uma rima rica, já que a
primeira é adjetivo e a segunda, verbo.
Segundo o critério fônico, as rimas serão pobres se a semelhança sonora se der
apenas a partir da vogal tônica, e serão ricas se essa semelhança começar antes da vogal
tônica. Desta forma, “vida” e “partida”, compõem uma rima pobre, já que rimam apenas
a partir da vogal tônica “i”; “convencimento” e “aparecimento”, por sua vez, formam
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uma rima rica, pois rimam desde as letras “c”, “i” e “m”, que vêm antes da vogal tônica
“e”.
“O mar” se repete no início de cada um destes quatro versos. É esta repetição que
recebe o nome de anáfora. Agora vejamos uma estrofe do poema “Infância”, de Manuel
Bandeira, na qual a anáfora aparece no final dos versos:
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
Filhinhas.
Linhas. Zibelinas só-
zinhas.
Onomatopeia. Trata-se da simulação de algum som por meio dos fonemas. Por
exemplo, “tic-tac”, que representa o funcionamento de um relógio, ou “toc-toc”, que
simula o som de batidas em uma porta. Na poesia, este recurso é utilizado por muitos
poetas de forma mais complexa. No fragmento do poema “Trem de ferro”, de Manuel
Bandeira, os fonemas das palavras dão a ideia do som do trem:
O transatlântico mesclado
Dlendlena e esguicha luz
Postretutas e famias sacolejam
O termo “Dlendlena” faz alusão ao som de um sino, que era um acessório dos
bondes (importante meio de transporte coletivo no início do século XX).
Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
(...)
quando me aproximo,
simplesmente me desfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo.
Referências bibliográficas:
ANDRADE, Carlos Drummond de. José & outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
_________. Antologia poética [organizada pelo autor]. 63 ed. Rio de Janeiro: Record,
2009.
ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. 2 ed. São Paulo: Globo, 2003.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 5 ed. 1 reimp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009.
BILAC, Olavo. Poesia. Organização de Alceu de Amoroso. Rio de Janeiro: Agir, 1958.
CAMPOS, Augusto de. Verso reverso controverso. 2 ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1988.
DIAS, Gonçalves. Últimos cantos. Rio de Janeiro: Typographia de F. de Paula Brito, 1851.
GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. 14 ed. rev. e atualizada. São Paulo: Ática,
2006.
44
MATOS, Gregório de. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1992.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.
MORAES, Vinicius de. Antologia poética. 5 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PAES, José Paulo. Poesia completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
QUENTAL, Antero de. Antologia. Org. José Lino Grunewald. Rio de Janeiro: Nova fronteira,
1991. (Coleção Poesia de Todos os Tempos).
SCHNAIDERMAN, Boris et alii. Maiakóvski: poemas. 7 ed. 1 reimp. São Paulo: Perspectiva,
2006.
SOUSA, João da Cruz e. Poesia completa. Org. Zahidé Lupinacci Muzart. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura, 1993.
45
2
Este subtópico é a transcrição de um fragmento do artigo “Uma levada maneira: no ar, poesia e música
popular”, de Amador Ribeiro Neto (2000).
46
É mesmo? Sabemos que não era assim, por exemplo, na Grécia Antiga ou na
Provença. Música e poesia conviviam sem distinções e discriminações. Toda esta prática
era oral e transmitida de geração em geração sem conflitos. A ruptura entre música e
poesia se dá com o advento da escrita. Na folha de papel a palavra ganha autonomia. A
partir de agora elas podem ser fixadas segundo critérios que vencem de longe os limites
da memória. Da exploração dos meandros da palavra no papel à composição espacial dos
versos a poesia, via de regra, vai cada dia se distanciando mais e mais da palavra falada,
da memória oral dos povos.
A poesia vira um estatuto à parte. A música, por sua vez, verticaliza-se no
emaranhado de imagens sonoras e vale-se da palavra, quando muito, para enunciar o
nome dos compositores, o título das obras ou compor um libreto de características
literárias quase sempre discutíveis.
Com a Bossa Nova, a partir dos anos 1950, a coisa muda de figura no Brasil. Hoje é
muito difícil estabelecer a zona limítrofe entre uma “letra de música” e uma “poesia”.
Nem precisamos falar da produção de nomes consagrados de nossa MPB como Caetano
Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Paulinho da Viola, Alceu Valença,
entre outros. Podemos citar compositores “novos” como Chico Science, Arnaldo Antunes,
Chico César, Arrigo Barnabé, Adriana Calcanhoto, Luiz Tatit, Otto, Zeca Baleiro, Itamar
Assumpção, André Abujamra, etc.
Tomemos o caso de Arnaldo Antunes, que além de compositor de MPB é também
poeta “de livros” como Psia (1986), Tudos (1990), As coisas (1991), Nome (1993; também
é cedê e vídeo), Dois ou mais corpos no mesmo espaço (1997). Arnaldo começou nos Titãs
fazendo música e letra. Depois se deu conta de que algumas das letras (como a de “O
quê”) poderiam ser poesia de livro, quando transpostas para a folha de papel. No caso
deste poema a disposição gráfica na página em branco era essencial para a sua realização.
