SEARLE, John. Intencionalidade

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John R.

Searle
Intencionalidade

A representação de um a
sentença deriva da
Intencionalidade da mente.

Martins Fontes
O objetivo fundamental deste li­
vro é desenvolver uma teoria da
Intencionalidade. Acredito que a
abordagem aqui apresentada será
d e u tilid ad e para a ex p licação
dos fenôm enos intencionais em
geral.
Um pressuposto básico subjacen­
te à minha abordagem dos pro­
blemas da linguagem é que a filo­
sofia da linguagem é um ramo da
filosofia da mente. A capacidade
dos atos de fala para representar
objetos e estados d e coisas no
m undo é uma extensão das capa­
cidades mais biologicamente fun­
damentais da mente (ou do cére­
bro) para relacionar o organismo
ao m undo por m eio de estados
mentais como a crença e o dese­
jo, e em especial através da ação
e da percepção. Uma vez que os
atos de fala são um tipo de ação
hum ana e uma vez que a capaci­
dade da fala para representar ob­
jetos e estados de coisas faz par­
te de uma capacidade mais geral
da mente para relacionar o orga­
nismo ao mundo, qualquer expli­
cação completa da fala e da lin­
guagem exige uma explicação de
com o a m ente/cérebro relaciona
o organismo à realidade.

John R. Searle
John R. Searle
Intencionalidade

Tradução
JULIO FISCHER
TOMÁS ROSA BUENO

Revisão técnica
A N A CECÍLIA G. A. DE CAMARGO
VIVIANE VERAS COSTA PINTO

Martins Fontes
São Paulo 2 0 0 2
Esta ob ra f o i publicada origin a lm en te em inglês com o título
IN T E N T IO N A L1TY - A N ESSAY IN T H E P H IL O S O P H Y O F M IN D
p o r The Press Syndicate o f the University o f C am bridge, Cambridge, em 1983.
C op y righ t © C am brid ge University Press, 1983.
C op y righ t © 1995, L iv ra ria M a rtin s Fontes E d itora Ltda.,
São Pa u lo, pa ra a presente edição.

I s edição
ju lh o de 1995
2- edição
dezembro de 2002

T ra d u çã o
J U L IO F IS C H E R
T O M Á S ROSA B U E N O

R e v is ã o técnica
Ana C e c ília G . A . de C am a rgo
Viviane Veras Costa P in to
P re p a ra ç ã o d o o rig in a l
Vadim Valentinovitch N ikitin
R e vis ã o g rá fic a
M a ris e Sim ões L e a l
P ro d u ç ã o g rá fic a
G e ra ld o Alves
P ag in ação
Renato C. Carbone

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP )


(C âm ara Brasileira do L iv ro , SP, Brasil)

Searle, John R.
Intencionalidade / John R. Searle ; tradução Julio Fischer. Tomás
Rosa Bueno : revisão técnica A n a C ecília G. A . de Camargo. V i­
viane Veras Costa Pinto. - 2a ed. - São P a u lo : Martins Fontes. 2002.
- (C o le ç ã o tópicos)

Título original: Intentionality : an essay in the philosophy o f mind


Bibliografia.
IS B N 85-336-1723-2

1. Intencionalidade 1. Título. II. Série.

02-6485________________________________________________________ CDD-121

In d ices p ara catálo go sistem ático:


1. Intencionalidade : F ilosofia 121

Todos os direitos desta edição para o Brasil resen'ados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867
e-mail: [email protected] http:!lwww.martinsfontes.com,br
AGRADECIMENTOS

Estou em dívida para com um grande núm ero de


pessoas e instituições pela ajuda que me prestaram neste
livro. Quero em primeiro lugar agradecer à John Simon
Guggenheim Memorial Foundation, à University o f Cali­
fornia Humanities Institute, à Est Foundation, ao Commi-
tee on Research o f the University o f California Academ ic
Senate e à A. P. Sloan Foundation p elo apoio financeiro
em diversas ocasiões ao lon go da preparação deste e de
outros trabalhos relacionados. T o d o este material foi apre­
sentado em conferências e cursos universitários em Ber­
keley e outras universidades e sou grato a meus alunos
em Berkeley, Boulder e Campinas por suas manifestações.
D evo agradecer especialm en te a Am i K ronfeld, D avid
Reier, Jim Stone, Vanessa W hang, Steven W hite e Steve
Yablo. Vários colegas e amigos leram partes do original e
fizeram comentários proveitosos: quero agradecer especial­
m ente a N ed Block, Sylvain Brom berger, T y ler Burge,
Alan Code, D onald Davidson, D agfinn Follesdal, D avid
Kaplan, Benjam in Libet, G eo rg e Myro, Thom as Nagel,
VI INTENCIONALIDADE

W illiam Reinhardt e Hans Sluga. Pelos comentários que


influíram no conteúdo d o texto, minha dívida m aior é
para co m H u bert D reyfu s e esp ecia lm en te para com
Christine Skarda. Acima de tudo, quero agradecer à m i­
nha mulher, Dagmar Searle, por sua ajuda e seus conse­
lhos constantes.
INTRODUÇÃO

O ob jetivo fundam ental deste livro é d esen volver


uma teoria da Intencionalidade. Hesito em chamá-la de
teoria geral, pois um grande núm ero de tópicos - por
exem plo, as em oções - não são discutidos, mas acredito
que a abordagem aqui apresentada será de utilidade para
a explicação dos fenôm enos intencionais em geral.
Este livro é o terceiro de uma série de estudos corre­
lates sobre a mente e a linguagem. Um de seus objetivos
é fornecer um fundamento para os meus dois livros ante­
riores, Speech Acts (Cam bridge University Press, 1969) e
Expression and M eaning (C am bridge University Press,
1979), bem com o para as investigações futuras sobre este
tema. Um pressuposto básico subjacente à minha aborda­
gem dos problemas da linguagem é que a filosofia da lin­
guagem é um ramo da filosofia da mente. A capacidade
dos atos de fala para representar objetos e estados de
coisas no mundo é uma extensão das capacidades mais
biologicam ente fundamentais da mente (ou do cérebro)
para relacionar o organismo ao mundo por m eio de esta-
VIII INTENCIONALIDADE

dos mentais com o a crença e o desejo, e em especial atra­


vés da ação e da percepção. Uma vez que os atos de fala
são um tipo de ação humana e uma vez que a capacidade
da fala para representar objetos e estados de coisas faz
parte de uma capacidade mais geral da mente para relacio­
nar o organismo ao mundo, qualquer explicação com ple­
ta da fala e da linguagem exige uma explicação de com o
a mente/cérebro relaciona o organismo à realidade.
Uma vez que as sentenças - os sons emitidos pela
boca ou os sinais gráficos que se fixam no papel — são,
considerados de um certo m odo, apenas objetos no mun­
do com o quaisquer outros objetos, sua capacidade de re­
presentar não é intrínseca e sim derivada da Intencionali­
dade da mente. Por outro lado, a Intencionalidade dos
estados mentais não provém de formas anteriores de In­
tencionalidade, mas é intrínseca aos próprios estados.
Um agente usa uma sentença para fazer um enunciado
ou fazer uma pergunta, mas não usa desse m odo suas
crenças e seus desejos - ele simplesmente os tem. Uma
sentença é um objeto sintático ao qual são impostas ca­
pacidades representacionais: crenças, desejos e outros es­
tados Intencionais não são, com o tais, objetos sintáticos
(em bora possam ser, e normalmente sejam, expressos em
sentenças) e suas capacidades representacionais não são
impostas, mas intrínsecas. Tudo isso é com patível com o
fato de ser a linguagem essencialmente um fenôm eno so­
cial e serem as formas de Intencionalidade a ela subja­
centes formas sociais.
O presente estudo com eçou com o uma investigação
daquela parte d o problem a do significado que se ocupa
com o m odo com o as pessoas im põem a Intencionalida­
de a entidades não intrinsecamente Intencionais, o m odo
com o conseguem que meros objetos passem a ser repre­
sentacionais. Minha intenção original era a cle incluir um
INTRODUÇÃO IX

