Opinião Brandão
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O teatro aborrece e irrita. Em lugar de ser um espetáculo simples e que emocione, como o de uma
árvore que se enche de flor, é uma coisa complicada e embirrenta. O público despreza-o e faz bem. Sempre
que uma obra é humana, larga, grande, o público apaixona-se. As coisas simples e trágicas dão-lhe
emoção. Terá apenas duas ou três palavras duras como pedras para exprimir o que sente, mas essas
bastam para quem tiver imaginação para com elas criar...
O trabalho (de) teatro deve ser, mais do que nenhuma outra obra de literatura, uma peça sintética: a
alma descarnada das coisas apenas, e, por isso mesmo, para que apaixone, é preciso que seja simples, e
cava(n)do fundo no coração humano. Tenho esta imagem: a peça de teatro deveria ser como uma grande
árvore sem folhas — nua e coberta de flor. No drama moderno, deve, além disto, discutir-se um grande
problema psicológico ou social. Mas sem frases: vendaval que arraste os espectadores, sintético, sem se
perder em palavras — atos seguidos como uma faca que se enterra.
Tudo o mais não interessa o público. Desde as peças decorativas do sr. Lopes de Mendonça até à
simplicidade complicada e embirrenta do sr. Shwalbach, não se encontra uma palavra, um grito, que
exprima a dor, uma cena que nos faça estremecer, perder a personalidade, nos dê risos a valer ou
verdadeiras lágrimas. Essas peças não são humanas. Quero lá saber eu das duquesas que dizem coisas
engraçadas e da história decorativa de velhos reis imbecis!... Bem se importa o público com isso! Tragam-
lhe para o palco o Amor e o Ódio, a Fome, a Ambição, a Quebra, a Ruína, a Miséria Humana e a Dor
Humana: digam-lhe isto com paixão e com intensidade e verão como o público lhes enche o teatro. Dêem-
lhe a Vida e dêem-lhe o Sonho. Riam-se, sofram e chorem também, se querem interessar os outros. A obra
de teatro não suporta detalhes, para que empolgue a valer. Cada espectador diante do que se passa no
palco deve perder a personalidade, absorvido e arrastado. Em cena devem estar corações a bater, almas,
cérebros a pensar — e mais nada. Tudo o resto é banal e frio.
Tive um dia destes de ouvir uma peça de Richepin que aí se representa agora e a farsa de Molière.
Aquilo é quase uma lição. Basta escutar-se uma e outra para se compreender o que deve ser o teatro. A
peça de Richepin é literária e penteada. Dá a impressão de uma oleografia com pescadores e vista do Mar.
É bem carpinteirada, feita com pedaços de coisas sabidas, com sentimentos de romances de Ohnet — e
palavras, palavras e palavras. A farsa de Molière é nua, simples – e é uma obra-prima. O riso corta. De
Sganarello fica a gente indeciso, sem saber se rir se chorar: a sua desgraça é pícara, mas a dor que afinal
cavalga a farsa incomoda. É cobarde de mais a mais Sganarello. Os seus raciocínios fazem rir, com um riso
que por pouco se não transforma num esgar, e através de toda a peça evoca-se Molière a gargalhar das
desgraças dos coitados... é espantoso como os atores de D Maria deixaram a farsa de Molière, para ser
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José Paulo Vasconcelos
representada por subalternos do teatro. Tirando Ferreira da Silva, ninguém sabe quem são os outros. Os
Rosas e Brazão guardaram-se para o drama de Richepin!...
E é tão simples, tão verdadeiro e tão humano aquilo, quanto o outro exagera e complica sem
conseguir impressionar-nos...
Os atores representam mal. Dizem, não sabemos porquê, o verso como se fosse prosa. Depois,
tendo de ensaiar todas as semanas uma peça, porque ninguém está para os aturar, nem tempo têm para
aprender os papéis. De resto acontece que se afizeram àquele trabalho de nora e eles aí vão adormecidos,
fazendo sempre o mesmo tipo, com os mesmos gestos e o mesmo tom de voz. Tirando um que é
consciencioso, João Rosa, dos outros, Augusto há-de ser toda a vida D. Cezar de Bazan e Brazão o
Hamlet, etc...
Noutro teatro suportava-se, mas no normal irrita, porque se dá ares. A gente já vai para ali de
antemão preparado para admirar. Eles estão quase a dizer-nos: olhai para estas peças! vede como nós
representamos!...
Palavras, palavras e palavras!... Que já não há atores, diz-se. E do teatro normal deitaram fora
Lucinda, porque ela não sentira um papel complicado e fora da vida; a António Pedro, o ator de génio,
deram-lhe sempre rábulas, pequenos papéis, em que ele, apesar de tudo, era maior do que todos os outros
juntos; ao Joaquim d’Almeida acho que o puseram na rua e não há teatro que o queira...
Claro que todos os atores hão de sempre ser maus a representar banalidades, pois que ninguém
pode ser grande a exprimir sentimentos falsos, que não sente ou a fazer de duquesas serigaitas.
Escrevam peças humanas, onde se debatam sentimentos a valer, paixões, onde entre a vida, e
verão com os grandes atores aparecem. Interessem-nos nisso: que o ator que vai representar sinta e
não vá apenas dizer palavras escritas pelo autor gelado e indiferente; que a dor que ele representa já
a tenha passado na vida e verão como nos comove. Risos e lágrimas, mas verdadeiras, fundas,
simples e sem retórica. Por não termos peças é que não temos atores e é que o público se não
interessa pelo teatro. Façam-no rir e façam-no chorar e verão. Mostrem-lhe peças escritas antes com
alma, do que com sabedoria, verdades eternas, que entrem na sua vida e na vida de nós todos e o
povo correrá ao teatro.
