22 - Atividade 10 - GEV

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A numeração em verde indica a página que se iniciará naquele ponto, na 9ª edição, de 2009,

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(239/9ª) ou (185/6ª)

B. O sistema "coringa"

I. Etapas do Teatro de Arena


de São Paulo

INTRODUÇÃO

O SNT desejou publicar uma espécie de inventário do teatro brasileiro nestes últimos quinze anos.
Geralmente, os inventários são publicados depois da morte definitiva do falecente. Neste caso, publica-
se com pequena antecedência: o teatro, no Brasil, vive seus momentos agônicos. Para este panegírico
polifônico muitos artistas foram convidados. O que dissemos em nossa declaração pretendemos neste
artigo resumir. Deve-se notar que falamos sempre segundo a perspectiva muito especial do Teatro de
Arena - isto não por hipertrofia da participação deste elenco no teatro paulista, mas sim por terem sido
estes os limites impostos a este depoimento. Pensando no Teatro em São Paulo, devemos constatar
que, em verdade, à classe teatral não cabe nenhuma culpa desta (240/9ª) morte juvenil. Não foram os
elencos que subitamente passaram a (186/6ª) apresentar espetáculos inadequados às suas plateias. A
presente morte não vem para "certas tendências" ou "certas correntes": é morte total, genérica.
De quem a culpa, se há culpados? Este inventário só terá sentido se procurar descobri-Ios, já que se
destina, creio, a encontrar soluções possíveis e imediatas, e não é contemplação nirvânica do sucedido.
Devemos analisar as causas do atual malogro, para melhor vislumbrar as vias de fuga ao desastre,
utilizando esta série de artigos como entendimento do passado e organização do futuro. Um inglês,
certa vez, pretendeu habituar seu cavalo a viver em condições perfeitamente normais, porém sem
alimentação. Para isso, dava-lhe cada vez menos comida até que um dia o equino, já quase
acostumado à inanição, inesperadamente morreu. O inglês pôs-se a procurar profundas causas
psicossociológicas para explicar o passamento. Veio um profeta e disse: "morreu de fome".
Esta história esopiana não pretende afirmar que o teatro seja equestre e a plateia capim; mas, sem
plateia, os artistas não comem, por mais simbolistas que sejam. E, portanto, o feijão com arroz nossos
de cada dia devem ser procurados alhures na TV ou em outras profissões.
Os artistas debandam, como consequência mecânica da debandada do público. E por que debanda
o público?
Tempos atrás, o dinheiro e a inflação apostavam corrida. Hoje, o dinheiro parou de crescer e a
inflação só acabou para quem tem mordomo e não vai à feira. A plateia, em geral, constitui-se de gente
sem mordomia. Por isso, a carência de dinheiro elimina do orçamento doméstico todas as (241/9ª)
atividades familiares dispensáveis ou substituíveis: quem não tem cão caça com gato, quem não vai ao
teatro vê televisão do vizinho.
O sucesso de uma peça, até 1964 mais ou menos, promovia o sucesso de outras: a plateia ficava
com um gostinho na boca, queria mais. Hoje, os poucos espectadores fanáticos remanescentes são
disputados à faca pelas poucas companhias remanescentes e fanáticas. O espectador que vai uma vez
ao teatro pratica assim sua boa ação de cada ano e dificilmente volta a repetir a experiência onerosa.
(187/6ª) O que está acontecendo com o teatro brasileiro no momento não difere do que acontece
com os demais setores da atividade nacional. E, da mesma forma que as falências e concordatas de
tantas indústrias e comércios não se explicam pela qualidade do produto que fabricavam ou vendiam,
também a falência teatral não se explica pelo valor ou características estéticas das peças apresentadas.
Bons ou maus produtos, industriais ou estéticos, encontravam antes compradores que hoje já não
compram.
Falta dinheiro no bolso da platéia, como falta capim no estômago do cavalo: ambos emagrecem.
E, apoiando a teoria do inglês da fábula, todos os Serviços e Comissões de Teatro (em qualquer nível:
federal, estadual e municipal) orientam-se pelo pensamento falaz de que as companhias de teatro
podem-se habituar a quaisquer condições e minguam também suas rações. De um lado, o teatro perde
seu público; de outro, perde o apoio econômico que poderia promover o barateamento dos ingressos,
facilitando o retorno das plateias.
Os sintomas da crise há muito vêm sendo notados; a evidência (242/9ª) da morte, no fim de
1966, em São Paulo, foi dada pelos anúncios em jornais: apenas uma peça em cartaz, O Fardão, em
temporada popular, pela metade do preço; e o público, ainda assim, não comparecia. Se a carreira desta
peça fosse interrompida, sairia de cartaz o teatro paulista.
Dado o malogro do teatro não ter raízes estéticas e a perdurarem as atuais causas econômicas,
restar-me-á tão-somente o retorno ao amadorismo e aos teatros-íntimos, como às siderurgias restará
voltar às forjas domésticas, os carros aos coches e o poder a Pombal.

O TEATRO DE ARENA DE SÃO PAULO

Os elencos nacionais, independentemente da qualidade de seus espetáculos, dividem-se em clássicos e


revolucionários. São clássicos não os que montam obras clássicas, mas os que procuram desenvolver e
cristalizar um mesmo estilo através de seus vários espetáculos. Neste sentido, o senhor Oscar Ornstein
seria (188/6ª)um produtor "clássico", já que seus espetáculos procuram aperfeiçoar sempre a novela
radiofônica em termos vagamente teatrais. "Clássico" foi o TBC dos áureos tempos: muita gente ainda
sofre de saudades da elegância de todos os seus espetáculos: Ralé e Antígona, Goldoni e Pirandello,
eram formosos. A formosura era a suprema meta clássica daquelas neves de antanho. Clássico,
portanto, é qualquer elenco que se desenvolva e se mantenha dentro dos limites de qualquer estilo,
louvável ou pecaminoso. Assim, o "teatro de caminhão" dos vários Centros Populares de Cultura
mantinha-se numa linha clássica.
(243/9ª) Já o Teatro de Arena de São Paulo elabora a outra tendência, a do teatro revolucionário
- e eu estou sempre falando no bom sentido. O seu desenvolvimento é feito por etapas que não se
cristalizam nunca e que se sucedem no tempo, coordenada e necessariamente. A coordenação é
artística e a necessidade social.

PRIMEIRA ETAPA:
NÃO ERA POSSÍVEL CONTINUAR ASSIM

Em 1956, o Arena iniciou sua fase "realista". Entre outras características que trazia, esta etapa
significou um "não" respondido ao teatro que se praticava. Qual?
Ainda nesse ano, o panorama paulista era dominado pela estética do TBC, teatro fundado - e quem
o disse foi seu fundador - entre dois copos de whisky, para orgulho da "cidade que mais cresce". Feito
por quem de dinheiro para quem também o tivesse. Luxo indiscriminado cobrindo Gorky e Goldoni.
Teatro para mostrar ao mundo: ''Aqui também se faz o bom teatro europeu." On parle français. "Somos
província distante, mas temos alma de Velho Mundo."
Era a nostalgia de estar distante, mas alegria de fazer quase igual. O Arena descobriu que
estávamos longe dos "grandes centros" mas perto de nós mesmos - e quis fazer um teatro que
estivesse perto.
(189/6ª) Perto de onde? De sua plateia. Quem era? Bem, aqui vem outra história. Quando surgiu o
TBC, em nossos palcos estavam os divos, atores-empresários, que em si centralizavam todo o
espetáculo, pisando num pedestal de supporting-casts (244/9ª) e "N.N.". As plateias eram impedidas
de ver os personagens, já que as estrelas se mostravam, prioritariamente, idênticas a si mesmas, em
qualquer texto. Eram poucas as estrelas e já tinham todas sido vistas. A plateia fartou-se e abandonou-
as.
Com isto rompeu o TBC. Teatro de equipe: conceito novo. A plateia voltou para ver e misturou-se
aos frequentadores de estreias. Se estes eram a elite financeira de São Paulo, aquela era a classe
média. A princípio, este conúbio foi feliz. Mas a incompatibilidade de gênios das duas plateias cedo ia
mostrar-se.
A primeira etapa do Arena veio responder às necessidades desta ruptura, e veio satisfazer a classe
média. Esta fartou-se das encenações abstratas e belas e, à impecável dicção britânica, preferiu que os
atores, sendo gagos, fossem gagos; sendo brasileiros, falassem português, misturando tu e você.
O Arena devia responder com peças nacionais e interpretações brasileiras. Porém, peças não havia.
Os poucos autores nacionais de então preocupavam-se especialmente com mitos gregos. Nelson
Rodrigues chegou a ser ovacionado com a seguinte frase, que consta da orelha de um dos seus livros:
"Nelson cria, pela primeira vez no Brasil, o drama que reflete o verdadeiro sentimento trágico grego da
existência." Estávamos interessados em combater o italianismo do TBC, mas não ao preço de nos
helenizarmos. Portanto, só nos restava utilizar textos modernos realistas, ainda que de autores
estrangeiros.
O realismo tinha, entre outras vantagens, a de ser mais fácil de realizar. Se antes usava-se como
padrão de excelência a imitação quase perfeita de Guielgud, passávamos a usar a imitação da realidade
visível e próxima. A interpretação seria (245/9ª) tão melhor na medida em que os atores fossem eles
mesmos e não atores.
Fundou-se no Arena o Laboratório de Interpretação. Stanislawsky foi estudado em cada palavra e
praticado desde as nove da manhã até a hora de entrar em cena. Grianfrancesco (190/6ª) Guarnieri,
Oduvaldo Vianna Filho, Flávio Migliaccio, Milton Gonçalves e Nelson Xavier - são alguns dos atores que
fundamentaram esse período.
As peças selecionadas nessa época foram, entre outras: Ratos e Homens de John Steinbeck,
Juno e o Pavão de Sean O'Casey, They Knew What They Wanted de Sidney Howard, e outras que,
embora vindo mais tarde, pertencem esteticamente a esta etapa, como Os Fuzis da Senhora Carrar de
Bertolt Brecht, este dirigido por José Renato.
O palco tradicional e a forma em arena divergem em suas adequações. Podia-se pensar, inclusive,
que fosse o palco a forma mais indicada para o teatro naturalista, já que a arena revela sempre o
caráter "teatral" de qualquer espetáculo: plateia diante de plateia, com atores no meio, e todos os
mecanismos de teatro sem véus e visíveis: refletores, entradas e saídas, rudimentos de cenários.
Surpreendentemente, a arena mostrou ser a melhor forma para o teatro-realidade, pois permite usar a
técnica de close-up: todos os espectadores estão próximos de todos os atores; o café servido em cena
é cheirado pela plateia; o macarrão comido é visto em processo de deglutição; a lágrima "furtiva" expõe
seu segredo ... O palco italiano, ao contrário, usa preferentemente o long-shot,
Quanto à imagem, Guarnieri, num dos seus artigos, observou a evolução do cenário em Arena,
segundo seus três momentos. Primeiro: a forma envergonhada procurava fazer-se (246/9ª) e passar por
palco convencional, mostrando estruturas de portas e janelas. Como imagem, arena era apenas um
palco pobre. Segundo: a arena toma consciência de ser forma autônoma e elege o despojamento
absoluto - algumas palhas no chão dão ideia de celeiro, um tijolo é uma parede, e o espetáculo se
concentra na interpretação do ator. Terceiro: do despojamento nasce a cenografia própria dessa forma -
o melhor exemplo foi o cenário de Flávio Império para O Filho do Cão.
Quanto à interpretação, o ator reunia em si a carência do fenômeno teatral, era o demiurgo do teatro
- nada sem ele se fazia e tudo a ele se resumia.
Porém, se antes os nossos caipiras eram afrancesados pelos atores luxuosos, agora, os
revolucionários irlandeses eram gente do Brás. A interpretação mais brasileira era dada aos (191/6ª)
atores mais Steinbeck e O'Casey. Continuava a dicotomia, agora invertida. Tornou-se necessária a
criação de uma dramaturgia que criasse personagens brasileiros para os nossos atores. Fundou-se o
Seminário de Dramaturgia de São Paulo.
No princípio era a descrença: como seriam transformados em autores jovens de pouca idade, sem
quase experiência de vida ou de palco? Juntaram-se doze, estudaram, discutiram, escreveram. E pôde-
se iniciar a segunda etapa.