capítulo acerca dessa questão em Expression and M ea-


níng, mas, com o sói acontecer nesses -casos, o capítulo
se avolumou até tornar-se um livro autônomo. A o tentar
analisar a Intencionalidade dos estados mentais (capítulo 1)
descobri qu e tinha de investigar a Intencionalidade da
percepção (capítulo 2) e da ação (capítulo 3)- Mas é im­
possível com preender-se a percepção e a ação sem um
entendimento da causação Intencional (capítulo 4), e di­
versas investigações levaram à conclusão de que a Inten­
cionalidade, em todas as suas formas, funciona apenas
sobre um Background de capacidades mentais nâo-repre-
sentacionais (capítulo 5). Apenas alcancei meu objetivo
original de explicar as relações entre a Intencionalidade
dos estados mentais e a Intencionalidade da lingüística
no capítulo 6, mas isso deixava-m e ainda uma carrada de
problemas: o capítulo 7 ocupa-se das relações entre In-
tencionalidade-com-c e Intensionalidade-com-s; os capí­
tulos 8 e 9 usam a teoria desenvolvida nos capítulos an­
teriores para criticar várias concepções atualmente muito
difundidas acerca da referência e do significado e para
apresentar uma explicação Intencionalista das expressões
indexicais, dos termos naturais de espécie, a distinção de
re-de dicto e os nom es próprios. Finalmente, o capítulo
10 apresenta uma solução (ou, mais precisamente, uma
dissolu ção) d o cham ado p rob lem a “m e n te-co rp o ” ou
“m ente-cérebro” .
A o asseverar que as pessoas têm estados mentais in­
trinsecamente Intencionais, afasto-me de muitas, se não
da maioria, das co n cep çõ es atualmente difundidas no
campo da filosofia da mente. Acredito que as pessoas te­
nham de fato estados mentais, alguns conscientes e ou­
tros inconscientes, e que, p elo menos no que diz respei­
to aos estados mentais conscientes, tenham em larga m e­
dida as propriedades mentais que parecem ter. Rejeito to-
X INTENCIONALIDADE

da forma de behaviorism o ou de funcionalismo, inclusive


o funcionalismo baseado nos princípios da máquina de
Turing, que acaba por negar as propriedades especifica­
mente mentais dos fenôm enos mentais. N ão criticarei es­
sas outras idéias no presente livro tal com o as critiquei
extensivamente em outras partes1. Acredito que as várias
formas de behaviorism o e de funcionalismo nunca foram
motivadas por uma investigação independente dos fatos,
mas por um tem or de qu e,'a menos que fosse encontra­
da uma maneira de eliminar os fenôm enos mentais inge­
nuamente concebidos, ficaríamos com o dualismo e com
um problem a m ente-corpo aparentemente insolúvel. Se­
gundo meu ponto de vista, os fenômenos mentais possuem
uma base biológica: são ao mesmo tem po causados pelas
operações do cérebro e realizados na estrutura d o cére­
bro. Segundo este ponto de vista, a consciência e a In­
tencionalidade são tão parte da biologia humana quanto a
digestão ou a circulação sangüínea. Trata-se de um fato
objetivo sobre o mundo ele conter certos sistemas, a sa­
ber, cérebros, com estados mentais subjetivos e é um fato
j'ísico desses sistemas qu e eles possuam características
mentais. A solução correta para o “problema mente-cor­
p o ” não está em negar a realidade dos fenôm enos m en­
tais, mas em estimar adequadamente sua natureza b io lóg i­
ca. N o capítulo 10 falaremos de n ovo sobre este tema.
Parte do prazer em se escrever sobre os atos de fala
está em não haver nenhuma tradição filosófica de enver­
gadura a sujeitar a investigação. Com exceção de uns
mais privilegiados, tais com o as promessas e as declara­
ções, a maioria dos tipos de atos de fala foi ignorada p e ­
los grandes filósofos do passado; e é possível investigar,
por exem plo, o agradecimento, o ped ido de desculpas e
a solicitação sem estar olhando por sobre o om bro para
ver o que Aristóteles, Kant ou Mill têm a dizer acerca dos
INTRODUÇÃO XI

mesmos. N o tocante à Intencionalidade, porém, a situa­


ção é bem diferente. Movim entos filosóficos inteiros fo ­
ram construídos em torno de teorias de Intencionalidade.
O que se p o d e fazer perante tod o esse eminente passa­
do? Minha atitude pessoal tem sido a de simplesmente ig­
norá-lo, em parte por ignorar a maioria dos escritos tradi­
cionais sobre Intencionalidade e, em parte, pela convic­
ção de que minha única esperança de clar uma solução
para as preocupações que me conduziram originalmente
a este estudo estaria no prosseguim ento inexorável de
minhas próprias investigações. M erece ser ressaltado o
fato, uma v e z que diversas pessoas que leram os origi­
nais alegaram ter encontrado interessantes concordâncias
e discordâncias com seus autores favoritos. T a lvez seja
justificado seu entendimento da relação entre este livro e
a tradição Intencionalista, mas, com exceção de minhas
réplicas explícitas e minha dívida evidente para com Fre­
ge e Wittgenstein, não foi meu objetivo neste livro ir ao
encontro dessa tradição.
N o que diz respeito às questões de estilo e de e x p o ­
sição, busco seguir uma máxima simples: o que não con­
seguimos expressar com clareza não está claro para nós
mesmos. Contudo, aquele que tenta escrever com clareza
corre o risco de ser “entendido” com demasiada rapidez
e a forma mais rápida desse entendimento é catalogar o
autor juntamente com toda uma série cle outros autores
com os quais o leitor já está familiarizado.
Algumas das idéias deste livro já apareceram em ver­
sões prelim inares, em artigos de minha autoria. D ado
que diversos resenhistas de Speech Acts queixaram-se de
que algumas das idéias já haviam aparecido em artigos,
cabe uma palavra de explicação. Acho muito útil experi­
mentar idéias em uma forma preliminar, tanto para for-
mulá-las com o para suscitar comentários e críticas. Esses
XII INTENCIONALIDADE

artigos são com o os esboços preliminares de um pintor


para uma tela maior. Podem ter um valor próprio, mas
funcionam também com o etapas d o caminho para a pin­
tura maior. O trabalho árduo não está apenas no esforço
de realizar cada uma das partes a contento, mas também
em fazer com que todas elas sejam coerentes com a con­
cepção geral.
Resta um problema incôm odo, nào abordado direta­
mente neste livro, mas que foi uma das principais razões
pelas quais o quis escrever. O comportamento humano
comum tem revelado uma peculiar resistência à explica­
ção pelos m étodos das ciências naturais. Por quê? Por
que razão os m étodos das ciências naturais não produzi­
ram frutos comparáveis aos da física e da química quan­
do aplicados ao estudo do comportamento humano indi­
vidual e coletivo? Há na filosofia contemporânea muitas
tentativas de responder a esta questão, nenhuma delas, a
meu ver, plenamente satisfatória. Acredito que o caminho
para se encontrar a resposta correta esteja em se ver o
papel da Intencionalidade na estrutura da ação; não ape­
nas na descrição da ação, mas na própria estrutura do
comportamento humano. Espero poder discutir a explica­
ção do com portam ento humano com mais detalhes em
um trabalho subseqüente. O presente livro oferece ape­
nas algumas das ferramentas necessárias para uma tal
discussão.
CAPÍTULO 1
A NATUREZA DOS ESTADOS
INTENCIONAIS

I. A INTENCIONALID AD E CO M O DIRECIONALIDADE

Poderíam os dizer, a título de formulação preliminar,


que a Intencionalidade é aquela propriedade de muitos
estados e eventos mentais pela qual estes são dirigidos
para, ou acerca de, objetos e estados de coisas no mun­
do. Se, por exem plo, eu tiver uma crença, d eve ser uma
crença de que determinada coisa é desse ou daquele m o­
do; se tiver um temor, deve ser um temor de alguma coi­
sa ou de algum acontecimento; se tiver um desejo, deve
ser um desejo de fazer alguma coisa, ou de qu e algo
aconteça ou seja; se tiver uma intenção, deve ser uma in­
tenção de fazer alguma coisa; e assim por diante em uma
longa série de outros casos. Sigo uma antiga tradição filo ­
sófica ao chamar “Intencionalidade” essa característica de
direcionalidade ou aproximação, mas, em muitos aspec­
tos, o termo induz a engano e a tradição é um tanto con­
fusa, cle m odo que, já no início, quero deixar claro de
que maneira pretendo usar o termo e, ao fazê-lo, disso­
ciar-me de certos aspectos da tradição.
2 INTENCIONALIDADE