Cantado era puro rock de primeira. No livro revelou-se um belo poema concreto.
Neste caso a composição virou poema. Mas há o inverso. Do livro As coisas, Jorge
Benjor musicou “As árvores”, um poema em prosa que agradou muito ao compositor de
melodias tão imprevisíveis quanto singelas. Benjor, um mago das melodias e ritmos,
musicou o poema tão bem que parece que ele nasceu canção. No entanto, o próprio
Arnaldo não o tinha musicado porque via-o como “poesia de livro”.
47
3
Nossas referências ao trabalho de Tatit indicarão a edição publicada em 2002.
51
figuras) enunciativas. Pela figurativização captamos a voz que fala no interior da voz que
canta” (TATIT, 2002, p. 21).
No seu trabalho escrito em parceria com Ivã Carlos Lopes, Tatit resume esse
modelo como “uma espécie de integração ‘natural’ entre o que está dito e o modo de
dizer, algo bem próximo de nossa prática cotidiana de emitir frases entoadas” (TATIT &
LOPES, 2008, p. 17). Tais entoações, enquadradas nas melodias, produzem as ideias de
hesitação, exclamação, indagação, etc. O exemplo extremista de tal caso poderia ser a
própria linguagem oral, com a qual estamos acostumados no cotidiano. Só que na canção
popular o uso da figurativização geralmente aparece com certa economia, já que os
elementos musicais não devem ser desprezados.
A explanação sobre a figurativização se encerra com alguns exemplos da
constante recorrência do modelo figurativo na canção popular brasileira. São as canções
que passam recados, as canções-cartas, as dicções que surgem com características
tipicamente regionais, a música de protesto, as canções respostas, etc., que estão
presentes em algum momento nas obras de Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Paulinho da
Viola, Noel Rosa, Zé Keti e quase na totalidade da obra de outros compositores, como
Jorge Ben Jor, por exemplo.
Tensões passionais: já mencionamos a importância da entoação no cantar
brasileiro, agora falemos dos processos de continuidade e segmentação da melodia. No
primeiro caso (continuidade), temos passionalização “ao investir na continuidade
melódica, no prolongamento das vogais (...) modalizando todo o percurso da canção com
o /ser/ e com os estados passivos da paixão (é necessário o pleonasmo)” (TATIT, 2002, p.
22).
Reduto emotivo da canção, em todas as épocas encontramos grande tendência ao
repertório passional. Tatit reconhece não saber se o predomínio de tal processo se deve à
maturidade de um movimento, estilo ou compositor ou se reflete a recaída da vitalidade
dos mesmos. Os exemplos são vários: quando lembra que o samba passou do ritmo
batucado ao samba-canção; quando a Bossa Nova, depois de revolução harmônica e
batida inovadora desanda em inúmeras canções românticas; Roberto Carlos, que de rei
do iê-iê-iê transforma-se no maior cantor romântico do país; etc. (TATIT, 2002, p. 23).
53
explorado em análises de outra publicação do autor: Análise semiótica através das letras
(2001).
Referências bibliográficas:
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5 ed. 2 reimp. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
PERRONE, Charles A. Letras e letras da MPB. 2 ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2008.
RIBEIRO NETO, Amador. “Uma levada maneira: no ar, poesia e música popular”. In:
Conceitos - Revista da Associação de Docentes da Universidade Federal da Paraíba. João
Pessoa, v. 3, 2000, p. 21-27.
TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
________. O cancionista: composição de canções no Brasil. 2 ed. São Paulo: EdUSP, 2002.
TATIT, Luiz & LOPES, Ivã Carlos. Elos de Melodia e Letra: análise semiótica de seis canções.
Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2008.
55
CAPÍTULO II
ANÁLISE DE POEMAS
O que nos diz este grande estudioso da linguagem e da literatura? Parece claro
que, se existe um certo sistema significativo, correlacional e dinâmico na obra literária, o
crítico deve utilizar sua linguagem em torno destes traços correlacionais para melhor se
aproximar da natureza artística da obra.
Parafraseando Fernando Pessoa quando diz que a literatura é a confissão de que a
vida não basta, podemos dizer que a crítica é a confissão de que a literatura não basta. O
que acontece é que o crítico literário é aquele que expõe uma leitura da obra, decifrando
signos os quais segue atentamente. Deve, também, saber fazer um determinado recorte
para empreender suas leituras. Uma boa crítica depende, entre outras coisas, de um
embasamento válido e consistente para as análises que serão feitas. O leque de
abordagens críticas que se tem traz leituras de base marxista, psicanalítica,
fenomenológica, estilística, estruturalista, semiológica, psicanalítica e outras mais.
