A Internacionalização Das Comunidades Lusófonas e Ibero-Americanas PDF

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A INTERNACIONALIZAÇÃO

DAS COMUNIDADES
LUSÓFONAS E
IBERO-AMERICANAS
DE CIÊNCIAS SOCIAIS
E HUMANAS ODACASO DAS CIÊNCIAS
COMUNICAÇÃO
Organização
Moisés de Lemos Martins
POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA, POLICENTRADA E POLIFACETADA, UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO

A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS


E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
– O CASO DAS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS
DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS – O CASO DAS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

Coordenação
MOISÉS DE LEMOS MARTINS

Diretor das Coleções do CECS: Moisés de Lemos Martins


Diretor-Adjunto das Coleções do CECS: Manuel Pinto

Capa: António Modesto

Paginação: Margarida Baldaia

© Edições Húmus, Lda., 2017


Apartado 7081
4764-908 Ribeirão – V. N. Famalicão
Telef. 926 375 305
[email protected]

Impressão: Papelmunde
1.ª edição: novembro de 2017
Depósito legal: 434342/17
ISBN: 978-989-755-306-6

Apoio:

Financiado pelo COMPETE: POCI-01-0145-FEDER-007560 e FCT – Fundação para a Ciência


e Tecnologia, no âmbito do projeto: UID/CCI/00736/2013.
POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA, POLICENTRADA E POLIFACETADA, UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO

A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS


E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
– O CASO DAS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

Coordenação
Moisés de Lemos Martins

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POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA, POLICENTRADA E POLIFACETADA, UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO

ÍNDICE

11 Por uma comunidade científica, policentrada e polifacetada,


uma comunidade com sentido humano
Moisés de Lemos Martins

PRIMEIRA PARTE
COMUNICAÇÃO, CULTURA E INTERNACIONALIZAÇÃO

19 Comunicação da ciência, acesso aberto do conhecimento e


repositórios digitais. O futuro das comunidades lusófonas e
ibero-americanas de Ciências Sociais e Humanas
Moisés de Lemos Martins

59 Internacionalização, desafios, delimitações e efeitos perversos


José Manuel Paquete de Oliveira

71 Uma reorientação conceitual


Muniz Sodré

79 Retos y responsabilidades de la investigación en comunicación


Miquel de Moragas

89 Comunicación, cultura, internacionalización. À volta do


compromiso intelectual
Margarita Ledo Andión

103 Da necessidade e da possibilidade de uma história das mídias


sob a ótica lusófona
Antônio Hohlfeldt

117 As raízes pré- e pós-coloniais do mercado regional


latino-americano de televisão
Joseph Straubhaar e John Sinclair

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

SEGUNDA PARTE
POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICAÇÃO E
INTERNACIONALIZAÇÃO

145 Articular a investigação com os investigadores. A tarefa da


International Association for Media and Communication
Research (IAMCR)
Janet Wasco

157 As Ciências da Comunicação na Europa. O projeto inacabado


do cosmopolitismo
Cláudia Álvares

169 Política científica: uma questão de confiança


João Costa

179 Desafios da internacionalização acadêmica


Juremir Machado da Silva

193 Comunicação e políticas públicas para a ciência


e tecnologia em Portugal, durante os XIX e XX Governos
Constitucionais (2011-2015)
Helena Sousa

201 Política científica, publicación e internacionalización


en el campo de la comunicación en España
Emili Prado

217 Diagnóstico e perspectivas dos periódicos científicos e difusão


do conhecimento comunicacional nos primeiros anos da
Confibercom (2011-2015)
Cicilia M. Krohling Peruzzo

231 Associações científicas: da ideia de rede ao ideal de


comunidade
Madalena Oliveira

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POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA, POLICENTRADA E POLIFACETADA, UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO

247 Políticas científicas de comunicação e os desafios


da pós-graduação em Comunicação. Um breve panorama
sobre Moçambique
Tomás José Jane, Elias Djuve e Eulálio Mabuie

TERCEIRA PARTE
LÍNGUA, GLOBALIZAÇÃO E INTERCULTURALIDADE

261 As línguas francas em ciência e a questão dos paradigmas


Paulo Serra

277 Lusofonia, interculturalidade e globalização. A língua


portuguesa como língua de ciência
Maria Manuel Baptista

287 As missangas da comunicação. Moçambique no espaço


ibero-americano
Armando Jorge Lopes

303 Linguas, globalización e interculturalidade. Unha reflexión


desde o galego
Henrique Monteagudo

319 Modelos cognitivos da lusofonia. Romantismo e racionalismo


nas políticas de língua e comunicação de unidade/diversidade
do português europeu e brasileiro
Augusto Soares da Silva

337 Comunicação intercultural e cidadania em tempos de


globalização
Margarida M. Krohling Kunsch

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POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA, POLICENTRADA E POLIFACETADA, UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO

POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA,


POLICENTRADA E POLIFACETADA,
UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO
Moisés de Lemos Martins*

Em todos os tempos, as comunidades humanas se confrontaram com duas ques-


tões fundamentais: com o problema da ordem, na tentativa de dar resposta à exi-
gência de viver em sociedade; e, também, com o problema da história, indagando
sobre as possibilidades da ação humana.
Neste aspeto, a nossa época não é distinta de todas as outras. E, todavia, estas
questões, a da ordem e a da história, colocam-se hoje com particular acuidade,
porque no nosso tempo, as fundações da sociedade democrática ameaçam ruir e
as possibilidades da ação humana diminuíram consideravelmente.
Percebemos, hoje, que a ordem no mundo é ditada pelos mercados econó-
mico-financeiros e que, em consequência disso, é o próprio sentido do humano
que entrou em crise, no vórtice da mobilização total e infinita para o mercado
global, a que bens, corpos e almas passaram a obedecer.

* Professor Catedrático da Universidade do Minho, doutorou-se em Ciências Sociais (especialidade


de Sociologia) na Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo (1984). Ensina e investiga em
Sociologia da Cultura, Semiótica Social, Sociologia da Comunicação, Cultura Visual, Comunicação
Intercultural, Estudos Lusófonos, Política Científica e Tecnológica. Dirige o Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade (CECS), que fundou em 2001. É Diretor da revista Comunicação e
Sociedade, e também da Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural
Studies (RLEC). Foi Presidente da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom),
tendo sido Presidente da Federação das Associações Lusófonas de Ciências da Comunicação
(Lusocom) e da Confederação Ibero-Americana das Associações Científicas e Académicas de
Comunicação (Confibercom). Da sua obra constam os seguintes títulos: Lusofonia e Intercultu-
ralidade. Promessa e Travessia (2015); Crise no Castelo da Cultura. Das Estrelas para os Ecrãs
(2011); L’Imaginaire des Médias (coeditor, 2011); Do Post ao Postal (coeditor, 2014); Caminhos nas
Ciências Sociais. Memória, Mudança Social e Razão (2010); A Linguagem, a Verdade e o Poder.
Ensaio de Semiótica Social (2002); O Olho de Deus no Discurso Salazarista (1990, 2016), Para
uma Inversa Navegação. O Discurso da Identidade (1996).
E-mail: [email protected].

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E por outro lado, ao generalizar-se na comunidade o sentimento de incapa-


cidade para alterar o curso das coisas, há quem tenha passado a agoirar sobre o
fim da história.
A metafísica tradicional era fundada na palavra. E a palavra era um espaço
de promessa, dado que declinava ideias de futuro e nos dava garantias sobre ele.
Essa metafísica da unidade acabou no Ocidente. Já não é mais possível lan-
çarmos um propósito para diante (para o futuro), fundando-o num fundamento
seguro (Martins, 2011). Agora é para o presente que somos mobilizados. As pala-
vras da promessa (centradas no futuro) foram substituídas pelos números da
promessa (que no ocidente são, sobretudo, números da crise): os números do
Produto Interno Bruto (PIB), que não cresce o que desejaríamos, quando não tem
crescimento negativo; os números da Balança Comercial, com desequilíbrios
crónicos entre as exportações e as importações; os números do défice, interno
e externo; os números do desemprego, que a muito custo procuramos suster;
os números do envelhecimento da população na Europa; os números das desi-
gualdades sociais, que alastram; os números da quebra drástica, na Europa, dos
índices demográficos; os números da instabilidade social, política, económica e
financeira, a qual, um pouco por todo o lado, não para de ameaçar-nos… Trata-se
de números virados para o presente e que no Ocidente apenas assinalam a nossa
urgência numa situação de crise.
Debater o nosso tempo é, pois, debater a crise em que estamos mergulhados.
E debater a crise significa interrogar a condição precária de quem atravessa uma
“noite dos tempos”, para falar como Georges Steiner (1971), uma noite onde a
história se armazena em gigas, as emoções se processam em bits, os corpos se
compõem com pixéis, e a vida toda, de bens, corpos e almas, é convertida em
valor económico e financeiro.

E bem pode o nosso quotidiano atolar-se em aborrecimento e cansaço, que os


ecrãs não nos dão mais sossego, agitando-nos, excitando-nos e mobilizando-nos,
inexoravelmente, para o mercado global, num movimento em que a palavra recua
diante da torrente de imagens tecnológicas, e nós perdemos qualquer fundamento
seguro, identidade estável, território conhecido e dominável (Martins, 2010).
Os textos que esta obra reúne resultam das conferências plenárias do II Con-
gresso da Confederação Ibero-americana das Associações Científicas e Acadé-
micas de Comunicação (Confibercom), realizado em Braga, na Universidade do
Minho, em 2014, que reuniu investigadores de todo o espaço ibero-americano. Sem

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POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA, POLICENTRADA E POLIFACETADA, UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO

dúvida que, no seu conjunto, estes textos são de uma importância extraordinária,
pela esperança que os anima, de desenvolvimento, alargamento e consolidação
da comunidade ibero-americana de Ciências da Comunicação 1.
As Ciências da Comunicação são uma atividade de pensamento crítico, uma
atividade que se exerce sobre a sociedade. E exercer este olhar reflexivo sobre os
modos como interagimos uns com os outros no espaço ibero-americano concorre
para a construção desta grande comunidade científica.
Ao falarmos do espaço ibero-americano, estamos a falar de uma diversidade
de culturas, estamos a falar de comunidades que se exprimem em duas línguas,
a portuguesa e a espanhola, duas línguas que por serem de cultura, pensamento
e conhecimento, concorrem para a construção da comunidade científica ibero-
-americana, contrariando a visão de um mundo monocolor, um mundo globali-
zado, hegemonicamente falado em inglês 2.
As Ciências das Comunicação dos países ibero-americanos têm esta respon-
sabilidade, uma responsabilidade ao mesmo tempo científica, estratégica, política
e cívica, de concorrer para a construção da comunidade de investigação ibero-
-americana de Ciências da Comunicação, fazendo obra de cultura, de pensamento
e de conhecimento. Ao interrogarem em português e em espanhol os modos como
nos distintos países deste espaço transnacional e transcontinental fazemos obra
de conhecimento e interagimos uns com os outros, as Ciências da Comunicação
constroem a sua própria comunidade científica.
As expressões maiores do espírito apenas podem ser realizadas na língua
materna. E entre as expressões maiores do espírito estão o pensamento e a cultura
(Martins, 2015 b).
O II Congresso Ibero-americano de Ciências da Comunicação exprimiu o
entendimento de que as línguas, portuguesa e espanhola, por serem ser línguas

1 Ainda em 2014, foram publicadas as Atas do II Congresso Mundial de Comunicação Ibero-


-americana, Comunicação Ibero-americana: os Desafios da Internacionalização (Martins &
Oliveira, 2014). Mas já em 2012, haviam sido publicados os principais textos, apresentados ao
I Congresso Mundial de Comunicação, realizado em 2011, em São Paulo, Comunicação Ibero-
-americana: sistemas midiáticos, diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação (Kunsch & Melo,
2012). Assim como também haviam sido publicados, em 2013, os textos relativos ao I Fórum da
Confibercom, realizado em Quito, no Ciespal (Kunsch, 2013), La Comunicación en Iberoamérica.
Políticas científicas y tecnológicas, posgrado y difusión de conocimiento.
2 Contrariando a visão de um mundo monocolor, falado numa única língua, o inglês, e em defesa
da diversidade linguística, veja-se Lusofonia e Interculturalidade (Martins, 2015 a).

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de pensamento e de cultura, devem ser línguas de conhecimento. É esse enten-


dimento estratégico que é manifestado nos textos aqui reunidos.
Uma língua que não se esforce para dizer os avanços do seu tempo, e também
as suas contradições e inquietações, uma língua que não se esforce para dizer os
bloqueios e os impasses da sua época, quero dizer, uma língua que não tenha
pensamento, é uma língua que não cria conhecimento. E se o não fizer, se não
criar conhecimento, é uma língua arcaica, que estiola e acaba por morrer.
Foi a esse desafio que respondeu o II Congresso Ibero-americano de Ciên-
cias da Comunicação: concorrer para tornar as línguas, portuguesa e espanhola,
línguas de pensamento e línguas de cultura, e em consequência disso, línguas
de conhecimento.
Este Congresso não teve outra linha de rumo que não fosse, por um lado,
reforçar e desenvolver os propósitos que animaram a criação da Confibercom, e,
por outro, homenagear dois dos seus principais obreiros, o Professor brasileiro,
José Marques de Melo, e o Professor português, José Manuel Paquete de Oliveira:
debater as políticas científicas e contrariar o modelo hegemónico de fazer ciên-
cia, um modelo que nos apaga, tanto pela língua de uso, como pelo paradigma
científico que nos impõe.
Realizando esta tarefa, estamos a dar oportunidades ao conhecimento, que se
exprime na diversidade das culturas faladas em português e em espanhol, assim
concorrendo para a construção de uma comunidade científica, policentrada e
polifacetada, uma comunidade com sentido humano, que é sempre uma comu-
nidade com o sentido do debate e da cooperação, no respeito pela diversidade e
pela diferença entre as culturas.

Referências bibliográficas

Kunsch, M. (Ed.) (2013). La Comunicación en Iberoamérica. Políticas científicas y tecnoló-


gicas, posgrado y difusión de conocimiento. Quito: Confibercom/Ciespal.
Kunsch, M. & Melo, J. M. (Eds.) (2012). Comunicação Ibero-americana: sistemas midiáticos,
diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação. São Paulo: Confibercom & Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
Martins, M. L. (2011). Crise no Castelo da Cultura. Das Estrelas para os Ecrãs. Coimbra:
Grácio. Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/29167.
Martins, M. L. (2010). A mobilização infinita numa sociedade de meios sem fins. In
Álvares, C. & Damásio, M. (Org.) Teorias e práticas dos media. Situando o local no

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POR UMA COMUNIDADE CIENTÍFICA, POLICENTRADA E POLIFACETADA, UMA COMUNIDADE COM SENTIDO HUMANO

global (pp. 267-278). Lisboa: Edições Lusófonas. Disponível em: http://hdl.handle.


net/1822/24250.
Martins, M. L. & Oliveira, M. (2014). Comunicação Ibero-americana: os Desafios da Inter-
nacionalização – Livro de Atas do II Congresso Mundial de Comunicação Ibero-
-americana. Braga: Universidade do Minho / CECS. Disponível em: http://hdl.handle.
net/1822/33031.
Martins, M. L. (Ed.) (2015 a). Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia. Fama-
licão: Húmus. Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/39693.
Martins, M. L. (2015 b). Os Estudos Culturais como novas Humanidades. Revista Lusófona
de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies. Vol. 3 (1), pp. 341-361.
Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/40655.
Steiner, G. (1992) [1971]. No Castelo do Barba Azul. Notas para a redefinição da cultura.
Lisboa: Relógio d’Água.

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PRIMEIRA PARTE
COMUNICAÇÃO, CULTURA
E INTERNACIONALIZAÇÃO

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO


DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS
O FUTURO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS
E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
Moisés de Lemos Martins*

Resumo
É meu propósito discutir a comunicação da ciência no atual contexto da globalização do
conhecimento e da cultura digital, interrogando as políticas de ciência, língua e comuni-
cação, e o modo como elas modelam e condicionam o desenvolvimento das comunidades
lusófonas e ibero-americanas de Ciências Sociais e Humanas.
Proponho a hipótese de estarmos a fazer uma travessia tecnológica, em muitos aspetos
análoga à travessia marítima europeia dos séculos XV e XVI. Coloco, pois, em confronto a
natureza tecnológica da atual globalização financeira e a natureza comercial da expansão
marítima europeia. E se da primeira travessia resultou a colonização de povos e nações, com
a segunda travessia passámos, em século e meio, àquilo a que Edgar Morin chamou a “colo-
nização do espírito” de toda a comunidade humana (Morin, 1962). Neste contexto, tomámos
em consideração as consequências, para a cultura, da revolução ótica, que se iniciou por

* Professor Catedrático da Universidade do Minho, doutorou-se em Ciências Sociais (especialidade


de Sociologia) na Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo (1984). Ensina e investiga em
Sociologia da Cultura, Semiótica Social, Sociologia da Comunicação, Cultura Visual, Comunicação
Intercultural, Estudos Lusófonos, Política Científica e Tecnológica. Dirige o Centro de Estudos
de Comunicação e Sociedade (CECS), que fundou em 2001. É Diretor da revista Comunicação e
Sociedade, e também da Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural
Studies (RLEC). Foi Presidente da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom),
da Federação das Associações Lusófonas de Ciências da Comunicação (Lusocom) e da Confedera-
ção Ibero-Americana das Associações Científicas e Académicas de Comunicação (Confibercom).
Da sua obra constam os seguintes títulos: Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia
(2015); Crise no Castelo da Cultura. Das Estrelas para os Ecrãs (2011); L’Imaginaire des Médias
(coeditor, 2011); Do Post ao Postal (coeditor, 2014); Caminhos nas Ciências Sociais. Memória,
Mudança Social e Razão (2010); A Linguagem, a Verdade e o Poder. Ensaio de Semiótica Social
(2002); O Olho de Deus no Discurso Salazarista (1990, 2016), Para uma Inversa Navegação. O
Discurso da Identidade (1996).
E-mail: [email protected].

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meados do século XIX, com a invenção da máquina fotográfica, e concluiu, no nosso tempo,
com a Internet e a realidade virtual de produção tecnológica (Martins, 2010, 2011 a, 2014).
Vou situar nos estudos pós-coloniais as identidades transnacionais e transcontinentais,
analisando as comunidades lusófonas e ibero-americanas de Ciências Sociais e Humanas,
no contexto da “batalha das línguas” (Lopes, 2004), para utilizar uma expressão do linguista
moçambicano, Armando Jorge Lopes, a que dou, todavia, um novo sentido. Vou, pois,
considerar as políticas de ciência, língua e comunicação como combates pela ordenação
simbólica do mundo (Bourdieu, 1977, 1979, 1982), onde se colocam os problemas de língua
hegemónica e de subordinação científica.
Sendo tecnológica a condição da época, tomo o ciberespaço como um novo lugar do
conhecimento científico, sem dúvida em língua inglesa, com as políticas de comunicação
a saltar para os web sites, os portais eletrónicos, as redes sociais, os repositórios digitais e
os museus virtuais; mas do ponto de vista que nos interessa, o novo lugar do conhecimento
é em língua portuguesa, e também em língua espanhola.
Finalmente, apresento um conjunto de elementos sobre a presença de uma comunidade
científica de Ciências Sociais e Humanas, o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade
(CECS), num Repositório académico digital, o Repositorium da Universidade do Minho.

Palavras-chave: globalização, comunicação da ciência, acesso aberto do conhecimento,


repositórios digitais, identidades transnacionais, Museu Virtual da Lusofonia

1. As identidades transnacionais e transcontinentais


como figuras da modernidade

As identidades transnacionais e transcontinentais, que nos permitem falar de


espaço lusófono e espaço ibero-americano, remetendo sempre para possibilidades
de comunidade, seja de cultura e arte, de pensamento e ciência, não são alheias
à cinética moderna, que marca a época, uma cinética tecnológica 1. Não podem,
pois, deixar de se inscrever no contexto do atual debate sobre a globalização, que
é uma realidade de cariz eminentemente económico-financeiro, comandada pelas
tecnologias da informação.
Esta ideia de globalização dá-nos identidades definidas, ou seja, definitivas,
identidades de indivíduos móveis, mobilizáveis, competitivos e performantes no

1 A “modernidade” é aqui conceptualizada como um novo contexto de manifestação e constituição


da diversidade, embora a modernidade, ela própria, também possa ser múltipla. Como salienta
Joel Kahn (2001), cada sociedade produz uma versão específica de modernidade.

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

mercado global (Martins, 2010; 2015 a, p. 9-10). E exprime, além disso, uma conceção
cosmopolita de cultura, a cultura-mundo (Martins, 2011 b; Martins, Cabecinhas,
Macedo, 2011), uma cultura da unidade, servida por uma única língua, o inglês.
Mas se é verdade que o mundo se unificou, através da expansão do capi-
talismo, também se diversificou, por via de resistências e adaptações diversas
(Sahlins, 1993, p. IX). Como assinala Manuel Ivone Cunha, “A integração global
e a diferenciação local seriam até certo ponto concomitantes. A diferenciação
desenvolver-se-ia como resposta à integração mundial” (Cunha, 2015, p. 227) 2.
É este o contexto em que me parece dever ser situado aquilo a que podemos
chamar de “globalização multiculturalista”, que nos permite enquadrar, seja o
espaço lusófono, seja o espaço ibero-americano. A “globalização cosmopolita”,
fundada nas tecnologias da informação e na economia, não pode ser contra-
riada por indivíduos solitários e impotentes, nem por Estados-nações em crise.
Pode-o ser, todavia, pela globalização multiculturalista, que reúne os povos de
áreas geoculturais alargadas, promove e respeita as diferenças, dignificando, do
mesmo passo, as línguas nacionais. A globalização multiculturalista é a globali-
zação do que é diverso, do que é diferente, do que é outro. É feita pela mistura,
pela miscigenação de etnias, línguas, memórias e tradições 3. E é este o sentido
que me parece dever ser dado à possibilidade, seja de comunidades lusófonas,
seja de comunidades ibero-americanas, de cultura, arte, pensamento e ciência.

2. A circum-navegação tecnológica e as identidades transnacionais


e transcontinentais, lusófonas e ibero-americanas

A investigação histórica tem insistido, nos últimos tempos, na analogia que é


possível fazer entre a atual globalização, uma “circum-navegação tecnológica”,
fundada nas tecnologias da informação, que nos mobilizam para o mercado, e a
primeira globalização, concretizada pela expansão europeia nos séculos XV e XVI 4.

2 A este propósito, ver também Arjun Appadurai (2005), Dimensões Culturais da Globalização.
3 Sobre a tensão entre a globalização cosmopolita e a globalização multiculturalista, ver “Globali-
zation and Lusophone world. Implications for Citizenship” (Martins, 2011 b). Veja-se, também,
Vítor Sousa, 2017.
4 Ver, por exemplo, Roger Crowley (2015), Conquerors. How Portugal forged the first global Empire;
também Martin Page (2002), The First Global Village: How Portugal Changed the World; e ainda,
A. G. R. Russell-Wood (1992), The Portuguese Empire, 1415-1808. A World on the Move.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Também em Portugal, a investigação histórica sobre a expansão europeia, e


especificamente sobre a expansão portuguesa, teve nos últimos anos um grande
desenvolvimento. E estas pesquisas tiveram como consequência associar à eclosão
da modernidade a expansão europeia e os notáveis avanços então realizados, na
física, na matemática, na astronomia e na cartografia 5.
No entanto, da mesma maneira que a expensão europeia dos séculos XV e XVI
não pode ser pensada apenas como uma abertura à “diversidade do mundo”, mas
também como um movimento de colonização, que não serviu apenas o encontro
entre povos, tendo servido, igualmente, a assimilação/integração e dominação do
mundo pelo desígnio ocidental 6, de igual modo o debate sobre as línguas deve
passar por um mesmo movimento de desconstrução pós-colonial.

5 Tenho sobretudo presente a obra do físico e historiador de ciência, Henrique Leitão. Em Os


Descobrimentos Portugueses e a Ciência Europeia, obra publicada em 2009, Leitão confirma que
a expansão marítima europeia (portuguesa, espanhola, inglesa e holandesa) foi, talvez, a maior
transformação política, social, administrativa e económica dos séculos XV e XVI. E em dois
artigos, publicados em 2014, em parceria com Joaquim Alves Gaspar, na revista de cartografia
Imago Mundi, explica de que modo foram decisivos os estudos portugueses de matemática e
cartografia (muito particularmente de Pedro Nunes, em 1537), para a criação da Tabela de Rumos,
instrumento matemático usado por Mercator para a projeção cilíndrica do globo terrestre, em
1569. E ainda, em artigo mais recente, publicado na revista Journal of the History of Ideas, Hen-
rique Leitão, em parceria com Antonio Sánchez, salienta o facto de ter sido a expansão marítima
europeia, protagonizada por portugueses e espanhóis, que inventou a modernidade, ao fomentar
a participação de todas as camadas sociais no estudo da Natureza, através das novas práticas
empíricas, desenvolvidas entre soldados, marinheiros, mercadores e viajantes, que ao mesmo
tempo recolhiam todo o tipo de informação (Leitão & Sánchez, 2017).
6 Pode dizer-se que a expansão marítima portuguesa teve um momento mítico fundador, de que
a Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei português, D. Manuel I, sobre o achamento do Brasil, em
1500, é uma boa expressão – um tempo mítico de descoberta e encontro. Mas não podemos deixar
de ter em atenção, também, o facto de se ter passado logo a uma segunda fase, de integração, e
mesmo a uma terceira, de dominação.
A ideia da “diversidade do mundo”, que a expansão marítima europeia colocou a descoberto,
ficou, pois, comprometida, praticamente logo no início, pelas necessidades imperialistas do
capitalismo comercial. Tzvetan Todorov (1982), em La Conquête de l’Amérique. La Question de
l’Autre, ao colocar a questão da alteridade no encontro com o outro civilizacional, defende o
ponto de vista da comunicação intercultural, uma razão que se opõe ao entendimento homo-
geneizante, a que pode estar associada a ideia de diálogo intercultural. Com efeito, Todorov
interroga, antes de mais, a lógica das interdependências, que se exercem a três níveis: axiológico,
praxeológico e epistémico. O nível axiológico das interdependências prende-se com os juízos
de valor que temos sobre o outro, afinal de contas, com os estereótipos que utilizamos para o
enquadrar. No nível praxeológico colocam-se as práticas concretas de assimilação, submissão ou
indiferença relativamente ao outro. Por sua vez, o conhecimento que temos sobre a identidade
do outro caracteriza o nível epistémico. Todorov contraria, pois, a “metafísica da unidade”, da

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

A circum-navegação é uma figura que nos pode ajudar a pensar a travessia a


fazer, na experiência tecnológica, que é a experiência contemporânea por exce-
lência 7. À semelhança da época da expansão europeia, o homem contemporâneo
faz hoje, através da tecnologia, uma travessia, deslocando-se da cultura do uno
para a cultura do múltiplo. A cultura do uno é logocêntrica, etnocêntrica, imperia-
lista, colonialista e produtivista. Caracteriza-se, pois, pela exclusão, assimilando
e destruindo a diferença. Em contrapartida, a cultura do múltiplo e da mistura
associa-se à participação, à comunicação intercultural, à diferença, a uma cultura
pós-colonial (Martins, 2007, 2011 a, 2011 b, 2014, 2015 c).
A circum-navegação assinala, classicamente, a experiência da travessia de
oceanos e a ultrapassagem do limite estabelecido, de mares, terras e conheci-
mentos. E, a meu ver, trata-se de uma boa metáfora para caracterizar a atual
experiência das comunidades científicas, lusófonas e ibero-americanas, uma
experiência, hoje, largamente tecnológica 8.
Na circum-navegação clássica houve os dispositivos náuticos, como o qua-
drante, o sextante, o astrolábio, a esfera armilar, a bússola, as cartas náuticas e
as balestilhas. E também houve as alavancas, as roldanas, os canhões, as bombas
de água. Mas havia sobretudo as estrelas, para nos conduzir na noite. Deixámos,
entretanto, de olhar para as estrelas e passámos a olhar para os ecrãs, como assi-
nala Paul Virilio (2001, p. 135). Ou seja, da história de sentido em que se inscreviam
as estrelas, o Ocidente abriu caminho para os ecrãs, o que quer dizer, para “a
inovação, a hibridez e a interatividade” (Martins, 2011/12, p. 49).
Desta experiência tecnológica resultam formas imaginárias melancólicas,
porque fora do regime da analogia (Martins, 2002 a, 2002 b; 2002 c, 2002 d;
2011 c). Tais formas melancólicas são uma consequência da combinação de techne

perspetiva do diálogo intercultural, um entendimento que por vezes desconhece os processos


comunicacionais de segregação, dominação e tomada de poder.
7 A figura da circum-navegação, associada à ideia de viagem tecnológica, é desenvolvida, original-
mente, na tese de doutoramento de Stéphane Hugon, defendida em 2007, na Sorbonne, com o título,
Circumnavigations, la construction sociale de l’identité en ligne. Esta tese foi publicada em 2010,
mantendo a figura da circum-navegação no título: Circumnavigations. L’Imaginaire du voyage dans
l’expérience Internet. Colocando-se do ponto de vista de “uma sociologia dos espaços eletrónicos”,
Hugon interroga, entre outros aspetos, “uma cultura da deambulação”, “uma genealogia da deriva”,
“o que significa habitar”, “o que é uma paisagem” e, ainda, “a dinâmica comunitária”.
8 Sobre o papel do ciberespaço na invenção de comunidades lusófonas, pela reativação de memórias
sociais e pela (re)produção de narrativas identitárias, ver Macedo, Martins & Cabecinhas (2010,
2011) e Macedo et alii (2013). Ver, também, Martins & Cabecinhas (2009).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

e aesthesis, ou seja, de técnica e emoção, e também, de techne e arche, o que quer


dizer, do novo e do arcaico (Martins, 2002 a, 2002 b, 2003, 2005, 2007, 2009, 2015
d). Mas é através destas formas melancólicas que se reconfigura, em permanência,
o sentido de comunidade, pelo desejo de ser-e-estar-com-outros 9. E no caso, é pela
combinação de techne e aesthesis, e também de techne e arche, que eu entrevejo a
reconfiguração de comunidades lusófonas e ibero-americanas de investigadores
em Ciências Sociais e Humanas.
Os novos média, ou média digitais, significam isso mesmo: a comunicação
mediada por computador, e, em consequência, a inovação, a hibridez e a interati-
vidade. A inovação, e não o novo, significa práticas que impõem uma intervenção
tecnológica. E porque se trata de práticas tecnológicas, há que discutir nos média
digitais, antes de mais nada, a programação e o design (Foster, 2002).
Em concomitância com as práticas tecnológicas, surgem, entretanto, novas
práticas de comunicação, que impõem uma alteração do sentido da leitura, assim
como uma alteração do sentido do olhar. Hoje, por exemplo, ler o jornal, ver
televisão ou ir às exposições de um museu, são exercícios de comunicação, que
incluem, todos, práticas de navegação Web, ou seja, práticas de comunicação, em
condições específicas de tempo, espaço e interlocução: downloads, pirateados ou
não, visualizações no Youtube, discussões nas redes sociais, expansão de artigos
em posts de blogues, expansão de imagens em vídeos no Youtube.
Os média digitais significam, também, a hibridez, o que quer dizer, uma
síntese tornada possível pela realidade técnica, que abre espaço para seres arti-
ficiais, mundos virtuais e experiências simulacrais. E, neste contexto, uma coisa
é, por exemplo, o processo de leitura, caraterizado por Roman Jakobson (2003),
em Lingüística e Comunicação, que supõe uma tradução intersemiótica, ou de
transmutação, no processo de interpretação dos signos verbais, por meio de

9 No quadro do projeto “Narrativas identitárias e memória social: a (re)construção da Lusofonia


em contextos interculturais”, executado na Universidade do Minho, sob a coordenação de Rosa
Cabecinhas (Ref. FCT: PTDC/CCI-COM/105100/2008), foram realizados estudos aprofundados
sobre a Lusofonia, como “reinvenção de uma comunidade geocultural na sociedade em rede”.
Ver, por exemplo: Martins et alii (2014), Interfaces da Lusofonia; Macedo (2013), Da diversidade do
mundo ao mundo diverso da lusofonia; Macedo et alii (2013) “Researching identity narratives in
cyberspace: some methodological challenges”; Macedo, Martins & Cabecinhas (2011), “Blogando a
Lusofonia: Experiências em Três Países de Língua Oficial Portuguesa”; Macedo, Martins, Macedo
(2010), “‘Por Mares Nunca Dantes Navegados’” – Contributos para uma Cartografia do Ciberes-
paço Lusófono”. Ver também: Martins, Cabecinhas & Macedo (2010), Anuário Internacional de
Comunicação Lusófona. Vol. Lusofonia e Sociedade em Rede; e Martins, Cabecinhas & Macedo
(2011), Anuário Internacional de Comunicação Lusófona. Vol. Lusofonia e Cultura-mundo.

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

sistemas de signos não verbais. E coisa bem diferente é a leitura a que se refere o
transmedia storytelling, ou cross-media, que significa a expansão da narrativa,
por meio de vários média (Sousa, Martins & Zagalo, 2016) 10.
Os média digitais significam, ainda, a interatividade, e não propriamente a
interação, ou seja, significam práticas sociais, que não remetem apenas para a
liberdade e a autonomia dos atores sociais; remetem, igualmente, para os cons-
trangimentos da ação social, a qual ocorre, sempre, como referi, em condições
específicas de tempo, espaço e interlocução.
E são os atuais dispositivos eletrónicos de programação e de design, numa
linha que é tanto de continuidade como de rompimento com a máquina foto-
gráfica, que generalizam o processo de produção de imagens como práticas de
“simulacro e simulação” (Baudrillard, 1981), entre a troca lúdica e a partilha diária
de imagens digitais, nos ambientes reais e virtuais dos nossos telemóveis e com-
putadores, de idêntica forma à que ocorreu, no passado, com os postais ilustrados
(Correia, 2013; e Martins & Correia, 2014).
Os média digitais significam, então, novas práticas de produção do sentido, ou
seja, novas práticas da linguagem e da comunicação: por um lado, textualidades
multimodais (“hipertextualidades”); e por outro, formas de comunicação digital
interativa. Entretanto, nesta travessia, atribuímo-nos uma “pele tecnológica”
(Kerckhove, 1997), uma pele para a afeção, o que quer dizer, uma pele para o
ser-e-estar-com-outros.
Ao adotar o imaginário dos ecrãs, a circum-navegação eletrónica, concretiza
o paradigma da cibercultura como uma travessia em direção à nova América de
um novo arquivo cultural, que reativa o antigo, o arcaico, enfim o mitológico
(Jenkins, 2008) e, ao mesmo tempo, reconfigura em permanência a comunidade,
pelo desejo de ser-e-estar-com-outros 11. E é a história, mas a história toda, tanto

10 Carlos Alberto Scolari (2011, p. 128) utiliza como sinónimos os conceitos de transmedia storytelling
e cross-media, o último dos quais, reconhece, é todavia mais usado nos meios profissionais do que
nos meios académicos. O termo transmedia storytelling foi cunhado por Henry Jenkins (2003).
François Jost (2011, p. 95) prefere falar de “luta intermídia”, em vez de utilizar o termo convergência.
Ver, também, sobre transmedia storytelling, Christian Salmon (2007), que propõe um ponto de
vista crítico sobre a storytelling: “uma máquina de fabricar histórias e de formatar espíritos”.
11 Desenvolvi a ideia de cibercultura como circum-navegação tecnológica, noutros textos. Ver, neste
sentido: Maffesoli & Martins (2011), “Ciberculturas”, pp. 43-44; Martins (1998 b), “A biblioteca
de Babel e a árvore de conhecimento”; Martins (2011 a), Crise no castelo da cultura. Das estrelas
para os ecrãs, pp. 18-19; Martins (2011/2012), “Média digitais – hibridez, interatividade, multi-
modalidade”, pp. 52-54; Martins (2015 c), Média digitais e lusofonia, pp. 37-43.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

a da colonização como a do pós-colonialismo, que é, hoje, recapitulada neste


desejo de comunidade.
Portanto, a travessia que os investigadores de Ciências Sociais e Humanas dos
espaços, lusófono e ibero-americano, falantes do português e do espanhol, estão
convocados a fazer é a de uma mobilização tecnológica para o interconhecimento,
o diálogo e a cooperação. É, também, a da sua reunião nas zonas geoestratégicas e
culturais alargadas, em que consistem os espaços lusófono e ibero-americano, no
respeito pelas diferenças e na dignificação das línguas nacionais, de modo a afir-
marem-se diante da globalização hegemónica, de caráter financeiro e especulativo,
falado a uma só língua, o inglês. É, finalmente, a travessia do apego ao valor do hete-
rogéneo, à sedução de uma rede tecida de fios de muitas cores e texturas, uma rede
de povos e países diversos, capazes de resistir à sua redução a uma unidade artificial.

3. As literacias para a travessia tecnológica


transnacional e transcontinental

As identidades transnacionais e transcontinentais, lusófonas e ibero-americanas,


não podem furtar-se, pois, à mutação digital que hoje atravessa a sociedade con-
temporânea e faz convergir tecnologias da informação, média, artes e culturas,
ao mesmo tempo que altera comportamentos, atitudes e práticas (Jenkins, 2008).
A circum-navegação do ciberespaço tem como propósito fazer a travessia
de um território feito de atmosferas e paisagens tecnológicas, em busca da nova
América de um novo arquivo cultural e articula-se com a exigência da utilização de
três tipos de literacias complementares: uma literacia dos média, que nos habilite
para a crítica dos conteúdos; uma literacia informativa, que torne possível avaliar
documentos e dados online; e ainda, uma literacia computacional, que permita
navegar e criar conteúdos online. Espera-se que a combinação destes três tipos
de competências mediáticas, na era da técnica, incremente a participação cívica
e a ação criativa, tanto online como offline.
A literacia digital precisa, com efeito, de se tornar nuclear na cibercultura, de
modo a poder ser criativa na cultura. Deste modo, a cibercultura não pode deixar
de interrogar tanto a criação cultural e artística, nas atuais condições tecnológicas,
como a cidadania e a inclusão social (Kittler, 2011). Não pode deixar de interrogar,
também, as políticas de acesso integral a bases de dados digitais, museus virtuais
e repositórios de conhecimento em acesso aberto, que hoje enformam as práticas

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

dos agentes culturais. Em síntese, a cibercultura não pode deixar de interrogar


estes novos contextos de significação. Trata-se não apenas de interrogar o acesso
a tecnologias e a ferramentas tecnológicas, como também de interrogar o acesso
à participação cívica e à criação cultural e artística, em ambientes tecnológicos.
Na travessia das novas atmosferas e paisagens tecnológicas, constituem,
hoje, desafios da circum-navegação cibercultural as práticas dos profissionais do
novo contexto digital, particularmente web designers, curadores online, gestores
de museus virtuais, ativistas da web, youtubers, assim como constituem outros
tantos desafios a proteção e a segurança dos conteúdos culturais digitais, e ainda,
a comunicação desses conteúdos. Estes profissionais intermédios, com funções
híbridas, que articulam o trabalho teórico dos académicos, com o trabalho prático
de utilizadores da web, são uma espécie de cosmógrafos da travessia tecnológica.
Mas todos nós estamos convocados a participar nesta travessia. Todos somos sol-
dados, marinheiros, mercadores e viajantes, nesta circum-navegação, recolhendo
e produzindo, ao mesmo tempo, todo o tipo de informação.
Os cosmógrafos da travessia marítima eram indivíduos com formação uni-
versitária, que tinham que trabalhar com pilotos, marinheiros e com construtores
de navios e de instrumentos náuticos. E os cosmógrafos da travessia tecnológica
são os profissionais do novo contexto digital, que têm que trabalhar, não apenas
com os engenheiros informáticos, os engenheiros de computação, os engenheiros
de sistemas de informação, mas também com os cidadãos, organizados em redes
sociotécnicas. Do que se trata, nos territórios lusófonos e ibero-americanos, que
resultam da circum-navegação tecnológica é, pois, da assunção de uma cultura
em “status nascendi” (Maffesoli & Martins, 2011, pp. 41-43), uma cultura que
compreende novas ferramentas, de cientistas, artistas e criadores, e que perpassa
arquivos digitais, museus virtuais, gravações-vídeo e filmes.
Podemos, igualmente, assinalar, entre outras questões centrais desta cir-
cum-navegação cibercultural, a formação de novos públicos para as culturas e as
artes, assim como as políticas específicas para os repositórios digitais, que têm
em vista, sempre, o acesso aberto ao conhecimento.
E não podemos esquecer, neste contexto de circum-navegação tecnológica, os
ambientes patrimoniais em rede, cujos acervos são em fluxo. Quer isto dizer, por
exemplo, que peças, obras e narrativas, tanto culturais como artísticas, podem ser
transferidas de um meio de comunicação para outro (transmedia remix) (Sousa,
Zagalo & Martins, 2012), e mesmo convertidas, mediante licença, em mercadoria,
ou até darem origem a um outro produto.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Finalmente, não podemos perder de vista o facto de que a cultura digital


precisa de estar ancorada em poderosos territórios físicos e em pesadas infraes-
truturas tecnológicas. Porque apenas deste modo é possível criar “territórios
culturais”, que sirvam o desenvolvimento sustentado das comunidades culturais,
artísticas e científicas, lusófonas e ibero-americanas.

4. A ciência como combate linguístico e a descolonização da língua

Ao colocar a questão da investigação de Ciências Sociais e Humanas em espaços


transnacionais e transcontinentais, como o são os espaços, lusófono e ibero-
-americano, trago a debate a questão das línguas de cultura, ciência e comunicação.
Na tradição sociológica francesa de Pierre Bourdieu, a questão linguística já
havia sido colocada como uma questão prática, pelo facto de exprimir interesses
estratégicos e posições de poder dentro de um determinado campo territorial e
político, e por ter em vista assegurar a hegemonia dentro desse campo específico.
Ou seja, o combate das línguas exprime a luta por uma determinada ordenação
simbólica do mundo. Vemo-lo, sobretudo, em Ce que Parler Veut Dire (1982) e em
La Distinction. Critique sociale du jugement (1979).
Interrogando a função social da língua e as suas possibilidades de violência
simbólica, Bourdieu deu-nos instruções úteis em Ce que Parler Veut Dire sobre:
1) a produção e a reprodução da língua legítima; 2) a formação dos preços (sim-
bólicos) e a antecipação dos lucros; 3) a língua autorizada; 4) o poder simbólico;
5) a representação política; e 6) a identidade e a representação 12.
Sintetizando o ponto de vista de Pierre Bourdieu, mas transpondo-o do uso
de uma língua por um indivíduo, para a utilização de uma determinada língua nas
interações entre povos, em espaços geoculturais e estratégicos alargados, podemos
dizer que as línguas podem ser entendidas como o produto da relação entre um
“mercado linguístico” e um “habitus linguístico”. Quando os indivíduos utilizam
determinada língua, num determinado espaço geocultural e estratégico alargado,
fazem uso de recursos acumulados, adaptando-se, todavia, implicitamente, às
exigências próprias do campo político ou mercado das trocas globais.

12 Pierre Bourdieu insiste na ideia de que representar o mundo social é classificá-lo, ou melhor, dividi-
-lo, e também lutar pela di/visão em que nos empenhamos. Neste combate são investidos interesses
simbólicos, sendo que o simbólico exprime relações de força social, ou seja, relações de poder.

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Penso, no entanto, que a tradição pós-colonial, de Franz Fanon (1963, 1986)


a Edward Said (1994), e de Stuart Hall (1997) a Gayatri Spivak (1987) e a Homi
Bhabha (1990, 1994), nos permite hoje ser mais ambiciosos na consideração das
línguas de cultura, ciência e comunicação, em espaços transnacionais alargados 13.
A tradição pós-colonial permite-nos encarar aquilo a que chamamos globalização
como um movimento de mobilização tecnológica, de bens, corpos e almas, para o
mercado, e também como um movimento de homogeneização cultural, que uma
única língua, o inglês, ajuda a sedimentar, devendo nós, no entanto, interrogar o
ponto cego desta cinética, enfim, aquilo que ela silencia: as culturas subalternas
e dominadas, seja de países ex-colonizados, seja de países outrora colonizadores,
hoje periféricos, as minorias, as periferias, as diásporas, os migrantes, os refugia-
dos, todos os excluídos, e portanto as suas culturas e línguas 14.
Por esta razão, ao interrogarmos, hoje, o sentido do humano, já não podemos
deixar de pensar na assombração que constituiu no Ocidente a metafísica da uni-
dade, da tradição greco-romana, apoiada no logos (como instância soberana de
decisão), à tradição judaico-cristã, apoiada no sun/bolé (uma imagem que reúne),
e que fundaram, ambas, o logocentrismo, o etnocentrismo, o imperialismo, o
colonialismo e o produtivismo.
Este movimento de mobilização tecnológica para o mercado revê-se nas metá-
foras de tempo de “longa duração” (Fernand Braudel, 1958), “economia-mundo”
(Immanuel Wallerstein, 1974), “cultura-mundo” (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy,
2008) e “sociedade em rede” (Manuel Castells, 1996) 15.
Ao discutirmos as políticas linguísticas, em termos pós-coloniais, descolo-
nizando-as, mantemo-nos em linha com o mesmo processo de desconstrução,
com que perspetivamos a expansão marítima ocidental, dos séculos XV e XVI.

13 Veja-se, neste sentido, Brito & Martins (2004); Martins (2006); Martins, Sousa & Cabecinhas
(2006, 2007). E também, Martins (2014); e ainda, Comunicação e Sociedade, vol. 26, organizado,
em 2016, por Maria do Carmo Piçarra, Rosa Cabecinhas e Teresa Castro, sobre Imaginários
coloniais: Propaganda, militância e “resistência” no Cinema.
14 Foi por partilhar um entendimento semelhante a este sobre a dinâmica das culturas que os
sociólogos portugueses, Boaventura Sousa Santos e Maria Paula Meneses, publicaram, em 1995,
Epistemologias do Sul. Veja-se, também, sobre este assunto, História Sociopolítica da Língua
Portuguesa, de Carlos Alberto Faraco (2016).
15 A proposta lusófona, que aqui fazemos, de comunidades científicas transnacionais e transcontinen-
tais inscreve-se nas resistências aos processos de homogeneização cultural, de que falava Sahlins
(1993, p. IX), e também no entendimento que Manuela Ivone Cunha (2015, p. 277) tem dos processos
de diferenciação, que respondem à integração mundial. A ambos os autores nos referimos atrás.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Esta desconstrução pós-colonial é tanto mais necessária quanto a circum-na-


vegação tecnológica nos expõe, hoje, aos maiores perigos. Dou como exemplo a
atual tematização do debate sobre a língua, em Portugal, que nalguns casos chega
a assemelhar-se a uma alucinada narrativa messiânica.
Numa entrevista concedida ao site “Inteligência Económica”, em 2012, por
ocasião do lançamento da obra Potencial Económico da Língua Portuguesa, estudo
encomendado pelo Instituto Camões ao Instituto Superior de Ciências do Trabalho
e da Empresa – Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Luís Reto, Reitor
deste Instituto Universitário e coordenador da obra, coloca a questão das línguas
nos seguintes termos: “Esta é a hora do português”; e apontando de imediato a
rota da economia para a língua portuguesa, avisa que a navegação será agora
em direção a um novo arquivo cultural, em que a língua seja “produto” e “valor
económico” e a avaliação da sua importância medida em termos de percentagem
no PIB 16. Lançada, assim, ao mar da sua transformação “numa potência econó-
mica mundial”, língua portuguesa teria como rumo, por um lado, “a comunidade
lusófona”, e por outro, “o valor criado para fora, para uma economia em rede” 17.
A ideia de encarar a própria língua como mercadoria, “como produto” (Reto,
2012 b), como língua de conhecimento e comércio, é uma excelente ilustração do
atual movimento de mobilização tecnológica do mundo para o mercado. Os prin-
cipais capítulos da obra Potencial Económico da Língua Portuguesa têm a seguinte
designação: “Efeitos de rede e valor económico da língua”; “Valor da língua e das
indústrias culturais e criativas em percentagem do PIB”; “Comércio externo e inves-
timento direto estrangeiro (IDE)”; “Fluxos migratórios e turismo” (Reto, 2012 a) 18.
Sem dúvida, uma língua de cultura e de pensamento não pode deixar de ser,
igualmente, uma língua de conhecimento. Mas o conhecimento não pode ter
como unidades de medida, exclusivas, o valor económico-financeiro e o valor
no mercado de emprego 19.

16 Ver, entrevista de Luís Reto ao site “Inteligência Económica”, a 17 de dezembro de 2012 (Reto,
2012 b). Retirado de http://inteligenciaeconomica.com.pt/?s=Lu%C3%ADs+Reto.
17 Ibidem.
18 Do que acabo de escrever nesta secção 4 – “A ciência como combate linguístico e a descolonização
da língua”, fiz uma 1.ª versão no artigo “Ciências da Comunicação e mundo lusófono”, publicado
no Anuário Internacional de Comunicação Lusófona (Martins, 2015/2016, pp. 11-18).
19 Vendo bem, não estamos assim tão longe do pensamento de Eliot Freidson, que entendia as Uni-
versidades como invenções sociais notáveis para apoiar o trabalho que não tem valor comercial
imediato (Freidson, 1986). Embora também seja verdade que é necessário compreender o valor

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Foi sobretudo por considerarem que uma língua de cultura e de pensamento


não pode deixar de ser, igualmente, uma língua de conhecimento, que as comuni-
dades científicas de Ciências da Comunicação dos países lusófonos a fundaram,
em 1998, a Federação Lusófona de Ciências da Comunicação (Lusocom), com os
seguintes objetivos: “Promover o desenvolvimento das Ciências da Comunicação
no espaço geocultural lusófono; Incentivar a cooperação entre os países de língua
portuguesa; Aprofundar a expressão internacional das comunidades de investi-
gadores de língua portuguesa, em termos de produção científica; Patrocinar a
publicação de trabalhos científicos em português” 20.
E com idênticos propósitos, mas estendidos, agora, ao espaço ibero-americano
e à língua espanhola, foi fundada no Funchal, em 2009, a Confederação Ibero-ame-
ricana das Associações Científicas e Académicas de Comunicação (Confibercom) 21.
No entanto, o combate pela conversão das línguas, portuguesa e espanhola,
em línguas de conhecimento e de ciência ainda mal começou. São as políticas
linguísticas dos países lusófonos e ibero-americanos, assim como as políticas de
comunicação científica, que decidem quem tem o poder de definir a realidade
social, assim como o poder de impor essa representação. E tanto as políticas
científicas, como as políticas da comunicação, estão hoje inteiramente nas mãos

económico das universidades, uma realidade que ainda era desconhecida há algumas décadas
(Barr, 2012).
20 Consultar o portal da Federação Lusófona de Ciências da Comunicação (Lusocom). Endereço ele-
trónico: www.lusocom.net. A Lusocom foi constituída, em 1998, na cidade de Aracaju, em Sergipe
(Brasil), tendo como comunidades associadas a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares
da Comunicação (Intercom) e a Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom).
A reunião de constituição da Lusocom contou com observadores angolanos e moçambicanos.
Em 2002, em Maputo (Moçambique), a Lusocom passou a contar, entre as suas associadas, com
a Amescom (Associação Moçambicana de Comunicação) e a Angocom (Associação Angolana
de Comunicação), hoje inativa. Entretanto, em 2004, a Associação Galega de Comunicação
(Agacom) passou a integrar a Lusocom; e a mesma coisa aconteceu, em 2014, com a Associação
Cabo-verdiana de Comunicação (Mediacom); por sua vez, em 2016, tendo sido criada a Acicom
(Associação Moçambicana de Ciências da Informação e da Comunicação), a Lusocom acolheu-
-a no seu seio. Esta federação associativa realizou, até hoje, doze Congressos Científicos: cinco
em Portugal; três no Brasil; dois em África e dois na Galiza. Por outro lado, desde 2003, que a
Lusocom publica o Anuário Internacional de Comunicação Lusófona, seu órgão científico, tendo
a Lusocom/Intercom publicado quatro volumes; a Lusocom/Sopcom/CECS cinco volumes; e a
Lusocom/Agacom quatro volumes.
21 A Confibercom realizou, até hoje, dois Congressos, o primeiro na Universidade de São Paulo, em
2011, e o segundo na Universidade do Minho, em 2014. Realizou também três Fóruns científicos:
em Quito (2012); Porto (2013) e São Paulo (2015). E editou as seguintes publicações: Kunsch &
Melo (2012), Kunsch (2013), Martins & Oliveira (2014).

31

INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 31 08/11/2017 13:12:47


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

dos governos nacionais, tendo as comunidades científicas um papel praticamente


residual (Martins, 2012 b).
Nestas circunstâncias, a experiência que temos do mundo é a da estandardi-
zação do pensamento e do conhecimento. O que se espera em todos estes países
é que os pesquisadores publiquem, principalmente, em inglês e que as citações
sejam tendencialmente feitas, a partir de artigos e livros publicados em inglês.
Em Portugal, para dar um exemplo, os concursos para financiamento de projetos
científicos, assim como os relatórios de progresso e os relatórios finais, são obri-
gatoriamente redigidos em inglês. E os paradigmas científicos seguem a tradição
anglo-saxónica 22.
Neste contexto, as consequências para os interesses das comunidades de
investigação em Ciências Sociais e Humanas, lusófonas e ibero-americanas, são
desastrosos, sobretudo porque as comunidades científicas estão muito longe de
encarar este difícil combate como um combate necessário. Dou como exemplo os
resultados do estudo levado a cabo por Paulo Serra sobre aquilo que ele considera
ser “O (des)conhecimento recíproco dos investigadores ibero-americanos de
Ciências da Comunicação”, publicado na Revista Lusófona de Estudos Culturais
/ Lusophone Journal of Cultural Studies (Serra, 2015/2016, pp. 57-68).
Analisando três revistas portuguesas, três revistas brasileiras e uma espa-
nhola, e fazendo incidir o estudo sobre o regime de citações utilizado, Paulo
Serra concluiu que entre os investigadores do espaço lusófono e ibero-americano
não existe, ainda, nenhum imaginário de comunidade científica lusófona, nem
de comunidade científica ibero-americana 23. Com efeito, os investigadores por-

22 Sobre todas estas questões, veja-se o vol. 3 (2), 2015/2016, da Revista Lusófona de Estudos Cul-
turais / Lusophone Journal of Cultural Studies, consagrado à Ciência e conhecimento: políticas
e discursos (M. L. Martins et alii, Eds., 2015-2016). Disponível em: http://rlec.pt/.
Ver, também, A Gradim & C. Moura (2015) e A. Grandim & R. Morais (2016). Veja-se, ainda, “As
Ciências da Comunicação e o mundo lusófono” (Martins, 2015/2016); “A liberdade académica e
os seus inimigos” (Martins, 2015 b); “Interview with Moisés de Lemos Martins”, in Academics
Responding to Discourses of Crisis in Higher Education and Research (Martins, 2013); “Revistas
científicas de ciências da comunicação em Portugal: da divulgação do conhecimento à afirmação
do Português como língua de pensamento e conhecimento” (Martins, 2012 a); “Política cientí-
fica de comunicação em Portugal: desafios e oportunidades para os doutoramentos (Martins &
Oliveira, 2013); “As Ciências Sociais e a política científica” (Martins, 2008 ); Ensino Superior e
Melancolia (Martins, 2002 c).
23 Corpus do estudo. Portugal: Comunicação e Sociedade (CECS, Univ. Minho), v. 26, 1.º semestre de
2014; Estudos em Comunicação (UBI), n. 16, 1.º semestre de 2014; e Prisma (U. Porto e U. Aveiro), n.
24, 1.º semestre 2014. Brasil: Matrizes (USP), v 8, n. 1, 1.º quadrimestre de 2014; Eco-Pós (UFRJ), v. 17,

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 32 08/11/2017 13:12:47


COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

tugueses, brasileiros e espanhóis são muito pouco citados nos artigos; são-no,
sobretudo, os investigadores anglo-saxónicos. Em Espanha, são citados a 63%; no
Brasil, a 58%; e em Portugal, a 57% (Serra, 2015/2016). Por outro lado, os autores
portugueses praticamente não são citados em Espanha. E é residual a percentagem
dos investigadores portugueses citados no Brasil. Mas, também em Portugal, os
autores espanhóis são citados apenas a 5%. E a razão de os autores brasileiros
serem citados nas revistas portuguesas a 18% apenas se deve ao facto de haver
uma percentagem elevada de investigadores brasileiros como autores de artigos
nas revistas portuguesas, sem paralelo, aliás, com o que se passa nas revistas bra-
sileiras. Com efeito, são brasileiros 35% dos autores nas revistas portuguesas de
Ciências da Comunicação. E é residual a presença de investigadores portugueses
como autores de artigos nas revistas brasileiras.
Vejamos, de seguida, as percentagens nas figuras 1 e 2, de Autores e de
Referências.

Figura 1. Autores (%)

Figura por mim elaborada, a partir de P. Serra (2015/2016). In “O (des)conhecimento recíproco dos
investigadores ibero-americanos de Ciências da Comunicação”, Revista Lusófona de Estudos Culturais
/ Lusophone Journal of Cultural Studies, Braga: CECS, vol. 3, n. 2, pp. 7-17.
Retirado de http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/issue/current/showToc

n. 1, 1.º quadrimestre de 2014; e Contemporânea (UFBA), v. 12, n. 1, 1.º quadrimestre de 2014. Espa-
nha: Comunicación y Sociedad (U. Navarra), v. 27, n. 1, 1º trimestre de 2014. Ver Serra (2015/2016).
Retirado de http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/issue/current/showToc.

33
A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Figura 2. Referências (%)

Figura por mim elaborada, a partir de P. Serra. In “O (des)conhecimento recíproco dos investigadores
ibero-americanos de Ciências da Comunicação”, Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone
Journal of Cultural Studies, Braga: CECS, vol. 3, n. 2, 2015/2016, pp. 7-17.
Retirado de http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/issue/current/showToc

5. Repositórios digitais de acesso aberto do conhecimento e museus virtuais

António Castillo entende que é problemático o desafio que o mundo latino-ame-


ricano tem diante de si para credibilizar e indexar as suas revistas científicas (Cas-
tillo et alii, 2012). Propulsados pelo inglês como língua hegemónica, o processo de
indexação das revistas científicas e o fator de impacto, aliados à necessidade de
“sobreviver na selva académica”, têm conduzido a práticas científicas perversas, que
estão a destruir a integridade da ciência e das universidades (Martins, 2015 b; Nóvoa,
2014). Veja-se, a este propósito, Allen Wihite e Eric Fong (2015), quando denunciam
“a manipulação de citações”; e também, o bibliotecário e ativista Jeffrey Beall (2015),
manifestando-se contra “os editores predatórios”. Na expressão, um tanto hiper-
bólica, de George Monbiot (2011) ao The Guardian, os editores de ciência são “os
capitalistas mais implacáveis no mundo ocidental”. Foi, aliás, o custo exorbitante
do conhecimento, que levou Tim Gowers (2012) a desencadear o movimento de
boicote a revistas, como as da Elsevier, e à adoção de outras formas de publicação.
Tem sentido, neste contexto, a ideia do Conselho Científico para as Ciências
Sociais e as Humanidades da FCT de criação, em Portugal, de um sistema de
avaliação das revistas, nacionais e internacionais, controlado pela comunidade
académica (Costa, 2015).

34
COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Todavia, independentemente de outras considerações, os desafios que, a meu


ver, exigem uma forte determinação da comunidade de investigadores de línguas,
portuguesa e espanhola, derivam do movimento de desconstrução pós-colonial
e estão necessariamente relacionados com o debate sobre as línguas.
Por um lado, estas comunidades têm de encontrar caminhos para o inter-
conhecimento, o diálogo e a cooperação no mundo das línguas, portuguesa e
espanhola. Por outro, apenas a consolidação dos países lusófonos e ibero-ame-
ricanos, como regiões geoestratégicas alargadas, transculturais e transnacionais,
pode resgatá-los do papel marginal que desempenham, hoje em dia, no campo
científico. E se é um facto que as comunidades lusófonas e ibero-americanas têm
de enfrentar um gigantesco desafio para se fazerem respeitar nas suas distintas
identidades, não é menor o combate que têm que travar, para estabelecerem
um estatuto digno para as línguas nacionais. Com efeito, é também uma meta
crucial, pela qual os países de língua, portuguesa e espanhola, precisam de lutar,
legitimarem-se como regiões idiossincráticas, dentro da globalização hegemónica,
financeira e especulativa, moldada pela língua inglesa.
Em síntese, é um facto que as comunidades científicas, lusófonas e ibero-
-americanas, precisam de resistir à ideia de uma unidade artificial que ameace
a capacidade que uma língua singular possa ter para produzir conhecimento,
ao mesmo tempo, singular, original e relevante. Mas o combate pela assunção
da diversidade e da diferença não pode deixar de ser feito no pensamento e no
conhecimento, do mesmo modo que tem que ser travado nas culturas e nas artes.
É este o contexto em que, a meu ver, deve ser colocada a atual rede de repo-
sitórios eletrónicos e de museus virtuais, em constituição por todo o mundo
académico, com o intuito de disponibilizarem, em acesso aberto, conhecimento
(científico, cultural e artístico), assim como dados de investigação.

5.1. Lusofonia, Internet e comunicação da ciência

A Internet não tem penetrado, de modo homogéneo, as populações dos países dos
vários continentes. Pelo facto de ela propulsar a época e nos mobilizar a todos, a
Internet penetra de modo mais abrangente as populações dos países mais ricos.
Deste modo, as possibilidades abertas pela Internet para a divulgação do conhe-
cimento, assim como para o interconhecimento e a cooperação entre os povos,
não favorece por igual todos os povos, nem todas as línguas. Dou o exemplo do
espaço lusófono. A penetração da Internet na população dos países que falam

35

INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 35 08/11/2017 13:12:47


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

o português como língua oficial é de 32,8%. Mas a penetração no conjunto da


população mundial ascende a 49,2%.
E se olharmos, continente a continente, é a seguinte a penetração da Internet
na população lusófona, por relação à sua penetração no conjunto da população
mundial:

• Em África, a penetração da Internet nos países lusófonos é de 19,9%,


quando a média de penetração no continente africano é de 26,9%;
• Na Europa, a penetração da Internet em Portugal é de 67,6%, quando a
média de penetração no continente europeu é de 77,7%;
• Na Ásia, a penetração da Internet em Timor Leste é de 27,5%, quando a
média de penetração no continente asiático é de 44,7%;)
• Na América do Sul, a penetração da Internet no Brasil é de 67,5%, sendo
a média de penetração na América do Sul de 66,7%.

Com efeito, o Brasil tem uma força de penetração da Internet mais forte que
o continente sul-americano. E a mesma coisa acontece com Cabo Verde, relati-
vamente ao continente africano. Cabo Verde tem uma penetração da Internet de
42%, quando a média do continente africano se cifra em 26,9%.
Existe, também, uma grande discrepância de penetração da Internet entre as
populações dos diferentes países lusófonos:

• Angola – 22,3%
• Cabo Verde – 42%
• Guiné-Bissau – 4,3%
• Moçambique – 6,2%
• São Tomé e Príncipe – 25%
• Brasil – 67,5%
• Portugal – 67,6%
• Timor-Leste – 27,5%
Resultados por mim elaborados, a partir da Internet World Stats, 2017*
* Retirado de http://www.internetworldstats.com/.

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 36 08/11/2017 13:12:47


COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Assim, quando falamos de comunicação da ciência nos países lusófonos, utili-


zando as tecnologias da informação como recurso para o combate à subordinação
cultural e científica, temos que ter presente que também a este nível as condições
de partida colocam em desvantagem o espaço lusófono e a língua portuguesa.
Essa circunstância não pode impedir-nos, todavia, de fazer o combate necessário,
de organização e mobilização, das comunidades científicas, culturais e artísticas
deste espaço transnacional e transcontinental.

5.2. Os repositórios digitais de conhecimento

Foi em 2002 que ocorreu a Budapest Open Access Initiative, uma magna reunião,
que reuniu responsáveis de universidades e de outras instituições de investigação,
além de investigadores, para responder ao desafio da disponibilização online do
conhecimento, em acesso aberto. Por “Acesso Aberto” à publicação científica
com revisão por pares, “queremos dizer a sua disponibilização livre na Internet,
de modo a permitir que qualquer utilizador possa ler, fazer download, copiar,
distribuir, imprimir, pesquisar ou referenciar os textos integrais desses artigos,
recolhê-los para indexação, introduzi-los como dados em software, ou usá-los
para outro qualquer fim legal, sem barreiras financeiras, legais ou técnicas, que
não sejam inseparáveis do próprio acesso à Internet” 24.
Logo em 2003, a Universidade do Minho criou o Repositorium, uma plata-
forma digital de acesso aberto do conhecimento, com o objetivo de promover
a divulgação online da produção científica dos seus docentes e investigadores,
assim como dos seus estudantes de pós-graduação (dissertações de mestrado e
teses de doutoramento) 25.
Entretanto, a Agência para a Sociedade de Conhecimento (UMIC) concebeu o
projeto de criação do Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP).
Este projeto foi concretizado pela Fundação para a Computação Científica Nacio-
nal (FCCN), com o apoio de uma equipa da Universidade do Minho, no segundo
semestre de 2008.
Mais recentemente, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) definiu
um conjunto alargado de Políticas de Acesso Aberto. Essas políticas entraram em
vigor a 5 de maio de 2014 e compreendem “o acesso livre e online a publicações

24 Retirado de http://www.budapestopenaccessinitiative.org/boai-10-recommendations.
25 Ver Repositorium da Universidade do Minho: https://repositorium.sdum.uminho.pt/.

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 37 08/11/2017 13:12:47


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sujeitas a revisão por pares e a dados resultantes de investigação científica finan-


ciada pela FCT” 26.
Todas as Universidades portuguesas, públicas e privadas, assim como os Ins-
titutos Superiores Politécnicos, têm, hoje, um repositório científico digital, de um
modo geral com teses de doutoramento e mestrado. Ainda não está generalizada,
da mesma maneira, a disponibilização das publicações científicas dos docentes
e investigadores nos repositórios digitais, embora a situação esteja em processo
de rápida transformação.
Em junho de 2017, a Universidade do Minho detinha o principal repositório
digital português (figura 1). Seguiam-se os repositórios digitais da Universidade
de Lisboa, da Universidade do Porto e da Universidade Nova de Lisboa (Ibidem).
Por sua vez, todos os repositórios de Universidades e de Politécnicos estão
no RCAAP (figura 2). Assim como também lá se encontram muitas dezenas de
revistas científicas, entre as quais: a revista Comunicação e Sociedade, e a Revista
Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies (figura 3).
Entretanto, foi criado o Repositório Europeu de Acesso Aberto para a investi-
gação (OpenAIRE) 27 e a Confederação Mundial de Repositórios de Acesso Aberto
(COAR) 28, ambos com a missão de promover uma maior visibilidade e aplicação
dos resultados de investigação científica (publicações e dados de investigação),
através de redes globais de repositórios de acesso aberto.
Apresento no gráfico 1 o mapa do OpenAIRE, que dá conta do número de
publicações financiadas por projetos de investigação, já executados, ou em curso,
nas unidades de investigação da Universidade do Minho. O Centro de Estudos de

26 A política sobre Acesso Aberto a publicações científicas, resultantes de investigação financiada


pela FCT, determina que as publicações de resultados científicos, que sejam sujeitas a revisão
por pares ou outra forma de revisão científica, “devem ser depositadas num dos repositórios
em acesso aberto do RCAAP logo que possível, de preferência por altura da aceitação da
publicação”. Esta política “aplica-se a artigos em revistas científicas, atas de conferências,
posters, livros e capítulos de livros, monografias e teses de Mestrado e de Doutoramento”.
Por sua vez, o financiamento da FCT “engloba projetos de I&D, bolsas e contratos de emprego
científico”. Retirado do site da FCT, a 13 de agosto de 2017: https://www.fct.pt/dsi/eciencia/
index.phtml.pt.
27 Sobre o OpenAIRE, veja-se Pedro Príncipe (2015), “OpenAIRE e comunicação da ciência: a
infraestrutura Open Access para a investigação na Europa”.
28 A COAR é uma associação mundial para a disponibilização online do conhecimento. Junta mais
de cem universidades, organismos governamentais e outras instituições de trinta e seis países,
incluindo o Banco Mundial, a Organização Mundial de Saúde e a Microsoft Research.

38

INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 38 08/11/2017 13:12:47


COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Comunicação e Sociedade (CECS) é, em setembro de 2017, a unidade de investiga-


ção com mais publicações realizadas, no quadro de projetos financiados.

Figura 1. Ranking Web of Repositories (junho de 2017) Figu

Retirado de http://repositories.webometrics.info/

39
A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Figura 2. RCAAP – Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP)

Retirado de https://www.rcaap.pt/, em abril de 2017.

Figura 3. Comunicação e Sociedade e Estudos Lusófonos de Estudos Culturais / Luso-


phone Journal of Cultural Studies, revistas do CECS, no RCAAP.

Retirado de https://www.rcaap.pt/

40
COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Gráfico 1. Projetos com mais publicações

306

174

157

153

85

77

54

53

44

40

Retirado do site do site do OpenAIRE, https://www.openaire.eu, a 1 de setembro de 2017.

5.3. O repositório de acesso aberto do conhecimento


do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS),
da Universidade do Minho

O Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) tem, em setembro de


2017, 78 investigadores doutorados e um número aproximadamente equivalente
de doutorandos, além de duas dezenas de mestrandos, repartidos por três linhas
de investigação: Média e Jornalismo; Estudos Culturais; e Comunicação, Organi-
zações e Dinâmicas Sociais 29.
A comunidade científica que o CECS constitui no Repositorium da Univer-
sidade do Minho, tinha online, a 21 de junho de 2017, 2252 documentos, a que
correspondiam mais de 780 mil downloads, de todos os países do mundo (figura 4).

29 Retirado do site do CECS, www.cecs.uminho.pt, a 15 de setembro de 2017.

41
A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Entre as principais categorias de documentos, que podemos repertoriar,


assinalamos: teses de doutoramento (91 teses, que correspondem a 4% do total);
dissertações de mestrado (370 dissertações, que correspondem a 16% do total);
livros e capítulos de livros (617 livros e capítulos de livros, que correspondem a
26% do total); artigos publicados em revistas internacionais e artigos publica-
dos em revistas nacionais (270 artigos na primeira categoria e 335 na segunda,
que correspondem a 25% do total). Veja-se o “gráfico 2: tipos de documentos
depositados”.
Tendo por base exclusiva mil publicações do CECS, precisamente aquelas
que contabilizam mais downloads, traçámos um perfil identitário desta uni-
dade de investigação, no que diz respeito à sua missão e opções de pesquisa,
e também ao impacto da sua produção científica. O volume de downloads das
publicações permitiu estabelecer as seguintes áreas temáticas de investigação
principais: Identidades, Narrativas e Memórias; Comunicação Estratégica;
Sociologia da Educação e Literacia dos Média; Estudos de Jornalismo; Comu-
nicação Digital; Estudos de Género; Estudos sobre o Envelhecimento; Políticas
de Comunicação; Semiótica Social e Análise do Discurso; Comunicação Visual;
Comunicação de Ciência; e Políticas Científicas e Tecnológicas (veja-se, neste
sentido, o gráfico 3).
Embora a língua inglesa se tenha constituído como língua hegemónica
para a produção científica indexada e com fator de impacto, o CECS, avaliado
como “Excelente” nas duas últimas avaliações da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT), em 2008 e 2014, tem a maior fatia da sua produção científica
em português (76,51%). Apenas 18,69% da sua produção é em língua inglesa,
sendo ainda utilizadas outras línguas, embora em percentagens reduzidas, de
que são de salientar, todavia, 3% em língua francesa e 1,5% em língua espa-
nhola (gráfico 4).
Passando para a análise da distribuição geográfica dos downloads, Portugal
e Brasil respondem por 82% do universo (gráfico 5). Os Estados Unidos desta-
cam-se a seguir, com 4%, o que é, todavia, uma ordem de grandeza sem paralelo
com o que representam Portugal e Brasil, mesmo se os considerarmos separada-
mente (Portugal 57%, Brasil 25%). Não considerando Portugal, os vários países da
Comunidade Europeia representam 6% dos downloads. E o conjunto dos países
lusófonos, descontando Portugal e Brasil, representam apenas 2%, dobrando a
percentagem da China, e também a percentagem dos países ibero-americanos,
ambos com 1%.

42

INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 42 08/11/2017 13:12:49


COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

E se é um facto que ainda é possível falar, com alguma verosimilhança, na


região geocultural, transnacional e transcontinental lusófona, onde Angola e
Moçambique secundam Portugal e Brasil, e entram nos dez primeiros países
com mais downloads de textos científicos da comunidade digital do CECS,
vindo Cabo Verde quase logo a sair, em 13.º lugar, já o mesmo não é possível
dizer de uma suposta comunidade ibero-americana. A distribuição geográfica
dos downloads não permite concluir, de momento, que algum imaginário possa
corresponder à região transcultural e transnacional ibero-americana. Apenas a
Espanha entra na lista dos dez primeiros países com mais downloads, mas nem
por isso em melhor posição que a França, o Reino Unido e a Alemanha. E não é
significativa, deste ponto de vista, a situação dos países da América Central e
do Sul, descontando o Brasil. Nada os distingue do resto dos países do mundo
(gráfico 5 e figuras 5 e 6).

Figura 4. Descrição global da atividade do CECS no RepositoriUM

• Documentos publicados: 2252


• Mais de 780 000 downloads
• Downloads e visualizações em todos os países do mundo
• Documento mais utilizado: 22 177 downloads
• Com mais de 5000 downloads, 26 documentos
• Com mais de 2500 downloads, 57 documentos
• Com mais de 1000 downloads, 182 documentos
• Com mais de 500 downloads, 334 documentos
Última atualização dos dados: junho de 2017

Elaboração pessoal, a partir dos dados fornecidos pelos Serviços de Documentação da Universidade
do Minho (SDUM), sobre a atividade do CECS no Repositorium, a 21 de julho de 2017. Fonte: https://
repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/819

43

INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 43 08/11/2017 13:12:49


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Gráfico 2. Tipos de documento depositados

Elaboração pessoal, a partir de dados dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho


(SDUM), 21 de junho de 2017.

Gráfico 3. Downloads por área de investigação

Identidades, Narrativas e Memórias 244 746

Comunicação Estratégica 120 895


Sociologia da Educação e Literacia dos
Média 86 424
Estudos de Jornalismo 76 164
Comunicação Digital 47 418
Estudos de Género 41 011
Estudos sobre o Envelhecimento 37 633

Políticas de Comunicação 29 726

Semiótica Social e Análise de Discurso 23 403

Comunicação Visual 19 040

Comunicação da Ciência 16 625

Políticas Científicas e Tecnológicas 14 257


0 50  000 100  000 150  000 200  000 250  000 300  000

Elaboração pessoal, a partir de dados dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho


(SDUM), 21 de junho de 2017.

44
COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Gráfico 4. Documentos por língua

33 1 4
68
2
%de
% dedocumentos
documentos por
por
421 língua
língua
Português 76,51%
Português 76,51%
Inglês 18,69%
Inglês 18,69%
Francês 3,02%
Francês 3,02%
Espanhol 1,47%
Espanhol 1,47%
Italiano 0,18%
Italiano 0,18%
Alemão 0,09%
Alemão 0,09%
Polaco 0,04%
Polaco 0,04%
Total 100%
1723 Total 100%

Português Inglês Francês Espanhol


Italiano Alemão Polaco

Elaboração pessoal, a partir de dados dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho


(SDUM), 21 de junho de 2017.

Gráfico 5. Downloads por país

Elaboração pessoal, a partir de dados dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho


(SDUM), 21 de junho de 2017.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Figura 5. Downloads por país

Top 10 países com mais downloads


Portugal 440 540,00
Brasil 193 947,00
EUA 33 916,50
França 12 883,60
China 11 084,90
Angola 8226,80
Reino Unido 7455,80
Moçambique 7064,30
Alemanha 6228,30
Espanha 4850,50

Elaboração pessoal, a partir de dados dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho


(SDUM), 21 de junho de 2017.

Figura 6. Downloads por países lusófonos e ibero-americanos

País/enquadramento Downloads %
Portugal 440 540,00 68
Brasil 193 947,00 30
Outros países lusófonos 10 622,60 2
Outros países ibero-americanos 6320,10 1
Total 651 429,70 100

Elaboração pessoal, a partir de dados dos Serviços de Documentação da Universidade do Minho (SDUM).

5.4. Museu Virtual da Lusofonia – Plataforma de Ciência, Ensino, Cultura


e Artes, nas Ciências Sociais e Humanas

O Museu Virtual da Lusofonia é uma plataforma de cooperação académica em


Ciências Sociais e Humanas, vinculada, sobretudo, aos estudos culturais, à comu-
nicação da ciência, ao ensino pós-graduado, e às artes, no espaço dos países
de língua portuguesa e das suas diásporas, em curso no Centro de Estudos da

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. Estende-se, também, à


Galiza, a Goa e à Região Autónoma de Macau 30.
É seu desiderato cooperativo uma circum-navegação, transnacional e trans-
continental, em termos científicos, pedagógicos, culturais e artísticos, que per-
mita desenvolver literacias, que promovam a cultura da diversidade e do diálogo
intercultural, nos países e regiões de língua portuguesa, assim como das suas
diásporas. É também objetivo do Museu Virtual da Lusofonia a constituição de
bases de conhecimento em Ciências Sociais e Humanas, à escala lusófona, que
possam representar, não apenas uma importante afirmação científica em língua
portuguesa, mas que reúnam, também, um importante acervo cultural e artístico,
que permita compreender a lógica das interdependências, do ponto de vista da
comunicação intercultural. Ou seja, inspirando-nos em Tzvetan Todorov (1982),
já por nós convocado, procurar-se-á com este acervo cultural e artístico esclarecer
os juízos de valor que temos sobre o outro, assim como os estereótipos com que
os enquadramos. Tratar-se-á de esclarecer, também, as práticas concretas de
assimilação, submissão ou indiferença, relativamente ao outro, assim como de
contrariar a “metafísica da unidade”, que possa estar presente na ideia de diálogo
intercultural, se porventura desconhecer os processos sociais de segregação,
dominação e tomada de poder.
O Museu Virtual da Lusofonia reúne, num esforço comum, centros de inves-
tigação e universidades, com projetos de investigação e de ensino pós-graduado,
na área das Ciências Sociais e Humanas. Abre-se à cooperação com entidades
públicas, associações culturais e artísticas, e empresas ligadas à comunicação
social, a atividades editoriais, e à produção de conteúdos digitais e de software.
No seu conjunto, todas as organizações abrangidas por esta plataforma, cen-
tros de investigação, universidades, entidades públicas, associações e empresas,
manifestam o interesse pela construção e pelo aprofundamento do sentido de
uma comunidade lusófona.
Este Museu virtual inscreve-se na tradição dos estudos pós-coloniais, com-
preendendo as narrativas lusófonas como construção, a várias vozes, de uma
comunidade geocultural, transnacional e transcontinental. Concebe, por outro
lado, as políticas da língua e da comunicação como um combate simbólico pela
afirmação de uma comunidade plural, na diversidade de usuários que têm o por-
tuguês como língua de referência. Referimo-nos, não apenas aos usuários que têm

30 Site do Museu Virtual da Lusofonia: www.museuvirtualdalusofonia.com.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

o português como língua de expressão oficial, mas também de língua necessária.


Pensamos, pois, nas comunidades em que o usuário é falante de português como
língua materna (PLM), e também, de L2 (língua segunda), e ainda nas situações de
PLE (português como língua estrangeira), PLA (português como língua adicional),
PLAc (português como língua de acolhimento), e PH (Português como língua de
Herança). Visamos, com efeito, a complexidade do movimento de interpenetração
das culturas, o qual, na interação entre povos, tanto traduz relações de encontro,
assimilação e dominação, como compreende, em gradações diversas, relações
colonialistas, neocolonialistas e pós-colonialistas.
Como já o referi, a circum-navegação assinala, classicamente, a experiên-
cia da travessia de oceanos e a ultrapassagem do limite estabelecido, de mares,
terras e conhecimentos. Pois bem, o Museu Virtual da Lusofonia toma-a como
uma metáfora para caracterizar a (a)ventura lusófona, não apenas da cultura da
diversidade e do diálogo intercultural, mas também da ciência produzida em
português, fazendo uma circum-navegação tecnológica, através de sites, portais,
redes sociais, repositórios e arquivos digitais, e ainda, museus virtuais, na con-
vicção de que uma grande língua de culturas e de pensamento não pode deixar
de ser, igualmente, uma grande língua de conhecimento, científico e humano.
É propósito do Museu Virtual da Lusofonia constituir-se como um museu da
Web, com presença nos atuais repositórios nacionais dos países lusófonos: RCAAP
(Portugal); OASIS.Br (Brasil); SABER (Moçambique); Portal do Conhecimento de
Cabo Verde; e Repositório da Universidade Nacional de Timor Loro’Sae (Univer-
sidade Nacional de Timor-Leste).
A organização do Museu espraiar-se-á por muitas dimensões. Entre elas,
gostaria de salientar as seguintes:

1. Um arquivo documental, ou base de dados, organizado por categorias,


de género, tema e país ou região, e que compreenda narrativas (crónicas
e entrevistas), materiais sonoros e pequenos vídeos, relatórios finais de
projetos de investigação, programas de cursos de mestrado e doutora-
mento, assim como revistas científicas;
2. Uma secção informativa, que assinale o lançamento de livros, a inaugu-
ração de exposições, filmes em estreia, a defesa de teses de mestrado e
doutoramento, e também projetos de investigação em execução;
3. Uma biblioteca, com teses de doutoramento e mestrado, além de publi-
cações científicas selecionadas: livros, capítulos de livros e artigos;

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COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

4. Uma Filmoteca, com uma curadoria de filmes relevantes, de todo o espaço


lusófono;
5. Uma Fonoteca, com uma curadoria de festivais de música selecionados,
com a identificação dos promotores, das bandas de música, dos discos e
cantores;
6. Glossários de Língua Portuguesa;
7. Salas de exposição, particularmente de fotografia, postais ilustrados,
artes plásticas, filmes e outros materiais audiovisuais.