Em minha explicação, primeiramente, apenas alguns


estad o s m entais, e não todos, têm Inten cio n alid ad e.
Crenças, temores, esperanças e desejos são Intencionais,
mas há form as cle nervosism o, exaltação e ansiedade
não-direcionacla que não o são. Uma chave para essa dis­
tinção é fornecida pelas restrições que envolvem o relato
de tais estados. Se eu disser que tenho uma crença ou
um desejo, fará sem pre sentido perguntar: “Em que, exa­
tamente, você acredita?”, ou: “0„q u e é que você deseja?”,
e não poderei responder, “Ah, eu só tenho uma crença e
um desejo sem acreditar em nada nem desejar coisa algu­
m a”. Minhas crenças e meus desejos devem ser sem pre
referentes a alguma coisa. Mas m eu nervosismo e minha
ansiedade não-direcionada não precisam ser referentes a
alguma coisa, nesse sentido. Tais estados são caracteristi­
cam ente acom panhados por crenças e desejos, mas os
estados não-direcionaclos não são idênticos às crenças ou
aos desejos. Segundo minha explicação, se um estado E
é Intencional, deve haver uma resposta para perguntas
como: A que se refere E ? Em que consiste E ? O que é
um E tal que? Alguns tipos cle estados mentais possuem
modalidades em que são Intencionais e outras em que
não o são. Por exemplo, assim com o há formas de exal­
tação, de depressão e de ansiedade em que se está sim­
plesmente exaltado, deprimido ou ansioso sem se estar
exaltado, deprim ido ou ansioso a respeito de coisa algu­
ma, há também modalidades clesses estados em que se
está exaltado porque ocorreu isso e aquilo, ou deprimido
ou ansioso com a perspectiva disso ou daquilo. A ansie­
dade, a depressão e a exaltação não-clirecionadas não
são Intencionais, enquanto os casos direcionais o são.
Em segundo lugar. Intencionalidade não é a mesma
coisa que consciência. Muitos estados conscientes não
são Intencionais - por exemplo, um sentim ento súbito de
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 3

exaltação - e muitos estados Intencionais não são cons­


cientes - p o r exem plo, tenho muitas" crenças sobre as
quais não estou pensando no m om ento e nas quais pos­
so nunca ter pensado. Acredito, por exemplo, que meu
avô paterno tenha passado a vida inteira no território ac
continental dos Estados Unidos, mas até este m om ento *
nunca havia formulado ou considerado conscientem ente q j

esta crença. Tais crenças inconscientes, a propósito, não 3 J


necessariam ente correspondem a algum tipo de repres- J ^
são, freudiana ou de qualquer outro tipo; são apenas r ^
crenças que temos sem pensar nelas norm alm ente. ’Em q
defesa da opinião segundo a qual existe uma identidade ^ *
entre consciência e Intencionalidade, costum a-se dizer M ^
que toda consciência é consciência de, que sem pre que; ' O
se está consciente há alguma coisa de que se está cons- D ^
ciente. Esta explicação da consciência, porém, obscurece gj
uma distinção crucial: q uando tenho uma experiência '-u
consciente de ansiedade, há, de fato, algo de que minha ^
experiência é experiência de, a saber, a ansiedade, mas 3
esse sentido de “d e” é bem diferente do “cle” da Intencio­
nalidade que ocorre, por exem plo, na declaração de que
tenho um m edo consciente de cobras; pois, no caso cla
ansiedade, a experiência de ansiedade e a ansiedade são
idênticas, mas o m edo de cobras não é idêntico a cobras.
E característico dos estados Intencionais, da maneira co­
mo em prego essa noção, haver um a distinção entre o es­
tado e aquilo a que esse estado está direcionado, ou so­
bre o que ele é, ou ainda de que ele é (embora isso não
exclua a possibilidade cle formas auto-referenciais cle In­
tencionalidade - tal como verem os nos capítulos 2 e 3).
Em minha explicação, o “cle” na expressão “a experiência
de ansiedade” não pode ser o “d e ” da Intencionalidade,
pois a experiência e a ansiedade são idênticas. Terei mais
a dizer sobre as formas conscientes de Intencionalidade
4 INTENCIONALIDADE

mais adiante; p o r ora, meu objetivo é apenas deixar claro


que, da m aneira como uso o termo, a classe dos estados
conscientes e a classe dos estados mentais Intencionais
se sobrepõem , mas não são idênticas nem estão incluídas
uma na outra.
Em terceiro lugar, o pretender e as intenções são ape­
nas uma forma de Intencionalidade entre outras, e não go­
zam de nenhum estatuto especial. O jogo óbvio envolven­
do “intenção” e “Intencionalidade” sugere que as intenções,
no sentido ordinário do termo, têm um papel especial na
teoria da Intencionalidade; porém, na minha explicação,
pretender fazer alguma coisa é apenas uma forma de In­
tencionalidade, juntamente com a crença, a esperança, o
medo, o desejo e muitas outras. E não quero com isso su­
gerir, por exemplo, que uma vez que as crenças são inten­
cionais elas de algum m odo contenham a noção de in­
tenção, ou que pretendam algo, ou que alguém que tenha
uma crença deva por isso pretender fazer algo a respeito.
A fim de deixar totalmente clara essa distinção, grafarei
com iniciais maiúsculas os tennos “Intencional” e “Intencio­
nalidade” em sua acepção técnica. Intencionalidade é dire-
cionalidade; ter a intenção de fazer algo é apenas uma for­
ma de Intencionalidade entre outras.
Em relação ao jogo entre “intencional” e “Intencio­
nal” há outras confusões comuns. Alguns autores descre­
vem as crenças, os temores, as esperanças e os desejos
como “atos mentais”, mas isso na m elhor das hipóteses é
falso e, na pior, irremediavelmente confuso. Beber cerve­
ja ou escrever livros podem ser descritos como atos, ações
ou mesmo atividades, e fazer cálculos aritméticos de ca­
beça ou formar imagens m entais da ponte Golden Gate
são atos mentais; mas acreditar, esperar, tem er e desejar
não são atos, nem atos m entais em absoluto. Atos são
coisas que se fa z e m , mas não existe um a resposta à per-
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 5

gunta “o que você está fazendo agora?” nos termos: “es­


tou agora acreditando que vai chover”, ou “esperando
que os impostos dim inuam ”, ou “tem endo uma queda na
taxa cle juros”, ou “desejando ir ao cinem a”. Os estados e
eventos Intencionais que estarem os considerando são
precisam ente isto: estados e eventos, e não atos mentais,
em bora eu tenha algo a dizer sobre o que é adequada­
m ente cham ado ato mental no capítulo 3-
É igualmente confuso pensar, por exemplo, nas cren­
ças e nos desejos como imbuídos, de algum modo, de de­
terminada intenção. As crenças e os desejos são estados.
Intencionais, mas não têm a intenção de coisa alguma.
Em meu estudo, os termos “Intencionalidade” e “Intencio­
nal” ocorrerão nessas formas substantiva e adjetiva, e me
referirei a certos estados e eventos mentais com o tendo
Intencionalidade ou sendo Intencionais, mas sem nenhum
sentido associado a algum verbo correspondente.
Eis alguns exemplos de estados que podem ser In­
tencionais: crença, temor, esperança, desejo, amor, ódio,
aversão, agrado, desagrado, dúvida, imaginar se, alegria,
exaltação, depressão, ansiedade, orgulho, remorso, pesar,
culpa, regozijo, irritação, perplexidade, aceitação, perdão,
hostilidade, afeição, expectativa, ira, admiração, despre­
zo, respeito, indignação, intenção, anseio, vontacle, ima­
ginação, fantasia, vergonha, luxúria, nojo, anim osidade,
terror, prazer, abominação, aspiração, divertimento e de­
sapontam ento.
É característico dos mem bros desse grupo serem ou
essencialm ente direcionados, como nos casos do amor,
do ódio, da crença e do desejo, ou ao menos poderem
ser direcionados, como nos casos da depressão e da exal­
tação. Esse grupo suscita um núm ero muito grande cle
questões. Por exemplo, com o podem os classificar seus
elementos, e quais as relações entre eles? Mas a questão
6 INTENCIONALIDADE

sobre a qual quero me concentrar agora é a seguinte:


qual é exatam ente a relação entre os estados Intencionais
e os objetos e estados de coisas aos quais de algum m o­
do eles dizem respeito ou aos quais estão direcionados?
Que tipo de relação é chamada “Intencionalidade” e co­
mo podem os explicar a Intencionalidade sem recorrer a
metáforas com o “direcionada”?
O bserve-se que a Intencionalidade não po d e ser
uma relação ordinária tal como sentar-se sobre alguma
coisa ou socar essa mesma coisa, pois em um grande nú­
mero de estados Intencionais, poderei vivenciar o estado
Intencional sem que o objeto ou o estado de coisas a
que ele está “direcionado” sequer exista. Posso esperar
que esteja chovendo mesmo que não esteja chovendo e
posso acreditar que o Rei da França é calvo, mesmo que
não exista nenhum Rei da França.