Vejamos a seguir ideias de Roland Barthes, crítico literário francês, que assume,
aliás, todas as bases críticas citadas acima alternadamente ou ao mesmo tempo. Esta
alternância de abordagens faz parte de seu método abrangente. Na apresentação do livro
Crítica e Verdade (livro que traz uma seleção de artigos de Barthes sobre crítica e
literatura), Leyla Perrone-Moisés diz que “a abertura de Barthes à contemporaneidade,
sua permanente disponibilidade para o novo, são as qualidades que seus detratores veem
como defeitos” (PERRONE-MOISÉS, 2009, p. 08).
Um dos pontos-chave de sua obra é a afirmação de que a linguagem literária é
autônoma. Escrever para Barthes é um “verbo intransitivo”. Segundo sua ótica, a obra
literária não é mensagem. É fim em si própria. Além disso, ele faz a distinção básica entre
sentido e significação. Diz ele: “entendo por sentido o conteúdo (o significado) de um
sistema significante, e por significação o processo sistemático que une um sentido e uma
forma, um significante e um significado” (BARTHES, 2009, p. 09).
Para Barthes, a literatura não é simplesmente sentido, mas, sim, processo de
produção de sentidos, isto é, de significação. As perguntas norteadoras de seus estudos
são: como a obra chega a significar e qual o processo. Como se pode observar, temos,
numa análise como esta, um olhar crítico aguçado e voltado para atos concretos de
significação com os quais os signos se apresentam.
57
Ensina-nos ele que o ato da crítica é um ato de metalinguagem. Num dos ensaios
de Crítica e Verdade, intitulado “Literatura e Metalinguagem”, Barthes estabelece uma
distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem. A linguagem-objeto seria a própria
matéria que é submetida à investigação lógica; e a metalinguagem seria uma linguagem
forçosamente artificial, chamando a atenção para o fato de que a metalinguagem é uma
linguagem que fala da linguagem. Um código trabalhando outro código.
Os estudos de Barthes tentam deixar claro que o importante numa análise literária
não é “nem as formas, nem os conteúdos, mas o processo que vai de uns aos outros”
(BARTHES, 2009, p. 69). O crítico, neste sentido, deve basear-se na adaptação de sua
linguagem metalinguística para com a linguagem-objeto analisada, geradora de sentidos.
Procedendo assim, o crítico cria leituras coerentes a partir das possibilidades formais
características de um objeto literário.
É por causa deste papel reflexivo-atuante sobre a obra literária que o crítico, para
Barthes, é um escritor. Sobre esta fala da fala, ato básico da crítica, vejamos o que ele nos
diz: “esta é uma pretensão de ser, não de valor; o crítico não pede que lhe concedam uma
“visão” ou um “estilo”, mas somente que lhe reconheçam o direito a uma certa fala, que
é a fala indireta” (BARTHES, 2009, p. 69).
A atividade crítica para ele deve contar com duas espécies de relações: a relação
da linguagem crítica com a linguagem do autor observado, e a relação desta linguagem-
objeto com o mundo. Relação, diz o autor, com a devida justeza. O crítico, neste sentido,
é um “comentador” da obra, já que reconduz uma matéria (transmissor) e redistribui seus
elementos para lhe dar uma certa inteligência (operador).
Importante dizer é que Barthes foi um dos responsáveis pela Nova Crítica, aquela
que foi de encontro às análises que não tinham como objeto principal de observação a
estrutura significativa da obra. Nada de divagações filosóficas, psicológicas, sociológicas
ou quaisquer outras que fugiam ao concreto formal do objeto literário. Foi ele um dos
mais importantes responsáveis por esta guinada da crítica literária. Ainda no livro Crítica e
Verdade, ele firma que:
Enquanto a crítica tradicional teve por função julgar, ela só podia ser
conformista, isto é, conforme aos interesses dos juízes. Entretanto a verdadeira
crítica das instituições e das linguagens não consistia em julgá-las, mas em
distingui-las, em separá-las e duplicá-las. Para ser subversiva, a crítica não
58
A visão que um aluno, ou mesmo um professor de Letras, deve ter sobre a crítica é
aquela onde a literatura é encarada como um certo tipo de linguagem, uma linguagem
incomum, com organização própria, simbólica, significativa, geradora de sentidos, ou seja,
uma obra aberta, como nos diz Umberto Eco.
Como podemos observar, o crítico literário é aquele que sabe “conectar” a obra,
sabe demonstrar as operações linguísticas que geram suas significações polissêmicas. Se o
poeta tem consciência da linguagem literária, o crítico tem consciência da linguagem
literária e da linguagem metalinguística que pode captar tal linguagem literária.
Enfim, para Barthes, o crítico é aquele que escreve (cria) sobre uma escrita
(criação). A linguagem crítica é uma linguagem segunda, aquela que capta o caráter
literário de uma determinada linguagem. É segunda porque é criação de uma criação.
Após um levantamento importante das ideias de Barthes, necessárias para melhor
entendermos o caráter metalinguístico e criador da crítica, vejamos agora o que nos diz
um dos mais importantes e discutidos poetas do século XX, o também crítico literário Ezra
Pound.