SEGUNDA ETAPA:
A FOTOGRAFIA

Em fevereiro de 1958, começou. Eles não usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, foi a primeira, e
ficou todo o ano (247/9ª) em cartaz até 59. Pela primeira vez, em nosso teatro, o drama urbano e
proletário.
Durante quatro anos (até 1962) muitos estreantes foram lançados: Oduvaldo Vianna Filho
(Chapetuba F. G.), Roberto Freire (Gente como a Gente), Edy Lima (A Farsa da Esposa Perfeita),
Augusto Boal (Revolução na América do Sul), Flávio Migliaccio (Pintado de Alegre), Francisco de Assis
(O Testamento do Cangaceiro), Benedito Ruy Barbosa (Fogo Frio) e outros.
Foi um longo período em que o Arena fechou suas portas à dramaturgia estrangeira,
independentemente de sua excelência, abrindo-as a quem quisesse falar do Brasil às plateias
brasileiras.
Esta etapa coincidiu com o nacionalismo político, com o florescimento do parque industrial de São
Paulo, com a criação de Brasília, com a euforia da valorização de tudo nacional. *
As peças tratavam do que fosse brasileiro: suborno no futebol interiorano, greve contra os
capitalistas, adultério em Bagé, vida subumana dos empregados em ferrovias, cangaço no Nordeste e a
consequente aparição de Virgens e Diabos, etc.
(192/6ª) O estilo pouco variava e pouco fugia do fotográfico, seguindo demasiado de perto as
pegadas do primeiro êxito da série. Eram as singularidades da vida o principal tema deste ciclo
dramatúrgico. E esta foi a sua principal limitação: a plateia via o que já conhecia. Ver o vizinho no palco,
ver o homem da rua, ofereceu de início grande prazer. Depois, todos (248/9ª) perceberam que podiam
vê-los fora do palco sem pagar entrada.
A interpretação, nesta fase, continuou o caminho já trilhado antes, continuou Stanislawsky. Porém,
antes, a ênfase interpretativa era dada a "sentir emoções", agora, as emoções foram dialetizadas e a
ênfase passou a ser posta no "fluir de emoções". Se se permite a metáfora máo-tsé-tunguiana, não mais
"lagos, mas sim rios emocionais" ... Aplicaram-se leis da Dialética: o conflito de vontades opostas
desenvolve-se quantitativa e qualitativamente, dentro de uma estrutura conflitual interdependente.
Assim, Stanislawsky foi posto dentro de um sistema. Apesar da resistência do diretor russo em aceitar
"sistemas", todas as suas teorias cabiam perfeitamente dentro deste. A chegada de Flávio Império, que
passou a integrar a equipe, trouxe, pela primeira vez, a cenografia ao Arena. Esta fase necessariamente
deveria ser superada. Suas vantagens foram imensas: os autores nacionais deixaram de ser
considerados "veneno de bilheteria", já que quase todos obtiveram imenso êxito; entusiasmados pela
existência de um teatro que só apresentava autores nacionais, muitos aspirantes converteram-se em
dramaturgos, contribuindo com suas obras para a formação de um teatro mais brasileiro e menos
mimético.
Porém, a desvantagem principal consistia em reiterar o óbvio. Queríamos um teatro mais "universal"
que, sem deixar de ser brasileiro, não se reduzisse às aparências. O novo caminho começou em 63.
Rodapé da página 247/9ª ou da 191/6ª.
*Na mesma époça nasceram a Bossa Nova e o Cinema Novo.

(249/9ª)
TERCEIRA ETAPA
NACIONALIZAÇÃO DOS CLÁSSICOS

Escolhemos A Mandrágora, de Maquiavel, em tradução de Mário da Silva. Maquiavel foi o primeiro


ideólogo da burguesia (193/6ª) então nascente; nossa produção inseria-se no século da sua
decadência.
E o ideólogo deste último alento é Dale Carnegie. De fato, a máxima de cada um desses pensadores
são idênticas, embora opostas por quatro séculos de História. O self-made-man do decadente é o mesmo
"homem de virtú" do florentino.
A Mandrágora, em nossa versão, foi feita não como peça acadêmica, mas como esquema político
ainda hoje utilizado para a tomada do poder. O poder, na fábula, era simbolizado por Lucrécia, a jovem
esposa guardada a sete chaves, mas mesmo assim acessível a quem a queira e por ela lute - sempre
que se lute tendo em vista o fim que se deseja e não a moral dos meios que se usam.
Depois da Mandrágora, outros clássicos vieram, alguns fora da etapa: O Noviço de Martins Penna, O
Melhor Juiz, o Rei, de Lope de Vega, O Tartufo de Moliére, O Inspetor Geral de Gogol.
A "nacionalização" era feita diversamente, dependendo dos objetivos sociais do momento. Assim,
por exemplo, O Melhor Juiz, o Rei sofreu alterações profundas no texto do terceiro ato, a ponto de fazer
com que a autoria se atribuísse mais aos adaptadores do que ao autor. Lope escreveu quando a
evolução da História exigia a unificação das nações, sob o domínio de um Rei. A obra exalta o indivíduo
justo, que em suas mãos reúne todos os poderes, caridoso, bom, impoluto. (250/9ª) Exalta o carisma.
Se, para sua época, sua fábula se adequava, para a nossa e para o Brasil corria o grave risco de se
transformar em texto reacionário. Por isso, tornou-se necessário alterar a própria estrutura para devolver
ao texto, séculos depois, sua ideia original.
Por outro lado, Tartufo foi encenada sem que se lhe alterasse um alexandrino. Na época em que o
texto foi montado, a hipocrisia religiosa era profusamente utilizada pelos tartufos conterrâneos, que, em
nome de Deus, da Pátria, da Família, da Moral, da Liberdade, etc., marchavam pelas ruas exigindo
castigos divinos e militares para os ímpios. Tartufo profundamente desmascara esse mecanismo que
consiste em transformar Deus em parceiro de luta, ao invés de mantê-Io na posição que lhe compete de
Juiz Final. Nada era preciso acrescentar (194/6ª) ou subtrair ao texto original, nem mesmo considerando
que o próprio Molière, para evitar censuras tartufescas, tivesse sido obrigado a fazer, ao final, imenso
elogio ao governo; bastava aí o texto em toda a sua simplicidade para que a plateia se pusesse a rir: a
obra estava nacionalizada.
Esta etapa oferecia, de início, alguns problemas importantes, entre eles o de estilo. Muita gente
acreditava que a montagem de peças clássicas seria um retorno ao TBC, e assim não se dava conta do
alcance, bem mais distante, do novo projeto. Quando montávamos Molière, Lope ou Maquiavel, nunca o
estilo vigente desses autores era proposto como meta de chegada. Para que se pudesse radicar no
nosso tempo e lugar, tratavam-se esses textos como se não estivessem radicados à tradição de
nenhum teatro de nenhum país. Fazendo Lope não pensávamos em Alejandro Ulloa, nem pensávamos
nos elencos franceses, fazendo Molíère. Pensávamos naqueles a quem (251/9ª) nos queríamos dirigir, e
pensávamos nas inter-relações humanas e sociais dos personagens, válidas em outras épocas e na
nossa. Claro que chegávamos sempre a um "estilo" - porém nunca aprioristicamente. Isto nos dava a
responsabilidade de artistas criadores e nos retirava os limites da macaqueação. Quem prefere o já
conhecido, o já avalizado pela crítica dos grandes centros, claro que não podia gostar e muitos assim
reagiram. A maioria, entretanto, sentiu-se fascinada pela aventura de compreender que um clássico só é
universal na medida em que for brasileiro. Não existe o "clássico universal" que só o Old Vic ou a
Comédie podem reproduzir. Nós também somos universo.
Ainda no terreno interpretativo, outra ênfase foi deslocada. Cada vez mais passou ao primeiro
plano a interpretação social. Os atores passaram a construir seus personagens a partir de suas relações
com os demais, e não a partir de uma discutível essência. Isto é, os personagens passaram a ser
criados de fora para dentro. Percebemos que o personagem é uma redução do ator, e não uma figura
que paira distante e flutua até ser alcançada por um instante de inspiração. Mas redução de que ator?
Cada ser humano forma seu próprio personagem na vida real: ri da sua maneira própria, anda, fala, cria
vícios de linguagem, de pensamento, de emoções: o enrijecimento de cada ser humano (195/6ª) é o
personagem que cada um cria para si mesmo. Porém, cada um é capaz de ver, sentir, pensar, ouvir,
emocionar-se mais do que o faz no dia-a-dia. Uma vez libertado o ator de suas mecanizações
cotidianas, estendidos os limites de sua percepção e expressão, este ator, assim liberto, reduz suas
possibilidades àquelas exigi das pelas interrelações nas quais desenvolve seu personagem.
(252/9ª) Uma vez desenvolvida esta etapa, verificou-se sem grande esforço que, se a anterior
restringia-se além do desejável na exaustiva análise de singularidades, esta reduzia-se demasiado à
síntese de universalidades. Uma apresentava a existência não conceituada; outra, conceitos etéreos.
Era necessário tentar a síntese.

QUARTA ETAPA:
MUSICAIS

O Arena tem uma vasta produção de musicais. Desde que iniciou, às segundas-feiras, apresentações
de cantores e instrumentistas, reunindo espetáculos sob a denominação genérica de "Bossarena", com
produção de Moracy do VaI e Solano Ribeiro, até algumas experiências feitas por Paulo José, como
Historinha e Cruzada das Crianças; desde a coprodução realizada com o Grupo Opinião, do Rio de
Janeiro, do musical Opinião, do qual participaram Nara Leão, Maria Bethânia, Zé Keti e João do Vale,
até o one-man-show A Criação do Mundo Segundo Ari Toledo, passando por Um Americano em
Brasília de Nelson Lins de Barros, Francisco de Assis e Carlos Lyra, Arena Conta Bahia, com Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Gal Costa, Tomzé e Piti, Tempo de Guerra com Maria Bethânia. Muitos outros foram
feitos de caráter mais episódico e circunstancial. De todos, o que me parece mais importante, pelo
menos na sequência desta argumentação, é Arena Conta Zumbi, de Guarnieri e Boal, com música de
Edu Lobo.
Zumbi propunha-se a muito e o conseguiu bastante. Sua proposta fundamental foi a destruição de
todas as convenções (253/9ª) (196/6ª) teatrais que se vinham constituindo em obstáculos ao
desenvolvimento estético do teatro.
Procurava-se mais: contar uma história não da perspectiva cósmica, mas sim de uma perspectiva
terrena bem localizada no tempo e no espaço: a perspectiva do Teatro de Arena, e de seus integrantes.
A história não era narrada como se existisse autonomamente: existia apenas referida a quem a contava.
Zumbi era peça de advertência contra todos os males presentes e alguns futuros. E, dado o caráter
jornalístico do texto, requeriam-se conotações que deveriam ser, e foram, oferecidas pela plateia. Em
peças que exigem conotação, o texto é armado de tal forma a estimular respostas prontas nos
espectadores. Essa armação e esse caráter determinam a simplificação de toda a estrutura. Moralmente
o texto torna-se maniqueísta, o que pertence à melhor tradição do teatro sacro-medieval, por exemplo. E
da mesma forma e pelos mesmos motivos porque o teatro sacro da Idade Média requeria todos os
meios espetaculares disponíveis, também, no caso de Zumbi, o texto deveria ser amparado pela
música, que, nesta peça, tinha como missão principal preparar ludicamente a plateia a receber as
razões contadas.
Zumbi destruiu convenções, destruiu todas que pôde. Destruiu inclusive o que deve ser recuperado:
a empatia. Não podendo identificar-se a nenhum personagem em nenhum momento, a plateia muitas
vezes se colocava como observadora fria dos feitos mostrados. E a empatia deve ser reconquistada.
Isto, porém, dentro de um novo sistema que a enquadre e a faça desempenhar a função que lhe seja
atribuída.