O Museu disporá, também, de um Calendário, em que será feito o destaque


dos eventos científicos anuais mais relevantes, designadamente, os Congressos
da Sopcom, da Intercom, da Agacom, da Mediacom, da Associação Moçambicana
de Ciências da Comunicação e Informação, e da Federação Lusófona de Ciências
da Comunicação.
Por outro lado, um Mapa interativo, com a identificação dos países do espaço
lusófono, incluindo as regiões da Galiza e de Goa, e também a Região Autónoma
de Macau, remeterá para as equipas que nos vários países produzem materiais
para o Museu, fazendo referência aos projetos de cooperação transnacional, à
mobilidade de docentes e de alunos de pós-graduação – estágios de doutoramento,
doutoramentos sanduíche e pós-doutoramentos.
A dinâmica do Museu será assegurada por uma rede alargada de universida-
des lusófonas, assim como de associações culturais e artísticas, além de redes de
investigação e ciência, em Estudos Culturais e Ciências da Comunicação. Além de
contar com o apoio estratégico de um conjunto de entidades públicas, o Museu
Virtual da Lusofonia estará conectado, ainda, com uma rede de empresas, editorias
umas, do setor da comunicação social outras, e também dos setores de software
e de produção de conteúdos.
Finalmente, o Museu Virtual da Lusofonia articular-se-á com uma rede de
escolas, ao nível do ensino básico e secundário, em cada país da rede lusófona,
desenvolvendo literacias que promovam uma cultura de diversidade e a comu-
nicação intercultural.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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55

INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 55 08/11/2017 13:12:49


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 56 08/11/2017 13:12:49


COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA, ACESSO ABERTO DO CONHECIMENTO E REPOSITÓRIOS DIGITAIS

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handle.net/1822/38461.
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Sociedade, 22, pp. 167-183. Disponível em: http://revistacomsoc.pt/index.php/comsoc/
article/view/1280.
Sousa, M.N.; Martins, M. L. & Zagalo, N. (2016). Transmedia storytelling: The roles and
stakes of the different participants in the process of a convergent story, in divergent
media and artefacts (2016). In Lugmayr, A. & Dal Zotto, C. (Eds.), Media convergence
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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 57 08/11/2017 13:12:49


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Endereços eletrónicos

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS): www.cecs.uminho.pt


Comunicação e Sociedade: www.revistacomsoc.uminho.pt
Comunidade do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) no Repositorium
da Universidade do Minho: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/819
Federação Lusófona de Ciências da Comunicação (Lusocom): www.lusocom.net
Internet World Stats, 2017: http://www.internetworldstats.com/
Museu Virtual da Lusofonia: www.museuvirtualdalusofonia.com
“Políticas de Acesso Aberto da FCT”. Retirado do site da FCT: https://www.fct.pt/dsi/
eciencia/index.phtml.pt
Ranking Web of Repositories (junho de 2017): http://repositories.webometrics.info/
Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal (RCAAP): https://www.rcaap.pt/
Repositorium da Universidade do Minho: https://repositorium.sdum.uminho.pt/
Repositório Europeu de Acesso Aberto (OpenAIRE): https://www.openaire.eu
Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies: www.rlec.pt
Site de Estudos Culturais da Universidade do Minho: http://www.estudosculturais.pt/

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INTERNACIONALIZAÇÃO, DESAFIOS, DELIMITAÇÕES
E EFEITOS PERVERSOS
José Manuel Paquete de Oliveira*

Resumo
A condição de cidadãos do espaço ibero-americano deve servir de suficiente motivação
para nos valermos perante o mundo. Pleno de contradições, negações, é certo, mas no
quadro de permanentes reivindicações de especificidade cultural e linguística. Tal desafio
passará naturalmente pelo cumprimento da internacionalização de instituições, saberes,
de investigadores, enfim, de uma cultura. Parto por isso convencido de que a interna-
cionalização não pode resultar do tradicional axioma de que a ciência não tem pátria. A
abertura à cultura exterior resultará, portanto, do intercâmbio de estudantes e docentes,
da disponibilização de bases de dados e fomento de publicações e ainda da integração de
equipas de investigadores na contínua resposta a desafios comunicativos e sociais numa
escala local e regional.
Para cumprir este importante desafio, será de reforçar o estádio de maturidade que corres-
ponde à afirmação do trabalho feito pelos nossos centros de investigação, pelas nossas uni-
versidades, associações e unidades de pesquisa, que são permanentemente «atacados» pelas
lógicas economicistas, da escassez de fontes de financiamento para a investigação, eixos
determinantes para ao desenvolvimento deste contexto que reúne cerca de 329 milhões
de língua espanhola, a segunda falada no mundo, e de 250 milhões de língua portuguesa.

Palavras-chave: internacionalização; delimitações; efeitos perversos; lusofonia; investi-


gação; ensino

* Professor Emérito do ISCTE/IUL, doutorou-se em Sociologia, na especialidade de Sociologia da


Cultura e da Comunicação, no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, em 1989. Presidente da
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom), entre 2001 e 2005, foi também
Presidente da Federação Lusófona de Ciências da Comunicação (Lusocom), de 2002 a 2006.
No quadro da investigação que desenvolveu, estudou, entre outros assuntos, as representações
que os média fazem do crime e da justiça, e também as problemáticas associadas à regulação
dos órgãos de comunicação social. Faleceu em 2016, quando exercia as funções de Provedor do
Leitor do jornal Público e de Presidente do Conselho Geral da Universidade da Beira Interior.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Os desafios da internacionalização do conhecimento são a principal razão de ser


da Confederação Ibero-americana das Associações Científicas e Académicas de
Comunicação (Confibercom). De minha lavra, e para esta primeira reflexão, juntei
uma outra configuração: “Desafios, Delimitações e Efeitos Perversos”.
Primeira condição para nos internacionalizarmos: afirmar, procurar e aceitar
a alteridade. Não nos procurarmos a nós próprios, mas aos outros. Os outros de
cada país, de cada região, de cada cultura, de cada património diferenciado.
Segunda condição, termos a consciência e a convicção de quem somos e do
que somos. Não são só os outros que nem sempre reconhecem ou consagram a
qualidade, a força daquilo que somos. Somos nós próprios – os ibero-americanos
– que nos consciencializamos e atuamos, na sequência efetiva da potencial força
que podemos fazer valer no mundo – mundo esse a viver num emaranhado de con-
tradições, de negações, de bússolas perdidas para enfrentar um futuro diferente.

Quem somos e o que somos?

Geograficamente, se juntarmos os 19 países que se espalham pelo Norte, Centro


e Sul, da América Latina, mais os dois países que constituem a Península Ibérica,
Espanha e Portugal, formamos um superfície territorial de cerca de 12 milhões de
km quadrados, e ainda com esse enorme Brasil, de quase 8 milhões e 500 mil km
quadrados, o que perfaz uma superfície de cerca de 20 milhões (km quadrados),
o que representa face aos 148,9 milhões de quilómetros quadrados da superfície
terrestre do nosso planeta, uma quota de 13,43%. Desfrutamos da mais díspar e
original orografia, da mais rica flora, da mais esfusiante diferenciação climática, e
isto sem redimensionarmos a quase infinita extensão oceânica em que os nossos
países estão mergulhados. Se somarmos a população habitante dos nossos países,
formamos uma população superior a 600 milhões de habitantes.
No plano linguístico, fator determinante para o nosso entendimento, se jun-
tarmos a língua espanhola e a língua portuguesa, somamos uma comunidade
de cerca de 570 milhões de falantes, o que significa que com os 329 milhões de
falantes de língua espanhola, a segunda língua mais falada no mundo, e os cerca
de 250 milhões de falantes de língua portuguesa, ocupamos, de longe, o 2.º lugar,
à frente da língua inglesa, embora esta, por razões que conhecemos, mas a que
vamos esmiuçar adiante, tenha ganho o estatuto da língua mais universal (cf.
Barómetro Calvet, 2011, citado em Reto, 2012).

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INTERNACIONALIZAÇÃO, DESAFIOS, DELIMITAÇÕES E EFEITOS PERVERSOS

Aliás, como diz Manuel Chaparro Escudero (2002, p. 130),

o predomínio do inglês, como língua, cultura e ativo comercial e tecnológico nos


fluxos internacionais informativos, evidencia um peso cultural que não corresponde
à diversidade que mostram os nossos mapas etnográficos, linguísticos, sócio – demo-
gráficos e até políticos. Mas é o desequilíbrio financeiro e tecnológico – militar que,
na realidade, marca as regras do jogo.

Conforme salienta o estudo coordenado por Luís Reto, e já aqui citado, assim
como outros estudos, designadamente aqueles que foram levados a cabo pela
European Federation of National Institutions for Language (EFNIL), “a proximi-
dade entre o espanhol e português, para além de factores de ordem geográfica e
de vizinhança, levou a um significativo desenvolvimento de iniciativas ibero-a-
mericanas, que tendem a fomentar essa intercompreensão” (Reto, 2012, p. 53) 1.
A intercompreensão das línguas, espanhola e portuguesa, é particularmente
cultivada por países como a Argentina e o Brasil. A Argentina foi o primeiro país a
ter o português como língua estrangeira de oferta obrigatória em todo o sistema
(Muller, citado em Reto, 2011, p. 53). E, não obstante a natureza específica do
galaico-português, não deixa de ser histórica a resolução que o Parlamento da
Região espanhola da Galiza tomou ao introduzir o português no sistema de ensino.
Aliás, em Portugal, tem sido crescente o número de alunos que nas opções de
ensino escolhem o espanhol como matéria de estudo. Obviamente, se o principal
desígnio da Confibercom é encontrar e estreitar caminhos para a internaciona-
lização, no campo científico e cultural, não podemos negligenciar a prática e a
intercompreensão das nossas línguas como uma via estratégica muito singular
para conseguirmos os nossos objetivos, uma vez que a intercompreensão destas

1 Foi esse também o sentido que presidiu à Organização do III Congresso Ibérico de Comunicação,
realizado em Sevilha, em 2006, cujas Atas foram publicadas, em 2008 (Gómez, De Lemos &
Sierra, 2008: Comunicación y Desarollo Cultural en la Península Ibérica. Retos de la Sociedad de la
Información). Veja-se, sobretudo, nestas Atas, “Habitar o território das Ciências da Comunicação
na Península Ibérica” (Martins, 2008, pp. 23-25) e “A ideia ibérica como recusa da ‘reductio ad
unum’. A propósito de A Jangada de Pedra, de José Saramago” (Martins, 2008, pp. 57-65).
Devemos ter também em atenção as publicações feitas no quadro dos Congressos e Fóruns
da Confibercom: Comunicação Ibero-americana: os Desafios da Internacionalização (Martins
& Oliveira, 2014); Comunicação Ibero-americana: sistemas midiáticos, diversidade cultural,
pesquisa e pós-graduação (Kunsch & Melo, 2012) e La Comunicación en Iberoamérica. Políticas
científicas y tecnológicas, posgrado y difusión de conocimiento (Kunsch, 2013).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

duas línguas é uma indispensável fonte de aproximação das nossas identidade e


culturas e um valoroso instrumento para o desenvolvimento e para a afirmação
do conhecimento científico, procurado nas nossas investigações.
No plano cultural e científico, que é aquele que, neste momento, é vértice
nuclear da Confibercom, temos centenas de universidades, centenas e centenas
de centros de estudo e investigação, e milhares de investigadores. A realização do II
Congresso da Confibercom, que teve lugar na Universidade do Minho, em 2014, com
aproximadamente um milhar de comunicações, constitui, por si só, um poderoso
eco e uma prova cabal dessa força de investigação e desse espólio científico que
albergamos. Por certo, esse Congresso não reuniu representantes de todos os países
do vasto mundo ibero-americano. Mas as 15 entidades filiadas na Confibercom
atestam a realidade do campo de ciência e de conhecimento, da transnacionalidade
cultural e cívica em que nos podemos desdobrar. E, aqui, tem toda a propriedade
aludir ao facto de os governos reconheceram há muito tempo o impacto da língua
(ou das línguas) nas trocas internacionais e do comércio. E embora, nesta vertente
da economia e da riqueza a distribuir, esteja, porventura, uma das nossas desvan-
tagens e condicionamentos em relação a outras comunidades e inter-regiões do
Globo, também neste ponto, se valorizarmos as múltiplas correspondências das
nossas línguas e das nossas culturas, certamente que poderemos contar com elas
como fatores decisivos para a redefinição geoestratégica das nações, assim deter-
minando o nosso lugar no concerto das comunidades do Mundo.

A ambicionada internacionalização

Provavelmente, quando nos debruçamos para avaliar o grau de internacionaliza-


ção ambicionada, e aquela já conquistada no campo da investigação científica e
cultural, importa refletir sobre algumas interrogações. O patamar da internaciona-
lização em que nos encontramos, não obstante ainda os muitos condicionamentos
e limitações, não me parece que possa resultar do tradicional axioma de que “a
ciência não tem pátria”.
Embora internacionalização e globalização não sejam uma e a mesma coisa,
eu seria levado a considerá-las como projeto e procura da investigação científica,
advogando, pois, alguma articulação entre elas. Efetivamente, concordo com
aquilo que escreve Viriato Soromenho-Marques, na linha de Fernand Braudel e
de Immanuel Wallerstein:

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INTERNACIONALIZAÇÃO, DESAFIOS, DELIMITAÇÕES E EFEITOS PERVERSOS

o moderno mercado global de mercadorias e fluxos financeiros é inseparável da


construção do moderno sistema-mundo, cujas raízes se prendem com o distante des-
moronar da sociedade medieval e com as velas enfunadas das caravelas de Colombo
e Vasco da Gama (Soromenho-Marques, 2003, p. 357).

Muito antes da globalização, tão decantada pelos senhores que se ufanam


de a ter construído à base do novo-deus, o mercado ou os mercados, foram os
portugueses quem, primeiramente, realizou e usufruiu de uma globalização, sem
dúvida menos rentável, mas não sei se mais saudável. Como diz Martin Page, no
seu best-seller The First Global Village, Colombo e Vasco da Gama construíram a
“primeira aldeia global” (Page, 2008) 2.
Por sua vez, Boaventura Sousa Santos (2001), na vasta obra de que é coorde-
nador, Globalização, Fatalidade ou utopia?, releva que “o sistema mundial em
transição é constituído por três constelações de práticas coletivas: a constelação
de práticas entre Estados nacionais, a constelação de práticas capitalistas globais
e a constelação de práticas sociais e culturais transnacionais” (Santos, 2001, p.
63). Na modernidade, a internacionalização da Ciência inscreve-se nesta terceira
constelação, mas

é evidente que há uma interacção recíproca e a interpenetração das três constelações


de práticas faz com que os três tipos de conflitos estruturais e as trocas desiguais
que os alimentam se traduzam na prática em conflitos compósitos híbridos ou duais
em que, de deferentes formas, estão presentes elementos de cada um dos conflitos
estruturais (Santos, 2001, p. 63).

“No domínio das práticas sociais e culturais transnacionais, as trocas desiguais dizem
respeito a recursos não mercantis cuja transnacionalidade assenta em diferenças
locais, tais como, etnias, identidades, culturas, tradições, sentimentos de presença,
imaginários, rituais, literatura escrita ou oral” (Ibidem).

Sem dúvida, iguais considerações poderiam ser feitas a propósito da inter-


nacionalização da ciência.

2 Também Moisés de Lemos Martins associa o atual mercado global, de cariz eminentemente
económico-financeiro e tecnológico, à expansão europeia, fazendo, aliás, uma analogia entre a
circum-navegação marítima, dos séculos XV e XVI, e a moderna circum-navegação tecnológica,
dos média digitais (Martins, 2015, 2014, 2011 a, 2011 b).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As práticas da internacionalização

As vias da internacionalização científica que praticamos, ou que procuramos


praticar, exprimem-se nestes suportes: intercâmbio de estudantes e de inves-
tigadores; disponibilização de bases de dados, publicação de livros e revistas;
integração de equipas de investigadores em projetos de pesquisa nacionais, em
cada um dos nossos países, ou internacionais; intercomunicação em workshops,
seminários e congressos 3.
Desenvolvamos, então, de modo sucinto, estes quatro suportes da
Internacionalização.

1. Intercâmbio de Estudantes e Docentes

Embora os nossos sistemas de ensino (público e privado) tenham óbvias diferenças


temáticas, nos programas, na avaliação e no exercício ou nas práticas pedagógicas
do ensino/aprendizagem, o que é natural, dadas as diferenças de identidades
regionais e nacionais, das políticas públicas, das ideologias dos governos e das
populações dos nossos países, o intercâmbio de estudantes e de docentes, através
de programas especiais, é um processo de investimento importante para sedi-
mentar esta comunidade ibero-americana, com repercussão futura nos outros
vetores, que podem solidificar esta comunidade. Para este intercâmbio, estou a
pensar, principalmente, nos níveis de pós-graduação. Mas ainda mesmo aos níveis
da licenciatura e do mestrado, os benefícios dos programas internacionais que
conheço (por exemplo, ERASMUS e Leonardo Da Vince), oferecem um balanço
muito positivo nos resultados das experiências e do enriquecimento dos diversos
campos dos saberes.

3 Para o caso português, ver Moisés de Lemos Martins, “A política científica e tecnológica em
Portugal e as ciências da comunicação: prioridades e indecisões” (Martins, 2012 a) e “Revistas
científicas de ciências da comunicação em Portugal: da divulgação do conhecimento à afirmação
do Português como língua de pensamento e conhecimento” (Martins, 2012 b). Ver também, de
Moisés de Lemos Martins e Madalena Oliveira, “Política científica de comunicação em Portugal:
desafios e oportunidades para os doutoramentos” (Martins & Oliveira, 2013).

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INTERNACIONALIZAÇÃO, DESAFIOS, DELIMITAÇÕES E EFEITOS PERVERSOS

2. Disponibilização de bases de dados e fomento de publicações

Internacionalmente, as fontes alimentadoras das bibliografias têm o predomínio


da origem anglo-saxónica. De modo nenhum, alimento, neste ponto, um intuito
xenófobo, antes me coloco numa posição de clara honestidade, pelo que reconheço
que é indubitável a riqueza do espólio de língua inglesa dessas fontes, especial-
mente daquelas que provêm dos EUA e da Inglaterra. Contudo, entendo que deve-
ríamos tentar contrariar este domínio. Um dia, num Congresso da Intercom, em
Salvador da Baía, o Professor José Marques de Melo confessou-me o desencanto
que tinha pelo facto de os investigadores ibero-americanos denotarem relutância
em nomear e citar os nossos autores – os autores da comunidade ibero-americana,
E, todavia, na área das Ciências da Comunicação e Informação, que são as nossas,
até temos autores e investigadores de renome internacional.
Possuímos, por outro lado, excelentes bases de dados, de que são exemplo, a
Pordata (base de dados, organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos,
sobre o Portugal contemporâneo, com estatísticas oficiais, provenientes do Ins-
tituto Nacional de Estatística e do Eurostat); a PortCom (portal disponibilizado
pela INTERCOM, de livre acesso à produção científica em Ciências da Comuni-
cação, na comunidade lusófona); e a BOCC – Biblioteca Online de Ciências da
Comunicação, da Universidade da Beira Interior. Temos um conjunto notável de
revistas. Todavia, para as tornar mais conhecidas e com maior penetração, deve-
ríamos optar pela edição de Anuários, como é o caso do Anuário Internacional
de Comunicação Lusófona, da Lusocom. Verifica-se, hoje, por todo o espaço ibe-
ro-americano, com destaque normal para alguns países, como Brasil, Argentina,
Espanha, Chile, México e até Portugal, uma intensa produção editorial. Todavia,
para consagrarmos o reconhecimento internacional de toda a comunidade cien-
tífica, julgo que é chegado o momento de sermos mais seletivos. Neste aspeto,
o reconhecimento da nossa desejada internacionalização requer uma aposta na
centralidade dos objetos e das problemáticas do nosso vasto campo de pesquisa.
E, aqui, as universidades, os centros de investigação, as associações nacionais e
internacionais, sem destruir o sentido criativo e imaginativo de cada entidade
ou dos seus agentes, terão que assumir a complicada e pouco simpática tarefa de
selecionar entre o quantitativo e o qualitativo. Escolher entre a quantidade e a
qualidade não deve, todavia, inibir-nos de procurar exaltar a excelência.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

3. A constituição de equipas de investigadores

A integração dos investigadores em equipas de investigação, como via para a


internacionalização, não pode esquecer nunca as seguintes três dimensões da
investigação: o local; o regional; e o internacional. No entanto, o nosso ponto de
partida é o lugar que habitamos, lá onde estamos e vivemos, assim como também
é o povo a que pertencemos, que nos faz participantes de uma identidade singular,
uma identidade que nos dá sentido de vida.
Acontece ainda, por outro lado, conforme observa Pierre Bourdieu, que “o
campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiri-
das, é lugar/espaço de um jogo de luta concorrencial” (Bourdieu, 1983, pp. 121-155).
E como adverte Marques de Melo, “a cooperação internacional é indispensável
num mundo que se globaliza aceleradamente, mas ela só vale a pena ser fortale-
cida se trouxer dividendos para todos os parceiros em conexão” (Melo, 2005, p.
15). Igualmente é preciso combater e desmitificar o que Moisés de Lemos Martins
chama de “o absolutismo da razão pragmática”, ou seja, como diz, “a eficácia do
Mercado” que hoje “garante a excelência académica” (Martins, 2002, p. 89) 4.

Delimitações e constrangimentos

Entretanto, quando, finalmente, em grande parte dos nossos países, estávamos


a conseguir estabilizar o número crescente dos profissionais de investigação,
surgiu a crise que estrangulou esta era da internacionalização. Este estádio de
maturidade, que corresponde à afirmação do trabalho feito pelos nossos centros
de investigação, pelas nossas universidades, associações e unidades de pesquisa,
foi severamente «atacado» pelas lógicas economicistas (Martins, 2015 b). E isso
aconteceu, infelizmente, em quase todos os nossos países. Dada a crise, que alas-
trou pelo Ocidente, desde 2008, as políticas públicas dos governos impuseram
restrições à investigação. As fontes de financiamento para o trabalho científico
secaram. O Poder, enfim, os poderes deixaram de conceber o investimento na ciên-
cia, particularmente nas ciências comunicacionais e sociais, como uma dimensão
prioritária e determinante do desenvolvimento.
Não obstante estes constrangimentos, o cientista quer no plano nacional,
quer no plano internacional, não pode perder a ética da sua responsabilidade.

4 Ver, no mesmo sentido, “A liberdade académica e os seus inimigos” (Martins, 2015 b).

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INTERNACIONALIZAÇÃO, DESAFIOS, DELIMITAÇÕES E EFEITOS PERVERSOS

Teremos de estar atentos à instrumentalização do nosso papel e do nosso trabalho.


E também, como diz Maria Immacolata Vassalo Lopes, não podemos esquecer que
“continua a prevalecer um insatisfatório nível descritivo e uma perigosa tendência
à indulgência e a uma abstenção de crítica” (Lopes, 2005, p. 38).

Conclusão

O nosso compromisso é com a cidadania.


Os quatro pilares da nossa atividade são os seguintes: Ensino, Investigação,
Mediação, Cidadania.
Em Da Alvorada à Decadência – De 1500 à Actualidade, uma obra notável,
de estudo, análise e investigação, publicada em 2003, Jacques Barzun explica
como, historicamente, nós, os atuais viventes da cultura ocidental, chegámos à
atualidade. O seu ponto de vista é o de que a nossa civilização construiu está na
origem de sociedades cheias de contradições. Somos uma época de incertezas, que,
todavia, conta com os avanços infindáveis da ciência e das novas tecnologias, que
nos proporcionam capacidades inimagináveis. Somos, também, uma sociedade
de ansiedade e de ira. E uma sociedade devida democrática, que todavia, convive
com ditaduras e massacres (Barzun, 2003, p. 766).
Compete-nos a nós, cientistas sociais e da comunicação, abrir luz e lançar
caminhos para arquitetar um outro futuro. Citando Disraeli, Jacques Barzun (2003,
p. 766) escreve: “não poderemos enganar-nos, porque estudámos o passado e é
bem conhecida a nossa capacidade de relevar o futuro, quando este já aconteceu”.
Talvez mais no nosso contexto ibero-americano, sem querer acabar com um
sentimento pessimista, mas antes imprimir estímulo ao trabalho que temos pela
frente, procurando realizar o compromisso que nos prende às nossas comuni-
dades nacionais, um compromisso de cidadania, eu desejaria terminar com o
pensamento de um ibero-americano, argentino, de que tanto gosto. Refiro-me
a Eduardo Galeano, que escreve assim, em De Pernas Pro-ar. A Escola do Mundo
do Avesso: “Um mundo ao avesso está à vista de todos nós; com a esquerda na
direita, o umbigo nas costas, a cabeça nos pés”.
Mas é neste Mundo que teremos de atuar. De Congressos como este, que
reúne o saber e a experiência de muitas centenas de investigadores ibero-ame-
ricanos, teremos que levar para as nossas terras um programa para desenvolver
a investigação, o conhecimento e a intervenção social. O nosso trabalho é o de

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

estar ao serviço da cidadania, junto das nossas comunidades de origem. É esse,


pois, o compromisso com que daqui vamos ter que partir.

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INTERNACIONALIZAÇÃO, DESAFIOS, DELIMITAÇÕES E EFEITOS PERVERSOS

Ibero-americana: sistemas midiáticos, diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação.


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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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UMA REORIENTAÇÃO CONCEITUAL
Muniz Sodré*

Resumo
Proponho-me fazer a abordagem crítica do atual conceito de comunicação, enquanto
síntese de estudos e pesquisas. Pronunciar-me-ei, pois, sobre os seguintes aspectos: a
entronização da palavra pela Academia e pela mídia, com foco na transmissão de mensagens
e na filosofia da linguagem; a aceitação do entendimento corrente pela cultura das mídias e
pela ordem dos dispositivos eletrônicos; a questão do comum e a metáfora da comunicação
como o conjunto das placas tectônicas sob a superfície do comum; a proposição de um
novo lugar no interior do pensamento social.

Palavras-chave: comunicação; reorientação conceitual; comum; nova ciência

Primeira questão

Em resposta aos desafios temáticos para a comunicação ibero-americana, dois


temas nos parecem desafiantes: O primeiro é a permanência do termo “comu-
nicação”, como uma síntese dos estudos e pesquisas que movimentam a vida

* Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorou-se, em 1978, em Ciência


da Literatura, por esta mesma universidade. Dirigiu a TV Educativa e foi Presidente, de 2005 a
2011, da Fundação Biblioteca Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Da sua vasta
obra constam os seguintes títulos: Monopólio da Fala (1982), Comunicação do Grotesco (1933); A
Reportagem como Gênero Jornalístico (1986); Rede Imaginária: Televisão e Democracia (1991); As
Estratégias Sensíveis – Afeto, Mídia e Política (2006); Reinventando a Educação – Diversidade,
Descolonização e Redes (2012). Tem um percurso de investigação marcado pelo estudo da teoria
da comunicação, da interculturalidade, da lusofonia e da tecnologia contemporânea. Dedica-se,
ainda, à escrita de livros de ficção.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

acadêmica ibero-americana, assim como os congressos. O segundo refere-se à


viabilidade de uma ciência da comunicação como um novo tipo de reorientação
da consciência contemporânea para o ordenamento tecnológico do mundo.
Primeiro, portanto, a ideia da comunicação. O que realmente ela significa?
Não é demais recorrer a Walter Benjamin, para quem as ideias são dadas num
movimento de percepção original, em que as palavras, nomeando, geram conhe-
cimento: num certo sentido, pode-se perguntar se a teoria platônica das “ideias”
teria sido possível, se o sentido desta palavra não tivesse levado o filósofo, que
só sabia a sua língua materna, a divinizar o conceito de palavra, a divinizar as
palavras: as “ideias” de Platão, se é possível arriscar este juízo parcial, não são no
fundo nada mais que palavras ou conceito de palavras divinizadas.
Ora, a pós-modernidade divinizou de algum modo a ideia da comunicação. Este
é ao menos um caminho para se entender como o termo comunicação – oriundo do
latim communicatio/communicare, com o sentido principal de “partilha”, “partici-
par de algo” ou “pôr-se em comum” – pôde terminar criando, no século XX, uma
realidade própria a partir da sua antiga expansão metonímica do sentido, de “coisa
comunicada”, reforçada no inglês communication, com o concurso das técnicas
de transmissão de informações e da publicidade. O foco na interação, que é uma
instância inerente à partilha comunicativa, terminou sobrelevando o significado de
transmissão de mensagens. Os dicionários contemporâneos, e principalmente os
scholars norte-americanos, habituaram-se, assim, desde o começo do século pas-
sado a entender comunicação como transmissão de mensagens ou de informações,
senão como um horizonte ético e psicológico, subsumido na palavra comunhão.
Este entendimento, socialmente sublinhado pelo desenvolvimento das tec-
nologias da comunicação e da informação nos Estados Unidos, reforçou-se na
Europa inclusive com o concurso do meio acadêmico que, sob a influência da lin-
güística e da filosofia da linguagem, tentou encontrar um objeto comum a ambas,
imaginando poder fundar uma ciência geral do homem. A ideia da comunicação
foi, assim, anexada aos modelos de transmissão de signos.
Este é um entendimento aceitável pelo senso comum dos públicos imersos
no que se tem chamado de “cultura das mídias” ou no consumo dos dispositivos
técnicos continuamente despejados no mercado pela indústria eletrônica, dos
quais se desprende uma aura de irrefreável otimismo, análogo à atmosfera emo-
cional das grandes transformações do capital. Marx já havia observado, aliás, em
18 de Brumário, de Luís Napoleão, que as revoluções burguesas, como as do século
XVIII, precipitam-se rapidamente de sucesso em sucesso, seus efeitos dramáticos

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UMA REORIENTAÇÃO CONCEITUAL

ultrapassam um ao outro, homens e coisas parecem envoltos em resplendores de


diamante, o entusiasmo que chega ao êxtase é o estado permanente da sociedade
– mas são de breve duração.
Talvez por isso, até mesmo na esfera do conhecimento acadêmico, sejam
admissíveis obras de vulto sobre os usos que fazem o Estado e o Mercado de uma
enorme variedade de processos – circulação financeira, consumo, gestão empresa-
rial, divulgação cultural, culturas das mídias, registro documental, convergência
digital etc. – com o rótulo geral de comunicação/informação, sem elucidar con-
ceitualmente o objeto descrito ou analisado. A importância do conceito é óbvia,
quando se impõe o avanço científico de um campo específico – qualquer campo.
Ainda recentemente, a propósito do cérebro, Claudia Vargas, uma neurocientista
da UFRJ, acusava a falta de instrumentos conceituais para se pensar o funciona-
mento cerebral, argumentando: “não adianta ficar catalogando ao extremo todos
os elementos individuais” (Vargas, O Globo, 10/4/2014).
No caso da comunicação, há a tendência a supor que a pura e simples descri-
ção de processos ou a catalogação práticas bastaria para assegurar a continuidade
gerencial de um campo interdisciplinar no âmbito da universidade ou em circuitos
técnicos externos sem que se tivesse de recorrer a dispositivos explicativos “fortes”,
isto é, à sistematização científica. Em termos políticos ou macrossociais, bastaria
avaliar o grau de democratização desses processos para legitimá-los cognitivamente.
Tradicionalmente, entretanto, o próprio empenho pragmatista de valoriza-
ção da democracia como postulado das modernas sociedades, abertas acata o
imperativo de redefinição ou de renovação dos mecanismos democráticos. Isto
implica não apenas uso, mas educação contínua da cidadania e perspectivas
quanto ao que se situa além dos parâmetros econômicos, jurídicos, políticos e
sociais estabelecidos por uma determinada formação humana. Este “além” dos
limites das formas de poder, que se traduz na prática como criatividade afinada
desde a Antiguidade grega com as perspectivas de felicidade do homem, pode
receber o nome de ética.
Neste caso, a pergunta sobre o que é (entenda-se: o que é mesmo comunica-
ção) não pode ser relegada ao plano dos resquícios conceitualistas da metafísica
grega, pois é o necessário ponto de partida para uma orientação existencial, frente
à hipertrofia de poder da dita comunicação/informação, assim como para uma
linha eventual de ação ético-política, no interior do ordenamento democrático.
Não é secundária, portanto, a pergunta sobre o que significa realmente comu-
nicação, ainda mais quando se acompanha Wittgenstein na suposição de que toda

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

interrogação de natureza filosófica diz respeito ao significado das palavras. Além


disso, dentro de uma visada epistemológica, a interrogação contribui, ao lado do
devido esclarecimento ontológico do fenômeno, para que se cogite de um saber
positivo, isto é, de uma ciência específica, ainda que não se destine ao confina-
mento nos parâmetros objetivistas estabelecidos pela episteme dita “normal”.
Algo análogo registra-se na história do pensamento marxiano (nos Grundisse,
precisamente), quando este, a propósito do processo de formação dialético do
capital, distingue o capital em geral de categorias como valor, trabalho, dinheiro,
preços, circulação, etc. Ou seja, distingue dos pressupostos a síntese das determi-
nações, ressalvando ser necessário fixar a forma determinada na qual o capital é
posto em um certo ponto.
É esse “certo ponto”, que nos parece sobrevir agora ao campo comunicacional,
onde os signos, os discursos, os instrumentos e os dispositivos técnicos são os
pressupostos do processo de formação de uma forma nova de socializar, de um
novo ecossistema existencial em que a comunicação equivale a um modo geral
de organização. Instalada como um mundo de sistemas interligados de produção,
circulação e consumo, a nova ordem sociotécnica fixa-se no ponto histórico do
aqui e agora, não como índice de um novo modo de produção econômico, mas
como a continuidade, com dominância financeira e tecnológica, da mercantiliza-
ção iniciada pelo capitalismo no início da modernidade ocidental. No necessário
rearranjo de pessoas e coisas, a comunicação revela-se como principal forma
organizativa.
Acentuamos o “revelar-se”, porque comunicação significa, de fato, em sua
radicalidade, o fazer organizativo das mediações imprescindíveis ao comum
humano, a resolução aproximativa das diferenças pertinentes em formas sim-
bólicas. As coisas, as diferenças aproximam-se como entidades comunicantes
porque se encadeiam no vínculo originário (uma marca de limites, equiparável
ao sentido) estabelecido pelo símbolo.
Ora, nesta modernidade tardia ou na pós-modernidade, que presenciamos
historicamente, a comunicação é o modo de organização social correspondente
à dominância financeira do capitalismo flexível ou turbocapitalismo. Anexar à
questão comunicacional o paradigma linguístico ou sociológico da transmissão de
mensagem é aceitar o seu próprio álibi culturalista, um álibi que oculta a intrínseca
natureza de seu poder simbólico.

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UMA REORIENTAÇÃO CONCEITUAL

Segunda questão

Para introduzir a questão da reorientação da consciência contemporânea, eu aco-


lho a metáfora das “placas”: a comunicação seria o conjunto das placas tectônicas
sob a superfície do comum. Elas, como suas congêneres geológicas, são essenciais,
mas não eternas em constituição ou em alinhamento. Podem deslocar-se por efeito
daquilo que, no pensamento marxiano, aparece como Wechselwirkung, ou seja, a
ação reflexa ou circular de retorno da superestrutura sobre o que supostamente a
determina ou o que, na teoria sistêmica, se descreve como retroação.
Assim, quando o bem conhecido dramaturgo e crítico cultural americano,
George W. S. Trow, descreve a nova paisagem social americana por essa metá-
fora das “placas”, está-se referindo ao aspecto particular da política e da mídia,
mas principalmente apontando para a movimentação profunda na “crosta” da
organização simbólica: “Houve, de fato, um deslocamento de placas tectônicas
sob nós e os partidos políticos ainda têm os mesmos nomes. Também temos uma
CBS, uma NBC, um New York Times. Mas não somos mais a mesma nação que no
passado teve isso tudo” 1.
Disto decorrem transformações de grande monta nos sistemas educacionais,
na produção social de subjetividades e na constituição da esfera pública. Mas para
nós, sobretudo, uma transformação geográfica no sentido de que essas “placas”,
por efeito da compressão temporal do espaço, formam um novo “continente”, o
oitavo, feito de bytes, virtual, acima ou abaixo de todos os outros.
Essa movimentação e essa reorganização, acionadas pela velocidade das ondas
eletromagnéticas, apontam para o cerne da questão comunicacional. Os fenôme-
nos de trocas discursivas ou de transformações na mídia, habitualmente tratados
como o marco regulatório do campo acadêmico, afiguram-se como sintomas
importantes, mas não como a objetivação científica do problema da comunica-
ção, porque são apenas resultantes sociotécnicas de uma gênese pouco visível na
História. Esse marco regulatório corresponde naturalmente aos imperativos da
tecnologia e do mercado e poderia ser chamado de “pensamento da ferramenta”.
A questão mais funda, para nós, diz respeito à vinculação, que difere da rela-
ção social em seus modernos termos jurídicos e políticos, porque não se define
como “fazer contato”, como algo colocado “entre” os seres identificados por suas
posições marcadas no interior de hierarquias existenciais complexas, e sim como

1 Cf. Trow, George S. (1980). With the context of no context. NY: Atlantic Monthly Press, p. 41.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

a condição originária do ser, desde já atravessado por uma exterioridade vazia – o


comum – que o pressiona para fora de si mesmo e o divide.
Não se trata aqui de socius (portanto do demos, nos estudos de mídia), mas
de vínculo como uma condição ontológica originária. O vínculo inscreve-se na
dimensão comunitária e comporta o dialogismo estrutural implícito na ideia de
communicatio, em que não predomina a semiose, entendida como relação lingü-
ística com um “outro”, mas como heterotopia simbólica, ou seja, como ocupação
de um “outro” lugar e formação de valor por movimentação sensível 2.
O vínculo nada tem de semântico, e sim de simbólico, portanto, de energia ou
força. Nele opera aquilo que Parmênides chamou de “coração intrépido”, e outros
de “lógica do coração” e “disposição afetiva”. Por outro lado, não se apreende
a vinculação, apenas no plano da consciência, mas igualmente nas tramas ou
codificações inconscientes.
A vinculação não se refere ao afeto, apenas como uma disposição originária
(a Stimmung heideggeriana), mas também como algo que se globaliza por meio
das tecnologias da comunicação: a mundialização dos afetos em tempo real. É o
que Virilio chama de “sincronização das emoções”, um sucedâneo da partilha
democrática da opinião por meio da mídia de massa, característica da segunda
metade do século passado. Para ele, a velocidade inerente à tecnologia eletrônica
dá ensejo a uma “democracia das emoções” (Virilio, 2012).
Já existe, aliás, num instituto de pesquisa brasileira (pertencente ao grupo
“Flag”) uma técnica para se avaliar o estado emocional dos posts nas redes sociais,
a respeito de um assunto determinado (se negativo, positivo ou neutro). Em termos
práticos, a emoção toma o lugar da opinião.
Ora, o desafio temático para o pesquisador de hoje é considerar o imperativo
ético-político presente na questão essencial da formação desse novo homem, a
reinterpretação de sua cidadania. Foi isto o que associou na antiga Grécia a filo-
sofia à escola, essa mesmo instituição que continua indispensável às sociedades
urbanas em emergência ou em mutação.
A este respeito, Sloterdijk faz um retrospecto que parece plenamente perti-
nente à contemporaneidade sociocultural:

2 A escravidão, por exemplo, constitui uma relação (jurídica, política, social), mas não um vínculo,
devido à impossibilidade do senhor de movimentar-se heterotopicamente na direção do escravo.

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UMA REORIENTAÇÃO CONCEITUAL

“A parelha formada por Sócrates e Platão marca a entrada da nova ideia educativa.
Em face do convencionalismo e do oportunismo dos professores de retórica e dos
sofistas, eles desenvolvem um arrazoado em favor duma reforma global do homem.
Paideia ou a educação como formação do homem para um grande mundo com a impe-
rialidade latente ou manifesta, não é só um termo fundamental da prática antiga da
filosofia, mas designa também o programa da filosofia como prática política. Pode-se
aí discernir o nascimento da filosofia, condicionada pela emergência de uma nova
forma de mundo, arriscada e encarregada de poder – hoje, nós as chamamos culturas
urbanas e impérios”. 3

Sloterdijk, na verdade, apenas reforça um ponto que já pertence à tradição


discursiva do círculo filosófico e que mesmo comporta hipótese de um socratismo
(portanto, Platão e Aristóteles) anterior ao próprio Sócrates, como uma atitude
racionalista em germe junto a segmentos da aristocracia pensante grega e em
contraposição ao espírito de decadência da velha Atenas. É como se Sócrates
tivesse vindo dar voz ou língua própria, com a inflexão racionalista da ciência,
ao que poderia ser avaliado como “anarquia dos instintos”. E mais: uma ciência
propriamente “social”, já que o seu cuidado visa, diferentemente dos “físicos”
pré-socráticos, as questões humanas da Polis.
Sloterdijk omite a menção, em seu texto, de pensadores modernos, como
Descartes, Condorcet e Diderot, que aspiravam a uma filosofia capaz de ser publi-
camente compartilhada, com vistas à formação do espírito crítico da cidadania: A
ideia da emancipação do homem pelo exercício da razão é propriamente moderna.
Mas é acertada a sua construção de pensamento: a filosofia clássica concebida
como um “rito de iniciação lógico e ético”, requerido pelas exigências históri-
cas de reedificação do homem grego em função das novas realidades urbanas e
imperiais 4. Pensar não se restringe a extrair, num puro jogo de espírito, categorias
lógicas de mentes privilegiadas, sem maiores vinculações comunitárias ou políti-
cas (como tantas vezes aconteceu ou acontece na história acadêmica da filosofia),
e sim aceitar o desafio ético de responder à complexidade do mundo, com todos
os riscos políticos implícitos na resposta.

3 Sloterdijk, P. (2011). Tempéraments philosophiques. Libella’Maren Selçl, p. 18.


4 Passamos ao largo aqui do que Sloterdijk poderia pretender sobre as circunstâncias de uma
“reedificação” dessa ordem na contemporaneidade, uma vez que, do ponto de vista político-
-cultural, sua orientação deixa entrever um criptofascismo de fundo.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O exercício dessa tarefa chamou-se em grego “reflexão ou temperança”


(sophrosine) e, em latim, “humanidade” (humanitas), transcorrendo num ambiente
filosófico que era igualmente paideia, isto é, “introdução a essa reflexão adulta
que significa humanidade”. Para Sloterdijk, seria “irrefletido ver nos valores da
paideia e da humanitas apenas ideais apolíticos de caracteres”  5
Uma conseqüência prática desse posicionamento e que pode interessar aos
atuais estudos aplicados de comunicação diz respeito ao clássico horizonte ético-
-político da formação jornalística. Atualmente, é dominante a suposição de que o
“objeto” técnico em si mesmo (o computador, o celular, a rede social, a internet)
desencadeie a mudança na esfera pública, ao modo de um “sujeito” autônomo.
Uma argumentação de natureza ético-política poderia ressalvar que não é o
simples ser moderno ou eficaz do objeto que lhe agrega valor social, e sim a sua
inserção numa trama de relações intersubjetivas e dialéticas capaz de dar-lhe um
curso transformador (Martins, 2011).
Buscando afinar-se com as possibilidades da vinculação humana, esta mesma
argumentação também poderia conceber o jornalismo como um projeto político
maior do que o “jornal” em si mesmo. Já em 1920, o educador e filósofo pragma-
tista John Dewey dizia que o jornalismo tinha de ir além do mero relato objetivo
de acontecimentos (dentro do modelo em que a imprensa “reporta” e o leitor
consome) para se tornar um meio de educação e debate públicos. A imprensa favo-
receria o diálogo mais direto entre cidadãos e jornalistas. Mais do que “reportar”,
a atividade jornalística teria em seu âmago a promoção da “conversa” pública. É
possível que as atuais redes sociais sejam o esboço dessa conversa.

Referências bibliográficas

Martins, M. L. (2011). Crise no castelo da cultura. Das estrelas para os ecrãs. Coimbra:
Grácio. Retirado de http://hdl.handle.net/1822/29167.
Sloterdijk, P. (2011). Tempéraments philosophiques. Libella´Maren Selçl’.
Trow, G. W. S. (1980). With the context of no context. NY: Atlantic Monthly Press.
Vargas, Cl. (2014). O Globo, 10 de abril.
Virilio, P. (2012). The administration of fear. Los Angeles: Semiotex(t)e.

5 Ibidem, p. 19.

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RETOS Y RESPONSABILIDADES DE LA INVESTIGACIÓN
EN COMUNICACIÓN*
Miquel de Moragas**

Resumen
En la actual investigación sobre comunicación, como en general en las ciencias sociales,
se entrecruzan tres principales ejes. Uno de carácter ético –político (valores, compro-
misos, finalidades), otro de carácter epistemológico (métodos, enfoques, disciplinas,
cambios de paradigma), y, finalmente, un tercer factor que, aunque pueda considerarse
menor, tiene un importante efecto sobre la práctica de la investigación: el eje de carác-
ter administrativo, cada vez más crucial en la economía política de la investigación en
comunicación. Tres planos de importancia y dimensiones distintas que se interfieren
en la realidad de nuestros estudios.

Palabras clave: investigación; comunicación; interdisciplinar; Europa; Latinoamérica

* Una primera versión de este texto fue presentada como conferencia en el ITESO (Guadalajara,
México), el 26 de Junio de 2013.
** Doutorado em Filosofia pela Universidade de Barcelona (1974), foi o primeiro Presidente da
Sociedade Catalã de Comunicação (IEC), cargo que exerceu entre 1985 e 1987. Foi ainda Decano
da Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB), onde
desempenhou as funções de Vice-Reitor da Investigação. Foi fundador e diretor do Instituto de la
Comunicación (InCom-UAB) (1997-2009), e dirigiu o Centro de Estudios Olímpicos (1988-2009).
Desenvolve investigação sobre teorias e políticas da comunicação, e estudos sobre desporto. Foi o
primeiro Presidente da Asociación Española de Investigación de la Comunicación (AE-IC), cargo
que desempenhou de 2008 a 2016. É desde 2015 Professor Catedrático e Emérito da UAB.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

La investigación y su contexto

Hace ya muchos años en mi primer libro Teorías de la Comunicación (Moragas,


1982) escribía unas frases introductorias que he mantenido intactas en mi último
libro Interpretar la comunicación, decía entonces, y el paso del tiempo me ha ido
reafirmando en esta idea, que

los estudios sobre medios de comunicación –aunque visiones conservadoras y a corto


plazo pretendan disimularlo– siempre se han visto condicionados por la realidad social
y comunicativa del contexto en el que se desarrollaban. Hasta tal punto esto es así,
que la historia de la investigación constituye una ayuda inestimable para la propia
historia de los medios, en tanto que expresa la evolución de sus funciones y usos en
la sociedad. (Moragas, 2011).

En cada época histórica, en cada país y en cada región, la investigación recibe


demandas sociales distintas, influencias de los centros de decisión política, econó-
mica y cultural. Podemos comparar en este sentido la experiencia latinoamericana
y la experiencia europea (Fuentes, 2008).
Luis Ramiro Beltrán en un texto premonitorio, Premisas, objetos y méto-
dos foráneos en la investigación sobre comunicación en Latinoamérica (Beltrán,
1985[1976]), expresaba la resistencia intelectual y académica a la dominación de la
investigación latinoamericana y proponía una ruptura, un rechazo, al colonialismo
(también académico) que imponía las formas de pensar sobre la comunicación.
Antonio Pasquali, por su parte, publicaba en 1978 Comprender la comunicación, un
libro a contracorriente de las ideas académicas sobre comunicación que actuaba
como arietes de la penetración del modelo desarrollista de la comunicación (Pas-
quali, 1978).
Así, por ejemplo, los investigadores portugueses y españoles –algunos de
ellos en el exilio– tuvieron que hacer frente a las dictaduras y al correspondiente
aislamiento académico internacional. La academia latinoamericana tuvo que
hacer frente a dictaduras y exilios que perturbaron su desarrollo y desmantela-
ron iniciativas, en Chile, en Argentina, en Brasil. La academia latinoamericana
tuvo que hacer un gran esfuerzo en el terreno teórico para deconstruir el pen-
samiento comunicacional funcionalista de la mass communication research
que se difundió internacionalmente y desde los Estados Unidos al término de
la segunda guerra mundial. Este esfuerzo, compartido con el conjunto de las

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RETOS Y RESPONSABILIDADES DE LA INVESTIGACIÓN EN COMUNICACIÓN

ciencias sociales, le permitió construir nuevas perspectivas teóricas a favor


de las políticas democráticas de comunicación y cultura y de la comunicación
para el cambio social, participando activamente en las nuevas políticas de la
UNESCO que desembocaron en informe MacBride Voces Múltiples, Un Solo
Mundo, publicado en 1980.
Ya en el siglo XXI la investigación se ha visto cada vez más condicionada por
las “políticas (administrativas) de investigación” que intervienen decisivamente
en aspectos clave como la valoración de méritos y la promoción académica, la
elección de prioridades, lo que hace más importante que nunca la política “de
investigación de la comunicación”, y el papel que representan organizaciones
académicas como AIERI, ALAIC, AMIC, AE-IC, SOPCOM, etc. que adquieren
nuevas responsabilidades.

¿Investigación básica o aplicada en comunicación?

Para evaluar la dimensión ética de la investigación en comunicación podemos


distinguir entre tres principales opciones de la investigación.
La investigación que podemos denominar “aplicada”, destinada a resolver pro-
blemas concretos de algunos actores del sistema, principalmente de las empresas
de comunicación. Investigación que tiende cada vez más a ser secreta y reservada.
La investigación dedicada a reconocer el funcionamiento estructural del
sistema de comunicación (pongamos como ejemplos el estudio de la recepción
televisiva o del funcionamiento de las redes sociales entre los nativos digitales,
etc.). Investigación indispensable para desarrollar posteriormente la investigación
más teórica o crítica.
La investigación que se proponen conocer el conjunto del sistema social,
“conocer el mundo”, mediante el estudio de la comunicación. Esta opción –la más
teórica– es hoy más necesaria que nunca cuando la comunicación es reconocida
como factor central de la sociedad de nuestro tiempo, definida como sociedad
de la información.
Con el inicio de la mass communication research en los años 50 y 60 se
estableció una interesante distinción entre lo que se denominó “investigación
administrativa” (representada por Lazarsfeld y financiada generosamente por la
administración norteamericana y las grandes fundaciones como la Rockefeller)
y la “investigación crítica” (representada entonces por Adorno).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

En nuestros días la investigación administrativa ha dado paso a la inves-


tigación comercial aplicada y a la investigación estratégica (con los sucesivos
planes de investigación y desarrollo), también a lo que podemos denominar
“investigación curricular” (tramos de investigación reconocidos, publicaciones
en revistas de referencia, méritos cuantificables), que han tendido a burocratizar
la investigación.
Por su parte la investigación crítica, especialmente en América latina, ha
seguido dos vías que a finales del siglo XX han ido encontrando su convergencia
o su síntesis: los estudios culturales de la comunicación y la economía política de
la comunicación. Esta convergencia es fundamental para comprender las nuevas
y más vigorosas líneas de investigación en comunicación.
Esta perspectiva complementaria se manifiesta fundamental para poder
construir –desde la investigación académica– las nuevas políticas culturales y de
comunicación en la era digital.

Las ciencias comunicación como post-disciplina

En relación con los condicionantes epistemológicos de la investigación en comu-


nicación el principal error que podría cometerse sería considerar que las ciencias
de la comunicación pueden plantearse de manera autónoma, independiente del
conjunto de ciencias sociales y humanidades, porque en ellas también están las
bases de la investigación de la comunicación.
Cuando los estudios de comunicación se apartan o desconsideran estas bases
fundamentales (también en las tareas formativas) generan su propia degradación.
Por el contrario, cuando se apoyan en ellas se convierten en paradigma de las nue-
vas formas de enfocar transversalmente las ciencias sociales. Esta transversalidad
se hace evidente ante la imposibilidad de ubicar estos estudios en una sola orilla,
la de las humanidades o la de las ciencias sociales. ¿En cuál de estas dos orillas
se podría ubicar a Adorno, Barthes, Eco, Habermas, Martín-Barbero, McLuhan,
Morin, Pasquali, y tantos otros, referentes de los estudios sobre comunicación?
Uno de los principales dilemas con los que se enfrentan hoy los estudios de
comunicación se refiere a si la “comunicación” es un campo de estudio o es una
disciplina. Un dilema que, para mí, solo tiene una respuesta correcta: las dos
cosas a la vez. Los estudios sobre comunicación, o más específicamente sobre
medios de comunicación, se han ido construyendo –a lo largo de más de medio

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RETOS Y RESPONSABILIDADES DE LA INVESTIGACIÓN EN COMUNICACIÓN

siglo– sobre un gran número de investigaciones. Esto nos permite afirmar que la
comunicación es, a la vez, campo de estudio y disciplina.
En mi libro Interpretar la comunicación (Moragas, 2011) he propuesto dis-
tinguir entre “teorías de la comunicación” y “estudios de la comunicación”. La
“comunicación” hace referencia a un fenómeno transversal que interesa –y debe
interesar– a todas las Ciencias Sociales y Humanidades. La historia de la inves-
tigación sobre la comunicación pone al descubierto que los planteamientos que
han pretendido constituir una “disciplina independiente”, han resultado ser muy
poco rentables en términos de desarrollo de nuestros conocimientos sobre la
comunicación. La tendencia más general en los actuales estudios universitarios
sobre comunicación, lamentablemente, tiende a tomar otro camino, confundiendo
el incremento de la demanda de estos estudios con su autonomía epistemológica.
En el fondo estos planteamientos responden más a razones de orden burocrático
destinadas al reconocimiento y a la obtención de prestigio académico, que a
razones epistemológicas contrastadas.
La comunicación es un objeto/campo de estudio en cuyo análisis puedan
confluir métodos y puntos de vista aportados por las distintas ciencias sociales
y humanidades. La antropología puede ayudarnos a la comprensión de las rela-
ciones entre comunicación y migraciones; la geografía nos permite interpretar los
espacio asociados a la comunicación; la psicología es indispensable para conocer
fenómenos como los mecanismos de placer, temor o deseo asociado a la recepción
de mensajes; la historia nos permite interpretar las etapas de la comunicación; la
economía nos permite reconocer los fenómenos de concentración de los medios
y las condiciones que las estructuras de la propiedad pueden imponer a los pro-
cesos de significación; la semiótica, en fin, es un instrumento indispensable
para el análisis de los discursos y, así, podríamos seguir con nuevos ejemplos.
En este sentido la “comunicación” es más bien una post-disciplina que supone
la colaboración entre disciplinas y tradiciones académicas, a quienes formula
las preguntas pertinentes, en beneficio de la compresión de la complejidad de
su objeto específico.
Esta condición de ser disciplina y campo de estudio al mismo tiempo no es en
absoluto una desventaja, sino todo lo contrario, sitúa a los estudios de comuni-
cación a la vanguardia de los estudios sobre la sociedad contemporánea, tiempo
de cruces, de derrumbe de antiguas fronteras, para afrontar la complejidad de
los fenómenos sociales.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

De los medios a la red global. Necesidad de redefinir el paradigma

La rápida evolución de nuestro objeto de estudio, la comunicación, nos enfrenta


ante un gran reto teórico: la necesidad de redefinir su paradigma. Ya en el siglo
XXI la investigación sobre comunicación se ve en la necesidad de desmontar los
postulados y paradigmas de la interpretación mediocéntrica de la comunicación.
Los elementos que participan en el proceso de comunicación son obviamente, los
mismos (emisor, receptor, canal, mensaje), pero las relaciones que se establecen
entre ellos han cambiado sustancialmente.
Así, por ejemplo, la expansión de los multimedia interactivos, ha difuminando
la antigua separación entre lo que era la comunicación mediática (mediada téc-
nicamente) y la comunicación interpersonal (no mediada técnicamente). La tele-
mática ha puesto en crisis la vieja distinción entre medios/ y no medios, cuando
la mediación tecnológica multiplica los procesos de comunicación interpersonal
(telefonía y redes sociales) y se ha hecho necesario incorporar nuevos conceptos
como “autocomunicación de masas” o “redes autogestionadas” (Castells, 2009).
En terminología de Bauman (2007) diríamos que la frontera medios/no-
-medios se ha ido “licuando”. Esto hace obsoleto el mediacentrismo, y obliga a
adoptar perspectivas más transversales.
A esta primera convergencia (medios/no-medios) se le añaden otras con-
vergencias de naturaleza distinta y todas ellas de gran transcendencia para el
estudio de la comunicación, como la confluencia entre comunicación y cultura,
y la superación de los esquemas dualistas que disociaban la producción y la
recepción de contenidos.
La investigación latinoamericana ha sido pionera en advertirnos sobre la
primera de estas confluencias (entre cultura y comunicación), más allá del deno-
minado giro cultural de las ciencias sociales, proponiendo un nuevo enfoque de
los estudios culturales de la comunicación.
No es posible interpretar la cultura contemporánea al margen de la comu-
nicación y viceversa, así lo hemos leído en las obras básicas de Martín Barbero,
García Canclini, Renato Ortiz, Raúl Fuentes, Rosana Reguillo, para citar a los
autores y autoras que más me han influido. Quedan muy lejos las viejas prácti-
cas de análisis que consideraban a los medios como instituciones autónomas o
independientes de su contexto. Los enfoques metodológicos se ven alterados por
cruces como el que se produce entre los estudios del discurso y los estudios de
la recepción, entre la semiótica y la etnografía, justo cuando la antropología se

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RETOS Y RESPONSABILIDADES DE LA INVESTIGACIÓN EN COMUNICACIÓN

ocupa, cada vez más, de la cotidianeidad contemporánea, es decir, de la cultura


(Martins, 2011).
La segunda convergencia a la que me refería es la de la superación de los
esquemas dualistas que disociaban la producción y la recepción de contenidos.
Esto significa un cambio de paradigma de la comunicación de importantes efectos
sobre las políticas de comunicación: las instituciones sociales se convierten en
media, el poder de la comunicación se desplaza de la emisión a la producción
de contenidos, de la era broadcasting se pasa a la era de la comunicación en red,
los medios –aun que se resistan– son desplazados por las redes sociales. Todo
esto afecta a las políticas de comunicación al exigir un nuevo planteamiento de
algo tan importante para nuestra democracia como los espacios públicos en los
que se hace posible la participación y se produce el consenso y se construyen
las hegemonías.

Las responsabilidades (éticas) de la investigación


de la comunicación

Si aceptamos el valor central de la comunicación e información en el desarrollo


de la democracia podremos coincidir rápidamente en señalar la responsabilidad
política de la investigación.
Ya hemos comentado las distintas formas, objetivos, de la investigación en
comunicación. No me refiero aquí, claro está, a la investigación aplicada a los
intereses comerciales de los distintos agentes de la industria de la comunicación,
sino a las aportaciones críticas al sistema de comunicaciones y a las aportaciones
propositivas a la democratización de las comunicaciones y a sus aplicaciones a
objetos de interés social.
La investigación sobre comunicación/cultura, el análisis de los medios, debe
desvelar las estructuras ocultas de poder (Martins, 2015). Los medios son reco-
nocidos en democracia como controladores de los poderes políticos, ¿pero qué
sucede cuando esto no se cumple? ¿Quién observa, quien informa sobre los
medios?, ¿quién disecciona sus funciones y pone al descubierto sus intereses
y limitaciones? Entonces la investigación sobre comunicación actúa como un
observatorio crítico de la realidad comunicacional.
La investigación de la comunicación también debe incidir en los grandes temas
que ocupan la agenda de la sociedad moderna: la globalización, la emigración,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

las reivindicaciones de género, las nuevas formas de educación, el riesgo, el eco-


logismo, la construcción de la ciudad convivencial, la participación juvenil, etc.
La teoría de la comunicación puede contribuir decisivamente a la compre-
sión de las lógicas de nuestra sociedad. Retengo como algo muy importante la
aportación de la teoría a la interpretación de las formas de dominación que se
ocultan en los fenómenos culturales, incluso en los fenómenos aparentemente
más triviales, de la vida contemporánea.
Es el caso, por ejemplo, de las justificaciones ideológicas del deterioro del
espacio público, que se observa tanto en los medios de comunicación como en
el espacio público de las ciudades modernas
En este punto creo interesante observar el paralelismo entre el espacio mediá-
tico y el espacio urbano, entre política urbana y política cultural, con una prio-
ridad: definir y defender el espacio público, evitando tanto la “comunicación sin
comunicación” como las “calles sin calle” o las “ciudades sin ciudad”.
Pero aparte de estas aportaciones críticas, de su aportación a la comprensión
de la sociedad contemporánea, la investigación de la comunicación también
tiene una responsabilidad propositiva, de apoyo a las políticas democráticas de
comunicación y cultura.
No debemos mantener el pesimismo de la época post Mac Bride, cuando
sentimos que los esfuerzos teóricos para fundamentar las políticas nacionales
de comunicación y un nuevo orden internacional de la comunicación habían
fracasado. Es cierto que se intentó borrar la huella de aquel proceso, pero ahora
vemos como aquellas ideas afloran de nuevo, cuando se comprende la conver-
gencia entre las políticas de comunicación y las políticas culturales y vemos la
posibilidad de proponer políticas para la diversidad cultural, más aún, cuando
vemos que esta posibilidad puede extenderse al uso de las tecnologías para la
comunicación horizontal.
Me parece interesante, por ejemplo, la aplicabilidad de ideas como las formula-
das por autores como Manuel Castells (2009) sobre la autocomunicación de masas
y la organización en red de los movimientos sociales que pugnan por encontrar
nuevas formas de apropiación que superen las viejas estructuras partitocráticas
que consideran anquilosadas.
No es necesario apostar únicamente por las políticas nacionales (quiero decir
estatales) de comunicación por que ahora estas políticas pueden desarrollarse en
múltiples niveles, locales, de comunidades, donde el trabajo teórico puede ser
decisivo a la hora de construir proyectos.

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RETOS Y RESPONSABILIDADES DE LA INVESTIGACIÓN EN COMUNICACIÓN

La investigación de la comunicación debe contribuir, en definitiva, a hacer


posible el empoderamiento y la construcción de procesos de comunicación para
el desarrollo y el cambio social.
Para que esto sea posible es necesaria una política de investigación que apoye
estos objetivos, y esto también pasa por la capacidad de autoorganización de los
investigadores e investigadoras en el campo de la comunicación. Las múltiples
investigaciones que vienen desarrollándose y que implican un gran esfuerzo,
podrían ser mucho más fructíferas si se plantearan en forma de red, formando
parte de análisis comparados.
Esta función también corresponde a las asociaciones académicas (indepen-
dientes y autónomas) que en este nuevo contexto deben ocupar un lugar específico
en el sistema de la política científica, de un sistema formado por centros de inves-
tigación (universitarios o institucionales) y revistas y publicaciones científicas,
cada vez más influyentes, pero también cada vez más concentradas en grupos
editoriales 1.

Referencias bibliográficas

Bauman, Z. (2007). Tiempos líquidos. Barcelona: Tusquets.


Beltrán, L. R. (1985 [1976]). Premisas, objetos y métodos foráneos en la investigación sobre
comunicación en Latinoamérica. In M. de Moragas (Ed.), Sociología de la comunicación
de masas (pp.73-107). Barcelona: Gustavo Gili.
Castells, M. (2009). Comunicación y poder. Madrid: Alianza Editorial.
Fuentes, R. (2008). El campo académico de la comunicación: 25 años de fermentación.
Guadalajara: ITESO.
Kunsch, M. & Melo, J. M. (Eds.) (2012). Comunicação Ibero-americana: sistemas midiáticos,
diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação. São Paulo: Confibercom & Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
Martins, M. L. (2015). Os média na contemporaneidade: da promessa de emancipação
histórica à sua ruína. In M. Ledo & M. I. Vassallo de Lopes (Eds.) Comunicación, Cultura
e Esferas de Poder (pp. 19-44). São Paulo, Brasil: USP-ECA / USC-GEA / AssIbercom /
Agacom. Retrived from http://hdl.handle.net/1822/35292.
Martins, M. L. (2011). Crise no castelo da cultura. Das estrelas para os ecrãs. Coimbra:
Grácio. Retrived from http://hdl.handle.net/1822/29167.

1 Sobre este tema ver Kunsch & Melo (2012); Martins & Oliveira (2014).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Martins, M. L. & Oliveira, M. (Eds.) (2014). Comunicação ibero-americana: os desafios


da internacionalização. Libro de Actas del II Congreso Mundial de Comunicación
Iberoamericana. 13-16 de abril de 2014. Braga: Confiberom / Universidade do Minho /
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). eBook. Retrived from http://
hdl.handle.net/1822/33031.
Moragas, M. de (1981). Teorías de la comunicación. Investigaciones sobre medios en América
y Europa. Barcelona: Gustavo Gili.
Moragas, M. de (2011). Interpretar la comunicación. Barcelona: Gedisa.
Pasquali, A. (1978). Comprender la comunicación. Caracas: Monte Ávila.

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COMUNICACIÓN, CULTURA, INTERNACIONALIZACIÓN
À VOLTA DO COMPROMISO INTELECTUAL
Margarita Ledo Andión*

Mentres o XIX afirmaba o poder do coñecemento, o XX des-


prega o motivo da eficacia do descoñecemento
Alain Badiou, en O século.

Resumo
Con aquel pronunciamento finisecular publicado en L’Aurore so o conciso título
“J’Accuse”, que asinaba Zola, viña a público nun medio de comunicación unha figura nova,
o/a intelectual, que Foucault, en que a arreda da pretensión de universalidade, resitúaa
en tempo presente como “especificidade”, que é o sentido actual do que, no común, se
entende por toma de posición a prol de determinados motivos e modos de intervención,
neste caso no ámeto da cultura e do dereito a comunicar na esfera internacional, como
representativa da construción dunha nova e urxente hexemonía, tamén no campo do
coñecemento. A través de pasaxes múltiplas cara a obxectos común; pendentes de defi-
nirmos un escenario que advirta da necesidade de reexaminar o sentido de palabras
calculadamente distorsionadas como, por exemplo, “diversidade”; na aposta por lle
voltar a súa capacidade realizativa e crítica ao intercambio de bens simbólicos, o texto
apropriase e converte certos debates en síntoma, reactualiza reflexións e, sobremaneira,

*
Professora Catedrática de Comunicação Audiovisual da Universidade de Santiago de Compos-
tela, onde coordena o Grupo de Estudos Audiovisuais. Foi a investigadora principal dos projetos
“Cara o espazo dixital europeo: o papel das pequenas cinematografías en VO” (2012-2015); “Cine,
Diversidad y Redes” (2009-2011); “Lusofonía: interactividade e interculturalidade” (2008-2010).
Publicou, entre outros livros, Finlandiq, Gales, Galicia: os retos dos pequenos cinemas en línguas
non-hexemónicas (2016) e Cine de fotógrafos (2005). Atualmente, preside à Federação Lusófona
de Ciências da Comunicação (LUSOCOM) e é Vice-Presidente da Associação Ibero-americana
de Comunicação (ASSIBERCOM).
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vindica unha actitude, voir ensemble, como acto de cooperación entre escolas de pen-
samento e mais programas interculturais.

Palabras-chave: interculturalidade, prácticas da diversidade, cinema, pequenas nacións

So a ollada atenta de Claude Lévesque (2007) a Academia de Letras do Québec


convocou no 2005 diferentes persoas para que tratasen do que se tiña feito dos
e das intelectuais, ao tempo que entrenzaba este debate coa obra inmensa de
Maurice Blanchot sobre a construción, a significación e, talvez arestora, a desapa-
rición desta figura nodal: a/o intelectual. Das diferentes sesións foi ecoando unha
definición máis ou menos estábel, a medida que se discernían os seus límites, a
súa actitude, a súas erranzas, a súas anticipacións, as súas desercións.
E foi así que os estudosos acordaron situar a aparición dunha singularidade
que se vai dar coñecer como intelectual no intre en que os escritores e as escrito-
ras – da literatura ao xornalismo ou da proclama ao ensaio incerto – deciden, no
XIX, tomar a palabra na praza para dicir o que “era xusto e o que era verdadeiro”
– fixéranos lembrar Foucault en conversa con Deleuze – e aprender a ire, no
pecurso histórico, cara a aqueles lugares e situación onde a súa condición os e as
situaba. E o filósofo cita a vivenda, o hospital, as relacións familiares ou sexuais,
a universidade… como mediacións para acadar unha conciencia máis inmediata
e concreta das loitas e as angueiras.
O que nos interesa traer hoxe acó dos participantes no Coloquio en Québec
son as coincidencias que os levan a diferenciar certos trazos que seguen a infor-
marnos arestora do perfil e da función-manifesto do, da intelectual. Insístese, xa
que logo, na dimensión pública dos seus actos e advírtese dunha perda de función
derivada de se ter convertido ou reducido ao rol de especialista. Apúntase que
a súa función non terá que ver tanto con tratar co verdadeiro e co falso coma co
necesario, e que o necesario pasa por tomar a palabra na praza, por facela circular,
co albo de crear conciencia pública para que a sociedade tradicional deveña cidadá,
e séguese una tradición discursiva que chega ate a Hanna Arendt cando comenta
que o intelectual debe ser crítico e lúcido en todo, experto en nada.
Entre as achegas ao debate, un texto en especial fíxome virar os ollos cara
ela, cara el, e cavilar no que en algures ben puido pasar. Trátase da lectura que de
Blanchot fixo Yvon Rivard para reparar na explicación do e da intelectual como
esa persoa que é quen de espertar en si le souci de l’autre, [a precocupación, a

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COMUNICACIÓN, CULTURA, INTERNACIONALIZACIÓN

angueira do outro] porque sente (ou presente) a dor do que lle falta. E entón cando
vai para a praza e teima en lle retornar ao mundo o que ela, o que el propio perdeu.
Vai para a praza para se salvar el mesmo, ela mesma do irreal cara a onde, talvez,
a súa obra a levou.
Esta angueira do outro como modo de se liberar do eu irreal, este ir para
a praza é, de seu, a obra como tecelá das relacións que conforman un espazo
común, é dicir, un espazo igual. Estamos, da man de Francisco Sampedro (2004),
no Marx da Ideoloxía alemá, en que nos aprende que os individuos non forman
unha communitas (unha clase, un suxeito colectivo) máis que na medida en que
están comprometidos nun obxectivo.
No reverso, un dous excluínte e non dialéctico onde as cousas entran en con-
traposición en que se espalla a idea do non conciliábel, unha idea que abranxe a
necesidade de desaparición para que unha nova aparición teña lugar. Por iso cando
Badiou (2005) define o XX coma o século da paixón polo real, coma o século que
pon en acto, en presente absoluto, as promesas do XIX, engade que para o facer
ten que carecer de moral: o vello debe ser destruído para que emerxa o novo como
tal, e non a novidade – cativa, prendida do pasado –, remarcará.
No ronsel desta ausencia de moral, a cultura contemporánea, en innúmeras
das súas fasquías, adoito fascina polo que ten de accesíbel e intercambiábel, de
mutante. A maior abondamento, para negar e negativizar calquera ancoraxe,
adoito represéntase cunha certa aura de proposta sempre en transformación, feita
de intervalos, enxergada no que pasa entre determinada ocorrencia e os modos
polos que se converte en artefacto para ver, escoitar, se cadra, tocar … O futuro,
porque aída non é, proclámase en vencello con lugares en movemento, lugares
inestábeis, lugares pouco convencionais onde algo acolle existencia no tempo en
que unha pálpebra se pecha e garda determinada sensación no seu interior. O resto
é a súa posta en conexión a través de todos os espazos e de todos os escenarios.
Ráchase, así, cun imaxinario que inclúe pasado, crebas, escollas, contradicións,
e vóltanselle as costas á comunicación como realizativo dun sistema que procura
a harmonia na sociedade da que é constitutiva.
U-lo a idea de compromiso? Como albiscar, en suma, a dor do que nos falta?
Imos suturar esta primeira fenda cunha extensa cita-homenaxe, na que o Stuart
Hall (2014, p. 3) pon en valor os 50 anos dos Estudos Culturais a través dun dos
seus devanceiros e da súa propia toma de posición:
Raymond Williams, no famoso segundo capítulo de The Long Revolution tra-
zou unha definición de cultura, como parte dun proxecto de vida. Esta definición,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

nesta perspectiva de teor antropolóxica, conectou as formas artísticas e culturais


coas formas da política, do poder e do cotián. As práticas culturais, segundo Wil-
liams, foron actividades que compre entender á par da produción, do comércio,
da política e da vida familiar, e todas elas intervindo nun marco determinado
de relacións de clase e de poder. Entrementres, eu estava a traballar con Paddy
Whannel, a facer análises de filmes, de publicidade e de televisión, entre outros
aspectos de cultura de masas, tratándoos como sintomáticos dunha formación
máis ampla – parte do “proxecto de vida” do Williams.

Aínda, na que veu ser a súa derradeira entrevista, Hall sitúa o legado dos Estu-
dos Culturais no desenvolvemento de ferramentas intelectuais para a comprensión
da natureza da cultura e as súas relación coa economía ou a política, para alén do
seu papel nunha restra de campos outrora desconectados, na procura de establecer
un novo ligame entre disciplinas e de contribuir para a inclusión, no debate da
Academia, das relación verbo do Poder. E os froitos continuaron aquilatándose
na xeración que seguíu, con estudosos e estudosas que atinaron con entradas
veladas, coma é o caso de Philip Schlesinger (2000) e as súas consideracións á
volta da nación como espazo comunicativo, – con ou sen Estado, remarca na súa
achega como diferenza – que é tamén, para nós, a condición de calquera proposta
de internacionalización no entrecruzamento de Cultura e Comunicación.
Esta actitude a prol de aspectos outrora non contemplados; este exercicio
de observar cais obxectos poderían valer como indicadores do valor político de
territorios, físicos e simbólicos, situados fóra da axenda, devén seminal para a
pesquisa crítica e acorda a neesidade de introducir outras variábeis. Estou a pensar,
e non por acaso, nos dereitos lingüísticos, no seu desenvolvemento e aplicación
naqués eidos que fan de nós unha nación: a eduación… ou a partilla pública de
mensaxes que singularizamos na parte polo todo, nos medios de comunicación.
E os tempos novos son tamén os novos escenarios que nos atinxen como espazo
de intercambio de bens culturais mediados pola(s) lingua(s): falo dos países for-
malmente denominados hispanófobos e dos lusófonos, e falo da diáspora (Ledo,
2012; Martins, 2015; Martins, Sousa & Cabecinhas, 2007) 1. Falo de voltar os ollos
e os miolos para a posta en valor de imaxes de existencia e de representación, de

1 Ver, ainda, neste sentido, Kunsch & Melo (Eds.) (2013), Comunicação Ibero-americana: sistemas
midiáticos, diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação; Martins et alii (Eds.) (2014), Interfaces
da Lusofonia; e Martins & Oliveira (Eds.) (2014), Comunicação ibero-americana: os desafios da
Internacionalização.

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COMUNICACIÓN, CULTURA, INTERNACIONALIZACIÓN

lugares de encontro, de mapas persoais… canda determinados realizativos efé-


meros, incidentais, que revelan o que adoito o Poder decidíu ocultar. Queremos
saber! Esta consigna que Peter Walkins apuña no seu filme La Commune (2000),
este sentido común, está nas follas voandeiras, nas proclamas, nos manifestos,
nos panfletos, na literatura de cordel, en obras en apariencia residual que nos
aprenderon tanto a resistir como a existir.
Por entre estes obxectos de coñecemento, boto man do capital intelectual do
Grupo de Estudos Audiovisuais, GEA, o colectivo universitario de pesquisa que
coordino e onde levamos dúas décadas desenvolvendo proxectos alternos – no
espazo lusófono, no iberoamericano, no europeo– a redor do cinema de pequenas
nacións e das súas pequenas cinematografías, analizadas dende a cultura como
ponla da economía política, da construción da diversidade e na vindicación da
interculturalidade como paisaxe na que diferenciar as árbores.
Definir campos, regular, expandir… <<Cara ao espazo dixital europeo: o papel
das pequenas cinematografías en V.O./Towards the European Digital Space: the
rol of small cinematographies in O.V.>> é a última das doas na que andamos a tra-
ballar con múltiplas mans –20 investigadores e investigadoras de 8 universidades
do Estado español, a asistencia preciosa de expertos e expertas internacionais, a
colaboración con outros grupos de investigación, como o TECMERIC da Universidad
Carlos III de Madrid– forma parte do Plan Nacional (español) de I+D+i (CSO2012-
35784), e visa traer a tona a viabilidade dun espazo informal de intercambio entre
países como Finland, Wales ou Galiza á luz de diferentes experiencias e do papel das
políticas públicas nas mesmas, da análise económica e do compromiso intelectual
en que confronta ese gap, esa desposesión, que nos impón o mercado e os seus
amplios mecanismos tiránicos.
Xa que logo, na nosa argumentación foi collendo corpo a posibilidade de que
o cinema en linguas non hexemónicas viñera entenderse coma unha ferramenta
de empoderamento e que, pola contra, a súa exclusión sexa considerada como
proba de privación fáctica de dereitos lingüísticos, sociais e culturais. Coincidimos,
así, co pensamento que o profesor Martín Barbero, na secuencia do de Bhabha ou
Marinas, traslada nun artigo a propósito de facer produtiva a interculturalidade
na súa posta en relación com a ideia da identidade narrativa, isto é, de que toda
identidade se gera e se constitui no ato de narrar-se como história, no proceso e
na prática de contar-se aos outros (Barbero, 2014).
O cinema que nos narra para os outros, o cinema en linguas minoritarias ou
minorizadas, actívase como mostración e como indicador da produción cultural

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de pequenas nacións; nacións con ou sen Estado, insistimos, unha denominación


xa asentada no nivel académico, que conta con abundante bibliografía e que,
neste caso, non soamente remite para cinemas de escala reducida (en termos de
mercado interno, anque con posibilidade de internacionalización) senón cara a
expulsión, de facto, do lugar no que se toman as ‘grandes’ decisións.
Como mecánica de traballo comezouse pola monitorización exhaustiva do
programa “Europa Creativa” no cadro da chamada “Axenda 2020”, entrevistas
semi-dirixidas a expertos e expertas; a comparativa dunha enquisa Delphi on
line, e grupos de discusión sobre a recepción de filmes en V.O. Máis calquera
das técnicas de pescuda irían ficar no bango se esta investigación non tivese
como albo incidir tanto na mudanza das mentalidades a propósito da sempre
enarbolada frase propagandística “Europa, mosaico de linguas e culturas”, como
na esixencia – con prazos – de programas de intervención pública para facela
efectiva. Impórtanos, agora, subliñar a aportación fulcral que nos forneceu, no
transcurso dunha entrevista para o devandito proxecto, o profesor Muniz Sodré,
quen nos visitou no XIII Congreso IBERCOM (Universidade de Santiago de Com-
postela, maio de 2013). Naquel curto encontró que poden consultar na web do
noso grupo de pesquisa 2, o profesor Sodré advertíunos que a diversidade non é
pluralidade, non é o recoñecermos outros como diferentes de nós, senón que é
a ocupación de territorios diferenciados, para concluir: en suma, a diversidade é
numérica e é territorial. É a posesión do lugar e dos recursos – comunicacionais,
económicos, financieiros – para transformalos en acción. Por exemplo, engadíu
o intelectual brasileiro, a diversidade no cinema é a posibilidade de aprender e
de ter aceso aos medios para a produción autónoma. Velaí, de maneira clara e
concreta, a Diversidade, con maiúsculas, como empoderamento, é dicir, como
suxeito colectivo e político.
E así, desta maneira, o tal termo ambigúo, utilizado adoito de xeito oportunista
a prol dos intereses neoliberais, renascía como operador dunha nova hexemonía,
que é o sentido que nós utilizamos na pesquisa e que significaba un paso adiante
na crítica que o profesor Armand Mattelart (2002) – mentres urxía a necesidade
de volverlle o sentido ás palabras – desenvolvía en Xeopolítica da Cultura a pro-
pósito da perversión do seu uso como Cabalo de Troia para lexitimar os proxectos
tecnoglobais e combater as políticas públicas de apoio á “diversidade-outra”.

2 Universidade de Santiago de Compostela: www.estudosaudiovisuais.org.

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COMUNICACIÓN, CULTURA, INTERNACIONALIZACIÓN

Avantando as posicións que a seguido citaremos de Schlesinger (2000), a


segunda idea-chave depende, precisamente, da consideración da nación como
un espazo socio-comunicativo. É dicer, como a constatación do dereito que posee
cada sociedade para expresar a súa identidade cultural e establecer canda ela
relacións inter-nacionais/inter-culturais. Abondando neste aspecto, o profesor
da Universidad de Glasgow, a partir da lectura de Karl Deutsch, expón:

El [Deustch] observou que o Estado-nación é ainda o principal instrumento político


para facer que as cousas sucedan “(...) Sen nomealo expresamente, a teoria formula
unha idea – a da “nación sen estado” – que cada vez adquiriu máis significado, for como
categoría analítica, for como proxecto político destinado a redefinir a autonomía de
grupos nacionais dentro do existente sistema internacional de estados (Schlesinger,
2000, pp. 19-29)

Unha outra razón que nos fixo escoller o cinema como un suxeito representa-
tivo para a nosa pesquisa foi, obviamente, a súa performatividade, esa hipotética
fasquía de produto no que todo se aproveita ao tratárese dun ben que non poder
estrañar da súa mesma realidade aspectos que vencellan a economía creativa con
funcións simbólico-representativas. No hourizonte a deseñar, a aposta por irmos
das prácticas culturais en curto para as prácticas da diversidade, co cinema en
linguas minoritarias e minorizadas como un espazo expandido no que convocar
– outra volta os ecos de Hall – o mundo que está á nosa volta e o noso lugar nel.
Porén non ignoramos que a Unión Europea – o marco insitucional de refe-
rencia no devandito proxecto – leva trinta anos tecendo e destecendo unha sorte
de madeixa que, con variacións adxetivas, declara o cinema como obxecto de
programas específicos de axudas en base á súa consideración como un operador
da diversidade. En contradicción coque se enuncia, temos denunciado que, co
punto de mira no retorno comercial, a UE somete o cinema a políticas competi-
tivas, prioriza os filmes de xénero e traslada cara a periferia do sistema o cinema
que, dende aquela “política dos autores”, pasando polos cinemas nacionais, se
expresan dende o interior, singular e plural, da cultura. En suma, a UE precariza
aquele cinema no que Alain Bergala, por exemplo, aprecia precisamente a crea-
ción de vínculos, aquele cinema no que ecoa unha certa fraternitas – recollía
unha investigadora do noso equipo, a profesora Antía López na intervención no
“Foro Internacional sobre alfabetización fílmica e novas audiencias”, que tivo
lugar en octubre de 2014 na Universidade de Santiago ed Compostela –, aquele

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

cinema-fibela, necesario na construción do espazo europeo de comunicación a


través de actos prácticos como a visibilización, internacionalización e posta en
valor deste milagre que lle dá de comer ao pensamento, ao corazón e á imaxinación.
En chegando a esta encrucillada eu sempre recomendo reparar nos porqués
arestora volta a ser citado o ensaio de Anderson (1983), Imagined Communities,
convidar a non esquecer que a partilla colectiva de bens que teñen a lingua como
un dos seus materiais crea e mantén ese senso de pertenza que se expresa na
praza. En chegando a este ponto recollo unha advertencia do profesor de Historia
Contemporánea da Universidade de Santiago de Compostela, e Honoris Causa
da Universidade do Minho, Dr. Ramón Villares, cando adoito comenta que cando
unha sociedade non se preocupa dos devanceiros é porque xa non agarda nada
do futuro, xa se pensa como unha sociedade sen futuro.
Tamén dende a xeopolítica crítica e dende o sentido – político e simbólico
– que acolle a construción de espazos de comunicación – o lusófono ou o iberoa-
mericano, para o caso – en tanto espazos menos regrados, que teñen e manteñen
na práctica do encontro esa posibilidade de vermos/discernirmos aquelo que
ten interese para nós-outros; dende espazos que apostan pola fin dun modelo
de integración do particular no xeral – incluido neste xeral o mercado global – e
pola toma de posición a prol das diferenzas; que pensan a interculturalidade
como signo de solidariedade e como escenario para o intercambio de coñece-
mento e de bens; que ousan arriscar, ou ensaiar, a visibilidade inter-nacional so
proxectos en común, consideramos urxente darlle entrada á nación alargada, en
felíz definción de María Beatriz Rocha Trindade, á diáspora. Aínda en 2010, no
desenvolvemento do IX Colóquio Internacional “Migraciones e Interculturalidad:
los hechos y las políticas”, organizado pola Cátedra UNESCO sobre Migracións da
USC, a profesora Rocha-Trindade falaba de pluralismo cultural fronte a melting
pot, da importancia do propio proceso de diálogo intercultural como xerador do
respecto polas diferenzas, falaba de nación alargada e, cito dende un seu artigo
(Rocha-Trindade, 1984, p. 231) a seguinte reflexión:

O moderno conceito de nação passa a prescindir dos usuais requisitos complemen-


tares de soberania e das unidades de território que tradicionalmente a integravam e
dela constituíam parte indissociável, para passar a incluir todos aqueles que tendo
a mesma nacionalidade, apesar de geograficamente dispersos, se mantêm ligados à
sua origem por laços emocionais e afectivos.