No texto Como ler, de 1928, esclarece-nos que a primeira coisa a se cobrar de um
crítico é sua noção do que é bom, do que ele considera como um escrito de sólida
qualidade literária. Assim, para Pound, o crítico saberá onde se pisa.
Saber onde se pisa para Pound é ter consciência da linguagem literária. Crítica
literária para ele não envolvia questões relacionadas ao poeta, mas sim ao poema. É o
poema que deve ser focado, são sua estrutura e composição que devem ser analisadas,
em sua condensação e polissemia. Diz ele que identificamos o mau crítico quando ele
começa a discutir o poeta em vez do poema.
O olhar dos biologistas para ele era o mais adequado para se estudar literatura. O
que deveria acontecer numa crítica, assim como fazem os biólogos, é um exame direto e
cuidadoso da matéria, comparando-a com outras estruturas, outras matérias. É a análise
precisa do que é, do que está lá, da forma que informa.
59
Vejamos, então, o que nos ensina Antonio Candido em seu livro O método
analítico do poema, produto de um curso que ele ministrou em 1963 para alunos do
quarto ano do curso de Letras. Serão abordados aqui os pontos principais da obra,
buscando, de forma geral, apresentar os conceitos ali levantados.
De início, fiquemos com duas passagens retiradas da introdução, para que se fique
claro quais os conceitos de Antonio Candido sobre literatura. Logo em seguida serão
apresentados os elementos de análise que ele indica para serem levados em conta na
abordagem crítica de um poema.
Este emprego da linguagem figurada nos poemas deve ser, como bem explica o
autor, devidamente realizado. Isso porque temos as metáforas realizadas na linguagem
corrente e também na linguagem poética. Enfatiza a importância de que
Enfim, a poesia concreta não é mais feita no Brasil. No entanto, sua influência é
inegável no campo da literatura, principalmente na área emergente da literatura digital.
Esta nova forma de fazer poesia gerou polêmica na cultura literária, na medida em que
era, segundo Augusto de Campos, uma novidade absoluta.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 3 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
CAMPOS, Augusto et alli. Teoria da poesia concreta. 4 ed. Cotia: Ateliê Editoral, 2006.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: FFLCH/USP, 1987. (Col.
Terceira Leitura, v. 2)
POUND, Erza. Como ler, 1928 in Literary essays of Erza Pound. Faber, Londres.
66
____________. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes, São Paulo:
Cultrix, 2006.
TINIANOV, Iuri. “O ritmo como fator construtivo do verso”. In: COSTA LIMA, Luiz. (seleção
e introdução) Teoria da literatura em suas fontes. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1983, vol. I.
A uma dama
(Gregório de Matos)
Vês/e/sse/Sol/de/LUZ/es/co/ro/A/(do)?
Em/pé/ro/las/aAu/RO/ra/com/ver/TI/(da)?
Vês/a/Lu/a/dees/TRE/las/guar/ne/CI/(da)?
Vês/o/Céu/de/pla/NE/tas/a/dor/NA/(do)?
O/Céu/dei/xe/mos:/VÊS/na/que/le/PRA/(do)
A/ro/sa/com/ra/ZÃO/des/va/ne/CI/(da)?
Aa/çu/ce/na/por/AL/va/pre/su/MI/(da)?
O/cra/vo/por/ga/LÃ/li/son/je/A/(do)?
Dei/xao/pra/do/vem/CÁ/mi/nhaa/do/RA/(da):
Vês/de/sse/ma/raes/FE/ra/cris/ta/LI/(na)
Em/su/ce/ssi/voal/JÔ/far/de/sa/TA/(da)?
Pa/re/ceaos/o/lhos/SER/de/pra/ta/FI/(na)...
Vês/tu/do/is/to/BEM/Pois/tu/doé/NA/(da)
À/vis/ta/do/teu/ROS/to/Ca/ta/RI/(na).
de Catarina. E a exposição das ideias e das rimas confirma que o que subsiste é uma sutil
formação silogística das ideias.
A beleza do soneto reside em sua limpidez imagética e analógica (ou na fanopeia e
na logopeia), bem como na sua estrutura rítmica reiterativa (melopeia). O poeta
consegue falar da amada interagindo fundo e forma – isomorficamente – de modo a
impressionar o leitor e a dar-lhe a sensação de que está diante da beleza da amada como
se da primeira vez (CHKLÓVSKI, 1973), tal sua singularidade perceptiva.
Ricardo Reis é o poeta clássico e epicurista. Para ele a fugacidade das coisas é
parte natural da vida. Defensor do carpe diem, basta-se com a imediatidade das coisas.
Embora não atinja nunca a tranquilidade tão buscada. Na biografia inventada, foi
educado em colégio de jesuítas e é helenista autodidata. Tem, assim, interesse profundo
pela cultura clássica, a saber, a grega e a romana antigas. Busca não ceder aos impulsos
instintivos, visando tanto à felicidade como à calma na vida. Escreveu versos como:
Depois deste breve voo sobre a poesia dos heterônimos de Fernando Pessoa,
vamos analisar um soneto assinado por Álvaro de Campos:
Ah, um soneto...