(254/9ª)

CONCLUSÃO

Este é o caminho que vinha o Arena percorrendo e que percorre. Cada uma de suas etapas sempre
ligadas ao desenvolvimento social do Brasil. Quando a fase nacionalista do teatro foi sucedida pela
nacionalização dos clássicos, o teatro chegou ao povo, indo buscá-lo nas ruas, nas conchas acústicas,
(197/6 ª) nos adros de Igrejas, no Nordeste e na periferia de São Paulo. Estes espetáculos, festas
populares, eram gratuitos; mas o artista é um profissional. Conseguia-se apoio econômico que tornava o
desenvolvimento possível. Já não se consegue. A plateia foi golpeada. Que pode agora acontecer? O
único caminho que parece agora aberto é o da elitização do teatro. E este deve ser recusado, sob pena
de transformarem-se os artistas em bobos de corte burguesa, ao invés de encontrarem no povo a sua
inspiração e o seu destino.
O beco não parece ter saída. A quem interessa que o teatro seja popular? Descontando-se o povo e
alguns artistas renitentes, parece que a ninguém de mando e poder. Vindo o que vier, neste momento
de morte clínica do teatro, muitos são os responsáveis: devemos todos analisar nossas ações e
omissões.
Que cada um diga o que fez, a que veio e por que ficou. E que cada um tenha a coragem de, não
sabendo por que permanece, retirar-se.
(255/9ª) ou (198/6ª)
lI. A necessidade do "coringa"

A montagem de Arena Conta Zumbi foi, talvez, o maior su-esso artístico e de público logrado pelo Teatro
de Arena até hoje. De público, por seu caráter polêmico, por sua proposta de rediscutir um importante
episódio da História nacional - utilizando para isso uma ótica moderna - e por ter revalidado
a luta negra como exemplo de outra que se deve instaurar em nosso tempo. Artístico, por ter destruído
algumas das convenções mais tradicionais e arraigadas do teatro, e que persistiam como mecânicas
limitações estéticas da liberdade criadora.
Zumbi culminou a fase de "destruição" do teatro, de todos os seus valores, regras, preceitos,
receitas, etc. Não podíamos aceitar as convenções praticadas, mas era ainda impossível apresentar um
novo sistema de convenções.
Convenção é hábito criado: em si mesma não é boa nem má. As convenções do teatro
naturalista, por exemplo, não são boas nem más - foram e são úteis em determinados momentos e
circunstâncias. O próprio Arena, durante o período que vai de 1956 a 1960, valeu-se fartamente do
realismo, de suas convenções, técnicas e processos. Esse uso respondia à (199/6ª) necessidade social
e teatral de mostrar em cena a vida brasileira, (256/9ª) especialmente nos seus aspectos aparentes.
Pedindo emprestada a frase a Brecht, estávamos mais interessados em mostrar "como são as coisas
verdadeiras" do que em "revelar como verdadeiramente são as coisas". Para isto, utilizávamos a
fotografia e todos os seus esquemas. Da mesma forma, estávamos dispostos a utilizar o instrumental de
qualquer outro estilo, desde que respondesse às necessidades estéticas e sociais de nossa organização
como teatro atuante - isto é, teatro que procura influir sobre a realidade e não apenas refleti-Ia, ainda
que corretamente.
A realidade estava e está em trânsito; os instrumentais estilísticos, perfeitos e acabados. Queríamos
refletir sobre uma realidade em modificação, e tínhamos ao nosso dispor apenas estilos imodificáveis ou
imodificados. Estas estruturas reclamavam sua própria destruição, a fim de que não destruíssem a
possibilidade de, em teatro, surpreender o movimento. E queríamos surpreendê-Io quase no dia-a-dia -
teatro-jornalístico.
Zumbi, primeira peça da série "Arena Conta ... " descoordenou o teatro. Para nós, sua principal
missão foi a de criar o necessário caos, antes de iniciarmos, com Tiradentes, a etapa da proposição de
um novo sistema. A sadia desordem foi provocada por quatro técnicas principais que se usaram.
A primeira consistia na desvinculação ator-personagem. Certamente não foi esta a primeira vez
que personagens e atores estiveram desvinculados. Para sermos mais exatos: assim nasceu o teatro.
Na tragédia grega, dois e depois três atores alternavam entre si a interpretação de todos os
personagens constantes do texto. Para isso, utilizavam máscaras, o que evitava a confusão da plateia.
No nosso caso, tentamos também a utilização de uma máscara; não a máscara física, mas (257/9ª) sim
o conjunto de ações e reações mecanizados dos personagens. Cada um de nós, na vida real, apresenta
um comportamento mecanizado preestabelecido. Criamos vícios de pensamento, de linguagem, de
profissão. Todas nossas interrelações se padronizam na vida cotidiana. Estes padrões são nossas
"máscaras", como são também "as máscaras" dos personagens. Em Zumbi, independentemente dos
atores que representavam cada papel, procurava-se manter, em todos, a interpretação da "máscara"
(200/6ª) permanente de cada personagem interpretado. Assim, a violência característica do Rei Zumbi
era mantida, independentemente do ator que interpretava em cada cena. A "aspereza" de Don Ayres, a
"juventude" de Ganga Zona, a "sensualidade" de Gongoba, etc., igualmente não estavam vinculados ao
tipo físico ou características pessoais de nenhum ator. É verdade que as próprias aspas já dão uma
ideia do caráter genérico de cada "máscara". Por certo, este processo jamais serviria para interpretar
uma peça baseada em escritos de Proust ou Joyce. Porém Zumbi era texto maniqueísta, texto de bem e
mal, de certo e errado: texto de exortação e combate. E, para este gênero de teatro, este gênero de
interpretação adequava-se perfeitamente.
Mas não seria necessário citar a tragédia grega, já que tantos exemplos de teatro moderno
desvinculam personagem de ator. A Decisão de Brecht, as Histórias para Serem Contadas, do
dramaturgo argentino Oswaldo Dragun, são dois exemplos. Ao mesmo tempo se assemelham e se
diferenciam de Zumbi. Na peça argentina, em nenhum momento se estabelece um conflito teatral; o
texto tende à narração lírica: os personagens são narrados como se se tratasse de poesia, e os atores
se comportam como se estivessem dramatizando um (258/9ª) poema. Também no texto brechtiano
narra-se distanciadamente o que no passado ocorreu com uma patrulha de soldados: a morte de um
companheiro é mostrada diante dos juízes: o "tempo presente" é a narração do fato acontecido e não o
fato acontecendo.
Já em Zumbi - e isto não é qualidade nem defeito - cada momento da peça era interpretada
"presentemente" e "conflitualmente", ainda que a "montagem" do espetáculo não permitisse esquecer a
presença do grupo narrador da história: alguns atores permaneciam no tempo e no espaço dos
espectadores, enquanto outros viajavam a outros lugares e épocas.
Resultava daí uma "colcha de retalhos" formada por pequenos fragmentos de muitas peças,
documentos, discursos e canções.
Exemplos de desvinculação são inumeráveis. Lembre-se ainda Les Frères Jacques e todo o
movimento do Living Newspaper do teatro americano. Uma das peças deste movimento, (201/6ª)
"E = MC2", narrava a história da teoria atômica desde Demócrito, e da Bomba Atômica desde
Hiroshima, propugnando pela utilização pacífica desse tipo de energia. As cenas são totalmente
independentes uma das outras e se relacionam apenas porque se referem ao mesmo tema.
Existe, em geral, vigente, o gosto de inserir cada peça nacional no contexto da História do Teatro;
e, muitas vezes, esquece-se de inseri-Ia no próprio contexto da sociedade brasileira. Assim, embora a
História do Teatro seja farta de amostras anteriores, o importante, nesse novo procedimento do Arena,
referia-se principalmente à necessidade de extinguirmos a influência que sobre o elenco tivera a fase
realista anterior, (259/9ª) na qual cada ator procurava exaurir as minúcias psicológicas de cada
personagem, e ao qual se dedicava com exclusividade. Em Zumbi, cada ator foi obrigado a interpretar a
totalidade da peça e não apenas um dos participantes dos conflitos expostos.
Fazendo-se com que todos os atores representassem todos os personagens, conseguia-se o
segundo objetivo técnico dessa primeira experiência: todos os atores agrupavam-se em uma única
perspectiva de narradores. O espetáculo deixava de ser realizado segundo o ponto de vista de cada
personagem e passava, narrativamente, a ser contado por toda uma equipe, segundo critérios coletivos:
"Nós somos o Teatro de Arena" e "nós, todos, juntos, vamos contar uma história, naquilo que
semelhantemente pensamos sobre ela". Conseguiu- se assim um nível de "interpretação coletiva".
A terceira técnica de criação de caos, usada com êxito em Zumbi, foi a do ecletismo de gênero e
estilo. Dentro do mesmo espetáculo percorria-se o caminho que vai do melodrama mais simplista e
telenovelesco à chanchada mais circense e vodevilesca. Muitos julgaram perigoso o caminho escolhido
e várias advertências foram feitas sobre os limites por onde caminhava o Arena; tentou-se mesmo uma
enérgica demarcação de fronteiras entre a "dignidade da arte" e o "fazer rir a qualquer preço". Curioso
que as advertências foram sempre dirigidas à chanchada e nunca ao melodrama que, no extremo
oposto, corria os mesmos riscos. Talvez isso se deva ao fato de que a nossa plateia e a nossa Crítica já
se habituaram ao melodrama (202/6ª) e as oportunidades de riso andem muito escassas nos dias que
correm ...
Também em estilo, e não apenas em gêneros, instaurou-se (260/9ª) o salutar caos estético.
Algumas cenas, como a do Banzo, tendiam ao expressionismo, enquanto que outras, como a do Padre e
da Senhora Dona, eram realistas, a da Ave-Maria simbolista, a do twist beirava o surrealismo, etc.
Em teatro, qualquer quebra desentorpece. As regras tradicionais do Playwriting americano
receitam o comic relief como forma de estímulo. Aqui, obtinha-se uma espécie de stylistic relief e a
plateia recebia satisfeita as mudanças bruscas e violentas.
Ainda uma quarta técnica foi usada. A música tem o poder de, independentemente de conceitos,
preparar a plateia a curto prazo, ludicamente, para receber textos simplificados que só poderão ser
absorvidos dentro da experiência simultânea razão-música. Um exemplo esclarece: sem música,
ninguém acreditaria que às margens plácidas do Ipiranga ouviu-se um grito heróico e retumbante* ou
que, qual cisne branco em noite de lua, algo desliza no mar azul**. Da mesma maneira, e pela forma
simples com que a ideia está exposta, ninguém acreditaria que este "é um tempo de guerra" se não
fosse a melodia de Edu Lobo.
Finalmente, usando estas quatro técnicas, tinha Zumbi a missão estética principal de sintetizar as
duas fases anteriores do desenvolvimento artístico do Teatro de Arena.
Durante todo o período realista, tanto a dramaturgia como a interpretação do Arena buscavam
sobretudo o detalhe. Como diz o Coringa em "Tiradentes": "Peças em que se comia macarrão e se fazia
café e a plateia aprendia exatamente (261/9ª) isso: fazer café e comer macarrão - coisas que já sabia."
Foi todo um período em que a preocupação máxima consistia na busca de singularidades, na descrição
mais minuciosa e veraz da vida brasileira, em todos os seus aspectos exteriores, visíveis e acidentais. A
reprodução exata da vida como ela é - esta a principal (203/6ª) meta de toda uma fase. Esse caminho,
embora necessário no seu momento, apresentava grande perigo e risco de tornar a obra de arte inútil.
Arte é uma forma de conhecimento, portanto o artista se obriga a interpretar a re-alidade, tornando-a
inteligível. Porém, se ao invés de fazê-lo, apenas a reproduz, não estará conhecendo nem dando a
conhecer. E semelhança é a medida de ineficácia. Certamente, os autores representados nessa época
não se limitavam às constatações. Porém a utilização do instrumental naturalista reduzia a possibilidade
de análise. Os textos se tornavam ambíguos ou bivalentes; quem é o herói: o pequeno-burguês Tião ou
o proletário Otávio? Qual é a solução de José da Silva: deixar como está pra ver como é que fica,
morrer de fome, ou fazer guerrilha?* Na fase posterior, quando se procurava "nacionalizar os clássicos",
contrapuseram-se as metas: passamos a tratar apenas com ideias, vagamente corporificadas em
fábulas, Tartufo, O Melhor Juiz, o Rei, etc. Pouco nos importava reproduzir a vida na época de Luís XIV
ou na Idade Média. Don Tello e Tartufo não eram seres humanos radicados no seu momento, mas
Lobos de La Fontaine que bem se assemelhavam à gente paulista e brasileira; Dorina e Pelayo eram
cordeirinhos com (262/9ª) alma de raposas. Todo o elenco de personagens se constituía de símbolos
tornados significativos pelas feições semelhantes à gente nossa. Eram "universais" flutuando sobre o
Brasil. Havia que sintetizar: de um lado o singular, de outro o universal. Tínhamos que encontrar o
particular típico.
O problema foi em parte resolvido utilizando-se um episódio da História do Brasil, o mito de Zumbi, e
procurando-se recheá-lo com dados e fatos recentes, bem conhecidos pela plateia. Exemplo: o discurso
de Don Ayres, ao tomar posse, foi escrito quase que totalmente tomando-se por base recortes de jornais
de discursos pronunciados na época da encenação.
(204/6ª) A verdadeira síntese, é certo, não se lograva: conseguia-se apenas - e isto já era bastante -
justapor "universais" e "singulares", amalgamando-os: de um lado a história mítica com toda a sua
estrutura de fábula, intacta; de outro, jornalismo com o aproveitamento dos mais recentes fatos da vida
nacional. A junção dos dois níveis era quase simultânea, o que aproximava o texto dos particulares
típicos.
Zumbi preencheu sua função e representou o fim de uma etapa de investigação. Concluiu-se a
"destruição" do teatro e propôs-se o início de novas formas.