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COMUNICACIÓN, CULTURA, INTERNACIONALIZACIÓN

E fica para a fin unha experiencia, talvez dificil de trasladar polo seu esgo
persoal, que como feminista considero mostrativa do persoal no compromiso, do
persoal no político, da experiencia como parte das propostas de coñecemento, dese
Voir Ensemble que singulariza a toma de posición intelectual e que adaptamos
do noso discurso de ingreso na Real Academia Galega, RAG, en febreiro de 2009.
Partimos, xa que logo, da descrición dunha acción encadeada que exemplifica o
encontro físico como encontro político.
O 21 de xaneiro de 2004, a escritora Luísa Villalta asistiu á presentación
pública do meu primeiro filme, Santa Liberdade, no Teatro Principal de Com-
postela. No ambigú, finalizada a proxección, a atmosfera continuaba prendida
nesa difícil figura fílmica, a da empatía, que se tiña producido entre o lugar e o
que nel tiña lugar, entre o filme e aquela viaxe na que, por trece días, un mundo
que se chama Galiza e outros que se chama Portugal foron a república da Santa
Liberdade, despois de que un comando do DRIL, dirixidos polo capitán Galvao,
o comandante Soutomaior e o republicano galeguista Xosé Velo, ocupasen o
trasatlántico Santa María para chamar a atención ontra as ditaduras de Franco e
Salazar. E a Luísa achegouse a min: como me gustan eses bucles, ese movemento
de testa que fan as mulleres. Temos que quedar e falar.
Luísa fora, talvez, a primeira en ver esa mudanza do espazo, dende o oculto e
cara a descubrir para un outro o sentido da ollada. Ás veces para un outro no plano
do filme, polo xeral para un outro, nós, as persoas que agardan expectantes. Aos
poucos días, Luísa Villalta publicou unha columna no semanario A Nosa Terra,
“Cromosoma L”, L de Liberdade, de Ledo, de Luísa, nun xogo trenzado que eu lle
respondín cun correo no que fixen lembranza do desexo que ela manifestara de
quedar. E falar.
Pasados uns días, nunha sala do Hotel Araguaney, tamén en Compostela,
houbo un serán literario a prol de Palestina. Luísa recitaba. Eu asistín como
espectadora. Luísa sentaba na esquerda, primeira fila. Eu sentei cara o fondo,
máis cara o medio e mireina de costas. Pouco antes de lle tocar intervir, ela
moveu o colo lixeiramente e comezou a facer un movemento en bucle cara
atrás. Sentín que o seu ollar viña para onde eu estaba e eu mesma comecei
un movemento cara o seu ollar pero ela, sen deixar a secuencia, retornaba ao
momento inicial e esa fibela imaxinaria que construímos unha cara a outra
ficou no bango. Os nosos ollos non se cruzaron pero soubemos que nese intre
tiñamos desenvolvido un ligame entre nós. O visíbel, outra volta, collía sentido
no invisíbel. Aos poucos días Luísa faleceu. A partir de entón refírome a este

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

momento como o dobre bucle, como un dous, e penso na fenda, niso que non
tivo lugar. Penso na nosa conversa.
O acto no bango, ese Ver Xuntas, ver cada unha o que a outra non pode ver
porque cada unha ocupaba un lugar diferente, pero saber que nos axuntamos
nese cuarto para mirar o mesmo, para trenzar un espazo común, foi collendo
corpo en múltiplos quites, en frases que eu repetía ao chou, en declaracións, en
pequenos textos e mesmo en falas sen fin nin comezo que deixaban en suspenso
a comunicación.
Até que procurei un certo sosego no ámbito da investigación e na lectura
dunha observadora-pensadora, Marie José Mondzain, que entra no mundo das
imaxes para facernos mudar de paradigmas a propósito de determinadas crenzas,
de certos valores incorporados que impiden recoñecer a posibilidade real do vín-
culo entre a creación dunha obra e a transmisión, para outras e outros, desa obra.
Por vontade e por necesidade, non demorei en chegar a unha proposta súa que
considero nodal para a produción de coñecemento na sociedade contemporánea
e que tentarei desenvolver a rentes da fin.
Coa idea de transitar o legado do corso Jean-Toussaint Desanti, un filósofo que
pensa a filosofía como a práctica do encontro, daquilo que só colle senso fóra, no
exterior, Mondzain convida diferentes persoas a partillar a lectura da conferencia
que impartiu Desanti na Escola das Belas Artes de París seis meses denantes da súa
morte, o 6 de xuño de 2001, Voir Ensemble. Para esta visita, ela aplicará o método
que lle dicta o seu material, a actitude do propio Desanti: establecer ligames entre
persoas que non teñen por que ter moito en común. O común, advirte, non é o
que se nos dá. O común, constrúese.
Das persoas que participan, só dúas, a mesma Mondzain e o director de Cah-
iers du Cinema, Jean Michel Frodon, animador, pola súa banda, de L’Exception,
groupe de reflexión sur le cinéma 3 tiñan asistido, no seu día, á sesión de Desanti
en París. Os dez outros participantes leron e debateron sobre o texto. Eran filó-
sofos, un médico, un artista plástico, directores de teatro e directores de cinema,
xentes que teñen por oficio dar a ver ou, seguindo o mobilizador proemio, xentes
que fan sentir.
Ao se fixar no pensamento de Desanti, a convocante amósanos como a subxec-
tividade non significa ren de considerármola independente do que a constitúe
para un outro, namentres pronuncia unha frase a favor da duración que quero

3 So patrocinio do xornal Le Monde, a editora Gallimard e Sciences Po Paris.

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COMUNICACIÓN, CULTURA, INTERNACIONALIZACIÓN

que fagamos tamén nosa agora, as persoas que esteamos dispostas a un acto ben
representativo da vocación de partillar e de construír un lugar do común: é no
tempo onde se xoga o tecido invisíbel do senso.
Todo o devandito, este sentido do visíbel no invisíbel é do que eu máis gosto
na cultura e, de modo sobranceiro, nunha cultura que se tece no visíbel de maneira
descontinua e que atravesa por situacións de morte, como atravesou a cultura
galega. Unha cultura que para alén da gran produción, a Nación política, no con-
creto e no que a min me atinxe, se expresa en producións da industria cultural – o
libro, o xornal, o filme-, en producións nas que un outro – o público, singular e
plural – é constitutivo, en producións que non existen á marxe da súa posta en
relación, do Voir Ensemble, unha frase realizativa da que non dou atinado coa
tradución, pero que precisa do encontro para se producir, do que nós estamos a
desenvolver neste intre preciso.
Do encontro físico e do encontro político que sinala o paso polo XIX cara o
XX, así como o compromiso da intelligentzia coa sociedade civil, resta no XXI a
posibilidade de certas alianzas, con normas non escritas, que nos identifican cun
proxecto das que agroman vencellos que se rexen polo compromiso da igualdade
do lugar e do que no lugar ten lugar, da igualdade entre países e entre as persoas
que en acto poboan os países. E é no ronsel dese encontro onde acolle valor de
seu Voir Ensemble, axuntarse para partillar o acto de ver e para tecer un lugar de
relacións.
Nesta vontade de asumir nos nosos actos prácticos, na fala, aos outros,
iso que tanto nos recomenda Alain Badiou no devandito O Século, vou referir
o exemplo do costrutor de barcas do porto de Ajaccio que un neno de 13 anos
observaba ben de mañanciña. Un día, cóntanos o Desanti rapaz, vexo madeira
polo chan; miro táboas, achas longas e fracas, tacos, ollo para as diferentes pezas
esparexidas por aco e por aló. E miro diante, estantío, o construtor de lanchas.
Pregúntolle se vai facer unha gamela con esa madeira. Tornase de súpeto e
espeta: cal madeira? Para de seguido dicir: Ti ves táboas, eu vexo outra cousa.
Vexo os mariñeiros que me fixeron a encarga desta barca. Son sete, sete remei-
ros e o home do leme, o patrón. E non son semellantes, hainos grosos e magros.
Teño que saber cómo facer... e así continuou coa leria de que tamén miraba os
castiñeiros, que tampouco son iguais nin é o mesmo a madeira que serve para
a trabe dunha casa que a que vale para facer a lancha. E non falemos da sorte,
rosmaba en corso, facendo os cornos cos dedos da man. Imaxina – insistía – que
vergoña para min e para os meus se, unha noite de mar brava, estes mariñeiros

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

afogan porque eu non din sabido escoller, hai tempo, o bo castiñeiro nin acertei
co xeito de dispor as pezas da madeira.
Pezas que arestora nós debemos saber discernir para a súa función nesta pai-
saxe que singularizamos nos rótulos Cultura, Comunicación e Internacionalización.

Referencias bibliográficas

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from http://hdl.handle.net/1822/24127.
Mattelart, A. (2002). Geopolítica de la cultura. Cidade do México: ERA.
Mondzain, M. J. (Coord.) (2002). Voir Ensemble. Paris: Gallimard.
Rocha-Trindade, M. B. (Jul./Set. 1984). O Diálogo Instituído. Nova Renascença: revista
trimestral de cultura, IV, 229-245.

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COMUNICACIÓN, CULTURA, INTERNACIONALIZACIÓN

Sampedro, F. (2004). A cidadanía excluínte. A Trabe de Ouro, 58, 157-179.


Schlesinger, P. (2000). The sociological scope on nacional cinema. In M. Hjort & S.
MacKenzie (Eds.), Cinema and Nation (pp. 19-31). Nova Iorque: Routledge.

Outras obras consultadas

Foucault, M. (29 novembre – 5 décembre 1976). La fonction politique de l’intellectuel.


Politique-Hebdo, pp. 31-33.
Fuentes Navarro, R. (2007). La comunicación desde una perspectiva sociocultural: acer-
camientos y provocaciones. Guadalajara: ITESO.
Grimson, A. (2011). Los límites de la cultura. Buenos Aires: Siglo XXI.
Ledo Andión, M. (2009). Do bucle e da Fenda. Para un ensaio crítico sobre a cutura galega.
A Coruña: Real Academia Galega.

Referencias fílmicas

Ledo Andión (2003). Santa Liberdade.


Peter Walkins (2000). La Commune.

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DA NECESSIDADE E DA POSSIBILIDADE
DE UMA HISTÓRIA DAS MÍDIAS SOB A ÓTICA LUSÓFONA
Antônio Hohlfeldt*

Resumo
Este estudo propõe a necessidade, a possibilidade e a importância de se estudar a história
das mídias numa ótica lusófona. Nesse sentido, mostra a utilidade das novas tecnologias
da informação e da comunicação para a pesquisa em causa, tanto mais que é manifesta a
insuficiência de informações a respeito dessa história, em Portugal e no Brasil, como de
um modo geral, em todos os países de língua portuguesa. Em termos teóricos, este estudo
inscreve-se em tradições académicas, que remetem a Marshall McLuhan e Lúcia Santaella.

Palavras-chave: história das mídias; história do jornalismo colonial de expressão portu-


guesa; teoria da comunicação; teoria do jornalismo

É compreensível o entusiasmo dos jovens pesquisadores diante das novas tec-


nologias da informação e da comunicação. Elas sugerem que o emissor se tornou
uma espécie de Deus coletivo, que tudo pode. Tais entusiasmos, porém, ignoram
que os atuais processos, muitas vezes saudados como novidade ou grande con-
quista, já existiam há algumas décadas, ainda que sob aspectos mais simples, com

* Professor na Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande


do Sul (PUCRS), onde se doutorou em Linguística e Letras, em 1998. Exerceu as funções de jor-
nalista, durante praticamente vinte anos, no jornal Correio do Povo, no Diário do Sul e no Jornal
do Comércio. Investiga sobre a comunicação cultural, artes cénicas e criação dramática, teoria
e história do jornalismo e práticas sócio-políticas da mídia. É investigador do CNPq e integra o
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Presidiu à Intercom e à Lusocom. Entre
as suas publicações constam Ronald Radde – O perseguidor de sonhos – 47 anos de Teatro Novo
(2015); Arte e Cultura (2008); Interação e sentidos no ciberespaço e na sociedade (2001, em co-
-autoria); Teorias da Comunicação (2001, hoje em 15.ª edição).
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

menor abrangência e certamente com menor velocidade. Mas complexidade,


abrangência e velocidade não significam necessariamente o novo e, sim, uma
variância de algo pré-existente.

Necessidade da pesquisa histórica

Carentes de leitura e, por conseqüência, de maior reflexão e análise crítica, os


jovens pesquisadores que, além do mais são, muitas vezes, bastante ignorantes
da história pretérita das mídias, imaginam que as atuais descobertas sejam con-
quistas definitivas, vanguardistas e irretorquíveis.
Ironicamente, é um dos gurus das novas tecnologias, Marshall McLuhan
quem, em obra da década de 1960, alertava para uma relação crítica que se esta-
belecia entre cada nova tecnologia descoberta e/ou desenvolvida e aquela que
lhe era imediatamente anterior (McLuhan, 1974; Bianco, 2005, p. 156). Segundo
McLuhan, as mídias sucediam-se historicamente, desde a imprensa (século XV)
até a Internet (século XX), começando pela palavra impressa; a imagem projetada
numa grande tela, para ser consumida por grandes platéias; o rádio (Rosa, 2016),
que derrogou o conceito de distância física e tornou-se um dos elementos de
maior amalgamação social jamais conhecido pela humanidade (e dir-se-ia que
ainda não ultrapassado nem mesmo pela Internet, graças às diferentes exigências
de infra-estrutura de cada uma dessas mídias), etc.
Como diz McLuhan, as tecnologias são produto das civilizações e, como tais,
desvendam modelos relacionais e de pensamento de um dado período. Por terem
impacto na organização social, fornecem a chave para compreendermos a evolução
daquela civilização. É através de seus artefatos técnicos que as civilizações se expan-
dem e estabelecem contactos entre si. Deve-se levar em conta que o desenvolvi-
mento de cada mídia interferiu ou sofreu interferência das demais mídias existentes,
na medida em que com elas se articulou, criando novos processos de sociabilização.
Lucia Santaella já chamou a atenção para o fato de que nenhuma mídia pré-
-existente havia desaparecido com o surgimento de uma outra tecnologia. Pelo
contrário, rapidamente ela se aclimatava à nova paisagem e logo adiante ambas
as tecnologias estavam a desenvolver novas estratégias que as reforçavam mutua-
mente (Santaella, 1992).
Se o novo cria temores, também fascina, com a sugestão (falsa) do poder
humano sobre a natureza e os ambientes culturais. Enfrentamos, pois,

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DA NECESSIDADE E DA POSSIBILIDADE DE UMA HISTÓRIA DAS MÍDIAS SOB A ÓTICA LUSÓFONA

simultaneamente, fascinação e preconceito, ambiguidade que poderia ser facil-


mente resolvida se nossos estudantes, professores e pesquisadores tivessem
maior informação histórica e fossem capazes, em consequência, de refletir, sem
quaisquer envolvimentos emocionais, analisando cuidadosamente o avanço (ou
não) que a nova tecnologia vem de propor ou como ela faz avançar – ou não – as
tecnologias até então existentes.

A necessidade de conhecimento do pretérito

A primeira questão que levantamos e defendemos, portanto, é que, para bem se


compreender e avaliar – diríamos até, para melhor saber utilizar e valorizar uma
nova mídia 1 – é fundamental que conheçamos a história das demais mídias e,
sobretudo, a gênese da nova mídia, o que em muito nos ajudará a compreender
suas possibilidades e melhor explorá-las. Infelizmente, contudo, os cursos de
Comunicação Social nem sempre dão esta atenção fundamental para a história das
mídias, de maneira que, na maioria dos casos, parece que a invenção tecnológica
como que caiu do céu. Não se consegue nem mesmo compreender o que cada
uma delas terminou por potencializar ou criar 2. Relembremos, para ficar apenas
no jornalismo, a sempre reiterada existência do lead: os telégrafos em serviço,
no início do século XX, eram relativamente precários e pouco confiáveis. Como
a Internet, em alguns lugares mais distantes, por vezes derrubavam a ligação e
a agência/o jornal ficavam sem a preciosa reportagem de seu enviado especial,
recuperou-se e revalorizou-se uma antiga prática traduzida na expressão dos 5
ws – em inglês – quem, quando, onde, o quê, por que? – que hoje em dia constituem
o que chamamos de lide 3. Ou seja, o que agora consideramos uma recomendável
técnica de redação jornalística, nada mais foi do que uma necessidade técnica,
externa ao jornalismo em si mesmo, exigida por uma tecnologia fora do procedi-
mento jornalístico específico, mas que terminou por se institucionalizar enquanto
prática profissional referencial e modelar, vinculada à chamada objetividade
jornalística, contrapondo-se à antiga prática do nariz de cera da imprensa do

1 Deve-se tomar o termo mídia como interface, mediação, entre emissor e receptor de uma men-
sagem, dada a impossibilidade de comunicação direta (Melo, 2010, p. 816).
2 Lembremos a histórica experiência de Orson Welles, quando radiofonizou A guerra dos mundos,
romance original de H. G. Wells, em 1938.
3 Lead, em inglês, já tem a forma dicionarizada de lide, no idioma português.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

século XIX, na busca que o jornalismo fez de princípios e práticas que o legitimas-
sem perante outras práticas comunicacionais, como a publicidade ou as relações
públicas, buscando aproximá-lo do campo científico. No Brasil, a objetividade é
sistematicamente valorizada no trabalho jornalístico, tanto como valor, quanto
como conjunto de regras práticas, nas ações da imprensa, a partir dos anos 1950.
Por influência americana, foram adotadas novas técnicas redacionais, tais como o
lide e a pirâmide invertida 4, entre outros. Mais do que normas a serem obedecidas,
a partir de um manual, a objetividade do jornalista passou a sustentar uma certa
imagem positiva e confiável desses profissionais, além de reforçar a crença de
que eles têm, por vocação, a defesa dos interesses coletivos (Melo, 2010, p. 882).
Robert Darnton já mostrou, com clareza, que a história da comunicação “pode
revelar como os homens e mulheres de um tempo e lugar compreendem sua
própria experiência a partir do entendimento de como davam sentido aos acon-
tecimentos e transmitiam informações” (Darnton, 2005, p. 41). Esse conceito tem
sido retomado e aplicado, com excelentes resultados, por exemplo, por Marialva
Barbosa, em diferentes obras, resultando numa história cultural, tanto do jorna-
lismo, quanto da comunicação brasileiros (Barbosa, 2007, 2010, 2013). Tal pers-
pectiva permite fugir ao risco dos anacronismos que, muitas vezes, encontramos
em obras de história das mídias, inclusive de excelentes autores, como é o caso
de Nelson Werneck Sodré (2011[1966]), sobretudo no capítulo em que estuda o
nascimento da imprensa brasileira, no século XIX, após o translado da Coroa
portuguesa para a então colónia sul-americana, logo elevada à condição de reino.
A história da comunicação permitirá, inclusive, compreender e valorizar as
relações culturais, os valores ideológicos, as preocupações e as necessidades que
uma determinada comunidade enfrentou/enfrenta. Recentemente, participáva-
mos de banca de Doutorado, para avaliação de pesquisa que se dedicou a estudar
os jornais brasileiros das duas primeiras décadas dos 1800, para compreender
como se formaram e disseminaram conceitos como nação, liberdade e brasilidade
(Flores, 2015). Ora, acompanhar o debate que tais jornais promoveram, na ocasião,
ajuda, não apenas a compreender, historicamente, a formação de tais conceitos,
quanto entender porque, entre nós, eles são tão tênues, hoje em dia: para isso,
basta aproximarmos aquele texto da perspectiva adotada por José Marques de Melo
quanto aos motivos que levaram à impossibilidade da existência da imprensa na
colónia brasileira, entre 1500 e 1808, e que vão bem além da simples proibição da

4 Narrativa dos fatos a partir dos mais importantes para os menos significativos.

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Coroa portuguesa. Melo mostra que não havia condições para a imprensa entre
nós, naquela época, na medida em que inexistiam cidades; a maior parte da
população era analfabeta e, enfim, as distâncias a serem cobertas eram absoluta-
mente inviáveis para qualquer projeto deste tipo (Melo, 2003). Do mesmo modo,
permitimo-nos tomar um exemplo que envolve o conjunto de nossas pesquisas
em torno do jornalismo luso-brasileiro, com ênfase na história dos jornalismos
das antigas colónias portuguesas, aí incluídos Brasil, Moçambique, Angola, etc. O
que vimos propondo é uma história que integre as diferentes histórias nacionais,
o que vai evidenciar por exemplo que, assim como a legislação metropolitana
portuguesa proibia a existência de prelos nas colónias e, por conseqüência, qual-
quer atividade editorial, seja para a produção de livros, seja para a concretização
de uma imprensa jornalística, os acontecimentos de 1817 e, especialmente, a
Constituição portuguesa de 1820, levou a uma reviravolta. Os fatos políticos por-
tugueses geraram conseqüências, primeiro, no Brasil: o retorno de Dom João VI a
Portugal, sob pena de perder a coroa; a permanência de Dom Pedro de Alcântara 5
no Brasil; posteriormente, as decisões das Côrtes, em Lisboa, buscando reduzir
o Brasil novamente à condição colonial: tudo isso desencadeou o processo que
redundou na independência de 1822. Ora, em 1836, o governo português institui
a obrigatoriedade de as administrações coloniais passarem a publicar boletins
oficiais nos mesmos moldes da antiga Gazeta de Lisboa e da então Gazeta do Rio
de Janeiro, o que abriu caminho para a imprensa independente daquelas demais
colónias. Ora, se não buscarmos uma leitura comparada das histórias individua-
lizadas de cada antiga colónia, continuaremos com uma perspectiva isolacionista
e voluntarista, o que é absolutamente equivocado e nada explica.
Do mesmo modo, entendemos que a prática típica do século XIX, de os jor-
nais se lerem entre si, levou a uma forte influência do jornalismo panfletário e
republicano, que já então se desenvolvia no Brasil – guardadas as proporções e
diferenciações locais, é claro – sobre a imprensa das demais colónias.
Outro exemplo importante: o Brasil tem Hipólito José da Costa como o patrono
da imprensa nacional. Ora, se consultarmos historiadores da imprensa, como
Nelson Werneck Sodré e José Tengarrinha (2013[1998]), respectivamente, no Brasil
e em Portugal, verificaremos que cada um deles incluiu Costa, a seu modo, nas his-
toriografias que escreveram. No Brasil, Hipólito passa por brasileiro; em Portugal,
por português. Nenhum desses historiadores, contudo, parece dar-se conta de que

5 Mais tarde, Dom Pedro I , do Brasil e Dom Pedro IV, de Portugal.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Hipólito José da Costa, na verdade, é personagem – e importantíssimo – da história


do jornalismo de ambos os países. Uma leitura na perspectiva comparativista e
inclusiva relativiza a questão da nacionalidade e, por outro lado, corrige um erro
monumental: o de que Costa teria sempre defendido a independência brasileira
de Portugal, o que é falso. Uma simples consulta aos exemplares dos jornais, por
mais rápida que seja, evidencia que, pelo menos até 1820, Costa foi ardoroso
defensor do que ele chamava de reino unido de Portugal e Brasil. Seu argumento
era simples e objetivo: Portugal, sozinho, na Europa, era um país pequeníssimo,
praticamente sem significado; o Brasil, na América ou no mundo, era insignifi-
cante. Juntos, tornavam-se um reino poderoso, tanto territorial, quanto económica
e estrategicamente. Hipólito José da Costa só passaria a defender a independência
brasileira após aquelas malogradas disposições lisbonenses de devolver o Brasil
à condição colonial. Se alguém tiver dúvidas, leia, por exemplo, o manifesto que
ele assina no lançamento do Correio Braziliense, ou tente entender porque Costa
publica, no jornal, a conclamação das autoridades portuguesas de resistência ao
governo opressor e invasor de Napoleão a Portugal. É este tipo de discussão que
precisa ser feita para que consigamos entender o que aconteceu de fato e o modo
pelo qual se desenrolou a história da imprensa jornalística em cada um desses
territórios. Descobriremos, talvez surpresos, que há relações diretas e concretas
entre os jornalismos coloniais: por exemplo, graças à existência de colónias por-
tuguesas e de exilados angolanos, moçambicanos ou cabo-verdenses, em terras
brasileiras, como na Bahia e no Pará, possibilitou-se a circulação dos jornais das
colónias africanas em terras americanas. Do mesmo modo que as colónias por-
tuguesas nos Estados Unidos, por serem constituídas, na época, por boa parte de
açorianos, explicam porque jornais dos Açores circulavam naquele país.
Vamos a mais alguns exemplos: pretende-se que a prática de entrega de brin-
des, por parte dos jornais, ou a divulgação de colecionáveis, ocorram apenas a
partir dos anos 1970, tanto em Portugal, quanto no Brasil. Isso, contudo, é um
engano, como já evidenciamos em anterior estudo: os jornais que publicavam
folhetins, em Paris, por exemplo, e que possuíam gráficas próprias, costumavam
transformar os folhetins em volumes encadernados, aos quais acrescentavam
gravuras dos artistas mais famosos da época. O assinante podia trocar os folhetins
colecionados por um desses volumes (Hohlfeldt, 2008). Os periódicos de Moçam-
bique e de Angola não deixaram de desenvolver a mesma prática.
Também não é raro encontrarmos um anúncio promocional, em jornais de
Moçambique, por exemplo, em que se insta o leitor a adquirir os produtos daquela

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DA NECESSIDADE E DA POSSIBILIDADE DE UMA HISTÓRIA DAS MÍDIAS SOB A ÓTICA LUSÓFONA

empresa que costuma anunciar no periódico. Promovem-se, igualmente, con-


cursos patrocinados pelo jornal, entre seus leitores, propiciando brindes aos que
renovassem assinaturas ou alcançassem novos assinantes para a publicação. Por
fim, nem mesmo a prática do chamado jornalismo interativo e/ou colaborativo,
em que o jornal publica artigos ou fotos de seus assinantes, era desconhecida do
jornalismo do final do século XIX ou dos primórdios do século XX, nas antigas
colónias: encontramos muitos jornais que, após o advento do clichê, apelam a
seus leitores para que enviem fotografias de suas aldeias, para serem divulgadas
no periódico, mostrando, assim, as belezas e o desenvolvimento alcançado pelas
colónias...
Pretendemos, com essas ponderações, ter evidenciado a importância do
conhecimento da história das mídias – com destaque, no nosso caso, para a
imprensa periódica – no tempo presente. Por exemplo, examinar a introdução
da tecnologia nas casas norte-americanas, pelas páginas da Seleções do Reader’s
Digest ou, no caso do Brasil, da Revista do Globo, de Porto Alegre, que circulou
a partir de 1928: é interessante acompanharmos a publicidade dessas revistas, o
que permite uma magnífica análise da urbanização e da tecnologização do lar ao
longo das décadas (McLuhan, 1951) 6.

Possibilidades de pesquisa histórica

Avancemos o segundo ponto sob esta mesma perspectiva. Se, até aqui, examina-
mos a necessidade, reflitamos agora sobre as possibilidades. No caso da imprensa
jornalística, o pesquisador depende fundamentalmente de museus e arquivos,
sejam eles privados ou públicos. Podem ser a Biblioteca Nacional, do Brasil; a
Biblioteca Pública Municipal do Porto ou a Bibliothèque Nationale, da França;
ou também instituições mais regionais, como o Museu de Comunicação Social
Hipólito José da Costa, pertencente ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul,
no Brasil, ou a Hemeroteca Municipal de Lisboa, integrada à Câmara Municipal
de Lisboa. O tempo, contudo, é o maior inimigo desses arquivos, porque o papel
sempre corre sérios riscos: sua qualidade, no século XIX, como nos princípios do
século XX, não era tão boa: o papel escurece, esfarela-se, etc. No caso dos jornais

6 Voltamos mais uma vez a Marshall McLuhan. O livro The mechanical bride, de sua autoria,
infelizmente ainda inédito no Brasil, propunha, justamente, a leitura da publicidade norte-
-americana, divulgada em revistas e jornais, para entender o American way of life.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

coloniais africanos, tem-se a questão do transporte: o papel vinha da metrópole,


o jornal era enviado para a metrópole. Tudo isso, sempre em navios, enfrentando
a maresia.
Depois, temos as condições de armazenamento, critérios de organização,
possibilidades de manipulação e consulta, etc. Muitos periódicos que consultamos,
quer em Porto Alegre, quer no Porto 7, hoje já se encontram retirados e levados
para espaços de UTI documental, como dizemos.
No que toca ao cinema, como o rádio e a televisão, enfrentamos a necessidade
de um armazenamento muito mais complexo, sobretudo quanto a materiais mais
antigos. No caso do cinema, os negativos ou os positivos eram feitos de materiais
altamente combustíveis. Muitas coleções se perderam tomadas pelo fogo, gerado
por algum descuido ou simplesmente por autocombustão. No caso do rádio, have-
ria que se guardar as gravações dos programas, o que raramente foi lembrado 8.
O mesmo ocorria com a televisão que, pelos mesmos motivos, perdeu muito de
seu acervo original. O advento do vídeo, neste sentido, ajudou muito, quer porque
naturalmente já se constituía em uma gravação que podia ser multiplicada infini-
tamente, quanto facilitava a confecção, separação e guarda de uma cópia. Assim
mesmo, haveria que se ter uma política específica a respeito disso 9.
A Internet, neste sentido, e as novas tecnologias a ela associadas, como aque-
las que possibilitam a digitalização, guarda, transporte e envio de arquivos, levou
a um imenso salto e a uma facilitação segura para o trabalho de pesquisa e de
historiografia. Boa parte dos arquivos de jornais, filmes, programas televisivos ou
de rádio, começaram a ser digitalizados, multiplicando-se as cópias e, sobretudo,
evitando-se que o documento original precise ser consultado diretamente, já que,

7 Refiro-me ao simpático e eficiente acesso que tive ao acervo da Biblioteca Pública Municipal do
Porto, cuja direção facilitou-me sobremodo as pesquisas que desenvolvi.
8 Por incrível que pareça, neste sentido, os períodos ditatoriais, enfrentados tanto pelo Brasil como
por Portugal, às vezes ajudaram à salvação desta história, pois as autoridades exigiam gravações
dos programas apresentados para análise antecipada ou a posteriori, parte dos quais acabou
guardada.
9 A própria TV Globo, no Brasil, não possuía nenhuma política de guarda de seu acervo. Só recen-
temente, há cerca de uma década, e graças ao relacionamento crescente com as universidades,
é que a emissora decidiu-se por gravar e guardar tudo, passando a constituir seu memorial.
Na Cidade Cenográfica que a emissora mantém, próxima do Rio de Janeiro, organizou-se um
extraordinário acervo, que se mescla com a central de figurinos e a central de produção técnica
da emissora, onde se experimentam novos materiais ou se podem reutilizar materiais, mediante
novas estilizações.

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em geral, o estudo pode ser feito a partir da cópia digitalizada. Neste sentido, as
instituições, tanto aquelas antes mencionadas, quanto outras muitas, criaram
programas específicos e excelentes de digitalização e constituição de acervos
digitais, o que permite ao interessado acessar qualquer documento, até mesmo
desde sua casa, sem ter necessidade de fazer-se presente fisicamente na institui-
ção. Temos experiências concretas a respeito disso: quando preparávamos a tese
de doutorado sobre romances-folhetins na imprensa de Porto Alegre, passamos
quase dois anos manipulando jornais, na sede do Museu de Comunicação Social.
Mais adiante, conseguimos uma licença especial para levar os periódicos para casa,
onde montamos verdadeira oficina para consumar a pesquisa. Do mesmo modo,
quando estudamos na Biblioteca Pública Municipal do Porto, precisávamos ali
estar presentes diariamente para, com o auxílio dos funcionários da instituição,
deslocar os volumes das valiosas coleções até a mesa que nos fora destinada, dia
a dia, ao longo de meses.
Recentemente, porém, quando precisamos consultar um jornal português,
entramos no sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa e em alguns minutos
acessamos o periódico procurado. Atualizando-nos com os procedimentos da
instituição, logo tínhamos os exemplares procurados à disposição, sem sujar
mãos, sem importunar funcionários, sem depender da condição qualitativa do
material. Por isso mesmo, quando regressamos de nosso estágio de Pós-doutorado
no Porto, decidimos criar um sítio capaz de publicizar digitalizações e postagens
de periódicos, o que se concretizou no endereço www.pucrs.br/famecos/nupecc,
onde já temos, disponibilizados, centenas de exemplares de jornais alternativos 10,
da época da ditadura brasileira posterior a 1964. Aí também se encontram as
primeiras edições de jornais das antigas colónias de expressão portuguesa, do
mesmo modo que disponibilizamos a coleção da primeira (e única) revista sobre
televisão, publicada no Rio Grande do Sul, a TV Sul Programas 11. Outro projeto

10 Jornais quase sempre tablóides, com conotação de resistência à ditadura, alguns nitidamente
ideológicos e/ou partidários, outros culturais, que dependiam exclusivamente de assinaturas e
circulavam fora das bancas de venda tradicional. No momento, estamos digitalizando Movimento
e Opinião; já digitalizamos Pato macho e estamos iniciando a digitalização do Coojornal.
11 Enquanto a televisão brasileira permaneceu regionalizada, também era possível ter revistas
regionalizadas. No entanto, com o surgimento do videotape, as emissoras televisivas criaram
as grades nacionais de programação e, com isso, o noticiário televisivo centrou-se em São Paulo
ou no Rio de Janeiro, desaparecendo as revistas regionais, como a TV Sul Programas, na medida
em que praticamente desapareceram os programas produzidos regionalmente, confinados a
pequeníssimos espaços obrigados por lei.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

em implantação, neste momento, é sobre os suplementos literários de jornais


brasileiros e a crítica literária de rodapé.
Em resumo, as novas tecnologias facilitaram profundamente a pesquisa e a
documentação histórica das mídias, o que deve dar alento a eventuais interessa-
dos. Diminuiu-se a necessidade do deslocamento físico (por exemplo, o Museu
da Imprensa do Porto tem um acervo físico extraordinário que vale a pena ser
visitado, mas também pode ser acessado digitalmente, como já o temos feito
tantas e tantas vezes).

A necessidade da pesquisa histórica lusófona

Chegamos ao ponto final desta reflexão, na verdade, aquela que é a principal,


porque a motivou.
Tomemos os principais livros de história da comunicação, oriundos dos
Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, etc. O que encontramos aí? Uma
perspectiva eurocêntrica excludente: fala-se do século XVIII inglês; da Revolução
Francesa e de sua influência sobre a prática do pasquim; registram-se as desco-
bertas de Gutenberg e outros tantos inventores, nos atuais territórios germânicos;
discute-se polémica e profundamente as primeiras folhas e gazettas...
O que aparece, nestes livros, a respeito da mídia e especialmente do jornalismo
desenvolvido em Portugal, Espanha, Brasil ou colónias de Espanha e de Portugal?
Tem-se um bom exemplo no livro de Alejandro Pizarroso Quintero, História da
imprensa (Quintero, 1994). Para se garantir um capítulo dedicado a Portugal, a
editora Planeta, que traduziu a obra original, convidou um pesquisador português
para o fazer, no caso, Nuno Rocha. E este era um livro escrito e publicado origi-
nalmente na Espanha!!! Ora, o que esperar das demais obras? Sobre as antigas
colônias de ambos mos países, nem uma palavra.
Voltemos ao que dizíamos ao abrir este texto: nem os livros portugueses,
nem os livros brasileiros falam das histórias de uns ou outros, e muito menos
das antigas colónias... ou seja, está tudo por fazer e para fazer. Foi essa constata-
ção que nos incentivou a iniciar este trabalho. À medida em que avançamos as
pesquisas e as reflexões que delas nascem, mais fica evidente a necessidade de
se constituírem grupos internacionais para pesquisar e estabelecer relações que
redundem na concretização, não apenas de uma historiografia comum, quanto
numa sua divulgação, porque, em última análise, de nada adianta produzirmos

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DA NECESSIDADE E DA POSSIBILIDADE DE UMA HISTÓRIA DAS MÍDIAS SOB A ÓTICA LUSÓFONA

nossos estudos, se eles não chegarem a ser conhecidos. Por exemplo, valorizar
o fato de que ainda temos um jornal escrito em português em Macau... e diá-
rio!... Mas o quanto sobrou da herança lusófona em Goa, cuja imprensa, em seu
desenvolvimento, tem uma forte presença portuguesa em seus primeiros sécu-
los (lembremos que o governo português admitiu prelos em Goa, levados pelos
jesuítas, ainda no século XVI...).
Esta é uma das tarefas e dos desafios da Confibercom, conforme já temos
discutido, por exemplo, no encontro ocorrido no CIESPAL, há cinco anos. Aliás,
esta foi uma colocação que também fizemos no primeiro encontro da entidade,
na Universidade de São Paulo (2011), quando chamamos a atenção para o fato de
que não nos lemos: portugueses não lêem espanhóis e brasileiros não lêem latino-
-americanos; portugueses pouco conhecem os pesquisadores brasileiros e estes
quase nada sabem dos pesquisadores africanos. Há esforços quase infinitos que
precisam ser feitos, sem o quê não desconheceremos apenas a história das mídias,
em nossas terras, quanto não conseguiremos jamais contextualizá-la e relacioná-la
com outras histórias. Temos defendido que, por etapas, precisamos a) conhecer a
história das mídias tal como ela se desenvolveu no Brasil; b) conhecer a história das
mídias tal como ela correu em Portugal e nas antigas colónias; c) aproximar esta
história lusófona de uma história ibérica, cotejando a história de Espanha e das
colónias de Espanha; d) aproximar esta história ibero-americano-africano-asiática
da história européia em geral e, enfim, da história das mídias, nas antigas treze
colônias da América do norte e, depois, nos Estados Unidos, a partir do século
XVIII. Não deveremos esquecer, igualmente, o continente asiático ou o longínquo
leste europeu (referimo-nos especialmente à Rússia e a seus antigos territórios).
Também precisaremos levar em conta as antigas civilizações americanas, quer do
norte, do centro ou do sul. E a história das mídias do chamado quinto continente:
encontraremos surpresas que vão evidenciar que os conceitos de jornalismo e de
mídia, de modo geral, são muito mais universais do que poderíamos supor. Mas,
sobretudo, este projeto deve nos ajudar a entender que não temos história inferior
ou superior à de outras civilizações, mas que, pelo contrário, vivemos os mesmos
processos, ainda que, às vezes, mais distanciados temporalmente, se bem que, sob
outros aspectos, poderemos nos ter antecipado a eles. Lembremos, neste sentido,
as antigas e pioneiras relações de Manuel Severim de Faria, tão bem estudadas
por Jorge Pedro Sousa (2007). Ou aproximemos os sermões medievais da prática
dos romances de cordel: uns no âmbito da Igreja, outros no amplo espaço do adro
religioso, cada um a seu jeito, promovendo certa informação jornalística, direta ou

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

indiretamente, a partir do que podemos concluir que as práticas informacionais


e comunicacionais são muito mais constantes do que possa parecer.
Enfim, entusiasmamo-nos com o que se vem realizando no Brasil e em Por-
tugal e, mais recentemente, em Moçambique ou em Cabo Verde, por exemplo,
e temos esperanças de que espaços de encontro, como aqueles que podemos
realizar no quadro da Confederação Ibero-americana das Associações Científicas
e Académicas de Comunicação (Confibercom), são valiosíssimos momentos para
este tipo de reflexão que, de seu lado, podem propiciar ações e políticas objetivas
que mudem a atual situação, de distância e desconhecimento 12.

Referências bibliográficas

Barbosa, M. (2007). História cultural da imprensa – Brasil (1900-2000). Rio de Janeiro:


Mauad.
Barbosa, M. (2010). História cultural da imprensa – Brasil (1800-1900). Rio de Janeiro:
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1. Florianópolis: Insular.
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para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras.
Flores, G. B. (2015). Os sentidos de nação, liberdade e independência na imprensa brasileira
(1821-1822) e a fundação do discurso jornalístico brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS.

12 Um bom contributo para alterar o profundo desconhecimento que existe entre as comunidades
científicas de Ciências da Comunicação dos países do espaço ibero-americano, é aquele que nos
é dado em Comunicação Ibero-americana: Sistemas Midiáticos, Diversidade Cultural, Pesquisa
e Pós-Graduação, livro editado em 2012, por Margarida Kunsch e José Marques de Melo. Esta
obra reúne os principais trabalhos, apresentados ao I Congresso da Confibercom, realizado em
São Paulo, em 2011 (Kunsch & Melo, Eds., 2012). Ver, também, Comunicação ibero-americana:
os desafios da internacionalização (Martins & Oliveira, Eds., 2014). Trata-se do Livro de atas do
II Congresso Mundial de Comunicação ibero-americana, realizado em Braga, em 2014.
Por outro lado, e cingindo-se, estritamente, ao espaço lusófono, mas com o propósito idêntico
de desenvolver dinâmicas que permitam ultrapassar a atual situação de desconhecimento entre
os países que têm o português como língua oficial, Moisés de Lemos Martins editou, em 2015,
Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia. Ver, também, Interfaces da Lusofonia
(Martins et alii, Eds., 2014). Esta obra reúne os trabalhos apresentados à Conferência “Interfaces
da Lusofonia, realizada em Braga, em 2013.

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DA NECESSIDADE E DA POSSIBILIDADE DE UMA HISTÓRIA DAS MÍDIAS SOB A ÓTICA LUSÓFONA

Hohlfeldt, A. (2008). Deus escreve certo por linhas tortas, Os romances-folhetins nos
jornais de Porto Alegre (1850-1900). Porto Alegre: EDIPUCRS.
Kunsch, M. & Melo, J. M. (Eds.) (2012). Comunicação Ibero-americana: sistemas midiáticos,
diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação. São Paulo: Confibercom & Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
Martins, M. L. (Ed.) (2015). Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia. Famalicão:
Húmus. Retirado de: http://hdl.handle.net/1822/39693.
Martins, M. L., et alii (2014). Interfaces da Lusofonia. Atas da Conferência “Interfaces
da Lusofonia” – 4-6 de julho de 2013. Braga: Universidade do Minho / Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). eBook. Retirado de: http://hdl.handle.
net/1822/29765.
Martins, M. L. & Oliveira, M. (2014). Comunicação ibero-americana: os desafios da inter-
nacionalização. Livro de atas do II Congresso Mundial de Comunicação ibero-ameri-
cana. 13-16 de abril de 2014. Braga: Confiberom / Universidade do Minho / Centro de
Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). eBook. Retirado de: http://hdl.handle.
net/1822/33031.
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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO
REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO*
Joe Straubhaar**
John Sinclair***

Resumo
Este estudo reflete sobre o modo como diversos aspetos das culturas pré-coloniais, sob
o impacto da expansão portuguesa e espanhola e de quase duzentos anos de experiência
pós-colonial, compartilhada entre colonizadores e colonizados, conformaram um diferente
padrão de desenvolvimento das indústrias televisivas latino-americanas. Este capítulo
centra-se nos contributos das culturas pré-colombianas para a linguagem e a geocultura,
que ainda atravessam as fronteiras nacionais na América Latina, enquadrando espaços
culturais e mercados. Neste estudo também são analisadas as relações da era colonial entre
a Igreja Católica e os impérios, português e espanhol, na definição de fronteiras linguísticas,
que continuam a separar o Brasil da restante América Latina, afetando os fluxos televisivos
contemporâneos, os processos de hibridismo cultural e os padrões comerciais. Tendo a
sua origem no período colonial, tais padrões foram-se estabilizando com o tempo, para o

* Traduzido do inglês por Moisés de Lemos Martins.


** Doutorado em Comunicação Internacional pela Universidade de Tufts (EUA), em 1981, é docente
no Departamento de Rádio, Televisão e Cinema, da Universidade de Texas, Austin, nos EUA.
Entre 2003 e 2006 foi diretor do Centro de Estudos Brasileiros no Instituto Long Lozano de
Estudos da América Latina. Para além da docência, investiga a globalização dos média, os ritmos
de apropriação digital e as políticas de programação da televisão nos países ibero-americanos.
Publicou, entre outras obras, Media Now: Understanding Media, Culture, and Technology (2015),
em coautoria com Robert LaRose; e World Television: From Global to Local (2007).
E-mail: [email protected].
*** Doutorado em Filosofia pela Universidade La Trobe (Austrália), em 1984, estuda a globalização dos
média, com referências particulares à televisão, à publicidade e aos impactos da cultura no desen-
volvimento das indústrias culturais na América Latina e na Ásia. Entre outros livros, publicou, em
2013, Latin American Television Industries, com Joseph Straubhaar, (British Film Institute/Palgrave
Macmillan); em 2012, Advertising, the Media and Globalisation: a World in Motion (Routledge);
e em 2000, Televisión: Comunicación Global y Regionalización (Gedisa). Atualmente, é Professor
Emérito da Universidade de Melbourne, onde continua a orientar projetos científicos.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

que contaram com a experiência colonial, depois com a experiência pós-colonial, e ainda,
com processos políticos, mais recentes, como é o caso do populismo, que configuram a
Península Ibérica e a América Latina. Atravessando fronteiras, interagindo com os Estados,
assumindo determinadas formas industriais e dando origem a conteúdos específicos, os
sistemas de televisão latino-americanos são modelados por estas condicionantes.
É nosso intuito, neste estudo, interrogar os atuais espaços e mercados televisivos, que são,
ao mesmo tempo, não apenas regionais e transnacionais, como também, geolinguísticos e
linguístico-culturais. O nosso ponto de vista é baseado, parcialmente, num entendimento
que remete os média regionais modernos para as origens da expansão europeia, e mesmo
para tempos anteriores (Kraidy & Al-Ghazzi, 2013; Straubhaar, 2007).

Palavras-chave: colonialismo; mercado; América Latina; televisão; cultura; identidade


transnacional

Introdução

Existe um movimento emergente tendente a enquadrar as raízes dos atuais espaços


e mercados televisivos, regionais, transnacionais, linguístico-culturais e geolin-
guísticos, nas raízes de velhos impérios (Straubhaar, 2007; Kraidy & Al-Ghazzi
2013). Impérios como os da China, os califados islâmicos de língua árabe, o turco,
o francês, o britânico, o russo e outros, deixaram, todos eles, visíveis influências
linguísticas, culturais e geográfico-espaciais, que marcaram as nações que deles
emergiram. Tais influências lançaram também as bases dos espaços mediáticos
e televisivos, pós-nacionais ou transnacionais, que surgiram na passagem do
século XX para o século XXI. Os antigos impérios afetaram, quer estas nações
pós-coloniais, quer as regiões geoculturais e geolinguísticas por eles formadas
(em contiguidade geográfica com o mundo árabe, o Extremo-Oriente, a África
francófona, a norte, e a América Latina, no ocidente do continente americano,
bem como espaços e mercados linguístico-culturais dispersos, como sejam os
mundos anglófono e lusófono, que se espalham por vários continentes.
A América Latina reflete cinco séculos de oposição entre as forças e as influên-
cias nacionais e locais versus as forças e as influências transnacionais, no plano
militar e da conquista, como na religião e na cultura, na economia e, atualmente,
na televisão. Na América latina, os Estados-nações superaram essas heranças colo-
niais, a partir dos movimentos de independência, iniciados no princípio do século
XIX, nunca muito depois, em parte sob a influência da guerra de independência

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

nos Estados Unidos. Uma série de guerras anticoloniais e independentistas gerou


uma variedade de unidades geográficas, algumas das quais com aspirações regio-
nais mais vastas do que as atuais nações latino-americanas. Contudo, uma viragem
para os nacionalismos e para nações mais pequenas e mais coerentes segmentou
a(s) região(ões) inicial(ais) latino-americana(s). O nosso argumento é que, apesar
disso, diversos laços regionais e comunitários permaneceram, definindo os contor-
nos dos atuais mercados televisivos regionais e sub-regionais na América Latina.
Muita desta experiência pós-colonial da América Latina tomou forma no
século XIX e princípios do século XX, em parte com o concurso de outros poderes
transnacionais emergentes, como o britânico e o dos Estados Unidos e respetivos
interesses políticos e comerciais, que entraram, após as independências, em mui-
tas nações latino-americanas, oferecendo investimento, consultadoria, tecnologia
e modelos de formas económicas e culturais como sejam as redes comerciais de
teledifusão. Este processo gerou uma gama interessante de formas nacionais de
difusão, que tende a ser vista, não apenas através das lentes estruturais da depen-
dência e da dominação, pelas indústrias culturais e pelo imperialismo cultural,
mas também pelo prisma do agenciamento cultural, do hibridismo de gentes e
culturas, e da emergência de poderosas formas ou géneros televisivos híbridos,
como a “novela”. Assim, a América Latina é um excelente posto de observação,
de quase dois séculos, de inter-relação entre processos pós-coloniais, Estados-
-nações e média nacionais, bem como da emergência de forças transnacionais, que
desafiam, a partir de cima, esses mesmos sistemas televisivos estatais e nacionais.
Desse modo, olharemos, primeiro, para a configuração colonial da América Latina;
em seguida, para as influências transnacionais e pós-coloniais, que a desenha-
ram, enquanto região geolinguística e geocultural; observaremos, ainda, como
irromperam, dessas influências, formas nacionais de televisão; não deixaremos de
atender, igualmente, à interação de ambos com a influência global e transnacional
dos Estados Unidos; assim como atenderemos a tudo o mais que ascendeu, per
se, na região, sobretudo enquanto espaço linguístico alargado ibero-americano,
que tem vindo a ser analiticamente discutido e ativamente promovido, a partir
de diferentes impulsos, particularmente de Espanha.
Um dos objetivos deste estudo é refletir sobre conceitos teóricos, como por
exemplo, as regiões geolinguísticas e geoculturais 1. Um outro objetivo consiste em

1 Também neste sentido, ver Martins & Oliveira (Eds.) (2014), Comunicação ibero-americana: os
desafios da internacionalização. Livro de atas do II Congresso Mundial de Comunicação ibero-
-americana. Por outro lado, cingindo-se ao espaço lusófono, também investigadores portugueses

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

considerar elementos e processos-chave, que intervieram na construção de tais


regiões: línguas e culturas pré-coloniais, experiências coloniais, atores e proces-
sos de independência, processos e decisões pós-coloniais, construção nacional
e média, exportações e fluxos mediáticos, esforços regionais para a criação de
média regionais ou transnacionais, bem como os esforços pelas antigas potências
coloniais, para reenquadrarem esses espaços e mercados mediáticos.

Influências pré-coloniais

Alguns estudos recentes têm procurado argumentar que tanto os impérios mais
antigos (como o chinês), como outros mais modernos e recentes (p. ex., o espanhol),
influenciaram decididamente a televisão e outros média regionais (Straubhaar &
Sinclair, 2014). No caso latino-americano, consideraremos três estratos imperais.
Em primeiro lugar, os antigos impérios pré-colombianos, dos Astecas, dos Maias
e dos Incas. Seguem-se os primeiros impérios modernos, como o espanhol e o
português. E, por fim, a recente zona de influência comercial, política e militar
dos Estados Unidos, aqui considerando o papel diretamente neoimperial, desem-
penhado por Cuba, Porto Rico e partes do Panamá. Esta geologia histórica dos
impérios é importante para caracterizar a atual América Latina. Ela criou formas
linguísticas, religiosas, étnicas, geo-espaciais, artístico-culturais e organizacio-
nais e institucionais persistentes, que se mesclam ou hibridam, com movimentos
subsequentes, que enformam a televisão latino-americana.
Os vestígios dos impérios pré-colombianos tornam-se mais visíveis por toda
a América Latina, enquanto parte de uma cultura popular híbrida (Canclini,
1982), abaixo descrita, que enformam fortemente os média modernos, como a
televisão. Todavia, em certas sub-regiões latino-americanas, particularmente as
nações andinas da Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, e talvez Chile e Venezuela,
a cultura e a cozinha, as tradições estéticas e as línguas quéchua e aimará perma-
necem culturalmente unidas, em alguma medida, por influência do império Inca
(Collier, Rosaldo & Wirth, 1982). De um modo similar, a zona sudoeste do México,

têm refletido, em muitos estudos, sobre os conceitos de região geolinguística, região geocultural
e identidade transcultural. Moisés de Lemos Martins, por exemplo, fá-lo no quadro da distinção
que estabelece entre “globalização cosmopolita” e “globalização multicultural”. Veja-se, por
exemplo Martins (2006, 2011, 2014, 2015). Consultar, ainda, neste sentido: Martins et alii, 2014;
e Martins, Sousa & Cabecinhas (2006, 2007).

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

Guatemala e Belize continuam a ser fortemente influenciadas por elementos da


cultura maia (Morley, 1994). Como esta no sul, a cultura asteca gerou um sentido
de identidade regional muito forte em partes do México (Collier et al., 1982). Na
realidade, até algumas culturas conquistadas pelos Astecas, como os Toltecas,
continuam a influenciar culturas regionais no interior do México. Todavia, a
produção televisiva é ainda largamente realizada na América Latina, em termos
nacionais, a despeito de algumas incursões a nível regional e local, dependendo
dos países. Desse modo, a televisão comercial de âmbito nacional é, por vezes,
vista como inimiga das culturas e línguas locais tradicionais (Ginsburg, 1991), de
raiz pré-colombiana, provocando a erosão do número de falantes das línguas
tradicionais, através da promoção do espanhol e do português (Straubhaar, 2007).
No entanto, as formas do vídeo alternativo, bem como das redes mediáticas via-
-Internet têm sido vistas pelos antropólogos e outros estudiosos como estando
a organizar e a promover a sobrevivência das comunidades indígenas (Turner,
1992; Warren & Jackson, 2002).

Origens coloniais

A América Latina foi criada pelas expansões imperiais, espanhola e portuguesa,


a primeira iniciada em 1492, quando Colombo aportou a terras que fazem hoje
parte da República Dominicana, e a segunda começada em 1500, quando Cabral
chegou ao Brasil. E se, originariamente, a expansão europeia procurava as rotas
comerciais para a Índia e ilhas do Sudoeste asiático, produtoras de especiarias,
depressa se orientou para a busca de ouro e para matérias-primas valiosas, como
o pau-Brasil, e culturas em expansão, como a cana-de-açúcar, que requeriam um
processo de colonização como aquele que abaixo se descreve.
São muitas as influências transnacionais ou os legados institucionais e cul-
turais que datam desta herança colonial e que ainda hoje dão forma à América
Latina. Uma delas é a estrutura linguística, que Espanha e Portugal, e também a
Igreja Católica, transportaram para estas paragens. Uma outra influência é a forma,
especificamente latino-americana do hibridismo, que assenta em vários aspetos:
na miscigenação entre conquistadores ibéricos, povos indígenas e escravos africa-
nos; também na mistura, injuntiva ou voluntária, de religiões europeias, indígenas
e africanas; e ainda, em mesclas similares de cultura, arte e música populares.
Estes vários aspetos alimentaram o hibridismo observável na estrutura, forma

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

e conteúdo da televisão latino-americana. Existe, ainda, uma outra influência,


especificamente estrutural, que consiste no modo como a tradição corporativa
e empresarial ibérica impregnou as instituições de média e difusão latino-ame-
ricanas, antes mesmo das pesadas influências oriundas dos Estados Unidos.
Finalmente, um último elemento é a forma de governação populista, seguindo as
suas correspondentes tradições ibéricas, de uso dos média por líderes autoritários,
em especial dos meios de teledifusão, primeiro da rádio e depois da televisão,
entre outras ferramentas de mobilização das classes populares, ou das massas,
em apoio dos seus regimes.

As línguas da América Latina

Arbitrando a expansão dos impérios coloniais, espanhol e português, a Igreja


Católica criou alguns dos enquadramentos linguísticos e culturais dos média
modernos latino-americanos. Para a Igreja, era importante minimizar os con-
flitos entre aqueles dois impérios católicos. Assim, muito cedo na colonização,
em 1494, o Papa Alexandre VI, de origem espanhola, negociou o Tratado das
Tordesilhas, que dividia a América Latina em zonas de conquista, portuguesa
e espanhola. A linha divisória foi negociada várias vezes, a partir de 1700, para
ajustar as linhas divisórias da ocupação portuguesa do Brasil, sendo o resultado
final surpreendentemente satisfatório, no estabelecimento das linhas funda-
mentais de separação entre a América Latina, de fala espanhola, e o Brasil,
luso-falante. O reforço destas linhas de separação linguística, assegurando que
o povo deste lado da fronteira fala português e o povo do lado imediatamente
contíguo da fronteira fala espanhol (ou vice-versa), tornou-se um dos grandes
princípios-guia para as políticas de televisão e telecomunicações no século XX,
particularmente no Brasil, mas também nos seus vizinhos, como a Argentina
e o Uruguai. Cada uma dessas nações contou com a televisão nacional para
reforçar a língua do país, pelo que investiram fortemente em infraestruturas
de telecomunicação, subsidiação televisiva e publicidade governamental, para
o garantir (Mattos 1982, 1984).

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

‘O perfeito instrumento imperial’

A História regista que quando, em 1492, o académico Antonio de Nebrija presen-


teou com a sua gramática do castelhano a rainha Isabel, a língua que nós hoje
conhecemos como o ‘espanhol’ e como a primeira de todas as línguas europeias
modernas, a rainha inquiriu-o acerca da utilidade de um tal trabalho. “A língua”,
respondeu ele, “é o perfeito instrumento do império” (Williamson, 1992, p. 62). Em
relação a todas as outras línguas, então faladas na Península Ibérica, o castelhano
era a língua do poder, não apenas enquanto ferramenta a partir da qual poderia
construir-se uma língua nacional impressa, passível de ser estandardizada, assim
criando uma “comunidade imaginada” em Espanha, mas como a língua da admi-
nistração de um vasto império. Benedict Anderson (1983, pp. 45-46) sublinha o
facto de que todas as novas nações estabelecidas na era das independências,
quer fossem falantes de espanhol, português ou inglês, constituíam “Estados
crioulos”, com os indivíduos nascidos sob o colonialismo a partilharem a mesma
herança linguística e cultural das metrópoles, de que todavia tinham de libertar-
-se. Apesar de os Estados-Nações das Américas terem sido as primeiras nações
independentes do seu tipo, constituindo modelos para um mundo pós-colonial,
a dominação pelas línguas coloniais assegurou a existência de uma “língua de
Estado”, estandardizada e comum às unidades administrativas coloniais, sobre
as quais as novas nações haveriam de basear-se.
Com a exceção maior do Brasil e as mais residuais de Belize e das Guianas, o
espanhol é a língua não apenas de todas as outras nações continentais, a sul dos
Estados Unidos, de Tijuana à Tierra del Fuego, mas de toda a região. Também
aqui, o espanhol era a língua do poder. Anderson sublinha que a linguagem da
elite crioula, que aumentou progressivamente em número, por via de décadas
de imigração, fosse ela colonizada, ou então colonizadora, a identificava mais
com os seus amos coloniais do que com os nativos ou escravos, sobre os quais
exercia a dominação (Anderson, 1991, pp. 47-65). A este respeito, existiu sem-
pre cumplicidade na difusão e manutenção da língua do poder colonial sobre a
região, suprimindo as línguas nativas (nahuatl, quéchua e guarani, para nomear
apenas algumas das maiores), assim como as dos escravos, trazidos de África
para as plantações. Um processo idêntico ocorreu, relativamente ao português
no Brasil. Por consequência, relativamente a outros continentes pós-coloniais,
como são os casos de Ásia e África, a América Latina patenteia uma incomparável
homogeneidade linguística, na maior parte das vezes instituída como primeira

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

língua e, no mínimo dos mínimos, como língua franca, constituindo um idioma


comum entre os povos nativos. Até as diferenças entre o português e o espanhol
não são tão grandes quanto as existentes entre as diferentes línguas da maioria
dos países vizinhos na Ásia ou na África. Ainda assim, esta homogeneidade não
deve ser sobrestimada, porquanto ela aparece temperada por certas forças de
heterogeneidade.
Em primeiro lugar, conhecemos as variações nacionais no inglês, por vezes
consideráveis, como as existentes entre o inglês britânico, o americano, o aus-
traliano ou o indiano, e até as suas variações regionais no interior de uma só
nação, como as que se verificam entre o inglês falado em Nova Iorque e o falado
em Atlanta ou Los Angeles. Variações vocabulares, gramaticais, bem como de
pronúncia e sotaque, algumas das quais são particularmente difíceis de enten-
der, ou então são portadoras de status negativo, podem também ser encontradas
entre os hispano-falantes, bem como nos luso-falantes ou no mundo lusófono.
Ainda assim, pelo mundo inteiro, os falantes de inglês conseguem entender-se
entre si o que faz do inglês a principal região geolinguística ou o primeiro espaço
cultural-linguístico transnacional, constituindo a base para o seu desenvolvi-
mento enquanto mercado global de televisão. As similitudes linguísticas também
desempenharam um papel importante na região geolinguística hispano-falante
na América Latina, bem como no espaço ou mercado transnacional, cultural e
linguístico, disseminado pela África, Europa e América Latina. Além disso, é cre-
ditado um reconhecimento oficial na América Latina, relativamente às diferenças
históricas de linguagem e cultura, preservando as combinações e adaptações
culturais que ocorreram no decurso do processo de formação das nações.

O padrão latino-americano de hibridismo

Como observa Stuart Hall, “a hibridização começa em 1492, da mesma maneira


que é nessa data que começa a globalização” (Hall, 1993, p. 54). No México, por
exemplo, a hibridação conheceu a forma de celebração ideológica da mestizaje,
a mistura biológica e cultural dos povos nativos pré-hispânicos com os con-
quistadores espanhóis, imigrantes e crioulos (Mignolo, 1995, p. 180). Ao mesmo
tempo que se mantém uma real hierarquia racial, a cultura nacional mexicana
é oficialmente mestiça, ou misturada, não sendo isso uma mera ideologia do
governo nacional. No Brasil, de modo similar, foi necessário desenvolver uma

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

ideologia de integração étnica, tendo como base uma língua comum, dada a
necessidade de construir a nacionalidade, assim como o seu significado, nos
seus diversos Estados, que são territórios de grande vastidão, com povos de dis-
tintas histórias – os nativos da Amazónia, os escravos da Bahia, os imigrantes
da Europa e, depois, do Japão. Atualmente, a língua portuguesa confere à nação
uma visível unidade, enquanto a mitologia nacional fornece às elites brancas
uma herança negra. Também neste caso, a ideologia da integração étnica não
pode ser explicada como uma imposição das elites para controlo da construção
de uma cultura nacional. Os movimentos intelectuais modernistas teorizaram o
hibridismo e o sincretismo latino-americano no Brasil desde 1928, argumentando
que a mistura cultural constituía uma força para os artistas brasileiros (Shohat,
1992, pp. 108-109), enquanto a mistura étnica foi celebrada por romancistas tão
populares quanto Jorge Amado, que viu vários dos seus trabalhos adaptados ao
cinema e à televisão. De facto, dada a diversidade cultural e a extensão geográfica
do Brasil, vimos programas noticiosos e de entretenimento tornarem a televisão
particularmente importante no processo de construção nacional. Este processo
não descolou até aos anos 1960, momento em que o Brasil ainda podia ser descrito
como “um arquipélago cultural formado por regiões geoeconómicas semiautó-
nomas” (Marques de Melo, 1992, p. 1). No entanto, a partir do momento em que,
no início dos anos 1970, a expansão das cadeias televisivas nacionais as levou a
uma cobertura crescente do Brasil, acelerou rapidamente a construção de uma
cultura nacional mais integrada (Straubhaar, 1982). Na frase memorável do estu-
dioso de Colombo, Jesús Martín-Barbero, o que a televisão fez nesta fase no Brasil,
quanto ao seu papel na construção nacional, foi transformar “a massa em povo
e o povo em nação” (Martín-Barbero, 1993, p. 164). As questões de fusão cultural
e de identidades nacionais tornaram-se uma das preocupações maiores entre os
teóricos latino-americanos. O argentino Nestor García Canclini prefere o termo
“hibridismo” a “mestiçagem”, para exprimir a grande multiplicidade de elementos
culturais, não apenas de linguagem e etnicidade, que a idade da globalização traz
consigo. Em seu entender, o hibridismo ocorre a todos os níveis, local, nacional e
transnacional (Canclini, 1995, pp. 22-23). De modo similar, Martín-Barbero chama
a atenção para o facto de na América Latina as duas línguas ibéricas comuns e
as tradições culturais em presença fornecerem também um nível regional de
identidade, ainda que a comercialização deste facto pela televisão e o seu papel
na promoção de uma ‘sociedade de consumo’ estejam a enfraquecer o imaginário
latino-americano (Martín-Barbero, 1993, p. 18).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Regiões geoculturais, áreas geolinguísticas e linguístico-culturais

Deixando de parte, por um momento, algumas das complexidades recenseadas


por estes teóricos, quanto ao grau de fragmentação das identidades híbridas,
mas retendo a noção dos seus diferentes níveis, podemos refletir sobre o modo
como os espectadores podem relacionar-se de modos diversos com as progra-
mações televisivas oriundas de diferentes fontes. Por exemplo, ao nível local, os
espectadores seguem as notícias locais e desportivas da sua cidade ou distrito,
enquanto ao nível nacional encontram as programações noticiosas e de entre-
tenimento em cadeia, produzidas no e para o mercado nacional. No âmbito
transnacional, existem três níveis de fragmentação das identidades híbridas:
por um lado, o nível região-mundo, ou região geocultural, no qual as telenovelas
e outros programas de entretenimento, com origem nos maiores produtores
latino-americanos, circulam numa área linguístico-cultural, que é também de
proximidade cultural (Straubhaar, 1991); por outro, o nível linguístico-cultural
transnacional, como a dos mundos anglófono ou lusófono, os quais, não sendo
geograficamente próximos, partilham elementos profundos de proximidade
cultural e linguística; e ainda, o nível global, que geralmente significa a subs-
crição de serviços como a CNN – integralmente em espanhol ou português.
Deste modo, os espectadores de Lima, por exemplo, podem gostar de ver um
encontro desportivo local, bem como o noticiário nacional, afirmando assim as
suas identidades, respetivamente de habitantes de Lima, e também de perua-
nos. Contudo, o facto de assistirem a uma telenovela, argentina ou mexicana,
remete-os para as similitudes que partilham com os países vizinhos na sua
região (e talvez, também, das suas diferenças), enquanto, se passarem para as
Telenotícias da CBS, ou virem um filme de Hollywood, dobrado em espanhol,
podem sentir-se, sobretudo, como cidadãos privilegiados do mundo. Ao mesmo
tempo, os espectadores de Lisboa, tanto podem assistir a programas locais e
nacionais, como a programas de telenovelas brasileiras, ou então, a programas
emitidos pela CNN ou pela HBO.
A questão é que mesmo que os espectadores noutras regiões do mundo
tenham acesso a todos estes níveis, incluindo a região-mundo, só na América
Latina (e talvez no mundo de fala árabe) os públicos de um conjunto amplo de
nações estão habilitados, em virtude da sua herança linguística e cultural, mais
ou menos comum, a terem acesso, enquanto género de uma “comunidade imagi-
nada”, a uma escala regional-mundial, singularidade regional essa que os maiores

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

produtores televisivos não têm deixado de explorar. Estamos a falar, para além
disso, não apenas de uma região geográfica, que inclui a América Central e do Sul,
bem como as Caraíbas, de fala espanhola, mas de todo o conjunto de entidades
geolinguísticas e linguístico-culturais, criadas pela colonização ibérica. Significa
isto que as nações de Espanha e Portugal, elas próprias, e as antigas colónias por-
tuguesas de África e da Ásia, têm de ser incluídas como parte da região em que os
seus idiomas são falados. Nitidamente, existe uma procura para a programação
local, nacional e regional, e a América Latina desenvolveu os seus próprios pro-
gramas e géneros televisivos, que são populares a todos estes níveis. Contudo,
é igualmente nítida a existência de um pequeno número de produtores, que
foram capazes de explorar a vantagem estratégica de potenciar a semelhança, em
detrimento da diferença e, desse modo, de construírem, eles mesmos, posições
hegemónicas na comercialização de similitudes culturais, nas suas respetivas
regiões geolinguísticas e linguístico-culturais.

Colonialismo europeu e hibridação pós-colonial


das culturas populares

O processo colonial trouxe conquistadores europeus, donos de plantações, explo-


radores de minas, clérigos, que com eles traziam, ou não, as respetivas famílias.
Iniciaram a hibridação física da América Latina, na ponta da arma ou no fio da
navalha, gerando descendência em ligações com os habitantes indígenas – muito
frequentemente contra a vontade, transformando as mulheres indígenas em
concubinas, escravas e serviçais. Acontecendo que muitos indígenas morriam,
ou se deixavam morrer, portugueses e espanhóis incrementaram um colossal
tráfico de escravos, a partir da costa africana, que substituíram os indígenas
como serviçais. Este processo de miscigenação física, de pessoas, raças e etnias,
gerou o processo hoje conhecido como mestizaje, ou mestiçagem, protótipo do
paradigma dos estudos culturais latino-americanos sobre hibridação (Canclini,
1982, 1995; Kraidy, 2005).
Esta mistura de povos teve como processo correspondente a mistura reli-
giosa entre o catolicismo europeu e as tradições indígenas e africanas e, mais
tarde, o protestantismo europeu e norte-americano, com a sua galeria de santos,
tradições, divindades, rituais e imaginários. Os antropólogos tendem a referir-se
a esta mescla religiosa, per se, como sincretismo (Bastide, 1978), mas também

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

se evidenciaram outras dimensões no seio do padrão global do hibridismo


cultural latino-americano (Canclini, 1995), que incluem combinatórias das
culturas, europeia, indígena e afrodescendente, na música, nas artes visuais,
decoração e design, na dança e nas festividades (Canclini, 1995). A partilha
destas mesclas culturais criou amplos padrões regionais na cultura popular,
que tornam, no presente, a televisão latino-americana culturalmente próxima e
atrativa, ao longo das fronteiras das suas diferentes nações, dando origem, desse
modo, a um dos primeiros mercados regionais de televisão 2. Simultaneamente,
variações culturais diferenciadas desse hibridismo, que continuam a pautar
de diversos modos as programações nacionais, tratam de reforçar e manter os
públicos nacionais.
Diversos teóricos da globalização cultural sublinham, atualmente, que, ao
longo do tempo e, em particular, percorrendo os ciclos longos, o resultado da
interação cultural, ou globalização cultural, é o hibridismo (Kraidy, 2002; Pieterse,
2004). Contudo, nós pretendemos argumentar que amiúde, nos ciclos curtos, a
experiência das pessoas que entrevistámos no Brasil, México e entre os hispânicos
dos Estados Unidos, se exprime com maior frequência em termos de multiplici-
dade de experiências e identidades, do que em termos de hibridismo, per se. Um
ponto de partida para esta reflexão é o exemplo dado por Stuart Hall sobre o modo
como um jovem pode desejar sentir-se simultaneamente britânico, caribenho
e negro, experimentando assim um sentido de multiplicidade identitária (Hall,
1993). O mesmo jovem pode igualmente ser visto pela sociedade nesses diferentes
papéis, refletindo a ideia de que género, raça, classe, etc., constituem, sobretudo,
posições relacionais, e não tanto qualidades essenciais (Maher & Tetreault, 1993).
Com efeito, os múltiplos aspetos da identidade tanto são constituídos pela expe-
riência grupal ou cultural, como pela posição social.
Os indivíduos podem crescer no seio de uma religião. No entanto, porque
isso aconteceu voluntariamente, ou então pela força (como aconteceu na con-
quista da América Latina), podem ser conduzidas ou forçadas a aderir a outra
religião. No curto prazo, os indivíduos inclinam-se para preservar aspetos de
ambas as religiões nas suas mentes, quer dizer, práticas e sociabilidades familiares
e comunitárias. Num prazo mais longo, esses elementos de diferentes religiões
podem combinar-se ou mesclar-se, conforme o vemos descrito pela teoria do

2 Sobre os guiões (deste os anos 50), programas (desde aos anos 70) e formatos (desde 2000),
consultar Straubhaar (1991, 2001) e Wilkinson (1995).

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

sincretismo. Podem ainda existir grandes variações entre pessoas envolvidas


neste tipo de experiência. Em Salvador da Bahia, no Brasil, muitas comunida-
des religiosas afro-brasileiras (grupos de candomblé) misturam santos católicos
com divindades iorubas, conhecidas por orixás (Bastide, 1978). Contudo, algu-
mas comunidades, como o bem conhecido grupo Ilê Axê Opô Afonjá declararam
estar a pôr de parte os santos católicos, outrora usados como capa de proteção
relativamente ao exterior, para ocultar as divindades africanas que podiam ser
reprováveis (Afonjá, 1999). Deste modo, podem desenvolver-se numa comunidade,
com naturalidade, múltiplas capas de proteção, em vários sentidos. Podem ser
criadas, estrategicamente, para facilitar a coexistência, ou mesmo a proteção de
traços tradicionais de identidade, para proteger práticas que sejam desencorajadas,
ou até perseguidas pelo exterior, caso não sejam protegidas por véus mais visíveis
de identidade europeia, ou então, híbrida.
O hibridismo, a multiplicidade de posições e ações e a multiplicidades de
identidades e formas culturais (ligadas às escolhas e aos usos dos média) coexistem
habitualmente. Os indivíduos desenvolvem o que parecem ser múltiplos aspetos
ou níveis identitários. No exemplo do Brasil, acima referido, os indivíduos podem
encontrar-se ativamente envolvidos, tanto em formas de culto católico, como
em formas afro-brasileiras, desenvolvendo simultaneamente diferentes identi-
dades. Ao longo dos anos, os espectadores de televisão brasileiros identificaram-
-se nas entrevistas de Straubhaar como combinações de identidade de cidade
(como sejam, carioca, do Rio, ou paulistano, de São Paulo), de identidade regional
(bahiano, da Bahia), nacional (brasileiro), de classe (pobre, ou classe trabalhadora,
etc.) e racial (branco, negro ou índio). Tudo isto encerra implicações diferentes nas
escolhas dos espectadores de televisão. Por exemplo, as cadeias SBT e TV Record
obtiveram um êxito considerável ao apontar para as classes trabalhadoras do
Brasil, uma vez que a classe trabalhadora é marcadamente afrodescendente, ou
mista. Este êxito, junto de um público duplo, compreende o acesso de mais negros
ao ecrã do que sucedia nas estações mais fortemente dirigidas ao público branco
de classe média-alta. Este resultado deve-se ao facto de classe e raça constituírem
dois níveis identitários, que no Brasil frequentemente se sobrepõem, devido ao
posicionamento da maioria do negros brasileiros entre as classes trabalhadora
ou pobre (Telles, 2004).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As instituições mediáticas enquanto parte da tradição transnacional


corporativa e clientelar ibérica

Com frequência, o corporativismo empresarial na América Latina é visto como


herdeiro das tendências, italiana e ibérica, para a economia patrimonial e a política
hierárquica, segundo as quais a sociedade é dividida entre as maiores organizações
e opera por campos de atividade (Malloy, 1976). Tais organizações são usualmente
privadas e compreendem grupos ou corporações empresariais regionais, ou então
poderosas companhias de propriedade individual, de que são exemplo as estações
de televisão. Podem também constituir poderes independentes, como no caso da
Igreja Católica, que frequentemente viu com bons olhos este modo de organiza-
ção empresarial, pois através dele a Igreja Católica viu-se reconhecida e tratada
como parceira, desempenhando deste modo uma função na sociedade (Wiarda,
1978). Por vezes, estas organizações são licenciadas, estruturadas e controladas
pelo Estado. É o caso das corporações ou grupos económicos oficiais, desenvol-
vidos em vários países latino-americanos, como o Brasil, a partir do modelo do
fascismo italiano.
O corporativismo afirmou-se particularmente na década de 1930, quando
homens fortes, em diversos países, de que são exemplos Perón na Argentina e
Vargas no Brasil, tentaram desenvolver alternativas à democracia formal e ao
capitalismo competitivo do Ocidente, inspirando-se nas formas fascistas das
sociedades do sul da Europa (Itália, Portugal e Espanha), que promoviam a har-
monização do trabalho e do capital com políticas autoritárias. Podemos dizer
que, de diferentes maneiras, se tratou, então, de uma renovada onda de influência
pós-colonial portuguesa e espanhola, que havia perdido muita da sua influência,
económica e política, na América Latina, para o Reino Unido e os Estados Unidos,
assim como muita da sua influência cultural, tanto para os Estados Unidos, como
para a França. Wiarda destacou a utilidade desta análise para distinguir entre
“corporativismo natural”, enquanto poderoso ingrediente histórico e político-
-cultural, que influencia ainda a política ibero-americana, e o “corporativismo
expresso”, enquanto ideologia que se manifestou no período de entre guerras,
“ressurgindo atualmente [1978] como instrumento de controlo dos movimentos
de reivindicação laboral” (Wiarda, 1978, p. 310).
As formas de organização corporativa, como ligação do Governo às corpora-
ções empresariais socialmente poderosas, podem coexistir com formas democráti-
cas de governação, na medida em que permitem conectar diretamente instituições

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

poderosas, como sejam a Igreja, as grandes companhias e os principais média,


aos Governos centrais ou regionais, passando por cima da política eleitoral. Este
dado pode ser entendido como uma explanação sistémica do desenvolvimento das
relações entre os média e o Estado, num certo número de países latino-americanos.
Com efeito, os média na América Latina tomaram, de um modo geral, a forma
de propriedade privada, sendo muitas vezes impérios económicos familiares,
sobretudo baseados na indústria mediática. Mas outras vezes, os média latino-
-americanos integraram conglomerados maiores, constituídos por diferentes
holdings (Sinclair, 1999). A partir dos anos 30 do século passado, diversos líderes
latino-americanos, como Perón ou Vargas, reconheceram as vantagens da utili-
zação da rádio, a par do controlo governamental dos sindicatos, para mobilizar a
classe trabalhadora e a classe média em apoio dos seus regimes (Haussen, 2005).
Com o desenvolvimento da televisão, os Estados latino-americanos tende-
ram a cultivar relações estreitas com uma ou duas grandes cadeias de televisão,
protegendo-as de possíveis competidores, mediante um tratamento económico
ou regulamentar de favor, a troco de tratamento mediático favorável às ações
e políticas governamentais. Desta maneira, os média podem ser vistos como
grandes corporações societais, com um forte potencial de poder, harmonizado
com os interesses de Estado. O corporativismo empresarial dos média fornece,
nestas circunstâncias, uma solução culturalmente próxima da tradição ibérica e
da história recente.
Um outro olhar sobre este assunto, próximo, todavia, do anterior, deteta
um estilo político clientelar, ou seja, de patrão-cliente, e é comum na América
Latina, quer ao nível nacional quer ao regional/local, estendendo-se às relações
entre os média e a política (Hallin & Papathanassopoulos, 2002). Uma das suas
particularidades consiste naquilo a que Hallin e Papathanassopoulos chamam a
visão instrumental que os políticos e os partidos têm dos média. Neste entendi-
mento, os média são, antes de tudo, um instrumento a ser usado. Os média são
instrumentalizados, não apenas pelo poder político, mas também pelas elites
económicas, que se encontram amarradas ao uso político dos média. É um facto,
as elites económicas, na Europa do Sul e na América Latina, estão com frequência
profundamente envolvidas na política partidária, o que encoraja a instrumenta-
lização dos média 3.

3 “A Televisa esteve aliada com o partido político no poder [PRI], mais ou menos abertamente, até
à morte de Emilio Azcárraga, Jr., em 1997” (Hallin & Papathanassopoulos, 2002, p. 179).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As vantagens para os partidos políticos e os governos em funções são meri-


dianamente claras. Obtêm publicidade favorável, evitam coberturas noticiosas crí-
ticas e, por vezes, conseguem prémios pessoais para membros do Governo, como
na ocasião em que a TV Globo abandonou a parceria que detinha na Bahia, tendo
como objetivo estabelecer uma nova parceria com Antonio Carlos Magalhães.
Regional e nacionalmente influente e poderoso, este político pôde, a partir do seu
posto governamental, prestar à estação amplos favores. Porque também existem
vantagens para a televisão na aliança que possam estabelecer com responsáveis
políticos. Sinclair (2003) e Straubhaar (2013) observaram as vantagens obtidas pela
Televisa, na aliança que manteve com o PRI, bem como as vantagens que a Globo
obteve, pela aliança que estabeleceu com os governos militares (1964-1985). Entre
as vantagens que resultam das parcerias e alianças estabelecidas pelas televisões,
podemos assinalar as fatias preferenciais de investimento publicitário (Mattos,
1984), o apoio no recurso às infraestruturas governamentais de telecomunicações
(Straubhaar, 1984), o acesso ao crédito, e ainda, facilidades no relacionamento
com outros membros das elites dirigentes.
No entanto, também pode suceder uma sobrestimação do poder e durabili-
dade deste tipo de alianças. A despeito de uma relação próxima dos militares, entre
1964 e 1984, a TV Globo afastou-se deles, quando essa relação passou a ameaçar
os seus interesses nucleares. A ajuda prestada aos militares na oposição, na vira-
gem civil do país, com eleições diretas, começou a ter custos diretos para a TV
Globo, concretamente nas perdas de audiência, em particular dos seus serviços
noticiosos (Straubhaar, 1989). O que se passou, todavia, não foi tanto a lealdade
da Globo aos militares, antes uma disposição durável para se acomodar a quem
detém o poder, ou então, a quem se afigura que tenha condições de o vir a deter.
Em termos de regulação, têm sido muitos, senão mesmo a maior parte, dos
governos latino-americanos a usarem a regulamentação sobre licenças e frequên-
cias como um meio para recompensar aliados e punir oponentes. “Também no
Brasil, a teledifusão é controlada pelo Ministério das Comunicações, e os recentes
presidentes usaram as licenças de teledifusão como uma forma importante de
tutela política, comprando centenas de políticos, a troco de apoio às suas inicia-
tivas políticas mais importantes” (Hallin & Papathanassopoulos, 2002, p. 181). Na
Venezuela, o presidente Hugo Chávez puniu um dos seus principais opositores
políticos, a estação televisiva RCTV, com a decisão de lhe não renovar a licença
de emissão (Carrillo, 2006).