Meu/co/ra/ÇÃO/éum/al/mi/RAN/te/LOU/(co)
Quea/ban/do/NOU/a/pro/fi/SSÃO/do/MAR/
e/quea/vai/re/lem/BRAN/do/pou/coa/POU/(co)
em/ca/saa/pa/sse/AR/a/pa/sse/AR/
No/mo/vi/men/toeu/MES/mo/me/des/LO/(co)
nes/ta/ca/dei/ra/SÓ/deoi/ma/gi/NAR/
o/mar/a/ban/do/NA/do/fi/caem/FO/(co)
nos/mús/cu/los/can/SA/dos/de/pa/RAR/
Há/sau/da/des/nas/PER/nas/e/nos/BRA/(ços).
Há/sau/da/des/no/CÉ/re/bro/por/FO/(ra).
Há/gran/des/rai/vas/FEI/tas/de/can/SA/(ços).
Mas/es/taé/bo/ae/ra/do/co/ra/ção/
Queeu/fa/la/vaeon/de/DIA/boes/toueu/a/GO/(ra)
Com/al/mi/ran/teem/VEZ/de/sen/sa/ÇÃO/
Em nenhum dos modos há tônicas que possibilitem a definição por verso heroico
ou sáfico, sem mexer na prosódia, que é o modo corrente de pronunciar um vocábulo.
Considerando tal possibilidade, na alternativa “b” teríamos um decassílabo heroico:
Mas/es/taé/boa/e/RA/do/co/ra/ÇÃO.
75
Assim, dos quatorze versos dois seriam sáficos e doze heroicos. Antes de buscar
entender o que significa esta variação rítmica, analisemos o uso das rimas.
Todas as rimas são consoantes:
Lemos o poema. Todos os versos são decassílabos, com acento nas sextas e
décimas sílabas ou quartas, oitavas e décimas – ressalva feita ao verso 12, como vimos
acima. São versos heroicos e sáficos. Com esta marcação de tônicas, o ritmo do poema se
impõe. O poema passa a ser marcadamente musical. Até aí, novidade alguma para um
sonetista.
Acontece que, entre os versos heroicos, outros, de outras formas, também se
interpõem. Aparecem novas acentuações musicais. Agora as tônicas podem ser a quarta,
a oitava e a décima. Para este tipo de acentuação tônica dá-se o nome de verso sáfico –
como atestam os versos 1 e 2.
Então o soneto está marcado por duas frequências musicais. Isto quer dizer
alguma coisa ou é mero exercício técnico de contagem silábica? Pois não é que o poema
fala de um eu-lírico que se aposentou do mar e agora vive em casa a sonhar com o
vaivém das ondas marítimas? A oscilação das tônicas ganha expressão significativa,
levando o leitor a vivenciar os movimentos do mar. Mas não é só: o eu-lírico está sentado
numa cadeira de balanço que é a figura dos movimentos até então sugeridos. E, para falar
que está preso a uma cadeira, ele cria dois versos entrecortados, destacados por
parênteses que se abrem num verso e só se fecham no seguinte. É a figura dos
movimentos da cadeira, do mar e, por que não dizer, dos movimentos da memória do
antigo marinheiro? Ele contempla o mar de fora. E o que carrega dentro de si.
O uso dos enjambements, que são os versos que continuam no seguinte, sintática,
semântica e ritmicamente, dão ao poema uma dinamicidade própria, simétrica ao
movimento que o eu-lírico percorre dentro da casa, com os olhos apontados para o mar.
O enjambement está presente nos dois quartetos e no último terceto – à exceção
apenas do último verso de cada estrofe. Esta movimentação é isomórfica ao movimento
de ir e vir das ondas do mar, bem como do ir e vir da memória. O eu-lírico revolve-se em
passos largos pela casa enquanto a memória se agita em lembranças do tempo de
marinheiro.
A memória é o motor do poema: despojada da carga romântica, ela descreve o
que foi com a imparcialidade que lhe é possível. O coração é um almirante. O eu-lírico é
um marinheiro. O almirante é louco por abandonar “a profissão do mar”? Talvez sim, já
que ele é consumido pelas memórias dos tempos do mar. No movimento de recordação,
77
Para Álvaro de Campos as sensações dirigem a vida. E são elas que sobram ao final
do soneto. Sensação de ser. Sensação de ter estado. Sensação de continuidade, mundo e
águas afora, mundo adentro.
Referências bibliográficas
POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.
79
romântico anacrônico. Longe disto. Ele sabe a geografia da libido dos homens. E conhece
o fetiche que mobiliza tempos pós-modernos cada vez mais megametropolitanos. A
sedução do natural em Saulo é voz para os falantes, gritantes, brincantes. É a pureza do
“mix”. Do “plus”. Do “hard”. Curiosa e instigantemente posta a serviço da libido, mãe-
mestra da Vida.