><
II. A INTENCIONALIDADE COMO REPRESENTAÇÃO:
O MODELO DO ATO DE FALA

Nesta seção, quero explorar algum as das relações


entre os estados Intencionais e os atos de fala de m odo a
poder responder à pergunta: qual a relação entre os esta­
dos Intencionais e os objetos e estados de coisas aos
quais estão de algum m odo direcionados?. Para adiantar
um pouco, a resposta que vou propor a essa pergunta é
bastante simples: os estados Intencionais representam ob­
jetos e estados de coisas no mesmo sentido de “represen­
tar” em que os atos de fala representam objetos e estados
de coisas (embora, como verem os no capítulo 6, os atos
de fala tenham um a forma derivada de Intencionalidade
e portanto representem de um m odo diferente daquele
dos estados Intencionais, que têm um a forma intrínseca
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 7

de Intencionalidade). Temos já intuições bem claras acerca


de como os enunciados representam suas condições de
verdade, com o as promessas representam suas condições
de cumprimento, como as ordens representam as condições
de sua obediência e como, na emissão de uma expressão de
referência, o falante se refere a um objeto; com efeito, te­
mos até algo semelhante a uma teoria acerca desses vários
tipos de atos de fala; pretendo abordar esse conhecimento
prévio para tentar explicar como e em que sentido os esta­
dos Intencionais também são representações.
Existe um possível m al-entendido que preciso evitar
já no início da investigação. Ao explicar a Intencionalida­
de em termos de linguagem, não pretendo sugerir que a
Intencionalidade é essencial e necessariamente lingüísti­
ca. Ao contrário, parece-me óbvio que os recém-nascidos
e muitos animais que, em um sentido ordinário, não pos­
suem uma linguagem nem réalizam atos de fala apresen­
tam, mesmo assim, estados Intencionais. Só alguém total­
mente dom inado por uma teoria filosófica negaria que se
pocle dizer literalmente que os bebês pequenos querem
leite e que os cães querem que os deixem sair ou acredi­
tam que o dono está chegando. São duas, aliás, as razões
pelas quais achamos irresistível atribuir Intencionalidade
aos animais, m esm o que não disponham de uma lingua­
gem. Em primeiro lugar, podem os ver que a base causal
da Intencionalidade do animal é bem parecida com a
nossa, ou seja, eis aqui os olhos do animal, eis aqui suas
orelhas, eis aqui sua pele etc. Em segundo lugar, não po­
demos dar um sentido ao seu com portamento de outro
modo. Em m eu esforço por explicar a Intencionalidade
em termos de linguagem, estou usando o nosso conheci­
m ento prévio desta como um instrumento heurístico para
fins explicativos. Após ter tentado esclarecer a natureza
da Intencionalidade, argumentarei (capitulo 6) que a rela-
8 INTENCIONALIDADE

ção de dependência lógica é precisam ente o oposto. A


linguagem é derivada da Intencionalidade, e não o opos­
to. A tendência da pedagogia é explicar a Intencionalida­
de em termos de linguagem; a tendência da análise lógica
é explicar a linguagem em termos de Intencionalidade.
Há pelo m enos os seguintes quatro pontos de sem e­
lhança e de ligação entre os estados Intencionais e os
atos de fala.
1. A distinção entre o conteúdo proposicional e a
força ilocucionária, familiar no contexto da teoria dos
atos de fala, aplica-se aos estados Intencionais. Assim
com o posso ordenar que você saia da sala, prever que
você sairá da sala e sugerir que você saia da sala, posso
tam bém acreditar que você sairá da sala, tem er que vo­
cê saia da sala, querer que você saia da sala e esperar
que você saia da sala. Na prim eira classe de casos, a
dos atos de fala, há uma distinção óbvia entre o conteú­
do proposicional que você saia da sala e a força ilocucio­
nária com que tal conteúdo é apresentado no ato de fa­
la. Mas igualm ente na segunda classe de casos, a dos
estados Intencionais, há um a distinção entre o conteúdo
representativo que você saia da sala e o m odo psicoló­
gico, seja este crença, m edo, esperança ou qualquer o u ­
tro, em que se tenha esse conteúdo representativo. No
contexto da teoria dos atos de fala costum a-se apresen­
tar essa distinção na fórmula “F(p) ”, em que “F” repre­
senta a força ilocucionária e “p ” o conteúdo proposicio­
nal. Na teoria dos estados Intencionais terem os igual
necessidade de distinguir entre o conteúdo representati­
vo e a m aneira ou m odo psicológico em que se tem es­
se conteúdo representativo. Simbolizaremos essa distin­
ção como “5(r)”, em que “5"’ representa o m odo psico­
lógico e “r ” o conteúdo representativo.
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 9

Talvez fosse mais adequado restringir a expressão


“conteúdo proposicional” aos estados lirigiiisticamente rea­
lizados e em pregar as expressões “conteúdo representati­
vo” ou “conteúdo Intencional” com o expressões mais ge­
rais, a fim de incluir tanto os estados Intencionais lingüis-
ticamente realizados quanto os que não são realizados na
linguagem. Porém, uma vez que precisam os distinguir
também entre estados tais com o a crença, cujo conteúdo
deve sem pre ser exprimível com o uma proposição com ­
pleta, e estados com o o am or e o ódio, cujo conteúdo
não é necessariam ente uma proposição completa, conti­
nuarei usando tam bém a noção de conteúdo proposicio­
nal para os estados Intencionais, para assinalar os estados
que levam com o conteúdo proposições inteiras, seja ou
não esse estado lingtiisticamente realizado. Usarei as no­
tações da teoria dos atos de fala ao representar o conteú­
do de um estado Intencional entre parênteses e a forma
ou m odo em que o agente tem esse conteúdo, fora deles.
Assim, por exemplo, se um hom em ama Sally e acredita
que está chovendo, seus dois estados Intencionais po­
dem ser representados nos termos:

Ama (Sally)
Acredita (que está chovendo).

A maior parte das análises deste livro será sobre es­


tados Intencionais que possuem conteúdos proposicio-
nais completos, as chamadas atitudes proposicionais. Mas
é im portante sublinhar que nem todos os estados Inten­
cionais têm um a proposição inteira como conteúdo In­
tencional, embora por definição todos os estados Intencio­
nais tenham pelo m enos algum conteúdo representativo,
seja ele um a proposição completa ou não. E, com efeito,
esta condição é mais forte para os estados Intencionais
10 INTENCIONALIDADE

que para os atos de fala, pois alguns (muito poucos.) atos


de fala expressivos não têm qualquer conteúdo, com o
“Ai!”, “Olá”, “Adeus”.
2. A bem conhecida distinção entre as diferentes di­
reções de adequação, também oriunda d.a teoria dos atos
de fala1, será transposta para os estados Intencionais. Su­
põe-se que os m em bros da classe assertiva dos atos de
fala - enunciados, descrições, asserções etc. - ajustam-se
de algum m odo a um m undo de existência autônoma; e
diremos que serão verdadeiros ou falsos conforme esse
ajuste se dê ou não. Mas não se supõe que os m em bros
da classe diretiva dos atos de fala - ordens, comandos,
solicitações etc. - e os elem entos da classe compromissi-
va - prom essas, votos, garantias etc. - ajustem-se a uma
realidade de existência autônom a, mas, antes, que provo­
quem m udanças no mundo, de m odo que este corres­
ponda ao conteúdo proposicional do ato de fala. E, na
medida em que o ato de fala realize ou não tais m udan­
ças, não dizemos que são verdadeiros ou falsos, mas, an­
tes, coisas com o o serem tais atos obedecidos ou desobe­
decidos, realizados, cumpridos, m antidos ou rom pidos.
Assinalarei esta distinção dizendo que a classe assertiva
tem a direção do ajuste palavra-m undo e as classes cora-
promissiva e diretiva têm a direção do ajuste m undo-pa-
lavra. Se a declaração não for verdadeira, é a declaração
que está em falta e não o mundo; se a ordem for desobe­
decida, ou se a promessa é quebrada, não são a ordem e
a promessa que estão em falta, mas o m undo na pessoa
do desobediente ou daquele que quebra a promessa. In­
tuitivamente, podem os dizer que a idéia da direção do
ajuste é a da responsabilidade pela adequação. Se a de­
claração for falsa, a falha é da declaração (direção de
ajuste palavra-mundo). Se a prom essa for quebrada, a fa­
lha é de quem prom ete (direção de ajuste m undo-pala-
A NAWREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 11

vraj. Há tam bém casos nulos, em que não há direção de


ajuste algum. Se me desculpo por insultar alguém, ou me
congratulo com alguém que obteve uma vitória - em bora
eu realmente pressuponha a verdade da proposição ex­
pressa, que insultei alguém, que alguém foi vitorioso - a
finalidade do ato de fala não é afirmar essas proposições
nem ordenar que os atos que elas designam sejam leva- ^
dos a cabo; em vez disso, o fim é expressar m eu pesar

