Tese 2.1

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2.

1 Evolução do ensino da Gramática nas aulas de Português nos


últimos 60 anos

Iremos agora reflectir sobre a evolução do ensino da gramática nas aulas


de Português nos últimos anos. No sentido de contribuir para esta reflexão
importa apresentar, ainda que de forma sucinta, a origem e evolução da gramática
ao longo dos tempos.
As primeiras descrições linguísticas de que se tem conhecimento surgiram
no século I a.C em obras hindus. Estas surgiram com o objectivo de preservarem
o património religioso que o sânscrito, língua sagrada na Índia antiga,
representava. Quer isto dizer que pretendiam manter a forma como a língua era
produzida durante os rituais religiosos. A primeira gramática de que se tem
notícia surge no século V a IV a.C, pela mão de Panini (520-460), detentor de um
grande conhecimento sobre o funcionamento do sânscrito. Panini foi o
responsável pelo registo da longa tradição gramatical hindu transmitida de forma
oral.
O estudo formal da gramática desenvolveu-se no período Alexandrino
com os gregos1, tomando dois sentidos diferentes, a saber: por um lado,
pesquisou-se a origem e aquisição da linguagem, que conduziu a reflexões
filosóficas como as de Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), por
outro lado, aprofundou-se a pesquisa a nível do estudo do funcionamento da
língua, que se materializou no surgimento da primeira gramática grega, Téchne:
Grammatiké2 de Dionísio de Trácia (170- 90 a.C), constituída por oito partes do
discurso3. Apolónio Díscolo (século II d.C) continuou a análise sintáctica

1
A gramática provém do grego gramma e constitui-se como a arte da escrita. Depois de longos
séculos de primado da escrita, muito marcado por objectivos normativos e prescritivos, a
gramática torna-se pouco a pouco descritiva, voltando-se para a descrição do funcionamento da
língua.
2
Arte da gramática
3
Denominava-se «partes do discurso» as categorias sintácticas.
1
iniciada na primeira gramática grega, tendo proposto que a estrutura da frase
tinha como base dois elementos, o sujeito e o predicado.
Em Roma, a gramática Latina apareceu como um prolongamento da
gramática grega. É por isso evidente que a importância conferida à gramática
latina pela história da linguística deve muito ao trabalho desenvolvido pelos
gregos. Contudo, os gramáticos latinos distinguiram-se dos seus antecessores em
dois aspectos fundamentais. Primeiro, os Romanos foram os responsáveis pela
difusão do conhecimento da língua e do desenvolvimento da gramática. Segundo,
alguns estudiosos da gramática latina apresentaram nas suas obras reflexões
diferentes das apresentadas pelos estudos filosóficos gregos e pela doutrina
gramatical desenvolvida até então. Este modelo gramatical foi muito valorizado
durante toda a Idade Média e Renascimento, de tal modo que a sua influência
ainda é visível em certas gramáticas contemporâneas de língua portuguesa.
É no século XVI que surgem as primeiras gramáticas das línguas
românicas, cuja base esteve no desenvolvimento do estudo das línguas
particulares.
Em Portugal, as primeiras gramáticas escritas em português só aparecem
no século XVI, mais especificamente, em 1536, com Fernão de Oliveira -
«Gramática da Linguagem Portuguesa» – e em 1540, com João de Barros, -
«Gramática da Língua Portuguesa». Dois grandes gramáticos que se destacaram
nesta época, embora o primeiro mais aberto à mudança e à variação e o segundo
mais defensor da relatinização da língua portuguesa.
Nos séculos XVII e XVIII, as gramáticas caracterizaram-se por focalizar
as suas reflexões na linguagem humana em geral e nas características universais
das línguas. É neste âmbito que aparece «A Gramática Philosophica da língua
Portuguesa» de Jerónimo Barbosa, muito influenciada pela «Grammaire
Génerale et Raisonée» dos franceses Arnault e Lancelot (1660), que salientava a
ligação entre as estruturas da linguagem com os aspectos lógicos do pensamento.
No século XIX, início do XX, as gramáticas passam a ser comparadas e
históricas. Neste campo, destacaram-se, entre outros gramáticos, Adolfo Coelho,
José Joaquim Nunes.
2
No início e primeiras décadas do século XX, importa referir, nos países
anglo-saxónicos, a obra de Franz Boas, Bloomfield, Otto Jespersen, Hockett, que
constituem o Estruturalismo Norte-Americano. Na Europa, Saussure e outros
linguistas funcionalistas fundam o Estruturalismo Europeu4. A análise levada a
cabo por estes linguistas procurou, embora de modos distintos, encontrar a
estrutura das línguas, tanto na forma presente (estudo sincrónico) como na forma
histórica (estudo diacrónico). Estes estudos deram origem ao método científico,
que facultou a descrição das unidades de qualquer língua.
Depois de séculos em que as gramáticas foram essencialmente normativas
e prescritivas, as gramáticas do século XX passaram a ser sincrónicas e
descritivas. Celso Cunha, Lindley Cintra e Evanildo Bechara são alguns dos
nomes que conceberam este tipo de gramáticas em Portugal e no Brasil.
Noam Chomsky elaborou, na segunda metade do século XX, a Gramática
Generativa, que se constituiu como uma teoria de grande alcance, no sentido de
descrever as gramáticas das línguas naturais, no quadro de uma teoria universal
das gramáticas. Importa referir que a sua teoria se relacionava com a de
estudiosos dos séculos XVIII e XIX, porque procurava a raiz lógica da gramática,
que permitia o estabelecimento de uma relação íntima entre a linguagem e o
pensamento. O trabalho levado a cabo por Chomsky conduziu-o à concepção de
gramática como a descrição da competência linguística 5, do conhecimento
linguístico dos falantes. O Estruturalismo (Europeu e Norte-Americano) e a
Gramática Generativa mudaram, efectivamente, o rumo da história da gramática
no século XX.
Depois desta breve apresentação da origem e evolução da noção de
gramática, importa, agora, reflectir sobre evolução do ensino desta nos últimos
60 anos nas aulas de Português.
Importa, desde já, clarificar que, na nossa perspectiva, esta atravessou três
fases distintas, as quais passamos a enumerar: na primeira fase, no início do