Rodapé da página 260/9ª e da 202/6ª: *Hino Nacional. **Hino da Marinha.


Rodapé da página 261/9ª e da 201/6ª: *Personagens de Eles Não Usam Black Tie e Revolução na América do Sul.
Coringa é o sistema que se pretende propor como forma permanente de se fazer teatro-
dramaturgia e do já acontecido. E, ao reuni-Ias, também as coordena, e neste sentido é o principal salto
de todas as suas etapas.

(263/9ª)(205/6ª)
III. As metas do "coringa"

Um sistema não se propõe porque sim. Vem sempre em resposta a estímulos e necessidades estéticas
e sociais. Já foi exaustivamente estudada a estrutura dos textos isabelinos como decorrência das
condições sociais de sua época, de sua plateia, e até mesmo das características especiais do seu teatro
como edifício. Em geral, todas as peças de Shakespeare se iniciam com cenas de violência: criados em
luta corporal (Romeu e Julieta), movimento reivindicatório de massas (Coriolano), aparição de um fantasma
(Hamlet), de três bruxas (Macbeth), de um monstro (Ricardo III), etc. Não era por coincidência que o
dramaturgo elegia iniciar suas obras assim de maneira violenta. Sobre o comportamento barulhento de
sua plateia narram-se muitos detalhes, alguns bem curiosos. Por exemplo, a linguagem romântica das
laranjas: durante o espetáculo um senhor, desejoso de cortejar uma jovem da plateia, comprava uma
dúzia de laranjas, aos gritos, não importando fosse a cena, no momento, um terno solilóquio. Pelo
vendedor, enviava as frutas à desejada. Dependendo do comportamento desta, ele entendia tudo. Se a
dama devolvesse o pacote, convinha não insistir; se devolvesse (264/9ª) vesse metade, quem sabe? Se
as guardasse, as (206/6ª) esperanças eram muitas. E, Deus seja louvado, se as comesse ali mesmo,
durante o "Ser ou não Ser", não havia dúvida: o jovem casal não assistiria ao final da tragédia,
preferindo inventar sua própria comédia bucólica alhures.
Imagine-se que estas não eram condições ideais para o desenvolvimento da dramaturgia
maeterlinckiana. Laurence Olivier, no seu filme Henrique V, deu uma imagem precisa da plateia isabelina:
gritos, insultos, brigas, ameaças diretas aos atores, circulação ininterrupta de espectadores, nobres no
palco, etc. Para silenciar esta plateia seria necessária uma introdução vigorosa e decidida. Os atores
deveriam fazer mais ruído no palco do que os espectadores na plateia. Assim se ia formando a técnica
de playwriting shakespeariana.
Também as condições de desenvolvimento da ciência propõe a possibilidade de novos estilos: sem
a eletricidade, seria impossível o expressionismo.
Mas não só os aspectos exteriores determinam a forma teatral. Sem seus sessenta mil sócios
proletários, não seria possível o Volksbuhne, berço do teatro épico moderno, como sem a plateia
novaiorquina não seriam possíveis as aberrações sexuais, castrações e antropofagia de Tennessee
Williams. Seria absurdo oferecer A Mãe de Brecht à Broadway, ou Noite de Iguana aos sindicatos
berlinenses. Cada plateia exige peças que assumam sua visão do mundo.
Nos países subdesenvolvidos, no entanto, costuma-se eleger o teatro dos "grandes centros" como
padrão e meta. Recusa-se a plateia de que se dispõe, almejando a distante. O artista não se permite
receber influências de quem o assiste e sonha com os espectadores chamados "educados" ou "de
(265/9ª) cultura". Procura absorver tradições alheias sem fundamentar a própria; receber a cultura
estranha como palavra de ordem divina, sem dizer sua palavra.
No momento, o teatro brasileiro atravessa sua maior crise, a única que chegou simultaneamente em
todos os níveis de suas preocupações: crise econômica, de plateia, de caminhos, de ideologia, de
repertório, de material humano. E a crise, de saudável, traz apenas a necessidade urgente de
reformulações, que também se pretendem em níveis diversos. A tímida introdução do sistema de
cooperativa pretende resolver o problema de Folha (207/6ª) de Pagamento em termos argentinos. A
montagem de peças de dois ou três personagens, pretende resolvê-lo em termos de caixa de música. A
paralisação de muitas companhias em termos de "assim não é possível". Também em relação ao
repertório, muitas esperanças são acalentadas: a pornografia talvez solucione o problema de outras
companhias além da de Dercy Gonçalves; a formação de elencos com astros de TV talvez atraia fã-
clubes, a montagem de textos internacionais, vindo quentinhos de Paris ou Londres, talvez seduza
gente up-to-date. Outros grupos, percebendo que atualmente a montagem de qualquer texto representa
risco total de tudo ganhar ou perder, ousam espetáculos que sempre quiseram fazer: estão anunciados
Peter Weiss, Brecht, e outros autores da mesma importância.
Teatro de Arena também se encontra diante das mesmas indagações coletivas do teatro paulista. E
suas respostas futuras deverão refletir as experiências que vem realizando. O "Sistema do Coringa"
também não nasceu porque sim, mas foi determinado pelas características atuais da nossa sociedade e,
mais especificamente, da nossa plateia.
(266/9ª) Suas metas são de caráter estético e econômico.
O primeiro problema a ser resolvido consiste em apresentar, dentro do pr6prio espetáculo, a peça e
sua análise. Evidentemente, qualquer peça já inclui, em cada encenação, critérios analíticos pr6prios.
Todos os espetáculos de Don Juan, por exemplo, são diferentes entre si, ainda que se basei-em todos no
mesmo texto de Molière. Coriolano pode ser montada como peça fascista ou como condenação ao
fascismo. O herói de Júlio César pode ser Marco Antônio ou Brutus. Pode o diretor moderno optar pelas
razões da Antígona ou de Creonte, ou pela condenação de ambos. Pode a tragédia de Édipo ser a Moira
ou seu orgulho.
A necessidade de analisar o texto e revelar essa análise à plateia; de enfocar a ação segundo uma
determinada e preestabelecida perspectiva e s6 dessa; de mostrar o ponto de vista do autor ou o dos
recriadores - essa necessidade sempre existiu e sempre foi respondida diversamente.
O monólogo, em geral, serve para oferecer à plateia um prisma através do qual possa entender a
totalidade dos conflitos (208/6ª) do texto. O Coro da tragédia grega, que tantas vezes atua como
moderador, analisa também o comportamento dos protagonistas. O raisonneur das peças de Ibsen quase
nunca tem uma função especificamente dramática, revelando-se a cada instante porta-voz do autor. O
recurso do "Narrador" é também frequentemente usado, como o foi por Arthur Miller em Panorama do
Alto da Ponte e, pelo mesmo autor, de forma modificada, em Depois da Queda, onde o protagonista dirige-
se explicativamente a alguém, que tanto pode ser o psicanalista como pode ser Deus - a Miller pouco
importa e muito menos a nós.
(267/9ª) Estas são algumas das muitas soluções possíveis e já oferecidas. No sistema do Coringa, o
mesmo problema se oferece e uma solução parecida se propõe. Em todos estes mecanismos citados, o
que mais nos desagrada é a camuflagem que a sua verdadeira intenção termina por assumir. O
funcionamento da técnica é escondido, envergonhadamente. Preferimos o despudor de mostrá-lo como
é e para que serve. A camuflagem acaba criando um "tipo" de personagem, muito mais próximo dos
demais personagens do que da plateia: "Coros", "narradores", etc., são habitantes da fábula e não da
vida social dos espectadores. Propomos o Coringa contemporâneo e vizinho do espectador. Para isto, é
necessário o esfriamento de suas "Explicações"; é necessário o seu afastamento dos demais
personagens, é necessária a sua aproximação aos espectadores.
Dentro do sistema, as "Explicações" que ocorrem periodicamente procuram fazer com que o
espetáculo se desenvolva em dois níveis diferentes e complementares: o da fábula (que pode utilizar
todos os recursos ilusionísticos convencionais do teatro) e o da "conferência", na qual o Coringa se
propõe como exegeta.
A segunda meta estética refere-se ao estilo. Certamente muitas peças bem logradas utilizam dois ou
mais estilos, como é o caso de Lilion, de Ferenc Molnar e A Máquina de Somar, de Elmer Rice (realismo e
expressionismo, para as cenas de terra e Céu). Porém sempre também os autores se dão a enormes
trabalhos para "justificar" as mudanças estilísticas. Admite-se o expressionismo desde que a cena se
passe no Céu: ora, isto se constitui num disfarce do realismo que permanece. (209/6ª) Mesmo em
cinema, o célebre Gabinete do Dr. Caligari nada (268/9ª) mais é do que um filme realista disfarçado - no
fim, pede-se desculpas pelo instrumental estilístico usado, justificando-se pelo fato de que se tratava de
uma visão do mundo segundo a ótica de um louco.
O próprio espetáculo de Zumbi, com todas as liberdades que assumia, apresentava-se unificado por
uma atmosfera geral de fantasia: com os mesmos instrumentos de fantasia trabalhava-se
indistintamente todas as cenas: a variedade de estilo era dada pela diferente maneira de utilizar
o instrumental e a unidade por se trabalhar sempre com os mesmos instrumentos: absorção pelo corpo
do ator das funções cenográficas, ética de branco e preto, mau e bom, amor e ódio, tom ora nostálgico
ora exortativo, dialética tanque panzer x Ave-Maria, etc.
No Coringa pretende-se propor um sistema permanente de fazer teatro (estrutura de texto e
estrutura de elenco) que inclua em seu bojo todos os instrumentais de todos os estilos ou gêneros. Cada
cena deve ser resolvida, esteticamente, segundo os problemas que ela, isoladamente, apresenta.
Toda unidade de estilo traz o empobrecimento inevitável dos processos possíveis de serem
utilizados. Habitualmente, selecionam-se os instrumentos de um só estilo, daquele que se revela ideal
para o tratamento das principais cenas da peça; em seguida, os mesmos instrumentos são aplicados à
solução de todas as cenas, mesmo quando se mostrem absolutamente inadequados. Por isso,
decidimos resolver cada cena independentemente das demais. Assim, o realismo, surrealismo, pastoral
bucólica, tragicomédia, ou qualquer outro gênero ou estilo estão permanentemente à disposição de
autor e diretor, (269/9ª) sem que estes, por isso, se obriguem a utilizá-los durante toda a peça ou
espetáculo.
O perigo que este procedimento acarreta é razoavelmente grande: pode-se perfeitamente cair na
total anarquia. A fim de evitá-lo, dá-se total ênfase às "Explicações", de forma a que o estilo em que são
elaboradas se constitua no estilo geral da obra, e ao qual todos os demais devem ser referidos.
Pretende-se escrever obras que sejam fundamentalmente julgamentos. E, como num tribunal, os
fragmentos de cada intervenção podem ter a sua própria forma, sem prejuízo da forma (210/6ª) especial
de julgamento, também assim no Coringa cada capítulo ou cada episódio pode ser tratado da maneira
que melhor lhe convier sem prejuízo da unidade que será dada, não pela permanência limitadora de
uma forma, mas pela pletora estilística referida à mesma perspectiva.
Deve-se ainda observar que a possibilidade de extrema variação formal é oferecida pela simples
presença, dentro do sistema, de duas funções extremadamente opostas: a função protagônica que é a
realidade mais concreta e a função coringa que é a abstração mais conceitual. Entre o naturalismo foto-
gráfico de um, singular, e a abstração universalizante do outro, todos os estilos estão incluídos e são
possíveis.
O teatro moderno tem enfatizado em demasia a originalidade. As duas guerras deste século, a
guerra permanente de libertação de colônias, a ascensão das classes subjugadas, o avanço da
tecnologia, desafiam os artistas, que respondem com uma chuva de inovações, especialmente formais:
a rapidez com que evolui o mundo significa também uma impressionante rapidez com que evolui o
teatro. Uma liderança, porém, faz-se entrave: cada nova conquista da ciência fundamenta a conquista
(270/9ª) seguinte, nada se perdendo e tudo se conquistando. Ao contrário, cada nova conquista do
teatro tem significado o arrasamento do já conquistado.
Portanto, o principal tema da técnica teatral moderna ficou sendo a coordenação de suas conquistas,
de forma a que cada novo produto venha enriquecer o patrimônio existente e não substitui-Io. E isto
deve ser feito dentro de uma estrutura que seja inteiramente flexível e absorvente de qualquer
descoberta e, ao mesmo tempo, imutável e sempre idêntica a si mesma.
A criação de novas regras e convenções em teatro, dentro de um sistema que permaneça
modificado, permite aos espectadores conhecerem as possibilidades de jogo de cada espetáculo. O
futebol tem regras pré-conhecidas, uma estrutura rígida do off sides e penalties, o que não impede a
improvisação e a surpresa de cada jogada. Perderia todo o interesse o futebol no momento em que cada
jogo fosse disputado em obediência a leis legisladas apenas para esse jogo; se os torcedores tivessem
que descobrir, durante a partida, quais as leis (211/6ª) que regulam o andamento das jogadas. O pré-
conhecimento é indispensável à total fruição.
No Coringa, uma mesma estrutura será usada para Tiradentes e Romeu e Julieta. Porém, dentro dessa
estrutura imutável ou pouco modificável, nada deverá impedir a originalidade de cada "jogada" ou cada
"cena", "capítulo", "episódio" ou "explicação" Não só o esporte oferece exemplos: o espectador de um
quadro, ao examinar a parte, pode inseri-Ia na totalidade que também se mostra visível. O detalhe de
um mural é visto, simultaneamente, isolado e inserido no todo. Em teatro, este (271/9ª) efeito só poderá
ser conseguido se a plateia conhecer de ante- mão as regras do jogo.
Finalmente, um dos propósitos estéticos não menos importante do sistema consiste em tentar
resolver a opção entre personagem-sujeito e personagem-objeto, que, esquematicamente, deriva da
consideração de que o pensamento determina a ação ou, ao contrário, a ação determina o pensamento.
A primeira posição é exaustivamente defendida por Hegel em sua poética, e muito antes por
Aristóteles.
Afirmam os dois, com palavras pouco diferentes, que a "ação dramática resulta do livre movimento
do espírito do personagem". Hegel vai ainda mais longe e, como se estivesse premonitoriamente
pensando no Brasil atual, afirma que a sociedade moderna vai-se tornando incompatível com o teatro já
que os personagens de hoje se aprisionam num emaranhado de leis, costumes e tradições que vão
aumentando e se vão tornando mais complexos na medida em que se desenvolve e civiliza a sociedade.
Assim, o herói dramático perfeito seria o "príncipe medieval" - isto é, um homem que em si enfeixasse
todos os poderes: legislativo, judiciário e executivo -, o que não deixa de ser uma das mais caras
aspirações de alguns políticos atuais, medievos de coração. Só tendo em suas mãos o poder absoluto
poderá o personagem "livremente exteriorizar os movimentos do seu espírito"; se esses movimentos o
levam a matar, possuir, agredir, absolver, etc. - nada estranho a ele poderá impedi-Io de fazê-Io. As
ações concretas têm origem na subjetividade do personagem.
(212/6ª) Brecht - o teórico e não necessariamente o dramaturgo - defende a posição oposta: o
personagem é o reflexo da ação dramática e esta se desenvolve por meio de contradições objetivas,
(272/9ª) ou objetivas-subjetivas, isto é, um dos polos é sempre a infra-estrutura econômica da
sociedade, ainda que seja o outro um valor moral.
No Coringa, a estrutura dos conflitos é sempre infra-estrutural, ainda que se movam os personagens
ignorantemente deste desenvolvimento subterrâneo, isto é, ainda que sejam hegelianamente livres.
Procura-se assim restaurar a liberdade plena do personagem sujeito, dentro dos esquemas rígidos
da análise social. A coordenação dessa liberdade impede o caos subjetivista conducente aos estilos
líricos: expressionismo, etc. Impede a apresentação do mundo como perplexidade, como destino
inelutável. E deve impedir, esperamos, interpretações mecanicistas que reduzam a experiência humana
à mera ilustração de compêndios.
Muitas são as metas deste sistema. Nem todas são estéticas ou tiveram na estética a origem de sua
proposição. A violenta limitação do poder aquisitivo da população determinou a rarefação do mercado
consumidor de produtos supérfluos: o teatro entre eles.
Não se pode ficar esperando que ocorram modificações fundamentais na política econômica, de
forma a que se devolva ao povo a possibilidade de compra. Deve-se enfrentar cada situação no âmbito
da própria situação, e não segundo perspectivas otimistas. E estes são os dados: falta mercado
consumidor de teatro, falta material humano, falta apoio oficial a qualquer campanha de popularização e
sobram restrições oficiais (impostos e regulamentos).
Nesse panorama hostil, a montagem obediente ao sistema do Coringa torna-se capaz de apresentar
qualquer texto (273/9ª) com número fixo de atores, independentemente do número de personagens, já
que cada ator de cada coro multiplica suas possibilidades de interpretação. Reduzindo-se o ônus de
cada montagem, todos os textos são viáveis. Estas são as metas do sistema. Para tentar consegui-Ias
há que criar e desenvolver duas estruturas fundamentais: a de elenco e a de espetáculo.