CENTRAL
DU
ou meu prazer ante o estado de coisas especificado no
conteúdo proposicional, cuja verdade pressuponho2. Ora,

fe'-
algo muito parecido a essas distinções pode ser aplicado
aos estados Intencionais. Se minhas crenças se revelam
equivocadas, a falha reside nelas e não no mundo, tal co­

B .B U O TE C A
mo é dem onstrado pelo fato de que posso corrigir a situa­

U N I V 6 PSID ^ • E
ção simplesmente m udando minhas crenças. É responsa­
bilidade da crença, por assim dizer, co rresp o n d er ao
m undo e, ali onde essa correspondência não ocorre, cor­
rijo a situação m udando a crença. Todavia, se deixo de
.levar a cabo minhas intenções, ou se m eus desejos não
são realizados, não posso corrigir a situação sim plesm en­
te m udando a intenção ou o desejo. Nesses casos, a fa­
lha, por assim dizer, é do m undo, se este deixar de cor­
responder à intenção ou ao desejo, e não posso conser­
tar as coisas dizendo que se tratava de uma intenção ou
ç k um desejo errado do mesmo m odo que posso conser-
tar as coisas dizendo que se tratava de uma crença equi­
vocada. As crenças, tal como os enunciados, podem ser
verdadeiras ou falsas, e pode-se dizer que têm uma dire­
ção de ajuste “m ente-m undo”. Por outro lado, os desejos
e as intenções não podem ser falsos ou verdadeiros, mas
sim ser cumpridos, realizados ou levados a cabo, e pode-
se dizer que têm uma direção de ajuste “m undo-m ente”.
Além disso, Jxá_..também estados Intencionais com uma di­
reção de ajuste nula. Se estou pesaroso por ter insultado
12 INTENCIONALIDADE

alguém, ou satisfeito porque alguém obteve uma vitória,


então, em bora o m eu pesar e a m inha satisfação incluam
um a crença de que insultei alguém e um desejo de não
ter insultado e m inha satisfação inclua uma crença de
que alguém obteve uma vitória e um desejo de que a ti­
vesse obtido, m eu pesar e minha satisfação não podem
ser falsos ou verdadeiros do m esm o modo que minhas
crenças, nem realizados com o os m eus desejos. Meu p e­
sar e minha satisfação podem ser apropriados ou não,
conforme seja ou não realm ente satisfeita a direção do
ajuste m ente-m undo da crença, mas meu pesar e meu
prazer não têm, neste sentido, nenhum a direção de ajus­
te. Terei mais a dizer acerca desses estados Intencionais
complexos mais adiante.
3. Uma terceira ligação entre os estados Intencionais
e os atos de fala é que, na realização de cada ato ilocucio-
nário com um conteúdo proposicional, expressamos um
certo estado Intencional com esse conteúdo proposicio­
nal, e esse estado Intencional é a condição de sincerida­
de desse tipo de ato de fala. Assim, por exemplo, se faço
um enunciado de que p, expresso um a crença em que p.
Se prom eto fazer A, expresso um a intenção de fazer A. Se
ordeno que você faça A, expresso um a aspiração ou um
desejo de que você faça A. Se me desculpo por ter feito
alguma coisa, expresso pesar por ter feito tal coisa. Se
me congratulo com alguém por alguma coisa, expresso
satisfação por tal coisa. Todas essas ligações entre os atos
ilocucionários e as condições de sinceridade Intencionais
expressas dos atos de fala são internas; isto é, o estado
Intencional expresso não é um m ero coadjuvante da rea­
lização do ato de fala. A realização do ato de fala é ne­
cessariamente uma expressão do estado Intencional cor­
respondente, tal com o é dem onstrado por uma generali­
zação do paradoxo de Moore. Não se pode dizer “está
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 13

nevando, mas não acredito que esteja nevando”, “orde-


no-lhe que pare de fumar, mas não quero que pare de
fumar”, “peço desculpas por insultá-lo, mas não lamento
tê-lo insultado”, “congratulações pela vitória, mas não es­

l t K D r . ' ' ’*'- üO PAR.*


tou contente por você ter sido vitorioso”, e assim por dian­
te. Todos esses ditos soam estranhos pela mesma razão.

C EN iT^AL-
A realização de um ato de fala é eo ipso uma expressão
do estado Intencional correspondente; e, em conseqüên­
cia, é logicamente estranho, em bora não autocontraditó-
rio, realizar o ato de fala e negar a presença do estado
Intencional correspondente3.
Ora, dizer que o estado Intencional que constitui a

81B U O T E C A
condição de sinceridade é expresso na realização do ato
de fala não quer dizer que se deva sempre ter o estado
Intencional que se expressa. É sem pre possível mentir ou
realizar algum outro ato de fala insincero. Contudo, uma
mentira ou outro ato de fala insincero consiste em reali­
zar um ato de fala e, com isso, expressar um estado In­
tencional quando não se tem o estado Intencional que se
expressa. Observe-se que o paralelismo entre os atos ilo-
cucionários e suas condições de sinceridade Intencionais
expressas é notavelm ente próximo: em geral, a direção
do ajuste do ato ilocucionário e a da condição de sinceri­
dade é a mesma; nos casos em que o ato ilocucionário
não tem nenhum a direção de ajuste, a verdade do con­
teúdo proposicional é pressuposta e o estado Intencional
correspondente contém uma crença. Por exemplo, se pe­
ço desculpas por pisar em seu gato, expresso rem orso
por ter pisado no seu gato. Nem o pedido de desculpas,
nem o remorso têm uma direção de adequação, mas o
pedido de desculpas pressupõe a verdade da proposição
de que eu pisei no seu gato e o remorso contém uma
crença de que pisei no seu gato.
4. A noção de condições de satisfação aplica-se de
maneira bastante geral tanto para os atos de fala quanto
14 INTENCIONALIDADE

para os estados Intencionais, nos casos em que haja um a


direção de ajuste. Dizemos, por exem plo, que um enun­
ciado é verdadeiro ou falso, que uma ordem é obedecida
ou desobedecida, que uma promessa é cumprida ou que­
brada. Em cada um desses casos, atribuímos um sucesso
ou um fracasso ao ato ilocucionário em corresponder à
realidade na direção particular do ajuste fornecida pelo
propósito ilocucionário. Para termos um a expressão, p o ­
demos rotular todas essas condições com o “condições de
satisfação” ou “condições de sucesso”. Assim, direm os
que um enunciado é satisfeito se, e som ente se, for ver­
dadeiro, que um a ordem é satisfeita se, e somente se, for
obedecida, que uma promessa é satisfeita se, e som ente
se, for cumprida, e assim por diante. Ora, essa noção cle
satisfação tam bém se aplica claram ente aos estados In­
tencionais. Minha crença será satisfeita se, e som ente se,
as coisas forem tais com o acredito que sejam, meus dese­
jos serão satisfeitos se, e som ente se, forem realizados,
minhas intenções serão satisfeitas se, e som ente se, forem
levadas a cabo. Isto é, a noção de satisfação parece ser
intuitivamente natural tanto para os atos de fala quanto
para os estados Intencionais e aplicar-se de m odo bastan­
te geral sem pre que houver uma direção de ajuste4.
De im portância crucial é p erceber que, para cada
ato de fala que tenha uma direção de ajuste, o ato de fa la
será satisfeito se, e somente se, o estado psicológico expres­
so fo r satisfeito e forem idênticas as condições de satisfa­
ção do ato de fa la e do estado psicológico expresso. Desse
modo, por exemplo, meu enunciado será verdadeiro se,
e som ente se, a convicção expressa for correta, m inha-or­
dem será obedecida se, e som ente se, a aspiração ou de­
sejo expresso for realizado, e minha prom essa será cum ­
prida se, e som ente se, minha intenção expressa for leva­
da a cabo. Observe-se, além disso, que, assim com o as
A NA TUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 15

condições de satisfação são internas ao ato de fala, as con­


dições de satisfação do estado Intencional são internas ao
estado Intencional. Parte do que torna o meu enunciado
de que a neve é branca o enunciado que é, é ter essas
condições de verdade e não outras. Do mesmo m odo,

P AP M
parte do que faz com que o m eu desejo de que estivesse
chovendo seja o desejo que é, é que certas coisas o satis­
farão e certas outras coisas não.