Porque o teatro, compreendam-no bem, não se fez nem para os jornalistas, nem para as burguesas
serigaitas lidas em Daudet: fez-se para toda a gente. Quando se decidirem a meter no palco a Vida e a
deitar à rua as coisas empalhadas que lá têm dentro — terão público. Assim não, creiam-no. Isso que para
aí se representa nem faz pensar, nem rir, nem chorar: irrita. Não sai a gente do teatro sacudido e com febre;
não se tem a emoção, que se sente por exemplo diante das coisas simples e emocionantes: vem-se a gente
embora com a impressão de que atores, frases, cenário, é tudo de papelão, fingido e feito de propósito para
nos incomodar...
Raúl Brandão, in Correio da Manhã – 17 de Maio de 1895
(texto adaptado ao novo Acordo Ortográfico – 2013)
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José Paulo Vasconcelos
1 Enquadramento histórico-cultural
A estreia aconteceu no Teatro Politeama a 1 de Março de 1926, numa "Récita Única" a favor dos
vendedores de jornais de Lisboa, com Alves da Cunha no papel de Senhor Milhões e Joaquim Oliveira, que
também encenou, no de Governador Civil. Essa representação foi marcada por intrigas de bastidores, que
visavam suprimir a última fala, a fim de "não ofender a decência dos ouvidos das senhoras". Com efeito, o
pano chegou a cair antes do final, mas, por exigência do intérprete, voltou a subir para que a réplica em
causa pudesse então ser dita, conferindo, assim, mais impacto àquilo que, puritanamente, se queria
censurar!
Num contexto marcado pela degradação da vida social e política da República, "O Doido e a Morte"
contrapõe à vacuidade ridícula do Governador Civil a crítica da mediocridade e da decadência, através do
discurso lúcido e pleno de consciência trágica da vida produzido pelo alucinado Senhor Milhões. Como
refere Luís Francisco Rebello, Raul Brandão sentia-se atraído pelo Teatro e pelo "prestígio enorme" que,
nas suas palavras, "quatro tábuas, dois ou três farrapos de lona a cheirarem a tinta "exercem "sobre todos
os homens de imaginação".
"O Doido e a Morte", elogiado por José Régio e Miguel Torga, é, porventura, a melhor obra de Raul
Brandão e reveste-se de enorme relevo no panorama teatral português, à época dominado pela baixa
comédia, pelo drama popular, a Opereta e a Revista e também pelos subprodutos do Teatro Francês. Daí a
denúncia dessa dramaturgia de fancaria, "com personagens recortadas em papelão, sentimentos
empalhados, versos duros como calhaus e palavras, palavras, palavras". E o autor manifesta mesmo o seu
desprezo por "um teatro artificial e inútil: artificial porque (...) lhe falta humanidade e grandeza; inútil, (...)
porque não se apercebeu ainda que caminhamos vertiginosamente para um mundo novo que se está a
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José Paulo Vasconcelos
gerar no tumulto e na dor da nossa época. Um teatro para o Povo, que ele pudesse compreender e amar,
Arte (...) que aproximasse os homens dos homens e os tornasse irmãos". "Que importa que o drama tenha
dois ou tenha mesmo um único personagem, que o ato tenha só uma cena e dure dez minutos, contanto
que nos faça bater mais rijo o coração ou nos absorva?"
2 Sinopse
O Governador Civil, Baltazar Moscoso, dramaturgo frustrado, tenta escrever mais uma das suas
peças medíocres. O contínuo Nunes avisa-o que o Senhor Milhões o vem visitar com uma carta de
recomendação do ministro.
Ao ser recebido, o Senhor Milhões liga a campainha elétrica da secretária a uma caixa que transporta
consigo, comunicando que acaba de ativar uma bomba, a qual rebentará daí a vinte minutos. Perante o
desespero do Governador Civil que se vê abandonado por todos, inclusive a sua mulher, D. Ana, o Senhor
Milhões faz a crítica demolidora das convenções sociais e a defesa de um sentido último para a vida; o
próprio Governador Civil admite ter sido a sua uma mentira.
Na iminência da explosão, chegam dois enfermeiros, que vêm buscar o Senhor Milhões, o doido.
Afinal, a bomba era apenas algodão em rama e não o temido peróxido de azoto, o que leva o Governador
Civil a soltar um palavrão entre a raiva e o alívio.
3 Elenco
Quatro personagens: Senhor Milhões, o Governador Civil, Baltazar Moscoso, a mulher deste, Ana de
Baltazar Moscoso, Nunes, uma espécie de polícia-secretário-criado que introduz as personagens. Dois
figurantes, os enfermeiros que entram na última cena.
4 Organização cenográfica
O dispositivo cénico a utilizar centra-se essencialmente na definição do gabinete do Governador Civil
(porta, secretária, cadeiras, um telefone).Há uma indicação de uma pequena mesa a ser ocupada pelo
Senhor Milhões, que pode ser suprimida.
5 Adereços
Secretária, cadeiras, caixa que contém a bomba-algodão, uma carta, campainha elétrica de mesa, fio
elétrico, relógio e telefone.