Os haicais de Saulo trazem a oxigenação extraordinária que resgata o amoroso de
cada planta, animal, pedra ou indigesto. Há betume asfáltico? Pois há também perfume
citadino e campesino.
O haicai nas mãos saulianas tem Natureza. Filosofia. Presentidade. Numa entrega
total à poesia-raiz de Matsuo Bashô. Na Paraíba, Saulo escreve:
À tardinha, no Sanhauá
o velhinho fitava o rio
com seu olhar poente.
Copa do Mundo:
O coração perde a forma
Quando em bola se transforma.
Chuva passando
tarde escurecendo...
É tempo de tanajura!
Frondoso tamarindo.
Em seu lugar vazio
verdes lembranças.
A primeira coisa que chama a atenção do leitor é o uso do verbo cruzar em suas
acepções de atravessar e de acasalar. Não há novidade nisto. E a semântica debulhada de
“gozos” induz a leitura imediata: a libido está nos céus. No alto. Mas gera trovões. Que
são espalhafatosos.
Se no céu as forças naturais gozam em estripulias, por que nós, no baixo, na terra,
devemos nos conter? Do baixo nasce o alto, nos lembra Bakhtin ao analisar o contexto de
François Rabelais. A leitura, de primeira mão, esconde, mais uma vez, outra. Nas
entrelinhas, nas entrenuvens, nos entregozos. O eu-lírico diz a que veio: ao novo e
simples. Ao novo e refinado. Ao novo e bem-sentido, bem-pensado. Prazeroso. Os
trovões metaforizam os sons dos gozos celestes: gozos das nuvens, literalmente, e gozo
nas nuvens, figuradamente.
A poesia de Saulo Mendonça nos leva a muitos tempos e geografias. É preciso
estar atento. Desautomatizado. De olhos, mente & coração abertos. Porque o jogo
poético sauliano é partida para dois ou mais. Ou um, desde que polissêmico.
Pra encerrar, transcrevo este haicai de olhar pelo avesso. Este desvendar do
mistério. Esta alegria alegria brotada do choro da descoberta. Da epifania. Da revelação.
Do dentro para fora, heideggeriano:
Estalactites.
Lágrimas da terra
quando chora por dentro.
“O quê” foi primeiramente letra de rock, gravado pelos Titãs no disco Cabeça
dinossauro, de 1987. A letra, tal como se encontra no site de Arnaldo Antunes, é a
seguinte:
O quê
Esta letra de rock, que é um poema discursivo sucinto e muito bem realizado
poeticamente, apresenta uma ideia pela sua negação. O que importa é o que não é, que
não pode ser. Todavia, ao mudar as pausas do rock, ou dos versos – que podem ser lidos
como enjambement – neste caso, a pontuação (propositalmente ausente) abre
possibilidades de novos ritmos, novas sintaxes e novos sentidos. “O que não pode ser” de
repente transforma-se em “pode ser que não”. Este jogo de deslocamentos confere ao
86
Referências bibliográficas
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: FFLCH/USP, 1987. (Col.
Terceira Leitura, v. 2)
89
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8. ed. São Paulo: Ateliê Editorial. 2005.
RAMOS, Vaz Adriana et alii. “Semiosfera: exploração conceitual nos estudos semióticos da
cultura”. In: MACHADO, Irene (org). Semiótica da cultura e semiosfera. São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2007, p. 27-44.
90
1. vou ater-me aos enfoques teóricos da semiótica russa, via Bóris Uspênski, e da
semiótica francesa de viés barthesiano do franco-cubano Severo Sarduy;
No conto a voz que fala é a da testemunha dos fatos: o filho, sem nome, que narra
a posteriori - ora sob a ótica pessoal, ora sob a ótica dos familiares e amigos. Assim, a
dubiedade se instaura onde mesmo se buscava mais objetividade: no ponto de vista do
outro, em confronto com o do personagem-narrador. Acontece que tudo aqui passa pelo
crivo do olhar e das palavras do filho. A fala das testemunhas chega ao leitor através do
reconto do filho. Se o próprio título já remete o leitor a um universo indeterminado de
significação, o personagem-narrador vem apenas bulir mais nestas águas nada límpidas.
Para torná-las mais turvas. Ou seja: para que converta-se mais e mais no território da
poesia - terreno fugidio, avesso a configurações delimitatórias, pleno de discursos
antidiscursivos.
Na letra de Caetano é o barco quem fala. Melhor dizendo: é o oco de pau que diz.
O ouvinte (estamos tratando de uma música popular) de imediato é mergulhado no
universo poético das representações: aceitar que a madeira tenha voz é mergulhar no
universo das representações poéticas e aceitar como verossímil, não a lógica dos
acontecimentos, mas a analógica deles, arquitetada pelo próprio texto. Não a organização
cartesiana do pensamento, mas a semiótica.