CENTRAI
DO
O conjunto dessas quatro ligações entre os estados
Intencionais e os atos de fala sugerem naturalmente uma
certa imagem da Intencionalidade: todo estado Intencio­
nal com põe-se de um conteúdo representativo em um
certo m odo psicológico. Os estados Intencionais represen­

BiBUOTEC*
tam objetos e estados de coisas, no mesmo sentido em

UNIVE»S-' D*OE
que os atos de fala representam objetos e estados de coi­
sas (embora, repetindo, o façam por meios diferentes e
de um m odo diferente). Assim com o meu enunciado de
que está chovendo é uma representação de um certo es­
tado de coisas, m inha crença de que está chovendo é
uma representação do mesmo estado de coisas. Assim co­
mo a minha ordem para que Sam deixe a sala se refere a
Sam e representa uma determinada ação por parte dele,
meu desejo cle que Sam deixasse a sala se refere a Sam e
representa uma determinada ação por parte dele. A noção
de representação é convenientem ente vaga. Aplicada à
linguagem, podem os usá-la para dar conta não só da refe­
rência, mas tam bém da predicação e das condições de
verdade ou de satisfação de maneira geral. Aproveitando
esse caráter vago, podem os dizer que os estados Intencio­
nais imbuídos de um conteúdo proposicional e de uma di­
reção de ajuste representam suas diversas condições de sa­
tisfação, no mesmo sentido em que os atos de fala imbuí­
dos de um conteúdo proposicional e de uma direção de
ajuste representam suas condições de satisfação.
16 INTENCIONALIDADE

Se vamos nos permitir o uso de noções como “repre­


sentação” e “condições de satisfação”, estas exigirão al­
guns esclarecimentos mais. É provável que não exista, na
história da filosofia, termo mais aviltado que “representa­
ção”, e meu uso deste termo difere tanto de seu em prego
na filosofia tradicional quanto de seu emprego na psicolo­
gia cognitiva e na inteligência artificial contem porâneas.
Q uando digo, por exemplo, cjue uma crença é uma repre­
sentação, não estou, absolutam ente, dizendo que um a
crença é um a espécie de imagem, nem estou endossando
a explicação de significado do Tractatus, tam pouco di­
zendo que uma crença re-apresenta algo que já foi apre­
sentado antes, nem que um a crença tem um significado,
nem que seja um tipo de coisa cujas condições de satisfa­
ção se depreendem mediante seu exame minucioso. En­
tende-se que o sentido de “representação” em questão se­
ja inteiramente esgotado por sua analogia com os atos de
fala: o sentido de “representar” em que uma crença repre­
senta suas condições de satisfação é o mesmo sentido em
que um enunciado representa suas condições cle satisfa­
ção. Dizer que uma crença constitui uma representação é
simplesmente dizer que ela tem um conteúdo proposicio-
nal e um m odo psicológico, que seu conteúdo proposi-
cional determina um conjunto de condições de satisfação
sob certos aspectos, que seu m odo psicológico determina
a direção de adequação do seu conteúdo proposicional,
de tal modo que todas essas noções - conteúdo proposi­
cional, direção do ajuste etc. - são explicadas pela teoria
dos atos de fala. Com efeito, no que toca a tudo o quanto
expus até aqui, poderíamos, em princípio, dispensar total­
m ente os termos “representação” e “representar”, em fa­
vor dessas outras noções, um a vez que não há nada de
ontológico em meu uso do termo “representação”. Trata-
se apenas de uma abreviação para essa constelação de no-
A NATUKEZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 17

ções lógicas tomadas de empréstimo da teoria dos atos de


fala. (Mais adiante discutirei algumas diferenças entre os
estados Intencionais e os atos de fala.)
Além disso, meu uso da noção de representação di­
fere de seu uso na inteligência artificial e na psicologia

P AH A
cognitiva contem porâneas. Para mim, uma representação
é definida por seu conteúdo e seu m odo, não por sua es­

C E m TRAC
trutura formal. Com efeito, nunca pude perceber algum

ÜÜ
sentido claro na opinião segundo a qual toda representa­
ção m ental deve ter um a estrutura formal, no sentido,

FcDtK^L
por exemplo, em que uma sentença tem uma estrutura
sintática formal. Deixando de lado algumas complicações

B<tíi_lO I EGA.
(relativas a Rede e Background) que surgirão mais adian­
te, as relações formais entre essas várias noções podem

UNIVtKSiU-^ t
ser formuladas, neste estágio preliminar das investigações,
da maneira que se segue: todo estado Intencional com-
põe-se de um conteúdo Intencional em um modo psico­
lógico. Nos casos em que esse conteúdo é uma proposi­
ção completa e há uma direção de ajuste, o conteúdo In­
tencional determina as condições de satisfação. Condições
de satisfação são as condições que, tal com o determ ina­
das pelo conteúdo Intencional, devem ser alcançadas pa­
ra que o estado seja satisfeito. Por esse motivo, a especifi­
cação do conteúdo é já uma especificação das condições
de satisfação. Desse modo, se tenho uma crença de que
está chovendo, o conteúdo de minha crença é: que está
chovendo. E as condições de satisfação são: que esteja
chovendo — e não, por exem plo, que o chão esteja m o­
lhado ou que esteja caindo água do céu. Uma vez que
toda representação - seja esta feita pela mente, pela lin­
guagem, por imagens ou por qualquer outra coisa - está
sem pre subm etida a determ inados aspectos e não' a ou­
tros, as condições de satisfação são representadas sob de­
terminados aspectos.
18 INTENCIONALIDADE

A expressão “condições de satisfação” tem a costu­


meira am bigüidade processo-produto, com o a que existe
entre o requisito e a coisa requerida. Assim, por exem ­
plo, se acredito que está chovendo, as condições cie sa­
tisfação de minha crença são que esteja chovendo (requi­
sito). E isso que a minha crença exige para ser uma cren­
ça verdadeira. E se a minha crença é de fato verdadeira
haverá uma certa condição no m undo, a saber, a condi­
ção de que esteja chovenâo (coisa requerida), que é a
condição de satisfação da minha crença, isto é, a condi­
ção no m undo que de fato satisfaz minha crença. Acredi­
to ser essa ambigüidade bastante inofensiva, na verdade
até mesmo útil, contanto que se tenha consciência dela
desde o início. Contudo, em alguns dos com entários so­
bre meus trabalhos anteriores acerca da Intencionalidade,
tal am bigüidade levou a alguns m al-entendidos5; de m o­
do que, nos contextos em que os dois sentidos pareçam
gerar mal-entendidos, assinalarei ambos explicitamente.
Deixando de lado as várias qualificações, podería­
mos resumir esta breve explicação preliminar da Intencio­
nalidade dizendo que a chave para o entendim ento da
representação está nas condições de satisfação. Todo es­
tado Intencional com uma direção de ajuste é uma repre­
sentação de suas condições de satisfação.