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

A tradição transnacional populista latino-americana

Uma outra tradição, transnacional e ibérica, e, mais alargadamente, latina, que


afetou grandemente a América Latina é a forma populista de governo, que com-
preende a direção de um homem forte, com o apoio da mobilização mediática da
classe trabalhadora. Mussolini em Itália, Franco na Espanha e Salazar em Portugal,
são todos referenciados, na primeira metade do século XX, como protótipos, admi-
rados e emulados, em diversos níveis, por líderes populistas latino-americanos,
como Vargas e Perón. Analisando o modo como utilizaram a rádio na mobilização
de apoios políticos, Haussen (2005) destaca a admiração de Vargas pelo estilo
populista da condução política por Mussolini, bem como pela sua utilização da
rádio.
Na América Latina, o populismo tende a ser olhado enquanto oposição à
elite oligárquica, dominante na vida económica e política. A distribuição de ren-
dimentos é dividida, em princípio, entre ricos e pobres, com a lenta emergência
das classes trabalhadoras e das classes médias, num processo que se afirmou, no
decurso do século XX, em paralelo com o desenvolvimento das telecomunicações.
Com efeito, a política populista, opondo-se à política oligárquica, tende a criar
alianças com todos os que não pertencem à elite (Waisbord, 1995). A radiodifu-
são foi fortemente utilizada por líderes populistas como Perón. Para mobilizar o
apoio popular, populistas mais tardios, como Castro, fizeram um uso frequente
das emissões noticiosas, ou de programas televisivos nacionais (Rivero, 2014).
O populismo latino-americano utilizou os média de formas muito marcan-
tes, o que concorreu para o desenvolvimento da televisão na região. Enquadrando
as novas classes trabalhadoras nas respetivas identidades nacionais, Vargas, no
Brasil (Vianna, 1999), e Perón, na Argentina (Waisbord, 1995), usaram géneros
musicais nacionais, como o samba ou o tango, bem como os noticiários radio-
fónicos, mobilizando-as para o apoio direto aos seus regimes. Tais regimes são
consensualmente definidos como populistas, tratando-se de um estilo dirigente
em que um líder carismático envolve os média, as organizações sindicais e
patronais, os aparelhos político-partidárias e outros organismos, na mobilização
do apoio à sua direção, mediante a cativação dos interesses das massas ou das
classes trabalhadoras. Líderes populistas deste tipo tanto podem operar com os
média estabelecidos, como reorganizar ou reformar as instituições mediáticas,
de modo a criar meios de comunicação que tendam a ser mais favoráveis à sua
direção.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A despeito de ser tido como característico dos anos 30 do século passado, o


populismo reentrou em cena por diversas vezes, em termos que, nalguns casos,
teve consequências diretas no desenvolvimento a televisão. A título de exemplo,
podemos assinalar diversos regimes populistas, novos ou renovados, depois da
II Guerra Mundial. Sob Perón, na Argentina, e Rojas Pinilla, na Colômbia, os iní-
cios da televisão ocorreram debaixo do controlo governamental, que tinha como
objetivo o apoio a esses regimes (Waisbord, 1995). Na Argentina, a televisão acom-
panhou as tendências pró e antiperonistas, em linha com as lutas militares, facto
que a afastou do pleno desenvolvimento da tradição comercial privada, comum às
televisões da região. Na Colômbia, as infraestruturas televisivas permaneceram
sob controlo estatal, enquanto a criação de conteúdos foi adjudicada a produtores
privados, que deviam encontrar apoio publicitário, iniciando assim uma versão
modificada de televisão comercial (Fox, 1975).
Ao mesmo tempo que se desvanecia o populismo, característico do pós-guerra,
a sua tradição prosseguiu intensamente na América Latina, através de uma nova
vaga de regimes populistas, durante os anos 1990 e 2000. Como observa Waisbord
(2011), a região tinha uma tradição de governos populistas que, historicamente,
ensaiaram a reforma dos sistemas mediáticos. No passado, os objetivos dessas
políticas consistiram em restringir o poder das companhias privadas selecionadas
e de ampliar o poder mediático dos governos. Ao longo da primeira década de
2000, administrações populistas alcançaram o poder em diversos países. Entre
estas, consideramos, na Argentina, os governos de Nestor Kirchner (2003-2007)
e da sua mulher, Cristina Fernández de Kirchner (depois de 2007); na Bolívia, o
governo de Evo Morales (a partir de 2006); no Equador, o governo de Rafael Correa
(a partir de 2007); na Nicarágua, o governo de Daniel Ortega (a partir de 2007);
na Venezuela, o governo de Hugo Chávez (a partir de 1999).

Padrões transnacionais de “comunidade imaginada”


nas nações latino-americanas

A criação e a difusão da cultura popular fazem parte dos processos de construção


nacional, num certo número de países latino-americanos. Na América Latina,
os impérios, português e espanhol, deram lugar a um padrão pós-colonial muito
mais precoce do que o sucedido com outros países desenvolvidos, com a Argen-
tina a tornar-se independente em 1818, após oito anos de guerra, a Venezuela

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

e a Colômbia a fazerem-no por via da insurreição de 1819, e o Brasil a aceder à


independência, quando o filho do rei de Portugal, em 1820, declarou aí o seu
próprio império. Contudo, num primeiro momento, as fronteiras foram forte-
mente instáveis. Em princípios e meados do século XIX, grande parte da política
pós-colonial e pós-independência foi consagrada à estabilização de fronteiras
nacionais, pela guerra ou pela negociação, tendo sido criadas, então, as bases
para a formação nacional.
Resulta, ainda assim, surpreendente a rapidez com que os países recém-
-organizados foram capazes de criar e difundir um tal sentido de identidade
nacional, no interior de fronteiras tão recentemente estabelecidas e a despeito
das partilhas linguísticas e culturais transfronteiriças existentes. Benedict Ander-
son (1983) sublinhou como a imprensa capitalista cooperou efetivamente com
os governos nacionais, criando enquadramentos nacionais para mercados, no
interior dos quais os jornais e livros publicados pela imprensa capitalista conse-
guiam prosperar, ao mesmo tempo que criavam as identidades nacionais de que
os Estados tão desesperadamente necessitavam para consolidar a sua própria
legitimidade. Esse capitalismo dos média impressos, de matriz latino-americana,
foi fortemente marcado pelo capitalismo dos média impressos do sul da Europa,
sobretudo da Península Ibérica. Enquanto a influência dos Estados Unidos se
tornou muito importante nas formas de comunicação de massa do século XX, é
relevante notar que as formas fundamentais do capitalismo mediático nacionalista
na América Latina já se encontravam ensaiadas e estabelecidas, pouco depois da
independência, o que quer dizer, num tempo que precede a importância de que
a influência dos Estados Unidos viria a revestir-se. As nações latino-americanas
foram construídas na base de tradições ibéricas comuns e, a partir daí, influen-
ciaram-se umas às outras.
O capitalismo dos média impressos e eletrónicos e as formas culturais da sua
produção, em cada país, foram com frequência influenciados pelos respetivos
vizinhos. O exemplo mais visível no século XX foi o desenvolvimento da radio-
novela, nos anos 30-40 do século XX e da telenovela nas décadas de 50-60
(Rivero, 2009), em Cuba, seguido por um rápido alastramento às restantes nações
latino-americanas.
Uma companhia norte-americana, a Colgate-Palmolive, nos seus esforços
para ampliar o êxito doméstico na venda de sabão, através de novelas televisivas,
voltou-se para Cuba, que era então uma economia emergente, de fortes laços com
os Estados Unidos. Primeiramente, nos anos 30, apenas na rádio, e posteriormente

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

na década de 50, na televisão, a Colgate-Palmolive pagou a produtores cubanos


para adaptarem o estilo soap opera, ao gosto latino-americano (Rivero, 2007). E
eles fizeram-no, mas incluíram elementos da tradição melodramática, proveniente
dos países ibéricos, com a colonização, mas posteriormente desenvolvida já na
América Latina pós-colonial (Martín-Barbero, 1993). Estas dinâmicas originaram
um género híbrido de melodrama latino-americano. Outras estações latino-ame-
ricanas, dando-se conta do sucesso da telenovela na angariação de públicos (e na
venda de sabão), foram estimuladas pelos anunciantes domésticos nos Estados
Unidos e importar guionistas e profissionais cubanos, ao mesmo tempo que
formavam os seus próprios (Straubhaar, 2011).
Por volta dos anos 60-70, ao mesmo tempo que a telenovela ia dominando
os períodos nobres de emissão (prime time), os produtores latino-americanos
passaram a encará-la como uma nova forma cultural, genuína da América Latina,
e passaram a partilhá-la em versões nacionais, no Brasil, no México, e por toda a
parte. Neste exemplo, tanto os interesses económicos globais, como os interesses
nacionais, orientaram muitas decisões. Mas a inovação cultural dos produtores
e a resposta cultural dos públicos foram igualmente cruciais nesses processos de
decisão. A história da interação entre o Grupo Globo e o grupo Time-Life na cria-
ção híbrida, em termos organizacionais, da TV Globo, entre 1962 e 1971, constitui
também um outro exemplo representativo (Straubhaar, 2013; Sinclair, 2003).
Podemos ilustrar estes processos económicos transnacionais recorrendo a
dois termos-chave da indústria, que se tornaram conceitos teóricos. Referimo-
-nos à localização e à glocalização. Na localização, uma firma transnacional ou
global toma a iniciativa de fazer chegar o seu produto, processo ou capital a um
novo mercado, adaptando-o às condições locais, de modo a obter resultados.
O caso da Colgate-Palmolive em Cuba, é disso um bom exemplo, ao utilizar um
género comercial, de êxito conhecido, adaptando-o a um novo mercado. Por sua
vez, a glocalização identifica um processo, através do qual uma companhia, local
ou nacional, toma a iniciativa de procurar um parceiro global, que invista algo
de seu, seja capital, tecnologia, produção, especialização, etc. O termo deriva da
prática industrial japonesa, onde as indústrias (e o Governo também) acederam
e adaptaram tecnologia e técnicas internacionais (Robertson, 1995). A TV Globo
pode ser pensada como um exemplo de hibridez, pela localização da Time-Warner
e da glocalização do Grupo Globo.

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AS RAÍZES PRÉ- E PÓS-COLONIAIS DO MERCADO REGIONAL LATINO-AMERICANO DE TELEVISÃO

Conclusão

Em muitos sentidos, a América Latina distingue-se, entre outras regiões desenvol-


vidas ou emergentes, por possuir fortes sistemas mediáticos nacionais, e de televi-
são, em particular (Morris & Waisbord, 2001). Contudo, demonstrámos aqui que as
instituições nacionais e géneros televisivos latino-americanos foram construídos
sobre uma base regional de influências recíprocas. As instituições nacionais foram
influenciadas pelos padrões regionais e pós-coloniais de controlo familiar; por
relações empresariais corporativas, populistas e clientelares, entre os média e o
Estado nacional; e por padrões regionais de hibridismo, quer organizacionais, quer
culturais. Estas instituições criaram uma série de géneros culturais híbridos, que
tanto misturam características regionais, como nacionais. Por exemplo, o ADN
da telenovela é primeiramente europeu, em seguida norte-americano, e depois
cubano, para posteriormente vir a ser diferenciado em versões nacionais, e mais
tarde, de novo regionalizado, por atores do campo dos média, na capital mediática
de Miami, como é o caso da cadeia televisiva colombiana Telemundo, e outras
cadeias ainda (Sinclair 2003; Piñon, 2011).
Estas raízes e influências regionais foram localmente adaptadas ou gloca-
lizadas por instituições televisivas, crescentemente fortes, na maior parte dos
países latino-americanos. Após sessenta ou mais anos de teledifusão comer-
cial, em grande parte da América Latina, a televisão imbricou-se fortemente no
desenvolvimento de mercados nacionais e de culturas nacionais de consumo,
enquanto os mercados regionais de programação se fortaleceram, a partir da
venda e da disseminação dos guiões de telenovela, nos anos 50 do século passado
(Straubhaar, 2011). Verifica-se, assim, na América Latina, um interessante vaivém
entre formas culturais nacionais e regionais, de que é exemplo a telenovela. Tais
formas nacionais e regionais encontram-se também em constante diálogo com
a televisão global. Esta influência foi muito visível, sobretudo pela influência dos
Estados Unidos, designadamente pelo forte fluxo de programas norte-americanos
nos anos 60-70, antes de começaram a ser empurrados pela telenovela para fora
dos horários nobres. O fluxo global encontra-se agora, novamente, a aumentar
em popularidade e importância, através da importação de formatos, ao mesmo
tempo que, por toda a América Latina, a TV por cabo e assinatura iniciam, após
2000, um desenvolvimento crescente em popularidade. Apesar da multiplicação
crescente dos fluxos televisivos, damo-nos conta da importância que mantêm as
tradições, longamente estabelecidas e profundamente enraizadas. Elas continuam

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

a enquadrar e a influenciar a televisão nacional, interagindo com formas televi-


sivas e com estruturas económicas e culturais globais.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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SEGUNDA PARTE
POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICAÇÃO
E INTERNACIONALIZAÇÃO

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ARTICULAR A INVESTIGAÇÃO COM OS INVESTIGADORES
A TAREFA DA INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR MEDIA
AND COMMUNICATION RESEARCH (IAMCR)*
Janet Wasko**

Resumo
Num processo em contínuo crescimento, a investigação em comunicação abriu caminho
para a sua emancipação no período pós Segunda Guerra Mundial. Foi reforçada a coo-
peração e a colaboração entre investigadores académicos e instituições, e a criação da
IAMCR (International Association for Media and Communication Research), em 1946,
pretendeu promover a formação dos jornalistas e o estudo dos problemas da imprensa
por todo o mundo. Mais de cinquenta anos depois deste trabalho seminal, a IAMCR
junta-se à luta constante e ao empenho internacional em envolver os investigadores
académicos, na compreensão dos fenómenos sociais e comunicacionais dos média,
luta essa que está ameaçada por recursos limitados e orçamentos universitários cada
vez mais pequenos.

Palavras-chave: IAMCR, investigação, comunicação, mundo

* Traduzido do inglês por Manuel António Carneiro Gaspar de Melo Albino.


** Professora na School of Journalism and Media de Oregon (EUA), Janet Wasko completou o
doutoramento na Universidade de Illinois, em 1980. É atualmente a presidente da IAMCR
(International Association for Media and Communication Research). Estuda os efeitos da
política económica dos média, especialmente dentro da indústria do cinema e na Walt Disney
Corporation. As suas publicações mais recentes incluem: Cross-Border Cultural Production:
Economic Runaway or Globalization (2008), editada em conjunto com Mary Erickson; The
Contemporary Hollywood Film Industry (2008), editada em conjunto com Paul McDonald; e
Media in the Age of Marketization (2007), editada em conjunto com Graham Murdock.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

É inegável que o campo de estudos dos média e da comunicação, em geral, tem


vindo a crescer. O número de programas académicos orientados para a investi-
gação em jornalismo, na comunicação de massas, nos média ou na comunicação,
expandiu-se rapidamente por todo o mundo, desde o fim da Segunda Guerra
Mundial.
As razões para este histórico crescimento são diversas. Tal como Parcell
observa, o crescente reconhecimento da importância dos meios de comunicação,
tanto na indústria como no público em geral, bem como o respeito crescente pela
área a nível universitário, levou ao apoio crescente e a novas bolsas de investigação
(Parcell, 2008). Para além disso, Nordenstreng (2008, p. 228) observa o seguinte:
“uma vez que a comunicação de massas, alcançou um nível de importância e de
especialização na sociedade, equiparado a outros campos de atividade socioeco-
nómica, a consequência foi a institucionalização da área, tanto a nível nacional
como internacional”.
A expansão da pesquisa internacional sobre os média e a comunicação também
cresceu com o aparecimento de revistas académicas e de organizações internacio-
nais, bem como com o aumento da cooperação e da colaboração internacionais 1.
Mais recentemente, o desenvolvimento da tecnologia tem influenciado estas
atividades, uma vez que é, sem dúvida, mais fácil partilhar informação e colabo-
rar com parceiros na investigação global, com a disponibilização de e-mails e da
Internet.
A IAMCR (Associação Internacional para a Investigação dos Média e da Comu-
nicação) tem desempenhado um papel fundamental no relacionamento dos inves-
tigadores em média e comunicação, e, em 60 anos, continua a expandir-se, em
paralelo com a área.
Este breve artigo providenciará uma breve história da organização, bem como
uma panorâmica geral da associação atualmente, incluindo os seus princípios
fundamentais, a sua relação com outras organizações, e os desafios que a asso-
ciação enfrenta.

1 Neste sentido, gostaria de referir o trabalho desenvolvido, nas últimas décadas, pela Lusocom
(Federação Lusófona de Ciências da Comunicação) e pela Confibercom (Confederação Iberoame-
ricana das Associações Científicas e Académicas de Comunicação), com os seus Congressos e as
suas publicações. Destaco na Lusocom a Revista Lusófona de Ciências da Comunicação, editada
desde 2003. E no que respeita à Confibercom, assinalo os livros dos dois Congressos realizados:
M. Kunsch & J. M. Melo (2012); e M. L. Martins & M. Oliveira, 2014.

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ARTICULAR A INVESTIGAÇÃO COM OS INVESTIGADORES

História da IAMCR

De forma a iniciar a história da IAMCR, fica aqui o início do comunicado de


imprensa (press release) da Unesco, de 23 dezembro de 1957:

• Cinquenta especialistas na área dos média informativos, oriundos de


15 países, acabaram de completar, numa sessão de dois dias, na Casa da
Unesco, em Paris, a tarefa de estabelecer a International Association for
Mass Communication Research (Associação Internacional para a Pesquisa
em Comunicação de Massas);
• Criada em cooperação com a Unesco, a nova associação, que é indepen-
dente, tem a sua sede em Paris, nos escritórios do Institut Français de
Presse, da Universidade de Paris;
• A sua função é a da promoção, por todo o mundo, do desenvolvimento
da investigação em problemas relacionados com a imprensa, com a rádio,
com a televisão e com o cinema.

A lista de membros associados incluía 200 nomes, de institutos, de estabe-


lecimentos educacionais e de indivíduos. Educadores na área do jornalismo são
os mais numerosos na lista individual, de educadores e sociólogos (referido por
Hamelink e Nordenstreng, 2007).
A história da IAMCR remonta aos primeiros anos da Unesco. Em 1946, a sua
Comissão para as Necessidades Técnicas dos Média de Massas, elaborou uma
constituição para um Instituto Internacional de Imprensa e Informação, destinada
a promover a formação de jornalistas e o estudo dos problemas da imprensa em
todo o mundo. A Conferência das Nações Unidas sobre a Liberdade de Informação,
realizada em 1948 em Genebra, tomou conhecimento da proposta e resolveu que
tal instituto poderia ser propiciador de melhorias na qualidade da informação,
pedindo ao Conselho Económico e Social para convidar os governos e organi-
zações profissionais, nacionais e internacionais, para examinar em conjunto a
possibilidade de implementar esta proposta.
Inicialmente, o principal objetivo da associação era o de facilitar o intercâm-
bio de métodos e resultados entre as instituições de pesquisa, e o de promover
os contactos pessoais entre os membros. Procurava-se, especificamente, o reco-
nhecimento da comunicação de massas como objeto de investigação científica
independente.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A primeira Assembleia-Geral da IAMCR, após a conferência inaugural de 1957,


realizou-se em outubro de 1959 em Milão, e nela foi eleito presidente, Raymond
Nixon (dos EUA). Os primeiros líderes da associação vinham, essencialmente, de
países europeus. Nordenstreng (2008) observa que:

A IAMCR cresceu a partir do rápido desenvolvimento do campo dos média, parti-


cularmente do campo que diz respeito ao jornalismo, campo esse que criou o seu
próprio ramo de interesse institucional, a necessidade de formação profissional e de
investigação científica. A pesquisa sobre os média de comunicação de massas tem
sido inseparável, desde o início, da prática dos comunicadores, especialmente dos
jornalistas.

Este papel dual, de investigação académica e de prática profissional, ainda


é um fator distintivo do campo dos média e da comunicação, relativamente a
outras disciplinas.
Entre as primeiras prioridades da IAMCR estavam: a atração de investigado-
res de várias disciplinas e o alargamento da sua representação geográfica. Ainda
assim, durante os primeiros anos, os investigadores participantes representavam
uma gama de perspetivas, teóricas e metodológicas, que incorporavam, tanto
as ciências sociais em voga, como a teoria crítica ou o marxismo. Por exemplo,
estavam entre os seus membros ativos, Wilbur Schramm (dirigindo uma secção
acerca da Investigação Psicológica e Sociológica), Elizabeth Noelle-Neumann,
George Gerbner, Dallas Smythe e Herb Schiller.
É também significativo que, no período da Guerra Fria, com o confronto ideo-
lógico Este-Oeste, os colegas de ambos os lados trabalhassem juntos na construção
desta instituição internacional de investigação. A organização atraiu académicos
da Europa e Leste e soviéticos, bem como da Europa, dos Estados Unidos e do
Terceiro Mundo. Tal como Cees Hamelink e Kaarle Nordenstreng (2007) observam,
no documento da IAMCR in Retrospect: 1957-2007, a IAMCR não era um projeto
da Guerra Fria. Pelo contrário, foi fundada em solo ecuménico, no cruzamento
do Este e do Oeste, bem como na divisão do Norte e do Sul.
Tal como as comunicações em massa se foram expandindo durante as décadas
de 1960 e de 1970, também assim aconteceu com as instituições de investigação e
com os programas académicos votados ao seu estudo. E, enquanto a abordagem
a esta investigação era dominada pela investigação administrativa e positivista,
mais orientações e atividades críticas emergiam. Isto foi garantido, pelo menos

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ARTICULAR A INVESTIGAÇÃO COM OS INVESTIGADORES

na IAMCR, com a especial atenção prestada aos países em desenvolvimento, ao


movimento não alinhado, e à discussão intitulada New World Information Order
(NWIO) (Nova Ordem Mundial da Informação) (Nordenstreng, 2008).
Com efeito, durante este período, a IAMCR manteve uma estreita relação
com a Unesco, recebendo algum suporte financeiro, contratos de investigação,
e vários projetos contínuos de cooperação. Neste período a Unesco esteve ativa-
mente envolvida, em assuntos relacionados com os média e com a comunicação,
o que pode ser exemplificado pela criação da International Commission for the
Study of Communication Problems (Comissão Internacional para o Estudo dos
Problemas em Comunicação), que produziu o documento intitulado Many Voices
One World (1980, também conhecido como relatório MacBride), promovendo a
democratização da comunicação.
Assim, ao longo destes anos, a IAMCR tem-se desenvolvido, tal como o campo
dos média e da comunicação tem crescido. Entretanto, novas secções e grupos
de trabalho foram acrescentados, refletindo as áreas emergentes neste campo de
estudo (Wasco, 2013). Entre 1959 e 1979, a associação cresceu de 30 países e 100
indivíduos para 60 países e 1000 membros. Na década de 90 do século passado,
a expansão resultou numa representação de cerca de 80 países.

A IAMCR, hoje

Atualmente, a IAMCR é a organização profissional líder mundial no campo de


investigação em média e comunicação. O nome da associação foi mudado em
1996, de forma a refletir as mudanças ocorridas nos média e na investigação dos
média, mas a organização continua a promover a inclusão global e a excelência,
dentro da melhor tradição no campo da investigação em média e comunicação.
A organização é verdadeiramente internacional, e atualmente inclui membros
de cerca de 100 países. As conferências continuam em sistema de rotatividade,
por diferentes continentes e regiões, tendo sido realizadas numa ampla variedade
de locais, de Seul, Singapura e Sydney, à Cidade do México, Istambul, Durban, ou
Braga, Dublin, Hyderabad e Montreal. Estes eventos científicos atraem, hoje, com
regularidade, centenas de pesquisadores de todo o mundo.
A IAMCR é uma comunidade de investigadores académicos, onde existem
mais de 30 Secções e Grupos de Trabalho, que representam uma ampla gama
de áreas e especializações. Os seus membros não apenas compartilham os seus

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

resultados, como também se reúnem no horário das refeições e nos eventos


sociais das conferências, que são coorganizadas pelos seus membros e pelas suas
universidades. A IAMCR oferece oportunidades online e offline, para a construção
de redes fortes, colegiais e de apoio, entre aqueles que estão a contribuir para o
seu campo de estudo, em todo o mundo. A associação continua a fortalecer e a
incentivar a investigação na área da comunicação por toda a parte, e continua
a enfatizar a plena participação de novos investigadores, da maior participação
das mulheres, e daqueles que são oriundos de regiões economicamente desfavo-
recidas. Os programas específicos incluem a Emerging Scholars Network (Rede
de Investigadores Emergentes), bolsas de conferências, e a inscrição grátis para
doutorandos em universidades com participação institucional.
A IAMCR divulga informações acerca da investigação e das necessidades na
investigação, quer anunciando-as em listas destinadas somente aos associados,
quer em listas de acesso público, no Facebook e no Twitter. Estas plataformas
são utilizadas, de forma a promover a produção e o trabalho dos seus membros,
a anunciar oportunidades de emprego e de eventos, bem como fornecendo um
espaço participativo para o debate.
A organização também promove a pesquisa, através de diversas publicações.
Estas incluem duas coleções de livros: Handbooks in Media & Communication
Research (Manuais de Investigação em Média e Comunicação), publicados pela
Wiley Blackwell, e a coleção Global Transformations in Media & Communication
Research (Transformações Globais na Investigação em Média e Comunicação),
publicada pela Palgrave Macmillan. Trabalhos publicados recentemente incluem
também o e-book, publicado com a Unesco, Media and Gender: A Scholarly Agenda
for the Global Alliance on Media and Gender (Os média e as Questões de Género:
uma Agenda Escolar para a Aliança Global dos Média e das Questões de Género),
que pode ser baixado diretamente do site da IAMCR (http://iamcr.org/). Outro
exemplo de publicações da organização é o jornal on-line The Political Economy
of Communication (A Economia Política da Comunicação).
Esta organização associativa tem ainda o objetivo estimular o interesse pela
pesquisa em Média e Comunicação e melhorar as políticas e as práticas dos Média
e da Comunicação, especialmente a partir de perspetivas internacionais e interdis-
ciplinares. A IAMCR continua, por outro lado, a contribuir para o desenvolvimento
e a melhoria na educação e formação dos jornalistas, e de outros profissionais dos
Média, através de investigação apropriada e outras atividades.

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ARTICULAR A INVESTIGAÇÃO COM OS INVESTIGADORES

Os princípios da IAMCR

A IAMCR tenta seguir um conjunto de princípios, aqui descritos de forma breve 2.


Esta organização associativa providencia um fórum, onde investigadores acadé-
micos, e outras pessoas envolvidas nas práticas e no estudo dos Média e da Comu-
nicação, possam apresentar e discutir o seu trabalho, aprimorar a sua capacidade
crítica, e colaborar em novos projetos.
Acima de tudo, a IAMCR incentiva a pesquisa e o estudo sistemático, espe-
cialmente nas áreas da produção e do consumo dos Média, e na estruturação e
metamorfose dos mercados dos meios de comunicação, no dealbar da transfor-
mação, social e tecnológica, contemporânea. Esta organização associativa tem
trabalha de forma a fortalecer e melhorar a investigação no campo dos média e
da comunicação, apoiando o desenvolvimento de perspetivas locais, globais e
interdisciplinares, e de conhecimento inovador.
Por outro lado, tem-se dedicado ao desenvolvimento da capacidade crítica,
por parte das audiências, e à expansão da educação para os média (literacia mediá-
tica), bem como à tentativa de estimular o interesse pela investigação nos média
e na comunicação, particularmente em áreas onde o trabalho não está ainda bem
desenvolvido, e tendo em consideração a diversidade de contextos em que os
média e a comunicação são experienciados.
A IAMCR tenta, também, garantir que a informação acerca dos resultados
de investigação, assim como os métodos utilizados pelos investigadores, sejam
partilhados entre todos aqueles que têm interesse neste campo, incluindo inves-
tigadores, profissionais e decisores políticos.
Podemos, por fim, acrescentar que a organização está formalmente com-
prometida com os princípios do impacto ambiental, e tem um comité espe-
cífico dedicado a esse objetivo (Committee on Environmental Impact). Existe
uma vincada tendência para a adesão aos princípios da ecologia verde, nas
conferências realizadas, bem como no investimento adequado dos fundos da
organização. Além disso, foi criado recentemente um prémio para a investigação
em comunicação, sob o tema das mudanças climáticas (Climate Communication
Research Award).

2 Os objetivos da organização estão disponíveis em: http://iamcr.org/objectives.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A IAMCR e a Unesco

Apesar de o ponto de vista da Unesco relativamente à comunicação registar desen-


volvimentos, e mesmo alterações, como assinala e especifica o especialista Nor-
denstreng (2008), a IAMCR continua a ser uma Organização Não Governamental
(ONG) e tem estatuto consultivo especial na Unesco e no Conselho Económico e
Social das Nações Unidas. Esta circunstância distingue a IAMCR de muitas outras
organizações de investigação em média e comunicação.
Por outro lado, as recentes atividades de cooperação entre a organização e
a Unesco têm registado algum envolvimento tanto com a Aliança Global para
Comunicação Social e a Diferença de Género (Global Alliance for Media and
Gender), como com a Aliança Global para a Literacia Mediática e Informacional
(Global Alliance for Media and Information Literacy), e ainda com o World Press
Freedom Study (Estudo da Liberdade de Imprensa Mundial) e a Internet Study
(Estudo da Internet). Os membros da IAMCR também continuam a participar nas
United Nations World Summits (Cimeiras Mundiais das Nações Unidas) sobre a
Sociedade da Informação.

A defesa do público: fazendo a diferença

Ao longo de sua história, a IAMCR fez tomadas de posição públicas e participou


em discussões, acerca das políticas aplicadas, uma prática que a diferencia de
outras organizações. Fez, por exemplo, pronunciamentos em questões como a
proteção dos jornalistas, o direito à comunicação, a liberdade de investigar, o
apoio às políticas de comunicação internacionais, ao serviço do desenvolvimento
democrático, e também sobre a necessidade de contribuir para a melhoria das
infraestruturas dos meios de comunicação no Terceiro Mundo. Como foi mencio-
nado acima, estas questões foram especialmente vividas durante os debates da
Unesco sobre a New World Information Order, que envolveram muitos membros
da IAMCR.
A organização formou recentemente uma Câmara de Declarações Públicas
(Clearinghouse for Public Statements), que propõe um método de seleção das
declarações públicas relevantes e apropriadas.

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ARTICULAR A INVESTIGAÇÃO COM OS INVESTIGADORES

Relações externas

A IAMCR mantém relações profissionais com uma vasta gama de organizações


e centros de pesquisa em média e comunicação, incluindo associações regio-
nais, como é o caso com a Asociación Latinoamericana de Investigadores de la
Comunicación (ALAIC), a Asian Media Information and Communication Centre
(AMIC), a European Communication Research and Education Association (ECREA),
a International Communication Association (ICA) e o Nordic Information Centre
for Media and Communication Research (NORDICOM), bem como organiza-
ções nacionais, tais como a Associação Brasileira de Estudos Interdisciplinares
da Comunicação (INTERCOM), no Brasil, a Société Française des Sciences de
l’Information et de la Communication (SFSIC), em França, e a Japanese Society for
the Study of Journalism, Media and Communication (JSSJMC) no Japão.

Desafios de uma organização académica internacional

Desafios não faltam para as organizações realmente internacionais, e especial-


mente para aquelas que não têm fins lucrativos, mas envolvem as academias, numa
época de recursos limitados e orçamentos universitários cada vez mais reduzidos.
A língua é sempre um problema para as associações internacionais e para a
comunicação entre culturas. Na tentativa de abordar estas questões, a organização
inclui três línguas oficiais – Inglês, Espanhol e Francês. No entanto, isto ainda é
uma luta.
Apesar do crescimento da área disciplinar e da organização, existem desa-
fios financeiros em curso na IAMCR. Como organização sem fins lucrativos, tem
dependido, de muitas formas, do trabalho voluntário dos seus membros. Os
líderes da associação continuam a lutar com questões financeiras, e a angariação
de fundos tornou-se uma prioridade.
Como as viagens internacionais se tornaram mais caras, é um desafio envolver
os membros, tanto do Norte como do Sul, de países economicamente problemá-
ticos. A organização reúne-se numa ampla variedade de locais, e não apenas nas
tradicionais capitais do Norte. Isto dá aos membros do Terceiro Mundo ou aos
países em desenvolvimento mais oportunidades de participar, pelo menos em
algumas das conferências. No entanto, por vezes ainda é difícil organizar eventos
que forneçam acesso suficiente para todos os membros. É cada vez mais possível

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

potenciar conferências virtuais, no entanto, muitos dos membros da organiza-


ção resistem a esta opção, a não ser na organização de conferências de menores
dimensões, regionais, nacionais ou locais.
Mas, apesar dos desafios, a associação continua a fornecer os seus serviços
a um número crescente de académicos e investigadores dos média, e a ser a sua
representante em diferentes contextos, a nível mundial. Como anterior Presi-
dente da IAMCR, Cees Hamelink concluiu, da seguinte maneira, o resumo que
fez sobre a IAMCR, em 2008, para a Enciclopédia Internacional da Comunicação
(The International Encyclopedia of Communication):

As características identitárias da associação podem ser resumidas pela sua natureza


ecuménica (no sentido de as abordagens dos tópicos de investigação serem interdiscipli-
nares e plurimetodológicas), pela sua globalidade inclusiva, que se reflete no uso de três
línguas oficiais (inglês, francês, e espanhol), e pelo encorajamento ativo da participação
de jovens estudantes, e do aumento da presença de mulheres e de pesquisadores de
regiões economicamente desfavorecidas do mundo (Hamelink, 2008, p. 2390).

Esta avaliação ainda é uma descrição apropriada da IAMCR na atualidade.


Embora existam muitos desafios, a IAMCR continua a oferecer aos investigado-
res académicos em média e comunicação, espalhados por todo o mundo, uma
organização verdadeiramente global como espaço de partilha e aprendizagem,
dentro do seu campo de investigação.

Referências bibliográficas

Donsbach, W. (2015). Introduction. In W. Donsbach (Ed.), The Concise Encyclopedia of


Communication (pp. xvii-xx). Oxford: Blackwell Publishing.
Hamelink, C. (2008). International Association of Media and Communication Research.
In W. Donsbach (Ed.), The Blackwell International Encyclopedia of Communication,
Volume VI.I (pp. 2387-2391). Oxford: Blackwell Publishing.
Hamelink, C. & Nordenstreng, K. (2007). IAMCR in retrospect: 1957-2007. Retirado de
https://iamcr.org/about-iamcr/history/305-iamcr-in-retrospect.
Kunsch, M. & Melo, J. M. (Eds.) (2012). Comunicação Ibero-americana: sistemas midiáticos,
diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação. São Paulo: Confibercom & Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

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ARTICULAR A INVESTIGAÇÃO COM OS INVESTIGADORES

Martins, M. L. & Oliveira, M. (Eds.) (2014). Comunicação ibero-americana: os desafios da


internacionalização. Livro de atas do II Congresso Mundial de Comunicação ibero-
-americana. 13-16 de abril de 2014. Braga: Confiberom / Universidade do Minho /
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). eBook. Retirado de http://
hdl.handle.net/1822/33031.
Nordenstreng, K. (2008). Institutional Networking: The Story of the International Asso-
ciation for Media and Communication Research (IAMCR). In D. Park & J. Pooley (Eds.),
The History of Media and Communication Research: Contested Memories (pp. 225-247).
Nova Iorque: Peter Lang Publishing.
Parcell, L. M. (2008). Communication and Media Studies, History since 1968. In W.
Donsbach (Ed.), International Encyclopedia of Communication. Malden: Blackwell
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Unesco (1980). Communication and Society Today and Tomorrow, Many Voices One World,
Towards a New More Just and More Efficient World Information and Communication
Order. Londres: Kogan Page/ Nova Iorque: Uniput/ Paris: Unesco.
Wasko, J. (2013). The IAMCR Political Economy Section: A Retrospective. The Political
Economy of Communication, 1(1). Retirado de http://www.polecom.org/index.php/
polecom/article/view/11/148.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA EUROPA
O PROJETO INACABADO DO COSMOPOLITISMO
Cláudia Álvares*

Resumo
Como parte de um processo ideológico, a emancipação das Ciências da Comunicação na
Europa resultou também de uma tentativa de harmonização de perspetivas conflituantes,
entre abordagens linguísticas histórico-discursivas (Wodak, 2001) e sociocognitivas (Van
Dijk, 2009). Para além de entendimentos multidisciplinares, promoveu-se inclusivamente
a multiculturalidade em sintonia com a emergência do próprio projeto europeu.
Contudo, o descentramento de diferentes teorias surgidas na Europa do pós-guerra, decor-
rentes de especificidades nacionais e regionais, conduziu a um certo abrandamento no
ímpeto da globalização e da internacionalização que marcavam o espírito promissor da
emergência da investigação em Comunicação. Deste modo, as culturas académicas latino-
-americanas nesta área assumem um papel especialmente importante, na medida em que
devem reforçar a necessidade de imprimir uma mais-valia concreta aos desafios colocados
pela história de violência colonial, racial, social e de género, levando-nos a reconhecer a
necessidade de se preservar espaços de crítica contra a iniquidade.

Palavras-chave: Ciências da Comunicação; Europa; investigação; cosmopolitismo

* Doutorada em Ciências da Comunicação pela Goldsmith’s College, Universidade de Londres


(2001), é Professora Associada na Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias
da Informação da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Foi Presidente da
European Communication Research and Education Association (ECREA), de 2012 a 2017, e
estuda, entre outros assuntos, a representação discursiva de género nos média, e os fenómenos
de participação online.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Introdução: O Legado do Pós-Guerra

O surgimento da disciplina das Ciências da Comunicação na Europa está irre-


mediavelmente ligado ao passado nacional-socialista alemão, tendo o respetivo
desenvolvimento desse campo do saber apostado, por um lado, numa racio-
nalidade comunicativa (Habermas, 1984) que tem como objetivo assegurar a
convivência pacífica, baseada no consenso, entre perspetivas conflituantes, bem
como, por outro lado, em abordagens linguísticas histórico-discursivas (Wodak,
2001) e sociocognitivas (Van Dijk, 2009) da identidade coletiva, que consideram
esta última como sendo constituída e negociada por meio de interações com a
comunidade discursiva (Koller, 2008). As críticas à indústria cultural (Horkheimer
& Adorno, 2002) situam-se no âmbito da racionalidade comunicativa, sendo
aquela considerada tão irracional quanto os totalitarismos manipuladores que
impedem os indivíduos de pensar de forma autónoma, induzindo-os num con-
formismo que os distancia da participação cívica ativa.
A economia política dos media, herdeira da crítica à indústria cultural, aponta
a promiscuidade entre a indústria dos média e o domínio da política, desconfiando
assim da viabilidade de uma esfera pública democrática, a qual poderá apenas
ser promovida mediante a regulação dos serviços dos media. Esta corrente de
pensamento surge, também ela, associada à ideia de interpelação ideológica do
sujeito (Althusser, 1971), o qual é negativamente manipulado em prol do consumo.
Por seu turno, a estética da receção, primeiro desenvolvida por H. R. Jauss (1982)
em finais da década de 60 do Século XX e posteriormente aplicada aos media por
Stuart Hall (1980), foca a receção do ‘texto’ como momento de interpretação que
se baseia no contexto cultural individual do recetor, bem como nas suas expe-
riências de vida. Assim, o significado do texto constrói-se na relação entre texto
e leitor, não sendo intrínseco ao texto. Hall (1980) virá a focar a possibilidade de
os leitores escaparem às interpretações preferenciais codificadas no texto pelos
seus produtores, ao enveredarem por leituras oposicionais ou negociadas na
tentativa de descodificação do texto.
Em todas as correntes acima explicitadas se constata uma preocupação em
refletir sobre os problemas decorrentes da falha do ato comunicacional, isto é, da
capacidade de se pôr ‘algo’ verdadeiramente em comum com o outro. Se a raciona-
lidade comunicativa privilegia o consenso, as abordagens histórico-discursivas e
sociocognitivas chamam a atenção para a necessidade de se focar a interação das
identidades com o seu contexto, de modo a se compreender as estratégias retóricas

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AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA EUROPA

que proporcionam uma compreensão baseada em topoi (Wodak, 2009, p. 42), ou


lugares comuns discursivos, os quais distanciam os indivíduos do pôr em comum
comunicacional. As críticas à ideologia capitalista procuram ainda articular uma
forma de comunicar distante da racionalidade instrumental que reduz o indivíduo
a um consumidor passivo, enquanto a estética da receção desconstrói um texto
assente numa perspetiva autoral, abrindo-o à comunhão com o leitor com base
na experiência vivida, ao mesmo tempo que realça o facto de o ‘pôr em comum’
do ato comunicacional não representar um ato absolutista, mas antes algo que
se vai construindo com base na negociação permanente.
Estas correntes de pensamento sobre a comunicação foram, efetivamente,
fortemente influenciadas pela configuração do Holocausto enquanto momento
fundacional da ideia de civilização europeia, assente na multiculturalidade, e
parte integrante da memória europeia. Tendo vindo a descontextualizar-se do
seu espaço e tempo, o Holocausto passa então a significar qualquer ato de injus-
tiça, deixando de estar confinado ao espartilho da Alemanha nacional-socialista
e adquirindo um estatuto de quase religião civil da Europa Ocidental enquanto
símbolo universalista da violação dos direitos humanos (Levy & Sznaider, 2007,
pp. 167-168).
Neste cenário, a Comunidade Europeia que toma forma no pós-guerra afirma-
-se como defensora de um ideário universalista dos direitos humanos, tendo como
contraponto qualquer nacionalismo particularista. Os objetivos da integração
europeia afiguram-se assim como superando os estritamente económicos, pro-
curando, acima de tudo, proteger a democracia pluralista, bem como o Estado de
Direito, e obrigando os membros que aderem ao projeto europeu a respeitar tais
princípios. Entre as razões que conduzem Habermas, por exemplo, a apoiar o
projeto europeu, está o facto de muitos dos seus fundadores terem sido motivados
pela memória imediata da guerra e da violência nacionalista, constituindo-se estas
experiências como força motriz para o desenvolvimento de formas pós-nacionais
de solidariedade e segurança (Stevenson, 2005, p. 4). A pós-nacionalidade remete
para uma Europa cosmopolita, que estabelece mediação entre o nacional e o global,
obedecendo a uma lógica cultural de constante autotransformação, assente na
criação de uma sociedade civil que se estende para além das fronteiras nacionais
(Delanty, 2005, p. 405).
Herdeiras deste legado, as Ciências da Comunicação na Europa são permeáveis
a uma perspetiva culturalista amena à crítica aos nacionalismos sob a forma do
estudo do pós-colonial e dos estudos de género (Hall, 2000), em consonância com

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

os objetivos de afirmação de uma esfera pública europeísta e descentralizadora


dos particularismos contrários ao universalismo que subjaz ao projeto europeu.

Diferentes Tradições Europeias

A crise global de 2008 afetou profundamente o continente europeu, estando


as Ciências da Comunicação a sofrer as consequências de cortes drásticos de
financiamento aos níveis nacional e internacional, assim comprometendo a
capacidade de fazer investigação de modo crítico e academicamente sustentado,
privilegiando-se agora o empreendedorismo e desenvolvimento empresarial como
critérios impulsionadores da investigação científica. Nesta perspetiva, corre-se
o risco de pôr em causa o reconhecimento da necessidade de se efetuar estudos
de longo-prazo, encorajando-se trabalhos que promovam uma visão instantânea
do comportamento comunicacional. Há uma clara tendência de se privilegiar o
quantitativo e a vertente positivista, com o perigo implícito de que, ao se medir
apenas o mensurável, se deixe de parte aquilo que importa realmente analisar.
Este pendor tem sido acompanhado por uma tentativa de camuflar a teoria que
subjaz a qualquer tipo de investigação, não se a assumindo explicitamente. Care-
cendo muitas vezes da explicitação do devido enquadramento teórico, os dados
empíricos recolhidos por investigadores reduzem-se a factos sem significado,
aproximando-se mais da informação do que do conhecimento, requerendo este
último sempre uma sustentação teórica. Nestas circunstâncias, a investigação na
área da Comunicação e dos Média torna-se difícil de distinguir da pesquisa de
mercado, a qual se afigura colossal, correndo o risco de facilmente cair na tentação
de se ficar pela rama, relegando para trás a difícil tarefa de construção de enqua-
dramentos teóricos que contextualizem os factos (Álvares et al., 2014, pp. 42-43).
Embora as teorias referidas na parte introdutória do texto sejam importantes
à luz dos objetivos do projeto europeu surgido no pós-guerra, haverá tradições
europeias diversas, aproximando-se em maior ou menor grau aos particularis-
mos nacionais e regionais europeus, as quais condicionam os enquadramentos
teóricos aplicáveis à parte pragmática da investigação. A investigação nesta área
em França, por exemplo, tem vindo a ser largamente dominada pelo eixo da
semiologia, com o objetivo de focar o conteúdo da comunicação mediante a
análise das estruturas do discurso, por oposição aos métodos mais quantitativos
vigentes noutros contextos (Flichy, 1980, p. 179). Essa abordagem semiológica

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AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA EUROPA

vai centrar-se na cinematografia em vez de outros meios de comunicação mais


massificados, nomeadamente a televisão. Em França, os meios massificados têm
sido mais abordados pela Sociologia da Cultura, tendo como expoente de relevo
Pierre Bourdieu, autor cujo trabalho tem contribuído para contextualizar o uso
dos media no âmbito de atitudes culturais generalizadas, rompendo assim com
a tradição da sociologia da comunicação norte-americana, associada a um para-
digma centrado nos media (i.e. ‘mediacêntrico’), de acordo com o qual todas as
atividades sociais se tornam periféricas em relação àqueles (Flichy, 1980, p. 189).
O conceito de mediatização (Krotz, 2008), primordialmente desenvolvido
na Alemanha e nos países nórdicos, traduz este processo ‘mediacêntrico’, des-
crevendo a adaptação das macroinstituições da sociedade à presença ubíqua dos
media (Mazzoleni & Winfried, 1999, p. 250). Nesta perspetiva, os media deixam de
ser vistos como separados dessas instituições (Hjarvard 2008, p. 7), deixando de
agir como elos de mediação entre o indivíduo e o social, mas antes funcionando
como parte da tessitura do próprio social, definindo o modo como as questões
são enquadradas para discussão pública. A influência dos media radica então na
interiorização da ‘lógica dos media’ pelas instituições e atores sociais de modo a
ganharem legitimidade e reforçarem o seu poder.
Os media como alvo de intervenção de políticas públicas de regulação (Cur-
ran, 2002; Golding & Murdock, 2005), tendo em vista a sua proteção contra a
concentração indevida de propriedade, é um dos principais temas abordados pela
economia política de inspiração britânica. Presumindo que a classe detentora dos
meios de produção material também controla os meios de produção mental de
uma sociedade, esta corrente faz opor o Estado às corporações económicas numa
tentativa de garantir o acesso equitativo aos meios de comunicação enquanto
bem público, semelhante à educação. Na atualidade, a lógica do mercado condi-
ciona o acesso à informação online através do controlo concentrado das grandes
corporações da área dos novos media, que introduzem filtros personalizados em
benefício de anunciantes, pondo em causa a privacidade e a vigilância, as quais
têm em vista o interesse público.
Efetivamente, as interações, links e perfis online, bem como o uso do telemóvel
geram informação excendentária sobre as atividades online dos utilizadores, a
qual pode ser rastreada, explorada e usada por aqueles que não participam nessas
mesmas interações. Bases de dados são criadas como ‘pegadas’ de informação
pessoal que os participantes deixam online enquanto comunicam, tornando-as
(frequentemente sem que o saibam) acessíveis a terceiros, tendo em vista a sua

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

utilização para estudar padrões de efetuação e receção de chamadas, envio e


receção de mensagens, carregamento/descarregamento de ficheiros, atividades de
friending e de liking, ou os respetivos contrários, no Facebook. Baseados em gran-
des volumes de dados (big data) que são coligidos, analisados e usados, não apenas
com objetivos de pesquisa, mas também – e sobretudo – para fins comerciais e
políticos, percebe-se que os novos media representam séria ameaça, aos níveis
ético e jurídico, para a esfera pública democrática (Álvares et al., 2014, pp. 43-44).

Internacionalização e Hibridez

O mundo globalizado onde se faz investigação e ciência obriga-nos a pensar em


termos de possíveis entrelaçamentos, que podem ser estabelecidos com outras
áreas geográficas, numa perspetiva descentralizadora do olhar, muitas vezes
enviesado em torno do mundo anglófono, se não mesmo europeu (Martins, 2010;
Kunsh e Melo (2012); Martins & Oliveira (2014)). Qualquer tentativa no sentido
de ‘internacionalizar’ a nossa área de estudo requer, no entanto, alguma refle-
xão sobre as consequências dessa internacionalização para as diversas partes
intervenientes (Mansell, 2007, p. 287). Tal esforço deve então ser acompanhado de
uma efetiva interdisciplinaridade crítica, que nos impele a problematizar a relação
entre margem e centro na ‘economia epistémica dos estudos de comunicação’
(Althusser citado em Mansell, 2007, p. 287).
Ousamos então interrogar-nos sobre a mais-valia concreta que as culturas
académicas latino-americanas da área das Ciências da Comunicação podem trazer
para a Europa. São as veias abertas da América Latina (Galeano, 2007 [1978]), que
expõem uma história de violência colonial, racial, social e de género, levando-
-nos a reconhecer a necessidade de se preservar espaços de crítica contra a ini-
quidade. Aí podemos realçar a importância de se estabelecer uma ponte entre a
tradição britânica dos Estudos Culturais, oposta à Economia Política dos Media,
e a Comunicação, ligação essa que já existe no Reino Unido, e que aparenta ver-se
também refletida em muitos países da América Latina. É da crítica ao universa-
lismo que se trata, numa tentativa de se apoiar um campo disciplinar que é antes
de mais interdisciplinar na sua recusa da pureza ou autenticidade intelectuais.
O conceito de hibridez multitemporal de Nestor García Canclini (1989) remete
para a coexistência de múltiplas temporalidades na América Latina, onde as
narrativas da modernidade coabitam com as da tradição. Tal como afirma Jesús

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AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA EUROPA

Martín-Barbero (1991), tais narrativas desfrutam de uma relação híbrida com a


modernidade, incorporando elementos pré- e pós-modernos. Esta é uma mistura
ou mestiçagem que não conduz a uma ‘síntese’, no sentido hegeliano, mas antes
ao reconhecimento da contradição como algo intrínseco à modernidade, de modo
similar à dialética da negatividade adorniana (Adorno, 2000 [1966]), que substitui
uma teleologia orientada para o futuro sob a forma da ‘narrativa de necessidade’
pela contingência. A sociologia transgressiva de Sousa Santos (2010) também
se baseia numa noção do ‘ainda não’ (Noch Nicht), que o filósofo utópico, Ernst
Bloch, desenvolvera como resposta ao que considerava um dualismo rígido entre
‘tudo’ (Alles) ou ‘nada’ (Nicht). É na ambivalência entre processos ‘primitivos’ e
‘amplificados’ de acumulação de capital, lutas ‘defensivas’ e ‘ofensivas’ contra
modos dominantes de ver o mundo e o uso contra-hegemónico de instrumentos
hegemónicos que se joga a contradição civilizacional de uma modernidade não-
linear, que efetivamente nunca foi nem será linear, em lado algum, mas cuja frag-
mentação se revela nesta conjuntura sem disfarce (Núñez, 2014, p. 138). A Europa
cosmopolita, com o seu legado pós-colonial, também vive uma modernidade em
mosaico, procurando por vezes impor o legado linear do iluminismo de forma a
encobrir a coexistência forçada de outras temporalidades no seu interior, não
sabendo como lidar com essa ‘contradição’ que põe em causa o próprio univer-
salismo da esfera pública europeísta.
A desterritorialização e hibridez que a modernidade trouxe à América Latina
teve origem em processos de comunicação multidimensionais (Martín-Barbero,
2006, p. 283), nomeadamente as indústrias culturais e os meios de comunicação
de massa responsáveis por novos processos de produção e circulação culturais.
Não se tratando apenas de inovações tecnológicas, tais processos acabaram por
criar novas perceções e sensibilidades, visíveis na economia simbólica da arte
urbana e na mediação de identidades por meio da telenovela. De forma similar, os
estudos culturais britânicos também se têm interrogado sobre o papel dos media
e da indústria cultural nas mudanças nas relações de poder, conduzindo a uma
desestabilização das definições tradicionais de identidade e promoção de novas
formas de agenciamento. Numa vertente mais ligada à economia política dos
media, questões relacionadas com a indústria criativa são fulcrais neste momento
para a Europa, em que a par de cada vez mais oportunidades para os criadores de
conteúdos resultante do uso das novas tecnologias, os meios de armazenamento
e distribuição de massa para lucro continuam a ser dominadas por corporações
globais (Álvares et al., 2014, p. 39).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Conclusão

O início deste texto foca a história das Ciências da Comunicação na Europa,


salientando a sua ligação aos objetivos do projeto europeu do pós-guerra, muito
particularmente o combate aos totalitarismos, a promoção da convivência con-
sensual entre partes conflituantes e a defesa dos direitos humanos. Obedecendo
antes de mais a um desafio político que seria consolidado por meio de uma aliança
económica, a integração europeia tornou-se simbólica de ideais humanistas e
universalistas antagónicos aos particularismos nacionais, considerados como
convergentes com o nacionalismo, o qual fazia ressuscitar imagens da então ainda
recente experiência nacional-socialista.
Nesse contexto, as teorias da racionalidade comunicativa, as abordagens
sociolinguísticas histórico-discursivas e sociocognitivas, as críticas à indústria
cultural, antecipando a economia política dos media, bem como a teoria da rece-
ção apontam caminhos para a emancipação do sujeito. A emancipação também
é objetivo dos estudos culturais britânicos, os quais promovem um descentra-
mento das narrativas universalistas de legitimação, chamando a atenção para
as relações entre conhecimento e poder que subjazem às mesmas. Estabelece-se
assim uma ponte entre a crítica emancipatória, que almeja libertar o indivíduo
dos grilhões do pensamento conformista, e as correntes de pensamento latino-
-americanas que enfatizam a hibridez, mestiçagem, modernidade fragmentada
e desterritorialização.
Apesar do descentramento das teorias surgidas na Europa do pós-guerra, sub-
sistem tradições europeias diferentes, que não fogem aos particularismos nacionais
e regionais europeus, as quais condicionam os enquadramentos teóricos aplicáveis
à parte pragmática da investigação. Alguns exemplos são a semiótica estruturalista
francesa, a teoria da mediatização que prevalece nos países nórdicos e na Alema-
nha, bem como os estudos de regulação inspirados na economia política britânica.
Obviamente que estas correntes de pensamento não são estanques, resistindo ao
confinamento às fronteiras nacionais, e encontrando forte adesão noutros países
da Europa e mesmo noutros continentes. No entanto, talvez respondam mais ao
ímpeto da globalização do que do cosmopolitismo, tal como surgido no pós-guerra.
Enquanto a globalização diz respeito à convergência de plataformas, mercados
e hábitos de consumo, podendo a semiótica, a mediatização e a regulação ser
aplicadas ao estudo de produtos globalizados, o ímpeto cosmopolita que serve
de inspiração às primeiras correntes mencionadas – racionalidade comunicativa,

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AS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA EUROPA

sociolinguística, críticas à indústria cultural e teoria da receção – prende-se com


uma clara vertente emancipatória. Tanto as teorias mais vocacionadas para a esfera
pública europeísta como as mais orientadas para lidar com os produtos mediáticos
da globalização são complementares numa Europa transnacional, caracterizada
por um legado simbólico universalista, onde os media digitais contribuem cada
vez mais para a globalização do próprio cosmopolitismo.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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POLÍTICA CIENTÍFICA
UMA QUESTÃO DE CONFIANÇA
João Costa*

Resumo
A política científica nacional, que decorre de opções locais e de imposições dos quadros de
financiamento europeu, tem sofrido alterações recentes que colocam em causa as formas
tradicionais de fazer ciência, em particular na área das Ciências Sociais e das Humanidades.
Passou-se de um modelo bottom-up, em que se confiava nas comunidades científicas
para avaliar e definir o impacto da investigação e das propostas de pesquisa para modelos
estandardizados e com definições apriorísticas de qualidade e relevância.
Neste texto, proponho uma breve reflexão sobre o papel da confiança na definição de
políticas científicas, usando como exemplo de partida a evolução recente na minha área
de trabalho, a linguística formal.
Abordarei, como eixos para o estabelecimento de uma política assente na confiança na
comunidade científica, o papel da literacia científica no acesso ao conhecimento, o papel
da Universidade na construção do conhecimento e a necessidade de reconhecimento da
diversidade nos outputs científicos.

Palavras-chave: política; ciência; confiança; língua; sociedade

* Doutorado em Linguística, pela Universidade de Leiden, na Holanda, é Professor Catedrático


de Linguística, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Até novembro de 2015 desempenhou as funções de Diretor da Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas desta Universidade e de Presidente do Conselho Científico das Ciências Sociais e
Humanidades da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Membro do Conselho Científico do Plano
Nacional de Leitura, da Comissão Nacional do Instituto Internacional da Língua Portuguesa e do
Conselho Consultivo do Instituto Camões, foi presidente da Associação Europeia de Estudantes
de Linguística (SOLE) e da Associação Portuguesa de Linguística. Lecionou em várias universi-
dades, no Brasil, em Macau, em Espanha e na Holanda. Atualmente, é o Secretário de Estado da
Educação do XXI Governo de Portugal.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1. Uma questão linguística

A informação disponível na maior parte dos países em que existe recenseamento


para este tipo de patologia indica que cerca de 7% das crianças em idade escolar
sofrem de Perturbação Específica do Desenvolvimento da Linguagem (PEDL)
(Tomblin et al., 1997). Esta perturbação caracteriza-se por um défice da linguagem,
que não tem associadas outras características – há ausência de défice cognitivo, de
perturbações do foro emocional ou social, de perturbações auditivas. As crianças
com PEDL apresentam vários sintomas. Quando o conhecimento sintático está
afetado, a sua compreensão de determinadas estruturas pode encontrar-se com-
prometida. Por exemplo, quando consideramos o seguinte par de frases:

a. Que menina é que abraçou a mãe?


b. Que menina é que a mãe abraçou?

Observamos que a diferença entre estas frases é mínima. A expressão inter-


rogativa em (1a) é o sujeito da frase, enquanto em (1b) é o complemento direto
da frase. As crianças com PEDL têm dificuldades na compreensão da frase (1b),
não sabendo se se lhes pergunta se a mãe abraçou a menina ou se, pelo con-
trário, foi a menina que abraçou a mãe. Este tipo de dificuldade compromete
seriamente o rendimento escolar, basta pensar na quantidade de questões como:
Que povos invadiram os romanos? e nas consequências de uma incapacidade de
processamento deste tipo de questões.
Sabemos que a PEDL, até há muito pouco tempo, era muito pouco diag-
nosticada. As crianças com este tipo de perturbação passavam por desatentas,
havendo alguns diagnósticos errados de défice de atenção. Sabemos também
que as taxas de diagnóstico são bastante mais baixas nas populações bilingues
(assumindo-se erradamente que uma criança que evidencia dificuldades na sua
língua não-dominante as tem por ser bilingue).
Hoje, os instrumentos de diagnóstico para esta perturbação são muito mais
finos e apurados. É possível saber que uma frase como (1b) é um bom indicador
clínico de PEDL, porque envolve a anteposição de um constituinte interrogativo
que contém um nome (menina) e que, como foi dito, apenas os constituintes com
função de complemento são problemáticos. Sabemos ainda que, quanto maior
a partilha de traços entre os constituintes envolvidos (neste caso, entre menina
e mãe, dois nomes no feminino e no singular), maiores serão as dificuldades

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POLÍTICA CIENTÍFICA

encontradas. Estes contributos para um diagnóstico cada vez mais fino da PEDL
decorrem de várias décadas de investigação em linguística teórica.
Esta investigação desenvolveu-se a partir dos trabalhos de Noam Chomsky,
nos anos 50, sem que houvesse qualquer preocupação com a sua aplicabilidade
imediata. Em 1957, Chomsky enuncia os primeiros princípios da gramática trans-
formacional numa perspetiva mentalista sobre a gramática. Este trabalho introdu-
zia a noção de movimento sintático – que permite dizer que em (1b) o constituinte
que menina se move para o início da frase, mas não sistematiza ainda as proprieda-
des e restrições deste tipo de movimento, o que é apenas feito em 1969, com a tese
de John Ross (1969). Na década de 80, são muitos os trabalhos que aprofundam as
propriedades formais das estruturas interrogativas e consegue-se, em particular
através dos trabalhos de Luigi Rizzi (1990), entender as diferenças entre estru-
turas com e sem intervenção, o que estabelece diferenças cruciais formais entre
frases como (1a) e (1b). Nos anos 90, assistimos a um interesse crescente sobre a
aquisição e desenvolvimento da linguagem, no estudo de diversas línguas, que
permitiram estabelecer a idade em que diferentes estruturas são adquiridas e como
frases como as de (1) são produzidas e compreendidas pelas crianças em diferen-
tes línguas e em diferentes estádios de desenvolvimento. Este tipo de trabalho
permitiu que se estabelecessem normas para o desenvolvimento da linguagem.
Graças ao trabalho da década de 90, foi possível, na década seguinte, observar
que há contextos em que o desenvolvimento sintático não corre bem e estabelecer
os desvios em diferentes quadros clínicos. Mais, com o enorme contributo de
investigadores como (Friedman, Belletti & Rizzi, 2009), foi possível entender-se
que as perturbações da linguagem são seletivas e guiadas por princípios abstratos
explicáveis à luz das restrições sintáticas identificadas nos anos 70 e 80.
Com base neste conhecimento, nos últimos anos, tem sido possível que lin-
guistas, psicólogos e terapeutas da fala colaborem na construção de instrumentos
de rastreio e diagnóstico mais precisos para a identificação precoce de problemas
de desenvolvimento da linguagem, que tenham em conta as especificidades das
diferentes línguas.
Ninguém negará que é importante que haja instrumentos para o diagnóstico
de perturbações da linguagem.
Hoje, infelizmente, ouve-se recorrentemente a pergunta: para que serve o que
tu estudas? Como se todo o estudo tivesse de ter um retorno prático imediato,
para além do aprofundamento do próprio conhecimento. Se é verdade que, no
exemplo dado, a fase final é inegavelmente relevante, é sobretudo verdade que só

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

foi possível chegar a este tipo de aplicação porque houve 50 anos de trabalho de
investigação fundamental, que não tinha em vista qualquer impacto económico
imediato, que não respondia a nenhum desafio societal emergente. Estes 50 anos
de investigação fundamental existiram porque houve financiamento assente na
confiança na comunidade científica para avaliar a relevância e impacto desta
investigação.

2. Políticas científicas

Com base neste pequeno exemplo do mundo da linguística, podemos refletir um


pouco sobre o papel que a confiança deve ter na estruturação de políticas cientí-
ficas. Debruçar-me-ei sobre três eixos: investigação e democracia; visão sobre a
Universidade; tipologias de outputs.

a) Sobre investigação e democracia

Retomemos a definição de literacia científica que é dada pela OCDE na definição


dos instrumentos do PISA:

“a capacidade de uso do conhecimento científico para identificar questões e projetar


conclusões baseadas em provas, tendo em vista entender a ajuda e tomar decisões
sobre o mundo natural, assim como as transformações nele introduzidas pela ativi-
dade humana”.

Através desta definição, podemos ver que o investimento na investigação e na


formação científica das populações é fundamental. Conforme é bem documentado
nos trabalhos de Norris, Phillips e Korpan (2003) e Fang (2004), entre outros, um
cidadão com boa formação científica, com competência de literacia científica,
exibe um conjunto de comportamentos que o torna mais apto para uma cidadania
ativa. Em particular, distingue-se pelas seguintes características:

• participa na sociedade de forma informada;


• questiona a partir de curiosidade sobre o mundo;
• lê artigos de divulgação e opinião e é capaz de discutir e colocar hipóteses
sobre a validade das conclusões;

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POLÍTICA CIENTÍFICA

• expressa opiniões a partir de informação científica e tecnológica;


• argumenta a partir de evidências e tira conclusões a partir de argumentos
válidos.

O investimento em investigação é, portanto, um requisito para a constitui-


ção de uma sociedade mais esclarecida e que toma decisões de uma forma mais
consciente, contribuindo para o desenvolvimento das democracias. Veremos que,
para entender a relação entre a Universidade e a absorção de conhecimento pela
Sociedade, o investimento em literacia científica é fundamental.

b) Sobre o papel da Universidade

À Universidade compete gerar conhecimento. Esta é historicamente a missão da


Universidade e esta instituição tem cumprido o seu papel nos últimos séculos,
porque tem tido a liberdade de gerar conhecimento sem a pressão de saber como
esse conhecimento é imediatamente relevante para a sociedade. Não se trata de
advogar o isolamento da Universidade ao mundo exterior, mas sim de conferir à
Universidade a capacidade de poder investigar, explorando e testando hipóteses
independentemente da sua aplicabilidade imediata. Se é competência da Uni-
versidade gerar conhecimento – e deve ser penalizada quando não o faz – é, por
outro lado, competência da sociedade e do tecido económico saber olhar para a
Universidade e absorver o melhor conhecimento gerado. Esta “distribuição de
tarefas” é fundamental para se perceber o papel de cada um. Ultimamente, assiste-
-se, por vezes, a uma inversão de papéis, que penaliza enormemente a investigação
fundamental, concretizada em particular nas chamadas Smart Specialization
Strategies, que beneficiam e privilegiam os projetos de investigação com impacto
imediato na criação de valor económico. Pede-se à Universidade, portanto, que
defina os temas de investigação em função das necessidades da economia, em
vez de se pedir ao tecido económico que avalie quais os outputs do conhecimento
que são mais relevantes, desafiando a Universidade para produzir mais e melhor.
Para que a Universidade cumpra o seu papel, na geração de conhecimento,
é fundamental que se cumpra um requisito: que haja confiança nas instituições
e na comunidade científica.
É inegável que a Universidade tem cumprido o seu papel. O conhecimento
fundamental, aplicado ou em atividades de extensão aumentou enormemente nas
últimas décadas, como atestam todos os indicadores disponíveis. Sabemos que,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

graças ao enorme investimento público, apenas contrariado nos últimos anos,


Portugal viu aumentar o número de adultos com qualificação superior e o número
de indicadores de desempenho científico (e.g., teses de doutoramento, projetos
internacionais e publicações). Diz-se que a Universidade não tem cumprido o seu
papel porque ainda é baixa a correlação entre o investimento em investigação e o
desenvolvimento económico – este é, por exemplo, o resultado do Diagnóstico do
Sistema de Investigação e Inovação, divulgado pela FCT em 2013. Contudo, é pre-
ciso dizer que a leitura desta baixa correlação deve ser interpretada com cautela.
Em primeiro lugar, uma política de confianças nas instituições requer con-
dições para a execução de investigação científica de qualidade. Esta investigação
científica de qualidade comporta três requisitos essenciais:

• Estabilidade e previsibilidade nos modelos e quadros de financiamento


– os investigadores só podem desenvolver investigação se souberem
que podem formar equipas a médio-longo prazo e quais os modelos de
financiamento com que podem contar. A constante imprevisibilidade
nos concursos e modelos de organização, avaliação e financiamento não
permitem que haja um amadurecimento das instituições.
• Renovação de quadros – a renovação das instituições é fundamental.
Atualmente, os quadros das Universidades estão envelhecidos e tem
sido muito difícil a contratação de jovens investigadores. Para a criação
de investigação científica fortemente competitiva, é fundamental que as
instituições tenham a capacidade de fixar os melhores investigadores,
que se têm visto obrigados – e até estimulados – a emigrar;
• Reforço de autonomia e responsabilização – o desenvolvimento da inves-
tigação implica que seja possível cada instituição definir o seu projeto,
estabelecer as suas metas e gerir os seus recursos da melhor forma. Para
tal, é necessário que haja uma progressiva autonomização da gestão, na
contratação, nas modalidades de aquisição, nos modelos de gestão de
recursos. Se esta autonomia for concedida, é possível e desejável uma
muito maior responsabilização dos agentes de gestão.

Chamo a atenção para estas condições porque não vale a pena fazer diagnós-
ticos sobre o baixo impacto da produção científica se não forem sendo garantidas,
progressivamente, às instituições condições para uma execução continuada e
previsível da sua produção.

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POLÍTICA CIENTÍFICA

Há um segundo aspeto na correlação entre produção científica e valor econó-


mico que justifica uma reflexão essencial. Para que haja absorção do conhecimento
pelo tecido económico, é preciso que haja valorização do conhecimento pelos
agentes económicos. Ora, como sabemos, e os dados do Eurostat mostram-no
inequivocamente, os empresários portugueses têm qualificações muito baixas
quando comparados com a média europeia. Isto significa que os empregado-
res têm um potencial muito fraco de valorização do conhecimento científico
gerado na Universidade, não havendo, portanto, contexto para a sua absorção. É
neste ponto que o que acima foi dito sobre literacia científica se torna relevante.
A par do investimento estável e previsível no ensino superior e na ciência, é
fundamental que sejam retomados os programas de formação e qualificação da
população ativa e que se deem passos firmes numa política de promoção da cultura
e literacia científica. Sem que isto aconteça, é muito pouco provável que se inverta
a desvalorização do conhecimento e a baixa absorção do conhecimento científico
gerado na Universidade pelo tecido económico, bem como a baixa integração de
doutorados nas empresas.

c) Sobre a tipologia de outputs

Para se perceber que absorção de conhecimento é possível pela sociedade, é


necessário que seja garantida a visibilidade de todos os produtos científicos. A
tendência recente de valorização quase exclusiva das publicações indexadas em
base comerciais tem sido penalizadora para as Ciências Sociais e para as Huma-
nidades. Como evidenciado em vários estudos, os tipos de output científico são
bastante diversificados em função das áreas e, se nas ciências exatas, é possível
recorrer à publicação em revista como principal e quase exclusiva forma de divul-
gação do conhecimento, nas CSH são muito diversas as formas de divulgação
do conhecimento. Tradicionalmente, publica-se em livros, capítulos de livros,
atas e revistas, e a publicação é uma forma de divulgação a par de outros outputs
como as coleções, a edição de partituras, os sítios arqueológicos, a organização
de exposições, entre outros. Também a língua de publicação é bastante variável,
havendo disciplinas em que a língua nacional é muito mais utilizada do que o
inglês, o que pode ser tornado invisível quando apenas são contempladas as
publicações indexadas em bases comerciais.
Na última década temos assistido a uma política top-down de definição de
canais de comunicação de ciência, de definição de impacto nas áreas científicas

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

e, com maior gravidade, de definição de temas de investigação. Compete às comu-


nidades científicas e aos investigadores saberem avaliar da qualidade científica
dos outputs. Se por um lado esta política top-down tem permitido alguma preo-
cupação crescente com a visibilidade externa da investigação (já é mais claro que
interessa mais o que é lido do que aquilo que se publica) e com a definição de
níveis de produtividade, por outro lado assistimos a alguns problemas nos exer-
cícios de avaliação. A invisibilidade a que os produtos científicos mais relevantes
em algumas áreas, como as CSH, estão condenados leva a que haja desvios na
avaliação – estas áreas podem ser consideradas inerentemente pouco produtivas,
podem subvalorizar alguns produtos científicos ou sobrevalorizar outros inde-
pendentemente da sua qualidade real e, sobretudo, levam a que haja um enorme
gasto de recursos na tentativa de adaptação das áreas às exigências externas das
entidades avaliadoras, em vez de se canalizarem recursos para o que mais inte-
ressa: o investimento em investigação científica de qualidade.
É evidente que uma política científica assente em princípios de confiança na
comunidade científica reconhecerá que a investigação irrelevante nunca vingou.
Cada comunidade científica saberá, como sempre soube, aferir e avaliar os pro-
dutos dos seus pares e selecionar a melhor investigação.
Trago à discussão esta questão dos outputs científicos, já que não podemos
querer que a Universidade cumpra o seu papel de entidade produtora de conhe-
cimento, corresponsabilizando-se pela criação de uma cultura científica na socie-
dade e pela qualificação dos agentes económicos, se os seus produtos estiverem à
partida condenados a ser invisíveis. Se muitos dos outputs das Humanidades, que
se materializam em projetos de transferência de conhecimento, como catálogos,
exposições, palestras, formação, são ignorados em processos de avaliação, não se
pode esperar que os centros de investigação cumpram o seu papel.
De tudo o que foi exposto, parece fundamental que se reestabeleça e for-
taleça a relação de confiança entre a comunidade científica e as agências que
gerem a política científica dos vários países, sobretudo no contexto europeu.
O conhecimento científico construiu-se porque houve liberdade conferida aos
investigadores para identificarem as questões de investigação, recursos para
investigar e confiança nas suas capacidades. Se estas condições não estiverem
garantidas, pouco restará.

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POLÍTICA CIENTÍFICA

Referências bibliográficas

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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DESAFIOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO ACADÊMICA
Juremir Machado da Silva*

Resumo
Este estudo aborda a questão da internacionalização acadêmica, ou internacionalização
da ciência, especialmente no que se refere às Ciências Sociais, como estratégia política
dos países ocidentais. Examina aspectos como a hegemonia da língua inglesa, o estabele-
cimento de métricas controvertidas de avaliação, a uniformização dos procedimentos de
produção acadêmica, os perigos dessa política para a liberdade de pesquisa e para a defesa
da diversidade e das especificidades de cada domínio de conhecimento.

Palavras-chave: Ciências Sociais; internacionalização; pesquisa; globalização; universi-


dade; comunicação

1. Ideais e razões da internacionalização

Tudo é narrativa. A ciência também conta sobre si e para si uma história. Não
basta, porém, convencer os convencidos ou, como se diz, pregar para os conver-
tidos. A narrativa sobre a grandeza da ciência precisa ser contada também para
o grande público, o dito homem comum, aquele que se beneficia com os avanços

* Doutorado em Sociologia da Cultura pela Universidade de Paris V, René Descartes, em 1995, é


Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Estuda a
sociologia dos média, do imaginário e as relações entre a cultura, comunicação e tecnologia. É
investigador do CNPq do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS. Publicou,
entre outras obras, A miséria do jornalismo brasileiro (2000), As Tecnologias do imaginário
(2003), O que pesquisar quer dizer (2010), História regional da infâmia – o destino dos negros
farrapos e outras iniquidades brasileiras, ou como se produzem os imaginários (2010), Vozes da
Legalidade: política e imaginário na era do rádio (2011) e Raízes do conservadorismo brasileiro:
a abolição na imprensa e no imaginário social (2017).
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

da ciência, mas permanece estranho ou indiferente aos seus mistérios. É o que se


chama de vulgarização. Dependendo do narrador, essa história pode ser mais ou
menos épica. Não deixa de ser interessante notar que os “cientistas” podem ser
sensíveis às mesmas mitologias que seduzem os leigos. A narrativa padrão sobre
ciência sugere que praticamente tudo nela se faz em nome da verdade e do bem
por cientistas cujo único interesse seria o triunfo do esclarecimento, da razão e
do melhor argumento.
Internacionalizar é a palavra de ordem no mundo acadêmico deste começo
de século XXI. Em princípio, trata-se de uma abertura de horizontes e de novas
janelas para intercâmbio, compartilhamento de conhecimentos e interação livre
e transparente entre cientistas do mundo inteiro. Internacionalizar soa como um
canto doce contra os fechamentos, os nacionalismos, os chauvinismos e toda
sorte de obstáculos à troca de saberes. Internacionalizar eleva-se como um ideal
emancipador, iluminista, iluminado e absolutamente moderno. Internacionalizar,
enfim, é um hino entoado por quem ousa saber.
Karl Popper, sem estar focado nesse tema, num tempo em que a palavra
internacionalização ainda não era um mantra, pode ter dado o pontapé inicial –
ou fornecido mais um argumento – para a fixação dessa ideia que acompanha a
ciência praticamente desde sempre: “Nossa civilização ocidental teve início com
os gregos. Foram, eles, parece, a dar o passo do tribalismo para o humanitarismo.
Consideremos o que isso significa” (Popper, 1974, p. 187). As considerações de
Popper ficarão de lado. Outras, pretensamente mais adequadas para esta discus-
são, serão tecidas aqui. Seria a internacionalização o novo humanitarismo? Ou
mais um passo na ruptura com o isolamento tribal das nações e das línguas, que
prejudicam a livre circulação de ideias e o intercâmbio de saber? O humanitarismo
seria justamente o fim do isolamento?
A bandeira da internacionalização tremula nos mastros universitários de
países comprometidos com democracia, liberdade e conhecimento à disposição de
todos. Quem poderia se opor a uma proposta tão generosa? Como fazer ressalvas
a uma utopia transformada em políticas de Estado e de organismos supranacio-
nais? Estudantes, professores e pesquisadores são estimulados a viajar, a trocar
informações, a trabalhar em colaboração com colegas de países e instituições
diversos. Recursos são disponibilizados para financiar bolsas de estudo no estran-
geiro e de pesquisas compartilhadas com investigadores de laboratórios e centros
de excelência situados por toda parte. O Brasil apostou, com êxito, no programa
“Ciência sem Fronteiras”, para espalhar jovens pelo mundo. A internacionalização

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DESAFIOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO ACADÊMICA

faz sonhar, ajuda a transferir conhecimentos e a criar redes de saber. Na era da


rede, esse ainda novo mundo da Internet, a ciência só pode se pautar pela noção
vasta de entrelaçamento de nós.
Poderia, no entanto, por trás dessa operação generosa de interconexão episte-
mológica esconder-se alguma armadilha? O físico Paul Feyerabend notabilizou-se
por sua desconfiança em relação a tudo o que, como um manual de procedimentos,
limita a liberdade absoluta de produção do conhecimento:

O racionalismo crítico, a metodologia positivista mais liberal hoje existente, ou é uma


ideia penetrada de significado ou não passa de uma coleção de frases feitas (como
‘verdade, ‘integridade profissional’, ‘honestidade intelectual’, e assim por diante,
que têm por objetivo intimidar oponentes pusilânimes. (Feyerabend, 1977, p. 269) 1

Seria a internacionalização uma “ideia penetrada de significado” ou uma


“coleção de frases feitas”, para deslumbrar convertidos, ou intimidar “oponentes
pusilânimes”? Esse questionamento é uma hipótese ad hoc, com um tom provo-
cativo – de acordo com o espírito defendido pelo próprio Feyerabend, de levar
certas possibilidades ao extremo para testar a razoabilidade do senso comum.
A provocação deve fazer a vocação da coisa vir à tona. Feyerabend segue as
suas recomendações e pergunta: “quem teria coragem ou mesmo perspicácia para
declarar que talvez a ‘verdade’ não seja importante e talvez chegue a ser indesejável”
(Feyerabend, 1977, p. 269-270). A verdade em si não será questionada aqui. Como
diriam os franceses, há outros gatos para chicotear. Mas nem tanto. A questão é
mais de formulação. Alguém poderia ter a coragem ou a perspicácia de questionar
a ‘verdade’ da internacionalização? Alguém seria capaz de considerá-la pouco
importante ou, em certas condições, indesejável? Seria possível e desejável analisar
o que está proposto como internacionalização? Haveria algum desvio em relação
à ideia original, ou a esse princípio grego humanitarista e de ruptura com a tribo?
A internacionalização já deixou de ser apenas uma utopia, ou um ideal, para
se materializar em procedimentos técnicos, burocráticos e em vetores de avalia-
ção de desempenho. Virou meta. Em cada país é possível coletar e ouvir relatos
sobre o emaranhado de normas, oriundo dos sistemas de internacionalização. Um

1 Sobre os efeitos que a metodologia positivista está a ter na produção científica das Ciências
Sociais e Humanas, ver, também, “As Ciências Sociais e a política científica” (Martins, 2008);
“A política científica e tecnológica em Portugal e as Ciências da Comunicação: prioridades e
indecisões” (Martins, 2012); e “A liberdade académica e os seus inimigos” (2015 b).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

pálido exemplo. O chamado “Documento de Área 2013”, que regeu a avaliação da


pós-graduação brasileira em Comunicação no triênio 2010-2012, registra: “A inter-
nacionalização é uma questão estratégica para a educação superior e a pesquisa
brasileira” 2. Para alcançar as notas seis e sete (máximas na escala de avaliação
dos programas brasileiros de pós-graduação), é preciso ter “internacionalização
e liderança”.
A hipótese ganha sua configuração: estaria o ideal da internacionalização,
como intercâmbio generoso de saberes, sendo solapado por uma operação buro-
crática de estabelecimento de regras e critérios de avaliação acadêmicos e de
produção de ranking? Em outras palavras: por trás da abertura de horizontes
e de janelas haveria um fechamento normativo, normalizador e circular. Nesse
sentido, o bom é a internacionalização, porque a internacionalização é boa. Algo
que obriga a perguntar: o que é na prática a internacionalização? O que se pede e
espera dos processos de internacionalização? Como a internacionalização é usada
na gestão das práticas acadêmicas?

2. Internacionalização e globalização

Vastas ambições e grandes problemas. A internacionalização tem seus valo-


res, suas crenças, seu discurso, sua gramática e sua língua. O inglês tornou-se
o “esperanto” da ciência. Virou clichê dizer que o inglês é a língua da ciência.
Agências nacionais de fomento lançam editais de pesquisa, para distribuição de
recursos, e fixam, como critério de seleção, entre os tantos parâmetros para o
financiamento de projetos de parcerias internacionais, que os visitantes, vindos
de qualquer país, devam dar aulas em inglês. É o que diz, por exemplo, o edital
de internacionalização 10/2014, montado em conjunto pela CAPES, organismo
brasileiro do Ministério da Educação, e a FAPERGS, agência de fomento do Estado
do Rio Grande do Sul: “Plano detalhado das atividades dos candidatos às missões
diretamente relacionadas à execução da proposta, incluindo obrigatoriamente a
participação de pesquisador estrangeiro em atividade de ensino a ser realizada
em língua inglesa no programa de pós-graduação no RS” 3. Em outro momento,

2 “Documento de Área 2013” (avaliação da pós-graduação brasileira em Comunicação no triênio


2010-2012). Retirado de: www.capes.gov.br/avaliação. Consulta a 18.08.2017.
3 Edital de internacionalização 10/2014 (CAPES e a Fapergs). Retirado de: http://www.fapergs.
rs.gov.br/editais. Consulta a 18.08.2017.

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DESAFIOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO ACADÊMICA

o mesmo edital flexibiliza: “Ministrar cursos e ou conferências que venham a


contribuir para a carga horária dos alunos do programa de pós-graduação, em
língua estrangeira, preferencialmente em inglês” 4.
Um observador estranho ao imaginário atual da ciência poderia questionar
ingenuamente: “Por que um francês, um espanhol ou um português deveriam dar
aulas em inglês para um brasileiro?” A resposta, embora não explicitada, parece
ser simples: porque os processos de internacionalização devem, em todas as suas
instâncias, fortalecer a ideia de internacionalização na sua “essência”. Se o inglês
é a língua da ciência – e ciência é internacionalização –, a internacionalização
deve acontecer em inglês. Deve servir também para aperfeiçoar o domínio do
inglês por estudantes e professores. Nada contra o inglês. A ciência e os cientistas,
contudo, precisam estar cientes do papel que desempenham no enfraquecimento
das línguas nacionais. Se economia (negócios), diplomacia e ciência se fazem em
inglês, o patrimônio da diversidade linguística não fica ameaçado ou fragilizado?
Essa pergunta costuma ser descartada rapidamente, como um sinal de nacio-
nalismo retrógrado, ou de falta de domínio da língua inglesa. Ainda que essas
hipóteses sejam pertinentes e prospectivas, a questão da diversidade também tem
a sua validade. Salvo se outro ideal ou utopia, o de uma comunidade linguística
internacional unificada pelo inglês, estiver sendo implementado pela diplomacia,
pelos negócios e, cada vez mais, pela ciência em todos os degraus, da formação
universitária aos campos de pesquisa e produção de saber.
A internacionalização acadêmica ganhou forças em tempos ditos de globa-
lização. Por globalização entende-se um processo de contração de distâncias,
eliminação de fronteiras e padronização de certos métodos e procedimentos. A
lógica da globalização é fortemente unificadora. O inglês é a língua da globali-
zação. O círculo fecha-se. Isso não implica automaticamente uma reprovação a
essa dinâmica. Do ponto de vista, por exemplo, da lógica dos negócios, que parece
envolver também a ciência, essa sistemática tem mostrado ser eficaz. A indústria
do turismo alimenta-se dessa circulação sem fronteiras, mas, ao mesmo tempo,
precisa da diferença e do local como produtos a serem consumidos. Por que se
viajaria para ver, ouvir, comer e beber o que já se tem em casa? Essas contradições
não param de inquietar uns e outros. Ainda no espírito de Feyerabend (1977),
defensor de um “anarquismo epistemológico”, pode-se perguntar, desajeitada-
mente: padronizar traz mais benefícios do que prejuízos? Há riscos importantes de

4 Ibidem. Retirado de http://www.fapergs.rs.gov.br/editais. Consulta a 18.08.2017.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

perda da diversidade? O que vale para o turismo, negócio cada vez mais rentável,
deve valer também para a ciência? 5

3. Internacionalização como critério de avaliação

Dificilmente um espírito razoável contestará o valor da internacionalização como


ciência sem fronteiras. Materiais publicados em jornais brasileiros indicam, no
entanto, que pode acontecer um desvirtuamento dessa ideia aparentemente
irretocável. O título de uma reportagem do jornal O Globo é sintomático: “Uni-
versidades brasileiras sofrem para aparecerem em rankings internacionais”. A
ênfase na hierarquização dos rankings tornou-se uma obsessão governamental,
compartilhada com a imprensa e com os próprios acadêmicos. Os critérios de
classificação, de certo modo, são aceitos como objetivos e indiscutíveis, ainda
que passíveis de comentários. A linha de apoio ao título citado remete para o
incontornável problema da língua: “O idioma é um dos maiores entraves para a
abertura das instituições do país para o mundo, o que se reflete nas avaliações”
(O Globo, 07/12/2014, p. 34).
Em outras palavras, o Brasil não se posiciona bem nos rankings acadêmicos
internacionais, porque não fala inglês nas suas universidades. Uma cadeia fica
estabelecida: abertura para o mundo = internacionalização = boas avaliações = bom
posicionamento nos rankings internacionais = predomínio da língua inglesa. Uma
ideologia de naturalização dessa equação encontra apoio em exemplos empíricos.
Uma professora alemã, especialista em matemática, precisou de ajuda da comissão
de seleção para ser aprovada numa universidade brasileira, quando teve dificulda-
des para se expressar em português. Ao jornal O Globo, a candidata, examinando o
que lhe aconteceu, sugeriu uma alteração de procedimentos: “Eu tinha uma noção
ainda superficial do português. Poderia haver, por exemplo, uma prova de língua
inglesa para ingressar e, depois de um certo tempo, um teste de proficiência no
idioma local. Ainda mais em matemática, que tem uma linguagem própria. Muitas
universidades já fazem isso” (O Globo, ibidem). Parece bem razoável.