(274/9ª) ou (213/6ª)
IV. As estruturas do "coringa"

Em Zumbi todos os atores representavam todos os personagens: a distribuição de papéis era feita em
cada cena e sem nenhuma constância; procurava-se mesmo evitar qualquer periodicidade na
distribuição dos mesmos papéis aos mesmos atores. Mal comparando, parecia uma equipe de futebol de
várzea: todos os jogadores, independentemente de suas posições, estão sempre onde está a bola. Em
Tiradentes, e dentro do sistema do Coringa, cada ator tem a sua posição predeterminada, e move-se
dentro das regras estabeleci das para essa posição. Também aqui não se distribuem personagens aos
atores, mas sim funções de acordo com a estruturação geral dos conflitos do texto.
A primeira função é a "Protagônica" que, no sistema, representa a realidade concreta e
fotográfica. Esta é a única função na qual se dá a vinculação perfeita e permanente ator-personagem:
um só ator desempenha só o protagonista e nenhum outro.
Várias são as características necessárias a esta função, na qual deve o ator valer-se da
interpretação stanislawskiana, na sua forma mais ortodoxa. O ator não pode desempenhar nenhuma
(214/6ª) tarefa que exceda os limites do personagem enquanto (275/9ª) ser humano real: para comer
necessita comida; para beber, bebida; para lutar, uma espada. Seu comportamento em cena deve-se
assemelhar ao de um personagem de Eles Não Usam Black-tie ou de Chapetuba F. C. O espaço em
que se move deve ser pensado em termos de Antoine. O ator "protagônico" deve ter a consciência do
personagem e não a dos atores. Sua vivência não se interrompe nunca, ainda que simultaneamente
possa estar o Coringa analisando qualquer detalhe da peça: ele continuará sua ação "verdadeiramente"
como personagem de outra peça perdido em cenário teatralista. É a "falta de vida", o neo-realismo, o
cine-verdade, o documentário ao vivo, a minúcia, o detalhe, a verdade aparente, a coisa verdadeira.
Não só o comportamento do ator deve obedecer a critérios da verossimilhança, mas também sua
concepção cenográfica: sua roupa, seus adereços, devem ser - perdoando o termo - os mais
"autênticos" possíveis. Ao vê-lo, deve a plateia ter sempre a impressão de quarta parede ausente, ainda
que estejam ausentes também as outras três.
Esta função procura reconquistar a "empatia" que se perde todas as vezes que o espetáculo tende a
um alto grau de abstração. Nestes casos, a plateia perde o contacto emocional imediato com o
personagem e sua experiência tende a reduzir-se ao conhecimento puramente racional.
Não importa nem é o momento de descobrir quais as principais razões desse fato: basta por ora
constatá-Io. E constata-se que a empatia se produz com grande facilidade no momento em que
qualquer personagem, em qualquer peça, com qualquer enredo ou tema, realiza uma tarefa facilmente
reconhecível, de caráter doméstico, profissional, esportivo, ou qualquer outro.
(276/9ª) A empatia não é um valor estético: é apenas um dos mecanismos do ritual dramático,
ao qual se pode dar bom ou mau uso. Na fase realista do Arena, nem sempre esse uso foi louvável e,
muitas vezes, o reconhecimento de situações verdadeiras e cotidianas substituía o caráter interpretativo
que deve ter o teatro. No Coringa esta empatia exterior será trabalhada lado a lado com a exegese.
Tenta-se e permite-se o reconhecimento (215/6ª) exterior desde que se apresentem simultaneamente
análises dessa exterioridade.
A escolha do protagonista não coincide necessariamente com o personagem principal. Em Macbeth
pode ser Macduff; em Coriolano pode ser um homem do povo; em Romeu e Julieta poderia ser
Mercutio, não fosse sua morte prematura; em Rei Lear pode ser o Bobo. Desempenha a função
"protagônica" o personagem que o autor deseja vincular empaticamente à plateia. Se "ethos" e "dianoia"
pudessem ser separados - e só o podem para fins didáticos - diríamos que o protagonista atribui-se um
comportamento "ético", e o Coringa, "dianoético".
A segunda função do sistema é o próprio Coringa. Poderíamos defini-Ia como sendo exatamente o
contrário do Protagonista.
Sua realidade é mágica: ele a cria. Sendo necessário, inventa muros mágicos, combates,
banquetes, soldados, exércitos. Todos os demais personagens aceitam a realidade mágica criada e
descrita pelo Coringa. Para lutar usa arma inventada, para cavalgar inventa o cavalo, para matar-se crê
no punhal que não existe. O Coringa é polivalente: é a única função que pode desempenhar qualquer
papel da peça, podendo inclusive substituir o Protagonista nos impedimentos deste, determinados
(277/9ª) por sua realidade naturalista. Exemplo: inicia-se o segundo ato de Tiradentes com este
cavalgando em cena fantástica: como não será prudente trazer o cavalo para o cenário, esta cena será
desempenhada pelo ator que fizer o Coringa, montado em potro de pano, economizando-se o
desnecessário farelo.
Todas as vezes que casos como este ocorrerem, os dois Corifeus desempenharão
momentaneamente a função Coringa.
A consciência do ator-coringa deve ser a de autor ou adaptador que se supõe acima e além, no
espaço e no tempo, da dos personagens. Assim, no caso de Tiradentes não terá ele a consciência e o
conhecimento possível, aos inconfidentes do século XVIII, mas, ao contrário, terá sempre presente os
fatos que desde então se passaram. Isto deverá ocorrer ao nível da História e ao nível da própria
fábula - já que neste aspecto ele representa também o autor ou o recriado r da fábula, conhecedor de
princípios, meios e fins. Conhece portanto o (216/6ª) desenvolvimento da trama e a finalidade da obra.
É onisciente. Porém, quando o ator Coringa desempenha não apenas essa função em geral, mas em
particular um dos personagens, adquire tão-somente a consciência de cada personagem que
interpreta.
Assim, todas as possibilidades teatrais são conferidas à função Coringa: é mágico, onisciente,
polimorfo, ubíquo. Em cena funciona como menneur du jeu, raisonneur, mestre-de-cerimônias, dono do
circo, conferencista, juiz, explicador, exegeta, contrarregra, diretor de cena, regisseur, kurogo, etc.
Todas as "explicações" constantes da estrutura do espetáculo são feitas por ele, que, quando
necessário, pode ser ajudado pelos Corifeus ou pela Orquestra Coral.
(278/9ª) Todos os demais atores estão divididos em dois Coros: Deuteragonista e Antagonista,
tendo cada um seu Corifeu. Os atores do primeiro Coro podem desempenhar qualquer papel de apoio
ao Protagonista: isto é, papéis que representem a mesma ideia central deste. Assim, no caso de
Hamlet, por exemplo: Horácio, Marcelo, os comediantes, o Fantasma, etc. É o Coro-Mocinho. O outro,
o Coro-Bandido, é integrado por todos os atores que representem papéis de desapoio. No mesmo
exemplo: o Rei Cláudio, a Rainha Gertrudes, Laertes, Polônio, etc.
Os coros não possuem número fixo de atores, podendo variar entre um Episódio e outro. Existirão
dois tipos de figurino: um básico, relativo à função e ao Coro a que pertence. Outro, referente não a
cada personagem, mas sim aos diferentes papéis sociais desempenhados no texto e em conflito na
trama. Poderá haver apenas um figurino para cada papel social: Exército, Igreja, Proletariado,
Aristocracia, Poder Judiciário, etc. Pode acontecer que coexistam no palco dois ou mais atores que
desempenhem o mesmo papel: soldado, por exemplo. Neste caso, deve o figurino ser de tal forma que
possa ser usado por igual número de atores, simultaneamente, e que permita à plateia, visualmente,
identificar todos os atores que desempenham o mesmo papel. Ou tantos figurinos como personagens.
Atores e atrizes poderão representar indiferentemente personagens masculinos ou femininos,
menos, é claro, nas cenas em que o sexo determina a própria ação dramática. Cenas de (217/6ª) amor,
por exemplo, deverão ser desempenhadas por atores do sexo oposto - a menos que, inesperadamente,
resolva-se o Arena a contar Tennessee Williams, coisa que não ocorrerá.
(279/9ª) Completando esta estrutura, está a Orquestra Coral: violão, flauta e bateria. Os três
músicos deverão também tocar outros instrumentos de corda, sopro e percussão. Além de apoio
musical, deve a Orquestra cantar, isoladamente ou em conjunto com o Corifeu, todos os Comentários
de caráter informativo ou ilusionístico.
Esta é a estrutura básica do sistema que deverá ser flexível bastante para adaptar-se à montagem
de qualquer peça. Por exemplo, em caso de necessitar o texto a presença de três blocos em conflito,
pode-se criar o Coro Tritagonista, mantendo- se o esquema intacto em tudo o mais. No caso de uma
peça como Romeu e Julieta, pode-se aumentar o número de Protagonistas para dois, mantendo-se um
só Coringa, ou atribuindo-se suas funções aos Corifeus que, por sua vez, representariam os chefes das
Casas de Montequio e Capuleto. No caso de peças que não apresentem interesse especial em mostrar
nenhum protagonista, pode-se abolir esta função e criar dois Coringas que poderão também absorver as
funções dos Corifeus. Finalmente, no caso em que uma das forças em conflito necessita
apenas de um ou dois atores durante a maior parte do desenvolvimento da ação, pode-se, mantendo-se
os Corifeus, agrupar todos os demais atores num único Coro do Coringa.
A adaptação de cada texto em particular determinará as modificações necessárias, mantida a
estrutura e a proposta fundamental.
Além desta "estrutura de elenco", o Coringa terá também, em caráter permanente, uma única
"estrutura de espetáculo" para todas as peças. Este divide-se em sete partes principais: Dedicatória,
Explicação, Episódio, Cena, Comentário, Entrevista e Exortação.
(280/9ª) Todo espetáculo será sempre iniciado com uma Dedicatória a alguém ou a alguma
coisa. Poderá ser uma canção coletiva, uma cena, ou simplesmente um texto declamado. Poderá ainda
ser uma sequência de cenas, poemas, textos, etc. Em Tiradentes, por exemplo, a Dedicatória se
constitui de uma (218/6ª) canção, um texto, uma cena e novamente uma canção coletiva, dedicando-se
o espetáculo a José Joaquim de Maya, o primeiro homem a tomar medidas concretas pela libertação do
Brasil.
Uma explicação é uma quebra na continuidade da ação dramática, escrita sempre em prosa e dita
pelo Coringa, em termos de conferência, e que procura colocar a ação segundo a perspectiva de quem
a conta - no caso, o Arena e seus integrantes. Pode conter qualquer recurso próprio da conferência:
slides, leitura de poemas, documentos, cartas, notícias de jornais, exibição de filmes, de mapas, etc.
Pode inclusive refazer cenas a fim de enfatizá-las ou corrigi-Ias, incluindo outras que não constem do
texto original, no caso de adaptações e a fim de maior clareza. Por exemplo: contando o irresoluto
Hamlet pode-se apresentar uma cena do decidido Ricardo Ill. As Explicações dão o estilo geral do
espetáculo: conferência, fórum, debate, tribunal, exegese, análise, defesa de tese, plataforma, etc. A
Explicação introdutória apresenta o elenco, a autoria, a adaptação, as técnicas utilizadas, a
necessidade de renovar o teatro, propósitos do texto, etc. Como se vê, todas as Explicações podem e
devem ser extremamente dinâmicas, modificando-se na medida em que são apresentadas em cidades
ou datas diferentes. Assim, quando a peça for apresentada em cidade onde nunca se fez teatro, será
mais oportuno explicar o teatro em geral do que o Coringa em particular. Se (281/9ª) algum fato
importante ocorrer no dia da apresentação e se estiver relacionado com o tema da peça, esta relação
deverá ser analisada. Cremos ficar bem marcado o caráter transitório e efêrnero deste sistema
permanente: objetiva-se aumentar a velocidade de refletir o espetáculo o seu momento, dia e
hora, sem reduzir-se à hora, ao dia e ao momento.
A estrutura geral será dividida em Episódios que reunirão cenas mais ou menos
interdependentes. O primeiro Tempo conterá sempre um episódio a mais do que o segundo: 2 e 1,
3 e 2, 4 e 3, etc.
Uma cena ou lance é um todo completo de pequena magnitude, contendo ao menos uma variação
no desenvolvimento qualitativo da ação dramática. Pode ser dialogado, cantado, ou resumir-se à leitura
de um poema, discurso, notícia ou (219/6ª) documento, que determine mudança de qualidade no
sistema de forças conflituais.
As cenas se ligam entre si pelos Comentários, escritos preferentemente em versos rimados,
cantados pelos Corifeus ou pela Orquestra ou por ambos, servindo para ligar uma cena a outra,
ilusionisticamente. Pode-se constituir também pela simples enunciação do local e tempo onde se passa
a ação.
Considerando que cada cena tem seu estilo próprio, quando necessário, os Comentários deverão
advertir a plateia sobre cada mudança.
As Entrevistas não têm colocação estrutural própria e predeterminada, já que sua ocorrência
depende sempre de ocasionais necessidades expositivas. Muitas vezes o dramaturgo sente-se
obrigado a revelar à plateia o verdadeiro estado anímico de um personagem e não obstante não pode
fazê-lo na presença dos demais personagens. Por exemplo, os atos de (282/9ª) Hamlet só serão bem
entendidos se o seu desejo de morte for exposto; porém, não poderá fazê-Io diante do Rei, da Rainha,
nem mesmo de Horácio ou Ofélia. Shakespeare recorre então ao monólogo, como o expediente mais
prático e rápido de informação direta. Pode acontecer também que esta necessidade informativa esteja
presente e perdure durante toda a ação. O'Neill resolveu o problema forçando seus personagens de
Estranho Interlúdio a dizerem o texto falado e o texto pensado durante toda a peça, em tons diferentes,
ajudados pela iluminação e outros recursos teatrais. Em Dias sem Fim chegou à exigência de dois atores
para o desempenho do protagonista John Loving: um interpretava John, a parte que se mostrava, e
outro, Loving, a intimidade subjetiva. Também o aparte tem sido largamente usado através da História
do Teatro. O fato de estar hoje esta técnica fora de uso deve-se, talvez, a que o aparte cria uma
estrutura paralela de caráter intermitente, que mais interfere na ação do que a explica.
No Coringa, esta necessidade será resolvida utilizando-se recursos de outros rituais que não o
teatral. Durante as disputas esportivas, futebol, boxe, etc., nos intervalos entre um tempo e outro, ou
durante as paralisações temporárias e acidentais das partidas, os cronistas entrevistam atletas e
técnicos que diretamente informam a plateia sobre o sucedido em campo.
(220/6ª) Assim, todas as vezes que for necessário mostrar o "lado de dentro" do personagem, o
Coringa paralisará a ação, momentaneamente, a fim de que ele declare suas razões. Nestes casos, o
personagem entrevistado deverá manter a consciência de personagem, não devendo o ator assumir sua
própria consciência de hoje e aqui. Em Tiradentes, toda a jogada política (283/9ª) do Visconde de
Barbacena, com relação ao lançamento da Derrama, seria fatalmente atribuída ao seu "bom coração" e
não à frieza do seu pensamento, se este fosse revelado intimamente aos espectadores.
Finalmente, a última "porção" da estrutura do espetáculo consiste na Exortação final, em que o
Coringa estimula a plateia segundo o tema tratado em cada peça. Pode ser em forma de prosa
declamada ou em canção coletiva, ou uma combinação de ambas.
Estas, as duas estruturas básicas do sistema. E o que já ficou dito, aqui se reitera: o sistema é
permanente apenas dentro da transitoriedade das técnicas teatrais. Com ele não se pretendem
soluções definitivas de problemas estáticos: pretende-se apenas tornar o teatro outra vez exequível em
nosso país. E pretende-se continuar a pensá-Io útil.
(284/9ª) ou (221/6ª)
V. Tiradentes: questões preliminares