III. ALGUMAS APLICAÇÕES E EXTENSÕES DA TEORIA

Tão logo expostas essas idéias, um a profusão de


perguntas se apresenta. Que direm os sobre os estados
Intencionais que não possuem um a direção do ajuste? Se­
rão eles representações também? E, se o forem, quais as
suas condições de satisfação? E quanto à fantasia e a imagi­
nação? O que representam? E quanto à situação ontoló-
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 19

gica de tudo isso - serão esses estados Intencionais enti­


dades m entais m isteriosas e n ão terem os p o v o ad o o
m undo com “estados de coisas” para poderm os satisfazer
a essas entidades mentais? E quanto à intensionalidade-

UNIVE«SiD*c;fc FcDt^ *i_ DO PA RA


com-s, onde é que ela se encaixa? E quanto ã noção tra­
dicional de “objeto Intencional”, com sua suposta “inexis­
tência intencional” (Brentano)? Além disso, há mais algu­

B.9U 0 TEC A C E ^ T H A L
mas objeções céticas. Pode-se, com certeza, objetar que
toda representação exige um ato intencional da parte do
agente que faz a representação. Representar exige um agen­
te representador e um ato intencional de representação e,
portanto, a representação exige a Intencionalidade e não
pode ser usada para explicá-la. E, o que é mais am eaça­
dor, não é certo que os vários argumentos acerca da teo­
ria causal da referência tenham dem onstrado que essas
entidades mentais “na cabeça” são insuficientes para de­
monstrar de que m odo a linguagem e a mente se referem
às coisas do mundo?
Bem, não é possível responder a todas essas pergun­
tas ao m esm o tem po e, nesta seção, limitar-me-ei a res­
ponder a algumas delas de m odo a estender e aplicar o
enunciado prelim inar da teoria. Meu objetivo é duplo.
Q uero mostrar como esta abordagem da Intencionalidade
responde a certas dificuldades filosóficas tradicionais e,
ao fazer isso, pretendo ampliar e desenvolver a teoria.
1. Uma das vantagens desta abordagem, de forma al­
guma menor, é permitir-nos distinguir claramente entre as
propriedades lógicas dos estados Intencionais e sua situa­
ção ontológica; nessa exposição, a propósito, a questão
relativa à natureza lógica da Intencionalidade não é, abso­
lutamente, um problema ontológico. Por exemplo, o que
é realmente uma crença? As respostas tradicionais presu­
mem que a pergunta versa sobre a categoria ontológica
em que se encaixam as crenças, mas o importante, no
20 INTENCIONALIDADE

que toca à Intencionalidade da crença, não é a sua cate­


goria ontológica e sim as suas propriedades lógicas. Algu­
mas das respostas tradicionalmente privilegiadas asseve­
ram que as crenças são uma modificação sofrida por um
ego cartesiano, idéias hum eanas a passear pela cabeça,
disposições causais a comportar-se de determinadas ma­
neiras ou um estado funcional de um sistema. De minha
parte, por acaso, considero.que todas essas respostas são
falsas, mas, para os propósitos presentes, o importante é
observar que são respostas a um a outra pergunta. Caso se
considere que a pergunta “o que é realmente uma cren­
ça?” significa “o que é uma crença qua crença?”, a respos­
ta deverá ser apresentada, pelo m enos em parte, em ter­
mos das propriedades lógicas cla crença: uma crença é
um conteúdo proposicional em um determ inado m odo
psicológico, em que o m odo determina uma direção de
ajuste m ente-m undo e seu conteúdo proposicional deter­
mina um conjunto de condições de satisfação. Os estados
Intencionais têm de ser caracterizados em termos Intencio­
nais se não quisermos perder de vista sua Intencionalida­
de intrínseca. Mas se a pergunta for “qual é o m odo de
existência das crenças e de outros estaclos Intencionais?”,
então, com base em todo o nosso conhecim ento atual
acerca de como o m undo funciona, a resposta será: os es­
tados Intencionais são ao m esm o tem po causados pela es­
trutura do cérebro e realizados nela. E o importante, ao
responder a essa segunda pergunta, é ver tanto o fato de
que os estados Intencionais estão em relações causais
com os neurofisiológicos (além de, é claro, estarem em
relações causais com outros estados Intencionais), como o
fato de serem realizados na neurofisiologia do cérebro.
Os dualistas, que, percebem corretamente o papel causal
do mental, consideram que, precisamente por esta razão,
devem postular uma categoria ontológica separada. Mui-
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 21

tos físicalistas que percebem corretam ente que tudo o que


temos no crânio é um cérebro acham que por esta razão
devem negar a eficácia causal dos aspectos mentais do
cérebro, ou mesmo a existência desses aspectos mentais
irredutíveis. Acredito que ambas as visões estejam equivo­

OO PARA
cadas. Ambas tentam resolver o problema mente-corpo,
quando a abordagem correta é perceber que tal problema
não existe. O “problema mente-corpo" não é um proble­

CENTRAL
ma mais real que o do “estômago-digestão”. (Ver mais so­
bre a questão no capítulo 10.)
Nesta altura, não é mais relevante para nós responder
à pergunta de como os estados Intencionais são realizados
na ontologia do m undo do que responder às perguntas

B .B U O r t C A
análogas sobre como se realiza um determinado ato lin­

UNIVfctf^riü'" -t
güístico. Um ato lingüístico pode ser realizado através da
fala ou da escrita, em francês ou em alemão, em um teleti­
po ou em um alto-falante, em uma tela de cinema ou em
um jornal. Para suas propriedades lógicas, porém, tais for­
mas de realização são irrelevantes. Com razão consideraría­
mos que não entendeu o problema alguém obcecado com
a questão cle se os atos de fala são ou não idênticos a fe­
nômenos físicos tais como as ondas sonoras. As formas de
realização de um estado Intencional são tão irrelevantes
para suas propriedades lógicas quanto as formas em que é
realizado um ato de fala o são para as suas. As proprieda­
des lógicas dos estados Intencionais surgem do fato de se­
rem representações, e a questão é que podem, tal com o as
entidades lingüísticas, ter propriedades lógicas de um mo­
do que as pedras e árvores não podem (embora os enun­
ciados acerca de pedras e árvores possam), pois os esta­
dos Intencionais, como as entidades lingüísticas e ao con­
trário das pedras e árvores, são representações.
O célebre problema cle Wittgenstein sobre a inten­
ção - Q uando ergo o braço, o que resta se subtraio o fa-
22 INTENCIONALIDADE

to de que meu braço se ergue?6 - resiste à solução ap e­


nas en q uanto insistirmos em um a resposta ontológica.
Dada a abordagem não-ontológica da Intencionalidade
aqui sugerida, a resposta é bastante simples. O que resta
é um conteúdo Intencional - que o meu braço se erga
como resultado dessa intenção na ação (ver capítulo 3) -
em um certo m odo psicológico - o m odo intencional. Na
medida em que não estejamos satisfeitos com essa res­
posta, acredito que nossa insatisfação revele possuirmos
um m odelo equivocado de “Intencionalidade”; continua­
mos à procura de algo que corresponda à palavra “inten­
ção”. Contudo, a única coisa que poderia corresponder-
lhe seria um a intenção e, para saber o que é um a inten­
ção, ou qualquer outro estado Intencional com um a dire­
ção de ajuste, não precisamos conhecer sua categoria onto­
lógica última, mas, em vez disso, devemos saber, primeiro,
quais suas condições de satisfação; segundo, sob que as-
pecto(s) essas condições são representadas pelo conteúdo
Intencional; e, terceiro, qual é o modo psicológico —cren­
ça, desejo, intenção etc. - do estado em questão. Conhecer
a resposta para a segunda dessas perguntas é já conhecer a
resposta para a primeira, uma vez que as condições de sa­
tisfação são sempre representadas sob determinados aspec­
tos; e um conhecimento da terceira é o bastante para nos
facultar um conhecim ento da direção do ajuste entre o
conteúdo representativo e as condições de satisfação.
2. Uma segunda vantagem desta abordagem é forne­
cer-nos um a resposta bastante simples para os tradicio­
nais problem as ontológicos acerca do estatuto dos obje­
tos Intencionais: um objeto Intencional é apenas um ob­
jeto como qualquer outro; não desfruta nenhum a posição
ontológica peculiar. Chamar uma determ inada coisa obje­
to Intencional é apenas clizer a que se refere um estado
Intencional qualquer. Assim, por exemplo, se Bill admira
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 23

o presidente Carter, o objeto Intencional de sua admira­


ção é o presidente Carter, o hom em real, e não alguma
obscura entidade interm ediária entre Bill e o hom em .
Tanto no caso dos atos de fala com o no dos estados In­
tencionais, se não houver um objeto que satisfaça o con­

PARA
teúdo proposicional ou representativo, o ato de fala e o
estado Intencional não poderão ser satisfeitos. Nesses ca­
sos, assim com o não há um “objeto referido” do ato de