5 Sobre a diversidade linguística, ver “Interfaces da Lusofonia” (Martins et alii, Eds., 2014); e “Os
Estudos Culturais como novas Humanidades” (Martins, 2015 c). O ponto de vista de Moisés de
Lemos Martins é o de contrariar aquilo a que chama “globalização cosmopolita”, feita pelo uso
exclusivo do inglês, pela contraposição daquilo a que chama “globalização multiculturalista”
(Martins, 2011, 2015 a).

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DESAFIOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO ACADÊMICA

Essa proposta, porém, não encontrou inicialmente respaldo da alta admi-


nistração da universidade em questão, quando da realização de novo concurso
para professor titular. A justificativa dada foi clara e direta: “Ninguém é contra
a internacionalização. Pressupomos que o professor entre na universidade e vá
dar aulas na graduação. Se ele não domina a língua nativa, não pode cumprir esse
papel” (O Globo, ibidem). Essa observação, que também não pode ser acusada de
faltar com o bom senso, foi rebatida pelo autor da reportagem em tom imperativo:
“O idioma é um dos maiores entraves para a abertura de nossas instituições ao
mundo, algo que se reflete claramente nos rankings internacionais de avaliação
das universidades. A pouca internacionalização sempre tira preciosos pontos”
(O Globo, ibidem).
Passa-se de um registro a outro. A internacionalização torna-se importante,
por dar pontos capazes de levar a uma melhor posição num ranking. Fica sugerido
que o fundamental é estar bem colocado no sistema classificatório. A internacio-
nalização ganha outro caráter. Se a língua nacional é um obstáculo para a conquista
de pontos, deve ser sacrificada. Aulas, artigos e projetos devem ser apresentados
em inglês. Dito assim, ainda pode parecer aceitável. Cabe ver mais.
A reportagem do jornal O Globo amparava-se num estudo feito pela consul-
toria britânica Times Higher Education (THE), segundo o qual o Brasil “só teve
quatro representantes entre as 100 melhores universidades do grupo dos BRICS
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e de todo o mundo emergente” (O
Globo, ibidem). O jornalista enfatizou:

Embora ostente a segunda maior economia dos Brics, o país é o último em número de
instituições entre as melhores. Os chineses têm nada menos que 27 representantes
na tabela, seguidos pelos indianos, com 11, pela Rússia (com sete) e pela África do
Sul (cinco). O grande destaque do ano ficou com a Turquia, com oito universidades
entre as 100 melhores, incluindo a Universidade Técnica do Oriente Médio, em 3.º
lugar (O Globo, ibidem).

Por que tudo isso? O que explica o fracasso brasileiro? A resposta faz pensar:
“Isso ocorre porque essas universidades oferecem, além dos cursos em suas lín-
guas, aulas em inglês” (O Globo, ibidem).
O problema não está na qualidade do ensino e da pesquisa brasileiros, mas
no fato de que as aulas não são ministradas em inglês. O critério de classificação
torna-se mais importante do que a qualidade possível do que é classificado. Falar

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

para “fora” ou abrir-se para os de “fora” converte-se em parâmetro. Se essa pers-


pectiva for levada ao extremo, como hipótese ad hoc, mais uma vez tomando-se
em consideração o ponto de vista metodológico de Paul Feyerabend, as univer-
sidades do mundo inteiro, para serem bem classificadas, tenderão a abrir mão
das línguas nacionais e a operar em inglês. O que isso significaria? O que isso
significará? Exagero? Possivelmente.
A reportagem do jornal O Globo focaliza outro aspecto: o baixo número de
estrangeiros nas universidades brasileiras: “Desde 1977 no Brasil, onde chegou
como professor visitante na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o americano
Robert Verhine é um dos educadores mais críticos ao ensino superior brasileiro
nessa questão. Segundo ele, ainda há no país uma cultura de que as universida-
des públicas sejam direcionadas exclusivamente para o povo local, excluindo
assim quem vem de fora” (O Globo, ibidem). O professor citado, referindo-se à
situação da Bahia, ataca: “Nossa maior universidade, a que mais tem capacidade
de atração, tem apenas 2% de alunos estrangeiros. Não atraímos porque temos
uma mentalidade de que a universidade brasileira é para brasileiros, em vista do
déficit histórico de vagas” (O Globo, ibidem). Por que a universidade brasileira não
deveria ser, antes de tudo, para os brasileiros? Por que ter muitos estrangeiros é
sinal de qualidade?
Cabe observar que discutir essa valorização em si não deve ser confundido
com chauvinismo ou fechamento aos “de fora”. Não existe, nem deve existir,
qualquer interdição à vinda de estrangeiros para as universidades brasileiras.
Há, com certeza, excesso de burocracia. A reportagem de O Globo conclui: “Na
UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], que vetou provas em idiomas
estrangeiros, apenas 1040 estudantes em um universo de mais de 57 mil não são
brasileiros, ou 1,8%. Já professores representam um percentual um pouco maior:
3,9% de quatro mil” (O Globo, 07/12/2014, p. 34). Neste ponto, não é desmedido
ousar questionar ou provocar: a obsessão atual pela atração de estrangeiros por
universidades europeias e norte-americanas tem a ver, acima de tudo, com um
ideal científico, ou com um modelo de negócios rentável?
Um texto publicado no site do jornal Folha de S. Paulo havia enfocado o
mesmo tema algum tempo antes com o título: “Por que as universidades bra-
sileiras vão tão mal nos rankings internacionais?” 6. A autora começou em tom

6 Folha de São Paulo. Por Sabine 02/10/13 20:34. Retirado de: http://abecedario.blogfolha.uol.com.
br/2013/10/02/por-que-as-universidades-brasileiras-vao-tao-mal-nos-rankings-internacionais/.
Acedido a 18.08.2017.

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DESAFIOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO ACADÊMICA

alarmante: “USP [Universidade de São Paulo] e Unicamp [Universidade de Cam-


pinas] despencaram no ranking universitário internacional lançado hoje pelo
THE (Times Higher Education), o principal da atualidade. A USP, única do Brasil
que figurava entre as 200 melhores do mundo, passou de 158.º lugar em 2012
para o grupo de 226.º a 250.º”. Norte-americanos dominam o ranking. Britâni-
cos também aparecem muito bem colocados. Agravante: “O Brasil foi o único
país que saiu do grupo de países com universidades entre as 200 melhores do
mundo. Noruega, Espanha e Turquia entraram para o grupo de elite”. Por quê?
O ensino na Noruega, na Espanha e na Turquia são superiores ao praticado no
Brasil? Em que sentido?
A autora alerta: “Não dá para colocar a culpa na metodologia, que não mudou
do ano passado para a atual edição”. O que houve? Como se trata de um blog, a
resposta vem em tom coloquial: “O problema, ao que parece, é a falta de inglês
nos corredores acadêmicos”. A falta de gente de fora derruba o Brasil. A obser-
vação seguinte parece mais inquietante: “Como publicamos trabalhos científicos
essencialmente em português, quem não fala a nossa língua não consegue nos ler
e nem nos citar – algo essencial na atividade científica. E assim, despencamos”. E
se as pesquisas, apesar de pouco citadas, forem altamente qualificadas? Por que
um especialista em História do Brasil deveria ser muito citado por pesquisadores
canadenses ou noruegueses?
Essas questões, eivadas até de certa ingenuidade, servem para acirrar a discus-
são. Não se pretende, vale repetir, contestar radicalmente algo que tem qualidades
evidentes e muitos resultados positivos. A proposta é refletir sobre possíveis
desvios e efeitos perversos do modelo em voga. Não haveria em tudo isso até
mesmo um efeito de moda, um efeito de classificação, alastrando-se como um jogo
perverso por servir ao marketing acadêmico e aos índices de governos sedentos
de estatísticas capazes de encantar os meios de comunicação?
O texto do blog na Folha de S. Paulo completa: “Não falar inglês prejudicou
também outros indicadores, como ‘internacionalização’. Temos poucas aulas em
inglês e, consequentemente, temos poucos alunos e poucos professores estran-
geiros — um dos indicadores em avaliações como o THE. Na Unicamp, a queda do
indicador ‘internacionalização’ de 20,9% para 19% foi um dos motivos que leva-
ram a universidade para o fim da fila”. Um leitor radical poderia questionar vários
pontos: para que fazer rankings? Ele seria considerado um inimigo da meritocracia,
a base explícita ou implícita de todos esses sistemas classificatórios. Na mesma
linha, poderia atrever-se a perguntar: e se a internacionalização, enfatizando

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

número de estrangeiros numa instituição e aulas em inglês, não passar de um


critério de classificação na medida em que classificar se tornou um fim em si?
Paul Feyerabend acentua que na ciência também há mito e propaganda: “Os
cientistas não se contentam com dirigir suas ideias, de acordo com o que enten-
dem ser as regras do método científico: desejam dar universalidade a essas regras,
querem que elas se tornem parte da sociedade e valem-se de todos os meios de
que dispõem – argumento, propaganda, táticas de pressão, intimidação, ações de
grupos – a fim de atingir seus objetivos” (Feyerabend, 1977, p. 341). Não é difícil se
sentir intimidado pelas táticas de pressão dos grupos legitimados, quando se faz
alguma ressalva aos novos dogmas racionalizados como os da internacionalização
classificatória e do inglês como esperanto científico emancipador e unificador.
O problema, se problema pode haver, ainda segundo Paul Feyerabend, é que
“as concepções dos cientistas e, especialmente, as concepções que têm acerca de
questões fundamentais são, frequentes vezes, tão diferentes entre si quanto as
ideologias subjacentes a culturas diversas” (Feyerabend, 1977, p. 401). É possível,
quanto a isso, que as ideias de Paul Feyerabend tenham sido ultrapassadas e que
as posições dos cientistas sobre questões fundamentais sejam tão iguais entre si
quanto as poucas ideologias subjacentes às diversas culturas.
Como a proposta aqui não é dar respostas nem provocar tumulto ou aborre-
cimento nos que trabalham pela derrubada de fronteiras e de obstáculos à livre
circulação de conhecimento, mas apenas suscitar debate, não custa lembrar
que todos os sistemas de classificação são bons. Está provado. São bons para
classificar. Não se pode, entretanto, jogar a criança fora com a água da bacia 7. A
internacionalização precisa, talvez, ser salva das manobras classificatórias que
poderão reduzi-la a uma distopia assustadora 8.

7 Sobre a avaliação científica, ver “A liberdade académica e os seus inimigos” (Martins, 2015 b).
8 Em 20 de dezembro de 2014, o jornal O Globo voltou ao assunto com o título “UFRJ volta atrás
e fará provas em diversos idiomas para contratação de professores estrangeiros”. Explicação: A
decisão foi tomada após reportagem de O Globo mostrar que o idioma é um dos maiores entraves
para a abertura das instituições brasileiras ao mundo, algo que se reflete negativamente nos
rankings internacionais de avaliação das universidades devido à pouca internacionalização”.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/ufrj-volta-atras-fara-provas-
-em-outros-idiomas-para-contratacao-de-professores-estrangeiros-14876457. Consultado a
18.08.2017.

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DESAFIOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO ACADÊMICA

4. A internacionalização distorcida

Naturalmente que a valorização do número de estrangeiros numa universidade


pode ser tomada apenas como um indicativo da sua abertura para o mundo.
Acontece que uma instituição, em tese, também poderia ou pode ser excelente,
num determinado domínio, sem ter estrangeiros. Em que sentido a qualidade dos
estudos sobre a literatura escrita em português pode depender da sua recepção
em língua inglesa? Sofisma? Primarismo? Malabarismos nacionalistas? Ou, ao
contrário, pistas para o desmascaramento de uma situação curiosa: a internacio-
nalização acadêmica como mecanismo de legitimação institucional e de estímulo
à competição por meio dos rankings? Por trás da internacionalização está o ideal
da cooperação ou a febre da competição desenfreada e útil à lógica do marketing
e dos negócios 9?
Nunca será demais enfatizar que o problema não é a internacionalização em
si, mas a forma como vem sendo praticada. Flavia Melville Paiva, da Universidade
do Mato Grosso do Sul (UFMS), no texto “A avaliação da internacionalização da
pesquisa científica e da pós-graduação no Brasil” 10, observa: “Considerando as
demandas do capital cada vez mais internacionalizado, coloca-se a dúvida de
como os programas de pós-graduação respondem às necessidades do mercado,
por meio das políticas que incentivam, pressionam, fortalecem ou não a inter-
nacionalização da pós-graduação”. O mercado surge como mediador, instigador,
beneficiário dessa internacionalização 11.
A autora complementa: “Em que sentido tem se dado a interação entre pes-
quisadores do Brasil e os pesquisadores sediados nos países hegemônicos, do
ponto de vista dos interesses capitalistas?” Esse elemento nem sempre entra
nas considerações “desinteressadas” das mitologias científicas. Flávia Paiva
insiste: “Além disso, questões como a privatização do ensino superior no país; a
democratização, massificação e interiorização do ensino superior, inclusive do
ensino superior público, aliados à realidade de internacionalização do saber, ao

9 Sobre a febre da competição desenfreada e útil a que está sujeito, hoje, o ideal académico da
cooperação e da internacionalização, ver “A política científica e tecnológica em Portugal e as
ciências da comunicação: prioridades e indecisões” (Martins, 2012).
10 Flávia Melville Paiva (2014). Disponível em: http://www.anpae.org.br/IBERO_AMERICANO_IV/
GT5/GT5_Comunicacao/FlaviaMelvillePaiva_GT5_integral.pdf Consultado a 18.08.2017.
11 Sobre as injunções do mercado sobre o campo científico ver “A liberdade académica e os seus
inimigos” (Martins, 2015 b).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

compartilhamento de tecnologias, à educação a distância e as novas tecnologias


de informação e comunicação, são alguns dos desafios diferentes e ao mesmo
tempo complementares e necessários de se balizar, quando se trata de pensar a
formação de pesquisadores no contexto do século XXI”. A internacionalização
não é só um ideal.
A internacionalização é incontornável e deve ser um horizonte cada vez mais
próximo, mesmo para aqueles que ainda estão no começo dessa caminhada. Como
toda grande ideia, contudo, pode sofrer deturpações e desvios comprometedores.
A transformação de um elemento de qualificação em um critério quantitativo de
avaliação tende a produzir deformações nem sempre admitidas. Uma instituição
não é excelente por ser internacionalizada (ter grande número de estrangeiros
ou ter o inglês como língua oficial), mas por ter na sua internacionalização um
termo de qualidade, aferível por critérios internos de produção, ou intrínsecos à
lógica da pesquisa científica: descobertas relevantes, oriundas de parcerias entre
instituições ou pesquisadores de países diferentes; projetos inovadores comparti-
lhados; patentes registradas derivadas de trabalho e de investigações em comum;
publicações de equipes ou de indivíduos, inseridos em redes supranacionais,
consideradas pelos pares como originais, diferenciadas e capazes de fazer avançar
o conhecimento de determinada área. A internacionalização é meio, não fim. Não
pode ser convertida simplesmente em procedimento de legitimação institucional
pelo mecanismo de produção acelerada de estatísticas favoráveis 12.
Um meio convertido em fim acaba por ter as qualidades obscurecidas por
defeitos que não lhe pertencem. O efeito perverso da ideologia dos rankings
é obsessão por novos e sempre mais minuciosos critérios, que sirvam para
incrementar os próprios ranqueamentos. A internacionalização não pode ser
reduzida a um parâmetro de classificação. A sua função é produzir diferença e
conhecimento.

12 Sobre os aspetos atinentes à internacionalização do conhecimento, consulte-se, também, “Comu-


nicação ibero-americana: os desafios da internacionalização” (Martins e Oliveira, Eds., 2014);
e o Vol. 3 (2) da Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies,
Vol. 3 (2): Ciência e conhecimento: políticas e discursos / Science and knowledge: policies and
dircourses, editado por Moisés de Lemos Martins et alii (2015/2016).

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DESAFIOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO ACADÊMICA

Referências bibliográficas
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nicação: prioridades e indecisões. In: Kunsch, M. & Melo, J. M. (Org.). Comunicação
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São Paulo: Confibercom & Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São
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Martins, M. L. (2008). As Ciências Sociais e a política científica. In A. Torres & L. Baptista
(Org.) Sociedades Contemporâneas. Reflexividade e Acção (pp. 27-29). Porto: Afronta-
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Martins, M. L., et alii (2015/2016). (Eds.) Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone
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Paiva, F. M. (2014). A avaliação da internacionalização da pesquisa científica e da pós-gra-
duação no Brasil. Atas do IV Congresso Ibero-Americano de Política e Administração
da Educação / VII Congresso Luso Brasileiro de Política e Administração da Educação.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Porto, 14-16 abril de 2014. Retirado de http://www.anpae.org.br/IBERO_AMERICANO_


IV/GT5/GT5_Comunicacao/FlaviaMelvillePaiva_GT5_integral.pdf.
Silva, J. M. (2015/2016). Avaliação de programas de pós-graduação: um projeto incompleto.
In Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies, Vol.
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Silva, J. M. (2010). O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos sem medo da
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Sites

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internacionais?” (por Sabine 02/10/13 20:34. Retirado de http://abecedario.blogfo-
lha.uol.com.br/2013/10/02/por-que-as-universidades-brasileiras-vao-tao-mal-nos-
-rankings-internacionais/. Acedido a 18.08.2017.
Documento de Área 2013 (avaliação da pós-graduação brasileira em Comunicação no
triênio 2010-2012). Retirado de www.capes.gov.br/avaliação. Acedido a 18.08.2017.

Outras obras consultadas

Bourdieu, P. (1997). Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.


Cabral, M. S. A. (2009). A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento.
Petrópolis: Ed. Vozes.
Defleur, M. & Ball-Rokeach, S. (1993). Teorias da comunicação de massa. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
Derrida, J. (1991). Margens da filosofia. Campinas: Papirus.
Maffesoli, M. (2008). O Conhecimento comum. Porto Alegre: Sulina.
Mattelart, A. & Mattelart, M. (1999). História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola.
Morin, E. (1999). O Método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina.
Popper, K. (1993). A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix.
Simmel, G. (2008). Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
Weber, M. (2003). Ensaio sobre a Teoria das Ciências Sociais. São Paulo: Centauro.
Wolton, D. (2010). Informar não é comunicar. Porto Alegre: Sulina.

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COMUNICAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CIÊNCIA
E TECNOLOGIA EM PORTUGAL, DURANTE OS XIX E XX
GOVERNOS CONSTITUCIONAIS (2011-2015)
Helena Sousa*

Resumo
As exigentes reconfigurações da vida académica moderna obrigam investigadores e docen-
tes a desenvolver esforços redobrados na disseminação da sua produção científica, tendo
em vista o alargamento e a visibilidade do trabalho realizado nas universidades. Contudo,
sobram elementos para definir concretamente de que forma os cientistas devem valorizar
a sua atividade, sobretudo quando se trata de apelar ao interesse dos decisores públicos e
políticos para a ligação que a academia procura estabelecer com o mercado.
A internacionalização da investigação, a partir da comunidade ibero-americana que aqui se
concretiza, surge como estratégia complementar para a visibilidade de um contexto ainda
excessivamente dominado pela aproximação a um estilo anglo-saxónico.

Palavras-chave: ciência; universidade; produção; valorização; política

Introdução

Precisamos de interrogar as políticas públicas para a ciência, no que respeita ao


campo da Comunicação. O que fazer para promover e qualificar essas políticas?
Como valorizar o nosso trabalho académico de modo a tornar-se respeitado pelos

* Atual Presidente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, coordenou, como


Chair e Vice-Chair, a Secção de Economia Política da IAMCR. Editora do European Journal of
Communication, é Vice-Presidente do Conselho Científico para as Ciências Sociais e Humanida-
des da FCT, sendo ainda Full Member do EuroMedia Research Group. Professora Catedrática no
Departamento de Ciências da Comunicação, coordena diversas atividades de natureza pedagógica
e científica. Áreas de investigação: regulação dos média e políticas de comunicação, economia
política da comunicação e jornalismo.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

decisores públicos e útil para as decisões públicas? Como promover a ligação da


academia aos serviços e aos mercados? Como manter a autonomia de pensamento
num quadro político e económico que é, em alguns casos, dramático? Como refor-
çar as nossas redes de cooperação, de modo a garantir que este campo científico se
torne mais influente e capaz de contribuir para o desenvolvimento social? Como
reagir às novas exigências sociais, económicas e políticas 1?
Para problemas desta magnitude não é fácil encontrar respostas simples, unidi-
mensionais, respostas que sirvam de igual modo aos diversos contextos, nacionais
e regionais, deste grande espaço ibero-americano. O espaço ibero-americano é,
pois, composto de realidades distintas e pensar em políticas públicas para a ciência
exige a clarificação dos contextos. Não é fácil encontrar denominadores comuns…
Vamos, por isso, centrar a reflexão nas políticas públicas portuguesas e
no seu potencial impacto, nos quadros mais alargados dos espaços lusófono e
ibero-americano 2.
Começamos por colocar a seguinte questão: O que é que caraterizou, em
matéria de política científica, a ação política do XIX e XX Governos Cons-
titucionais (2011-2015), governos de coligação entre sociais-democratas e
democratas-cristãos?

1. A desvalorização das Ciências Sociais e Humanas

Entre 2011 e 2015, ocorreu, de facto, a desvalorização das Ciências Sociais e Huma-
nas, em geral, em benefício das biociências, particularmente das ciências da saúde
e das ciências da vida. Esta desvalorização foi percebida transversalmente, mas em

1 Tendo presente o contexto ibero-americano, encontramos uma boa tentativa de resposta a


estas questões em Comunicação Ibero-americana: Sistemas Midiáticos, Diversidade Cultural,
Pesquisa e Pós-Graduação, livro editado em 2012, por Margarida Kunsch e José Marques de Melo,
retomando os principais trabalhos apresentados ao I Congresso da Confibercom, realizado em
São Paulo, em 2011 (Kunsch & Melo, 2012). Para o caso português, ver de Moisés de Lemos Martins,
“A liberdade académica e os seus inimigos” (Martins, 2015 a); e “Os Estudos Culturais como novas
Humanidades” (Martins, 2015 b).
2 Temos presente, neste domínio, os seguintes trabalhos: “A política científica e tecnológica em
Portugal e as Ciências da Comunicação: prioridades e indecisões” (Martins, 2012 a); “Revistas
científicas de ciências da comunicação em Portugal: da divulgação do conhecimento à afirma-
ção do Português como língua de pensamento e conhecimento” (Martins, 2012 b); “As Ciências
Sociais e a política científica” (Martins, 2008); e “Lusocom: estudo das políticas de comunicação
e discursos no espaço lusófono” (Martins, Sousa & Cabecinhas, 2007).

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COMUNICAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CIÊNCIA E TECNOLOGIA EM PORTUGAL...

particular, pelo decréscimo drástico de bolsas para doutoramento e pós-doutora-


mento, pelos processos de avaliação de candidaturas a projetos, pela formulação
de regulamentos preparatórios para a avaliação dos centros de investigação e
pelo empastelamento burocrático das relações entre a Fundação para a Ciência
e a Tecnologia e as unidades de investigação. Esta desvalorização constituiu, em
nossa opinião, uma perda e um retrocesso inaceitável, principalmente em tem-
pos de crise como foram os nossos. Nunca as Ciências Sociais e Humanas, que
compreendem naturalmente as Ciências da Comunicação, foram tão necessárias.
As Ciências Sociais encerram em si o potencial para apontar possibilidades e ir
construindo – sólida e sustentadamente – soluções para os problemas concretos
das pessoas concretas. Sem o conhecimento profundo da realidade social e sem
a compreensão de fenómenos comunicativos mais complexos, as sociedades não
dispõem dos meios necessários para imaginar alternativas. E dada esta incom-
preensão, a realidade é como é, sem que sejam dados aos cidadãos os meios neces-
sários para compreender a natureza construída da realidade social e económica
(Berger e Luckmann, 1967; Merton, 1968; Watzlavick, 1976; McQuail e Siune, 1998;
Manovich, 2001; Wasco, Murdock e Sousa, 2011).
Nestas circunstâncias, o que é que podemos fazer enquanto comunidade
científica? Procurar afirmar, de forma sistemática e com energia, a importância
das Ciências Sociais, em geral, e das Ciências da Comunicação, em particular, nas
nossas sociedades… colocar a Comunicação na agenda para o desenvolvimento
social, para o progresso social e para um futuro mais equilibrado, mais justo e
mais sustentável. A Comunicação é para os seres humanos como a água para o
peixe – absolutamente vital à sobrevivência. Mas a sua aparente naturalidade
comporta enormes riscos sociais. Uma sociedade que não é capaz de descodificar
as mensagens, de ler os interesses que se jogam por trás da oferta simbólica à sua
disposição, é uma sociedade fragilizada e com maiores dificuldades em enfrentar
os desafios sociais, culturais, económicos e ambientais.

2. A submissão de todas as ciências à lógica de avaliação e controlo

Um segundo traço das políticas públicas em Portugal é a submissão de todas as


ciências à mesma lógica de avaliação e controlo, nomeadamente com a adequa-
ção ao modelo dominante, que é claramente anglo-saxónico (Martins, 2015 b).
O sistema inglês de investigação e de ensino entrou por um caminho perigoso,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

estando ainda por apurar as suas consequências sociais. Apesar da impru-


dência e da vontade de servir interesses imediatos da indústria, o caminho da
híper-competitividade foi sendo traçado e as áreas externas ao STEM (Science,
Technology, Engineering and Mathematics) foram cilindradas pela mesma lógica
de avaliação.
Em Portugal, todos os processos de avaliação dos projetos de ensino e de
investigação decorrem em língua inglesa, sem que seja exigido que os avalia-
dores estrangeiros dominem a língua portuguesa. E esta circunstância ocorre
nos mesmos termos, quando nós próprios estamos envolvidos em processos de
avaliação noutros países. O princípio da reciprocidade não é aplicado, o que não
deixa de corresponder a uma desvalorização objetiva da língua portuguesa e da
comunidade científica de língua portuguesa.
Estamos longe de defender o fechamento do nosso espaço científico, até
porque estamos, e devemos estar, em diálogo permanente com colegas de todo
o mundo. A ciência é universal, mas não deve desenvolver-se numa única língua.
Deve expressar-se, antes, na sua multiplicidade, considerando as especificidades
linguísticas e comunicativas das sociedades nas quais se desenvolve. É a diver-
sidade linguística, o multilinguismo, que deve ser defendido, e não a submissão,
pura e simples, a um único modo de ler e de sentir o mundo (Martins, 2015 c; e
Martins, Sousa & Cabecinhas, 2007).

3. O desinvestimento financeiro

Um terceiro aspeto das políticas públicas para a ciência e a tecnologia, em Portugal,


durante os XIX e XX Governos Constitucionais, foi o desinvestimento financeiro.
Não vamos entrar em detalhes técnicos. Julgamos, no entanto, que toda a política
científica do Estado (incluindo naturalmente o modo como a FCT operacionalizou
a sua ação) se baseou na ideia de reduzir a despesa com a ciência. De 2011 a 2015,
houve significativos cortes nos montantes atribuídos aos centros de investigação,
e também foi manifesta uma enorme desorientação (não sabemos, se uma desor-
ganização deliberada) nos modos de atribuição de verbas.
Justificada com a má situação financeira do país, a política científica auste-
ritária legitimou o impensável e converteu-o em moeda corrente. E, todavia, um
país como Portugal deveria investir na ciência, como modo de lidar com os seus
problemas de produtividade, de competitividade externa, de internacionalização

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COMUNICAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CIÊNCIA E TECNOLOGIA EM PORTUGAL...

dos seus recursos humanos e da sua economia. Mas foi precisamente o contrário
que ocorreu, durante o XIX e o XX Governos Constitucionais.

4. A desvalorização da universidade pública

Procurando ainda aspetos genéricos que, de alguma forma, nos ajudem a com-
preender a realidade do país, de 2011 a 2015, julgamos que é possível falar da
desvalorização da universidade pública, em geral, e da universidade pública, em
particular, como espaço de excelência da investigação científica. Na realidade, o XIX
e o XX Governos Constitucionais ignoraram o modo como, ao longo dos anos, se
foi estruturando a rede de investigação científica nas universidades, em articulação
com os projetos de ensino pós-graduado. A ideia com que se ficou sobre as políticas
científicas do país foi a de que os centros das universidades públicas portuguesas
foram preteridos, em relação a unidades de investigação privadas, como por exem-
plo, o Instituto Gulbenkian de Ciência e a Fundação Champalimaud. Respeitando,
naturalmente, o trabalho meritório que estas Fundações têm desenvolvido, em prol
da ciência em Portugal, pareceu-nos no mínimo estranho que tenha sido o próprio
Estado a financiar fundações privadas, que estiveram, em algumas circunstâncias,
a competir, com as universidades públicas, pelos mesmos recursos financeiros. Um
investigador em exclusividade, de uma Fundação privada, não deveria competir,
diretamente, com um docente-investigador, de uma universidade pública, porque
as condições de produtividade têm necessariamente que ser diversas.

5. Nota conclusiva

Podemos dizer, em síntese, que o XIX e o XX Governos Constitucionais consis-


tiram num retrocesso, relativamente a conquistas feitas na área da investigação
científica, com particular incidência nas áreas do saber que são, por definição,
mais críticas, com um forte pendor humanista e, por isso, entendidas como menos
pragmáticas, instrumentais e operativas. Argumentou-se, então, que não havia
fundos públicos. No entanto, a falta de financiamento não pode deixar de ser
lida e compreendida à luz do pensamento crítico, instruído e problematizante.
O financiamento (e/ou a sua ausência) decorre de escolhas políticas, de opções
deliberadas e com uma intencionalidade clara.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Neste quadro, que é português, mas que terá certamente pontos de contacto
com outros contextos e ramificações várias, importa interrogar o papel da comu-
nidade científica, enquanto estrutura e agente de mudança, ou de resistência, a
políticas que, a prazo, têm como consequência condicionar a liberdade de pen-
samento científico e reduzir a diversidade da sua expressão. O imediatismo a que
a ciência parece estar submetida, a lógica produtivista e a hípercompetitividade
podem ajudar no curto prazo a colocar as universidades um ponto acima ou abaixo
nos rankings nacionais e internacionais. Mas o que importa interrogar é a razão
de ser das universidades, que contributo podem efetivamente dar para que se
mantenham como entidades relevantes e socialmente significativas.
Interrogamo-nos, pois. Estes problemas são comuns no espaço ibero-a-
mericano? Enfrentamos, porventura, os mesmos desafios? Sem querer anteci-
par o debate, diria talvez que um risco partilhado será o de vermos diminuir a
capacidade de pensamento crítico que tem caracterizado, em larga medida, o
trabalho na área das Ciências da Comunicação na América Latina e no espaço
ibérico. Assistimos, hoje, a uma verdadeira deriva positivista e imediatista, que
compromete a visibilidade de textos mais progressistas, mais normativos ou mais
comprometidos com o desenvolvimento social (Martins, 2008 b, 2012 a, 2015 b).
Há resistência, é claro! Mas será suficiente? Estaremos a fazer tudo o que está
ao nosso alcance? A ciência deve ser verdadeiramente plural (nas perspetivas
teóricas, nas metodologias utilizadas, nos problemas que coloca, nas dúvidas que
suscita). Hoje, apesar da explosão de publicações e dos movimentos de acesso livre
à produção científica publicamente financiada, assistimos a um estreitamento dos
quadros dominantes de pensamento. Será que as redes académicas, lusófonas e
ibero-americanas, têm a vitalidade necessária e indispensável para desempenha-
rem, com vigor, um papel de insubordinação, de pensamento contraintuitivo, de
reação aos paradigmas dominantes?
Não há qualquer dúvida de que a nossa comunidade é já hoje vibrante, cheia
de vitalidade, com associações dinâmicas. Há já importantes redes de cooperação
e relações solidamente estabelecidas. Julgamos que devemos valorizar o que foi já
conquistado e aprofundar o caminho realizado. As associações e redes temáticas
e disciplinares ibero-americanas, que existem hoje, têm contribuído de forma
decisiva para a mundialização da nossa investigação. Estas redes têm potenciado
o nosso envolvimento noutras estruturas de investigação regionais, tais como
a European Communication Research and Education Association (ECREA), a
International Association for Media and Communication Research (IAMCR) e

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COMUNICAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CIÊNCIA E TECNOLOGIA EM PORTUGAL...

a Federação Lusófona de Ciências da Comunicação (LUSOCOM). Mas temos,


certamente, muito trabalho pela frente, no sentido de procurarmos afirmar inter-
nacionalmente o grande espaço ibero-americano das Ciências da Comunicação e
para melhor servirmos as nossas comunidades, com uma investigação científica,
que seja verdadeiramente significativa e útil para as comunidades que servimos.

Referências bibliográficas

Berger, L. P. & Luckmann, T. (1967). The Social Construction of Reality. New York: Anchor
Books.
Kunsch, M. & Melo, J. M. (Eds.) (2013). Comunicação Ibero-americana: sistemas midiáticos,
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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Local no Espazo Lusófono (pp. 301-310). Santiago de Compostela: Agacom. Retirado


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200

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E
INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO
DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA
Emili Prado*

Resumen
Este trabajo analiza las consecuencias de la crisis sobre la política científica en España y su
incidencia en el campo de la comunicación. Este campo vive un crecimiento intenso en la
talla de investigadores operativos como consecuencia de un crecimiento exponencial de
los centros de formación de comunicadores que se ha registrado en los últimos lustros. Las
exigencias establecidas en las instancias oficiales para evaluar la producción condicionan
tanto el tipo de investigaciones como las formas de su difusión. Se aborda la cuestión de la
medida de la calidad con herramientas externas como el Factor de Impacto de las revistas
y sus limitaciones en un momento en el que ha surgido una puesta en cuestión de los
mismos a nivel internacional y se realizan propuestas de mejora.

Palabras clave: política de I+D, Productividad, índices, internacionalización

* Professor Catedrático de Comunicação Audiovisual e Publicidade da Universidade Autónoma de


Barcelona (UAB). É diretor do Grupo de Investigação da Imagem, Som e Síntese (GRISS) e coor-
denador dos observatórios EUROMONITOR (Televisão na Europa), USAMONITOR (Televisão
nos Estados Unidos) e OXSI (Redes sociais na Internet). Dirige o Mestrado em Comunicação
e Marketing Digital e a revista Quaderns del CAC, publicação académica, editada pelo Conse-
lho Audiovisual da Catalunha. Membro do Conselho Internacional da Maison de Sciences de
l’Homme, de Paris, e avaliador de agências oficiais de comunidades autonómicas, estatais e
internacionais. Foi ainda Presidente da Faculdades de Ciências da Comunicação da UAB e fun-
dador da Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade de Santiago de Compostela.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1. Introducción

La investigación en comunicación en España está en su momento cuantitativo


más álgido, la multiplicación en los últimos lustros de centros universitarios
que incluyen en su oferta titulaciones de comunicación, ha incrementado expo-
nencialmente el número de profesores del campo, muchos de ellos en fase de
formación como investigadores que inician su carrera académica y que aspiran
a consolidarla obteniendo una plaza permanente, para lo cual se les requiere
demostrar una serie de méritos, entre los que tienen un peso preponderante los
méritos de investigación. Consecuentemente se ha incrementado la publicación
de artículos en revistas científicas revisadas por pares, así como monografías en
editoriales que siguen procesos de selección de originales más o menos rigurosos.
La presión por obtener “méritos” con urgencia está dando como consecuencia
una inflación de publicaciones, al tiempo que el contexto de crisis ha provocado
una desinversión en la I+D, lo que dificulta el armado de proyectos de investiga-
ción ambiciosos que fundamenten las publicaciones, circunstancia que deben
contrarrestar los investigadores con un plus de esfuerzo, pero en determinadas
especialidades del campo la falta de recursos no se puede compensar completa-
mente con voluntarismo.
Pese a que urgencia y falta de medios no es la combinación ideal para la
emergencia de la calidad, es cierto que del incremento exponencial de la masa
crítica de producción científica en el campo de la comunicación debe derivarse
también un incremento de la excelencia. Pero la valoración de la calidad de la
investigación también topa con un conjunto de disfunciones, entre las que más
debate generan se halla la aplicación de indicios de calidad fundamentados muy
prioritariamente en el Factor de Impacto de las revistas en las que se publica y la
exigencia de internacionalización.

2. Política científica: Desinversión en I+D

Existe un consenso generalizado en considerar la política científica como uno


de los pilares sobre el que se asienta la competitividad de los países y por tanto
como un instrumento estratégico para conseguir un crecimiento sostenible que
garantice la mejora de las condiciones de vida. Este consenso abstracto se difu-
mina cuando se baja a las situaciones concretas. Esto se constata crudamente en

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA

situaciones de crisis económica como la que insiste en azotar a los países de la


UE, con intensidad modulada según la resistencia de las economías de sus estados
miembros. Los recortes presupuestarios y su correlato, la austeridad, arbitrados
por las políticas comunitarias como plan de choque contra la crisis, cuya eficiencia
ha sido cuestionada por múltiples especialistas, desde diferentes corrientes de
pensamiento, tuvieron su impacto también en la inversión en I+D+I. En la medida
en que la receta de austeridad no se ha mostrado eficiente a la hora de revertir
la situación de crisis, la desinversión en investigación se está sosteniendo en el
tiempo y amenaza con dejar marcas indelebles en la competitividad de los siste-
mas de ciencia y tecnología europeos. Pero el comportamiento en este capítulo
difiere mucho por países.
En el caso español el problema adquiere proporciones alarmantes y la Inver-
sión en I+D ha sufrido unos recortes sotenidos por encima de la media de la
Unión, lo que le sitúa en 2014 en una inversión del 1,22% del PIB mientras la
media de la Unión Europea se sitúa en el 2%. Un esfuerzo inversor que le coloca
a la cola de las cinco grandes economías europeas que se sitúan en un 2,85% en
Alemania seguida de Francia con un 2,27%, Reino Unido con un 1,71% e Italia con
un 1,29% (EAE, 2016). Pero además en el caso español el horizonte sigue siendo
pesimista porque, si tomamos de referencia la evolución desde 2010, cada año
el porcentaje del PIB dedicado a I+D+I se ha reducido, cosa que no ocurre en los
otros cuatro países donde o bien crece el porcentaje cada año como en el caso de
Francia o se dan fluctuaciones al alza con algún ejercicio de disminución, lo que
hace que tomando en consideración los extremos de la serie España es la única
con un balance negativo de –9,7%.
La inversión en I+D+I procede en España del sector público y del sector
privado casi a partes iguales, con una pequeña ventaja para este último, pero en
la serie temporal que estamos considerando ambos sectores han desinvertido y
los esfuerzos totales muestran una preocupante tendencia a la baja que amenaza
con poner en riesgo la competitividad de la investigación española y como con-
secuencia la competitividad misma del país.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Evolución de los esfuerzos de I+D+I en España

15 000,00
14 500,00
14 000,00
13 500,00
13 000,00
12 500,00
12 000,00
11 500,00
2010 2011 2012 2013 2014
Millones de Euros 14 588,46 14 184,29 13 391,61 13 011,80 12 820,76

Fuente: Elaboración propia con datos de EAE extraídos del Instituto Nacional de Estadística.

Esa situación general afecta al conjunto del sistema español de ciencia y


tecnología, pero supone una mayor erosión para la investigación de los campos
de las ciencias sociales entre ellos la Comunicación. Una situación que se agrava
si tomamos en consideración que, como acabamos de referir, la inversión en
investigación en España procede del ámbito privado en poco más del 50% y que
la crisis económica repercute de forma especial en las empresas del sector de la
comunicación. En una situación de recortes, una de las primeras partidas que sufre
las consecuencias en la mayoría de empresas es la inversión publicitaria, que es
uno de los principales combustibles en el sector de la comunicación, lo que afecta
inmediatamente a la cuenta de resultados de la industria de la comunicación.

Evolución de la inversión publicitaria real estimada


en medios convencionales en España

6 500,00
6 000,00
5 500,00
5 000,00
4 500,00
4 000,00
3 500,00
3 000,00
2010 2011 2012 2013 2014
Millones de Euros 5858,80 5497,10 14630,00 4261,00 4532,90

Fuente: Elaboración propia con datos de INFOADEX.

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA

Con el descenso de ingresos, las empresas de comunicación tienen que dis-


minuir el gasto y una de las primeras partidas que sufren las consecuencias son
las destinadas a investigación. Unas partidas que, incluso en condiciones de
bonanza no son especialmente generosas, dada la escasa tradición que hay en la
industria de la comunicación española de hacer descansar su toma de decisiones
en el conocimiento aportado por la investigación.
Esta práctica, que es negativa para cualquier tipo de empresa, resulta muy
lesiva en el sector de la comunicación dada la elevada incidencia que tiene la inno-
vación tecnológica. Una innovación acelerada y con un ritmo de obsolescencia que
obliga a modificar constantemente las estrategias para adaptarse a los cambios
en el ecosistema comunicacitivo. En un escenario tan variable es evidente que la
investigación es una herramienta eficaz para reducir la incertidumbre en la toma
de decisiones y por ende reducir el índice de fracaso, por ello resulta sorprendente
que en situaciones de complejidad añadida como son las crisis económicas las
empresas de comunicación prescindan de las herramientas de la investigación en
su toma de decisiones. Dada la naturaleza extremadamente cambiante del sector,
el éxito radica en gran parte en la capacidad de innovar no sólo en los aspectos
tecnológicos, sino también en los contenidos, su forma de distribución, su con-
sumo, las relaciones con las audiencias y los usuarios, las formas de financiación
y en los modelos de negocio. La innovación en todos los aspectos es deudora de
la investigación, aunque algunos crean que basta con la intuición.

3. Explosión de la producción en el campo

En España la investigación en comunicación padece de forma aguda la desin-


versión tanto privada como pública en I+D+I y ello coincide con el momento
de máxima expansión en el número de investigadores. Los estudios reglados de
comunicación llegan a la Universidad a principios de la década de los setenta del
siglo XX con la inauguración en 1971 de las Facultades de la Universitat Autònoma
de Barcelona y de la Universidad Complutense de Madrid, ambas universidades
públicas y de la Universidad de Navarra en el sector privado. En estas tres insti-
tuciones se configuran los equipos de investigadores que pondrán las bases sobre
las que se desarrollarán los estudios de comunicación en España. La llegada de
los estudios de comunicación a la Universidad reclama urgentemente el aporte
de la investigación para constituir un corpus de conocimiento científico capaz

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de interpretar los fenómenos y sistemas de comunicación que se sumara a la


transmisión de conocimientos reglados para el ejercicio profesional en los que
se habían centrado las Escuelas Oficiales (Periodismo, Publicidad, Cine, Radio y
Televisión) a las que venían a substituir.
Nótese que las tres facultades pioneras nacen en el tardofranquismo (1971) con
una industria de la comunicación de talla modesta y en un contexto de falta de
libertad de información y de expresión, aunque los rigores de la censura hubieran
disminuido respecto a los momentos álgidos de la dictadura. Para cuando sale la
primera promoción de las facultades en julio de 1976, el general Franco ya había
muerto (20 de Noviembre de 1975) y España se encontraba en plena transición a la
democracia. Como en los otros ámbitos, en el sector de la comunicación se produce
un cambio total de estructuras que responde a las nuevas demandas objetivas de
información y comunicación derivadas de la progresiva institucionalización de
la democracia con la consiguiente multiplicación de demanda de profesionales
para cubrir las necesidades surgidas en el nuevo contexto democrático. En este
contexto se crea la Facultad de la Universidad del País Vasco, que nace bajo la
tutela de la Universitat Autònoma de Barcelona y se une a las tres precedentes
en la labor pionera de fundamentar la investigación en comunicación en España.
La demanda de ingreso en estos cuatro centros va creciendo de forma acele-
rada impulsada por tres fenómenos: a) la demanda de especialistas en diferentes
ámbitos de la comunicación (prensa, radio, televisión, agencias de publicidad y
gabinetes de comunicación de las empresas y las instituciones), b) el incremento
de las vocaciones de incidir en la transformación social generada con la recu-
peración de las libertades y c) por una moda debida a la centralidad creciente
de la comunicación y el “glamour” de sus profesiones. Esa demanda mantiene
su intensidad, con independencia de la correspondencia entre el número anual
de egresados y el número de puestos de trabajo disponibles. Superado el primer
impulso multiplicador de puestos de trabajo en el sector de la comunicación deri-
vado de la democratización, es cierto que el número de puestos de trabajo se va
multiplicando, primero por los efectos de la desregulación del sistema audiovisual
y después por las nuevas actividades derivadas de la progresiva implantación de
las innovaciones tecnológicas que reclaman una serie de competencias en comu-
nicación destinadas al nuevo hipersector de la información y la comunicación.
La presión de la demanda para estos estudios es exponencial también porque
la democratización influyó en la tasa de acceso a los estudios universitarios en la
sociedad española y la demanda creció de forma general y con un plus añadido por

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA

el atractivo de los estudios de comunicación. Se produce así una multiplicación


de las facultades en diferentes universidades españolas, a partir de 1989, como
las de Sevilla, Málaga, Pontificia de Salamanca, Santiago de Compostela, Pompeu
Fabra, Ramon Llull, Vigo, Valencia... Impulsados por la demanda sostenida, por
la emulación, y por una cierta crisis de la demanda en otras especialidades de las
humanidades y ciencias sociales, muchas universidades deciden ofrecer estudios
de comunicación sea con la creación de facultades específicas, sea con la inclusión
de titulaciones del campo en otras facultades preexistentes cuyas titulaciones
resultaban de escaso atractivo para los jóvenes. Independientemente del juicio
que se puede hacer sobre la oportunidad de multiplicar hasta este punto las plazas
para formar comunicadores, lo cierto és que en estos momentos superan el medio
centenar los centros en los que se ofrece alguna titulación de comunicación.
Esa oferta multiplicada implica a varios millares de profesores. En el sistema
universitario público español los profesores estables de cualquier nivel contractual
tienen entre sus oblicaciones la docencia y la investigación, dicho de otro modo
todos son investigadores, así que la multiplicación de plazas docentes para cubrir
la oferta de plazas de formación en las facultades de comunicación contribuye
a incrementar la masa crítica de investigadores en el campo. Sabemos que el
incremento de la talla no tiene porque suponer un incremento de la calidad, pero
resulta innegable que la talla de investigadores permite hipotetizar que alcanza
la masa crítica necesaria para la emergencia de la excelencia.
Además, el sistema de carrera académica en las Universidades españolas
promueve la producción ya que la evaluación de la investigación tiene un peso
específico determinante en la obtención de las plazas estables del profesorado
y en la promoción dentro de los diferentes niveles de la carrera académica. De
nuevo aquí, esa legión de investigadores encuadrados en el campo de la comuni-
cación produce impetuosamente artículos y otras publicaciones que les permitan
acceder a la carrera académica o escalar posiciones una vez que han alcanzado
la estabilidad dentro de ella. Como consecuencia de ello la productividad se ha
multiplicado de forma exponencial y también en este caso es de esperar que con
el aumento de la masa crítica de publicaciones emerja la excelencia.
Muchos observadores son escépticos respecto a esta regla porque ven más
indicios de la importación de la práctica anglosajona del “publish or perish” (Mar-
tínez Nicolás, 2009; Perceval & Fornieles, 2008; Soriano, 2008), que de solidifi-
cación de la investigación en el campo. Seguramente ambas perspectivas tienen
un punto de encuentro, ya que como también señala Martínez Nicolás también

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

se derivan aspectos positivos. Dada la necesidad imperiosa de publicar hay un


índice de redundancia alta en los trabajos publicados, tanto si observamos autores
individuales como si observamos el conjunto de aportaciones. Pero no es menos
cierto que en un volumen tan elevado de aportaciones encontramos un número no
despreciable contribuciones originales y estimulantes. No es objetivo de este texto
la evaluación de la calidad de la producción científica española de comunicación
por lo que no podemos acreditar la certeza de una de las visiones, pero dada la
explosión registrada en la última década los juicios sobre la calidad deberán
hacerse reposadamente con una mayor perspectiva histórica. No obstante, hay
una serie de indicios indirectos que han sido observados que hacen pensar con
cierto optimismo (Fernádez-Quijada & Masip, 2013; Moragas, 2005).

4. Publicación: Del libro a la revista

Las tradiciones investigadoras en los diferentes campos científicos han convi-


vido y conviven con formas específicas de difusión de los resultados que no son
coincidentes entre ellas y que varían con el tiempo para cada una. En el caso de la
comunicación en España la forma de publicación más prestigiosa en los primeros
compases de la investigación académica en el campo fueron los libros, con edito-
riales que lanzaron colecciones de comunicación como ATE (Mitre), IORTV, Gili,
Paidós, Ariel, Akal, Fundesco, Cátedra, Fragua, Pirámide, EUNSA..., la mayoría
de ellas activas en nuestros días conformando un dispositivo que integran casi
medio centenar de editoriales.
En 1980 se lanza Anàlisi editada por la facultad de la UAB, que podríamos
considerar la primera revista científica de comunicación en España, sin desmerecer
la labor precursora que había efectuado Mensaje y Medios (1977). Progresivamente
se irían sumando nuevas cabeceras de revistas, aunque moderadamente en la
primera década, para registrar un crecimiento progresivo en la década de los 90
hasta llegar a una veintena en el cambio de siglo y una explosión ulterior que nos
lleva a las 69 revistas de comunicación censadas actualmente por el Observatorio
de Revistas Científicas de Ciencias Sociales. El prestigio del artículo como forma
de publicación científica se va incrementando en paralelo al propio prestigio
de las revistas, pero especialmente a partir de dos factores, que podríamos
denominar administrativos. Primero, su inclusión en los criterios de valoración
de los currículos en los concursos para acceder a las plazas de profesorado.
Segundo, su inclusión en los criterios para evaluar la productividad científica de

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA

los investigadores españoles de todos los campos de conocimiento y también de


los de comunicación.
En el balance actual predomina el artículo como forma de difusión privilegiado
por los investigadores españoles, aunque los libros publicados en editoriales
competentes, con sistemas de selección rigurosa de originales sigue teniendo
un prestigio en el campo de la comunicación de una magnitud superior al de
otros campos científicos. Pero esta forma de publicación de la investigación está
amenazada por dos factores. Primero, porque las editoriales con colecciones de
comunicación privilegian los libros de texto y divulgación, limitando mucho el
cupo para los libros de investigación. Segundo, porque los criterios establecidos
por las diferentes agencias de evaluación privilegian, cada vez más, los artículos
en las revistas indexadas, lo que decanta decididamente a los investigadores hacia
esta vía de difusión de los resultados de sus investigaciones.
El establecimiento de la cultura de la evaluación ha sido en términos
generales positiva para la productividad científica en el campo y ha producido
un incremento tanto de la actividad investigadora como en los esfuerzos por
difundir los resultados por medio de su publicación.

5. Consecuencias de la externalización
de la evaluación de la calidad

Los criterios de valoración de las agencias españolas, ANECA (Agencia Nacional


de Evaluación de la Calidad y Acreditación), CNEAI (Comisión Nacional Eva-
luadora de la Actividad Investigadora, ANEP (Agencia Nacional de Evaluación y
Prospectiva), así como sus homólogas de ámbito autonómico, coinciden de forma
general en atribuir un valor preferente a las publicaciones en revistas indexadas en
el Journal Citation Report (JCR) de la Web of Science (WoS) u otros equiparables,
estableciendo según los casos unos mínimos de publicación de ese tipo requeridos
para obtener una evaluación positiva. Es evidente que estas normativas marcan
la hoja de ruta de los investigadores en la elección de las publicaciones a las que
someten sus trabajos.
El aspecto positivo que se deriva de esta política es que la investigación
española de comunicación entra en mayor medida en la circulación internacional.
Por el lado negativo encontramos el hecho que la inmensa mayoría de las revistas
de ese índice se publican en lengua inglesa por lo que a largo plazo la producción

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

científica en lengua castellana, y en mayor medida aún de las otras lenguas ofi-
ciales, se reduzca drásticamente. Puede parecer un problema menor, pero si en
el ámbito científico en general puede considerarse relativamente importante,
en el campo de las ciencias sociales y las humanidades es relevante y en el de
la comunicación, especialmente en algunas disciplinas, puede resultar crucial.
No vamos a profundizar en otros aspectos condicionantes pero merecen ser
mencionados por lo menos dos. Primero las diferentes disciplinas del campo de la
comunicación no tienen las mismas proporciones de revistas indexadas por lo que
eso puede influir en la orientación de los investigadores hacia temáticas o líneas
con mayor oportunidad de publicar porque hay más revistas interesadas en ellas.
Segundo las revistas marcan, legítimamente, sus líneas editoriales y los aspectos
metodológicos exigidos para publicar en las mismas, con lo que indirectamente se
produce un “efecto girasol” por el que los investigadores adoptan metodologías y
aproximaciones para las que hay más oportunidades de publicación.
Hay que remarcar que ninguno de estos problemas es atribuible a los autores
del índice, sino al hecho de universalizarlo como herramienta privilegiada de
medida de la calidad de la labor investigadora. Ciertamente las agencias españolas
han ido introduciendo en los criterios de evaluación, el reconocimiento también
de otros índices e indicios de calidad como SCOPUS, así como otros, de existencia
efímera y carácter nacional, como IN-RECS, pero persiste su consideración entre
los evaluados como de “segunda división” por lo que la capacidad de atracción de
las revistas que no están en los índices de “primera división” es mucho menor. Los
investigadores perciben que si tienen las publicaciones requeridas en el índice de
JCR su evaluación positiva será mecánica, mientras si sus publicaciones están en
otras revistas van a depender del criterio que le merezcan a las comisiones evalua-
doras. En la práctica se produce por tanto una externalización de la evaluación que
se delega en las revistas de los índices más valorados por las agencias, en manos
de corporaciones privadas, que en consecuencia se convierten en gatekeepers
tanto en el proceso de selección de los académicos cuya carrera se consolida, como
de las temáticas abordadas por los investigadores o las líneas de investigación y
metodologías privilegiadas.

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA

6. Crisis internacional del Factor de Impacto


como medida de calidad de la investigación

El debate sobre la valoración de la calidad de la producción científica individual o


institucional a través del Factor de Impacto de la revistas no es una peculiaridad
española (Archambault & Larivière, 2009; Martins, 2015), ha saltado a la esfera
internacional con la declaración de San Francisco, elaborada por un grupo de edi-
tores de revistas científicas reunidos en la ciudad californiana el 16 de diciembre
de 2012 con motivo del “Annual Meeting of The American Society for Cell Biology
(ASCB)” en lo que acabaría conociéndose como la San Francisco Declaration on
Research Assessment que hace un conjunto de recomendaciones dirigidas a los
actores implicados en la evaluación de la investigación: agencias de financiación,
instituciones académicas, revistas científicas, organizaciones que suministran
métricas e investigadores.
Previamente señalan:

El Factor de Impacto de las revistas se utiliza con frecuencia como el principal paráme-
tro con el que comparar la producción científica de los individuos y las instituciones. El
Factor de Impacto de las revistas, según los cálculos de Thomson Reuters, fue creado
originalmente como una herramienta para ayudar a los bibliotecarios a identificar las
revistas para la compra, no como una medida de la calidad de la investigación científica
en un artículo. Con esto en mente, es importante entender que el Factor de Impacto de
las revistas tiene, de forma probada y documentada, una serie de deficiencias como
herramienta para la evaluación de la investigación. Estas limitaciones incluyen: a) las
distribuciones de citas en las revistas son muy sesgadas; b) las propiedades del Factor
de Impacto de las revistas son específicas para cada campo: es una combinación de
múltiples y diversos tipos de artículos, incluyendo artículos de investigación y artículos
de revisión; c) El Factor de Impacto de las revistas puede ser manipulado (o “trucado”)
por la línea editorial; y d) los datos utilizados para calcular el Factor de Impacto de las
revistas no son transparentes ni accesibles para el público (DORA, 2012).

Tres temas atraviesan las recomendaciones de la Declaración. Primero la


necesidad de eliminar el uso de las métricas como el Factor de Impacto de las
revistas en las decisiones de financiación, contratación y promoción. En segundo
lugar señalan la necesidad de evaluar la calidad de la investigación por sus pro-
pios méritos en lugar de hacerlo en función de la revista en la que se publica.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Finalmente, apuntan la necesidad de capitalizar las oportunidades que ofrece la


publicación en línea que permitirían relajar las estrictas exigencias relativas al
número de palabras, gráficas, cuadros o referencias exigidas por las revistas para
cada artículo, así como explorar nuevos indicadores de significación e impacto.
Sin entrar en el detalle, el lector puede acceder a la declaración íntegra (DORA,
2012), queremos destacar la recomendación general para todos los actores impli-
cados: “No usar métricas como el Factor de Impacto de las revistas para delegar
en él la medida de la calidad de un artículo de investigación, ni para evaluar la
producción científica de un investigador, ni para tomar decisiones en los proce-
sos de contratación o promoción, ni en la financiación de la investigación.” Esta
recomendación remite al problema de delegar la responsabilidad de la evaluación
de la calidad a un indicador que, aún si no presentara las deficiencias apuntadas
en la DORA, sería parcial y escasamente cualitativo.
En medio de un volumen extraordinario de procesos de evaluación, estos
índices externos hacen más soportable en coste y en tiempo de ejecución la toma
de decisiones, pero llevan como correlato manifiestas injusticias en la evaluación
de la calidad de la producción. Es evidente que los índices del Factor de Impacto
de una revista seguirán siendo por mucho tiempo un elemento determinante en
la evaluación de la investigación y sin duda un referente sobre la influencia de una
revista. La objeción no está dirigida al Factor de impacto, si es transparente y está
bien hecho. La objeción se dirige a su uso inadecuado como clave predominante
en los procesos de evaluación porque resulta perjudicial para el conjunto de las
políticas científicas y académicas e injusto a nivel individual. Esta información
adquirible de forma automatizada facilita la comparación y por eso se seguirá uti-
lizando y en consecuencia debe ser perfeccionado, eliminar los errores señalados
en la DORA y aumentar las fuentes de la información que se manejan. Y aún así
debe ser un indicador más de muchos otros que deben considerarse.
La DORA ha puesto el debate en primer plano, ha aglutinado un número muy
relevante de adheridos (más de 12.000 científicos relevantes y casi 600 institu-
ciones) y ha conseguido algunos movimientos tanto en los organismos que sumi-
nistran métricas, Thomson Reuters ha aumentado sus fuentes, ha Introducido el
servicio InCites que permite evaluar el impacto para cada artículo al margen del
Factor de Impacto de la revista en la que ha sido publicado y Elsevier ha dado la
bienvenida a la recomendación para los editores de no enfatizar sólo el Factor de
Impacto en las publicaciones y refuerza su política de informar en las revistas no
sólo del Factor de Impacto calculado tradicionalmente (2 años) sino de su variante

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA

de cinco años, del Eigenfactor y de Article Influence scores y los SNIP (Source
Normalized Impact per Paper) y SJR (SCImago Jornal Rank) de Scopus.
Estos movimientos son positivos pero siguen siendo indicadores limitados,
que además de ser utilizados de forma combinada deben ser complementados
con otros indicadores de impacto. La digitalización y el acceso en línea a los artí-
culos permite tomar en consideración indicadores como el número de descargas
o accesos en línea a un determinado texto. La digitalización de las tesis doctorales,
de los informes de investigación para las instituciones permite ampliar las fuentes
de citas para medir el impacto e influencia de un determinado artículo. Además
debe poder contabilizarse el impacto social de la investigación. No tiene sentido
que el resultado de investigación pueda influenciar un cuerpo normativo, como
la organización del servicio público audiovisual, o la ley general del sector de las
comunicaciones, sea incluso referenciada en la propia norma y este hecho resulte
trasparente a los mecanismos de valoración del impacto.

7. Conclusiones

La adopción de la cultura de la evaluación por parte de los investigadores y las


instituciones del campo de la comunicación en España no debe tener vuelta atrás.
El escrutinio de la calidad de la producción de la investigación es un requerimiento
para poder considerarla científica. En consecuencia, ninguna de las objeciones
que se puedan formular legítimamente a los sistemas de evaluación, justifican
la renuncia a la evaluación. Por el contrario, el análisis de las deficiencias debe
conducir a subsanar las disfunciones observadas. Parece obligado huir de la sim-
plificación. La evaluación debe contemplar múltiples aspectos, entre los cuales
el factor de impacto de las revistas, pero no sólo, ni principalmente. El mayor o
menor impacto de un artículo en la comunidad científica no dependerá sólo de
haber sido publicado en una revista con un alto Factor de Impacto. Primero para
generar impacto debe ser leído, después debe ser citado por los pares, además no
sólo en sus publicaciones en revistas indexadas con Factor de Impacto sino en
otras que siguen reglas de selección de originales rigurosas con evaluación ciega
por pares, en libros, en ponencias en congresos relevantes con selección ciega
competitiva, en tesis doctorales, y por qué no, por otros indicios de uso en la
industria o las instituciones. La digitalización de los contenidos no deja escusa. Se
pueden habilitar sistemas automáticos de conteo auditado de todos esos impactos

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

y además en todos los idiomas. Los sistemas públicos de ciencia y tecnología


de todos los países deberían mancomunar un sistema de índices complejos de
carácter público, auditados por relevantes científicos de cada campo, que operen
con garantía de neutralidad, haciendo públicos los algoritmos utilizados para esta-
blecer el impacto, en los que se debían contemplar variables de impacto relativo
que tomen en consideración de la talla del campo científico, o de hablantes de la
lengua en que se publica. En todo caso la Unión Europea, que maneja ingentes
presupuestos dedicados al I+D, debería tomar este desafío como una prioridad.
Evidentemente la evaluación de la calidad no se puede limitar a los indicado-
res, por completos que sean, nada puede excusar la interpretación de una trayec-
toria por los pares, teniendo en cuenta el contexto y las necesidades específicas de
un campo o una plaza dada. Este aspecto debería definirse, tanto a nivel nacional
como europeo en las políticas científicas.

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POLÍTICA CIENTÍFICA, PUBLICACIÓN E INTERNACIONALIZACIÓN EN EL CAMPO DE LA COMUNICACIÓN EN ESPAÑA

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVAS
DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS E DIFUSÃO
DO CONHECIMENTO COMUNICACIONAL
NOS PRIMEIROS ANOS DA CONFIBERCOM (2011-2015)
Cicilia M. Krohling Peruzzo*

Resumo
Este texto sintetiza os trabalhos realizados no Fórum de Publicações e Difusão de Conheci-
mento Científico da Confibercom, entre 2011 e 2015. Em termos gerais, este Fórum compro-
vou a dispersão das produções científicas na área das Ciências da Comunicação, no espaço
ibero-afro-americano. A participação em bases de dados, a circulação de investigadores
e a sustentabilidade de alguns projetos editoriais sempre se debateram com limitações
decorrentes do escasso financiamento público na ciência.
O desafio da internacionalização da investigação, publicada em Comunicação no espaço
geográfico ibero-afro-americano não pode, todavia, deixar de valorizar, progressivamente,
o português e o castelhano como línguas de cultura e ciência, em diálogo atento com o
mundo anglófono. O rumo não pode deixar de ser o reforço da comunicação eletrónica,
relativamente às revistas científicas, aos grupos de pesquisa e às publicações online, em
acesso aberto.

Palavras-chave: espaço transcultural ibero-afro-americano; difusão científica; investigação;


revistas científicas; português; castelhano

* Coordenadora da Comissão do Fórum de Publicações e Difusão do Conhecimento da Confi-


bercom. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da Universidade
Metodista de São Paulo (Umesp), São Bernardo do Campo – SP, Brasil. Doutora em Ciências da
Comunicação, pela Universidade de São Paulo, foi Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Editora da Intercom – Revista Brasileira de Ciên-
cias da Comunicação (2005-2016), publicou, entre outros livros, Comunicação nos movimentos
populares: a participação na construção da cidadania. Tem publicado, também, artigos em
revistas científicas, nacionais e internacionais.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Introdução

O Fórum de Publicações e Difusão de Conhecimento Científico, da Confibercom


– Confederação Ibero-americana das Associações Científicas e Acadêmicas de
Comunicação / Confederación Iberoamericana de Asociaciones Científicas y
Académicas de la Comunicación, foi criado dois anos depois da fundação desta
confederação científica. A sua primeira atividade ocorreu, aquando do I Congresso
da Confibercom, que se realizou em São Paulo, em 2011, e constou de dois semi-
nários: um, sobre revistas de Comunicação; outro, sobre portais e enciclopédias.
O desafio da divulgação do conhecimento científico em Comunicação no
espaço ibero-americano esteve em debate em três momentos que antecederam
o II Congresso Mundial de Comunicação Ibero-americana, realizado em 2014,
em Braga – Portugal.
Refiro-me, em primeiro lugar, ao Seminário de Revistas de Comunicação,
realizado em São Paulo, em 2011, com a participação de representantes de 40
revistas, da Bolívia, Brasil, Colômbia, Espanha, Equador, Portugal e Venezuela.
Foram discutidos os problemas relativos às publicações científicas, desde questões
tópicas até à avaliação de periódicos no Brasil, assim como as consequências do
predomínio do critério anglo-saxão para publicação científica. Foi então criada
a Rede Confibercom de Revistas de Comunicação (Reviscom) 1, a qual congrega,
hoje, 96 membros associados. O objetivo da Reviscom é reunir os periódicos
num único espaço e facilitar o acesso aberto e gratuito ao conteúdo completo
das revistas associadas 2.
Um segundo momento de debate sobre a divulgação do conhecimento cien-
tífico em Comunicação no espaço ibero-americano ocorreu durante o I Fórum da
Confibercom, que se realizou em Quito, em 2012 3. O painel do Fórum de Publica-
ções e Difusão do Conhecimento Científico contou com participação de expositores
convidados de vários países e identificou os problemas que enfrentava o campo
da produção e da divulgação científica em Comunicação.

1 Site da Reviscom: http://redrevistascomunicacion.wordpress.com/.


2 Este Fórum decorreu durante a realização do I Congresso Confibercom, de que foram publicadas
as atas: Comunicação Ibero-americana: sistemas midiáticos, diversidade cultural, pesquisa e
pós-graduação (M. M. Kunsch & J. M de Melo, 2012).
3 O livro de atas deste I Fórum da Confibercom foi organizado e editado por Margarida Kunsch,
com o título La Comunicación en Iberoamérica. Políticas científicas y tecnológicas, posgrado y
difusión de conocimiento (M. M. Kunsch, 2013).

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DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVAS DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO COMUNICACIONAL...

Por sua vez, durante o II Fórum da Confibercom, realizado no Porto, em


2013, foi dada continuidade à ampliação da rede de revistas na América Latina,
Portugal e Espanha. Além do trabalho de identificação de periódicos, o painel do
Fórum de Publicações e Difusão do Conhecimento Científico fez ainda propostas
para melhorar as condições de difusão do conhecimento científico produzido
na Ibero-américa.
Entretanto, em 15 abril de 2014, durante o II Congresso da Confibercom,
realizado em Braga, Portugal, voltaram a reunir-se os investigadores do Fórum de
Publicações e Difusão do Conhecimento Científico, então confirmado pela Direção
da Confibercom 4. Foi discutido um programa de ação, e o objetivo manteve-se:
valorizar a produção científica no espaço ibero-afro-americano, internaciona-
lizando a produção científica de Comunicação, realizada nesta vasta região do
globo 5.
Depois da realização de um seminário durante o II Congresso da Confibercom,
em Braga, o Fórum de Publicações e Difusão do Conhecimento Científico voltou a
reunir-se no decorrer do III Fórum da Confibercom (fórum global), realizado em
São Paulo, em março de 2015 6.
De 2011 a 2015, estes seminários contribuíram para o estabelecimento de
uma estratégia comum de divulgação do conhecimento à escala ibero-americana.
Em termos gerais, grande parte das informações compartilhadas e dos debates
travados nestes encontros científicos centraram-se nas dificuldades, fragilidades
e limitações dos periódicos de Comunicação, tanto de ordem operacional, quanto
de conteúdo disponibilizado. Os avanços verificados em alguns países não foram
muito valorizados nestes seminários, talvez por serem uma realidade específica de
apenas alguns países, precisamente daqueles onde as Ciências da Comunicação
têm um grau maior de institucionalização e de desenvolvimento. Referimo-nos à
indexação de periódicos, à observação de padrões técnico-editoriais e à existência

4 Integravam a Comissão do Fórum de Publicações e Difusão do Conhecimento Científico, Antonio


Carlos Castillo (Espanha); Carlos E. Arcila Calderon (Colômbia); Cicilia M. Krohling Peruzzo
(Brasil) – Coordenadora; Eduardo Villanueva (Peru); Gerardo León Barrios (México) e J. Paulo
Serra (Portugal).
5 Deste II Congresso da Confibercom foi publicado um livro de atas: Comunicação ibero-americana:
os desafios da internacionalização (M. L. Martins & M. Oliveira, 2014).
6 Neste seminário, realizado em São Paulo, em março de 2015, Paulo Serra apresentou o estudo
“O (des)conhecimento recíproco dos investigadores ibero-americanos de Ciências da Comuni-
cação”, que veio a ser publicado na Revista Lusófona de Estudos Culturais / Lusophone Journal
of Cultural Studies (P. Serra, 2015/2016).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de sistemas de avaliação de periódicos. Por outro lado, foi sempre assinalado pelos
investigadores o seu desconforto perante o grau de comprometimento do sistema
internacional de difusão da produção científica com os mecanismos de mercado,
controle e hierarquização do conhecimento, segundo padrões norte-americanos
e europeus das áreas das ciências já consolidadas.

Aspectos situacionais de produção e circulação dos periódicos

Com base em estudos apresentados nos seminários mencionados 7, constata-se


que a produção científica de Comunicação e os próprios periódicos desta área
estão dispersos e, em geral, têm dificuldades do ponto de vista da sustentabili-
dade, participação em bases de dados, e até de circulação entre os próprios países
ibero-americanos, entre outros aspectos.
As condições de produção de periódicos científicos de Comunicação, espe-
cialmente na América Latina, são difíceis pelas seguintes razões: com poucas
exceções, não há fundos públicos que os financiem; as equipes de trabalho (às
vezes voluntárias) acumulam funções dentro de suas instituições, não podendo
dedicar-se estritamente ao ofício da edição de periódicos; é grande a diversidade
de publicações, em termos de formatos, enfoques, conteúdos, qualidade editorial,
quantidades (o Brasil tem quase uma centena de periódicos, em contraste com
outros países da região, que praticamente não têm periódicos); os editores, em
geral, não possuem formação especializada e exercem a função por curtos períodos
de tempo (rotatividade grande, com exceções); os países não têm sistemas de ava-
liação de periódicos, exceto o Brasil (Qualis Periódicos), o qual, todavia, apresenta
distorções e limites; proporcionalmente ao número de periódicos científicos, são
raros os que estão indexados em bases de dados internacionalizadas, como Scopus,
Web of Science, Redalyc, Scielo, e até mesmo inseridos no Catálogo Latindex. A
área da Comunicação é a menos representada nos catálogos e indexadores das
Ciências Sociais.
Quanto à distribuição dos periódicos, existe uma situação difícil no que diz
respeito à sua circulação, tanto nacional, como fora do próprio país, situação que,
no entanto, tende a melhorar em decorrência de sua crescente disponibilização

7 Ver Castillo Esparcia; Almansa; Álvarez Nobell (2012), Martins (2012), Peruzzo (2012, 2013), Serra
(2013), Sierra (2013), Suing (2013), Cohendoz (2013) e Valarezco; Gutierrez (2013).

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DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVAS DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO COMUNICACIONAL...

na Internet. Existem, todavia, outros fatores que também interferem no acesso. Às


vezes os periódicos são restritos às próprias universidades e associações (e com
baixa circulação nelas mesmas), embora existam alguns periódicos com projeção
nacional e já indexados em bases internacionais, principalmente Scielo, Redalyc
e DOAJ. Neste contexto, constata-se ainda a existência de limitação de leitura de
periódicos científicos. Não se sabe claramente se é por dificuldade de linguagem,
de desinteresse por texto científico, de falta de domínio dos canais de acesso, ou
de idioma, quando diz respeito à produção oriunda de outros países da Ibero-
-América. Os artigos publicados em revistas científicas são pouco consumidos
enquanto textos de referência. De fato, a maior busca de literatura parece ser
ainda a estrangeira, principalmente de autoria de norte-americanos e europeus,
a exemplo os papers apresentados em congressos. Alguém disse num dos fóruns:
“Cada vez produzimos mais, mas nos citamos menos...”
Num nível mais amplo, foi referida a necessidade de se discutir os sistemas
dominantes de indicadores de qualidade em vigor que institucionalizam e hierar-
quizam o conhecimento, uma vez que as tendências da política de publicação de
revistas em curso se baseiam na privatização, industrialização e mercantilização
de produtos do conhecimento. Estamos a referir-nos a mecanismos que impedem
o acesso público e gratuito ao conteúdo de periódicos científicos, e quase excluem
outro idioma que não seja o inglês nos sistemas de buscas.
Foram feitas, também, muitas críticas aos sistemas de indexação e de métri-
cas, para medir o impacto, dado o facto de não serem desenhadas para avaliar o
valor da ciência, nem o valor do conteúdo dos artigos, e sim a repercussão dos
periódicos. Sobre essa questão, foram feitas várias constatações.

1. Existe uma dominação exercida por empresas comerciais, designada-


mente pela Thomson Reuters (JCR, Web of Science, ISI), e pela Elsevier
(Scopus), que privatizam os resultados de pesquisas geradas com fundos
públicos 8.

8 Como diz Paulo Serra (2013: 93-94), “é certo que a digitalização da ciência tem vindo a ser feita
a passos largos – mas, de forma predominante, em língua inglesa e marcada pelos interesses
comerciais de grandes companhias como a Thomson Reuters (ISI), a Elsevier (SCOPUS), a IGI
Global e outras, que procuram fazer mais-valias privadas à custa do trabalho produzido com
fundos públicos pelos cientistas das diversas universidades, laboratórios e centros de investigação
– com a aquiescência mais ou menos resignada destes, submetidos ao imperativo do ‘publish
or perish’. O resultado desta verdadeira paródia do imperativo mertoniano da publicação da
ciência é aquilo a que se tem vindo a chamar a ‘fast science’, e que mais não é que uma caricatura

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

2. Existe, por outro lado, um jogo antiético de práticas, que acaba condi-
cionando os índices de fator de impacto 9, em favor de alguns periódicos
e das grandes empresas de bases indexadoras.
3. Também acontece que o sistema instituído destrói, ou então não reco-
nhece, o valor das ciências publicadas em outros idiomas que não o inglês.
4. Em síntese, podemos concluir que o artigo que não seja publicado em
periódico indexado parece não ter valor científico, nem social, o que é
contraproducente, uma vez que toda a pesquisa de qualidade, que seja
apropriada socialmente, demonstra valor, esteja ou não indexada 10.

De um modo geral, a produção científica ibero-americana em Comunicação


vive no isolamento, pelo menos a que circula em periódicos. O espanhol e o portu-
guês mantêm-se como línguas de baixa aceitação no campo científico das Ciências
Sociais e Humanas, onde o inglês é predominante de modo quase hegemónico.
Esta circunstância tem também como consequência o baixo número de revistas
indexadas em bases internacionais.
Paralelo ao problema do “fator de impacto”, a informação científica
confronta-se com um outro problema, que decorre dos sistemas de busca na
Internet. Tomando o exemplo da empresa Google, verificamos que a informação
é classificada através de seus próprios motores de busca e seus próprios critérios
(por exemplo, o idioma e a demanda). Estas circunstâncias acabam hierarquizando
as publicações, manipulando os índices e comprometendo a amplitude possível
do acesso. No caso da publicação científica, por exemplo, os artigos escritos e
publicados em inglês aparecem sempre no início dos resultados de buscas.

da ciência – uma caricatura que, a mais ou menos curto prazo, não deixará de pôr em causa a
própria qualidade da ciência”.
9 Com base em estudo bibliométrico, o fator de impacto de uma revista é de determinado e
calculado todo ano da seguinte maneira: primeiramente são contabilizadas as citações que
recebem durante esse ano (ex. 2008) todos os documentos publicados na revista nos dois anos
anteriores (ex. 2007 e 2206). O número total de citações é o numerador. Em segundo lugar, são
contabilizados todos os ‘itens citáveis’ publicados na revista nesses dois anos (ex. 2007 e 2006)
e já temos o denominador. O fator de impacto se calcula dividindo o numerador entre o deno-
minador” (Castillo Esparcia; Almansa Martinéz y Álvarez Nobell, 2012, p. 387). A partir dessa
métrica surgem as artimanhas para aumentar o FI...
10 Veja-se M. L. Martins (2015), A liberdade académica e os seus inimigos.

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DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVAS DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO COMUNICACIONAL...

Propostas para enfrentar as incongruências e limitações do setor

A Confederação, enquanto coletivo de associações científicas no espaço ibero-


-americano, congrega pessoas de diferentes visões, o que torna complexa sua
atuação. Num contexto acadêmico em que a pressão das universidades por se
publicar em periódicos indexados, principalmente aqueles indexados por JCR 11
e Scopus 12, por exemplo, é crescente, há uma tendência por parte dos docentes
investigadores – e até de estudantes de doutorado, em se sujeitarem a critérios dos
mesmos, em nome do “publique ou pereça”, às vezes em detrimento das necessi-
dades de pesquisa (problemáticas investigadas, abordagens e difusão interna de
conhecimentos) de seus próprios países, e dos riscos ao próprio valor da ciência 13.
Se por um lado é importante a difusão do conhecimento científico através de
periódicos bem conceituados e em nível internacional, por outro lado, as revistas
científicas nacionais e regionais do espaço ibero-americano também têm impor-
tância, talvez até maior, em função na necessidade de compartilhamento das
pesquisas científicas, além de estarem num universo de leitores potencialmente
mais interessados e necessitados da informação científica situada, ou seja, rela-
cionada à problemas de investigação presumivelmente vinculados às realidades
desses países, embora isso não seja regra nem condição para que a mesma se
desenvolva. Refiro-me à dialética entre o interesse (do leitor por temas de sua
realidade), à acessibilidade (acesso aberto e idioma), e a apropriação do conheci-
mento (utilidade pública e subsídios que disponibiliza). Afinal o valor da ciência
se mede pela contribuição que traz à sociedade e à humanidade.
Karl Popper (1987, 2002), já nos anos 1940, defendia a prática científica com
liberdade de pensamento e contrária ao dogmatismo e autoritarismo dos próprios
métodos, da concepção de ciência e das instituições, além de defender a ciên-
cia como intervenção social e propósitos de combater os problemas de miséria
social e econômica em prol do desenvolvimento humano 14. Como aceitar então
as prescrições institucionais de governos, universidades e de empresas editoriais

11 Journal Citation Reports, da Thomson Reuters, empresa proprietária também da Web of Science
e da Science Citation Index – SCI.
12 De propriedade da Elsevier.
13 Veja-se Paulo Serra (2013).
14 Ver a leitura atenta de Barreto (2012) sobre essa dimensão do pensamento de Popper.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

que pretendem direcionar tanto as temáticas 15 de pesquisa quanto os métodos


e as abordagens?
Em suma, há distorções em certas políticas cientifico-acadêmicas que ditam
orientações de difusão do conhecimento que, em última instância, favorecem o
negócio editorial internacional em detrimento do valor a ciência para os próprios
países nos quais é gerada.
Desse modo, se justifica a forte recomendação do Fórum de Publicações e
Difusão do conhecimento Científico da Confibercom para que o jogo de interesses
em publicar em periódicos de mais alto “Fator de Impacto”, cujas métricas, como
já foi dito, são alvo de severos questionamentos, não venha a restringir a presença
dos artigos científicos nos idiomas nativos – no caso, português, espanhol, galego,
catalão – nem desprestigiar os periódicos científicos da região ibero-americana,
nem de outras regiões do mundo com idiomas próprios.
Além do interesse nacional envolto na divulgação e apropriação do conhe-
cimento, os contingentes de pessoas de língua não inglesa são enormes. Como
mostra Martins (2012, p. 246), há uma

multidão de pessoas que têm a língua portuguesa como primeira língua. São 190
milhões os falantes de português, quase tantos como os falantes de francês (110
milhões) e de alemão (100 milhões) juntos. Depois do mandarim, com 1000 milhões
de falantes, do hindi com 460 milhões, do espanhol com 300 milhões, do inglês com
350 milhões e do árabe com 200 milhões, o português vem a seguir, em sexto lugar.
No entanto, na era da informação global, impressiona saber que o total de falantes
em língua inglesa é de 1000 milhões, enquanto o Hindi é 650 milhões, o Francês 500
milhões, o Árabe 425 milhões, o espanhol é 320 milhões, o russo 280 milhões e o
português 230 milhões 16.

Outro aspecto que compõem esse cenário é a ênfase de publicação de


artigos em revistas, em detrimento, inclusive, da publicação de livros. Porém, se

15 As grandes revistas científicas indexadas nas bases antes mencionadas, por exemplo, têm entre
os critérios para aceitação de artigos, aqueles que enfocam de temas de interesses globalizantes,
portanto, pesquisas sobre realidades específicas de países ibero-americanos são desprestigiadas,
além da exigência de padrões metodológicos e de linguagem mais afeitos a determinadas lógicas
metódicas anglo-saxônicas dominantes.
16 Fonte usada pelo autor: http://wapedia.mobi/pt/L%C3%ADngua_mundial [valores em dezembro
de 2009].