Uma peça deve ser analisada segundo os critérios que propõe, e não segundo uma teoria geral do
teatro. Sempre que se discute um texto, é comum prover-se o discutido r de todas suas teses pessoais
sobre o teatro em geral e nelas enquadrar uma peça em particular, ainda que os critérios que presidiram
a elaboração desta tenham sido diametralmente opostos. Não se pode entender Ionesco munido do
instrumental estético de Racine, nem este com o de Bertolt Brecht.
Porém, se critérios "universais" não são estabelecidos, sobrevém o caos de valores: um texto
medíocre será perfeito, se perfeitamente responder aos medíocres critérios de sua elaboração. É muito
frequente ouvir-se autores que, diante de restrições possíveis, exclamam: "Mas foi exatamente isso que
eu quis fazer." Ora, pode suceder que não se reconheça validade exatamente a "isso". A mediocridade
da obra acabada não justifica nem se justifica por propostas medíocres.
Portanto, há que inserir os critérios particulares de cada texto dentro dos critérios mais gerais, que
não necessitam ser apenas artísticos.
(222/6ª) Seria pois necessário, antes da análise de cada peça, analisar (285/9ª) os instrumentos
de sua fabricação. Estes, porém, não podem ser recusados em função de preferências por nenhuma
escola, gênero, estilo, tendência ou época. Nem podem, só por isso, ser aceitos. A validade de uma
peça deve considerar- se sobretudo em função do público ao qual se destina, sem que se permita tomar
abstratamente a palavra público. Na relação peça-público deve-se considerar este como parte da
população, esta como povo, este como nação, e esta no mundo de hoje. Há que se considerar o texto
como fenômeno social presente - portanto, liberto da historiografia teatral - idêntico ou semelhante a
outros fenômenos sociais de natureza não estética: comícios políticos, assembleias, partidas de futebol,
lutas de boxe. Um texto não será válido senão na medida da sua eficácia teatral e do seu acerto social, e
este não será outro que a humanização do homem, e esta não será nunca uma atitude puramente
contemplativa, mas um fato concreto de condições e direções de vida no sentido de uma sociedade que
se desaliene progressivamente e aos saltos. Os meios empregados não importam, só importam os
objetivos que se desejam.
O principal objetivo de Arena Conta Tiradentes é a análise de um movimento libertário que,
teoricamente, poderia ter sido bem-sucedido. Estava inserido no movimento inevitável do avanço social
- usando uma expressão corrente, "estava ao lado da História" ... Seus principais integrantes detinham
o poder ou podiam torná-lo. Francisco de Paula Freire de Andrade era o Comandante da Tropa Paga -
segundo se dizia, a segunda pessoa em importância dentro da Capitania; Alvarenga, o Padre Carlos de
Toledo, o Padre Rolim, e outros, eram gente que levantava gente; Gonzaga, melhor que (286/9ª)
ninguém, faria leis; dinheiro e pólvora havia bastante - pelo menos para dois anos de assédio, segundo
Alvarenga; e o povo estava industriado por Tiradentes. Melhores condições objetivas para uma
revolução dificilmente se encontram. No entanto, este grupo fracassou. Ruiu como rui castelo de areia,
embora fosse este construído com armas, dinheiro, gente e propósitos definidos.
Esta é uma das questões preliminares que Tiradentes propõe: pretende-se do fato sucedido extrair
um esquema analógico (223/6ª) aplicável a situações semelhantes. Poder-se-ia, ao contrário, pretender
a análise exaustiva dos fatos históricos - escrever obra científica e verdadeira, tornando-se "verdadeira"
no sentido em que ficção e realidade se confundem.
Tiradentes trilha o meio caminho: só modifica os fatos conhecidos na medida em que mantê-los
significaria perda de analogia. Muitas de suas cenas foram escritas com base em documentos da época;
porém, desses documentos extraiu-se uma fábula que se pretende autônoma. Desta vez, não resistimos
à tentação de sermos aristotélicos, preferindo "prováveis impossibilidades a improváveis possibilidades".
Esta preferência permitiu-nos colocar dentro da mesma obra textos inteiros dos Autos da Inconfidência
(especialmente depoimentos de Tiradentes, Gonzaga, Padre Carlos, Francisco de Paula e outros), lado
a lado com cenas absolutamente fantásticas, como a falsa cena dos Embuçados na casa de Alvarenga
Peixoto - (antiga tradição mineira) e com, ainda, digamos assim, alguns modernismos jornalísticos.
Considere-se que a avaliação da "probabilidade" não foi feita sobre intermpestividades psicológicas,
mas sim sobre a totalidade personagens-ideia-enredo-sistema Coringa.
(287/9ª) o microcosmo teatral e o macrocosmo social se constituem na segunda questão
preliminar que devemos expor. Cada obra de teatro supõe e pressupõe o mundo, sem nunca poder
mostrá-Io em sua totalidade, que se infere presente. Se a dor de cotovelo de uma criatura de Nélson
Rodrigues e a guerra do Vietnã interdependem, há, não obstante, que eleger o centro de concentração
da ação dramática, pois estas antípodas interdependem de tudo o mais, inclusive de Lyndon e Feydeau,
não tão antípodas: e o mundo não cabe em duas horas.
Em Tiradentes, foi necessário escolher. A Inconfidência Mineira desenvolveu-se em três planos
principais: povo, relações internacionais e conversas palacianas.
Sempre nos fascinou a ideia de mostrar essa revolução gorada segundo a perspectiva do povo de
então, e os efeitos de cada lance inconfidente no seio desse povo. A vida do garimpeiro, do mineiro, do
pequeno negociante, da costureira, do carrasco, do soldado, interessam-nos mais do que as liras de
Gonzaga e Cláudio. Porém, o tema de Tiradentes é pouco (224/6ª) uma revolução popular, nem poderia
sê-lo. Para mostrar o povo, melhor faríamos contando o Conselheiro, Os Alfaiates, e outros.
Também sempre nos interessaram as relações políticas e econômicas entre Inglaterra, Portugal,
Espanha, França e Esta- dos Unidos no século XVIII. Por que razão mandou a França 100.000 soldados
e 30 navios ajudarem os alemães contratados e os americanos-ingleses contratantes a fazerem a
Independência no Norte? E por que para cá não mandou nem um professor de literatura francesa? Por
que Jefferson, que tanto amava a liberdade, reduzia o exercício desse amor às fronteiras (288/9ª) do
seu país? Por que foram deixados sós dez homens degradados e um na forca baloiçante?
Todos esses assuntos merecem várias trilogias, porém para a análise do comportamento desses
países melhor seria escolher como tema outra Independência que não a nossa, já que tão sós fomos
deixados.
Escolhemos o palácio e isso nos forçou a exclusão quantitativa do povo e dos estrangeiros. Nosso
tema nos parece, assim, melhor servido.
Explicamos: hoje é comum o exercício do poder em nome do povo. Em todas as Constituições dos
países ditos democráticos (e quase todos se dizem) consta que do povo o poder emana e que em seu
nome será exercido. Em nenhuma, que nos conste, consta frase como esta, que imaginamos a
título de exemplo: "Todo o poder emana de uma camarilha que o assumiu, e será exercido em nome do
foro íntimo de cada um." Ainda que isto possa às vezes ser prática, nunca é letra escrita. Sendo o
mundo como está, esta e outras inconfidências menos remotas ou em curso, vitoriosas ou derrotadas,
tendem a interpretar o povo sem ouvi-lo, traduzindo em sua própria linguagem de elite palavras que em
nenhuma parte foram pronunciadas. Ao povo, depois, informam sua tradução.
Assim, Gonzaga, Alvarenga, Francisco de Paula, Silvério e os outros são, em nossa versão,
intérpretes do povo não perguntado. Sua estratégia e suas metas são fabricadas sem consulta prévia. A
Inconfidência se move em casas particulares, poucas, e nos gabinetes oficiais. É Inconfidência
palaciana. (225/6ª) E, sendo palaciana, a peça é escrita dentro dos cômodos do palácio e poucas casas,
e não na rua e nas minas.
(289/9ª) Referências aos outros dois níveis são feitas, a fim de que tenham os espectadores os
instrumentos necessários para enquadrar a ação em coordenadas mais amplas. Porém, estas
referências são apenas flashes, curtos e espaçados. Lê-se em cena a carta de José Joaquim da Maya a
Thomas Jefferson, e sua resposta extraída da correspondência com John Jay e com o próprio Maya. Vê-
se o povo na taberna, depois da proibição da mineração de diamantes, que passaria a ser feita
exclusivamente pela coroa; vê-se o povo na festa e feira do enforcamento exemplar; veem-se as minas
e conta-se a história de Manuel Pinheiro, caçado e preso pelo próprio TIradentes, a mando do
Governador Luís da Cunha Menezes; vê-se Tiradentes conversando com as Pilatas. E mais não se vê
nem se mostra: espera-se que se suponha.
Outra questão preliminar que se deve discutir refere-se à causalidade da ação dos personagens.
Estamos de há muito habituados à técnica de playwriting americana: nela, todos os atos têm suas
razões perfeitamente discerníveis e cuidadosamente comunicadas pelo dramaturgo. O cinema a isto nos
habituou. Quando Blanche Du Bois entra em cena, e durante seus primeiros diálogos, a plateia fica
indagando as causas do seu comportamento estranho. Descobre-se depois sua ninfomania, mas
imediatamente vem o perdão e a causa: seu marido era homossexual, e ela muito jovem quando se