4
Uma das ideias centrais de Saussure é a distinção entre a langue, sistema abstracto e comum a
uma língua, e as realizações concretas desse sistema, a parole.
5
Capacidade de produção e compreensão de enunciados, que fazem parte da língua materna ou
de uma língua estrangeira, por um falante.
3
século XX, o ensino da gramática caracterizou-se por um grau elevado de
formalização e dogmatismo. O funcionamento da língua era leccionado de forma
muito tradicionalista e até «rígida», vincado na memorização e exposição de
regras, completamente desfasado das outras competências, nomeadamente, da
aprendizagem do oral e da escrita. O professor de língua materna ensinava
gramática como se esta fosse algo exterior ao aluno, assumindo uma atitude que
remetia para segundo plano o conhecimento do aluno em relação ao objecto da
língua. Para além disso, predominava o ensino da escrita sobre o do oral.
A segunda fase do ensino da gramática teve início nos anos sessenta e
setenta, uma fase que ficou marcada pela transição do ensino tradicional, que
vigorava anteriormente, para um certo abandono progressivo do ensino da
gramática nas língua materna. Nesta época, devido ao surgimento de novas
propostas no ensino nos níveis básico e secundário, ao aparecimento e divulgação
da Gramática Generativa e, posteriormente, devido à influência das teorias
comunicativas «radicais», o ensino do funcionamento da língua sofreu uma
grande transformação. As novas metodologias adoptadas levaram a diferentes
conceptualizações do papel da gramática no contexto escolar, que foram, tal
como já foi referido, desde o ensino prescritivo da gramática até ao abandono do
seu ensino. A ausência do ensino da gramática, na generalidade, era preenchida
pela realização de actividades mais lúdicas do que didácticas. Caminhava-se,
assim, para a terceira e última fase, que teve início nos anos noventa e se
desenvolveu praticamente até à actualidade. Na década de noventa, é notório o
predomínio do ensino das competências orais e escritas sobre a competência do
funcionamento da língua. O professor lecciona a gramática nas aulas de língua
materna como se esta fosse uma parte estanque, como uma espécie de “separata”
de pouco valor, colocada de lado e ensinada só quando era realmente necessário.
Situação preocupante e que Inês Duarte descreve na perfeição:

«Os programas de Português da Reforma Educativa elegem como


competências nucleares a desenvolver a compreensão e a expressão, nas
vertentes oral e escrita, e como competência subsidiária e meramente

4
experimental o funcionamento da língua. […] tanto os programas como a
prática pedagógica tendem a privilegiar a componente de análise literária e
conhecimentos de história da literatura. Por outras palavras, o ensino da
gramática é considerado um objectivo e conteúdo subalterno, algo que se
evita, um domínio que só se trabalha quando não pode deixar de ser.»6

Tomemos como exemplo a nossa experiência enquanto discentes, porque


ela vai ao encontro do cenário anteriormente descrito: fazendo uma retrospectiva,
constatamos que o ensino da gramática nas aulas de português foi praticamente
nulo a partir do meu 9º ano de escolaridade, comparativamente às outras
competências. Situação que consideramos preocupante, apesar de o estudo da
literatura ser muito importante, não só pelo conhecimento que confere das
grandes obras literárias nacionais, mas também, pelo alargamento da própria
cultura dos alunos. Este estudo poderia ser, porém, muito mais produtivo e
completo se fosse articulado com o ensino constante e equilibrado da gramática
da língua. A nosso ver, a aula de português não pode ter partes estanques, deve
ser leccionada como um todo. Neste âmbito, achamos que os textos literários
constituem uma fonte riquíssima e adequada para uma análise que integre todos
os elementos que compõem a aula de língua materna, sendo um deles, claro, a
gramática. Só é possível conhecer-se um texto com profundidade se o seu
funcionamento linguístico for devidamente explorado e isso só pode ser feito se o
professor, munido de sólido conhecimento do funcionamento da língua, for
explorando os aspectos linguísticos mais relevantes dos textos em análise durante
a aula.
Para além disso, o ensino do funcionamento da língua nas aulas de língua
materna apresenta-se como uma das áreas mais problemáticas quer para o
professor, quer para o aluno. Para perceber as razões da situação difícil do ensino