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DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVAS DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO COMUNICACIONAL...

a publicação em revistas faz elevar os índices acadêmicos, não significa a garan-


tia de que haja a leitura dos artigos no grau desejado. Quando são acessados, a
tendência é que seja pelos pares, ou seja leitores do próprio circuito acadêmico,
o que é relevante, afinal trata-se de circulação e democratização de ideias e, ao
mesmo tempo, um mecanismo de avaliação/validação de resultados de pesquisa.
Mas, do meu ponto de vista, diante das possibilidades que as configurações das
tecnologias atualmente oferecem há que se equilibrar alternativas de difusão e
compartilhamento da produção científica, tanto junto aos públicos especializados
(para os pares, universidades, congressos, associações) através dos periódicos,
visando o debate e a validação, quanto para a sociedade como um todo, segundo
o princípio da divulgação/comunicação pública da ciência. São linhas de atuação
que demandam o desenvolvimento de táticas específicas, como por exemplo,
a centração dos esforços nos periódicos científicos, e também a agregação dos
blogs de pesquisadores, repositórios digitais de universidades e de associações
científicas, perfis acadêmicos de pesquisadores e e grupos de pesquisa nas mídias
e redes sociais virtuais, além de outras bases de acesso público. Tão importante
quanto publicar numa revista JCR (que inclusive restringe o acesso a pagantes)
ou Scielo, é publicar para acesso público universal e apropriação pela sociedade
dos resultados da pesquisa científica. Nesse sentido, não basta a difusão de arti-
gos científicos, mas a incorporação de outras linguagens, como entrevistas com
investigadores e a elaboração de áudios e vídeos que conjuguem cientificidade
com clareza e sínteses competentes.
A Confibercom, através do seu Fórum de Publicações e Difusão do Conhe-
cimento Científico propõe-se manter o trabalho de diagnóstico da situação dos
periódicos científicos e de outras bases e plataformas (portais, enciclopédias,
museus, repositórios e catálogos) de difusão do conhecimento do campo da Comu-
nicação. Por outro lado, pensamos que a divulgação e integração da produção
científica ibero-americana exige a criação de uma potente Plataforma Digital,
desenvolvida com pessoal especializado e estrutura tecnológica condizente. Uma
tal plataforma informática permitiria aglutinar e divulgar revistas científicas, enci-
clopédias, repositórios científicos, museus virtuais, do campo da Comunicação,
tendo em vista facilitar o acesso aberto universal à informação gerada no espaço
ibero-americano. Tratar-se-á de fazer jus à potencialidade que o desenvolvimento
tecnológico oferece na atualidade.
Quanto à internacionalização, não se trata de rejeitar o inglês, mas aproveitá-
-lo para garantir maior visibilidade da ciência realizada em nossos países. Nesse

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sentido, publicar em português e espanhol significa lutar contra a invisibilidade


e atingir públicos mais amplos e contestar certo etnocentrismo cultural, que
associa a universalização da ciência à ciência publicada em língua inglesa. A
Confibercom bater-se-á pela publicação das revistas científicas, em múltiplos
idiomas: português, espanhol e inglês, embora se saiba das dificuldades finan-
ceiras e operacionais para tanto. Em consonância a essa estratégia, cabe publicar
tudo (livros, capítulos de livros, revistas, papers, dissertações de mestrado, teses
de doutoramento), em regime de acesso aberto universal, limitando os direitos
autorais aos direitos morais. Resgatar e digitalizar a produção ibero-americana
“perdida” (não indexada), disponibilizando-a de modo gratuito, valoriza o tra-
balho académico, em geral, e a pesquisa, em particular. Enfatiza-se a premência
em facilitar o acesso irrestrito à produção científica na Internet, como forma de
internacionalização do conhecimento científico, gerado na Ibero-américa.
A Confibercom interroga, também, o “fator de impacto”, o qual é usado não
para “avaliar” a produção do conhecimento e o correspondente valor da ciência,
mas que é desenhado para avaliar os periódicos, e a partir de critérios e mecanis-
mos anglo-saxônicos e interesses mercadológicos da própria indústria editorial,
como já foi explicitado.
São ainda propósitos da Confibercom, a) Auxiliar na formação de editores
visando à melhoria da qualidade científica dos periódicos e a democratização do
saber técnico quanto a critérios e processos de indexação; b) Incentivar e ajudar
na interação das revistas da região com os sistemas de indexação privados (por
exemplo, Scielo e Redalyc) e de catalogação (como é o caso do Latindex), além dos
demais indexadores; c) Propor às identidades nacionais competentes critérios de
divulgação do conhecimento científico e de avaliação de periódicos, que favore-
çam o avanço da qualidade editorial e respeitem a diversidade cultural, regional e
acadêmica; d) Criar um Observatório de Revistas, com o propósito de sistematizar,
analisar e avaliar as atividades de difusão científica nos países ibero-americanos;
e) Criar grupos de trabalho por regiões e/ou em países, de modo a facilitar a con-
vergência de programas de formação e intercâmbio; f) Desenvolver um Banco de
Avaliadores e Editores, para facilitar o intercâmbio e ampliar a cooperação entre os
periódicos científicos; g) Criar múltiplos canais de informação científica de acesso
aberto, de modo a interagir com investigadores e públicos não especializados e
a promover a e-ciência no campo ibero-americano; h) Desenvolver um catálogo
ibero-americano de periódicos de Comunicação, similar ao Latindex, que atenda
a uma variada gama de áreas do conhecimento; i) Agregar a Reviscom no site

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 226 08/11/2017 13:12:56


DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVAS DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO COMUNICACIONAL...

da Confibercom; j) Criar um Catálogo de Coleções, no site da Confibercom, para


acesso aos investigadores; l) Otimizar, na plataforma digital Confibercom, o uso de
recursos, articulando (através de links) produtos já existentes, tais como revistas
científicas, catálogos, portais científicos, bibliotecas digitais e a Rede Reviscom.
Podemos dizer, em síntese, que a Confibercom, por intermédio do seu Fórum
de Publicações e Difusão do Conhecimento, enfatiza a cooperação e o respeito às
regionalidades, assim como a integração e o acesso público universal ao conhe-
cimento, propondo-se priorizar as seguintes políticas:

a) Realizar seminários para editores de revistas científicas, visando discutir


e ajudar nos processos de indexação;
b) Fazer um levantamento de dados sobre o uso da comunicação digital,
a partir da base do catálogo Latindex e de indexadores como Scielo 17 e
Redalyc 18;
c) Formar um banco de avaliadores/pareceristas, disponibilizando uma lista
com nomes de pesquisadores titulados, que possam auxiliar na avaliação
de artigos de revistas cientificas;
d) Intensificar a divulgação (no Facebook e em outras redes) da Rede de
Revistas (Reviscom) 19, de modo a difundir informações sobre a disponi-
bilização de conteúdos completos de uma centena de revistas científicas
de Comunicação já disponíveis para acesso aberto;
e) Criar uma Plataforma Digital, a qual pode se concretizar pela melhora-
ria/dinamização do site da Confibercom, de modo a converter-se numa
plataforma digital ou na criação de um novo sítio (portal potente), o
que implica na compra de um domínio de Internet e de um servidor.
Esta plataforma digital poderia comportar não apenas um repositório
de revistas científicas, como também a migração da rede Reviscom e
de toda a memória dos eventos da Confibercom, inclusive, dos papers
apresentados, além da conexão, em rede, com bibliotecas virtuais, como
a BOCC 20, o Portal de la Comunicación Infoamérica, catálogos, portais
científicos e museus virtuais.

17 Scientific Electronic Library Online. 


18 Red de Revistas Cientificas de America Latina y el Caribe,España y Portugal.
19 Retirado de http://redrevistascomunicacion.wordpress.com/.
20 Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação da Universidade Beira Interior (Portugal).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Considerações finais

A área de abrangência do Fórum de Publicações e Difusão do Conhecimento


Científico tem especificidades, como as discutidas neste texto, mas, ao mesmo
tempo, tem intersecções aos espectros dos demais Fóruns da Confibercom – de
Políticas Científicas e de Pós-Graduação. As macropolíticas de ciência e tecno-
logia interferem diretamente no direcionamento das políticas de produção e
de difusão/divulgação do conhecimento. São desenhadas a partir de instâncias
que prescrevem normas e parâmetros, principalmente, no nível das políticas de
investigação científica e de pós-graduação, os quais desembocam nas políticas
de difusão do conhecimento. Portanto, somente um trabalho conjunto dos três
fóruns que formam a Confibercom pode ser mais eficiente no delineamento de
ações capazes de contribuir para a formulação de novas diretrizes e pressionar
por alterações nas macropolíticas de ciência e tecnologia que tanto impactam as
micropolíticas editoriais e a própria visão dos gestores acadêmicos, de editores
de periódicos científicos e dos próprios docentes investigadores.

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 228 08/11/2017 13:12:56


DIAGNÓSTICO E PERSPECTIVAS DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS E DIFUSÃO DO CONHECIMENTO COMUNICACIONAL...

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 229 08/11/2017 13:12:56


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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Sites

Site da Reviscom: http://redrevistascomunicacion.wordpress.com/

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ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS
DA IDEIA DE REDE AO IDEAL DE COMUNIDADE
Madalena Oliveira*

Resumo
O desenvolvimento dos estudos de Comunicação – como certamente os de outras ciências
– tem sido acompanhado pela atividade de inúmeras associações científicas. De âmbito
nacional ou internacional, disciplinares ou transversais às várias áreas, estas organizações
têm desempenhado importantes funções de reunião, dinamização e promoção do trabalho
realizado em universidades e centros de investigação. Com iniciativas muito diversificadas
– como a organização de eventos científicos e a publicação de séries de livros e revistas
– as associações científicas são hoje um indicador relevante do grau de consolidação de
campos e grupos científicos. Estão vinculadas à ideia de criar redes de trabalho e coope-
ração, um objetivo condizente com o desenho de uma sociedade global, feita de ligações,
ou conexões, entre pessoas e instituições. No entanto, é na palavra comunidade – ou seja,
na ideia de partilha – que o sentido das associações científicas encontra, pelo menos na
área das Ciências da Comunicação, o seu fundamento mais expressivo.

Palavras-chave: ciência, associação científica, rede, comunidade

* Professora Associada do Instituto de Ciências Sociais e membro do Centro de Estudos de Comu-


nicação e Sociedade da Universidade do Minho, onde se doutorou em 2007. Leciona disciplinas
como Semiótica, Comunicação e Linguagens, Jornalismo e Som e Jornalismo Especializado. Nos
seus interesses de investigação inscrevem-se atualmente o som como linguagem, o jornalismo
sonoro, a cultura sonora, bem como políticas de comunicação e ciência. É vice-presidente da
SOPCOM, Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, coordenadora do Grupo de Tra-
balho de Rádio e Meios Sonoros desta associação e chair da Radio Research Section da ECREA,
European Communication Research and Education Association.
Email: [email protected]

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As sociedades científicas

As associações científicas tal como hoje as conhecemos – com graus de especi-


ficidade muitas vezes bastante acentuados – ter-se-ão inspirado nas sociedades
científicas 1 formadas a partir do século XVII, num movimento que terá começado
em Itália. Stanley Siegelman considera-as, a par das revistas científicas, um dos
contributos que estão na origem da ciência moderna (Siegelman, 1998, p. 9).
Os grupos de que fala o autor – essas primeiras sociedades científicas – eram
ainda pouco mais do que uma espécie de “clubes” de discussão que nem sem-
pre desenvolviam investigação original, embora pudessem fazer nalguns casos
algum trabalho de experimentação. Os seus objetivos fixavam-se na análise e no
debate sobre fenómenos da natureza, sendo os tópicos mais comuns “o calor, a
luz, o peso, o movimento, o magnetismo, o comportamento dos gases, as marés,
metalurgia, ótica, astronomia e física” (Siegelman, 1998, p. 10). Promovidas por
patronos, estas primeiras sociedades 2 funcionavam como lugares de alguma
irreverência científica, nalguns casos reunindo-se de modo quase secreto e, por
vezes, à revelia das autoridades eclesiásticas.
Distinguiu-se neste contexto a Royal Society of London que, tendo come-
çado em 1645 como um grupo de indivíduos com interesses comuns, se tornou
progressivamente numa sociedade relativamente bem-sucedida, que mantinha
inclusive um staff de dois funcionários assalariados. Com um modelo de inscrição
de membros já algo sofisticado para a época, organizado segundo um sistema de
quotas, esta sociedade científica – que teria em Paris como equivalente a Aca-
démie des Sciences – desempenhava também, segundo Siegelman, uma função
social. Conta o autor que “mercadores, filósofos, aristocratas e proprietários de
terras (landed gentlemen) se reuniriam para jantar antes das reuniões ou para
tomar café depois das sessões para fazer network e socializar com os cientistas”
(Siegelman, 1998, p. 12).

1 Na literatura de expressão inglesa, é relativamente comum a referência a scientific societies como


sinónimo de scientific associations. O mesmo acontece, aliás, em Português, sendo o termo
sociedade usado, por vezes, na designação de algumas associações. Nesta primeira secção do
capítulo, porém, consideramos as sociedades científicas no seu sentido mais genérico original.
2 Siegelman refere, por exemplo, no contexto italiano, a Academia Secretorum Naturae, fundada
por Giambattista della Porta, a Academia del Lincei, organizada por Duke Federigo Cesi, e a
Academia del Cimento, que tinha como patrono Leopold Medici (Siegelman, 1998, p. 10).

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 232 08/11/2017 13:12:56


ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS

Pelas suas características, as sociedades científicas que surgiram nos anos


1600 estariam de algum modo para as ciências naturais e da vida como os círculos
culturais para o que viriam a ser as ciências sociais e humanas. Combinando a
reunião de especialistas com o diálogo com outros atores sociais, estas sociedades
eram organizações onde, pela palavra, se construía a noção de saber e se produzia
conhecimento. Com uma atividade paralela à que se desenvolvia nas universidades
da altura, os grupos que se reuniam a este pretexto podiam integrar, na verdade,
alguns cientistas universitários, mas tinham uma ambição que ultrapassava cla-
ramente as fronteiras da instituição universidade. É certo que o acesso a estas
sociedades – mesmo aquelas que se apresentavam como mais ecléticas – era, de
algum modo, um exclusivo das elites da época. No entanto, havia já uma perceção
de que o conhecimento carecia de socialização.
Para além das reuniões presenciais que promoviam – quais assembleias
de debate – as primeiras sociedades científicas implementaram também um
sistema de correspondência, que contribuiu para a recolha e redistribuição de
informação. Conta Sarah S. Gibson que “com o estabelecimento oficial da Royal
Society em 1660 e da Académie des Sciences em 1666, o sistema [de correspon-
dência] foi institucionalizado e as assembleias foram sendo transformadas em
corpos mais ou menos profissionais” (Gibson, 1982, p. 148). O ponto de origina-
lidade das sociedades científicas fundadas a partir do século XVII era, pois, o da
consciência de que a ciência só faria sentido na base da partilha de informação.
Haveria, por isso, em cada organização, como sustenta a autora referindo-se a
um estudo concreto sobre a Académie des Sciences, “um ‘instinto comunal’ para
partilhar informação com os membros [das sociedades] e tornar as descobertas
científicas genericamente disponíveis para outros grupos interessados” (Gibson,
1982, p. 149).
Do ponto de vista estritamente científico, as sociedades que se constituíram
na Europa (Itália, França, Alemanha e Reino Unido, especialmente) terão contri-
buído para encorajar cientistas na realização de trabalhos de descoberta e para,
desse modo, promover o progresso em matéria de conhecimento. Do ponto de
vista mais global, o que estas sociedades proporcionaram foi, em larga medida,
a consciência de que o conhecimento deveria ser publicitado e que a troca e o
debate de ideias entre cientistas poderiam ser tão profícuos como a experimen-
tação e os testes empíricos. Foi nesse contexto que, tirando proveito das novas
oportunidades proporcionadas pela invenção da imprensa de Gutenberg, estes
grupos patrocinaram a criação das primeiras revistas científicas, bem como de

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 233 08/11/2017 13:12:56


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

relatórios e outras publicações que teriam, à época, um caráter semelhante ao dos


livros de atas dos congressos contemporâneos. Siegelman fala de um “forte desejo
de comunicar”, lembrando que “as novas revistas científicas eram simplesmente
um meio prático de distribuir detalhadas ‘cartas eruditas’” (Siegelman, 1998, p.
13). Sarah Gibson acrescenta que o mesmo interesse supremo pela comunicação
estava presente nas duas primeiras sociedades científicas americanas, que se
criariam na segunda metade do século XVIII, a American Philosophical Society
e a American Academy of Arts and Sciences (Gibson, 1982, p. 150).
A partir do século XIX, o movimento de criação de sociedades científicas
haveria de se intensificar cada vez mais por áreas mais especializadas, que senti-
riam o mesmo ímpeto por partilhar ideias e transferir o conhecimento produzido.
Primeiro nas ciências dedicadas à natureza, aos fenómenos físicos e químicos e na
medicina, depois progressivamente também nas ciências humanas, as sociedades
científicas seriam encaradas a partir do século XX como “instituições estabeleci-
das”, cuja responsabilidade passava por “atuarem como um centro de difusão de
informação para a comunidade científica” (Gibson, 1982, p. 153) 3, favorecida pela
distribuição de publicações e por uma prática de troca que envolvia universidades,
bibliotecas e instituições dos governos.

As associações científicas modernas

As significações genéricas relacionadas com o termo associação remetem para


as ideias de “aliança”, “união”, “reunião”, “colaboração”, “união de esforços de
várias pessoas para prosseguir um fim comum”. O verbo associar-se, por sua vez,
admite também como significado a ideia de “tomar parte”, “participar”, “relacio-
nar-se com”, “combinar-se”. Herança das primeiras sociedades científicas, que
continuam a ser hoje instituições em certa medida dedicadas a uma necessária
regulação da ciência, as associações científicas criadas no seio das mais variadas
áreas de conhecimento correspondem, em parte, àquilo que são as aceções de
senso comum. De todos os pontos de vista, as associações traduzem um ímpeto
pela ligação e pela partilha – aquilo que comummente se designa por networking.
Elas nascem, segundo Geraldina Porto Witter, “em decorrência da necessidade de

3 Acrescenta a autora que algumas destas sociedades poderiam também ter como finalidade a
difusão do conhecimento também para as massas.

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 234 08/11/2017 13:12:56


ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS

ampliar o contacto e o conhecimento entre cientistas e como forma de se obter o


aceite dos pares” (Witter, 2007, p. 2).
Definindo-se como organismos que articulam pessoas com interesses comuns,
as associações científicas são, antes de mais, instituições cujo sentido se rea-
liza num ideal de identificação que visa, como fim último, a construção de uma
identidade de grupo. Fazer parte de uma associação significa, por este prisma,
identificar-se com um grupo, seja por razões de natureza teórica seja por ques-
tões de ordem pragmática ou metodológica. Significa, por outras palavras, sentir
aproximações a uma comunidade cujo modus operandi e/ou ideário parecem
oferecer coincidências com iniciativas pessoais. Num texto de introdução ao
número 9 da revista Science and Engineering Ethics, Mark S. Frankel e Stephanie
J. Bird assinalam que “é raro haver um cientista que não esteja afiliado em uma
ou mais sociedades científicas”. Reconhecem os autores que estas associações
“têm funcionado como uma importante fonte de identidade profissional para os
cientistas” (Frankel & Bird, 2003, p. 139). O gesto de se associar a uma organização
científica é, por norma, voluntário, não constituindo necessariamente um requi-
sito absoluto da atividade profissional do cientista. Em todo o caso, a adesão a
uma associação sugere a criação de laços entre pares, uma espécie de movimento
para o coletivo que, mesmo antes de poder ser reconhecido como uma inclinação
para um sentir-em-conjunto, como proporia Mario Perniola (1993), pode ser visto
como uma necessidade de pensar-em-conjunto.
Neste exercício de confronto entre pares, as associações científicas moder-
nas mantiveram o propósito de fomentar o debate, a troca de ideias, a partilha
de conhecimento que estavam na origem das primeiras sociedades científicas.
Frankel e Bird sustentam que “os cientistas se juntam a sociedades como uma
maneira de encontrar e interagir com colegas e pela função que cumprem de
fórum para apresentação dos seus trabalhos” (Frankel & Bird, 2003, p. 139). Enten-
didas como extensão do processo de identificação com os interesses e eventuais
esquemas intelectuais de um coletivo, as arenas de debate constituídas nestes
contextos cumprem, então, uma dupla missão: a) por um lado, o conhecimento
mútuo, a discussão “dentro de portas”, que é o mesmo que dizer imanente ao
próprio grupo científico; b) por outro, a afirmação “para fora”, junto de outros
grupos científicos, diante dos quais é necessário declarar a especificidade de um
objeto científico ou de metodologias particulares. Se a primeira incumbência da
utilização das associações como plataformas de discussão tem uma finalidade
endógena, motivada pela necessidade de solidificação de uma espécie de group

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 235 08/11/2017 13:12:56


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

mind, a segunda visa impor uma espécie de group think, assente na delimitação
de fronteiras epistemológicas.
Baseadas, portanto, na força própria do coletivo, as associações científicas
constituem-se como núcleos legitimadores quer de problemas formulados como
objeto de determinadas ciências quer dos métodos prescritos para a sua aborda-
gem. A constituição de associações científicas, sejam elas nacionais ou interna-
cionais, disciplinares ou interdisciplinares, está, por isso, ligada à consolidação
de determinados campos científicos e suas comunidades. Daí que, em parte, a
maturidade de um dado ramo científico possa, de algum modo, ser também aferido
tanto pela longevidade das suas associações como pela dimensão e espessura dos
seus corpos de cientistas.
Para além de representarem a identidade e legitimidade de um grupo e de
um campo científico, as associações científicas estão também ligadas à expec-
tativa de promoção de integridade da investigação. Quer isto dizer que se lhes
atribui igualmente uma responsabilidade ética que Iverson, Frankel e Siang tra-
duzem nesta convicção: “as sociedades científicas estão bem posicionadas para
funcionarem como guardiãs dos valores profissionais e dos padrões éticos que
foram sendo estabelecidos pelos seus membros ao longo do tempo e para aju-
dar a transmiti-los às subsequentes gerações de cientistas” (Iverson, Frankel, &
Siang, 2003, pp. 141-142). É nesse sentido que as associações de ciência são, por
outro lado, impulsionadoras de “uma variedade de atividades e estratégias que
visam promover a conduta de investigação responsável” (Frankel & Bird, 2003,
p. 140). Felice Levine e Joyce Iutcovich também reconhecem que o vasto papel
das associações científicas tem incluído “o desenvolvimento de códigos de ética
e o apoio público de políticas com vista à defesa de práticas éticas na conduta de
investigação” (Levine & Iutcovich, 2003, pp. 257-258). De acordo com os autores,
as associações foram, por isso, comprometendo-se com a necessidade de sensi-
bilizar para problemas como “a fabricação ou falsificação de dados, a proteção
dos indivíduos humanos, a confidencialidade, o relato rigoroso dos resultados e
o plágio” (Iverson, Frankel, & Siang, 2003, p. 258).
Reconhecendo que “aos poucos foram sendo agregados papéis e funções
cada vez mais relevantes” às associações científicas, Geraldina Witter admite que
estes organismos se foram diversificando, ampliando e tornando mais normati-
vos e poderosos (Witter, 2007, p. 2). Com efeito, qualquer que seja o seu domínio
científico de atuação, uma das expectativas progressivamente identificadas com
as associações prende-se com o papel que podiam ter na definição de políticas

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 236 08/11/2017 13:12:56


ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS

públicas de ciência. Para Ana Delicado, “seria de esperar que as associações cien-
tíficas fossem de algum modo consultadas no desenho das políticas de ciência”,
uma participação que, em Portugal, “é (e praticamente sempre foi) quase inexis-
tente” (Delicado, 2015, p. 333).

A dinamização da ciência

Se a primeira de todas as funções das associações científicas estará ligada à reu-


nião de investigadores por relação aos seus interesses de investigação, o que
estes organismos hoje representam não se esgota na simples aproximação de
cientistas. Ao invés, a partir deste propósito, desempenham atualmente, numa
tendência que começou a intensificar-se na segunda metade do século XX, um
papel de franca dinamização. De acordo com Carlos Fiolhais, “várias associações
de cientistas têm tido um papel de relevo na promoção da ciência, incluindo a
divulgação científica” (Fiolhais, 2011, p. 94). Reconhece o autor que “praticamente
todas as disciplinas científicas e os seus praticantes nacionais são defendidos por
sociedades científicas”, sugerindo ainda que, “umas mais ativas do que outras,
todas têm ajudado à afirmação e disseminação da ciência e da cultura científica”
(Fiolhais, 2011, p. 95).
Defender a ciência e promover a divulgação científica são então, para Fiolhais,
duas missões a que modernamente as sociedades científicas têm procurado dar
resposta. Com este horizonte, as associações investem na constituição de grupos
de trabalho delimitados por subáreas de conhecimento, que favorecem a realiza-
ção de investigação cada vez mais específica e a aplicação de grandes províncias
do saber a realidades emergentes. Por outro lado, é também da iniciativa destas
associações que se viabiliza a realização de encontros e reuniões científicas tanto
de âmbito regional e nacional como de âmbito internacional. Embora episódicos,
os congressos – que hoje se realizam em grande número e diversidade de enfo-
ques – funcionam como uma espécie de “feiras de ciência” patrocinadas, em boa
medida, pelas associações científicas que buscam nestas iniciativas retomar, ao
menos em parte, o espírito das primeiras assembleias de cientistas. Talvez mais
democráticos hoje do que os fóruns do passado, estes eventos convidam à apre-
sentação de trabalho inovador, de perspetivas originais e de novas preocupações
científicas. Funcionam, por outro lado, como uma espécie de “mercado de ten-
dências”, onde se escrutinam entre pares metodologias e doutrinas teóricas. São,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

em última análise, a chave de reforço das próprias associações como entidades


promotoras do encontro, do intercâmbio e da sustentação de redes de cooperação.
Outra das esferas de atuação em que as associações científicas se têm desta-
cado é no fomento à publicação, ou seja, à divulgação pública do conhecimento,
que é frequentemente, segundo Anabela Carvalho e Rosa Cabecinhas, uma das
conotações da expressão “comunicação da ciência” (Carvalho & Cabecinhas, 2004,
p. 5). Em articulação com editoras dedicadas à difusão científica, as associações
encorajam a edição de livros em coleções especializadas, bem como a sustentação
de publicações periódicas, cada vez mais numerosas e sujeitas a um sistema de
competição traduzido em índices de impacto e prestígio. Lembra Sarah Gibson que
“desde o século XVII, tem havido [por parte das associações científicas] uma clara
compreensão da importância da partilha de conhecimento científico e do valor da
propaganda relativo a essa disseminação”. Explica a autora que este interesse pela
difusão alargada dos resultados do trabalho de investigação não diz respeito, para
estas entidades, “apenas a uma questão de prestígio, mas antes à manifestação de
um ethos que requer que a comunicação dos resultados seja uma condição sine
qua non da empresa científica” (Gibson, 1982, p. 159).
Sendo uma das suas faces mais visíveis, a publicação de livros e de revistas
não exaurem o propósito de difusão científica. Nas últimas décadas, também
outros instrumentos de disponibilização de recursos científicos têm contado
com o patrocínio das associações. Embora não de sua iniciativa exclusiva, bases
de dados têm sido incentivadas por estas entidades, que investem, por outro lado,
na criação de observatórios e de think tanks, cuja finalidade é alargar à sociedade
em geral o produto da ciência realizado em laboratórios e universidades.
Na mobilização dos interesses dos seus associados e na afirmação da impor-
tância da ciência em geral, as associações científicas têm também um potencial
de influência de decisores políticos. Pelo privilégio de conhecerem com pro-
priedade o imperativo da produção de conhecimento nas suas áreas de atuação
concreta, bem como as condições de ação dos investigadores a elas associados,
as sociedades científicas modernas têm desenvolvido, de um modo geral, e em
alguns casos de modo mais particular, um papel decisivo de exercício de lobbying.
Embora reconheça que as associações portuguesas têm tido um papel modesto
no aconselhamento dos administradores das políticas de ciência, Ana Delicado
admite que “há, porém, uma área em que as associações científicas, em particular
as associações de profissionais científicos, têm sido particularmente ativas na
procura de intervenção sobre políticas de ciência”. Concretiza a investigadora do

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ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, responsável pelo desen-


volvimento do projeto “Sociedades Científicas na Ciência Contemporânea” 4, que
é na área das carreiras científicas e da defesa e representação dos investigadores
junto da tutela que estas associações têm desempenhado um papel importante
(Delicado, 2015, pp. 338-339). Ainda assim, Ana Delicado sugere que o repertório
de ação ao dispor das associações pode também passar por outros instrumentos:

contactos diretos com agentes políticos (…) ou reuniões convocadas por iniciativa das
associações, cartas ou testemunhos endereçados a decisores políticos, comentários em
jornais e comunicados de imprensa, policy briefs e livros brancos, declarações, criação
de gabinetes ou programas especializados em medidas de política, organização de
simpósios e conferências, emissão de resoluções e pareceres, constituição de painéis
de aconselhamento, participação em processos de consulta pública (…), apresentação
de queixas a instâncias judiciais, etc… (Delicado, 2015, p. 344)

Para a autora, é verdade que “as relações entre associações científicas e a


esfera política são pouco consistentes” (Delicado, 2015, p. 348). No entanto, é na
constituição de grupos de pressão que possam também contribuir para a definição
de critérios de aferição da qualidade na investigação que poderia residir o poten-
cial das associações. Segundo Geraldina Witter, neste domínio, “as sociedades
poderiam ter uma participação de colaboração na emissão de pareceres técnicos
para as agências, definição de critérios de qualidade específicos de cada área,
usar e validar instrumentos de avaliação, de projetos, relatórios, publicações,
etc.” (Witter, 2007, p. 9).
No cumprimento da sua missão, as associações científicas corporizam não
só o desejo de intervir junto dos decisores políticos como também o de fomentar
uma aproximação da academia ao mercado de trabalho e à sociedade em geral. É
nesse anseio que se fundamenta a admissão, em algumas associações, tanto de
cientistas como de profissionais e a celebração de protocolos de cooperação com
empresas e outros organismos de gestão do trabalho e dos serviços nas diversas
áreas da vida em sociedade.

4 Projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia em 2008, desenvolvido por
investigadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em cooperação com
o Centro de Investigação e Estudos Sociais do Instituto Universitário de Lisboa e com o Centro
de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações do Instituto Superior de Economia
e Gestão.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Não obstante a relevância do papel que podem assumir em termos públicos,


quer na disseminação do conhecimento quer no exercício de influência em matéria
de políticas de ciência, é ainda no domínio da dinamização interna dos campos
científicos que as associações têm localizados alguns dos seus principais desafios.
Contrariando o acantonamento de grupos, as sociedades científicas respondem
hoje ao repto de criação de redes ao estimularem a cooperação entre diferentes
agregados representantes de diferentes regiões geográficas ou mesmo diferentes
áreas disciplinares. O reforço de iniciativas de interação entre os associados assim
como a promoção de relacionamentos estratégicos com associações congéneres
estão na agenda das principais sociedades científicas que procuram, por outro
lado, nestas conexões um fator de originalidade e de pertinência.
Na asserção dos seus campos científicos, as associações científicas são, na
opinião de Melissa S. Anderson e Joseph B. Shultz, “expressões da identidade de
disciplinas ou campos”. Nesse contexto, “expressam também perspetivas discipli-
nares sobre normas, padrões e questões éticas” (Anderson & Shultz, 2003, p. 270)
e distinguem-se pelo exercício de uma espécie de meta-ciência. É disso exemplar
o papel que se lhes reconhece na promoção da integridade da investigação e na
dissuasão de condutas desviantes. E é disso também exemplar o papel que delas
se espera na autoavaliação dos seus procedimentos, na problematização dos
paradigmas dominantes e na redefinição dos seus objetos de análise.

Associações científicas no campo da Comunicação

Embora os problemas da comunicação e das linguagens estejam presentes na


reflexão de várias disciplinas há vários séculos, enquanto campo científico as
Ciências da Comunicação contam uma história que se inicia apenas no século XX,
contemporânea do desenvolvimento dos média e do seu impacto na sociedade.
Considerado o fundador do campo das Ciências da Comunicação no contexto ame-
ricano, Wilbur Schramm é um dos investigadores associados à definição desta área
científica, cujos trabalhos permitem situar no final da década de 1940 o estabele-
cimento da Comunicação como campo de estudo cientificamente reconhecido.
É certo que já antes disso se conheciam alguns estudos, como o de Lazarsfeld,
realizado em 1930-1931, sobre os ouvintes de rádio, e que “a tradição do ensino
universitário na área da comunicação [na Alemanha] data de 1916”, sabendo-se
ainda que “em 1926 eram já nove as universidades alemãs (das 23 então existentes)

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ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS

onde existia a área de Ciência dos Jornais (Zeitungswissenschaft) (Fidalgo, 1998,


p. 2). Ainda assim, é no pós-Segunda Guerra Mundial que se situa, de modo mais
ou menos consensual, o início do estudo sistemático da Comunicação, que seria
introduzido nas universidades portuguesas apenas no final da década de 1970
(Martins & Oliveira, 2013).
É precisamente a meio do século XX que aparece também a primeira associa-
ção de impacto neste campo, a atual International Communication Association
(ICA), que surgiu a 1 de janeiro de 1950, na altura como National Society for the
Study of Communication. De acordo com informação disponibilizada no site da
organização, “o aspeto-chave desta nova sociedade era o estudo da comunica-
ção” 5. O mesmo objetivo esteve na base da criação, em 1957, da International
Association for Media and Communication Research (IAMCR), que tem hoje,
como objetivo primeiro “providenciar um fórum onde investigadores académicos
e outros envolvidos na pesquisa e prática dos média e da comunicação possam
apresentar e discutir o seu trabalho, refinar as suas competências críticas e cola-
borar em novos projetos” 6. Criada em 1978, a Associación Latinoamericana de
Investigadores de la Comunicación (ALAIC) surgiu, de acordo com a informação
institucional da organização, “para aglutinar os investigadores latino-americanos,
tentando incluir a América Latina na comunidade mundial de investigadores
das Ciências da Comunicação” 7. De âmbito igualmente transnacional, em 2005,
surge na Europa a European Communication Research and Education Association
(ECREA), que resultou da fusão de duas outras associações, a European Commu-
nication Association e o European Consortium for Communications Research.
Estabelecendo que “o seu enfoque disciplinar incluiria os média, as (tele)comuni-
cações e a investigação informática, incluindo abordagens relevantes das ciências
sociais e humanas” 8, a ECREA secunda as associações de origem americana no
propósito de “providenciar um fórum onde investigadores e outros envolvidos na
investigação em comunicação e informação podem encontrar e trocar informação
e documentação” 9.

5 Ver https://www.icahdq.org/page/History .
6 Ver https://iamcr.org/objectives .
7 Ver http://alaic.org/site/historia-alaic-historia-alaic/ .
8 Ver http://ecrea.eu/about/history .
9 Informação igualmente disponível no site da organização, em http://ecrea.eu/about/history .

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Para além destas que serão as principais associações internacionais do mundo


ocidental com enfoque nas Ciências da Comunicação, a segunda metade do século
XX corresponde também ao aparecimento de dezenas de outras associações de
âmbito nacional e/ou regional. No contexto ibero-americano, têm especial expres-
são associações como a Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplina-
res da Comunicação, fundada em 1977, a Associación Mexicana de Investigadores
de la Comunicación, criada em 1979, a Asociación Boliviana de Investigadores de
la Comunicación, constituída em 1981, e, em Portugal, a Associação Portuguesa
de Ciências da Comunicação (SOPCOM), cuja reunião fundadora se realizou em
1997, 20 anos depois da fundação da sua congénere brasileira 10. Outras associações
posteriores, criadas já no novo milénio compõem nesta região transnacional o
mapa associativo no campo da Comunicação, de que são exemplos a Asociación
de Investigadores Venezolanos de Comunicación (INVECOM) e a Asociación
Española de Investigación en Comunicación (AE-IC). Bem mais modesto é o pano-
rama de associações científicas de Comunicação nos países africanos de expressão
portuguesa, onde se destacam apenas a Associação Cabo-verdiana de Ciências
da Comunicação (MEDIACOM), fundada em 2013, e a Associação Moçambicana
de Ciências da Informação e da Comunicação (ACICOM), mais recente ainda,
criada apenas em 2015.
Para além destas organizações de âmbito nacional, destaca-se ainda a criação
progressiva de federações que reúnem algumas destas associações. No contexto
latino-americano eram já conhecidas a Federación Latinoamericana de Facul-
tades de Comunicación Social (FELAFACS), constituída em 1979 e a Federación
Argentina de Carreras de Comunicación Social (FADECCOS), que se iniciou em
1983. Criaram-se outras, entretanto, como a Federação Lusófona de Ciências
da Comunicação (LUSOCOM), estabelecida em 1998 para reunir as associações
dos países de expressão em língua portuguesa. Também a Federação Brasileira
das Associações Científicas e Académicas de Comunicação (SOCICOM) reúne
desde 2008 associações brasileiras, tendo em 2009 sido criada a Confedera-
ção Ibero-americana de Associações Científicas e Académicas de Comunicação

10 Relativamente ao contexto português, dizem Ana Delicado, Luís Junqueira, Raquel Rego, Cris-
tina Conceição e Inês Pereira que “é a partir dos anos 80 que se dá o verdadeiro arranque no
desenvolvimento científico, com a entrada da ciência na orgânica dos governos (…) e a criação
de programas estáveis de financiamento”, um desenvolvimento “acompanhado pela fundação
crescente de associações científicas” (Delicado, Junqueira, Rego, Conceição, & Pereira, 2011, p. 101)

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ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS

(CONFIBERCOM) que amplia para os países de expressão espanhola a reunião de


associações dedicadas ao campo da Comunicação.
Com perfis muito diversos, todas estas associações partilham, no entanto, o
objetivo de promover o desenvolvimento das Ciências da Comunicação e favorecer
a publicação nos idiomas ibéricos, o Português e o Espanhol. A estas organizações
se deve um grande número de congressos realizados nas últimas décadas, bem
como a criação de relações de cooperação científica entre os diferentes países
da região ibero-americana. Criando solidariedade entre investigadores, estas
associações têm tido também o mérito de favorecer o conhecimento mútuo dos
diferentes contextos de investigação, bem como a realização de pesquisa compa-
rada, uma metodologia que se tornou recorrente, especialmente entre estudantes
que realizam períodos de intercâmbio durante os seus percursos de formação.
Contribuindo para uma disseminação mais alargada da produção científica, o
que as redes de contacto viabilizadas por estas associações também têm fomen-
tado é um melhor conhecimento e circulação de publicações entre os diferentes
países, especialmente no caso de afinidades linguísticas, como é o caso da região
ibero-americana. Com efeito, apesar da partilha de uma língua comum, portugue-
ses e brasileiros não tinham, até há relativamente pouco tempo, hábitos de leitura
mútua. Hoje, para além desse conhecimento, tem-se proporcionado também a
oportunidade cada vez mais frequente de edição de obras em parceria, decorren-
tes de projetos de cooperação ou da iniciativa de investigadores cuja relação se
intensificou nos últimos anos.

Dificuldades e desafios

Apesar do entusiasmo que determina o seu lançamento, as associações cientí-


ficas são, em muitos casos, estruturas que se confrontam com dificuldades que
inviabilizam o cumprimento integral da sua missão. A falta de suporte técnico e
profissional no desenvolvimento das suas ações é a consequência mais evidente
das debilidades económicas experimentadas pelas associações, qualquer que
seja a sua área científica, com especial incidência, talvez, nas áreas das ciências
sociais e humanas, menos atrativas para a angariação de fundos por outras vias
que não apenas a das contribuições dos seus sócios.
Sem estabilidade financeira e com orçamentos reduzidos, as associações
veem-se diante da necessidade de dispensar a contratação de staff de apoio,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vivendo muitas vezes da exclusiva dedicação voluntária dos seus corpos sociais
e associados. Por outro lado, apesar da relevância reconhecida pelos cientistas
em geral ao facto de se pertencer a uma associação, o grau de comprometimento
dos associados é, não raras vezes, pouco expressivo; faltará aos membros das
associações o sentido de militância e de envolvimento político que caracteriza
outras organizações coletivas como os partidos políticos ou os sindicatos.
Concorrendo para uma certa fragilização do sentido de coesão do grupo,
estes fatores repercutem-se, por consequência, na pouca notoriedade e no insu-
ficiente reconhecimento das associações por parte das instituições de gestão e
apoio à ciência, que se traduz, diz Ana Delicado, numa “fraca abertura por parte
das instâncias de decisão a este tipo de participação” (Delicado, 2015, p. 348). Ao
inventariar as razões por que as associações científicas acabam por ter um papel
diminuto em matéria de políticas de ciência, a autora menciona ainda “o facto
de as atividades de aconselhamento nas políticas públicas e lobby serem, pela
sua própria natureza, irregulares ou poderem não ser perspetivadas pelas asso-
ciações como centrais no quadro da sua missão”, bem como “a pulverização das
associações científicas e a ausência de uma federação ou associação agregadora”
(Delicado, 2015, p. 348).
Retardando aquilo que poderiam ser os benefícios políticos decorrentes da
atividade das associações, estas circunstâncias não suprimem, no entanto, rele-
vância ao movimento associativo. No contexto lusófono, por exemplo, mantêm-se
bem expressivos os imperativos de defesa do potencial do Português como língua
de conhecimento, de pensamento e de ciência, estendido no âmbito ibero-ameri-
cano à promoção dos idiomas ibéricos, que correspondem, no conjunto, à segunda
maior província linguística do mundo 11. De acordo com Moisés de Lemos Martins,
“uma língua apenas pode fazer valer a sua força pela informação e pelo conhe-
cimento que veicula” (Martins, 2015, p. 19). Continua o autor, sugerindo que “só
numa língua materna é possível a expressão de sentimentos complexos, como a
expressão artística, a reflexão filosófica e a manifestação espiritual e sentimental,
que não cabem na linguagem simplificada que uma segunda língua pode permitir”
(2015, p. 20). Ainda que seja hoje uma batalha perdida a refutação da hegemonia

11 De acordo com o Alphatrad Portugal – Optilingua Internacional, o Espanhol será a segunda lín-
gua mais falada, com 332 milhões de falantes, aparecendo o Português em sexto lugar, com 170
milhões de falantes. No conjunto, ambos os idiomas são ultrapassados apenas pelo Mandarim,
falado por 885 milhões de pessoas. Ver https://www.alphatrad.pt/50-linguas-mais-faladas-no-
-mundo .

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 244 08/11/2017 13:12:56


ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS

de uma ciência uniformizadora conforme aos padrões anglo-saxónicos, a per-


sistência das associações do mundo de expressão portuguesa e espanhola na
defesa das suas línguas para a transmissão de informação e de conhecimento é,
na Península Ibérica, nos Países Africanos de Língua Portuguesa e na América
Latina, um dos aspetos distintivos das sociedades científicas de Comunicação,
uma área tão sensível aos modos idiossincráticos de expressão.
Coincidentes de um modo geral com os propósitos de todas as organizações
científicas, as associações de Comunicação dos países ibero-americanos con-
correm, pela sua atuação, para a criação da ideia de redes de investigação e de
cooperação. No caderno de encargos têm anotada a necessidade, comum a todas
as organizações congéneres, de promover uma maior ligação às empresas e aos
profissionais, bem como uma maior literacia científica do público em geral, no
horizonte de uma mais ampla abertura à sociedade. É, no entanto, no ideal de
comunidade que se manifesta – ou pode manifestar – a sua marca diferenciadora,
em tudo o que comunidade tem de superação do desejo de estar conectado ou
em rede. Sendo a comunidade a expressão do que há de comum, ela é o lugar da
conjugação de objetivos práticos, mas também da partilha de afetos e de identidade
cultural, de que o próprio adágio da ciência não deveria arredar-se numa área tão
vocacionada para a prática dialógica.

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research integrity and deterring research misconduct. Science and Engineering Ethics,
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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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POLÍTICAS CIENTÍFICAS DE COMUNICAÇÃO
E OS DESAFIOS DA PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
UM BREVE PANORAMA SOBRE MOÇAMBIQUE
Tomás José Jane*
Elias Djuve**
Eulálio Mabuie***

Resumo
Pretendemos com este estudo fazer um levantamento sobre as possibilidades de financia-
mento em políticas científicas de comunicação em Moçambique, olhando para as agências
financiadoras, o quão as mesmas olham para a área das Ciências Sociais, como campo maior
e, em específico a Comunicação, enquanto área prioritária para o investimento e, acima de
tudo, o desenho de políticas que contribuem na difusão da informação e comunicação em
Moçambique. Buscamos também fazer um breve panorama sobre o ensino da Comunicação,
a nível de licenciatura e com maior ênfase para a pós-graduação, como desafio às futuras
pesquisas nesta área de conhecimento, tomando em consideração que, só recentemente,
iniciaram os cursos de licenciatura em Ciências da Comunicação.

Palavras-chave: política cientifica; pós-graduação; comunicação; Moçambique

* Doutorado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo, em 2006, é


Director-Geral e Professor Titular na Escola Superior de Jornalismo, em Moçambique. Investiga
a implementação das rádios comunitárias em Moçambique e a educação em áreas rurais. Entre
as várias publicações que dispõe constam Comunicação Comunitária: uma alavanca para o
desenvolvimento local (2009), O papel das rádios comunitárias na educação e mobilização das
populações para os programas de desenvolvimento local em Moçambique (2004) e A experiência
de Moçambique no uso dos Meios para a educação das comunidades rurais (2004).
E-mail: [email protected].
** Mestre em Comunicação Organizacional, Director Científico-Pedagógico na Escola Superior de
Jornalismo, Moçambique.
E-mail: [email protected].
*** Mestre em Educação e Comunicação, Chefe do Departamento de Pesquisa em Comunicação para
o Desenvolvimento, na Escola Superior de Jornalismo, Moçambique.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Introdução

O ensino superior em Moçambique constitui uma das alavancas da educação


para o desenvolvimento de Moçambique. Nos últimos quinze anos, isto após a
liberalização do sistema de educação, através da Lei n.º 1/93, o ensino superior
tem merecido análises profundas de várias camadas sociais, a fim de verificar
sua contribuição no desenvolvimento da sociedade moçambicana, em geral e das
comunidades locais, em particular. A referida Lei veio abrir espaço nas universi-
dades moçambicanas para a introdução de ensino de Ciências da Comunicação
que, em 1996, teve como precursor o então Instituto Superior Politécnico e Uni-
versitário (ISPU), hoje Universidade Politécnica de Moçambique que, na altura,
introduziu o Curso de Ciências da Comunicação (CC), com áreas de concentração
em Jornalismo, Relações Públicas e Marketing e Publicidade.
A segunda instituição a introduzir programa de Ciências da Comunicação é
a Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, em 2004,
com o curso de Jornalismo. Outras instituições públicas e privadas foram tomando
consciência da necessidade de oferecer oportunidades de formação superior, aos
cidadãos moçambicanos que, com excelência, possam contribuir para o desen-
volvimento de ensino e pesquisa em Ciências da Comunicação no país.
No presente momento, Moçambique possui cerca de 50 instituições de
ensino superior das quais 18 públicas e 31 privadas oferecendo diversos cursos
e especialidades. No âmbito de ensino de Ciências da Comunicação, quatro
instituições são privadas e três, públicas. Duas instituições conferem, para além
do grau de licenciatura, os graus de Mestrado e de Doutoramento em Ciências
da Comunicação.
Recorda-se que o ensino de jornalismo em Moçambique começa em 1980
com a criação, pelo Governo, da Escola de Jornalismo, que tem como uma das suas
atribuições formar jornalistas de níveis básico e médio. Esta instituição formou
centenas de profissionais de Comunicação que, desde então, têm vindo a assegurar
o funcionamento dos órgãos de comunicação social no país.
O primeiro moçambicano a graduar-se ao nível de licenciatura em Comu-
nicação Social, com especialidade em jornalismo, surge em 1986, beneficiando
do acordo de cooperação existente entre Moçambique e Brasil. De lá ao presente
momento, muitos jovens moçambicanos beneficiaram de bolsas de estudo para
formação em Comunicação Social e/ou Ciências da Comunicação, aos níveis de
licenciatura, mestrado e doutoramento, o que nos leva a realizar o presente estudo,

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POLÍTICAS CIENTÍFICAS DE COMUNICAÇÃO E OS DESAFIOS DA PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

visando aferir perspectivas que nos conduzam à promoção do ensino e pesquisa


em Ciências da Comunicação no país.
É a partir deste diapasão que pretendemos, neste estudo, trazer uma reflexão
sobre o ensino e pesquisa em Ciências da Comunicação em Moçambique.

1. Objectivos e Metodologia

Vivemos hoje em uma sociedade de informação, onde há muita disponibilidade


e pouco trato destas informações, que nos são fornecidas, vezes sem conta, pelas
plataformas mediáticas que o ciberespaço oferece. Isso vai colocando viários
desafios aos países em desenvolvimento, como Moçambique, que se debatem
com problemas de acesso a informação pelos cidadãos, com problemas de demo-
cratização da informação e, acima de tudo, com problemas relacionados com a
inclusão digital 1.
Este estudo resulta do trabalho feito por três pesquisadores, como um desafio
para se reflectir em torno da política científica de comunicação em Moçambique,
tendo como finalidade perceber seus contornos, em relação às possibilidades de
maior investimento em cursos de pós-graduação em Moçambique. Tomando
em consideração que existe um número considerável de instituições públicas e
privadas que oferecem cursos de Ciências da Comunicação a nível de licenciatura,
as que oferecem o nível de pós-graduação são consideravelmente insipientes.
Para o presente trabalho, a colecta de informações foi feita em três fases, sendo
que na primeira, foi feito um mapeamento das Instituições de Ensino Superior
(IES), públicas e privadas, que leccionam os cursos de Ciências da Comunicação
e Informação, tanto no nível de graduação como de pós-graduação, conforme
mapa a seguir.

1 Sobre as novas possibilidades para o desenvolvimento humano, para o desenvolvimento social,


cívico e cultural, que se espera das tecnologias da informação e da comunicação, veja-se Luso-
fonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia (Martins, 2015 a), sobretudo o capítulo “Média
Digitais e Lusofonia” (pp. 27-56).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Tabela 1. Instituições do Ensino Superior (IES) moçambicano


que oferecem cursos de Comunicação

Nome da
Província Cursos oferecidos Níveis
instituição
• Jornalismo
Maputo e Escola Superior • Relações Públicas
Licenciatura
Manica de Jornalismo • Publicidade e Marketing
• Biblioteconomia e Documentação
Escola de • Jornalismo
Maputo Comunicações e Licenciatura
• Ciências da Informação
Artes (ECA-UEM)

Instituto Superior • Multimédia


Maputo de Comunicação • Comunicação e Relações Públicas Licenciatura
e Imagem (ISCIM) • Marketing
Instituto Superior • Gestão de Marketing e Relações
Maputo Licenciatura
Monitor (ISM) Públicas
Licenciatura
• Comunicação para o
Mestrado
Desenvolvimento
Doutoramento
• Gestão Estratégica de Licenciatura e
Universidade
Comunicação Corporativa Mestrado
Católica de
Nampula
Moçambique • Gestão de Marketing e Licenciatura e
(UCM) Comunicação Empresarial Mestrado
• Gestão de Publicidade Licenciatura
• Relações Públicas e Comunicação
Licenciatura
Estratégica

Universidade • Ciências da Comunicação Licenciatura


Maputo
Politécnica • Gestão Estratégica de Marketing Mestrado
Maputo UNITIVA • Ciências da Comunicação Licenciatura
Universidade
Maputo • Jornalismo e Estudos Editoriais Mestrado
Pedagógica

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POLÍTICAS CIENTÍFICAS DE COMUNICAÇÃO E OS DESAFIOS DA PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

Na segunda fase, foi feita uma pesquisa em profundidade sobre o perfil dos gra-
duados das IES que leccionam os cursos das Ciências da Comunicação, para aferir o
tipo de enquadramento, assim como as formações pós-licenciatura. Isto permitiu, de
certa forma, que obtivéssemos um dado importante, que mostra que mais da metade
dos graduados não fizeram as suas pós-graduações em Ciências da Comunicação,
por várias razões, que apontaremos em outra secção do presente trabalho.
A terceira fase consiste no segundo mapeamento, que é dedicado às agências
de fomento de pesquisa, que canalizam suas acções para a área das Ciências da
Comunicação. Aqui, em particular, fez-se um levantamento das agências exis-
tentes em Moçambique, desde as governamentais, entre outras, com o intuito
de tentar perceber que lugar se dá à pesquisa em Comunicação, que editais são
abertos para esta área, e se existem temáticas que ocupam lugar de relevo.

2. Breve panorama do ensino superior em Comunicação,


em Moçambique

Pretendemos, num primeiro momento, situar a génese do ensino de cursos liga-


dos às Ciências da Comunicação, em Moçambique. A emergência desta área, no
ensino superior moçambicano, é bem mais recente, sendo posterior ao período
do monopartidarismo vivido no período pós-colonial. Diante disso, não é menos
verdade considerar que a Constituição de 1990, com a abertura do mercado e o
advento do multipartidarismo, propiciaram a emergência das Ciências da Comu-
nicação, no ensino superior moçambicano.
No âmbito das IES públicas, só em 2004 é que nasce a primeira Instituição, a
Escola de Comunicações e Artes, filiada à Universidade Eduardo Mondlane, que
logo introduz formações em Comunicação. Quatro anos depois, em 2008, surge a
segunda IES, a Escola Superior de Jornalismo, que oferece cursos nesta área. Estas
duas instituições, embora uma delas esteja vinculada à mais antiga Universidade
do país, gozando de alguns privilégios, enfrentam ambas dificuldades, que vão
desde instalações próprias à falta de docentes qualificados e formados em áreas
específicas das Ciências da Comunicação.
Nas IES privadas, a Instituição que introduziu cursos de Ciências da Comu-
nicação foi a Universidade Politécnica, em 1996. Tendo em conta estes dados,
pode afirmar-se que a “A Politécnica” foi a pioneira no ensino em Ciências da
Comunicação, em Moçambique.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Com a massificação de instituições do ensino superior no país, várias insti-


tuições têm-se interessando pela área de Ciências da Comunicação, sobretudo em
especialidades de Publicidade e Marketing. O curso de Jornalismo conhece uma
expansão bem mais reduzida, em relação a outros cursos ligados a esta área de saber.
Actualmente, os cursos de Ciências da Comunicação estão presentes em
apenas três IES públicas. Destas três, duas estão leccionando os graus de Licen-
ciatura (Escola Superior de Jornalismo e Escola de Comunicações e Artes/UEM);
a terceira instituição, a Universidade Pedagógica, está leccionando somente o
nível de Mestrado.
Para além destas instituições, esta área está presente em menos de uma dezena
de IES privadas, nomeadamente: Universidade Politécnica (APolitécnica), Insti-
tuto Superior de Comunicação e Imagem de Moçambique (ISCIM), Universidade
Católica de Moçambique (UCM), Universidade Wutivi (UniTiva).
Os níveis de pós-graduação em Ciências da Comunicação estão sendo ofe-
recidos, até ao presente momento, por duas IES: a Universidade Pedagógica e a
Universidade Católica de Moçambique. No concernente ao nível de doutorado,
esta última iniciou-o no ano de 2015.

3. Pesquisa em Ciências de Comunicação

Não há debates que não reconheçam que qualquer ciência, para que possa conso-
lidar-se e ganhar seu espaço na academia, bem como nas sociedades, não precise
do envolvimento de académicos que militem nessa área, com vista a desenvolver
pesquisas científicas. É a actividade de pesquisa científica que aguça o raciocínio
do estudante universitário e que torna o trabalho de ensino mais próximo daquilo
que a sociedade dele possa esperar.
A evolução industrial, como um dos marcos históricos das sociedades moder-
nas, contou com actividades de pesquisas que puderam impulsionar invenções
humanas e demonstram a utilidade dessas invenções para a vida no planeta.
Por outro lado, é de grande importância o reconhecimento de que a activi-
dade académica, nas instituições do ensino superior, não se limita ao trabalho
de docência, mas sim, ela está e deve estar enquadrada na tríplice dimensão
“ensino-pesquisa-extensão”. Só com o reconhecimento da indissociabilidade e
a retroalimentação desses três pilares é que se pode ter aquilo que a sociedade
espera das instituições de ensino superior. A necessidade da manutenção e busca

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POLÍTICAS CIENTÍFICAS DE COMUNICAÇÃO E OS DESAFIOS DA PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

constante desta tríplice dimensão da actividade académica é consubstanciada


pelas palavras do autor guineense, Carlos Cardoso (2012, p. 131), segundo as quais:

Sem negar a possibilidade de produção de conhecimento fora do espaço universitário


e académico, as universidades são o lugar privilegiado de realização da investigação
científica de uma forma geral, e das Ciências Sociais em particular. Através da pro-
dução de pessoal de alto nível, através da geração de conhecimentos pela pesquisa
e através do fornecimento de serviços à comunidade, as universidades constituem
instrumentos-chave para a promoção das ciências, da tecnologia e da cultura.

Estas palavras encontram eco nas entrelinhas referidas por Boaventura Sousa
Santos (2004, p. 17), ao explicar que desde sempre, as formas privilegiadas de
conhecimento, quaisquer que elas tenham sido, num dado momento histórico
e numa dada sociedade, foram objecto de debate sobre a sua natureza, as suas
potencialidades, os seus limites e o seu contributo para o bem-estar da sociedade.
E as Ciências da Comunicação, em Moçambique, não se podem furtar a esse
debate, sobre as suas contribuições para o bem-estar e a consolidação de um
Estado democrático, que é e pretende ser.
Embora a academia e o mercado sejam espaços distintos – a primeira, enquanto
produtora de conhecimento; e a segunda, como aplicadora de conhecimento pro-
duzido perla primeira –, as duas instituições devem coexistir e interagir, quando se
pensa num conhecimento que não vira as costas às necessidades das sociedades
nas quais esteja inserido. E é com base nas pesquisas, básicas ou aplicadas, que
se pode pensar a aplicabilidade do conhecimento produzido nas academias e o
fornecimento de colaboradores capacitados para o mercado do trabalho.
A área de pesquisa em Ciências da Comunicação, em Moçambique, é bem
mais recente que a emergência das instituições de ensino superior, que oferecem
cursos nesta área de conhecimento. Mais ainda, são poucas as IES, que dispõem
de uma plataforma clara e de unidades orgânicas internas, ligadas à pesquisa.
Referimo-nos à diminuta existência de departamentos e de centros de pesquisa
em Ciências da Comunicação. Das três instituições públicas do ensino superior
moçambicano, que oferecem cursos de graduação e pós-graduação na área da
Comunicação, apenas uma, concretamente a ESJ, é que tem departamentos de
pesquisa constituídos.
Olhando para as IES privadas, apenas a Universidade Católica de Moçam-
bique (UCM) é que dispõe de um centro de pesquisa, voltado para as Ciências

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

da Comunicação. Porém, não se pode ignorar que a comunidade académica


dessas instituições não esteja engajada em pesquisas isoladas em Ciências da
Comunicação.
A inexistência de departamentos ou centros de pesquisa em Ciências da
Comunicação, em muitas das IES moçambicanas, tanto públicas como privadas,
revela a ausência de uma política científica clara, no campo das políticas públicas.
Com efeito, dada esta inexistência, não é possível criar espaços de produção cien-
tífica, nem abrir espaço para se pensar em agências de financiamento, nacionais
e estrangeiras, para pesquisas científicas.
Fora das academias, na última década, assistiu-se à emergência de centros
de pesquisa em Ciências da Comunicação autónomos, como são do Centro de
Estudos Interdisciplinares de Comunicação (CEC) e a Organização Sekelekani.
O Centro de Estudos Interdisciplinares de Comunicação (CEC), criado em
2010, em Moçambique, tem os seguintes objectivos: realizar estudos nas diversas
áreas das ciências da comunicação na sua interacção com os diversos sectores
da sociedade; desenvolver reflexões acerca do papel da Comunicação, especi-
ficamente dos media, na sociedade moçambicana; promover do intercâmbio
entre os órgãos de comunicação, as instituições de formação e os profissionais de
comunicação, de modo a garantir uma maior contribuição dos seus profissionais
para o desenvolvimento humano, cultural e científico do país.
A IBIS Moçambique é o principal parceiro financiador do Centro de Estu-
dos Interdisciplinares de Comunicação (CEC). Na área de pesquisa, conta com
o apoio da unidade de investigação portuguesa, Centro de Investigação Media e
Jornalismo (CIMJ).
A Sekelekani é uma instituição moçambicana fundada em 2012. Tem como
objectivo servir de plataforma de promoção da comunicação para o desenvolvi-
mento. Orientada para enaltecer o diálogo entre os decisores de políticas públi-
cas e as partes interessadas, nomeadamente as comunidades destinatárias do
desenvolvimento, a Sekelekani foi fundada por especialistas moçambicanos de
Comunicação e desenvolvimento, independentes, com larga experiência profis-
sional de comunicação, pesquisa, documentação, advocacia e lóbi, acumulada
ao longo de vários anos, na colaboração com diferentes instituições nacionais,
regionais e internacionais.
Como se pode depreender, há uma quase inexistência de centros de pesquisa
voltados para o campo de Ciências da Comunicação. Aliado a isso, os parcos
recursos financeiros que são alocados às instituições do ensino superior, em

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POLÍTICAS CIENTÍFICAS DE COMUNICAÇÃO E OS DESAFIOS DA PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

Moçambique, raras vezes beneficiam as Ciências Sociais e Humanas, em particular


as Ciências da Comunicação.
A título de exemplo, o Plano Estratégico do Ensino Superior em Moçambique
2012-2020 (pp. 63-64), refere, na definição de prioridades, que, “tendo em conta a
situação actual do país e os desafios que se colocam para o seu desenvolvimento
sustentável”, são propostas, como áreas estratégicas, a serem perseguidas pelas
diferentes IES, as seguintes, por ordem alfabética: “Ciências Agrárias; Ciências
Biológicas; Ciências Biomédicas; Ciências Naturais; Ciências Tecnológicas; Enge-
nharias; Áreas transversais; Ambiente; Biotecnologia; Ciências Sociais e Humanas;
Educação; Gestão; Línguas; Tecnologias de Informação e Comunicação”.
Vistas assim estas áreas, fica a impressão de que as Ciências da Comunicação
não figuram como prioritárias para o “desenvolvimento sustentável” moçambi-
cano, isto porque, diferentemente de áreas como Educação, Gestão e Tecnologias
de Informação e Comunicação, a Comunicação é vista como uma área das Ciências
Sociais e Humanas, ou, ainda, como parte das ditas Ciências transversais 2.

4. Desafios do ensino e pesquisa em comunicação em Moçambique:


graduação e pós-graduação

Os desafios que se colocam às IES, que agregam cursos de Comunicação, come-


çam logo na fraca qualidade de ensino que caracteriza o estágio actual do ensino
superior em Moçambique. Esta fraca qualidade acentua-se mais no campo de
pesquisa e extensão, enquanto pilares cruciais das IES.
Embora a questão inerente ao apetrechamento de infra-estruturas das IES
esteja plasmada no referido plano estratégico do ensino superior 3, as IES públi-
cas, que oferecem cursos de Ciências da Comunicação ao nível de licenciatura,

2 Este desanimador panorama moçambicano, relativo às Ciências da Comunicação, não é muito


distinto do panorama português, para darmos um exemplo. Vejam-se, a este propósito, os seguintes
trabalhos: “A política científica e tecnológica em Portugal e as Ciências da Comunicação: priorida-
des e indecisões” (Martins, 2012); “A liberdade académica e os seus inimigos” (Martins, 2015 b); “Os
Estudos Culturais como novas Humanidades” (Martins, 2015 c); e “Lusocom: estudo das políticas
de comunicação e discursos no espaço lusófono” (Martins, Sousa & Cabecinhas, 2007).
3 Todas as IES a serem criadas devem reunir condições que garantam padrões mínimos de qualidade
de ensino. A garantia de qualidade passa necessariamente por infra-estruturas adequadas para as
actividades académicas. “Este é um desafio importante, porque o país estará a formar graduados
com competências e habilidades não só para dar resposta às necessidades de desenvolvimento

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

particularmente ESJ e ECA, continuam a ressentir-se da falta de infra-estruturas


próprias, onde possam funcionar condignamente, recorrendo a espaços perten-
centes a outras instituições e/ou alugando a privados, o que acarreta avultados
custos para as instituições.
Os graus de pós-graduação, que são eminentemente de pesquisas científicas,
herdam os problemas vividos nos graus antecedentes. Há uma maior carência
no que concerne à formação de docentes e pesquisadores em Comunicação no
país. A pós-graduação em Ciências da Comunicação, nas instituições onde já foi
criada, é assegurada por uma maioria de docentes e pesquisadores formados
no estrangeiro. A maioria destes tem a missão de assegurar a leccionação, em
mais de uma instituição, devido à falta de corpo docente nacional, com níveis de
mestrado e doutorado, nessa área de saber. Portanto, constitui, sim, um grande
desafio, formar, cada vez mais, docentes e pesquisadores em níveis de mestrado
e doutoramento. Isso porque acreditamos que só com a formação desses profis-
sionais é que se pode alcançar a tão almejada qualidade de ensino de Ciências da
Comunicação nas instituições moçambicanas.
Diante destes desafios que nos são colocados, e movidos pela vontade de
vencer, continuaremos a bater-nos por fornecer à sociedade moçambicana pro-
fissionais de comunicação e informação capazes de disponibilizar conteúdos
informativos aos cidadãos, com responsabilidade.
Embora o Plano Estratégico, referido nas linhas anteriores, inclua a formação
de docentes universitários em graus de mestrado e doutorado, falta, ainda, uma
política efectiva e clara, conducente à materialização deste pressuposto básico,
para a consolidação do ensino superior moçambicano, incluindo as Ciências da
Comunicação.
Com um certo número de mestres e doutores, que fizeram as suas formações
de pós-graduação fora do país, somos de acreditar que existem condições sufi-
cientes para a instalação de programas de pós-graduação em Ciências da Comu-
nicação, com capacidades técnicas e humanas, que possam conduzir o ensino e
aprendizagem a uma qualidade desejável.

socioeconómico, mas também para criar condições para a internacionalização e integração


regional efectivas” (Plano Estratégico do Ensino Superior 2012-2020, p. 47).

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POLÍTICAS CIENTÍFICAS DE COMUNICAÇÃO E OS DESAFIOS DA PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

Referências bibliográficas

Cardoso, C. (2012). Os desafios da pesquisa em Ciências Sociais e o papel das organi-


zações académicas regionais em África. In T. C. Silva; P. B. Coelho & A. N. de Souto
(Orgs.), Como fazer Ciências Sociais e Humanas em África: Questões Epistemológicas,
Metodológicas, Teóricas e Politicas (pp. 301-323). Senegal: CLASCSO.
Martins, M. L. (2012). A política científica e tecnológica em Portugal e as Ciências da
Comunicação: prioridades e indecisões. In M. Kunsch & J. M. Melo (Org.). Comunicação
Ibero-americana: sistemas midiáticos, diversidade cultural, pesquisa e pós-graduação
(pp. 331-345). São Paulo: Confibercom & Escola de Comunicação e Artes da Universi-
dade de São Paulo. Retirado de: http://hdl.handle.net/1822/23931
Martins, M. L. (Org.) (2015 a). Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e Travessia. Fama-
licão: Húmus. Retirado de: http://hdl.handle.net/1822/39693
Martins, M. L. (2015 b). A liberdade académica e os seus inimigos. Comunicação e Socie-
dade, n. 27 (pp. 405-420). Braga, CECS, Universidade do Minho. Retirado de: http://
hdl.handle.net/1822/36695
Martins, M. L. (2015 c). Os Estudos Culturais como novas Humanidades. Revista Lusófona
de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies. Vol. 3 (1), pp. 341-361.
Retirado de: http://hdl.handle.net/1822/40655
Martins, M. L.; Sousa, H. & Cabecinhas, R. (Eds.) (2007). Lusocom: estudo das políticas
de comunicação e discursos no espaço lusófono. In Ledo, M. (Org.). Comunicación
Local no Espazo Lusófono (pp. 301-310). Santiago de Compostela: Agacom. http://hdl.
handle.net/1822/24127
Minayo, M. C. (2002). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes.
Ministério da Educação (2012). Plano Estratégico 2012-2020. Maputo: Imprensa
Universitária.
Santos, B. S. (2004). A universidade no século XXI. São Paulo: Cortez.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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TERCEIRA PARTE
LÍNGUA, GLOBALIZAÇÃO E
INTERCULTURALDADE

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AS LÍNGUAS FRANCAS EM CIÊNCIA
E A QUESTÃO DOS PARADIGMAS
Paulo Serra*

Resumo
Tal como outrora aconteceu com o latim e a escolástica, a afirmação do inglês como língua
franca representa, hoje, a afirmação de um certo paradigma de ciência – um paradigma
que Monbiot (2011) qualifica como de “monopólio de conhecimento” e “parasitismo
económico”. Visando interrogar o atual império do inglês como língua franca, este
artigo propõe-se os seguintes objetivos: i) fazer uma arqueologia mínima da história e
do conceito de “língua franca”; ii) caracterizar o paradigma contemporâneo que tem o
inglês como língua franca; iii) discutir as principais consequências epistémicas desse
paradigma.

Palavras-chave: ciência; língua franca; paradigmas; publicação

* Professor Catedrático na Universidade da Beira Interior (UBI), onde se doutorou em Ciências da


Comunicação, em 2005. Atual presidente da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação
(Sopcom), dirige, também, o LabCom.IFP da UBI. Estuda, entre outros assuntos, a participação
cívica, proporcionada pelos média digitais, a retórica e a argumentação, e a interseção entre a
comunicação e a política. É autor dos livros A Informação como Utopia (1998), Informação e
Sentido (2003) e Manual de Teoria da Comunicação (2008). É coautor do livro Informação e Per-
suasão na Web (2009) e coorganizador de várias obras, a última das quais Political Participation
and Web 2.0 (2014).
Email: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Introdução

No prefácio da sua obra How to write and publish a scientific paper, escreve
Robert Day:

O objetivo da investigação científica é a publicação. Os cientistas, desde que começam


como estudantes de pós-graduação, não são avaliados, principalmente, nem pela sua
destreza nas manipulações laboratoriais, nem pelo seu conhecimento inato de temas
científicos amplos ou estreitos, nem certamente pela sua inteligência ou pelo seu
encanto; eles são avaliados, e tornam-se conhecidos (ou permanecem desconhecidos),
pelas suas publicações (Day, 1998, p. ix) 1.

Estas afirmações de Day podem causar estranheza pelo facto de parecerem


centrar o objetivo da investigação científica na publicação – trocando, assim, os fins
pelos meios. No entanto, se descontarmos o tom hiperbólico do autor, não deixa
de ser verdade que a publicidade – no sentido de tornar público – sempre foi uma
característica essencial da ciência. Só existe aquilo que se publica – e aquilo que
se publica urbi et orbi ou, pelo menos, para o maior número de pessoas possível.
O ideal seria, portanto, que a língua de publicação científica fosse uma língua
universal.
A impossibilidade de factu de construir uma tal língua universal, artificial,
foi devidamente sublinhada por Descartes, na sua célebre carta a Mersenne, de
20 de novembro de 1629 – na qual se conclui, a propósito do projeto de autor
desconhecido, que a carta discute, que “seria mais fácil fazer com que todos os
homens concordassem em aprender a língua Latina ou qualquer outra das que
estão em uso do que esta sua língua [artificial]” (Descartes, 1972, p. 79).
A impossibilidade prática de uma língua universal/artificial poderá ser, assim,
remediada pela possibilidade daquilo a que habitualmente se chama uma “língua
franca”. Nesta matéria, podemos distinguir três grandes períodos (e situações) na
história da ciência ocidental: um período em que o latim impera como linga franca
(do século I a.C. ao século XVII); um período de multiplicação de línguas francas
(do século XVIII a meados do século XX); um período de domínio do inglês (a
partir de meados do século XX e até hoje). O domínio do inglês é acompanhado

1 A tradução deste e de outros trechos de obras estrangeiras, citadas neste artigo, para língua
portuguesa, é da responsabilidade do autor.

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AS LÍNGUAS FRANCAS EM CIÊNCIA E A QUESTÃO DOS PARADIGMAS

– e reforçado – quer pela institucionalização do IMRaD como modelo do artigo


científico, quer pela criação dos sistemas de indexação dos artigos científicos por
Garfield e pelo seu ISI. No seu conjunto, estes elementos constituem aquilo que
aqui designamos como “paradigma dominante” – dando ao conceito kuhniano de
paradigma um sentido um pouco mais amplo que o autor (talvez “superparadigma”
fosse um termo preferível). Face a esse paradigma, as posições oscilam entre a
aceitação, pura e simples, a recusa, o compromisso, ou mesmo o anúncio do fim.

As línguas francas e o império do latim

A expressão “língua franca”, que acabou por generalizar-se, significava original-


mente o pidgin italiano, utilizado no Mediterrâneo oriental, na primeira metade
do 2º milénio da nossa era, nos contactos dos gregos e turcos com os franceses e
italianos, que eram conhecidos no seu conjunto como “francos”. Os gregos bizanti-
nos chamavam a essa língua phrángika e os ocidentais lingua franca (Ostler, 2010).
Quanto à sua definição concetual, as “línguas francas” são línguas de larga
escala, utilizadas internacionalmente (Ostler, 2010). Uma língua franca também
pode ser definida por contraposição a uma “língua materna” ou “vernacular”:
enquanto esta última se aprende no contexto familiar, de forma mais ou menos
inconsciente, a primeira aprende-se no contexto de uma organização que a usa, de
forma consciente e deliberada; é uma língua “de contacto”, exterior à comunidade
em que se nasceu e se foi criado (Ostler, 2010).
São vários os exemplos de línguas francas, de grande influência, que existiram
ao longo da história: o egípcio (3000 a.C.-500 a.C.); o grego e o sânscrito (300 a.C.-
1200 d.C.); o latim (100 a.C.-1600 d.C.); o persa (1000-1800 d.C.) (Ostler, 2010).
Quanto ao “pidgin”, mencionado atrás, ele é uma língua franca aprendida
de forma incompleta pelos seus falantes, e que mistura elementos da língua
aprendida com outros, provenientes, nomeadamente, da própria língua materna.
Como os pidgins mais familiares estão ligados ao comércio, compreende-se que
a etimologia da palavra pidgin corresponda à pronúncia da palavra chinesa que
significa “negócio” (Ostler, 2010).
No que se refere especificamente à ciência, o latim foi a sua língua franca
durante cerca de dezoito séculos, entre o século I a.C. e o século XVII – século
no final do qual, em Inglaterra, Newton publica os seus Philosophiae naturalis
principia mathematica (1687).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Era em latim que se ensinava nas universidades europeias, que emergiram


nos séculos XII e XIII. Foi para latim que foram traduzidos os livros dos grandes
mestres Gregos, como Platão ou Aristóteles. Foi em latim que foram criadas as
obras de mestres medievais, como Agostinho ou Tomás de Aquino. Foi ainda em
latim que escreveram os mestres renascentistas.
Quando no século XV foi inventada a imprensa, e os livros latinos começaram
a ser impressos, o latim parecia ter todas as condições para florescer ainda mais
como língua franca da ciência. No entanto, paradoxalmente, essa sua função não
duraria mais do que dois escassos séculos.
De acordo com Neil Postman (1988), é possível fazer uma analogia entre o que
aconteceu com a publicação da ciência em vernáculos e aquilo que dantes tinha
acontecido com a impressão da Bíblia nesses mesmos vernáculos: “[...] a impressão
(printing) da Bíblia em línguas vernáculas introduziu a impressão (impression)
de que Deus era um inglês, um alemão ou um francês – quer dizer, a imprensa
reduziu Deus às dimensões de um potentado local” 2.
Para este desvanecimento do latim como língua franca, podem ser apontadas
várias razões, das quais duas parecem ser as principais. Em primeiro lugar, o
facto de os vernáculos – nomeadamente o inglês, o francês e o alemão – for-
necerem aos impressores de livros um mercado incomparavelmente maior do
que o constituído pelas elites europeias que dominavam o latim. Uma segunda
razão, quiçá mais importante, foi o facto de os nacionalismos europeus verem
na sua língua, e na sua literatura, uma forma de se afirmarem politicamente
(Ostler, 2010).
Ao mesmo tempo que o latim declina, é o francês que emerge como língua
franca das elites europeias (e não só) na ciência, na cultura e na política, no
decurso dos séculos XVII e XVIII – uma situação que se vai manter até aos anos
1920. Cerca de 1937, o francês perde para o inglês o estatuto de língua estrangeira
mais ensinada nas escolas europeias.
No entanto, o latim ainda vai continuar como língua da ciência até pelo menos
ao final do século XVIII – e, nalguns casos notáveis, mesmo depois disso. Assim,
no século XIX, na Alemanha, o matemático Carl Gauss continua a publicar em
latim – por exemplo as Disquisitiones Arithmeticae, em 1801, ou a Theorematis
arithmetici demonstratio nova, em 1808. Já no século XX, em Inglaterra, Alfred

2 Comunicação “Five things we need to know about technological change”, apresentada a 28 de


março de 1998, em Denver, Colorado. Retirado de http://www.cs.ucdavis.edu/~rogaway/clas-
ses/188/materials/postman.pdf.

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AS LÍNGUAS FRANCAS EM CIÊNCIA E A QUESTÃO DOS PARADIGMAS

North Whitehead e Bertrand Russell publicaram os três volumes dos seus Principia
mathematica (1910, 1912 e 1913).
Ainda no século XX, o matemático italiano Giuseppe Peano, exasperado com
o facto de não ter percebido a carta de um seu colega japonês, subscreve em 1903
a proposta de criação de uma língua universal (artificial), baseada no latim, a que
chamou “Latino sine flexione”, e que mais tarde veio a ser chamada “Interlíngua”
e, ainda mais tarde, “Europeano” (Ostler, 2007). No entanto, e precisamente pelas
razões já antevistas por Descartes, na sua carta de 1629, tal projeto de língua
artificial universal acabou por não vingar.

O império do inglês

Nos séculos XVIII e XIX, e no século XX, pelo menos até finais da I Guerra Mun-
dial, são o francês, o inglês e o alemão que são utilizados como “línguas francas”
da ciência. Assim, aquilo a que se costuma chamar a “ciência moderna” é, no
essencial, produzido não sob o monopólio de uma língua franca, mas sob o signo
da pluralidade linguística, traduzida na coexistência de várias línguas francas –
embora umas o fossem mais do que outras, em determinados períodos.
Se o francês – com a Encyclopédie, o Iluminismo, a Revolução Francesa e o
Império – e o inglês são predominantes no século XVIII, já o alemão afirma-se
sobretudo durante o século XIX, com a formação do império prussiano, em 1871,
e a criação do sistema universitário humboldtiano (a Universidade de Berlim foi
criada em 1810 por Humboldt). Como refere Ostler (2010, §27.18) 3,

Até 1914, as revistas científicas alemãs forneceram os serviços de resumo dotados


de autoridade em biologia e medicina, tornando o alemão a principal interlíngua da
investigação internacional. Os japoneses, em particular, tendiam a escolher o alemão
como a sua língua franca para publicação científica, e era frequente que os artigos em
japonês ou em russo aparecessem com resumos em alemão.

Na última década do século XIX, as percentagens de trabalhos publicados


nas três principais línguas de publicação científica estavam mais ou menos

3 Utilizamos a versão do livro em epub, pelo que se indica o número do parágrafo em vez do número
da página; o programa de leitura é o Calibre, versão 64 bits.

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equilibradas, com o inglês a representar 35%, o francês 28% e o alemão 23%. E,


ao contrário do que aconteceu com o francês, o alemão subiu nas duas primeiras
décadas do século XX – até à sua queda abrupta depois dessa data (Ostler, 2010).
Esta queda do alemão terá, segundo Ostler (2010), três causas fundamen-
tais: o sentimento antialemão, que emerge nos mundos anglófono e francófono,
durante a I Guerra Mundial; a perseguição movida pelo nazismo aos judeus, que
constituíam uma importante parte dos cientistas alemães, e dos quais muitos
emigraram para países anglófonos, nomeadamente os EUA; o poder económico,
político e militar dos EUA, no pós-II Guerra Mundial.
Esta queda abrupta do alemão, acompanhada da queda mais gradual do
francês, que já vinha detrás, coincide com a ascensão do inglês, que se verifica
claramente, a partir da II Guerra Mundial – e de um modo tal que, já em 1967,
Eugene Garfield, o fundador do Institute for Scientific Information (ISI), cons-
tatava o facto de o inglês se ter tomado a linguagem internacional da publicação
científica (Garfield, 1967). E quem diz publicação científica diz, segundo Garfield
(e não só), publicação de artigos em revistas científicas.

As revistas e o artigo científico

As duas primeiras revistas científicas, que surgem ambas em 1665, são também
ambas editadas em vernáculo: o Journal des Sçavans, em francês; e as Philosophical
Transactions, em inglês (Banks, 2009; Banks, 2010).
Com o surgimento das revistas científicas, os livros e as cartas, que entre os
séculos XV e XVII, tinham sido as formas predominantes de publicação e comu-
nicação científicas, vão progressivamente dar lugar ao artigo científico, durante
os séculos XVIII e XIX (Garfield, 1980; Garfield, 1992).
Ao longo desse período, e sobretudo a partir dos finais do século XIX, o artigo
científico vai adquirindo a estrutura que viria a cristalizar, já no pós-II Guerra
Mundial, no modelo chamado IMRaD – Introduction, Methods, Results, and Dis-
cussion (Day, 1998, pp. 6-7). De acordo com a explicação de Day,

A lógica do IMRaD pode ser definida na forma de questões: Que questão (problema)
foi estudada? A resposta é a Introdução. Como foi estudado o problema? A resposta
são os Métodos. Quais foram as descobertas? A resposta são os Resultados. O que
significam estas descobertas? A resposta é a Discussão (Day, 1998, p. 7).

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Baseando-se no exame de uma amostra de 1297 artigos originais, publicados


entre 1935 e 1985, nas revistas médicas British Medical Journal, Journal of the
American Medical Association (JAMA), The Lancet e New England Journal of
Medicine, Sollacci e Pereira (2004, pp. 365-366) concluem que a percentagem de
artigos que apresenta a estrutura IMRaD vai crescendo, de forma exponencial,
ao longo desses cinquenta anos: em 1935, é de 0%; em 1950, ultrapassa os 10%;
em 1975, ultrapassa os 80%; é de 100% (adoção completa do modelo) no New
England Journal of Medicine, em 1975, no British Medical Journal, em 1980, e no
JAMA e no The Lancet, em 1985.
Assim, a adoção do IMRaD é coetânea da adoção do inglês como língua de
ciência, verificando-se ambas no pós-II Guerra Mundial.
Esta normalização da publicação científica terá a ver, não apenas com as
exigências dos editores e revisores das revistas científicas, mas também, e por
causa disso, com as exigências de indexação dessas mesmas revistas (Day, 1998,
p. 7). Convém lembrar, a este respeito, que o Institute for Scientific Information
(ISI) foi criado por Eugene Garfield em 1960, e que o Science Citation Index (SCI)
foi lançado em 1963, colocando a ênfase em elementos do artigo como o autor, o
título, o resumo e as referências – tudo, obviamente, em inglês.
É certo que a adoção do IMRaD não se fez sem resistências. Assim, logo
em 1964, o prémio Nobel de Medicina, Peter Medawar, perguntava “O artigo
científico é uma fraude?”. A esta pergunta o autor respondia afirmativamente,
argumentando que “o artigo científico é uma fraude, no sentido em que fornece
uma narrativa totalmente enganadora acerca do processo de pensamento envol-
vido nas descobertas científicas” (Medawar, 1964, p. 43). O que o autor recusa,
colocando-se numa perspetiva popperiana, é a conceção indutiva de ciência,
subjacente ao artigo científico de estrutura IMRaD, que passa dos resultados à
discussão – quando o que a ciência implica é, em primeiro lugar, um processo de
discussão de resultados, já conhecidos, e de levantamento de novas hipóteses, que
podem levar a (novos) resultados. Assim, o processo de descoberta científica, tal
como vivida pelo cientista, é exatamente o inverso do da exposição que aparece
plasmada na estrutura do artigo científico. Daí a “fraude”.
No entanto, resistências como a de Medawar foram minoritárias, e não conse-
guiram travar o movimento de generalização do IMRaD. Até porque, de acordo com
a justificação de Day (Day, 1975, p. 33), a questão da escrita de um artigo científico
não é uma questão de escrita propiamente dita, de estilo, mas de organização:
“Um artigo científico não é literatura. O preparador de um artigo científico não

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é realmente um autor”. Assim sendo, o cozinhado do artigo é quase automático:


“De facto, eu vou ao ponto de dizer que, se os ingredientes forem organizados de
forma apropriada, o artigo quase que se escreverá a si próprio”. No limite, con-
cluímos nós, os artigos até poderão ser produzidos por programas informáticos,
especialmente desenhados para o efeito, e que sejam alimentados com os dados
adequados – como o ilustra, ainda que sob a forma de farsa, o programa SCIgen 4
(Ferreira, 2014).