Todavia, se o objeto não se explica fora da letra, como uma referência a algo
exterior, a semiótica nos orienta a buscar o objeto na construção dele mesmo, na
edificação da linguagem, nos torneios de significantes que pulsam e orientam o ouvinte
sem que este (o ouvinte) se dê conta logicamente. A razão não está mais no
aristotelismo-cartesiano, por exemplo, mas na similaridade paradigmática do eixo de
seleção, que aproxima os elementos por semelhança dos significantes, construindo
significados. A moldura da canção não se esgota (aqui me valho de Eikhenbaum) nos
limites do seu objeto dado; antes: estende-se na interação e intersecção de linguagens de
diferentes códigos e da resultante destas confluências e conflitos.
Por isto mesmo a leitura que Caetano Veloso faz do conto de Rosa é uma leitura
que recorta a palavra e seu lugar no texto literário como mote, como motivo, como razão
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da letra que compõe. Não é uma letra simplesmente adaptada do conto ou feita a partir
dele. É uma letra que associa criação e crítica numa mesma obra. A terceira margem não
é, para Caetano Veloso, nenhum referente exterior ao conto: é a própria palavra, tema do
conto e da canção que compôs. A voz do eu-lírico observador de terceira pessoa (meio a
meio o rio ri) é também da personagem participante de primeira pessoa (por entre a risca
da canoa / o rio viu, vi) que se funde na primeira pessoa do pretérito perfeito e/ou a
segunda do plural do imperativo (ouvi, ouvi, ouvi / a voz das águas).
O canto da palavra transparece claro ao final: a hora clara, nosso pai / quando não
se diz nada fora da palavra. E a enumeração triádica final é também um qualificativo: rio,
pau enorme, nosso pai. O rio, a canoa, o pai: os 3 elementos que formam as 3 margens.
Ou, o rio, que é um falus enorme, é nosso pai. O rio enquanto metáfora do tempo. O
tempo é nosso pai. O tempo que o próprio Caetano já definiu em outra canção como
compositor de destinos, senhor de todos os ritmos.
Referências bibliográficas
ROSA, João Guimarães. “A terceira margem do rio”. In: ______. Primeiras estórias. 10 ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 27-32. (Col. Sagarana, v. 90)
Referência discográfica:
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VELOSO, Caetano & NASCIMENTO, Milton. "A terceira margem do rio". In: VELOSO,
Caetano. Circuladô. Philips/PolyGram, 1991, faixa 9.
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da
A montagem delineia a forma utilizada para cantar um país que convivia com
turbulências, tensões, miséria, mas que não deixava de celebrar a vida com cores, música
e carnaval. Tem-se a representação da disparidade e das relações dialéticas em
ambivalência. Para Celso Favaretto, esta composição de Caetano “constitui a matriz
estética do movimento [tropicalista+” (FAVARETTO, 2000, p. 63). Em outro momento,
atesta este autor:
4
Toda vez que nos referirmos à paródia, serviremo-nos da abordagem de Haroldo de Campos, quando afirma
que “ela não deve ser necessariamente entendida no sentido de imitação burlesca, mas inclusive na sua
acepção etimológica de canto paralelo” (CAMPOS, 1989, p. 15-16).
98
Rio de Janeiro
você não me dá tempo de pensar com tantas cores
sob este sol
pra que pensar se eu tenho o que quero
tenho a ‘nega’, o meu bolero,
a TV e o futebol
Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu vi
Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem (mas eu queria)
100
Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu vi
Viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem (mas eu queria)
eu viajei de trem (eu não devia)
eu viajei de trem (mas eu queria)
eu viajei de trem (eu não podia)
eu viajei de trem (eu não queria)
eu viajei de trem (eu só queria)
(viajar de trem)
5
Apresenta-se aqui a aversão a qualquer tipo de hierarquia, neste caso específico, a familiar.
101
tecnológico, quando cita “um aeroplano pousou em Marte / mas eu só queria ficar à
parte”.
Imagens de “Tropicália” são retomadas logo nos primeiros versos de “Viajei de
trem”: ruas, construções e monumentos. A voz que canta na composição de Caetano
falava em inaugurar um monumento no planalto central, que seria moderno, “de papel
crepom e prata”. O eu lírico de “Viajei de Trem” remonta o contexto: a fuga pelas ruas
representa deparar com estátuas e monumentos, mas que estão num cenário obscuro, ao
contrário do colorido exposto na primeira. O sol aparece em meio ao céu de cimento (que
pode referir-se tanto à poluição como à presença de arranha-céus nas grandes cidades —
além da metáfora de clima pesado, já que os versos expõem um pessimismo latente). A
imagem das ruas marchando fecha a estrofe, denunciando uma inversão dos papéis: são
as ruas (espaço de confluência e embate de pessoas e grupos heterogêneos) que
marcham e entram nas vidas das pessoas, quando poderíamos supor o contrário.