casou, a ponto de não saber descobri-lo. O choque foi tão violento que a pobre senhora só se pôde
refazer aderindo à ninfomania. Neste tipo de explicação cria-se uma mecânica relação de causa
e efeito, e a plateia fatalmente extrapola uma relação mais geral e eterna: todas as senhoras que
venham a descobrir seus maridos em ternos colóquios reprováveis estarão condenadas a (290/9ª) ouvir
a Varsoviana todas as vezes que se aproximarem, com fins lucrativos, de jovens imberbes.
Outro exemplo, também terrivelmente redutor, é a explicação fornecida por Miller sobre o ódio entre
pai e filho em Morte de um Caixeiro Viajante: o pobre Biff, certa vez, surpreendeu o pai, num hotel de
Boston, em companhia de uma loura extranumerária; daí começou sua vida a ser um inferno; (226/6ª) e
isso foi acontecer logo com ele, pobre menino que prometia tanto ...
Se quiséssemos explicar as ações de Tiradentes de forma facilmente inteligível, recursos como
esses não faltariam, como não faltaram aos historiógrafos. Conta-se, por exemplo (e disto citam-se
como prova os próprios Autos da Inconfidência e o quarto interrogatório a que foi submetido o Alferes),
que Tiradentes julgava-se preterido em várias nomeações, já que outros militares tinham, segundo suas
palavras, "caras mais bonitas ou melhores comadres". O violento e constante desejo de liberdade do
herói estaria assim diretamente relacionado com a falta de promoção nas fileiras da Tropa Paga. Ou, se
esta informação causal não bastasse, ainda se poderia acrescentar outro fato que parece ter sido
verdadeiro: Tiradentes, perdido de amor pela sobrinha do Padre Carlos, pediu a este que intercedesse
junto ao pai da moça para que lhe desse sua mão. O bondoso sacerdote fez o que pôde, porém a
menina já estava destinada pelo pai a quem tinha melhor cara ou melhores comadres que o Mártir da
Independência. Desiludido no amor e no serviço militar, nada mais restaria ao nosso protagonista do
que converter-se em Herói Nacional.
Soluções deste tipo não devem parecer incríveis já que foram usadas até mesmo por Castro Alves.
No drama Gonzaga (291/9ª), ou a Inconfidência Mineira, o vate investiga os acontecimentos de Ouro
Preto sob o prisma do triângulo amoroso Gonzaga-Marília-Barbacena. O Visconde, indignado pela
recusa do seu amor, resolve pôr tudo em pratos limpos, impiedosamente castigando os que tramaram
contra a Coroa e contra o seu terno coração.
Porém, se recusamos explicações causais simples e simplórias, restam dois caminhos a seguir:
aprofundar a pesquisa psicológica do personagem ou esquernatizá-lo em função do enredo e da ação
dramática, considerada como fábula.
O primeiro caminho é mais próprio da peça que pretende reconquistar um tempo da História; o
segundo é mais próprio da fábula e da verdade de agora. Este foi escolhido.
Esta decisão leva à consequência inevitável de ser necessário, muitas vezes, limitar o personagem
ao seu aspecto mais útil ao desenvolvimento da trama e da ideia, eliminando-se (227/6ª) características
que, embora integrem o ser humano tratado, são dispensáveis à ideia e à trama. Um exemplo talvez
concretize: certamente os intelectuais da Inconfidência não eram gente que apenas se mostrava
disposta a fabricar dísticos para a bandeira, balançando-se comodamente em redes e discutindo o clima
da cidade de Salvador. Porém, o que nos interessava mostrar, na principal cena em que participam, era
justamente a característica de se preocuparem com detalhes de importância secundária, quando
decisões primárias deviam ser tomadas; a tendência a esperar o acontecimento dos fatos para então
sabiamente interpretá-los, ao invés de se anteciparem criando os fatos ou modificando-os. Enquanto
Barbacena põe seus soldados na rua, os poetas da Arcádia celebram o aniversário da filha de
Alvarenga, a "Princesinha (292/9ª) do Brasil". É claro que nem todos os dias celebravam aniversários ou
discutiam Sá de Miranda e o clima tropical; nem todos os dias Barbacena punha os soldados na rua;
porém, se os autores pretendem agredir a atitude conternplativa, não poderão contemplativamente
conceder que foram esses mesmos intelectuais que lançaram as bases teóricas da sedição. Isto importa
ao juízo definitivo daqueles personagens históricos já falecidos, porém em nada contribui para que nos
questionemos todos nós, que estamos vivos, diante de situações semelhantes: não estaremos todos
batizando nossas filhas enquanto Barbacenas e outros Viscondes põem seus soldados na rua?
Questões preliminares deste tipo devem ser discutidas a fim de que se evitem certos problemas que
inevitavelmente surgem. É frequente no comentarismo teatral de hoje, dentro e fora do periodismo,
rotularem-se peças, espetáculos e personagens. Isto é feito com o fito de livrar-se cada um da
necessidade de entender, já que o processo de entendimento é penoso e, entre outras coisas, obriga a
uma tomada de posição não apenas frente à obra (problema que o rótulo soluciona), como também
frente ao tema tratado.
Esta peça é fácil de rotular, especialmente seus personagens; nela, sem maiores dores de cabeça,
pode-se afirmar que Tiradentes é um quase santo, Silvério o demônio, Cláudio pusilânime, Alvarenga a
perfeição do canalha, pois chega ao extremo de denunciar sua própria mulher.
(228/6ª) Grande e compreensível é o desejo generalizado de que cada cena revele sempre facetas
inesperadas dos personagens conhecidos. Um dia chegar-se-á ao extremo de lamentar que um texto
sobre o descobrimento do Brasil peque pela falta de (293/9ª) originalidade e então se dirá: "Ainda uma
vez, nesta peça, o descobridor do Brasil é Pedro Álvares Cabral e o remetente da carta, Caminha" - falta
imperdoável. Também em Tiradentes, o primeiro delator será Silvério, e disso já sabem todos.
Estes dois problemas se unem: de um lado o gosto pela novidade, de outro o gosto pela
complexidade. Recusa-se com extrema facilidade e sem remorsos qualquer personagem de
fácil compreensão, sob o pretexto de que o romantismo é uma escola passada, e só a ele se permitia
mostrar inteiramente bons os personagens bons e inteiramente maus os personagens maus. Muito mais
agrada o santo que se revela crápula ou o canalha que se heroiciza.
Concordamos em que o romantismo assim muitas vezes procedia, porém parece-nos igualmente
romantismo disfarçado preferir motivações contrárias e opostas à caracterização mais obviamente
revelada. Tiradentes poderia ter secretos planos de fortuna individual se sobreviesse a Inconfidência:
preferimos mostrá-lo como um homem que deseja a liberdade, não para si mesmo, mas para o povo;
preferimos aceitar a visão que dele se tem tradicionalmente, ainda que seja esta talvez mistificada.
Concluindo: nenhum personagem desta peça pode ser analisado isoladamente - nenhum tem
vida fora do teatro. Todos devem ser entendidos dentro do esquema geral que é a peça, isto é, nas
suas múltiplas relações de interdependência. Entenda-se que todos os personagens são contados pelo
Coringa e, neste estilo, atribui-se ao Coringa o direito de contar como bem lhe parecer, a fim de
demonstrar sua tese. A última questão preliminar refere-se ao uso da emoção ou ao (294/9ª) uso dos
mecanismos e técnicas que conduzem à emoção. Cremos, como Brecht, que há dois tipos distintos de
emoção. O primeiro tipo assalta o espectador que sente a inevitabilidade do destino humano, a
perplexidade da vida: é a emoção que surge diante do desconhecido - e esta é própria do teatro
burguês. Choramos diante da protagonista de Cavaleiros ao Mar (229/6ª) de Synge porque a pobre mãe
de pescadores perde seus filhos no mar, um a um. O outro tipo de emoção sobrevém exatamente em
virtude do conhecimento adquirido: choramos com Mãe Coragem não porque seus filhos morrem, mas
porque entendemos a estrutura comercial à qual ela se alienou. No caso da peça de Synge, a emoção
sobrevém pela inevitabilidade da morte; no caso da Mãe Coragem, porque compreendemos (ao contrário
da protagonista) a evitabilidade dessas mortes.
Em Tiradentes, usou-se um outro mecanismo mais aparentado ao segundo: uma vez
compreendidas as estruturas (ou supostamente compreendidas), o próprio Coringa, que até o
penúltimo episódio distancia-se racionalmente da trama, passa, no último, a dela participar, nela se
integrando, como se subitamente não mais interessassem peça, personagens, ideia central, nada, a não
ser acompanhar o "herói" no seu martírio. Em outras palavras: a morte de Tiradentes era evitável;
porém não foi evitada. A Inconfidência tinha todos os meios concretos para libertar o Brasil e proclamar
a República, porém a liberdade não veio e a República não se proclamou. Portanto, depois de mostrar
todas as "evitabilidades" e "possibilidades de êxito", o espetáculo se comove com o "inevitado" e o
fracasso, sem que neste momento, simultaneamente, mantenha qualquer distância crítica, que só será
recuperada no epílogo.
(295/9ª) Esta é a questão: a emoção foi usada de todas as formas que se julgaram possíveis,
sempre criticamente, ainda que em alguns casos estivesse o nível crítico defasado. No último episódio,
ideia e emoção se desconjugam em lances isolados, ainda que estejam conjugadas, uma vez
considerada a totalidade da obra. Estas são algumas das questões preliminares propostas por Arena
Conta Tiradentes. Outras surgirão na sua montagem.