Questionar o paradigma dominante

Se é certo que ao erigir o latim como língua franca, os antigos e os medievais deram
à ciência uma certa universalidade – os sábios de cada país podiam ensinar e ser
lidos em qualquer outro país –, não é menos certo que ele excluía todos os que
não dominavam essa língua, e se exprimiam nos diversos vernáculos (a maioria).
Na realidade, mesmo entre os sábios, o latim não era a língua franca da ciência,
mas a língua de um certo tipo de ciência: a escolástica. Compreende-se, assim, que
tenha sido em conflito com o latim, e em nome dos vernáculos, que alguns dos
principais criadores da ciência moderna, como foi o caso de Galileu ou Descartes,
orientaram a sua publicação.
Talvez a passagem em que se revelam de forma mais clara as razões desse
conflito dos sábios modernos com o latim, enquanto língua franca de um certo
tipo de ciência, seja a seguinte, do Discurso do Método (1637):

E se escrevo em francês, que é a língua do meu país, em vez de latim, que é a dos
meus preceptores, é porque espero que aqueles que não se servem senão da sua pura
razão natural ajuizarão melhor acerca das minhas opiniões do que aqueles que não
acreditam senão nos livros antigos. E no que se refere àqueles que juntam o bom senso
com o estudo, os únicos que desejo como meus juízes, eles não serão tão parciais em
relação ao latim, que recusem entender as minhas razões, pelo facto de eu as explicar
em língua vulgar (Descartes, 1980, p. 59).

Por razões semelhantes, Galileu publica em italiano o seu Dialogo sopra i due
massimi sistemi (1632), que é traduzido para o latim apenas em 1635 (Ostler, 2007).

4 Ver http://pdos.csail.mit.edu/scigen.

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O que a posição de Descartes e Galileu tem de interessante é que eles ambos


mostram que uma língua franca – o latim – não tem apenas vantagens, mas tam-
bém apresenta uma desvantagem essencial: a de que é a língua franca de um certo
“paradigma” (Kuhn, 1996) 5, que tende a excluir todos os outros, nomeadamente
no que se refere à visibilidade ou “impacto” da publicação científica; e, ainda, que
tal exclusão se deve menos a razões epistémicas que a razões políticas e culturais
– de tal modo que a luta por uma nova ciência implica, ao mesmo tempo, a luta
por uma nova política e uma nova cultura.
O paradigma de ciência que hoje se encontra vigente pode ser resumido nas
teses seguintes:

1. Ciência é o que é publicado em inglês;


2. Ciência é o que é publicado, sob a forma de artigos, em revistas científicas;
3. Ciência é o que é publicado em artigos, que obedecem ao formato IMRaD;
4. Ciência é o que é publicado em revistas científicas com “fator de impacto”.

A expressão mais visível deste paradigma e a sua consequência prática é o


sistema de publicação a que Monbiot (2011) chama “parasitismo económico” e
“monopólio do conhecimento” – e que se traduz, em última análise, em levar os
investigadores e as instituições que produzem ciência com fundos públicos a
comprar, depois, a ciência que eles próprios produzem e publicam nas revistas
dos grandes conglomerados multinacionais.
Na prática, este paradigma exclui da ciência tudo aquilo que não se publica
em inglês (mas em outra línguas), que não se publica sob a forma de artigos cien-
tíficos (mas sob a forma de livro ou capítulo de livro, por exemplo), que não tem
uma feição indutiva que lhe permita adequar-se ao modelo IMRaD (mas que é
crítico-racional ou ensaístico), cujo fator de impacto não se pode medir em termos
bibliométricos (mas tem, por exemplo, impacto social ou cultural).
Pode-se argumentar, em relação a esta nossa posição, que o que define um
paradigma é a forma de produção da ciência, e não a sua forma de publicação

5 Como refere Kuhn, os paradigmas “fornecem aos cientistas não apenas um mapa, mas também
algumas das indicações essenciais para a elaboração de mapas. Ao aprender um paradigma, o
cientista adquire ao mesmo tempo uma teoria, métodos e padrões científicos, que usualmente
compõem uma mistura inextricável. Por isso, quando os paradigmas mudam, ocorrem altera-
ções significativas nos critérios que determinam a legitimidade, tanto dos problemas, como das
soluções propostas” (Kuhn, 1996, p. 109).

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– entendendo-se a segunda como um mero meio e uma consequência da primeira.


No entanto, cabe perguntar se, também aqui, os meios não determinam os fins, isto
é, se a forma de publicação não determina, ab initio, a própria forma de produção.
Com efeito, produzir para publicar parece ser a exigência primeira das instituições
(universidades, institutos, laboratórios, etc.) e dos indivíduos, que hoje produzem
ciência – já que é (sobretudo) dessa publicação que dependem os rankings, os pro-
jetos, os financiamentos, os empregos, as progressões, etc. É precisamente nesse
sentido que, em nossa opinião, deve ser interpretada a expressão, hoje corrente,
“publish or perish” – uma expressão cujo uso, de acordo com Garfield (1996),
remonta pelo menos a 1942, e à obra The academic man: A study in the sociology
of a profession, de Logan Wilson, ou seja, ao período em que começa a firmar-se
o “paradigma dominante”, e de que pode ser vista, precisamente, como uma das
palavras de ordem fundamentais. Desde essa altura, publicar para não perecer tem
vindo a significar, cada vez mais, publicar em inglês, artigos em formato IMRaD,
em revistas indexadas em bases de dados como a (antiga) ISI.
A “síndroma do publicar ou perecer” (Searle, ‎1971) liga-se, indissocialvel-
mente, à “fast science” que, segundo Stengers (2011), emerge no século XIX,
marcada pela profissionalização e especialização dos cientistas e pela ligação da
ciência à indústria – e que levou à identificação da produção rápida, da publicação
copiosa e da transferência de resultados para a economia, como as qualidades
ideais do “investigador-empreendedor” dos nossos tempos (Benninghoff, 2011).
É precisamente perante a exigência deste tipo de qualidades que Peter Higgs,
que postulou em 1960 a existência do chamado “bosão de Higgs”, e a quem foi
atribuído o prémio Nobel da Física em 2013, confessa em entrevista, dada em
dezembro desse mesmo ano, que “Eu não seria suficientemente produtivo para o
sistema académico de hoje” (citado em Aitkenhead, 2013). Um outro prémio Nobel,
Sydney Brenner (citado em Dzeng, 2013), laureado em Medicina e Fisiologia, em
2002, observa, ironicamente, que

Mesmo Deus não conseguiria uma bolsa hoje, porque alguém do júri diria, oh essas
experiências foram muito interessantes (a criação do universo), mas elas nunca foram
repetidas. E, em seguida, alguém diria, sim, ele fez isso há muito tempo, o que fez ele
recentemente? E uma terceira pessoa diria, para culminar, ele publicou tudo isso numa
revista sem arbitragem (a Bíblia).

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Os caminhos divergentes

Em relação ao paradigma dominante são possíveis vários caminhos.


Um deles, que está a ser seguido pela maior parte dos cientistas das ciências
“duras”, das ciências médicas e mesmo das ciências sociais e humanas, é o de se
submeter sem mais aos ditames do paradigma, integrando-se, alegremente, nessa
autopoiesis, que leva a publicar artigos IMRaD em inglês, porque se publica cada
vez mais artigos IMRaD em inglês – mesmo se os artigos IMRaD são um formato
limitado e o inglês é dominado a custo, escrito aos solavancos, envolvendo mui-
tas rejeições e reformulações, até se chegar às parecenças do inglês de um native
speaker.
Um segundo caminho, oposto ao anterior, é o de recusa, pura e simples, do
paradigma, continuando-se a publicar não só artigos, mas também todos os outros
tipos de textos científicos, no respetivo vernáculo.
Um terceiro caminho, de compromisso, e que está a ser seguido, neste
momento, por algumas das mais importantes revistas portuguesas e brasileiras,
da área das Ciências da Comunicação, é a publicação de artigos bilingues, em
vernáculo (português) e em inglês – uma solução que, aliás, Meneghini e Packer
(2007) sugeriam já há alguns anos 6.
Mas é possível que, num futuro próximo – e, aqui, só podemos especular – o
caminho venha a ser um outro. Esse caminho, que hoje apenas começa a perspe-
tivar-se, vem-nos do lado das tecnologias, mais concretamente das tecnologias
de tradução automática, de que são exemplos o Google Tradutor, o WordLingo
ou o Babylon 7, para mencionarmos apenas alguns. Na opinião de Nicholas Ostler
(2010), nos próximos anos as tecnologias de tradução automática virão a ter um
impacto tal que deixará de haver necessidade de qualquer “língua franca”:

A médio prazo, provavelmente em meados do século XXI, e possivelmente mais cedo,


[…] já não será necessária uma língua franca mundial. A tecnologia da linguagem
tomará a seu cargo a interpretação e a tradução, e a aprendizagem de uma língua

6 Esta solução foi tomada pelas revistas portuguesas de Ciências da Comunicação, Revista Lusó-
fona de Estudos Culturais / Lusophone Journal of Cultural Studies (www.rlec.pt) e Comunicação
e Sociedade (http://revistacomsoc.pt/), e também pela revista brasileira Matrizes (http://www5.
usp.br/tag/revista-matrizes/).
7 Ver, respetivamente, https://translate.google.com, http://www.worldlingo.com e http://tradutor.
babylon.com.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

estrangeira vai tornar-se uma tarefa desnecessária, exceto para os especialistas e


entusiastas (Ostler, 2010, §32.54). 8

O inglês poderá ser, assim, tal como o sugere o título do livro de Ostler, “a
última língua franca”, que antecede “o regresso de Babel” – só que, agora, uma
Babel em que, por via da mediação das tecnologias da tradução automática, todas
as línguas se entendem umas às outras 9.
Contudo, o fim do inglês como língua franca global, por efeito das tecnologias
de tradução automática, não implica, necessariamente, o fim das línguas francas.
De facto, se é verdade que, como procurámos mostrar no que antecede, “as ‘línguas
francas’ da ciência são mutáveis” (Forattini, 1997, p. 8), e que essa mutabilidade
terá mais a ver com razões extra científicas – nomeadamente económicas e polí-
ticas – do que com razões científicas, nada impede que, à semelhança do que
aconteceu em outros períodos da história, alguns deles muito recentes (séculos
XVIII a XX), haja várias línguas francas da ciência, em vez de uma; isto é, que a
hegemonia global (do inglês) seja também por esse lado contrariada por contra
hegemonias locais (Cabral, 2007).
Mais concretamente, nada impede que o português, com os seus cerca de
250 milhões de falantes, seja uma dessas línguas francas da ciência 10. Aliás, o
português já atualmente está longe de se encontrar na situação de países como
a Eslovénia ou a Holanda, que precisam de publicar em inglês para que as suas
publicações tenham um mínimo de impacto (Carvalho, 2013).

8 Utilizamos a versão do livro em epub, pelo que se indica o número do parágrafo em vez do número
da página; o programa de leitura é o Calibre, versão 64 bits.
9 Como que a reforçar esta opinião de Ostler, os responsáveis do Skype anunciaram, em meados
de dezembro de 2014, que, depois de uma fase de testes do Skype Translator, o serviço de video-
chamada se prepara para, daqui a alguns meses, oferecer tradução simultânea gratuita aos seus
utilizadores – numa primeira fase apenas entre inglês e espanhol e, numa segunda fase, entre
quarenta diferentes línguas (Jiménez Cano, 2014).
10 É essa a proposta de Moisés de Lemos Martins, em Lusofonia e Interculturalidade. Promessa e
Travessia (Martins, 2015 a). Elegendo o ciberespaço como o novo lugar do conhecimento cien-
tífico, nas atuais condições da sociedade tecnológica, com a língua portuguesa a saltar para as
redes sociais, os repositórios digitais de conhecimento e os museus virtuais, M. L. Martins fala
da “nova América de um novo arquivo cultural”, como consequência da travessia tecnológica em
curso. Nesse sentido, procede a uma analogia entre a circum-navegação marítima dos séculos
XV e XVI e atual circum-navegação tecnológica, remetendo para figuras como as de “região
geolinguística”, “região geocultural” e “identidade transcultural” (ver, especificamente, “Média
digitais e lusofonia”, pp. 27-56).

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AS LÍNGUAS FRANCAS EM CIÊNCIA E A QUESTÃO DOS PARADIGMAS

Se a situação colocar problemas à bibliometria e à indexação, terão de ser


os bibliometristas e os indexadores a resolvê-los, e não os cientistas; eles terão,
mesmo, aí, um campo de trabalho de eleição. Talvez também neste campo a
solução venha do lado da tecnologia, como o mostra a crescente importância de
sistemas de indexação automática, como o Google Scholar.

Considerações finais

Afirma Hegel, nas suas Lições sobre a Filosofia da História (2001, p. 20), contra
os que defendem que devemos aprender com as “lições da história”, que o que a
experiência e a história ensinam é que “os povos e os governantes nunca apren-
deram nada com a história” – e isso porque, sendo cada época idiossincrásica e
original, é também de forma idiossincrásica e original que os homens dessa época
devem decidir, não podendo transpor para o seu presente as lições do passado.
Não pondo de parte esta posição de Hegel, diremos, no entanto, que há pelo
menos uma lição que todos nós aprendemos com a história: precisamente a de
que há uma história, isto é, que por muito que dure, nada permanece imutável.
Evocar aqui o “E pur se muove” de Galileu, perante o Tribunal do Santo Ofício,
ou o “Nada é impossível de mudar”, do título do poema de Bertolt Brecht, não
passaria de um lugar-comum. No entanto, já não é um lugar tão comum a “súplica”
que, neste mesmo poema, Brecht nos faz, de que examinemos “sobretudo o que
parece habitual”, e que não o aceitemos como “coisa natural” (Brecht, 1983, p.
45) – já que é no habitual, na sua naturalidade e evidência, que se consagra a
dominação e a tirania.
O habitual hoje, na ciência ocidental, é aquilo que aqui designámos como
“paradigma dominante”, e que procurámos caracterizar a partir de três traços
essenciais: publicação em língua inglesa, de artigos em formato IMRaD, suscetíveis
de indexação nas bases de dados, como a Thomson Reuters e outras.
Questionar cada um destes traços – a começar pela fatalidade do inglês como
língua franca única e global – é, para além de uma exigência académica, uma exigên-
cia cultural e política a que os académicos não podem eximir-se 11. Não é que sejamos
contra o inglês; mas somos contra o paradigma asfixiante que ele hoje suporta.

11 Veja-se, neste sentido, por exemplo, Moisés de Lemos Martins, em “A liberdade académica e os
seus inimigos” (Martins, 2015 b).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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Revistas consultadas

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Comunicação e Sociedade http://revistacomsoc.pt/
Matrizes http://www5.usp.br/tag/revista-matrizes/

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LUSOFONIA, INTERCULTURALIDADE E GLOBALIZAÇÃO

LUSOFONIA, INTERCULTURALIDADE E GLOBALIZAÇÃO


A LÍNGUA PORTUGUESA COMO LÍNGUA DE CIÊNCIA
Maria Manuel Baptista*

Quase toda a tese ‘rígida’, quer dizer, pretensamente neutra


revela uma mentira do autor sobre si próprio.
Rodriguez, 2012

A ciência moderna, que expulsou do seu corpo a arte, também


nos dirá o que é a poesia?
Hissa, 2013

Resumo
A presente reflexão discute a questão da produção científica em língua portuguesa na
área das Ciências Sociais e Humanas, em particular no espaço da comunidade científica
lusófona. Mas este estudo procura ir mais longe, colocando também, de forma mais ampla,
a questão do uso da língua própria, como questão central na criação de conhecimento, em
todas as áreas que visam a compreensão cultural do humano, em tempos de globalização
e multiculturalismo cultural.
Em segundo lugar, defenderemos que a internacionalização científica, essencialmente
regida pelas regras do mercado global, constitui um paradoxo (mas não necessariamente um
obstáculo), instalado na interculturalidade, tão repetida e estudada pelas Ciências Sociais

* Professora Auxiliar com Agregação do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade


de Aveiro e investigadora do Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da mesma universidade.
Investiga sobre identidade e lusofonia, estudos culturais em Portugal e nos PALOP, história e
sociologia da cultura. Constam da sua obra os seguintes títulos: O ‘Génio Colonial’ Português. O
Papel dos Media na Criação de um Mundo Português (2017); Identity. Concepts, Theories, History
and Present Realities (an European Overview) (2015); Cultura: Metodologias e Investigação (2009);
Uma Cartografia Imaginária de Eduardo Lourenço – Dos Poetas e Amigos (2008).
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

e pelas Humanidades. Finalmente, num terceiro momento, procuraremos argumentar


em favor da ideia de que a globalização não pode ser entendida exclusivamente como
expansão da língua e cultura, de raiz e impulso anglófono, sendo possíveis e desejáveis
múltiplas globalizações.

Palavras-chave: lusofonia; globalização; ciência; língua; interculturalidade

Introdução

O que se pretende abordar no presente estudo é a questão da língua, em particu-


lar da língua portuguesa, na construção do conhecimento em Ciências Sociais
e Humanas. ou mais especificamente, da língua própria (no caso em apreço, o
português), enquanto língua de ciência.
Quando nos referimos a ciência neste contexto, referimo-nos a um tipo de
produção com aspirações a um conhecimento rigoroso, metodologicamente con-
trolado e crítico, que, no caso das Ciências Sociais e Humanas, permita simul-
taneamente estudar as especificidades culturais, favorecer a interculturalidade
e até a própria internacionalização (embora esteja fora do âmbito desta reflexão
discutir aqui as diferenças e coincidências entre ambas).
Pretendo partir da muito conhecida afirmação de Fernando Pessoa, “a minha
língua é a minha pátria”, quer dizer, a minha língua é o lugar de onde eu vejo o
mundo, a minha história, pessoal e coletiva, e mesmo o Outro ou Outros que se ins-
crevem em mim, através da minha memória cultural, numa presença que a própria
língua se encarrega, simultaneamente, de velar e desvelar (Baptista, 2003, 2004).
É neste sentido que, para nós, a Lusofonia é o lugar de construção do bilin-
guismo/multilinguismo, o qual obriga, no mínimo, à pertença a várias pátrias, quer
dizer, a mundos diversos e a diferentes memórias, que, frequentemente são pouco
compatíveis entre si, comunicam pouco e são acionadas em diferentes momentos
e oportunidades culturais. Ora, tudo isto é mais vulgar e comum na pós-moder-
nidade, do que nunca antes o foi, qualquer que seja o momento da história da
humanidade em que nos situemos. Hoje, a questão identitária é uma questão de
múltiplas identidades e diferentes pertenças (Maalouf, 1998; Steiner, 1997 [1971]).
Talvez que alguma luz se possa fazer sobre esta questão, se compreendermos
duplamente que cada um de nós (como cada cultura) é sempre um Outro para
alguém e que o Outro nunca é a pura exterioridade, mas é feito de imanência, pois

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LUSOFONIA, INTERCULTURALIDADE E GLOBALIZAÇÃO

que só existe a partir do ato linguístico que o nomeia, a partir da nossa própria
memória cultural (Baptista 2009, 2011).
No caso da Lusofonia, o equívoco pode surgir, podendo ser-se levado a pen-
sar que o caminho está feito, quando a realidade nos mostra que estamos numa
encruzilhada (ou em várias) feitas de paradoxos e ambiguidades (Martins, 2011
e 2015 a).

1. A língua própria como língua científica

Conscientes de que a língua própria como língua científica é uma questão de


grande complexidade, limitar-nos-emos neste trabalho a considerar uma das
dimensões desta problemática, que pensamos interpelar todos os investigadores
em Ciências Sociais e Humanas, e mesmo a comunidade científica em geral, pois
atravessa a própria natureza do seu trabalho, quer como investigadores, quer
como professores.
Uma nota prévia, porém: o que em seguida diremos não pode servir, de modo
nenhum, para substituir o rigor do trabalho científico, o controlo metodológico
pelos pares, a necessidade de uma constante vigilância da investigação, auto e
heterocrítica.
Isto dito e tendo esta ideia sempre presente, pretende-se apresentar e expli-
citar aqui uma certa compreensão epistemológica em relação ao trabalho que
designamos por investigação científica. Referimo-nos a todo o trabalho que em
ciência os investigadores realizam sobre, com e a partir da língua própria, quando
no âmago da produção de investigação e conhecimento em Ciências Humanas e
Sociais (Tarricone, 2011; Martins, 2015 b).
Esta constatação é especialmente válida no contexto dos estudos artísti-
cos, humanos e sociais onde não se pretende produzir ciência universalmente
objetiva (não existe um ponto de vista de Sirius). Queremos aqui sublinhar que o
conhecimento é contextual, cultural, interpessoal e autoral: “mesmo se o sujeito
é silêncio, ele é, também, uma mostra da impossibilidade de sua ausência e uma
mostra do lugar político, de onde ele profere o seu silêncio e de onde ele diz a sua
impessoalidade” (Hissa, 2013, p. 172).
Com efeito, a ciência não procura apenas a infinita descrição e nem mesmo
apenas a compreensão do mundo. Possui, sobretudo, um impulso criador, sendo
por isso que toda a argumentação científica tem uma estrutura narrativa.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Deste modo, mesmo no âmbito da escrita científica, o uso da linguagem não


é estritamente científico (no mínimo há o estilo, as escolhas, a estrutura argu-
mentativa, etc). Assim, fácil é verificar que todo o processo de escrita (também a
científica, ou esta em primeiro lugar) é uma luta dentro da língua e com a língua,
não se dando nunca fora dela.
Nestas circunstâncias, a compreensão científica não pode ocorrer fora da
linguagem e da língua que a fala, quer estejamos a falar da interpretação do obser-
vado, quer da criação ou imaginação de hipóteses (Bachelard, 1943). Ora, estes
processos, que podem dar-se no interior da nossa própria língua ou da alheia,
são indissociáveis da construção científica.
E se, nas ciências em geral, comunicar e disseminar ciência pode ter uma
natureza essencialmente descritiva, em Ciências Humanas e Sociais compreender,
expressar, criar são operações indissociáveis e ocorrem dentro de uma língua.
Com efeito, compreender em Ciências Humanas e Sociais é tentar, é ensaiar; é
um olhar, uma linguagem, uma perspetiva sobre a realidade; por vezes, mesmo
uma luta entre a linguagem e a realidade (os ‘factos’) (Bachelard, 1938).
O que queremos aqui defender é a aproximação (mas não a total coincidên-
cia) entre o trabalho científico e o trabalho literário, pois em estudos artísticos,
humanos e sociais, criatividade e linguagem científica, não sendo idênticas, fre-
quentemente coincidem. Não se defende, porém, que o trabalho que as ciências
realizam com e sobre a linguagem seja de natureza ficcional, mas tão só literário,
quer dizer criativo, e que ele é absolutamente essencial para a compreensão da
realidade que estudamos.
É por isso que toda a escrita científica tem uma marca autoral e vive da ins-
piração maior ou menor do seu autor, revelando-se aí claramente a aproximação
ao trabalho literário (Gumbrecht, 2010 [2004]).
Como diz Rodriguez (2012), a atividade científica é, em primeiro lugar, um
exercício narrativo-literário do cientista a si próprio, do cientista aos seus pares
e do cientista aos seus leitores. Se os recursos expressivos e literários do inves-
tigador são limitados, o resultado da sua comunicação não pode ser bom. Pelo
contrário, o domínio cabal no uso e exploração dos recursos de uma língua traz
a possibilidade de uma qualidade extra ao trabalho científico.
Neste sentido, há má e boa literatura científica, como também se depreende
das palavras de Boaventura Sousa Santos:

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LUSOFONIA, INTERCULTURALIDADE E GLOBALIZAÇÃO

(…) se analisarmos a carreira científica de alguns cientistas sociais preocupados com


o rigor da linguagem (Lazarsfeld, Merton, Parson, Bourdieu, Touraine, Boulding,
Bell, Galbraith, Hirschman [de entre tantos]), verificamos que à medida que os anos
passam e eles avançam na sua investigação, os seus textos tornam-se mais literários,
metafóricos, imagéticos e analógicos (Santos, 1988, p 128).

Sublinhamos, assim, em particular, as possibilidades criativas da linguagem,


que permitem a exploração mais profunda e cautelosa dos diversos caminhos
possíveis na produção científica, colocando-se o cientista, enquanto autor de
textos científicos, no ‘lugar ambíguo’ entre leitor e autor, até para poder ter dúvi-
das (Rodriguez, 2012), um dos mais poderosos motores da produção científica.
Mas, como refere Rodriguez (2012, p. 46), as universidades, com a sua estru-
tura, convertem o ato da escrita em frustração e desmotivação, desviando a cria-
tividade para outros suportes, estimulando uma escrita que apenas se centra no
uso acrítico e dogmático de bibliografia que se acumula, por vezes sem sentido
nem criatividade, servindo mais para evitar o trabalho de reflexão do autor do
que para construir um conhecimento balizado e dividido com os outros. Ou,
como refere Hissa (2013, p. 50), “há muitos exercícios, tomados como pesquisas,
que, burocráticos, apenas cumprem formalidades” 1. Na realidade, esquece-se que
na investigação científica há um “primeiro passo: penso que escrevo, em muitas
situações, para saber o que penso. Isso significa que a escrita, de alguma maneira
a representação do pensamento, põe-me em movimento no sentido da organização
das ideias” (Ibid., p. 23).

2. Comunicação em ciência, interculturalidade e lusofonia

Como não há ciência sem comunicação, pois ela visa sempre a publicação, ela
organiza-se estruturalmente como uma atividade interpessoal e intercultural (o
que não significa que ela vise toda e de imediato a internacionalização).
Porém, a interculturalidade, que é visada nas áreas dos estudos artísticos,
sociais e humanos não se resolve pela redução de toda a ciência produzida em
línguas diversas à hegemonia da língua inglesa, o que constituiria a ortodoxia do

1 Estes exercícios vazios da investigação científica estão entre as ameaças à “liberdade académica”,
de que fala Moisés de Lemos Martins em “A liberdade académica e os seus inimigos” (Martins,
2015 c).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

pensamento único, mas pela tentativa de compreensão do outro na sua diversidade


linguística e cultural (Baptista, 2003, 2004; Martins et al., 2014).
Ora, aquilo a que temos vindo a assistir, é a uma espécie de sistema científico
de livre-mercado globalizado, altamente concorrencial, instalado no coração
da produção e comunicação em ciência. Esta situação renova, e até aprofunda,
a constatação de Pierre Bourdieu, em Homo Academicus, na qual se refere que
“o campo universitário reproduz na sua estrutura o campo do poder cuja acção
própria de seleção e de inculcação contribui para reproduzir a estrutura” (Bour-
dieu, 2011 [1984], p.70).
Ao organizar-se como mercado, o sistema científico aponta no sentido de
uma internacionalização, que equivale, quase exclusivamente, à globalização da
ciência produzida e comunicada em língua inglesa, e com ela a uma globalização
de formas linguística, literárias, criativas e interpretativas de raiz anglófona.
No entanto, nas palavras de Maalouf (1998, pp. 159-160),

ninguém deveria ser obrigado a ‘expatriar-se’ mentalmente cada vez que abre um livro,
de cada vez que se senta diante de um écran, de cada vez que (…) discute ou reflecte.
Cada um devia poder apropriar-se da modernidade, em vez de ter constantemente a
impressão de a estar a pedir emprestada aos outros.

Ou seja, é de uma visão do mundo que se trata de impor, quando se defende a


exclusiva utilização do inglês como língua de produção e comunicação em ciência,
transformando a maior parte dos autores/cientistas e a literatura científica de
origem, não estritamente anglófona, em expatriados produtores de ciência, que
frequentemente se tornam criadores de textos científicos de insuficiente quali-
dade linguística, e portanto, fracamente reflexivos, e mesmo de penosa leitura.
Ainda aqui serve plenamente a advertência de Maalouf, ao considerar que
“nada é mais perigoso do que procurar romper o cordão maternal que liga um
homem à sua língua” (Maalouf, 1998, p. 158), mais ainda quando se trata de pro-
duzir conhecimento, como bem se pode compreender.
Na senda do que refere João Maria André (2012, p. 302),

a língua materna é o berço em que nascemos para os outros e para o mundo (…). Cuidar
do pensamento e cuidar da cultura é também cuidar da língua através da qual somos
capazes de dizer o pensamento e a cultura. Nessa língua se sedimentam e decantam
memórias, tradições e identidades, nela foram depositando os que nos precederam a

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LUSOFONIA, INTERCULTURALIDADE E GLOBALIZAÇÃO

sua compreensão do tempo e da história, nela ecoam contactos com os outros povos
que nos fizeram na interacção com eles, desde os gregos e os latinos aos árabes e
visigodos, desde os nossos vizinhos espanhóis aos franceses, ingleses e alemães.

E a globalização da ciência? Sim, com certeza, se ela for simultaneamente


localização e aprofundamento criativo em cada língua, em direção ao que se quer
compreender (Martins, 2011).
Com efeito, toda a ciência tem uma origem local, vive de uma motivação
subjetiva e esconde as biografias que a fazem mover. Embora falar em literatura
científica não seja falar em ficção, o facto é que toda a ciência é interpretação e
recriação de factos através da linguagem e, portanto, não pode fugir à literatura
(Martins, 2015 b).
Assim, a possibilidade de globalização dos nossos conhecimentos passa,
em primeiro lugar, por um aprofundamento da produção científica em língua
própria, que simultaneamente vise a interculturalidade e em última análise a
própria globalização, que pode ser feita, a partir da língua própria (no nosso caso,
a construção da lusofonia é um modo de globalização em língua portuguesa),
e também em direção a outros modos de globalização em múltiplas línguas de
larga expressão global. Quer dizer, por que não pensar também na globalização
possível em língua castelhana, ou francesa ou italiana, ou genericamente de raiz
latina, que seja reconhecida tão válida e cientifica como aquela que decorre a
partir da língua inglesa?
A nós, cientistas em língua portuguesa, cabe-nos pugnar pelo reconhecimento
da possibilidade de uma globalização lusófona em ciência, que cruze línguas,
conhecimentos e histórias próprias. Ou como diz, de forma muito mais perfeita
Caetano Veloso:

Gosto de sentir a minha língua roçar


A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Da rosa no Rosa
(…)
E deixa os portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira
Fala!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
o que pode
Esta língua

Vamos atentar para a sintaxe paulista


E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Cadê? Sejamos imperialistas
(…)
Incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma idéia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o recôncavo, e o recôncavo, e o recôncavo
Meu medo!
A língua é minha Pátria
eu não tenho Pátria: tenho mátria
Eu quero frátria
(…)

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LUSOFONIA, INTERCULTURALIDADE E GLOBALIZAÇÃO

3. (In)concluir – formas de resistência

Pretendo concluir esta reflexão com duas pequenas narrativas pessoais:


Como docente e investigadora de Cultura Portuguesa, não me canso de estra-
nhar o facto de os Projetos submetidos à Fundação para a Ciência e Tecnologia
terem de ser exclusivamente redigidos em língua inglesa. Seria caso de dizer aqui
que estamos perante um exemplo de desprezo cultural pela própria língua como
língua de ciência.
A segunda consideração que gostaria de fazer consiste numa nota de resis-
tência e esperança, relativamente a uma possibilidade diferente de internaciona-
lização em ciência, que pode não ser exclusivamente anglófona, buscando outros
caminhos possíveis. Participei recentemente num grupo de trabalho de cientistas
de países latinos sobre políticas públicas de desenvolvimento sustentável. Na
ocasião, um cientista italiano dizia em língua inglesa: “vou falar inglês aqui pela
última vez… afinal com um pouco de paciência, persistência e hábito, podemos
entender-nos todos nas nossas próprias línguas (português, espanhol, italiano,
francês), de forma mais correta, produtiva e confortável para todos”. E eu concluo.
Do que se trata, aqui, sem dúvida, é de um sinal de esperança na possibilidade de
imaginarmos modos diferentes de globalização, novas formas de real intercultu-
ralidade e efetiva comunicação internacional em ciência.

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO
MOÇAMBIQUE NO ESPAÇO IBERO-AMERICANO
Armando Jorge Lopes*

Resumo
Nesta comunicação apresentam-se reflexões sobre a língua portuguesa e alguns dos seus
enquadramentos em Moçambique, em particular, a relação desta língua com a língua
espanhola nesta parte de África, a globalização e a pedagogia da equidade.
Interagir com diferentes línguas e culturas, e do mesmo modo, interagir com a mesma
língua e diferentes culturas é muito útil porque estas interacções fornecem perspectivas
diferentes da nossa e nos libertam de preconceitos que, muitas vezes, são condicionados
culturalmente. Neste contexto, torna-se fundamental estudar os processos históricos que
moldaram e continuam a moldar os contextos sociais, culturais e linguísticos de Moçam-
bique, com destaque para a coabitação linguística e cultural entre a língua portuguesa e as
línguas bantu, em contexto de harmonia multilinguística e multicultural.
São ilimitadas as contas do colar linguístico moçambicano, que é também universal, cada
uma encerrando histórias sobre a modernização da língua portuguesa, temperada pela

* Armando Jorge Lopes, mestrado [York, UK, 1982], doutorado [Wales, UK, 1986] e pós-doutorado
[USC, California, 1991 & Cambridge, UK, 1993], é linguista [Linguística Aplicada] e dedica-se há
mais de 45 anos ao ensino de línguas—como explicador de Inglês [1967], professor no ensino
secundário [1972-77], docente, investigador e gestor universitário [1977--] e Professor Catedrático
[2000--] na Universidade Eduardo Mondlane [UEM], Moçambique. Tem ensinado em programas
de doutoramento e pós-doutoramento também em universidades na Europa, América e outros
países de África. Foi Director Pedagógico da UEM [1987-90], Director-Adjunto da Faculdade de
Letras para a Investigação [1993-96], Chefe do Departamento de Linguística e Literatura [2001-04]
e Director da Faculdade de Letras e Ciências Sociais [2007-12]. Exerceu o cargo de Editor-Chefe da
LASU, Associação de Linguística das Universidades da SADC [1990-95] e realizou interpretação
simultânea e tradução na SADCC e em outras instituições políticas e económicas em Moçambique
e outros países [1975-1994]. Publicou 11 livros e uma centena de artigos em revistas internacionais
e nacionais. Foi Vice-Reitor (Científico-Pedagógico) da Universidade Politécnica de Moçambique
[2014-2017].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

relação com outras línguas usadas em Moçambique, incluindo as indo-europeias, que a


longa noite colonial decidiu não promover e até mesmo coarctar.

Palavras-chave: lusofonia, hispanofonia, Moçambique, comunicação intercultural

Introdução

Reflectir sobre temas que as missangas encerram não é tarefa simples. Língua,
globalização, interculturalismo, intraculturalismo, lusofonia, hispanofonia, entre
outros, são temas que entendo como contas ou missangas. Sem necessariamente
serem as de Mia Couto de 2008, muito embora nos deslumbremos através delas,
as contas do colar moçambicano, que se pretende universal e partilhado, apresen-
tam-se ilimitadas. São missangas que vamos introduzindo no fio da comunicação,
aquelas contas de vidro coloridas e de outros materiais—as missangas moçambi-
canas, que são também missangas do mundo (Lopes, 2013ª). Reflicto aqui sobre
algumas missangas da língua, da cultura e da inclusividade.
Não pertencendo ao espaço ibero-americano de forma directa, por assim
dizer, a história deste país que tem a língua portuguesa como língua oficial e, acima
de tudo, a sua situação híbrida entre a anterior vivência com o mundo português
e a recente e intensa experiência também partilhada com o mundo hispânico
tornam Moçambique num lugar privilegiado de reflexão e problematização desse
mesmo espaço e fazem com que a nação africana seja sua parte integrante, mesmo
que de forma indirecta. Ao aceitar-se que uma língua não é uma parte isolada de
um sistema ecológico complexo, mas sim, e necessariamente, parte integrante
do mesmo, ao compreender-se a importância do sistema ecológico do espaço
ibero-americano e o facto das línguas nele faladas serem línguas pluricêntricas,
não idênticas nas suas variedades metropolitanas, e ao reconhecer-se que cada
um dos centros cria uma pressão na direcção da sua variedade—não apenas em
termos fonológicos, morfológicos, sintácticos, semânticos e lexicais, mas também
em termos discursivos—e que estas pressões se exercem tanto diacrónica como
sincronicamente, deduz-se que as influências do Português e do Espanhol sobre
todas as outras variedades, incluindo as variedades emergentes de vários estados
e ainda sobre as línguas indígenas neles faladas sejam profundamente complexas
e diversas. É neste sentido que entendo Moçambique como parte integrante da
iberofonia.

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO

Argumento sobre a diversidade linguístico-cultural como suportes do


enquadramento e desenvolvimento das línguas portuguesa e espanhola, com-
ponente importante da vivência contemporânea. Na verdadeira acepção dos
conceitos, o mundo de hoje já começa a ser realmente bilingue, mas de modo
ainda ténue, multilingue e multicultural; a condição monolingue e monocultural
do amanhã poderá vir a ser idêntica à do analfabeto de hoje. A língua portuguesa
é a língua oficial e veicular de Moçambique, operando juntamente com vinte e
duas línguas bantu como línguas maternas da esmagadora maioria da população,
e ainda com as línguas de origem asiática (Guzerati e Memane, entre outras) e o
Árabe (Lopes, 1999).

1. Linguagem e globalização

As missangas aqui unidas pelo fio da comunicação são a língua, o universal, o


global, o particular, o Outro e a solidariedade. Começarei pela questão da língua.
À altura da Independência Nacional de Moçambique decorria no Departamento
de Letras Modernas da Universidade Eduardo Mondlane um projecto designado
de Português Fundamental que, entre outros objectivos, aspirava à construção
de uma matriz de 2000 vocábulos. O projecto de elaboração local do Português
Fundamental partilhou muitos dos traços caracterizantes da abordagem meto-
dológica de experiências precursoras, em particular a francesa. Apenas relembrar
que para neutralizar os danos de Babel, ou a complexidade que a multiplicidade
das línguas criou, nas suas palavras, os partidários da língua universal defendiam
a necessidade de introdução de uma língua comum que fosse utilizada por falantes
de línguas diferentes.
O primeiro exercício de simplificação, por meio de uma língua artificial
humana, foi ensaiado com o Esperanto, língua constituída em 1878 por Zamenhof,
que usava o pseudónimo de Dr. Esperanto. O Esperanto, criado a partir de bases
românicas, germânicas e eslavas, gozava e goza (ainda há actualmente cerca de
dois milhões de pessoas que compreendem a língua) de um elevado grau de previ-
sibilidade devido sobretudo ao recurso frequente e constante a sufixos e infixos 1.

1 Sobre a previsibilidade do Esperanto, diz Abley (2003, p. 93) o seguinte: “Todos os substantivos
terminam em –o, todos os adjectivos em –a, todos os advérbios em –e...Uma árvore é arbo; uma
árvore pequena é arbeto; uma árvore grande arbego; uma floresta é arbaro...O homem é viro;
a mulher vir’ino. O marido é edzo; a esposa edzino. A base da língua assenta na masculinidade,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Mas nem todos os linguistas da altura sonhavam com a invenção e consequente


imposição de um idioma universal fabricado. Alguns propunham a adopção de
uma língua já existente—naturalmente a sua própria—habitual referência ao
Inglês ou, em caso de impossibilidade, até mesmo o Francês.
Argumentava-se que a base greco-latina do vocabulário do Inglês (cerca de
900 vocábulos básicos) a tornara numa língua rica, abrangente e relativamente
fácil de aprender por parte de aprendentes ocidentais, e que sendo a gramática
isenta de conjugações verbais complicadas se tornava relativamente acessível
para aprendentes asiáticos e africanos. E ainda uma coisa boa com que todos
concordavam: o facto de o Inglês não ter acentos, til ou cedilhas, o que certamente
facilitaria o seu uso na escrita e sua utilização tipográfica.
Mas como em quase todas as coisas não há bela sem senão, também se veri-
ficaram características mais complexas e que se constituem em dificuldade para
aprendentes do Inglês, falantes de outra língua como língua materna. É a questão
da ortografia e a sua relação, por vezes pouco sistemática, com as dezenas e deze-
nas de sons nessa língua, é a questão da idiomaticidade que requer o conhecimento
de uma quantidade enorme de construções idiomáticas. Simplificar a língua
inglesa foi a tarefa a que se impôs o linguista Ogden que fez publicar em 1930 a obra
Basic English, apresentando um conjunto de cerca de 850 vocábulos e 18 verbos.
E a ideia de uma forma simplificada do Francês para uso internacional? De
onde parte? Em 1951 uma comissão francesa da UNESCO, que incluía Gougenheim,
começou por elaborar um projecto que foi chamado de Francês de Base, designação
que não agradaria e que por isso viria depois a ser alterada para Francês Elementar,
e acabando mesmo por desembocar na designação definitiva de Francês Funda-
mental. E tal como já havia acontecido com o Basic English, nem o Francês nem
o Inglês, como grandes línguas de comunicação mais ampla resolviam à época o
problema de existência de uma língua universal, depois de goradas, para o mesmo
fim de comunicação, as tentativas de introdução e uso de línguas artificiais como
línguas universais.
Tendo estes episódios históricos como pano de fundo, não posso deixar de
me interrogar sobre a pretendida e incessante busca dos universais linguísticos;
não se situava essa busca na mesma lógica das tentativas de desbabelização? À

tudo o que é feminino é criação posterior”. [All its nouns end in –o, all its adjectives in –a, all
its adverbs in –e... A tree is arbo; a small tree is arbeto; a big tree is arbego; a forest is arbaro...
Man is viro; woman is vir’ino. A husband is edzo; a wife is edzino. At the base of the language is
maleness, anything female is an afterthought].

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO

procura de melhor entendimento sobre a questão dos universais, propõe Édouard


Glissant a teoria da Relação para explicar uma parte importante do comporta-
mento humano:

De um modo formal, questiono a ideia do universal. O universal é uma sublimação,


uma abstracção que nos faz esquecer as pequenas diferenças; buscamos o universal
mas esquecemos estas pequenas diferenças; a Relação é uma maravilha porque não
nos deixa fazer isso. Não existe Relação feita de grandes diferenças. A Relação é total,
porque se assim não for não temos Relação. É por isso mesmo que prefiro a noção de
‘Relação’ à noção de universal (Barson & Gorschlüter, 2010, p. 62).

Estou totalmente de acordo com este posicionamento, ao mesmo tempo que o


relaciono com o conceito do que no passado designei de naturalização de língua,
em particular, “a aceitação por parte de uma comunidade de indígenas de uma
língua que lhe é alheia e à qual concedeu estatuto de cidadania” (Lopes, 1997, p.
39). A naturalização do Português Moçambicano vem-se desenvolvendo de modo
localizado, e sempre entendida como diferença, não como deficiência. Trata-se de
uma variedade linguística e cultural que se vai alimentando de pequenas diferen-
ças e que se vai comportando de forma una e múltipla, em simultâneo. Como uma
história, que teve o seu início, desenvolve-se e um dia chega ao porto que lhe está
destinado. Uma história tem sempre um ponto de chegada, um ponto de chegada
que pode ser especial, como entende ainda Édouard Glissant e que explicita ao
seu entrevistador, o maliano Manthia Diawara, numa viagem atlântica em 2009,
a bordo do navio Queen Mary II:

Para mim, a chegada é o momento em que todos as componentes da humanidade—


não apenas as componentes africanas—acordam na ideia de que é possível ser-se,
ao mesmo tempo, um e múltiplo; que podes ser tu próprio e o Outro; que podes ser
o Mesmo e o Diferente. Quando essa batalha—porque é de uma batalha que se trata,
não militar, mas sim espiritual—quando essa batalha for ganha, muitos acidentes
da história humana terminarão, extinguir-se-ão (Barson & Gorschlüter, 2010, p. 59).

No livro intitulado A Batalha das Línguas, originalmente escrito em 2004


(Lopes, 2013d; 2004), procedi a reflexões sobre as influências linguísticas e cul-
turais de que Moçambique e outros países da Comunidade dos Países de Lín-
gua Portuguesa (CPLP) foram e continuam a ser alvo, reflectindo então sobre

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

a necessidade de se realizarem estudos sobre as diversas forças que produzem


mudanças na história, de molde a compreendermos melhor a natureza do poder
que faz funcionar a língua portuguesa e a língua espanhola como línguas do
mundo e, assim, adquirirmos maior capacidade de análise e rigor na descrição
das novas variedades de língua e dos seus contextos.
A importância destes elementos é apropriadamente destacada por Moisés de
Lemos Martins, na sua obra sempre actual de 1996, nos seguintes termos:

Aquilo que fundamentalmente está em jogo, quando interrogamos o sentido de nação,


região e comunidade local, é a interpretação da lógica social da linguagem empregue.
(…) Colocada a questão na linguagem, importa assim ter presente a sua lógica especí-
fica enquanto realidade social. Quer isto dizer que se trata de indagar até que ponto a
linguagem é um poder, numa luta pelo poder de interpretar, censurar, afirmar, recusar;
até que ponto a linguagem, que diz as divisões da realidade, contribui para a realidade
das divisões. (Martins, 1996, pp. 16-17)

É claro que noções como aldeia global e cultura mundial significam muito
pouco ou mesmo quase nada para as pessoas que têm uma cultura de subsis-
tência como única cultura ou que não vêm o seu dia-a-dia melhorado. Teremos
nós vontade de vencer a prática da sobrevivência do mais forte? Ou os cidadãos
do mundo continuarão a fingir que estão apaixonadamente interessados pelo
Outro, e a imaginar o mundo do outro de um modo em que o outro já não é mais o
Outro? Pessoalmente, gosto, em particular, da ideia de que me posso transformar
interagindo com o Outro sem me distorcer, sem perda. Assim, e novamente em
sintonia com o que diz Glissant:

Tu podes mudar, podes mudar com o Outro, podes mudar com o Outro ao mesmo
tempo que permaneces tu próprio, tu não és um, tu és múltiplo e és tu próprio. Não
estás perdido porque és múltiplo. É difícil admitir isto, porque temos medo de nos
perdermos. Dizemos para connosco: se eu mudar, perco-me. Se eu me apropriar de
alguma coisa do Outro, o meu ser desaparece. Temos decididamente de abandonar
este erro (Barson & Gorschlüter, 2010, p. 61).

De facto, prefiro um mundo de partilhas, de união de culturas, de hibridação


a um mundo da globalização com a sua uniformidade redutora e marginalização
ou mesmo extermínio das culturas minoritárias.

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO

Muitos falantes nativos e não só orgulham-se, com certa naturalidade, do


facto de o Português no mundo ser reconhecido como língua internacional e
em expansão. Mas na verdade, o Português perde o seu estatuto mais localizado,
digamos a sua paroquialidade, e adquire a internacionalidade e intercontinen-
talidade pela simples razão desta língua não ser propriedade de nenhum estado
e povo, pelo facto desta língua não estar sob custódia de nenhum estado, região
ou comunidade que dela se serve, pelo facto de não caber a ninguém o direito de
reclamar para si a propriedade da língua, e ainda pelo facto de apenas pertencer a
todos que dela gostam e que com ela se identificam (Lopes, 2013c; Martins, 2014;
2015). E tal como aconteceu com a fragmentação do latim nas línguas românicas,
todo o processo de heterogeneização parece gerar sempre outros processos simul-
tâneos de homogeneização e heterogeneização no seu seio. A posição de Mosquera
reforça, a este propósito, a ideia que acaba de ser exposta, quando diz que:

É óbvio que a globalização não consiste de uma interconexão efectiva de todo o pla-
neta por meio de uma grelha articulada de comunicações e de trocas. A globalização
é sim um sistema radial que se estende de diversos centros de poder com dimensão
variada a múltiplas zonas económicas bastante diversificadas. Tal estrutura implica
a existência de vastas zonas de silêncio, praticamente sem ligação entre si ou apenas
ligadas indirectamente por via das metrópoles...A globalização melhorou sem dúvida
as comunicações a um nível extraordinário, dinamizou e pluralizou a circulação cultu-
ral e criou uma consciência mais pluralista. Contudo, fê-lo através dos mesmos canais
seguidos pela economia, reproduzindo-se assim, em larga medida, as estruturas do
poder (Mosquera, 2001, p. 32).

No Brasil, num passado não distante, as políticas de difusão do Português


não mereciam atenção particular; persistia a ideia de que uma política de língua
tinha de ser, em primeiro lugar, uma política direccionada para a preservação e
consolidação da língua como veículo de cultura. No Brasil, antes de 1940, a polí-
tica de difusão do Português restringia-se sobretudo à tradução de livros. Depois
vieram os Centros de Estudos Brasileiros (CEB) que visavam (e visam) promover a
língua e cultura em países estrangeiros e, mais recentemente, num contexto de
continuada reestruturação, pelo menos no caso de Moçambique, os chamados
Centros Culturais Brasil-Moçambique (CCBM). Quanto a Portugal, nos anos 70, a
política linguística portuguesa passou a ter em atenção os filhos dos emigrantes
portugueses em países mais desenvolvidos como a França, onde vivia 10% da

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

população de Portugal. Este tipo de política era um tipo de política de manutenção


de língua e não tanto uma política de difusão de língua. Em tempos mais recen-
tes, e através do Instituto Camões, as autoridades portuguesas e as autoridades
da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo associaram-se, via leitorado,
com o objectivo de desenvolver acções de dinamização da língua portuguesa em
universidades do Zimbabwe, Suazilândia e África do Sul, três países, em que o
inglês é língua oficial ou co-oficial.
Mais recentemente, a partir de 2004, e na sequência da cooperação existente
entre os dois países desde a década de 70, a Agência Espanhola para a Cooperação
e Desenvolvimento (AECID) começou a apoiar Moçambique na introdução de um
leitorado para o ensino da língua e cultura espanhola na Universidade Eduardo
Mondlane (UEM) em Maputo. Esta acção despertou bastante interesse no seio
dos moçambicanos, tendo o leitorado recebido continuados apoios ao longo do
tempo por parte da Embaixada de Espanha e da Embaixada de Cuba em Maputo.
Criou-se também a Associação Mozhispana Cultural, ao mesmo tempo que
se multiplicaram acções de ensino do espanhol em outra importante instituição
de ensino superior, o Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI) a partir
de 2011 e ainda numa instituição privada, a Escola Francesa de Maputo.
Na UEM, a língua é ensinada em diferentes níveis através de cursos livres, mas
no ISRI o espanhol tornou-se uma língua opcional do currículo de licenciatura.
Hoje mais de quinhentos alunos nas três instituições aprendem o espanhol como
língua estrangeira. Os leitores especializados no ensino de língua espanhola como
língua estrangeira e ainda em tradução são espanhóis, moçambicanos, cubanos
e argentinos e são já em número considerável os alunos que prestam as pruebas
del DELE, exames para o Diploma de Espanhol como Língua Estrangeira. Vários
graduados moçambicanos, com um domínio já razoável do Espanhol, têm-se
beneficiado de bolsas de estudo para mestrado e doutoramento em diferentes
universidades espanholas, através do apoio prestado pelo MAEC, Ministério dos
Assuntos Exteriores e Cooperação.
O interesse pela aprendizagem do Espanhol como língua estrangeira e nal-
guns casos como segunda língua reside, entre outros motivos, na proximidade
linguística e cultural que os aprendentes sentem entre o Espanhol e o Português
e nas relações com Cuba, relações históricas de amizade, forjadas no contexto das
lutas de libertação na região austral de África, para onde foram estudar milhares
de moçambicanos, aproximadamente doze mil alunos de nível médio e cinco mil
alunos que completaram as suas licenciaturas em diversas áreas do conhecimento.

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO

Tudo começou com um encontro de amizade na cidade da Beira entre os líderes


Samora Machel e Fidel Castro, no ano de 1977, o que provocou uma verdadeira
diáspora. Após um período de cerca de 16 anos, o tempo de formação superior
desde a primeira classe, os moçambicanos deviam regressar e ocupar-se de múl-
tiplas frentes no país, tão carente ao longo do tempo, sobretudo a partir do êxodo
de profissionais que se registou imediatamente após a Independência nacional. O
mesmo contexto de libertação e de solidariedade ideológica internacional trouxe
para Moçambique muitos brasileiros, chilenos, outros latino-americanos, euro-
peus de outras paragens, asiáticos e africanos. Os internacionalistas, como eram
conhecidos, activos em diferentes frentes do desenvolvimento do país, vieram
escrever páginas de internacionalização, criando relações como as que a poetisa
moçambicana Sónia Sultuane viveu na sua recente viagem a Cuba:

…Houve logo uma empatia, aquele sentimento de proximidade. Assim que se diz que
se é de Moçambique, tornamo-nos irmãos, filhos, melhores amigos do povo cubano.
(…) É comum ouvir o meu amigo, o amigo do meu amigo, um parente do parente esteve
em Moçambique. (…) Passadas três horas, já me sentia em casa, tinha arranjado família,
amigos. Devo dizer que o povo cubano foi dos povos com quem mais gostei de privar,
de partilhar. (…) Oxalá um dia possa regressar a Cuba e encontrar ainda aquela magia
que só ali senti (Sultuane, 2013, pp. 72; 74-75).

E também relações que construíram muitos dos caminhos de hoje, em que as


marcas da constituição de uma considerável parte da intelligentzia moçambicana
pós-independência são visíveis e profundas. Ouçamos, por exemplo, um breve
depoimento de Eduardo Sitoe, Professor na UEM e igualmente Presidente do
Conselho Nacional para a Qualidade do ensino (CNAQ) no Ministério da Educação
de Moçambique: “A minha vida pessoal pode ser um bom exemplo desse conceito
de ‘iberofonia’ que o Professor quer defender ainda que, mais tarde, o Inglês tenha
tornado mais complexa a minha ‘classificação’, diria assim, em termos linguísticos.
Até aos 8 anos de vida eu só tinha conhecido o Changane e nunca tinha, sequer,
ouvido falar nenhuma outra língua, por alguém, que não fosse Changane. Vim
para Lourenço Marques com o meu pai que já cá trabalhava depois de deixar a
RAS, por ocasião da morte prematura da minha mãe. Rapidamente entrei na
escola oficial com a ajuda dos patrões do meu pai e durante 7 anos aprendi o
Português, tendo atingido o nível da 5ª. Classe. Posso dizer que aos 15 anos já era
lusófono. Parti para Cuba no mesmo ano e fiz todo o meu ensino secundário geral

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

e técnico profissional durante 8 anos. O ensino aqui era em Espanhol (cubano),


embora tivéssemos disciplinas em Português dadas por professores moçambica-
nos sobre História, Estudo Político, Geografia e a própria disciplina de Português
até ao fim do ensino secundário. Confesso que quando comecei a trabalhar aos
23 anos de idade eu era falante de Changane-Português-Espanhol mas, curio-
samente, sentia-me tecnicamente mais seguro a formular as minhas ideias e os
meus pensamentos em Espanhol; mas gostava de escrever poemas de amor em
Português. O Changane servia mais para o foro familiar. Esta a minha história,
mas o Inglês atrapalhou esta arrumação das línguas: o Changane passou a ser
mais para os encontros com os mais velhos e família, o Espanhol para o convívio
com os ex-colegas sem conteúdo profissional; o Português, a língua de trabalho
do dia-a-dia e o Inglês, a língua para a formulação de ideias e pensamentos que
requerem uma elaboração mais cuidada” 2.

2. A cultura e a pedagogia da equidade na comunicação

Aqui as missangas são o intraculturalismo, o interculturalismo e a formação


em comunicação em contexto multicultural. A noção de cultura adquire espe-
cial importância, particularmente no campo da comunicação. A cultura é um
fenómeno humano complexo e, em muitos aspectos, um conceito que se presta
a equívocos. A cultura está, muitas vezes, associada a bens materiais e artefactos,
à alimentação, indumentária e às artes. Digamos que a cultura é um conjunto
complexo que inclui o conhecimento, a linguagem (i.é, a língua, os padrões não-
-verbais de comunicação e o estilo de comunicação), as crenças, as percepções,
as atitudes, os valores (como a dignidade humana, igualdade, justiça), a arte, a
moral, a lei, os costumes e outras capacidades que o ser humano adquire como
membro de uma sociedade.
O conceito de multiculturalismo tem-se prestado a interpretações variadas
(Lopes, 2006, p. 39), incluindo a interpretação de Honwana (2011) 3, que enquadra
o conceito num contexto contemporâneo e específico, associando-o à noção de

2 Email de 12 de Abril de 2014, em resposta a um pedido de depoimento feito pelo autor do presente
estudo.
3 O Estado é simultaneamente o objectivo final do movimento nacionalista e o instrumento para
a construção da nação que, consequentemente, deve ter uma natureza multicultural. A política
linguística vem assim substituir os processos violentos que levaram à formação das actuais

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO

política linguística. Por outro lado, e como deixei implícito na secção anterior, em
algumas sociedades do mundo pós-colonial, o conceito de sociedade multicul-
tural tem significado a manutenção de uma cultura dominante sobre as outras
culturas, regra geral culturas das ‘minorias’, e a aceitação dessas mesmas culturas.
Esta aceitação das outras culturas é, por outro lado, questionada, reivindicando-
-se um projecto cultural plural, assente no princípio de que nenhuma cultura é
superior a outra, nenhuma cultura é mais verdadeira ou tem mais valor do que
outra e que, por isso, vale o esforço de tentar pôr juntas, num todo heterogéneo,
formas culturais diversas sem perda e sem grande conflito. Julgo importante
manter-se este enfoque no contexto que agora discuto, ou seja, o contexto das
ciências da comunicação, e sobretudo no âmbito do que designaria por pedagogia
da equidade.
Em termos amplos, a pedagogia da equidade reconhece o direito à existência
de diferentes grupos culturais, considera a diversidade linguística e cultural como
um bem e não uma desvantagem, reconhece os direitos de todos os grupos cultu-
rais da sociedade como direitos iguais e promove a igualdade de oportunidades
educacionais.
Em termos mais específicos, a pedagogia da equidade não ocorre apenas num
único curso ou programa mas, sim, numa variedade de programas e práticas. É
claro que também pode ter significados diferentes em diferentes escolas e com
diferentes grupos de indivíduos, segundo as suas necessidades e circunstâncias.
O sucesso do professor relativamente ao desenvolvimento académico de alunos
oriundos de diferentes grupos culturais e sociais constitui o cerne da pedagogia
da equidade. Atenção especial é dada à integração ao nível dos conteúdos, o que
significa que os conteúdos de algumas disciplinas são retrabalhados de molde a
representar experiências diversas e perspectivas diferentes, sobretudo das pessoas
que habitualmente são sub-representadas ou excluídas. Promove-se a interacção
e cooperação mútuas, incentiva-se a valorização de todas as culturas e reforça-
-se o poder dos chamados grupos étnicos minoritários. Há uma relação dupla
entre comunicação e cultura, porque a comunicação é moldada pela cultura e é
um poderoso agente de transmissão e preservação cultural. O mestre transmite e
interpreta o conhecimento da cultura dominante e o conhecimento das microcul-
turas, proporcionando, assim, uma formação multicultural. São sobretudo três os

línguas universais e línguas eurásicas. Ela é um elemento fundamental na validação e defesa do


multiculturalismo como alternativa nacional

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

factores que, na minha opinião, ilustram a influência da cultura na comunicação.


Primeiramente, a socialização ‘in tandem’ com a comunicação, isto é, a sociali-
zação através da qual o indivíduo adquire o conhecimento, os valores, a língua
e as aptidões sociais, permitindo-lhe a integração na sociedade; por outro lado,
a comunicação que dá a oportunidade a crianças e jovens de diferentes grupos
culturais de aprenderem a falar várias línguas e aprenderem a importância da
comunicação não-verbal. Em segundo lugar, os valores sociais, que são adquiridos
a partir do sistema social e da cultura em que o indivíduo cresce e que podem ser
diferentes de cultura para cultura, precisam de ser compreendidos e partilhados; e
em terceiro lugar, o factor relacionado com as estruturas do conhecimento e com a
visão do mundo, isto é, o modo como um indivíduo, grupo cultural ou comunidade
vê as pessoas, os acontecimentos, o mundo, em geral.
A abordagem multicultural na comunicação, que relaciona a raça, a língua,
a cultura, o género, a deficiência física e a classe social deve fazer com que todos
os quadrantes celebrem a diversidade humana e a igualdade de oportunidades;
fornecer competências transculturais que visem assegurar que os aprendentes
adquirem o conhecimento e as habilidades necessárias para funcionar na sua
própria cultura, aquilo a que eu tentativamente chamaria de intraculturalismo,
e para funcionar na cultura dos outros indivíduos, que é geralmente referido
por interculturalismo. Para mim, é tão importante o intraculturalismo como o
interculturalismo. Não há um enfoque sem o outro.
Ao discutir a dinâmica e a mecânica do interculturalismo, aponta-se para
a necessidade de reforço do ensino e da pesquisa para melhor entender o que
os comunicadores, os especialistas das ciências de comunicação, os docentes e
os jornalistas realmente fazem quando comunicam com sucesso, repartindo o
conhecimento partilhado do código linguístico, o conhecimento partilhado das
convenções retóricas e discursivas, e o conhecimento partilhado de dimensões
não-linguísticas da experiência, incluindo a sua visão do mundo e permanente
busca da verdade (Lopes, 2013b).

Conclusão

É inegável que as línguas e culturas lusófona e hispanófona são importantes no


mundo, porque podem abrir várias portas; só não sabemos ainda exactamente
como é que e porque é que o fazem e quais as implicações para as outras línguas

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO

do sistema ecológico; e assim, partindo do sistema ecológico do espaço ibero-


-americano, parece-me, em jeito de conclusão, que as seguintes perguntas têm
alguma pertinência:

• Quantos moçambicanos se prevê que venham a falar Português em 2050?


E quantos, nessa altura, falarão Espanhol como língua estrangeira (Le)?
• Quantos africanos na Comunidade do Desenvolvimento da África Austral
(SADC) têm actualmente algum conhecimento do Português? O número
obedece a alguma razoabilidade? E que previsões há até ao ano de 2050?
• Que papel o Português desempenha e virá potencialmente a desempenhar
nas suas vidas? Desfrutam e virão a desfrutar dos ricos recursos culturais
que as duas línguas proporcionam?
• Que efeitos tem e terá a globalização económica na demanda pelo Por-
tuguês na SADC?
• Será que a evolução de blocos regionais, como o da SADC, ocorrerá no
sentido da promoção de línguas francas que desafiam a posição do Por-
tuguês em Moçambique?
• Será que a expansão do Português e uma eventual maior cobertura do
Espanhol podem vir a provocar a extinção de várias outras línguas, sobre-
tudo a das línguas indígenas?
• Será que o Português e o Espanhol se revelarão recursos importantes
para diversos países em diferentes continentes, proporcionando-lhes
vantagens económicas perante outros concorrentes agressivos?

Termino com uma passagem de Amin Maalouf (2009) que discute a indis-
sociável articulação entre a cultura e a língua, no âmbito dos direitos humanos:

…Não aceito a ideia de que deverão existir uns direitos humanos para os europeus
e outros para os povos islâmicos, africanos, asiáticos. Têm que ser os mesmos. Mas
depois deverá existir uma grande diversidade de expressões culturais. A principal é a
linguagem. (…) e toda a cultura associada à língua deverá tornar-se conhecida, mesmo
para lá das fronteiras dessa cultura.

É, por isso, que acho que as missangas com que fui tentando compor o fio da
comunicação vão também para além das fronteiras do espaço ibero-americano.
Não será o espaço moçambicano de comunicação também iberófono? E tendo

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

em conta a história de Moçambique independente, e com enfoque na actual faixa


etária dos 40 a 55 anos de idade de uma parte do sector populacional mais letrado,
e em larga medida camada dirigente, não será o próprio espaço moçambicano de
comunicação e cultura também ibero-americanófono?

Referências bibliográficas

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AS MISSANGAS DA COMUNICAÇÃO

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 301 08/11/2017 13:12:59


A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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LINGUAS, GLOBALIZACIÓN E INTERCULTURALIDADE
UNHA REFLEXIÓN DESDE O GALEGO
Henrique Monteagudo*

Resumo
A globalización neoliberal tende a reducir o valor das linguas á súa dimensión económica,
reducíndoas a mercadorías (comodificación). A vella noción de comunidade lingüística-
-cultural sofre a competencia da nova noción de mercado lingüístico. Por outra banda, a
globalización tamén erosiona o estatus das linguas oficiais dos estados nacións, favore-
cendo a posición do inglés, mentres que as novas tecnoloxías da comunicación ofrecen
máis posibilidades de visibilización dunha diversidade lingüística previamente ocultada.
Culminará a tendencia uniformizadora coa definitiva imposición da lingua global? Pode-
rán algunhas das grandes linguas, como o español ou o portugués, atopar acomodación
como linguas de comunicación internacional? Que vai acontecer coas linguas menores?
Do que non hai dúbida é de que a comodificación das linguas resulta incompatible coa
interculturalidade, desde que baleira e desposúe ás linguas da súa bagaxe cultural. Non
obstante, a volta ao vello escenario da lingua nacional do estado monolingüe é inviable.
Neste contexto, cómpre vindicar a alternativa ecolingüística, de respecto á diversidade
lingüística. Non será renunciando á súa condición bilingüe e dispersa como conseguirán
abrir camiño comunidades lingüísticas menores como a galega. En canto ao espazo ibero-
-(afro-)americano, o futuro virá da construción dun espazo de comunicación horizontal
entre socios libres, diversos e iguais. A clave radica en activar e fomentar o coñecemento

*
Forma parte do Instituto da Lengua Galega da Universidade de Santiago de Compostela. Pro-
fesor de Filoloxía Galega e Portuguesa, é especialista en Sociolingüística e Historia da Lingua.
Foi docente convidado na University of Birmingham, City University of New York, University
of California – Santa Barbara, Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra, Universidade
de São Paulo, Universidade Federal Fluminense, Universidad de Buenos Aires e Universidad
de la República (Montevideo). Son obras súas: Historia social da lingua galega (1999), Galego e
Português Brasileiro. História, variação e mudança (coeditor, 2012), Linguas, sociedade e política
(editor, 2012). É tamén codirector de Grial. Revista Galega de Cultura. Desde 2013 é Secretario
da Real Academia Galega.
E-mail:[email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

e recoñecemento recíprocos, valorizando a nosa rica diversidade cultural e a vantaxe da


mutua comprensión entre as nosas linguas.

Palabras-clave: globalización; lingua e cultura; diversidade lingüística; espazo de comu-


nicación ibero-afro-americano; galego

“Lingua, globalização e interculturalismo”: O tema é tan suxestivo como inabar-


cábel, polo que se impón acoutalo dalgún xeito. No presente contributo acou-
tarémolo mediante dous recortes. Dunha banda, desenvolveremos a presente
achega desde a focaxe da socio-/ecolingüística, pertinente no contexto do presente
congreso. Por outra banda, situándonos no punto de vista da nosa propia historia,
contemplarémolo desde a peculiar posición do idioma galego, pois entendemos
que a súa condición de lingua minorizada e marxinada, propia dunha comunidade
non só bilingüe, mais sobre todo periférica –como é a galega– pode ser elucidadora
de varios dos aspectos que se levantan cando tratamos esta cuestión.
No título do noso traballo referímonos ás Linguas en plural, mellor cá Lingua,
en singular. Linguas e non lingua: por que? Porque se nos situamos na perspectiva
eco- ou sociolingüística, no centro do noso asunto está non tanto A Lingua, esa
entidade que se nos presenta uniforme e monolítica, como a diversidade lingü-
ística, noción que abranxe a un tempo a pluralidade de linguas –o feito de que os
seres humanos non falamos todos unha única lingua, senón unha multiplicidade
delas– e mais a variación interna de cada lingua –o feito de que cada lingua non é
unha entidade uniforme senón o que tecnicamente denominamos un diasistema,
un sistema de sistemas, internamente diversificado. De feito, as dúas faces da
diversidade acaban por ser moito máis próximas do que pode parecer a primeira
vista. A pregunta, por tanto, sería: como afecta a globalización á diversidade
lingüística? Doutro xeito: que novidades supón a globalización en termos de
valorización e de xestión de tal diversidade?
O primeiro que debemos ter en conta é que a globalización non constitúe un
fenómeno unidireccional e perfectamente coherente, senón un conxunto extre-
mamente intricado de procesos en parte contraditorios. Por tanto, os seus efectos
sobre a diversidade lingüística son tamén complexos e parcialmente contraditorios
(Coupland, 2010; Martins, 2011). Así, dunha parte, coa unificación dos mercados, a
hexemonía das grandes empresas multinacionais, a relevancia crecente dos orga-
nismos internacionais de diverso tipo, o dominio das industrias do entretemento

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LINGUAS, GLOBALIZACIÓN E INTERCULTURALIDADE

norteamericanas e a interconexión de todos os recantos do planeta mediante unha


multiplicidade de medios de comunicación, a globalización favorece extraordinaria-
mente a difusión de linguas de comunicación internacional, nomeadamente unha, o
inglés, ao punto de que este é considerado ‘o idioma da globalización’, ben que este
xa non é o inglés culto británico ou norteamericano, mais si unha serie de modali-
dades derivadas desa lingua, que configuran o antes chamado inglés internacional
e agora coñecido mellor como inglés global (Crystal, 1997). Poderiamos dicir que
esta tendencia da globalización vai da man do auxe do ultraliberalismo que tende
á mercantilización das culturas, á comodificación destas e mais das linguas – a súa
conversión en puras mercadorías –, asunto sobre o que decontado tornaremos.
Doutra banda, a ampliación e a maior accesibilidade da comunicación a través
de redes horizontais, abertas, non centralizadas nin xerarquizadas (facilitado por
Internet), permite a emerxencia, visibilización e interconexión dunha polimorfa
diversidade lingüística e cultural previamente submerxida, invisibilizada e frag-
mentada. De súpeto, moitas máis persoas en todo o mundo son conscientes da
inmensa variedade de idiomas que se falan no planeta, e moitas persoas falantes
de idiomas que antes non tiñan acceso a medios de comunicación minimamente
sofisticados, empregan as novas tecnoloxías para conectarse entre si e para dar a
coñecer o seu idioma e a súa cultura. Antes, as comunidades lingüísticas pequenas,
en moitos casos subalternas e dispersas, dificilmente conseguían soster medios
de comunicación que eran moi custosos, mentres que na actualidade teñen da
posibilidade de artellar medios sostibles a moito menor custo.
Deste xeito, falando da diversidade lingüística, imperceptiblemente deixámonos
esvarar cara á diversidade cultural, e con isto pasamos ao outro termo que completa
a tríade do noso título: o interculturalismo ou interculturalidade. É que as linguas – e
cómpre insistir sobre isto precisamente no marco dos estudos de comunicación – non
son en exclusiva nin principalmente, como tantas veces se proclama, códigos ou ins-
trumentos de comunicación, que teñen un valor calculable en termos económicos,
dependendo do tamaño da súa audiencia/mercado – de onde a hipervaloración actual
da función comunicativa da lingua no contexto da globalización, asunto sobre o que
axiña tornaremos (Heller & Duchêne, 2012). A linguaxe é un órgano, non un instru-
mento, da nosa mente: por iso se ten afirmado que cada lingua nos ofrece unha visión
do mundo, nos dá o mundo visto dunha determinada maneira (Monteagudo, 2002) 1.

1 Anotemos de camiño que esta afirmación ás veces esta afirmación é mal interpretada: unha visión
do mundo non constitúe unha concepción do mundo. Unha lingua non impón unha determinada

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Pero, ademais de códigos útiles para a comunicación e órganos de ordenación


da realidade na nosa mente, as linguas teñen unha función expresiva: a través da
lingua e do discurso construímos a nosa identidade, tanto a individual coma a
social – desde a identidade de xénero ou de clase social ata a de grupo etario ou
profesional, étnica ou nacional. Precisamente estas dúas dimensións das linguas,
como órganos do pensamento e como constitutivas da identidade, son as que as
converten en infraestuturas básicas e expresións sobranceiras das culturas. E
por isto é pertinente relacionar globalización e linguas con interculturalidade
(Bruthiaux, 2008).

O paradigma napoleónico: estado, nación, lingua

Vexamos, pois, como afecta a globalización ás linguas canto que constitutivas


das identidades culturais. Preguntémonos primeiro: como era xestionada a diver-
sidade lingüística na época moderna, digamos na contemporaneidade clásica,
antes do estoupido da globalización? A noción clave para entender o modo de
xestión dominante nesa etapa histórica é a lingua nacional, moldeada conforme
o modelo napoleónico: un estado, unha soa nación, unha única lingua (Montea-
gudo, 2012). A diversidade lingüística da humanidade organizábase xerarquica-
mente arredor dunha serie de idiomas de estado, cada un dos cales expresaba
–ou iso se pretendía– unha cultura nacional. Dentro de cada estado, toda outra
lingua ou modalidade lingüística se subordinaba a esa lingua nacional de estado.
Por suposto, algunhas linguas eran faladas en máis de un estado, mentres que
outras eran utilizadas na comunicación internacional (na diplomacia, na cien-
cia, nos comercio e os negocios), pero estes eran fenómenos complementarios
ou secundarios en relación co padrón principal de ordenamento dos espazos
lingüístico-comunicativos e simbólico-identitarios – en definitiva, das comuni-
dades lingüísticas – en territorios estato-nacionais definidos polo predominio
dun determinado idioma e só ese.
As venerables ‘grandes linguas de civilización’ estato-nacionais eran ima-
xinadas como uniformes, fixas, monolíticas, coroadas por un ‘centro’, que era a
súa variedade superior: na escrita, a lingua literaria; na fala, a da conversa formal

ideoloxía – unha concepción do mundo –, senón que ofrece unha perspectiva peculiar sobre a
realidade, unha específica ordenación desta.

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LINGUAS, GLOBALIZACIÓN E INTERCULTURALIDADE

das clases altas educadas (sempre tendo en conta que a forma ideal dun idioma
era escrita, en canto que a fala viña a ser considerada unha versión deturpada ou
imperfecta desta). As linguas estato-nacionais eran monárquicas, ou, como moito,
aristocráticas ou elitistas: lembremos aqueles manuais titulados The King’s English
ou The Queen’s English. As academias, os dicionarios, o uso das calses cultivadas
marcaban o que era ‘correcto’; o resto era ‘incorrecto’. De feito, A Lingua identifi-
cábase coa súa modalidade culta, estándar, escrita, a que describían as gramáticas,
a que se ensinaba na escola, a que se codificaba na ortografía e nos dicionarios
a que falaban as persoas cultas en contextos formais: O Francés, O Italiano, O
Español, O Alemán, O Portugués tomaban corpo naquelas modalidades cultivadas
e codificadas e confundíanse con estas (Joseph, 1987). Por outra banda, as grandes
linguas de civilización tiñan o seu berce en Europa, e aquelas que por avatares da
historia se difundiran fóra de Europa tiñan o seu centro aquí. Todo ao máis a que
podían aspirar os ianquis, os hispanoamericanos, os brasileiros… era a imitar as
formas de falar e escribir correctas das elites educadas de Inglaterra, España ou
Portugal. Os malpocados africanos malamente podían aspirar nin sequera a iso.
A nación ideal, co seu estado propio, era monolingüe, e o falante ideal era
tamén monolingüe: a cultura lingüística do estato-nacionalismo era e é estrita-
mente monoglósica. O bilingüismo –ou máis en xeral, o poliglotismo– era unha
condición especial dunha reducida elite privilexiada, ou ben era unha condena que
recaía en emigrantes e /ou falantes de linguas subalternas. Calquera desviación da
norma lingüística era condenable –un desvío, unha anomalía, unha dexeneración–
e o contacto e a mestura de linguas constituían o cúmulo da aberración: se falar
un patois (i.e., dialecto) era desprezable ou ridículo nunha persoa culta (aínda
que desculpable nun pobre aldeán), como comportamento propio de analfabetos,
linguaxar creoulo era inequívoco e perturbador síntoma de confusión mental,
peor aínda, de déficit de humanidade.
Sintetizando moito, ese foi o paradigma occidental moderno de xestión da
diversidade lingüística: o ideal (ou, visto desde outro ángulo, o obxectivo) era a
creación de espazos lingüísticos homoxéneos dentro dos límites de cada estado,
coa imposición da lingua nacional dese estado e a subordinación e finalmente a
eliminación de calquera outra lingua que existise previamente dentro do territorio
do estado. A diversidade lingüística, pois, imaxinábase fundamentalmente terri-
torializada, e, como dixemos, verquida nos moldes do estado-nación: cada lingua
–cada comunidade lingüística– tiña un territorio, cada territorio unha lingua.
Dentro de cada lingua, existía unha ríxida xerarquía cunha variedade (ou conxunto

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de variedades) ‘centrais’, estándar, e toda unha panoplia de variedades periféricas


ou marxinais, subestándar. O monolingüismo, do invididuo e da comunidade, era
a norma, a mestura de linguas unha anomalía que requiría rectificación.

A globalización, un paradigma emerxente? Contradicións

O efecto da globalización sobre o devandito paradigma resulta ser triplamente


erosionador. Por arriba, imponse o inglés como lingua de comunicación global,
secundarizando todas as outras linguas, incluso as antes venerables ‘grandes
linguas de civilización’, que se ven rebaixadas e humilladas: a rápida decadencia
do francés na segunda metade do século pasado ilustra perfectamente o fenómeno
(Calvet, 1999 e 2002). Esas vellas glorias xa non son intermediarios obrigatorios
para os falantes de idiomas menores que queren acceder á comunicación inter-
nacional, pois estes poden facelo prescindindo delas, a través do inglés. O estatus
das linguas estato-nacionais aparece, pois, degradado, ou ao menos relativizado.
Isto explica tamén que países que estaban instalados nunha cultura lingüística
rexamente monoglósica (auténticos abandeirados dela), como é Francia, de súpeto
desen en descubrir as bondades da ‘diversidade lingüística’: non unha diversidade
lingüística auténtica, pluralista e igualitaria, senón unha diversidade mínima, a
dose xusta que lle permita abrirse un oco ao francés ao pé do inglés, ao menos no
apetitoso mercado do ensino/aprendizaxe de linguas estranxeiras. Tamén, pola
mesma razón, outras linguas se apresuran a redefinirse como internacionais:
o español e o portugués están no caso. Diremos dúas palabras sobre isto máis
adiante.
Pero, como antes afirmamos, a globalización é contraditoria: por unha banda
favorece a difusión do inglés e, en menor medida, doutras superlingüas interna-
cionais, pero por outra banda facilita o afloramento da diversidade lingüística de
base (Valle, 2011). Así, as grandes linguas de extensión internacional descóbrense a
si mesmas policéntricas (Clyne, 1992; Pöll, 2001). Estas linguas son cada vez menos
imaxinadas, tal como acontecía antes, como entidades compactas e uniformes
coroadas por un centro superior, ordenadas nunha xerarquía ríxida; pola contra,
cada vez máis as linguas pasan a ser contempladas como espazos diversificados
e multidimensionais: xa que logo, as nocións de ‘centro’ e ‘periferia’ esváense e a
dicotomía entre o ‘correcto’ e o ‘incorrecto’ perde valor normativo. A pluralidade
e a diversidade deixan de ser vistas como desorde, caos, disgregación, a unidade

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LINGUAS, GLOBALIZACIÓN E INTERCULTURALIDADE

xa non segue sendo sinónimo de uniformidade e comeza a entenderse como


harmonía e compatibilidade das diferenzas.
En consecuencia, a diversidade lingüística xa non é necesariamente xulgada
como un molesto herdo do subdesenvolvemento que cómpre remover por mor de
progresar, mais como unha riqueza e talvez un recurso de valor imponderable no
porvir. As linguas menores xa non son unanimemente contempladas no peor dos
casos como obstáculos na inexorable marcha da humanidade cara á unificación e
no mellor como reliquias que se deben conservar en museos. O multilingüismo
non é xa unha condena babélica, senón unha vibrante expresión da orixinalidade
e a capacidade de adaptación aos distintos medios naturais e condicións históricas
das comunidades humanas. De aí o nacemento da ecolingüística como reformu-
lación da sociolingüística (Bastardas i Boada, 1996).
Na mesma liña, o monolingüismo xa non é o ideal, senón case unha limita-
ción, e o poliglotismo é revalorizado e fomentado: véxase senón os programas
europeos para a aprendizaxe de segundas e terceiras linguas estranxeiras. Por
parte, a explosión das comunicacións, en particular das redes asociadas ás novas
tecnoloxías, contribúen a desterritorializar os espazos lingüísticos. Coas novas
tecnoloxías, a escrita xa non está no centro, senón que gaña preeminencia a fala
canda a imaxe. As experiencias de emigración e de fronteira, o contacto de linguas,
as variedades mestizas, son revalorizadas como contextos e ocasións favorables
para a xeración de novas redes e de novos modos de interrelación e a emerxencia
da creatividade humana.
E, como se pon de relevo no que acabamos de dicir, alá onde van as linguas,
van as identidades: ou mellor, linguas e identidades van da man. A tradicional con-
cepción esencialista, fixista, monolítica da identidade propia do estadio ‘estato-
-nacional’ vai cedendo terreo ante a aparición das novas identidades múltiples
e esvaradías da globalización, capaces de solaparen e compatibilizaren unha
diversidade de referentes (desde o plano local ao continental), unhas identidades
dinámicas, portátiles, ás veces volátiles e mesmo mutantes. Das culturas autor-
referentes e os canons consagrados pasamos a proteicos procesos de hibrida-
mento, interculturalismo e transculturalización (Heller 2011; Heller & Duchêne,
2012). Ora, non podemos pasar por alto a asociación crecente da globalización
co auxe do neoliberalismo, o cal no ámbito das linguas e culturas significa a súa
mercantilización ou que, faute de mieux, podemos denominar comodificación
(Tan & Rubdy, 2008), isto é, a súa conversión en puras mercadorías. O valor
económico dunha lingua está intimamente vencellado, como é obvio, ao seu

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

potencial comunicativo, xa que, simplificando moito, aquel equivale á cantidade


de riqueza agregada dos seus usuarios (consumidores) reais ou virtuais, cantidade
que, loxicamente, garda relación co número total destes. Co asoballante auxe da
globalización, pasouse de enfatizar o valor económico das linguas a contempla-
las exclusivamente (ou case) desde o reducionista punto de vista económico ou
utilitario, espidas do ‘peso’ das culturas específicas a que están vencelladas. Os
vellos discursos que facían repousar o valor da lingua na súa asociación cunha
identidade nacional forte, na que tradición cultural, e especialmente o prestixio
da súa literatura, adoitaba a xogar un importante papel, recúan fronte os novos
discursos sobre a súa condición de vehículo de comunicación internacional e o
valor de mercado, real ou imaxinario, que se lle atribúe: da noción de comunidade
lingüística pasamos á de mercado lingüístico (Heller & Duchêne, 2012). Resulta
significativo que se procuramos na rede ‘valor económico do portugués’ ou ‘do
español’, inmediatamente aparecen ligazóns que se refiren a estes idiomas como
linguas de comunicación internacional 2.
O asunto é tratado con moitísima frecuencia e conspicua saliencia nos prin-
cipais medios de comunicación de España e Portugal, con titulares e informacións
do teor das seguintes:

EL REY DEFIENDE LA IMPORTANCIA DEL ESPAÑOL


COMO ACTIVO ECONÓMICO.