6
DUARTE, Inês. (1998). «Algumas Boas Razões para Ensinar Gramática», in A Língua Mãe e
a Paixão de Aprender. Homenagem a Eugénio de Andrade, Actas do 2º Encontro de
Professores de Português. Porto: Areal Editores, pp.110.
5
da gramática, recorremos a um estudo de João Costa 7, onde o investigador faz
uma sistematização das causas que estão na base desta crise:
 A indefinição dos objectivos relacionados com a pedagogia da gramática;
 A formação inicial e contínua dos professores;
 a terminologia linguística usada no ensino da gramática que não era
unívoca;
 o nível da operacionalização e apropriação dos conhecimentos gramaticais
ao contexto didáctico.

Perante este cenário, é urgente e necessário reflectir profundamente sobre


a forma como deve ser ensinada a gramática na sala de aula. Citando Ana Brito:
«é importante retomar o ensino da gramática, reinventando o seu objecto e os
seus métodos, fazendo da aula de gramática um espaço de trabalho
experimental» (Brito, 1998: 53). A nosso ver, esta perspectiva poderia trazer
inúmeros benefícios para o ensino do funcionamento da língua; por exemplo, no
caso dos pronomes relativos, esta metodologia tornaria a leccionação deste
conteúdo, que é a partida muito temido pelos alunos, muito mais interessante. O
professor, em vez de se limitar a «debitar» as regras e as excepções às regras,
deveria fazer exactamente o contrário, que é levar o aluno a descobrir as
regularidades dos dados linguísticos e a descobrir ele próprio as regras
subjacentes. Nesta actividade de descoberta, o professor assumiria um papel de
orientador, dotado de uma preparação mais do que suficiente para orientar os
alunos, que são o cerne de toda a aprendizagem, e para os tornar mais activos
neste percurso de aprendizagem.
Para além desta proposta de mudança metodológica, achamos que é
importante referir os novos programas de língua portuguesa; neste âmbito,
iremos apresentar uma pequena reflexão em torno das alterações, aplicadas ao
7
COSTA, João (2007). «Conhecimento Gramatical à saída do Ensino Secundário: estado actual
e consequências na relação com leitura, escrita e oralidade”. in REIS, Carlos (Orgs.). Actas da
Conferência Internacional sobre o Ensino do Português. Lisboa, Ministério da Educação e
Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular.

6
nosso objecto de estudo - as orações relativas no contexto pedagógico-didáctico.
No Programa Língua Portuguesa – Plano de organização do ensino-
aprendizagem - Ensino básico, 3º ciclo8, os pronomes começam a ser leccionados
no sétimo ano, sendo repetidamente retomados no oitavo e nono anos de
escolaridade. No sétimo e oitavo o programa preconiza o ensino do pronome para
que os alunos evitem «repetições em textos produzidos», (Programa Língua
Portuguesa, 2000: 53). No nono ano, este refere que o aluno deve começar a
«sistematizar as regras da concordância do verbo com o pronomes relativo que
e quem» (Ibidem, 2000: 52) e a verificar a «natureza das relações entre as
diferentes espécies de orações subordinadas oração subordinada consecutiva e
concessiva; orações subordinadas relativas restritivas e explicativas com
antecedente», (Ibidem, 2000: 52).
Por sua vez, no novo Programas de Português do Ensino Básico,
homologado em 2009, verifica-se que o ensino do pronome relativo começa no
segundo ciclo do ensino básico e continua no terceiro, com o objectivo de tornar
os alunos capazes de manipular «enunciados para descoberta e identificação dos
antecedentes dos pronomes» e identificar «orações subordinadas substantivas
adjectivas relativas (restritivas e apositivas)», propondo, neste âmbito,
actividades «para a descoberta e identificação de diferentes processos de
articulação entre frases. Construção de frases complexas, por coordenação e
subordinação a partir de frases simples» (Programas de Português do Ensino
Básico, 2009: 94-95 e 132). Sempre com uma perspectiva de progressão, o
programa defende que deve haver uma reflexão sobre o funcionamento da língua,
para que «a partir da realização de actividades de carácter opcional, analisar e
questionar os sentidos dos textos», (Ibidem, 2009: 94).
Depois desta breve comparação, no que se refere à inserção nos programas
das orações relativas, achamos que o novo «Programa de Língua Portuguesa» é
mais favorável e está mais adaptado à perspectiva de ensino que defendemos,
porque remete para um ensino do funcionamento da língua mais direccionado

8
Programa de Língua Portuguesa – Plano de Organização do Ensino Aprendizagem do Ensino Básico 3º
ciclo. (2000). Departamento da Educação, Ministério da Educação, Volume II, 7º Edição.
7
para a reflexão e descoberta dos conteúdos, apresentando mesmo propostas de
actividades que vão no sentido de um trabalho experimental sobre a língua.

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