(296/9ª) ou (230/6ª)
VI. Quixotes e heróis

Este é o sistema do Coringa, e estas são suas metas e estruturas. E este é o herói: Tiradentes. E este o
perigo: foi herói.
Hoje em dia os heróis não são bem-vistos. Deles, falam mal todas as novas correntes teatrais, desde
o neo-realismo, neo-romântico da dramaturgia recente americana, que se compraz na dissecação do
fracasso e da impotência, até o novo brechtianismo sem Brecht.
No caso americano, é pacífico o entendimento dos objetivos ideológico-propagandísticos da exibição
de fracasso: é sempre bom mostrar que no mundo há gente em pior situação do que a nossa - isto
tranquiliza as plateias mais cordatas que, facilmente, agradecem a Deus a disponibilidade financeira que
lhes permitiu comprar um ingresso de teatro (ao contrário dos personagens que não o poderiam fazer),
ou agradecem sua pequena felicidade caseira (ao contrário dos personagens atormentados por taras,
esquizofrenias, neuroses e outras enfermidades do trivial psicanalítico). O herói, seja qual for, traz
sempre em si o movimento e o não, e o teatro americano (231/6ª) deve sempre dizer que sim - sua
missão principal é sedativa e tranquilizante.
(297/9ª) No caso do neobrechtianismo o problema se complica. Cabe perguntar: foi Brecht quem
eliminou os heróis, ou foram as interpretações de alguns exegetas mais afoitos? O estudo de alguns
casos concretos talvez ajude a discussão.
Num de seus poemas Brecht conta histórias de heróis, entre eles, São Martinho, o caridoso. Conta-
se que uma noite, caminhando pelas ruas geladas de rigoroso inverno, encontrou um pobre morrendo
de frio e, heroicamente, não hesitou: rasgou seu capotão em dois e deu metade ao pobre - os dois
morreram gelados juntos. Perguntamos: São Martinho foi herói ou, digamos moderadamente, em
atenção à sua santidade, teve um gesto "impensado"? Nenhum critério de heroicidade recomenda a
irreflexão. O heroísmo de São Martinho não é desmistificado por uma simples e bastante razão: não é
heroísmo.
Noutro poema, também sobre heróis, Brecht enfatiza o fato de que quando um general vence uma
batalha, ao seu lado combatem milhares de soldados; quando Júlio César atravessa o Rubicon, leva
consigo um cozinheiro. Evidentemente não depõe contra o herói não saber cozinhar, nem contra o
general lutar acompanhado. Brecht amplia o número de heróis, sem destruir nenhum.
Porém, afirma-se que Brecht deseroiciza. Cita-se, como exemplo, Galileu diante do Tribunal da
Inquisição, "covardemente" negando o movimento da Terra. Diziam os exegetas que se Galileu fosse
herói, heroicamente teria continuado afirmando que a Terra se move, e, mais heroicamente ainda,
suportaria as chamas. Eu prefiro pensar que para ser herói não é absolutamente indispensável ser burro
- ouso até imaginar que uma certa dose de inteligência é condição básica. Atribuir (298/9ª) heroicidade a
um ato de estupidez é mistificação. O heroísmo de Galileu foi a mentira, como dizer a verdade teria sido
tolice.
Brecht não fustiga o heroísmo "em si", pois tal não existe, mas apenas certos conceitos de
heroísmo e cada classe tem o seu. É ainda num poema que afirma que o homem "deve saber dizer a
verdade e mentir, esconder-se e expor-se, matar (232/6ª) e morrer". Soa bem distante do herói de
Kipling, do "serás um homem meu filho". Soa bem próximo às táticas guerrilheiras do maoísmo: "Só se
deve atacar o inimigo de frente quando se é proporcionalmente dez vezes mais forte do que ele."
Ouvindo Mao, certamente Orlando ficaria bem mais furioso do que costumeiramente ouvindo o tio. O
heroísmo de Amadises e Cides era determinado por estruturas de vassalagem e suserania, e quem
pretender reeditá-Io fora dessas estruturas deverá necessariamente pelejar contra moinhos de vento e
pipas de vinho diante dos olhares curiosos de prostitutas, outrora castelãs. Tal foi a sorte de D. Quixote
e tal sempre será. Sempre os heróis de uma classe serão os Quixotes da classe que a sucede.
O inimigo do povo, Dr. Stockman, é um herói burguês. Em que consiste seu heroísmo? Se
necessário, ele é capaz de optar por fazer desaparecer sua cidade, pois considera honrada apenas a
atitude de denunciar a poluição das águas das termas, única ou principal fonte de renda do Município.
No texto de Ibsen revela-se a contradição entre a necessidade de crescimento burguês da cidade e os
valores morais que os cidadãos apregoam possuir. Stockman fica com os valores e comete o erro da
pureza - aí reside seu tipo especial de heroísmo. Podemos condená-Io por sabermos que a solução
verdadeira (desde que se considere a verdade de outra classe (299/9ª) que não a burguesa) não é a que
Stockman propõe, e nem sequer não está contida nos termos do problema que a peça expõe. Porém, se
o condenamos, não condenaremos o seu heroísmo, apenas, e sim a burguesia e todas suas estruturas,
inclusive morais.
O heroísmo de Stockman é determinado e avaliado pelas estruturas burguesas que o patrocinam e
informam. Cada classe, casta ou estamento tem seu herói próprio e intransferível. Portanto, o herói de
uma classe só poderá ser entendido pe- los critérios e valores dessa classe. Ou poderão as classes
dominadas entender os heróis das classes dominantes, enquanto permanecer a dominação, inclusive
moral. Heroicamente, o Cid Campeador arriscou sua vida em defesa de Alfonso VI, e heroicamente
suportou a humilhação como recompensa. Hoje, e ainda heroicamente, o Campeador teria processado
seu Senhor na Justiça do Trabalho, e organizado piquetes na porta da fábrica, (233/6ª) enfrentando gás
lacrimogêneo e cassetete, Não foi tolo o Cid-Vassalo por ter feito o que fez, nem o seria o Cid-Proletário
por fazer o que faria. Foi e seria herói.
Lidando com heróis, pode a literatura indiferentemente apresentá-Ios como seres humanos reais, ou
mitíficá-los. A forma de usá-los deve depender tão-somente dos fins a que cada obra se propõe. Júlio
César sofria várias doenças: isto pode ser revelado no personagem, como pode-se também, ao mito,
fazê-lo gozar esplêndida saúde.
O mito é o homem simplificado - contra isto nada se tem a objetar. Porém a mitificação do homem
não tem necessariamente que ser mistificadora - pois contra isto muito se pode e deve objetar. Em nada
nos aborrece o mito de Espartacus, embora saibamos que talvez não tenha sido tão enorme (300/9ª)
sua valentia. Nada nos aborrece em Caio Graco e sua Reforma Agrária. Porém o mito de Tiradentes
nos perturba. Por quê?
O processo mitificador consiste em magnificar a essência do fato acontecido e do
comportamento do homem mitificado. O mito de Caio Graco é muito mais revolucionário do que deve ter
sido o homem Caio Graco, porém é verdade que o homem distribuiu terras aos camponeses e foi por
isso morto pelos senhores da terra. A diferença entre o homem e o mito é, aqui, apenas de quantidade,
pois a essência do comportamento e dos fatos é a mesma: magnificam-se os dados essenciais e
eliminam-se os circunstanciais. Seus cozinheiros, seus vinhos e seus amores, por exemplo, não
integram o mito, embora possam ter integrado o homem. Para a instituição do mito Caio Graco, é
irrelevante saber se o romano tinha amantes ou se gostava delas, como para a instituição do mito
Tiradentes é igualmente irrelevante acrescentar-lhe sua filha ilegítima e sua concubina, embora para
Joaquim José pudessem ser as duas relevantíssimas - o que em nenhum momento duvidamos.
Se a mitificação de Tiradentes tivesse consistido exclusivamente na eliminação de fatos
inessenciais, nenhum mal haveria. Porém as classes dominantes têm por hábito a "adaptação" dos
heróis das outras classes. A mitificação, nestes casos, é sempre mistificadora. E sempre é o mesmo o
processo: eliminar ou esbater, como se fosse apenas circunstância, o (234/6ª) fato essencial,
promovendo, por outro lado, características circunstanciais à condição de essência. Assim foi com
Tiradentes. Nele, a importância maior dos atos que praticou reside no seu conteúdo revolucionário.
Episodicamente, foi ele também um (301/9ª) estoico. Tiradentes foi revolucionário no seu momento
como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a
derrubada de um regime de opressão e desejava substituí-lo por outro, mais capaz de promover a
felicidade do seu povo. Isto ele pretendeu em nosso país, como certamente teria pretendido em
qualquer outro. No entanto, este comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar,
prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o
crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação. Hoje, costuma-se pensar em Tiradentes
como o Mártir da Independência e esquece-se de pensá-lo como herói revolucionário, transformador da
sua realidade. O mito está mistificado. Não é o mito que deve ser destruído, é a mistificação. Não é o
herói que deve ser empequenecido, é a sua luta que deve ser magnificada.
Brecht cantou: "Feliz o povo que não tem heróis." Concordo. Porém nós não somos um povo feliz.
Por isso precisamos de heróis. Precisamos de Tiradentes.

São Paulo, janeiro de 1967

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