“El idioma español se ha convertido ya en la segunda lengua de comunicación


internacional y en un activo económico de primer orden”. Esta afirmación
la ha hecho el Rey en el solemne acto de presentación de la 23ª edición del
Diccionario de la lengua española celebrado este viernes, en la sede de la Real
Academia Española.” (El Pais, 17/10/2014) 4
 3

2 Véxanse títulos como Valor económico del español (Delgado / Alonso / Jiménez 2012). Como non
é este o tema da nosa disertación, non imos deternos nel nin na amplísimas bibliografía que
arredor del se produciu nos últimos anos. A título orientativo, pode consultarse os sitios webs
sobre o asunto do Instituto Cervantes e do Observatório da Língua Portuguesa.
Retirado de http://www.cervantes.es/bibliotecas_documentacion_espanol/valor_economico_
espanol/libros.htm.
http://observatorio-lp.sapo.pt/pt/geopolitica/o-valor-economico-da-lingua-portuguesa.
3 Retirado de http://cultura.elpais.com/cultura/2014/10/17/actualidad/1413548153_026732.html.

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LINGUAS, GLOBALIZACIÓN E INTERCULTURALIDADE

As estimacións económicas, adoito realizadas con criterios opacos ou discu-


tibles, ofrecen resultados ora improbables ora torpemente manipulados, acom-
pañados de interpretacións fantasiosas, deste teor:

“El español genera en la actualidad el 16% del valor económico del Producto
Interior Bruto (PIB) y el “factor ñ” de los contenidos en ese idioma provenientes
de las industrias culturales aporta el 3% del PIB en España, según un nuevo
estudio de la presentado hoy en Nueva York. El informe, titulado El valor
económico del español: una empresa multinacional, revela que ese idioma es
el activo intangible más valioso que posee la economía, y destaca que es la
única de las grandes lenguas internacionales que hoy tiene un diccionario,
una ortografía y una gramática comunes. (ABC, 7/12/2011)5.
 4

Outro exemplo, este gráfico, no sentido máis literal da palabra, agora referido
ao portugués:

Ilustración 1: O peso da língua.

Fonte: Revista Língua Portuguesa, decembro / 2011. Retirado de http://revistalingua.uol.com.br/


textos/72/o-valor-do-idioma-249210-1.asp.

4 Retirado de http://www.abc.es/20111206/economia/abci-espanol-produccion-201112060303.html.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Non raramente, as gabanzas da lingua en foco, formuladas a ton cos discursos


economicistas da globalización neoliberal, deixan albiscar as pervivencias da
chatarra retórica do vello imperialismo. Así, como exemplo ilustrativo, un artigo
titulado “El español, lengua internacional”, aparece encabezado cunha frase de
nada menos que o emperador Carlos V que reza: “mi lengua española, la cual es
tan noble que merece ser sabida y entendida de toda la gente cristiana” 5. Claro
está que onde hai retórica e ideoloxía, tamén hai intereses máis ou menos confe-
sables (véxase por caso Valle / Villa, 2007) sobre a política lingüística de España
en relación co Brasil).
Xa que logo, á derradeira, a globalización ultraliberal, co seu efecto de como-
dificación das linguas e as culturas, acaba por resultar un obstáculo pa a intercul-
turalidade, pola sinxela razón de que a comodificación hipervalora o potencial
comunicativo das linguas pero infravalora a súa asociación coas respectivas culturas.

O futuro da globalización e o porvir da diversidade

En que senso se decantará finalmente ese conxunto variopinto e en moitos sensos


contraditorio de procesos que denominamos globalización? Como será o novo
escenario ecolingüístico resultante? Imporase unha tendencia uniformizadora,
converxendo as linguas e culturas do mundo co inglés e a cultura dominante
anglosaxoa, definitivamente comodificados? Será que algunhas das grandes lin-
guas –como o español ou o portugués, mais tamén o francés e o ruso– poderán ser
dabondo comodificadas para tirar proveito do novo escenario? Que acontecerá con
outras linguas de estados-nación, grandes –como o alemán– , medianas –como o
italiano ou o polaco– ou pequenas, coma o grego, o sueco, o checo ou o lituano?
Cal será o destino das linguas e culturas ameazadas e minorizadas, como a galega,
a vasca ou a galesa?
Non é doado predicilo. Obviamente, existen poderosas forzas que apuxan
cara á culminación da tendencia á drástica redución da diversidade lingüística e
cultural dos últimos séculos, acelerada nas décadas pasadas (Crystal, 2000). Se
continúa a imporse a valorización das linguas e as culturas en termos estritos de
mercadoría, probablemente asistiremos á culminación da hecatombe lingüístico-
-cultural en marcha: segundo estimacións confiables, ao longo do século XXI

5 Retirado de http://www.vallenajerilla.com/berceo/marcos/lenguainternacional.htm.

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LINGUAS, GLOBALIZACIÓN E INTERCULTURALIDADE

desaparecerá o 90% das linguas que se falaban ao comezo deste. Pode discutirse
o significado deste feito en termos de perda de riqueza para o conxunto da huma-
nidade, pero o que non se pode discutir é que o feito está en camiño de ocorrer
(Nettle & Romaine, 2000).
Por outra banda, na globalización tamén coexisten outros elementos –novos
medios de comunicación, novos recursos tecnolóxicos e lingüísticos, novos valores,
novas mentalidades– que poden facilitar a creación de condicións de sustentabili-
dade do multilingüismo, e en concreto, da revitalización e mantemento das linguas
ameazadas. O que cómpre, en todo caso, é ter claro por que modelo se desexa optar.

Reflexións e propostas ao fío dun congreso iberoamericano

O proceso de reformulación da identidade colectiva que se está a producir no Bra-


sil, ao abeiro da profunda vaga democratizadora que se desenvolveu nas últimas
décadas, pode ser ilustrativo dos efectos paradoxais da globalización sobre a diver-
sidade lingüística. Aquela xigantesca nación, que se imaxinaba racialmente branca,
culturalmente europea e lingüisticamente portuguesa, está a construír unha nova
identidade, empeñada por incorporar as compoñentes indoamericana e africana
e as achegas das distintas migracións máis recentes. Correspondentemente, esa
nación xa non aspira a falar ‘portugués’ entendido á moda europea (en realidade,
lisboeta), senón que decidiu reivindicar e recrear os seus modos de expresión
propios, aceptando unha certa pluralidade e adoptando criterios flexibles. Este
é o fondo do intenso e interesantísimo debate que se está a producir naquel país
en relación coa redefinición da norma lingüística do portugués do Brasil (Bagno,
2002 e 2003; Faraco, 2008). Atrevereime a formular o seguinte prognóstico: ou o
portugués se reinventa como lingua policéntrica ou acabará fragmentándose, co
brasileiro escindíndose como lingua independente (Baxter, 1992). Neste punto, na
miña modesta opinión, e sen querer interferir nun debate que os propios interesa-
dos deben resolver, radica a posible fortuna do Acordo Ortográfico dos ‘90: que sexa
un punto de partida para abandonar os moldes das vellas linguas monocéntricas,
mirando de conciliar as dúas tendencias contraditorias da globalización 6. Isto é,

6 Pezas especialmente significativas do debate arredor do portugués como lingua internacional


e da noción de lusofonía son Pinto (2009); Castilho (2013); Castro (2010); Faraco (2010 e 2012);
Oliveira (2013a e 2013b); Martins (2012, 2014); Martins, Sousa & Cabecinhas (2007); e o conxunto
de traballos recollidos en Moita Lopes (2013), Martins (2015) e Martins, et al. (2014).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

apoiando a tentativa de reposicionar o portugués como lingua de comunicación


internacional precisamente nun recoñecemento sincero da diversidade lingüística
e cultural.
Neste novo contexto é tamén no que teñen que situarse idiomas menores
e minorizados como o galego. Pensando neste último, non será renunciando á
nosa condición bilingüe, fronteiriza, difusa e dispersa, como nos abriremos o
camiño cara ao porvir. Se conseguimos labrar un futuro para o noso idioma e
cultura propios (tarefa extremamente difícil) será precisamente aprendendo desa
experiencia (dolorosa, mesmo traumática) de contacto, dominación, marxinali-
zación e conflito, pero tamén de combate pola dignificación, a reconstrución e a
revitalización do noso idioma, da cultura e a identidade propias. Só teremos futuro
como pobo, cultura e lingua diferenciados se soubermos explotar as vantaxes, no
novo contexto, e ofrecer os ensinamentos que saibamos extraer da nosa atribulada
historia e a nosa problemática condición.
Canto ao espazo íbero-(afro-)americano, o futuro só pode vir da constru-
ción dun ámbito de comunicación e troca entre libres e iguais, en que poñamos
en valor os intereses comúns e saibamos valorizar o que temos de semellantes
tanto como respectar o que temos de diferentes. Un respecto que non podemos
confundir nin coa veneración acrítica da diferenza nin coa tolerancia condes-
cendente ou neglixente co outro. A clave está en activar os procesos de diálogo,
de coñecemento e recoñecemento mutuos: partirmos das respectivas identidades
pero non obsesionados en reafirmármonos nelas, senón coa disposición para
enriquecelas, adaptalas e renovalas mediante as nosas trocas. O coñecemento
mutuo ten no caso do galego e os países de expresión portuguesa a paradoxal
condición dunha aventura tanto cara a fóra como cara a dentro: canto máis e
mellor nos coñecemos mutuamente, máis e mellor os parceiros nos coñecemos
a nós mesmos (Monteagudo & Alonso Pintos, 2010).
No aspecto lingüístico, unha estratexia de grande valor é o fomento do deno-
minado bilingüismo receptivo ou sesquilingüismo, que facilita o contacto bilingüe:
sabemos que a capacidade para a intercomprensión mutua depende un tanto do
coñecemento da lingua do outro, e noutro tanto nunha actitude de escoita activa
(Teyssier, 2004) 7. Cun pouco de esforzo, unha actitude proactiva e un chisco de
experiencia na comunicación interlingüística, os falantes das linguas neolati-
nas ibero-(afro-)americanas (castelán e portugués, pero tamén galego e catalán,

7 Véxase o sitio web http://lingalog.net/dokuwiki/es/intercomprehension/accueil.

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LINGUAS, GLOBALIZACIÓN E INTERCULTURALIDADE

francés e italiano) podemos entendernos empregando cada un a súa lingua, ao


tempo que podemos acceder aos produtos culturais e ás redes de comunicación
en todas esas linguas: velaí a noción do contacto bi- ou multilingüe. Os sistemas
educativos dos nosos países deberan orientarse de xeito máis decidido a favorecer
esa competencia multilingüe receptiva. Pero tamén os medios de comunicación
deben xogar un papel na visibilización, familiarización e exposición das distintas
linguas e culturas.
Por último, permitímonos suxerir a conveniencia de encadrar este tipo de
encontros no novo paradigma dos estudos trasatlánticos, que alén de permitirnos
a incorporación de África ao diálogo entre Europa e América, salientan a impor-
tancia dun elemento fundamental das nosas realidades: as migracións. A nosa
condición de pobos que experimentaron e experimentan a diáspora, o rol das res-
pectivas diásporas en cadanseu proceso histórico, o lugar da diáspora –emigración
e exilio– nos nosos imaxinarios colectivos, son todos eles asuntos que deben ser
reexaminados á luz dos novos paradigmas relacionados coa globalización. Que
experiencia pode ser máis acaída cá diáspora para a partir dela reflexionar sobre
o dinamismo das identidades, o esvaemento das fronteiras, o cuestionamento da
noción de centro e periferia, a interculturalidade, os procesos de hibridamento,
o plurilingüismo, a desterritorialización das linguas?
Os estudos trasatlánticos tamén nos convidan a imaxinar o espazo mundo
desde outro punto de vista: na perspectiva trasantlántica, os nosos países, as
nosas culturas, as nosas identidades, xa non aparecen como periferia, senón como
membros activos dun ámbito dinámico, axentes conectados nunha rede difusa
de conexións horizontais, participantes integrados nun ámbito en construción
do que todos somos parceiros e todos aprendemos de todos en condicións de
igualdade. E ocasións como a presente, un encontro efectivamente trasatlántico,
figúransenos finalmente como un fito valioso nese camiño.

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 318 08/11/2017 13:13:00


MODELOS COGNITIVOS DA LUSOFONIA
ROMANTISMO E RACIONALISMO NAS POLÍTICAS
DE LÍNGUA E COMUNICAÇÃO DE UNIDADE/DIVERSIDADE
DO PORTUGUÊS EUROPEU E BRASILEIRO
Augusto Soares da Silva*

Resumo
Pensamos sobre a realidade social em termos de modelos cognitivos e culturais e, conse-
quentemente, utilizamos estes modelos para categorizar e avaliar a variação linguística.
Neste estudo, analisaremos os modelos cognitivos e culturais subjacentes às perceções
e atitudes relativamente às variedades europeia e brasileira do português. Emergindo
necessariamente no discurso, esses modelos serão estudados com base num corpus de
debates sobre políticas de língua e comunicação, normatização linguística e lusofonia.
Identificaremos modelos românticos e modelos racionalistas, tanto de convergência como
de divergência entre as duas variedades nacionais, que estão na base de atitudes puristas e
pró-independentistas face ao português como língua pluricêntrica. O modelo racionalista
vê a norma padrão como meio de participação social, ao passo que o modelo romântico olha
para a língua padrão como meio de discriminação de identidades. Discutiremos a influência
destas ideologias românticas e racionalistas no pluricentrismo do português e na lusofonia.

Palavras-chave: lusofonia; pluricentrismo; políticas de língua e comunicação; modelos


cognitivos

* Professor Catedrático da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Por-


tuguesa, onde concluiu o Doutoramento em Linguística Portuguesa, em 1997. As suas áreas de
investigação são a semântica lexical, as bases conceptuais da gramática e a variação linguística,
na perspetiva da Linguística Cognitiva, e a interface entre esta e as Ciências da Comunicação
na análise crítica e cognitiva de discursos dos media. Entre as suas obras publicadas constam
O Mundo dos Sentidos em Português: Polissemia, Semântica e Cognição (2006), premiado com
o Grande Prémio Internacional de Linguística, da Sociedade da Língua Portuguesa. Coordena
a Licenciatura em Ciências da Comunicação e o Doutoramento em Linguística e é diretor do
Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos.
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1. Introdução

Pensamos sobre a realidade social em termos de modelos cognitivos e culturais,


isto é, conhecimentos individualmente idealizados e interindividualmente parti-
lhados pelos membros de uma comunidade. Sendo qualquer língua um fenómeno
sociocultural inevitavelmente não-homogéneo, usamos modelos cognitivos e
culturais para categorizar e avaliar a variação intralinguística tanto regional como
nacional. Especificamente, utilizamos modelos românticos e racionalistas para
percecionar, categorizar e avaliar a variação e a normatização linguísticas, bem
como para decidir sobre questões de normatização e estabelecer políticas de
língua e comunicação. O modelo racionalista vê a norma padrão como meio de
participação social, ao passo que o modelo romântico olha para a língua padrão
como meio de discriminação de identidades.
No contexto do estudo sobre línguas pluricêntricas (Clyne, 1992; Silva, 2014a)
e na perspetiva de uma visão cognitiva da linguagem e da comunicação (Geeraerts
& Cuyckens, 2007; Silva, 1997, 2004), analisaremos os modelos cognitivos e cul-
turais subjacentes às perceções e atitudes relativamente às variedades nacionais
do português europeu e brasileiro. Depois de um breve olhar sobre o português
como língua pluricêntrica, identificaremos, com base num corpus de debates sobre
políticas de língua e comunicação e lusofonia, modelos românticos e racionalistas,
tanto de convergência como de divergência entre as duas variedades nacionais,
que estão na base de atitudes puristas e pró-independentistas. Discutiremos,
ainda, a influência destas ideologias românticas e racionalistas no pluricentrismo
do português e na lusofonia.

2. O português como língua pluricêntrica

Com textos escritos desde a fundação de Portugal no século XII, o português é


atualmente falado por mais de 250 milhões de falantes (Reto, 2012), sendo a sexta
língua mais falada do mundo, a quinta língua mais usada na Internet e a terceira
língua mais usada nas redes sociais Facebook e Twitter. É a língua oficial de oito
países espalhados pela Europa, América, África e Ásia, designadamente Angola,
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe
e Timor Leste; e língua oficial de mais dois – Guiné Equatorial e China ou, mais
exatamente, Região de Macau.

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MODELOS COGNITIVOS DA LUSOFONIA

O português é uma língua tipicamente pluricêntrica, no sentido, instituciona-


lizado por Clyne (1992, p. 1), de que apresenta diferentes variedades nacionais, cada
qual com a sua norma padrão própria. O português tem duas variedades padrão
estabelecidas – o português europeu (PE), que é oficial em sete dos referidos paí-
ses, e o português brasileiro (PB) – e outras normas padrão em desenvolvimento,
como as do português de Moçambique e de Angola.
Como afirmava Clyne (1992) no epílogo do volume seminal sobre línguas
pluricêntricas, nele reunindo dados comparativos sobre 17 línguas pluricêntricas
espalhadas pelo mundo, o português é das poucas línguas que mais se aproxi-
mam da situação pouco frequente de pluricentrismo simétrico – propriedade que
caracteriza somente o português e o árabe entre as línguas estudadas no volume
de Clyne. Na verdade, a supremacia histórica de Portugal é contrabalançada pela
gigantesca dimensão do território e da população do Brasil.
Entre os fatores que têm favorecido o pluricentrismo simétrico do por-
tuguês, podemos apontar os seguintes: o balanceamento, já referido, entre
a supremacia temporal de Portugal e a supremacia espacial do Brasil; nem
Portugal nem o Brasil exercem poder político ou económico um sobre o outro;
ambos os países têm ganho recentemente prestígio internacional, ora Portugal
como membro da União Europeia, ora o Brasil como potência económica emer-
gente fazendo parte dos BRICS; o desenvolvimento de dicionários e gramáticas
de referência e o consequente aumento de codificação das normas padrão de
Portugal e do Brasil; a pouca cooperação entre as duas normas; a normatiza-
ção divergente das duas variedades nacionais; a criação de instituições que
visam também a normatização e promoção internacional da língua portu-
guesa, como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o Instituto
Internacional da Língua Portuguesa (IILP) e a Associação das Universidades de
Língua Portuguesa (AULP); e o reconhecimento cada vez maior em Portugal e
no Brasil, e noutros países lusófonos, da importância da internacionalização
e do pluricentrismo do português em termos sociopolíticos, geoestratégicos,
económicos e culturais.
Há, no entanto, algumas assimetrias. Por exemplo, enquanto o PB goza de
uma grande popularidade em Portugal e noutros países lusófonos, a exposição
do PE no Brasil é mínima.
Efetivamente, os media brasileiros, especialmente a TV, fecham-se a outras
normas nacionais do português, pelo que os brasileiros têm geralmente dificul-
dades em entender o padrão europeu falado. Um outro exemplo de assimetria: o

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

padrão brasileiro está mais afastado da realidade e diversidade da língua falada


do que o padrão português 1.
Entre o PE e o PB existem diferenças a todos os níveis da estrutura linguística.
Tanto numa variedade como na outra, encontram-se tendências inovadoras e
conservadoras, o que significa que não pertence a Portugal o privilégio da tradição
nem ao Brasil o privilégio da inovação. Por exemplo, no domínio da fonética e da
fonologia o PB é mais conservador do que o PE: houve uma acentuada mudança
no sistema das vogais átonas no PE no sentido de uma forte subida, redução e até
mesmo desaparecimento. O maior conservadorismo do PB exprime-se também
na colocação dos clíticos: o PB mantém o predomínio da próclise do português
médio e clássico, ao passo que o PE evoluiu para a ênclise, que a partir do séc.
XVIII se tornou obrigatória na oração principal afirmativa. Os estudos linguísti-
cos comparativos têm mostrado que as duas variedades nacionais começaram a
divergir no séc. XIX 2.
O PB configura uma situação de diglossia – discrepância entre a norma tradi-
cional idealizada e a norma real dos grandes centros urbanos, ou a norma escrita
exógena, comprometida com o PE, e a norma oral endógena –, que nos últimos
anos tem vindo a perder intensidade, e apresenta um grande contínuo dialetal
(Silva, R.V., 2004), ao passo que o PE se caracteriza por uma crescente padronização
a partir da revolução democrática de 1974. O PB está hoje confrontado com dois
grandes desafios: um dilema sociolinguístico, pela grande variação regional e
social, e um dilema didático, pelo ensino da língua a uma população que tem cres-
cido galopantemente. A mudança, nos últimos anos, na política oficial de ensino
da língua no Brasil tem contribuído para reduzir o impacto destes problemas: a
escola está mais aberta a socioletos do que antes. Além disso, a intensa e rápida
urbanização do Brasil tem posto em contacto as variedades popular e culta do PB
e, assim, diminuído a distância entre elas.
Os linguistas dividem-se sobre a questão de saber por que o PB é diferente do
PE e como isso aconteceu. Existem três hipóteses sobre a origem do PB. Segundo
a hipótese da antiguidade, o PB é a continuação do português médio do séc.
XV, encontrando-se aí a origem de várias características do PB e tendo sido o
PE a tomar um rumo desviante a partir do séc. XVIII (Naro & Scherre, 2007).

1 Sobre o português como língua pluricêntrica, ver Baxter (1992), Castilho (2005, 2010) e Silva
(2014b).
2 Sobre as diferenças entre PE e PB, ver Teyssier (1982: 78-88), Baxter (1992), Mateus et al. (2003:
45-50), Silva, R.V. (2004: 140-147), Castro (2006: 228-231), Castilho (2010: 171-195) e Silva (2014b).

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MODELOS COGNITIVOS DA LUSOFONIA

Contrariamente, a hipótese da emergência de uma nova gramática defende que


a partir do séc. XIX a língua falada no Brasil desenvolveu uma estrutura grama-
tical nova (Tarallo, 1993; Bagno, 2001). Apoiada na natureza mestiça da popula-
ção brasileira, a hipótese crioulista sustenta que a crioulização do português foi
inevitável e que as especificidades do PB têm a sua origem em crioulos de base
africana (Baxter & Lucchesi, 1997).
Os linguistas tanto brasileiros como portugueses também se dividem quanto
à diversidade que o português apresenta: alguns acham que o que se fala no
Brasil e em Portugal são já línguas diferentes; outros consideram que estamos
perante variedades bastante diferenciadas mas ainda de uma mesma língua. Não
há ainda estudos desenvolvidos e sistemáticos sobre a questão da convergência
ou divergência entre as duas variedades nacionais. A hipótese da divergência é a
que atualmente reúne maior consenso da parte de linguistas tanto portugueses
como brasileiros. Por exemplo, Castro (1986, p. 45) evoca o que aconteceu ao
latim no declínio do império romano para formular a hipótese da fragmentação
progressiva e inevitável da língua portuguesa.
A nossa investigação sociocognitiva e socioletométrica sobre convergência
e divergência entre PE e PB nos últimos 60 anos permite confirmar a hipótese da
divergência entre as duas variedades nacionais (Silva 2010, 2012, 2014b). Utiliza-
mos o método onomasiológico de estudo da variação linguística, mais precisamente
a variação entre palavras ou construções semanticamente equivalentes (sinónimos
denotacionais), e métodos socioletométricos baseados em perfis onomasiológicos
de conceitos e funções, isto é, conjuntos de expressões sinónimas alternativas
usadas para designar determinado conceito ou função, juntamente com as suas
frequências relativas. A base empírica da investigação inclui largos milhares de
observações do uso de termos alternativos para nomear 43 conceitos nominais
dos campos lexicais do futebol e vestuário e do uso de construções alternativas
para designar 15 funções linguísticas. Essas observações são feitas no corpus
CONDIVport, que construímos para o efeito, disponível em www.linguateca.pt/
ACDC, constituído por textos portugueses e brasileiros dos anos 50, 70 e 2000 e
com a extensão de cerca de 20 milhões de palavras. Os materiais do corpus foram
extraídos de (i) jornais de desporto e revistas de moda, (ii) linguagem da Internet de
chats associados a clubes de futebol e (iii) etiquetas de roupas de lojas de vestuário.
A investigação sociolexicológica já realizada com base em 21 perfis onoma-
siológicos do futebol (p. ex., os termos atacante, avançado, avante, dianteiro,
forward e ponta de lança, juntamente com as suas frequências relativas no corpus,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

constituem o perfil onomasiológico do conceito de avançado) e 22 perfis ono-


masiológicos do vestuário (p. ex., o perfil de casaco masculino inclui os termos
blazer, casaco, paletó) permite concluir que a hipótese da divergência entre PE
e PB se confirma no campo lexical do vestuário, mas não no do futebol. Os ter-
mos de vestuário são mais representativos do vocabulário comum e, por isso,
os resultados do vestuário estarão mais próximos da realidade sociolinguística.
A ligeira convergência no campo do futebol será um efeito da globalização e da
padronização do vocabulário do futebol. O mesmo estudo mostra também que há
mais mudanças no PB do que no PE, que o PB é mais permeável a estrangeirismos
e que não há orientação de uma variedade em relação à outra, o que sugere um
pluricentrismo simétrico entre PE e PB (Silva, 2010).
Como extensão em curso, pretendemos investigar até que ponto variáveis
lexicais e variáveis gramaticais se correlacionam como indicadores de convergên-
cia/divergência entre PE e PB. Num estudo piloto, foram analisadas três variáveis
sintáticas: construções preposicionais alternativas (p. ex., falar de/sobre/acerca
de/em), construções completivas infinitivas alternativas (selecionadas por verbos
causativos e percetivos) e construções adjetivas alternativas (ideia falsa vs. falsa
ideia). Os resultados mostram que estas variáveis sintáticas replicam os resultados
dos termos de vestuário, confirmando assim a hipótese da divergência entre PE
e PB (Silva, 2014b).

3. Modelos cognitivos da variação intralinguística:


romantismo e racionalismo

O recente paradigma da Linguística Cognitiva (Geeraerts & Cuyckens, 2007; Silva,


1997, 2004) tem evidenciado a ideia de que pensamos sobre a realidade social em
termos de modelos culturais (Holland & Quinn, 1987; Lakoff, 1996; Dirven, Frank
& Pütz, 2003; Sharifian, 2011). Este conhecimento é individualmente idealizado
e intersubjetivamente partilhado pelos membros de um grupo social, consti-
tuindo assim modelos cognitivos culturais. Sendo qualquer língua um fenómeno
inevitavelmente não-homogéneo, é natural que usemos modelos cognitivos e
culturais para categorizar e avaliar a variação intralinguística, quer regional quer
nacional. Este é um dos principais tópicos de investigação da Sociolinguística
Cognitiva (Kristiansen & Dirven, 2008; Silva, 2009) – uma extensão emergente
da Linguística Cognitiva como modelo orientado para o significado e centrado

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MODELOS COGNITIVOS DA LUSOFONIA

no uso da língua. A Sociolinguística Cognitiva investiga tanto a variação do sig-


nificado, especificamente os vários modos de interação entre o significado e as
outras fontes de variação intralinguística, como o significado da variação ou
representação cognitiva da variação intralinguística, nas suas componentes de
perceção, categorização e avaliação atitudinal da diversidade linguística.
Relativamente a este segundo domínio de investigação da Sociolinguística
Cognitiva, Geearerts (2003) identifica dois modelos cognitivos e culturais de
padronização linguística na cultura ocidental, em competição permanente. O
modelo racionalista considera a norma linguística padrão como meio de partici-
pação social, de acesso à educação, à cultura e à ciência, de emancipação social e
política, de participação política e de construção da democracia. Em contrapartida,
o modelo romântico vê a língua padrão como meio de discriminação de identi-
dades regionais, sociais e culturais e, consequentemente, como instrumento de
opressão e de exclusão social. Subjacentes a estes dois modelos ideológicos da
variação intralinguística, estão duas visões da língua radicalmente distintas: o
modelo romântico vê a língua como expressão de uma identidade individual e
avalia positivamente a diversidade linguística, como reconhecimento do respeito
pelas diferentes identidades; o modelo racionalista concebe a língua como meio de
comunicação e avalia positivamente a uniformidade linguística, porque expressão
simbólica de uma sociedade livre e aberta.
Estes modelos cognitivos e culturais devem ser entendidos como pontos de
referência analíticos. Quer isto dizer que podem não ocorrer na sua forma mais
pura, podem historicamente transformar-se e até podem misturar-se. Por exem-
plo, o nacionalismo característico do séc. XIX combina os modelos romântico e
racionalista. E o pós-modernismo das últimas décadas do séc. XX inclui quer o
modelo romântico, pela expressão de uma identidade fragmentada e pela valori-
zação da diversidade, quer o modelo racionalista, pela valorização da globalização
política, económica e linguística. O multilinguismo é hoje um meio de conciliar,
até certo ponto, os dois modelos rivais, já que se correlaciona quer com a visão
racionalista da eficácia comunicativa quer com a visão romântica da identidade
fragmentada do indivíduo pós-moderno.
Vamos agora aplicar os modelos racionalista e romântico da variação intralin-
guística à perceção, categorização e avaliação dos falantes portugueses e brasileiros
sobre as relações entre o português europeu e o português brasileiro e sobre o
pluricentrismo do português e a lusofonia. Uma vez que os modelos cognitivos
e culturais emergem no discurso, vamos analisar alguns discursos de políticos,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

jornalistas, escritores, linguistas e outros intelectuais sobre políticas de língua,


questões de normatização linguística e o recente Acordo Ortográfico. Para além
de textos jornalísticos, discursos políticos e outras publicações compilados para
o corpus deste estudo, recolhemos dados também em obras sobre políticas de
língua, questões de normatização linguística e lusofonia, como as de Bagno (2000,
2001), Faraco (2001), Coelho (2005), Martins, (2015), Martins et alii (2014), Mar-
tins, Sousa e Cabecinhas (2006), Gama (2007), Cristóvão (2008) e Martins (2015).
Encontrámos neste corpus quatro atitudes românticas e racionalistas sobre
as relações entre PE e PB e, num plano mais geral, sobre a própria lusofonia:

• atitude romântica convergente;


• atitude romântica divergente;
• atitude racionalista convergente;
• atitude racionalista divergente.

As atitudes mais radicalmente convergentes e divergentes são românticas, ao


passo que as posições mais moderadas tendem a ser racionalistas. Além disso, as
atitudes românticas são geralmente mais frequentes e mais explícitas no Brasil do
que em Portugal. Passamos então a analisar estas atitudes nas secções seguintes.

4. Modelos românticos do pluricentrismo PE/PB e da lusofonia

O modelo romântico convergente exprime-se, no Brasil, num normativismo con-


servador e dogmático que pretende impor um padrão decalcado do português
literário europeu, bastante afastado das variedades cultas brasileiras. Os subscri-
tores deste modelo tendem a ver erros linguísticos em todo o lado, fazem alertas
alarmistas para a “deterioração da gramática” e atribuem aos falantes uma entra-
nhada ignorância linguística e um irresponsável desmazelo da língua. Além disso,
condenam o uso de estrangeirismos, sobretudo de origem inglesa, bem como as
construções gramaticais próprias da variedade brasileira.
Este modelo romântico é amplamente difundido pelos media brasileiros e tem
tido manifestações políticas em projetos de lei brasileiros. Por exemplo, o projeto de
lei federal do deputado Aldo Rebelo, sobre “a promoção, a proteção, a defesa e o uso
da língua portuguesa” (projeto de lei 1676/1999), proibia o uso de estrangeirismos e
previa mesmo pagamento de multa (Faraco, 2001). Efetivamente, há na sociedade

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MODELOS COGNITIVOS DA LUSOFONIA

brasileira um imaginário social poderoso que leva jornalistas, intelectuais, peda-


gogos e professores a travarem “guerras” sociais em defesa da dogmática, imutável
e única “norma padrão”. Estes “guardiães da língua” têm construído uma cultura do
erro linguístico e de desqualificação do falante brasileiro. Em contexto de debate
público e quando faltam argumentos para o sustentar, há mesmo a tendência de
desqualificar o adversário apontando-lhe “erros de português” – por isso se diz
que no Brasil toda a polémica termina na gramática (Faraco, 2011).
Esta forma de nacionalismo e este desejo de impor o padrão europeizante
já vêm do elitismo na formação do Estado brasileiro, na segunda metade do séc.
XIX. Grande parte da elite letrada brasileira dessa altura defendeu para o novo país
o projeto de construir uma sociedade branca e europeizada através de políticas
que resultassem na “higienização da raça” e também da língua e no “embran-
quecimento” do país (Schwarcz, 1993). Este imaginário linguístico construído no
século XIX continua hoje presente naqueles que defendem a pureza da língua
portuguesa e lutam contra as crescentes influências estrangeiras e globalizantes e
contra as mudanças da própria língua. Destacam-se três manifestações específicas
desta atitude: (i) o conservadorismo dos manuais de redação dos grandes jornais
brasileiros, seguindo os velhos compêndios gramaticais; (ii) a proliferação e o
sucesso de colunas gramaticais nesses jornais, empenhados na “caça” aos erros; e
(iii) a importância dada à “norma padrão” europeia no exame nacional do ensino
médio (Faraco, 2008).
Subjacente a esta atitude purista e normativa, está uma ideologia linguística
que prega a incompetência da grande maioria dos brasileiros em falar a língua de
Camões e está também uma ideologia de exclusão social e de discriminação eco-
nómica, uma ideologia da superioridade da raça branca e um projeto europeizante
da elite brasileira. Resultam daqui mitos e preconceitos linguísticos, como “o PE
é puro e inalterado, ao passo que o PB é emprestado e corrompido”, “brasileiro
não sabe português”, “brasileiro fala tudo errado”, “português é muito difícil”,
“o Brasil é o país de idioma sem gramática”, “falar assim é feio porque é fala de
índio”, “não seguir a norma é perder a oportunidade de emprego e a consequente
chance de subir na vida”.
A atitude nacionalista romântica encontra-se também em Portugal. Concreta-
mente, os brasileirismos são considerados invasores e destruidores da língua. Por
exemplo, os estudos reunidos no livro “Estão a assassinar o português!” (Moura,
1983) defendem que o principal culpado das “desgraças da língua portuguesa”
são as telenovelas brasileiras. Recentemente, a aversão à variedade brasileira

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

tem sido amplamente sentida no contexto do novo Acordo Ortográfico: tendo


envolvido mais mudanças no PE do que no PB, muitos portugueses veem nele
a submissão inaceitável de Portugal ao Brasil e até, no atual contexto de crise
financeira e económica, a “venda da língua” ao Brasil. Alguns intelectuais por-
tugueses consideram o Acordo um “desastre nacional” ou um “crime nacional”
(Moura, 2008). O movimento contra o Acordo vê nele o “assassinato da língua” e
tem produzido slogans nacionalistas tais como “Não fiques de braços cruzados
enquanto nos forçam a falar o português do Brasil! És português ou brasileiro?”.
Pode aqui ler-se, também, a atitude neocolonialista assumida ainda por muitos
portugueses, para quem a miscigenação conduz à corrupção e ao empobrecimento
do “português autêntico”.
Em contrapartida, o modelo romântico divergente está hoje presente nos
que reclamam, com argumentos linguísticos e etnográficos, a existência de uma
língua brasileira e nos que se esforçam por evitar/eliminar o termo português
na designação da língua oficial do Brasil. Este nacionalismo linguístico mantém
traços ideológicos e emotivos do período da independência do Brasil, em 1822,
particularmente o projeto romântico-modernista de então de afirmação de uma
identidade nacional brasileira, pela qual o povo brasileiro se diferenciava dos
outros povos do mundo, a começar pelo povo português.
A expressão científica mais influente desta atitude encontra-se no trabalho
do linguista e escritor brasileiro Marcos Bagno. Num dos seus famosos ensaios,
Bagno (2001) argumenta que as duas variedades começaram a divergir já em 1500,
quando os portugueses chegaram ao Brasil, e aponta cinco diferenças sintáticas
que considera suficientes para se dever falar de uma língua brasileira. A isto acres-
centa os argumentos da identidade ecológica, étnica e cultural: “Se a ecologia é
outra, se a composição étnica é outra, se a cultura é outra, por que somente a língua
seria a mesma?” (Bagno, 2001, p. 176). Afirma ainda que reconhecer a existência
de uma língua brasileira é importante para elevar a “auto-estima linguística dos
brasileiros” e para se começar a tratar a “esquizofrenia diglóssica que existe no
Brasil” (Bagno, 2001, p. 175). Também o linguista brasileiro Perini (1997, pp. 31-38)
considera que o “português” (a norma padrão europeizante) e o “vernáculo” (a
língua falada pelos brasileiros) “são tão diferentes quanto o português e o espanhol,
ou quanto o dinamarquês e o norueguês”. A influente revista brasileira Superinte-
ressante publicou, em 2000, a reportagem “Falamos a língua de Cabral?” em que
todos os linguistas entrevistados (exceto um) foram unânimes em afirmar que
“no Brasil, definitivamente, se fala uma língua diferente da falada em Portugal”.

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MODELOS COGNITIVOS DA LUSOFONIA

Esta atitude romântica divergente está presente nos media brasileiros: por
exemplo, a legendagem de entrevistas a jovens portugueses no programa televisivo
do canal MTV e a dobragem de filmes/séries portugueses, como o filme Capitães
de Abril, produzido em 2000 por Maria de Medeiros e baseado na Revolução de
25 de Abril de 1974, e a série televisiva Equador, baseada no romance homónimo
de Miguel Sousa Tavares e produzida pela canal português TVI, em 2008.

5. Modelos racionalistas do pluricentrismo PE/PB e da lusofonia

O modelo racionalista convergente manifesta-se na ideia da “unidade na diversi-


dade” ou “unidade superior” da língua portuguesa – uma ideia antiga, amplamente
difundida e aceite pelos primeiros grandes linguistas de ambos os países, que
hoje recebe novos contornos políticos. Reconhece-se que há (muitas) diferenças
entre as duas variedades nacionais e que tem havido um crescente processo de
diferenciação dos dois lados, mas argumenta-se que não é possível uma inequí-
voca demonstração linguística da separação conducente a línguas diferentes.
Crucialmente, a afirmação da unidade da língua portuguesa é apresentada como
uma opção política e socioeconómica a não desperdiçar: o termo português deve
ser entendido como um importante instrumento de coesão entre povos e como
afirmação política e económica num contexto transcontinental (Mateus, 2002).
No contexto atual da globalização, a unidade da língua é vista como uma oportu-
nidade de projeção do português como língua de comunicação internacional e de
afirmação económica. O valor económico da língua portuguesa está estimado em
17% do PIB português e 4% do PIB mundial (Reto, 2012). Neste contexto, tem-se
reclamado uma política internacional ou transnacional (Silva, V.A., 2005, 2007)
da língua portuguesa ou a internacionalização da sua gestão (Oliveira, 2013). Tal
política permitirá “preservar a unidade profunda da língua portuguesa”, evitando
que “a diversidade das falas e das normas afecte ou fracture a unidade do sistema
linguístico” (Silva, V.A., 2005, p. 31).
O antigo discurso da unidade na diversidade é hoje continuado pelo discurso
da lusofonia. Termo relativamente recente, lusofonia é, tal como definido por Fio-
rin (2006), um “espaço simbólico e político” que se investe de valor “performativo”,
no sentido de orientação de comportamento social. Ao lado de alguma ideologia
romântica que também encerra, orientada para a ideia da identidade lusófona, o
discurso da lusofonia reveste-se de uma ideologia política utilitarista de afirmação

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de um supraespaço político de identidade linguística, política e económica. Como


afirma Mateus (2002, p. 42), a língua portuguesa é “um capital de investimento
notável, é a nossa forma de manifestarmos a diferença” e “é através do Português
que portugueses e brasileiros criam o seu próprio caminho no mundo”.
O discurso racionalista da lusofonia manifesta-se hoje, no mundo globalizado
do séc. XXI, em pressões para uma normatização convergente da língua portuguesa,
invertendo a normatização divergente do séc. XX. São pressões que decorrem de
transformações recentes como a presença da língua na Internet, o crescimento
de diásporas internas à CPLP e o aumento do intercâmbio de produtos culturais
entre os países da CPLP (Oliveira, 2013). O Acordo Ortográfico de 1990, entrado
em vigor no Brasil em 2009 e em Portugal em 2011, é das primeiras expressões
desta pressão por uma norma convergente. Outras expressões são o Vocabulário
Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (VOC) e as ações concertadas entre
os oitos países lusófonos, como o Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a
Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa (2010) e conferências internacionais ou
outras ações multilaterais para a gestão compartilhada e internacional da língua.
Em contrapartida, o modelo racionalista divergente, mais explícito no Brasil
do que em Portugal, tem estado presente no processo de normatização divergente
ao longo do século passado, cruzando-se aí com o modelo romântico divergente,
e é assumido pelos que veem na valorização, estudo e ensino da norma(s) linguís-
tica(s) dos grandes centros urbanos brasileiros um instrumento de participação
política e educacional, a base do nacionalismo cívico e da democracia, tão neces-
sários na sociedade brasileira atual, que ainda mantém características da época
colonial, como o autoritarismo político, o oligarquismo económico e o elitismo
cultural. São manifestações desta atitude os grandes projetos de investigação
linguística no Brasil, como o Projeto NURC (“Norma Urbana Culta”) de documen-
tação das variedades cultas do português brasileiro, criado em 1969, e o Projeto
da “Gramática do Português Falado Brasileiro”, desde 1988 (Castilho, 1991), bem
como os projetos de escolarização e reforma do ensino, especialmente os que têm
levado a escola a abrir-se aos socioletos.
Também em Portugal se têm desenvolvido, desde os anos 80, projetos coleti-
vos de investigação linguística, como o “Português Fundamental” e o “Português
Falado: variedades geográficas e sociais”, recolhendo dados do português falado
em todos os países lusófonos. Num plano teórico e especulativo, a atitude racio-
nalista divergente está presente naqueles para quem a ideia de língua portuguesa
não passa de uma noção ilusória de natureza histórica, cultural e política.

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MODELOS COGNITIVOS DA LUSOFONIA

6. Paradoxos, mesclagens e efeitos dos modelos


românticos e racionalistas

Acabámos de ver que tanto o modelo romântico como o modelo racionalista da


variação pluricêntrica do português compreende atitudes quer convergentes
quer divergentes relativamente às variedades europeia e brasileira. Cada um dos
modelos cognitivos e culturais da variação nacional do português inclui, pois,
paradoxos e mesclagens conceptuais 3. O principal paradoxo do modelo romântico
reside na combinação das ideias de pureza e independência da língua portuguesa.
E o principal paradoxo do modelo racionalista resulta da articulação das ideias
de unidade superior e diversidade funcional do idioma.
Os modelos romântico e racionalista da unidade/diversidade do português
mesclam-se em diversos discursos. São exemplos disso o discurso sobre a luso-
fonia como espaço de culturas plurais e fator de relevância económica (Fiorin,
2006; Martins, 2006; Cristóvão, 2008), o discurso sobre o potencial económico
da língua portuguesa (Reto, 2012), o discurso a favor do Acordo Ortográfico como
instrumento político ao serviço da estratégia ideológica da lusofonia e alguns
discursos sobre a internacionalização da língua portuguesa e da sua gestão. Cada
um destes discursos merece uma análise crítica do discurso, que aqui não pode-
mos desenvolver.
Para finalizar, cabe perguntar que influência têm os quatros modelos român-
ticos e racionalistas no processo de convergência e divergência entre as duas
variedades nacionais do português. É difícil responder, visto que a evolução das
variedades europeia e brasileira não tem certamente a ver apenas com estes quatro
modelos cognitivos e culturais. Mesmo assim, é possível correlacionar as prová-
veis evoluções com estes modelos cognitivos, na medida em que estes modelos
estão na base das atitudes linguísticas dos falantes portugueses e brasileiros.
Apontamos três cenários.

3 Em Silva (2015), desenvolvemos uma análise detalhada sobre os processos cognitivos que
estão na base dos quatros modelos cognitivos e culturais da variação do português, bem
como das relações dinâmicas e complexas entre estes modelos. Esses processos cognitivos
incluem a metáfora conceptual (p. ex., a metáfora racionalista da funcionalidade a língua
é um instrumento, a metáfora romântica da identidade a língua é a alma de um povo e
a metáfora tanto romântica com racionalista a língua é uma barreira), a metonímia
conceptual, a categorização baseada em efeitos de prototipicidade e processos de inte-
gração conceptual.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Primeiro cenário: o esperado processo de divergência entre as duas varieda-


des nacionais do português, confirmado pelos nossos estudos sociocognitivos
e socioletométricos (Silva, 2010, 2014b), receberá um forte ímpeto no Brasil,
tanto da parte da afirmação romântica de uma língua brasileira, como por via da
atitude racionalista promotora de um nacionalismo cívico e da democratização
da educação e do ensino da língua. Esta atitude racionalista poderá, todavia,
ter efeitos convergentes, configurando assim o segundo cenário: manifestações
racionalistas como a diminuição da acentuada diglossia brasileira, o reforço e ace-
leração do processo de normatização e o consequente aumento de uniformidade
dentro da variedade brasileira podem levar a mudanças “de baixo para cima”, a
ponto de eliminarem especificidades do falar brasileiro popular. Finalmente, o
terceiro cenário envolve interrupções ou reversões no esperado desenvolvimento
divergente. Essas interrupções/reversões serão desencadeadas quer pela atitude
racionalista de preservação da unidade da língua como estratégia de afirmação
política e económica no mundo globalizado atual, quer pelas pressões para uma
normatização convergente do idioma decorrente da sua promoção internacional e
da recente internacionalização da sua gestão, quer ainda pela promoção romântica
da lusofonia no sentido do estabelecimento de uma identidade lusófona.

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA
EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
Margarida M. Krohling Kunsch*

Resumo
Este artigo reúne bases conceituais e reflexões sobre os temas de comunicação e poder,
comunicação intercultural, cidadania, novas formas de cidadania e diversidade cultural
no contexto da globalização e da era digital. Com base na revisão da literatura, este estudo
discute inicialmente o poder da comunicação na sociedade contemporânea, o papel da
comunicação intercultural no contexto da interculturalidade e, em seguida, aborda os
conceitos fundamentais de cidadania, direito à cultura como cidadania cultural, diversi-
dade cultural e cidadania planetária, como pressupostos essenciais para a valorização e
existência do interculturalismo em seu verdadeiro significado.

Palavras-chave: comunicação intercultural; cidadania; sociedade civil; movimentos sociais;


globalização; diversidade cultural

* Professora titular e diretora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo


(ECA-USP). Mestre e doutora em Ciências da Comunicação e livre-docente em Teoria da Comu-
nicação Institucional: Políticas e Processos, pela ECA-USP. Autora e organizadora de grande
número de obras de Comunicação Social, foi presidente da Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), da Asociación Latinoamericana de Investigadores
de la Comunicación (Alaic), da Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organi-
zacional e de Relações Públicas (Abrapcorp) e da Confederação Ibero-Americana de Associações
Científicas e Acadêmicas de Comunicação (Confibercom). É presidente da Federação Brasileira
das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação (Socicom).
E-mail: [email protected].

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1. Introdução

“Língua, globalização e inteculturalismo”, um dos subtemas do Congresso Con-


fibercom de 2014, é abrangente e ao mesmo tempo instigante, pois nos leva ao
debate e à reflexão de assuntos que vêm sendo objeto de estudo em várias áreas
do conhecimento e estão na agenda de fóruns e na literatura no contexto da
sociedade contemporânea. Muitas poderiam ser as abordagens e as dimensões
a serem exploradas em uma temática dessa natureza. Entretanto, para fins deste
trabalho, optou-se por reunir algumas reflexões acerca do poder da comuni-
cação na sociedade contemporânea e do papel da comunicação intercultural e
do reconhecimento da necessidade da cidadania, sob várias dimensões, como
pressuposto essencial para a existência da diversidade cultural e do direito à
cultura pelo cidadão.

2. O poder da comunicação na sociedade global e digital

É notável o poder que a comunicação exerce no mundo contemporâneo. Essa


comunicação precisa ser considerada não meramente como instrumento de divul-
gação ou transmissão de informações, reduzida a uma visão linear, mas como
processo social básico e como um fenômeno presente na sociedade. Deve ser
concebida como um poder transversal que perpassa todo o sistema social global,
incluindo neste âmbito as organizações.
São muitos os autores que trabalham a sociedade da informação, do conhe-
cimento ou digital e que analisam a sociedade midiática, midiatizada, transpa-
rente e da comunicação. As tecnologias da informação e da comunicação estão
definitivamente revolucionando a sociedade e seu modo de vida. Os exemplos
são evidentes nas indústrias culturais, nas indústrias criativas, na multimídia, na
televisão (interativa, digital, por cabo e de alta definição), nos aparelhos móveis e
em todas as interações das mídias disponíveis, em forma de redes digitais (blogs,
Facebook, Twitter etc.). Toda essa convergência midiática é uma realidade presente
nos dias de hoje e acontece no plano individual, na sociedade e em os todos os
espaços – familiar, de trabalho e de participação social.
Uma das forças dessa sociedade midiática é a web, a rede mundial de com-
putadores. Para Manuel Castells, vivemos numa sociedade em rede e dominada
pelo poder da internet:

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

Esta sociedade em rede é a sociedade que eu analiso como uma sociedade cuja estru-
tura social foi construída em torno de redes de informação microeletrônica estruturada
na internet. Nesse sentido, a internet não é simplesmente uma tecnologia; é um meio de
comunicação que constitui a forma organizativa de nossas sociedades; é o equivalente ao
que foi a fábrica ou a grande corporação na era industrial. A internet é o coração de um
novo paradigma sociotécnico, que constitui na realidade a base material de nossas vidas e
de nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a internet faz é processar
a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a sociedade em rede, que
é a sociedade em que vivemos (Castells, 2009, p. 287).

Em outro livro, Comunicação e poder, Castells afirma:

Poder é algo mais que comunicação e comunicação é algo mais que poder. Mas o poder
depende do controle da comunicação. Igualmente o contrapoder depende de romper
o dito controle. E a comunicação de massas, a comunicação que pode chegar a toda a
sociedade, se conforma e é gerida mediante relações de poder enraizadas no negócio
dos meios de comunicação e da política do Estado. O poder da comunicação está no
centro da estrutura e da dinâmica da sociedade (Castells, 2009, p. 3).

Castells (2009, pp. 24-25) questiona “por que, como e quem constrói e exerce
as relações de poder mediante a gestão dos processos de comunicação e de que
forma os atores sociais que buscam a transformação social podem modificar essas
relações influenciando na mente coletiva”. Para ele, o “processo de comunicação
opera de acordo com a estrutura, a cultura, a organização e a tecnologia de comu-
nicação de uma determinada sociedade” (Ibid., p. 24). E hoje “a estrutura social
concreta é a da sociedade-rede, a estrutura social que caracteriza a sociedade no
início do século XXI, uma estrutura social construída ao redor das redes digitais
de comunicação” (Ibidem). Essa nova estrutura da sociedade-rede modifica as
relações de poder no contexto organizativo e tecnológico derivado do “auge das
redes digitais de comunicação globais e se eleva no sistema de processamento de
símbolos fundamental da nossa época” (Castells, 2009, pp. 24-25).
Rafael Alberto Pérez relaciona o poder da comunicação com o poder da comu-
nicação estratégica e sintetiza da seguinte forma: “a comunicação tem um poder
muito superior do que costumamos conceder a ela” (Pérez, 2008, p. 445). Para o
autor, “esse poder pode ser ‘domado’ se atuamos/comunicamos estrategicamente”
(Ibidem). Daí pode-se perceber o papel relevante exercido pelos atores envolvidos

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

nas indústrias das comunicações e nas esferas do poder social, econômico e


político.
Portanto, é uma realidade incontestável o poder que a comunicação, em suas
mais variadas vertentes e tipologias, bem como os meios massivos tradicionais e
as mídias sociais da era digital exercem na sociedade contemporânea.
Neste sentido, reitera-se que a comunicação precisa ser considerada como
processo social básico e como um fenômeno. O poder que ela e a mídia exercem
na sociedade é uma realidade incontestável. Dominique Wolton, no livro Pensar
a comunicação, enaltece esse poder: “a comunicação é um dos mais brilhantes
símbolos do século XX; seu ideal de aproximar os homens, os valores e as culturas
compensa os horrores e as barbaridades de nossa época” (Wolton, 2004, p. 27). E,
em É preciso salvar a comunicação, este mesmo autor reafirma ser a comunicação
uma das maiores questões do século XXI:

Em menos de cem anos foram inventados e democratizados o telefone, o rádio, a


imprensa de grande público, o cinema, a televisão, o computador, as redes, transfor-
mando definitivamente as condições de troca e de relação, reduzindo as distâncias e
realizando a tão desejada aldeia global (Wolton, 2006, p. 9).

Pensar a comunicação hoje nos remete a analisar o poder da informação na


sociedade-rede ou digital com todas as implicações decorrentes. Desta forma vive-
-se numa sociedade midiática e sob os efeitos da espetacularização da produção
midiática e televisiva. As notícias sobre guerras, violência, atentados, crimes,
terrorismo internacional, etc., são transformadas em espetáculo e penetram nos
lares de forma instantânea e natural sem pedir licença para fazer apologia das
desgraças para a humanidade.
Evidentemente não se quer dar a entender que não se reconhecem os bene-
fícios da sociedade digital e as maravilhas da rede mundial dos computadores.
O que é um paradoxo é conviver ao mesmo tempo com todos esses avanços tec-
nológicos e por outro lado se deparar com uma imensa parcela da população, em
várias partes do mundo, sem acesso à educação básica e superior, muito menos
à tecnologia e às redes telemáticas disponíveis.
Manuel Castells fala da divisória digital. Isto é, a internet está criando um
mundo dividido entre os que têm e os que não têm internet. As pessoas que não
têm acesso a essa rede mundial de informações se veem prejudicadas e até mesmo
fora do mercado de trabalho e do desenvolvimento. Segundo o autor, “observamos

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

também que os territórios não conectados à internet perdem competitividade


econômica internacional e, por conseguinte, formam bolsões de crescentes de
pobreza, incapazes de somar-se ao novo modelo de desenvolvimento” (Castells,
2003, pp. 265-266).
Nesse contexto, como inserir o papel dos meios de comunicação e da comu-
nicação intercultural frente a uma globalização ainda predominantemente eco-
nômica que atinge a vida de populações nas suas origens locais, não respeitando
suas culturas, suas diversidades, seus idiomas, seus modos de vida, induzindo-as
a novas formas comportamentais para sobreviverem?
Enfrentar a globalização autoritária e assimétrica, tão presente na atualidade,
que assola as sociedades menos favorecidas do planeta, a exemplo do que ocorre
na África, Ásia, América Latina e em outras regiões, constitui um desafio constante
para aqueles que veem criticamente o mundo de hoje e que têm a tarefa de pro-
duzir os meios de comunicação e bens culturais, fomentar as indústrias criativas,
difundir informações e promover e valorizar o interculturalismo.

3. Comunicação intercultural

A comunicação intercultural pode ser entendida sob vários ângulos, tanto no


âmbito global da sociedade, quanto naquele mais focalizado em ambientes espe-
cíficos como a comunicação que acontece entre instituições e organizações e
diversos países. Essa comunicação adquire um papel cada vez mais importante no
contexto da globalização e das transformações mundiais que caracterizam nossa
realidade de hoje. Com o desenvolvimento tecnológico, a globalização da econo-
mia e a superação das fronteiras, há uma migração generalizada da população e,
consequentemente, um avanço do multiculturalismo. Faz-se necessário aprender
a trabalhar em conjunto com culturas diferentes e enfrentar novas realidades nos
mais diversos campos de atuação.
Para M. Everett Roggers e Thomas M. Steinfat, a comunicação intercultu-
ral “é o intercâmbio de informação entre indivíduos que pertencem a culturas
diferentes” (Roggers e Steinfat, 1999, p. 267). Esta afirmação é, praticamente, do
senso comum e é também defendida por diferentes autores. Jan Servaes, por
exemplo, confirma ao dizer que “tanto na ciência como na fala diária, o termo
de comunicação intercultural se utiliza geralmente para definir o contato entre
gente que provém de trasfondos nacionais e/ou linguísticos diferentes” (Servaes,

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

2002, p. 67). Este mesmo autor chama ainda a atenção para o fato de que isto
“implica que, quando estudamos a comunicação entre pessoas de um mesmo país
que pertencem a grupos diferentes, se toma raramente em conta a influência de
suas diferenças culturais sobre os processos de comunicação” (Servaes, Ibidem).
Guo-Ming Chen e William L. Starosta tratam da questão da competência no
manejo da comunicação intercultural:

A competência da comunicação intercultural pode ser concebida como a habilidade de


negociar os significados culturais e executar apropriadamente os comportamentos de
comunicação efetiva que reconheçam as múltiplas identidades dos que interagem em
um ambiente específico. Esta definição enfatiza que pessoas competentes devem saber
não apenas como interagir apropriadamente efetivamente e com outras pessoas e o
ambiente, assim como para alcançar seus próprios objetivos na comunicação através
do respeito e da afirmação de identidades culturais de múltiplos níveis daqueles com
os quais interagem (Schan e Starosa, 1996, p. 358)

Para Carlos Fernández Collado e Laura Galguera García, “hoje o campo da


comunicação intercultural está bem estabelecido nas universidades de muitas
nações. Existe ademais, um número importante de organizações privadas que
capacitam seus executivos e empregados nas habilidades de comunicação inter-
cultural” (2008, p. 175).
A propósito, a penetração das organizações em diversos universos culturais
ramifica sua presença sobre diversos países e, consequentemente, sobre diversos
universos culturais. O fluxo de ideias e de informação transcende as fronteiras. Daí
a importância que tem de se dar à língua (linguagem e seu contexto) e à cultura de
cada país. As culturas nacionais dos países se misturam no ambiente intercultural
onde as organizações atuam.
O documento Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural, da
Unesco (2009), em um dos seus oito capítulos que enfatizam a necessidade do
diálogo intercultural e do respeito à diversidade, destaca o papel fundamental
da língua que devemos levar em conta em todas as dimensões da comunicação
intercultural:

As línguas são os vetores das nossas experiências, dos nossos contextos intelectuais e
culturais, dos nossos modos de relacionamento com os grupos humanos, com os nos-
sos sistemas de valores, com os nossos códigos sociais e sentimentos de pertencimento,

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

tanto no plano coletivo como individual. Sob o ponto de vista da diversidade cultural,
a diversidade linguística reflete a adaptação criativa dos grupos humanos às mudanças
no seu ambiente físico e social. Nesse sentido, as línguas não são somente um meio
de comunicação, mas representam a própria estrutura das expressões culturais e
são portadoras de identidade, valores e concepções de mundo (Unesco, 2009, p. 12).

Indispensável, portanto, dizer que a língua constitui o eixo central em todo


o processo da comunicação intercultural e, por extensão, do interculturalismo
existente entre os povos de diferentes origens.
No tocante à comunicação intercultural no âmbito das organizações, estudos
realizados por Maria Schuler (1995; 2009) destacam aspectos culturais e suas
influências nas organizações de diferentes países, como: segmentação e homo-
geneidade cultural e a heterogeneidade cultural, bem como algumas barreiras
que normalmente perpassam os relacionamentos das organizações com públicos
internacionais: etnocentrismo, mitos e estereótipos, choque cultural, etc. 1.
Nota-se que, para que seja possível promover a interação entre culturas nas
mais variadas dimensões da sociedade, a prática de uma efetiva comunicação
intercultural será imprescindível. Somente com essa comunicação que leve em
conta o conhecimento, a língua e o respeito a outras culturas diferentes, diversi-
dade, pluralidade, busca de entendimentos e de convívios amigáveis, por meio do
diálogo, será possível a existência do verdadeiro interculturalismo 2.
Os autores já mencionados Collado e Garcia (2008) destacam cinco variáveis
culturais que interferem na conduta e no processo da comunicação intercultural:
linguagem – o idioma reflete o contexto de uma cultura particular; código não
verbal – manifestações simbólicas como posturas, gestos, expressões faciais em
uma cultura podem não obter o mesmo significado em outra, podendo ocasionar
reações diferentes e até adversas, dificultando a interação; concepção de mundo

1 Há inúmeros estudos obre comunicação intercultural nas organizações, interculturalidade etc.,


mas por uma questão de limite e foco deste artigo não serão aqui explorados. Recomenda-se con-
sultar Geert Hofstede (1997), referência internacional nos estudos sobre cultura, especificamente
sobre essa temática. Ver Moura, C. P. de & Ferrari M. A. (Orgs.) (2015). Comunicação, intercul-
turalidade e organizações: faces e dimensões da contemporaneidade [recurso eletrônico]. Porto
Alegre: EDIPUCRS. Retirado de http://www.pucrs.br/edipucrs e Organicom – Revista Brasileira
de Comunicação Organizacional e Relações Públicas Interculturalidade e organizações, 11, 21.
Retirado de revistaorganicom.org.br/sistema/index.php/organicom/article/viewFile/842/601.
2 Sobre a interculturalidade nos países lusófonos, ver Martins (2015), Lusofonia e Interculturali-
dade. Ver, também, Martins et al. (2014), Interfaces da Lusofonia.

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

– tem a ver com o universo cognitivo e a visão que cada indivíduo ou grupo pos-
sui perante o mundo; papel social – exercido nas relações sociais nos ambientes
interculturais que proporcionam conhecimentos de como uma cultura mantém
seus valores, a ordem social e o controle entre seus membros; e padrões de pen-
samento – dizem respeito a análises da informação que provém das impressões
e experiências cotidianas.
Acredita-se que além dessas variáveis tão presentes nos ambientes inter-
culturais, alguns princípios fundamentais como valorização da cidadania, da
democracia e dos direitos humanos constituem condições sine qua non para a
existência de um interculturalismo que de fato contribua para uma convivência
mais pacífica entre os povos de diferentes culturas.

4. Conceitos e dimensões da cidadania

Os estudos sobre cidadania perpassam desde as suas origens 3 na polis grega (tra-
dição política) e na civitas romana (tradição jurídica) até os dias de hoje, quando,
segundo Adela Cortina (2005), se multiplicam novas formas de cidadania. Essa
autora espanhola chama a atenção para o fato de que, apesar de parecer antigo,
o tema está em pauta e se faz muito presente na atualidade, com o acréscimo
constante de novas “teorias da cidadania”. Para ela, dentre as múltiplas razões
que poderiam ser invocadas para tanto,

uma parece constituir o alicerce sobre o qual se assentam as outras: a necessidade,


nas sociedades pós-industriais, de gerar entre seus membros um tipo de identidade
na qual se reconheçam e que os faça se sentir pertencentes a elas, porque é evidente
que este tipo de sociedade sofre de uma falta de adesão por parte dos cidadãos ao
conjunto da comunidade, e sem essa adesão é impossível responder conjuntamente
aos desafios que se apresentam a todos (Cortina, 2005, p. 18).

Em princípio, cidadania se refere aos direitos e às obrigações nas relações


entre o Estado e o cidadão. Falar em cidadania implica recorrer a aspectos ligados a
justiça, direitos, inclusão social, respeito à diversidade, vida digna para as pessoas,

3 Um dos estudos clássicos sobre a evolução do conceito de cidadania, da polis grega ao pensamento
liberal, é o da filósofa alemã Hannah Arendt (2005). Pode-se consultar também Cortina (2005).

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

respeito aos outros, coletividade e causa pública no âmbito de um Estado-nação.


Ela pressupõe, conforme um dos autores clássicos dos primeiros estudos de cida-
dania, Tomas H. Marshall, conquistas e usos dos direitos civis (“liberdade pessoal,
liberdade de expressão, pensamento e crença, o direito de propriedade e de firmar
contratos válidos e o direito à justiça”); políticos (“como o do voto e do acesso ao
cargo público”); e sociais (“que vão desde o direito a um mínimo de segurança e
bem-estar econômico, até o direito de participar plenamente da herança social
e de viver a vida de um ser civilizado, de acordo com os padrões que prevalecem
na sociedade”) (Marshall, 1967, pp. 63-64).
Liszt Vieira (1997), analisando os direitos de cidadania a partir do pensa-
mento de Marshall, classifica-os em direitos de primeira, segunda, terceira e
quarta geração. Os direitos de primeira geração são os direitos civis (século XVIII),
representados pelos direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade,
ir e vir, vida, segurança, etc., pelos quais é responsável o sistema judiciário; e os
direitos políticos (século XIX), representados pelos direitos individuais exerci-
dos coletivamente, de liberdade de associação e reunião, organização política e
sindical, participação política e eleitoral, cuja salvaguarda cabe às organizações
parlamentares. Os direitos de segunda geração (século XX) são os direitos sociais,
representados pelos direitos individuais de trabalho, saúde, educação, aposen-
tadoria, seguro-desemprego – ou seja, a garantia de acesso aos meios de vida e
bem-estar social; exigem uma presença maior do Estado; são os direitos que se
relacionam com o nível de vida e o patrimônio social, cuja promoção compete
aos serviços para isso existentes e à estrutura educacional. Os direitos de terceira
geração (segunda metade do século XX) são os direitos que têm como titular não
o indivíduo, mas grupos humanos como o povo, a nação, coletividades étnicas ou
a própria humanidade: autodeterminação dos povos, desenvolvimento, paz, meio
ambiente; por eles são responsáveis organismos internacionais como a ONU. Os
direitos de quarta geração (atualmente) são os direitos relativos à bioética: impedir
a destruição da vida, regular a criação de novas formas de vida em laboratório
pela engenharia genética, etc.
Embora ainda não haja um consenso por parte de muitos estudiosos, men-
ciona-se a existência de direitos da quinta e sexta geração, que são voltados para
o direito à paz, à democracia participativa, ao pluralismo e à informação 4 São,

4 Consultar obras e palestras de Paulo Bonavides no Youtube e o artigo de Emmanuel Teófilo Furtado
e Ana Stela Vieira Mendes no artigo: “Os direitos humanos de 5ª geração enquanto direito à paz
e seus reflexos no mundo do trabalho: inércias, avanços e retrocessos na Constituição Federal e

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

assim, muitas as dimensões que poderão ser trabalhadas quando nos referimos
à cidadania.
Segundo Jack M. Barbalet (citado em Peruzzo, 1998), a cidadania encerra
manifestamente uma dimensão política, mas isto não é suficiente para que ela
seja compreendida. O problema está em quem pode exercê-la e em que termos. A
questão está, de um lado, na cidadania como direito e, de outro, na incapacitação
política dos cidadãos, em razão do grau de domínio dos recursos sociais e de
acesso a eles. Por exemplo, da ágora grega (praça onde se reuniam os cidadãos
para debater os assuntos da cidade) não participavam escravos, mulheres e metekes
(estrangeiros). No Brasil, a mulher e os analfabetos só adquiriram o direito de votar
em 1934 e 1988, respectivamente. Assim, dependendo do período histórico e do
país ou lugar, só uma parcela da população pode exercer plenamente a cidadania.
A propósito disso, Ralf Dahrendorf diz que a cidadania, como expressão de direitos
e obrigações associados à participação em uma unidade social e, notadamente,
à nacionalidade, é

comum a todos os membros, embora a questão de quem pode ser membro e quem
não pode faça parte da história turbulenta da cidadania. Esta turbulência ainda está
bastante em evidência. Tem a ver com a questão da inclusão ou exclusão lateral ou
nacional (em contraste com vertical ou social). Afeta a identidade das pessoas, porque
define a qual unidade pertencem. Na maioria das vezes, envolve traçar fronteiras que
sejam visíveis nos mapas ou pela cor da pele ou por algum outro meio (Dahrendorf,
1992, pp. 45-46)

Essas considerações de Dahrendorf nos fazem refletir sobre o enorme contin-


gente de pessoas que, na contemporaneidade, ainda se veem excluídas do que se
poderia chamar de um “território” da cidadania, em razão das precárias condições
de saúde, educação, moradia digna, etc. Outra observação do autor é a que diz
respeito à relação entre cidadania e trabalho: “a cidadania é um contrato social,
geralmente válido para todos os membros; o trabalho é um contrato privado.
Nas sociedades em que o contrato privado de trabalho não existe, também não
existe cidadania” (Dahrendorf, 1992, p. 47). A inexistência de contratos sociais de

na legislação”. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do Conselho Nacional
de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (Conpedi), realizado em Brasília, DF, nos dias 20, 21 e 22
de novembro de 2008. Retirado de http://pazedireito.blogspot.com.br/2010/05/direito-paz-5-
-geracao.html

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

trabalho e o desemprego são umas das mais cruéis constatações da atualidade.


A globalização econômica assimétrica tem provocado sérias consequências em
termos de aumento das desigualdades sociais e de diminuição das possibilidades
de se construir uma verdadeira cidadania no âmbito das nações.
Na sociedade moderna, os cidadãos são membros de uma sociedade política
baseada no sufrágio universal e na qual todos são iguais perante a lei. No entanto,
isso nem sempre se dá na prática. No Brasil e em outros países da América Latina,
por exemplo, ter direito à educação, à propriedade privada e aos bens de consumo
coletivo é uma coisa, mas ter acesso real e efetivo a tudo isso é outra história.
Nossa cidadania é garantida nos papéis, mas não existe de verdade, como afirma
Gilberto Dimenstein no livro O cidadão de papel (1997).

4.1. Novas manifestações de cidadania

Para Adela Cortina, a noção de cidadania restrita ao âmbito político “parece


ignorar a dimensão pública da economia, como se as atividades econômicas não
precisassem de uma legitimação social, procedente de cidadãos econômicos”
(2005, p. 29). Mais adiante, a autora descreve conceitualmente outras formas de
cidadania, muito presentes na atualidade, tais como a cidadania cultural, inter-
cultural, multicultural, cosmopolita, social, econômica e a cidadania corporativa.
Maria Cristina Mata assinala que de fato têm surgido, a partir da última
década, novas formas de os indivíduos “se constituírem como sujeitos de demanda
e proposição em diversos âmbitos vinculados com sua experiência, desde a nacio-
nalidade e o gênero até as categorias trabalhistas e as afinidades culturais”. Esta
autora ressalta, ainda, que

essa ampliação que leva alguns pensadores a falar em “novas cidadanias” definidas no
marco da sociedade civil não chega a ocultar (...) que o enfraquecimento da clássica
figura da cidadania – marcado por um evidente ceticismo quanto à vida política –
implica sérios desafios no que se refere a pensar na transformação dos ordenamentos
coletivos injustos vigentes em nossas realidades (Mata, 2002, p. 66).

Recuperar os elementos constitutivos da cidadania “clássica”, relativos aos


direitos que já mencionamos, é uma das funções básicas da sociedade civil ativa,
que, através do exercício das novas formas de cidadania, deve contribuir para
superar o ceticismo muitas vezes reinante. Apesar desse ceticismo, nota-se que

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

na atualidade existe uma participação muito mais dinâmica da sociedade civil


e dos movimentos sociais, que costumam fazer um contraponto à democracia
representativa que padece de críticas e veê sua credibilidade questionada por
grande parte da sociedade em geral.
A seguir são apresentadas algumas considerações e reflexões sobre a cidadania
e diversidade cultural e a cidadania planetária ou cosmopolita, na tentativa de con-
templar a temática central deste artigo e reunir algumas reflexões para o debate sobre
um assunto que consideremos de grande relevância social e política na atualidade.

4.2. Cidadania e diversidade cultural

Quando se fala em cidadania cultural o que se enfatiza, segundo Marilena Chauí 5,


é a “cultura como direito dos cidadãos e como trabalho de criação” (2006, p. 67).
Sua proposta para uma existência da cidadania cultural foi vivenciada, como
secretária de Cultura da cidade de São Paulo (1989-1992), foi, a partir de alguns
pontos básicos delineados, assim entendida:

Uma definição alargada da cultura (...); uma definição política da cultura pelo prisma
democrático e, portanto, como direito de todos cidadãos, sem privilégios e sem exclu-
sões; uma definição conceitual da cultura como trabalho de criação; (...) uma defini-
ção dos sujeitos sociais como sujeitos históricos, articulando o trabalho cultural e o
trabalho da memória social (Chauí, 2006, p. 72).

Nesta proposição pode-se deduzir que a cidadania cultural como direito do


cidadão tem no seu bojo a necessidade e a valorização da diversidade cultural.
Esse tema vem merecendo grande destaque neste terceiro milênio em fóruns de
debates internacionais e na produção de documentos oficiais e institucionais
como os da Unesco.
A propósito, no já mencionado relatório Investir na diversidade cultural e
no diálogo intercultural (Unesco, 2009) 6, a instituição defende a necessidade e a
valorização da diversidade, que envolve os seguintes objetivos:

5 No livro Cidadania cultural: o direito à cultura ((2006), Marilena Chauí relata sua experiência
como secretária municipal de Cultura da cidade de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina
(1989-1993), quando implantou uma política cultural centrada na prática democrática da cultura.
6 Para mais informações, consultar www.unesco.org/en/world-reports/cultural-diversity. E-mail:
[email protected].

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

Analisar a diversidade cultural em todas as suas facetas, esforçando-se por expor a


complexidade dos processos, ao passo que identifica um fio condutor principal entre
a multiplicidade de possíveis interpretações; mostrar a importância da diversidade
cultural nos diferentes domínios de intervenção (línguas, educação, comunicação e
criatividade) que, à margem das suas funções intrínsecas, se revelam essenciais para
a salvaguarda e para a promoção da diversidade cultural; convencer os decisores e
as diferentes partes intervenientes sobre a importância em investir na diversidade
cultural como dimensão essencial do diálogo intercultural, pois ela pode renovar
a nossa percepção sobre o desenvolvimento sustentável, garantir o exercício eficaz
das liberdades e dos direitos humanos e fortalecer a coesão social e a governança
democrática (Unesco, 2009, p. 1).

Na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para Educação, a


Ciência e a Cultura (Unesco), em sua 33ª reunião, celebrada em Paris, de 03 a 21
de outubro de 2005, o documento Convenção sobre a proteção e promoção da
diversidade das expressões culturais 7 defende a diversidade cultural como uma
característica essencial da humanidade e como patrimônio comum a ser valori-
zado e cultivado em benefício de todos, entre outras conclusões. “Diversidade
cultural”, segundo a Unesco, nesse documento,

refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades


encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e
sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas
quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade
mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos
modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais,
quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados 8.

Acredita-se que estas contribuições da Unesco constituem pilares fundamen-


tais como aportes para se pensar e praticar a cidadania cultural onde o respeito
à diversidade é uma prerrogativa essencial.

7 Esse documento está disponível na internet na versão para impressão (pdf) em www.cultura.
gov.br/.../convencao...promocao-da-diversidade-das-expressoes-culturais e na versão oficial em
inglês (pdf).
8 Ver Unesno online: www.cultura.gov.br/.../convencao...promocao-da-diversidade-das-expres-
soes-culturais (pdf).

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

4.3. Cidadania planetária frente à globalização e à era digital

A dimensão da cidadania cosmopolita e planetária é uma das mais reconhecidas,


por ser liderada por grandes organizações não-governamentais (ONG) multina-
cionais. Mas, muitas outras formas vêm se manifestando na contemporaneidade,
quando “a temática da cidadania (...) e a consolidação de identidades coletivas
ganham novas abordagens”, com o surgimento de “novas agendas sociais e polí-
ticas” (Ruscheinsky, 1999, pp. 73-74).
No mundo contemporâneo, face às grandes transformações no cenário
político, econômico e social, assim como às incontáveis consequências geradas
pelos fenômenos da globalização e da revolução tecnológica da informação, que
atingem o Estado-nação e a sociedade, sobretudo a partir dos anos 1990, formas
emergentes de luta pela cidadania vêm surgindo em ritmo acelerado. De um lado,
convivemos com os benefícios dos avanços da sociedade em rede e, de outro,
deparamo-nos como uma imensa parcela da população mundial sem acesso à
tecnologia digital e de redes e mesmo à educação básica. Tais fatos têm impul-
sionado reações e novas formas de luta da sociedade civil organizada em nível
local, nacional, regional e global.
A organização desses agentes que integram a sociedade civil organizada,
como movimentos sociais, ONG, associações, comunidades, ativistas, grupos
de interesses e de pressão, redes sociais, etc., possibilita uma mobilização social
em torno de objetivos comuns e na defesa dos direitos humanos e de cidadania
que ultrapassam as fronteiras nacionais. Daí assumirem um caráter de cidadania
planetária, incorporando novas formas e características na era digital e com o
uso redes da internet.
Na contemporaneidade, por força da internet e da comunicação, os movi-
mentos sociais se organizam de forma surpreendente em rede e conseguem arre-
gimentar inúmeros seguidores que, por meio de compartilhamentos, atuam em
torno de uma causa nem sempre muito definida. Castells (2013) destaca algumas
características desses movimentos sociais em rede: são conectados em rede de
múltiplas formas on-line e off-line; iniciam nas redes sociais da internet, mas se
tornam um movimento ao ocupar o espaço urbano; os movimentos são simulta-
neamente locais e globais; são amplamente espontâneos em sua origem, geral-
mente desencadeados por uma centelha de indignação; os movimentos são virais,
seguindo a lógica das redes da internet; a passagem da indignação à esperança
realiza-se por deliberação no espaço da autonomia; a horizontalidade das redes

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

favorece a cooperação e a solidariedade, ao mesmo tempo em que reduz a necessi-


dade de liderança formal; são movimentos profundamente autorreflexivos. Esses
movimentos raramente são programáticos; e são muito políticos num sentido
fundamental.
Se recorremos às considerações com que o autor descreve cada uma dessas
características relacionadas, veremos que estão presentes nos acontecimentos
com que nos deparamos na atualidade em nível global e local. Para Castells,

há uma conexão fundamental, mais profunda, entre a internet e os movimentos


sociais em rede: eles comungam de uma cultura específica, a cultura da autonomia,
a matriz cultural básica das sociedades contemporâneas. Os movimentos sociais,
embora surjam do sofrimento das pessoas, são distintos dos movimentos de protesto.
Eles são essencialmente movimentos culturais, que conectam as demandas de hoje
com os projetos de amanhã. Os movimentos que observamos encarnam o projeto
fundamental de transformar pessoas em sujeitos de suas próprias vidas, ao afirmar sua
autonomia em relação às instituições da sociedade. É por isso que, embora exigindo
medidas terapêuticas para as atuais misérias de um amplo segmento da população,
os movimentos, como atores coletivos, não confiam nas instituições atuais e se envol-
vem no caminho incerto de criar novas formas de convivência, na busca de um novo
contrato social (Castells, 2013, p. 167).

Se observarmos os acontecimentos reativos que, nos últimos anos, ocorrem


em nível global, por meio de manifestações de grupos, ativistas, movimentos
sociais de toda a ordem, veremos que eles denotam novas formas de cidadania
em construção – nesse contexto específico, a cidadania planetária, preconizada
pelos movimentos da sociedade civil global em redes. São novas manifestações no
espaço público, que ganham destaque na mídia, defendendo interesses específicos,
como agentes atuantes de uma sociedade civil mais organizada.
A cidadania planetária surge exatamente para se opor à globalização autori-
tária e assimétrica que assola as sociedades menos favorecidas do mundo, impe-
dindo que os países pobres e em desenvolvimento avancem economicamente.
Milton Santos, geógrafo e cientista social brasileiro, considerado um “cidadão do
mundo”, por sua significativa contribuição para o pensamento crítico contempo-
râneo, fala em O país distorcido da necessidade da reinvenção da cidadania para
enfrentar a globalização autoritária: “a vontade dessa globalização perversa a que
estamos assistindo é reduzir o papel do cidadão. É transformar todo mundo em

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES LUSÓFONAS E IBERO-AMERICANAS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

consumidor, usuário e, se possível, coisa, para mais facilmente se inclinar diante de


soluções anti-humanas” (apud Santos, 2002, pp. 141-142). A sua proposta consiste
na recriação da cidadania mediante uma outra globalização, horizontalizada e
não verticalizada como a atual, na qual a vida não seja tributária do cálculo, mas
haja espaço para a emoção – que é o que une os homens (Ibidem).
Ao contestar o predomínio de uma globalização econômica, diz Hassan
Zaoual que

para os movimentos sociais de base, é imperativo que se desconstrua o paradigma do


mercado como ‘centro nervoso da globalização’. Sem dúvida, as experiências dos atores
da sociedade civil, em seus campos de atuação, são de alcance incontestável, mas só
vencerão o jogo mediante a construção de um paradigma plural capaz de enfrentar
os partidários da globalização (Zaoual, 2003, pp. 18-19).

A importância que a sociedade civil assume nessa nova realidade contemporâ-


nea transcende o espaço local, nacional e regional. Richard Falk, da Universidade
de Princeton, a denomina “sociedade civil global”, que, ante a “globalização por
cima”, autoritária, conduzida pelos países dominantes e pelas forças do mercado
mundial, seria a “globalização por baixo”, das forças democráticas, os “únicos
veículos” para a promoção do “direito da humanidade”, inspirado numa concep-
ção de desenvolvimento sustentável (apud Vieira, 1997, pp. 79-80). Liszt Vieira
reforça esse pensamento:

Ao lado de uma sociedade global, entendida como sociedade internacional, haveria


hoje uma comunidade global emergente, entendida como planetária, em processo
de formação. Trata-se da emergente sociedade civil global, cujos atores muitas vezes
têm mais poder de influência no cenário internacional do que a maioria das nações
pobres (Vieira, 1997, p. 135).

O fato é que o discurso crítico atual localiza um antagonismo da globalização


em relação à cidadania. Mark Poster (2003) mostra como o aprofundamento dos
processos de globalização afeta a cidadania, ao interferir na autonomia do Estado-
-nação, na liberdade de iniciativa dos cidadãos, no mercado de trabalho (perda de
empregos para estrangeiros e condições de vida extremamente desiguais), no fluxo
interesseiro de capitais (que vão para lugares de retorno ótimo sem considerar os
reveses e sofrimentos com isso provocados), no consumo planetário (que junto

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COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL E CIDADANIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

com as mercadorias leva através de fronteiras hipóteses culturais estrangeiras)


e assim por diante.
Por fim, segundo Castells (2013, p. 167), “nos bastidores desse processo de
mudança social está a transformação cultural de nossas sociedades”. Portanto,
uma nova cultura e novas formas de sociabilidade, provocadas, sobretudo pela
internet, estão desencadeando comportamentos individuais, grupais, coletivos,
etc., como nunca pensados e vistos na sociedade, que muitas vezes geram para-
doxos e perplexidades que fogem à nossa compreensão.
Assim há que se estudar mais o papel da cultura, do interculturalismo, do
multiculturalismo e da interculturalidade neste mundo mutante e cheio de
contradições.

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INTERNACIONALIZAÇÃO.indb 354 08/11/2017 13:13:01


O espaço lusófono e ibero-americano remete para uma diversidade de
culturas e de comunidades, que se exprimem em duas línguas, a portu-
guesa e a espanhola, duas línguas que, por serem de culturas, pensamento
e conhecimento, concorrem para a construção deste espaço transnacional
e transcontinental, contrariando a visão de um mundo monocolor, global-
izado, hegemonicamente falado em inglês. ¶ As Ciências da Comunicação
dos países lusófonos e ibero-americanos têm uma responsabilidade, ao
mesmo tempo científica, estratégica, política e cívica, de concorrer para a
construção da comunidade de investigação lusófona e ibero-americana de
Ciências da Comunicação, fazendo obra de cultura, de pensamento e de
conhecimento. ¶ Ao interrogarem, em português e em espanhol, os modos
como nos distintos países do espaço lusófono e ibero-americano é feita a
interação científica e produzido o conhecimento, as Ciências da Comuni-
cação constroem a sua própria comunidade científica e concorrem para a
afirmação internacional das Ciências Sociais e Humanas, elas que no seu
todo estão convocadas a fazer comunidade e obra de conhecimento.

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