Para Favaretto, falando sobre carnavalização, a espacialização tem um significado
especial entre as características do movimento tropicalista. Em suas palavras,
As “ações” ocorrem nas ruas, praças públicas, parques, que são lugares de
passagem e mudanças rápidas; ou então, em interiores e exteriores
(psicológicos ou ideológicos) — salas de jantar, quintais, corredores, portões,
prateleiras, balcões. (FAVARETTO, 2000, p. 92-93)
6
Vale mencionar que “viagem/viajar”, no contexto do desbunde significava também “experiência psicodélica
induzida por drogas, som, texto ou tudo junto. A expressão „viaja nessa‟ queria dizer „leve em consideração
isto que acabei de dizer‟” (BAHIANA, 2006, p. 82).
104
Banda” (composição de Chico Buarque) com a portuguesa que levou a música brasileira
para o mundo.
É o próprio Caetano Veloso quem enumera, no seu livro Verdade tropical, as
diversas relações intertextuais existentes nos estribilhos de “Tropicália” e toda polissemia
imbricada. Faz referências à Bossa Nova (“Garota de Ipanema”); iê-iê-iê (Roberto Carlos),
Chico Buarque (“A Banda”); a pronúncias das últimas sílabas de Carmen Miranda
misturando-se ao movimento Dada [Dadá], que ao mesmo tempo é o nome de uma
personagem central do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme de Glauber Rocha;
dentre tantas outras citações que abrem-se para a polissemia (VELOSO, 1997, p. 186-
187).
Na canção de Sérgio Sampaio que citamos como paródia tropicalista, o estribilho
insiste em proferir que o eu lírico “viajou de trem”. A insistente recorrência do verso
“viajei de trem” (com forte assonância em “ê”, indicando um lamento, um gemido
desesperançoso e acentuado pela interpretação com predomínio da figurativização)
somado às vozes que podem sugerir sentimento de culpa, desejos não realizados e
projetos cancelados — revelando impossibilidade de transformação da realidade (“mas
eu queria / eu não devia / eu não podia”, etc). O trem representa, neste contexto, a
máquina que proporciona o movimento, o deslocamento, de um passageiro que
permanece paralisado, capaz apenas de observar o ambiente que o cerca.
Há uma ironia com a repetição de “viajei de trem”: a repetição iconiza, a princípio,
um certo lirismo, na recordação de longas viagens de trem que poderiam lembrar
nostalgicamente o passado. Entretanto, a relação com as recordações, com os ambientes
de convívio social, e com espaços de agrupamento de pessoas, revela uma vinculação
individualista da ironia, quando o trem não mais representa o transporte coletivo, e sim a
ampliação do tempo que se revela solitário. Algo similar ao que nos fala Luiz Costa Lima
(2005), quando trata da incidência do princípio-corrosão na obra de Carlos Drummond de
Andrade. No estribilho da canção de Sérgio Sampaio “o lirismo encantatório fora cortado
pela ironia” (LIMA, 1995, p. 150), quando os versos passam a repetir “eu viajei de trem”
entrecortado pelos lamentos de “mas eu queria / eu não devia / mas eu queria / eu não
podia / eu não queria / eu só queria”.
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Referências bibliográficas:
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud & Yara
Frateschi Vieira. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5 ed. 2 reimp. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
CAMPOS, Haroldo de. Oswald de Andrade: trechos escolhidos. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir,
1989.
FAVARETTO, Celso. Tropicália alegoria alegria. 3 ed. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2000.
LIMA, Luiz Costa. Lira & antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2 ed. rev. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1995.
MOREIRA, Rodrigo. Eu quero é botar meu bloco na rua: a biografia de Sérgio Sampaio.
Niterói-RJ: Muiraquitã, 2000.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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Sobre os autores:
Tutor a distância da disciplina Teoria Literária I (Teoria da Poesia) desde 2009. É um dos
autores de Epifania da poesia; ensaios sobre os haicais de Saulo Mendonça (no prelo).
E-mail: [email protected]
LUÍS ANDRÉ BEZERRA DE ARAÚJO, natural de Orós-CE, formou-se em Letras pela URCA
(Universidade Regional do Cariri, Crato-CE), em 2003. Em 2009 defendeu a dissertação de
mestrado “Sérgio Sampaio e a paródia tropicalista em Eu quero é botar meu bloco na
rua”, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB (Universidade Federal da
Paraíba), onde atualmente desenvolve pesquisa de Doutorado, na área de Literatura e
Cultura. Faz parte do grupo de pesquisa do LES (Laboratório de Estudos Semióticos), que
desenvolve a pesquisa Poesia em novos suportes, estudando as produções poéticas
criadas e/ou divulgadas na rede mundial de computadores. É tutor a distância da
disciplina Teoria Literária I (Teoria da Poesia) do EAD – UFPB Letras Virtual desde 2008.
Ministrou minicurso de 12 horas, em Camaçari, Bahia, (2010), intitulado Poesia
contemporânea brasileira: dos anos 80 aos nossos dias, pela UFPB Letras Virtual. Integra a
equipe do blog O Berro (www.oberro.net).
E-mail: [email protected]