Bi3LIQ T£G*. OLN>T*>>»_


fala, tam pouco há um “objeto Intencional” do estado In­

U N IV E K S ID O O
tencional: se nada satisfizer a porção referencial do con­
teúdo representativo, o estado Intencional será desprovi­
do de um objeto Intencional. Assim, por exem plo, o
enunciado de que o Rei da França é calvo não pode ser
verdadeira, pois não existe um Rei da França e, do mes­
mo modo, a crença de que o Rei cla França é calvo não
pode ser verdadeira, pois não existe um Rei da França. A
ordem para que o Rei da França seja calvo e o desejo de
que o Rei da França fosse calvo não podem ser satisfei­
tos, ambos pela mesma razão: não existe um Rei da Fran­
ça. Nesses casos, não há nenhum “objeto Intencional” cio
estado Intencional e não há nenhum “objeto referido” do
enunciado. O fato de nossos enunciados poderem não
ser verdadeiros por uma falta de referência não mais nos
inclina a supor que deveríamos erigir uma entidade mei-
nongiana à qual tais enunciados se refeririam. Percebe­
mos que elas têm um conteúdo proposicional ao qual
nada satisfaz e que, nesse sentido, não “se referem ” a
coisa alguma. Precisamente do m esm o m odo, porém, su­
giro que o fato de nossos estados Intencionais poderem
não ser satisfeitos, por não haver objeto a que seus con­
teúdos se refiram, não deve mais deixar-nos perplexos a
ponto de erigirmos uma entidade m einongiana interm e­
diária ou objeto Intencional a que tais estados se refiram.
Um estado Intencional tem um conteúdo representativo,
24 INTENCIONALIDADE

mas não se refere e nem está direcionado a tal conteúdo.


Parte da dificuldade aqui deriva do “referir-se”, que tem
tanto um a leitura extensional quanto uma intensional-
com-s. Em um sentido (o intensional-com-s), o enuncia­
do ou crença de que o Rei da França é calvo refere-se ao
Rei da França, mas, nesse sentido, não decorre que haja
um objeto a que eles se refiram. Em outro sentido (o ex­
tensional), não há nenhum, objeto ao qual eles se refiram
porque nào existe um Rei da França. Na minha opinião,
é fundamental distinguir entre o conteúdo de uma crença
(isto é, uma proposição) e os objetos dessa mesma cren­
ça (ou seja, os objetos ordinários)
É claro q ue alguns de nossos estados Intencionais
são exercícios de fantasia e imaginação, mas, analoga­
mente, alguns de nossos atos de fala são ficcionais. E as­
sim com o a possibilidade do discurso ficcional, em si
mesmo um produto da fantasia e da imaginação, não nos
obriga a erigir uma classe de objetos “referidos” ou “des­
critos”, diferentes dos objetos ordinários, mas admissivel-
mente os objetos cle todo discurso, sugiro que a possibili­
dade de fantasia e de formas imaginativas de Intenciona­
lidade não nos força a acreditar na existência de uma
classe de “objetos Intencionais”, diferentes dos objetos
ordinários, mas, admissivelmente, os objetos de todos os
nossos estados Intencionais. Não estou negando a exis­
tência cle problem as referentes à fantasia e à imaginação;
sustento, antes, que os problem as são os mesmos da aná­
lise do discurso ficcional.
O discurso ficcional oferece-nos uma série de atos
de fala simulados (como um faz-de-conta), em geral as­
sertivas simuladas, e o fato de o ato de fala ser apenas
simulado rom pe os compromissos palavra-mundo das as­
sertivas normais. O falante não está com prom etido com a
verdade de suas asserções ficcionais do m esm o m odo
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 25

que está com prom etido com a verdade cie suas asserções
normais. Na imaginação, do m esm o modo, o agente tem
uma série de representações, mas a direção do ajuste
m ente-m undo é rompida pelo fato de os conteúdos re­
presentativos não serem conteúdos de crenças, mas con­
teúdos sim plesmente estocados. Fantasias e imaginações

PARA
têm seus conteúdos e, portanto, é como se tivessem con­
dições de satisfação, do m esm o m odo que uma asserção

cen tral
simulada (ou seja, ficcional) tem um conteúdo e logo é

ÜO
como se tivesse condições de verdade, em bora em am ­
bos os casos os compromissos com as condições cle satis­
fação sejam deliberadam ente suspensos. Não é um a falha
da asserção ficcional o seu caráter inverídico e não é

B ib l io t e c a
um a falha de um estado d e im aginação que nada no

t
m undo a ele corresponda7.
3. Se eu estiver certo em julgar que os estados Inten­

UNIVfc*MU~
cionais com põem -se de conteúdos representativos em vá­
rios m odos psicológicos, será no mínimo enganador, se­
não sim plesmente um equívoco, dizer que uma crença,
por exemplo, é uma relação de dois termos entre alguém
que acredita e uma proposição. Um equívoco análogo se­
ria dizer que um enunciado é uma relação de dois ter­
mos entre um falante e um a proposição. Deve-se dizer,
preferivelmente, que uma proposição não é o objeto de
um enunciado ou crença, mas, antes, o seu conteúdo. O
conteúdo do enunciado ou crença de que De Gaulle era
francês é a proposição de que D e Gaulle era francês. Mas
essa proposição não é aquilo a que tal enunciado ou
crença se refere ou a que se direciona. Não, o enunciado
ou crença refere-se a De G aulle e representa-o com o
sendo francês por ter o conteúdo proposicional e o m o­
do de representação - ilocucionário ou psicológico - que
tem. Do m esm o m odo com o “John esmurrou Bill” des­
creve uma relação entre Jo h n e Bill, em que o m urro de
26 INTENCIONALIDADE

John é dirigido a Bill, “John acredita que p" não descreve


um a relação entre John e p tal que a crença de John este­
ja dirigida a p. Seria mais preciso dizer, no caso dos
enunciados, que o enunciado é idêntico ã proposição,
entendida com o enunciada; e, no caso da crença, esta é
idêntica à proposição, entendida com o algo em que se
acredita. Há, de fato, uma relação atribuída quando se atri­
bui um estado Intencional a um a pessoa, mas não se tra­
ta de uma relação entre a pessoa e a proposição, trata-se,
antes, de um a relação de representação entre o estado
Intencional e as coisas por ele representadas; só é preci­
so lem brar que, com o acontece com as representações
em geral, é possível haver um estado Intencional sem ha­
ver de fato coisa alguma que o satisfaça. A visão confusa
segundo a qual os enunciados de atitudes proposicionais
descrevem um a relação entre um agente e uma proposi­
ção não é um m odo inócuo de falar; é, em vez disso, o
primeiro passo em uma série de confusões que leva à
idéia de que existe uma distinção básica entre os estados
Intencionais de re e os de dicto. Discutirei esta posição
no capítulo 88.
4. Um estado Intencional só determina suas condições
de satisfação - e, portanto, só é o estado que é - dada
sua posição em uma Rede (NetWork) de outros estados
Intencionais e sobre um B ackground de práticas e supo­
sições pré-intencionais que, em si mesmas, não são nem
estados Intencionais nem partes das condições de satisfa­
ção desses estados. Para com preenderm os esse aspecto,
consideremos o exemplo seguinte. Suponhamos que haja
um m om ento particular no qual Jimmy Carter concebeu
pela prim eira vez o desejo de concorrer à presidência
dos Estados Unidos e suponham os tam bém que esse es­
tado Intencional foi realizado de acordo com as teorias
da ontologia do mental preferidas por todos: Carter teria
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 27

dito a si m esm o “Quero concorrer à presidência dos Esta­


dos Unidos”; uma determ inada configuração neural, em
uma determ inada parte de seu cérebro, percebeu seu d e­
sejo, pen so u sem palavras e com firme determ inação:
“Quero fazer isso” etc. Agora, suponham os, ainda, que
exatam ente essas realizações de idêntico tipo do estado x
mental ocorressem na m ente e no cérebro de um hom em
do Pleistoceno que viveu há milhares de anos. Ele teve q

CENTRAL
um configuração neural de idêntico tipo à que corres- ^
pondeu ao desejo de Carter e viu-se pronunciando a se- J
qüência fonética “Q uero concorrer à presidência dos Es- i
tados Unidos” etc. Mesmo assim, por mais idêntico que ^
fosse o tipo das duas realizações, seria impossível que o ^

B tB U O rE C A
estado mental do hom em do Pleistoceno fosse o desejo u
de concorrer à presidência dos Estados Unidos. Por que
não? Bem, usando um pressuposto, as circunstâncias não a
eram apropriadas. E qual o significado disso? Para res- t'
poncler a essa pergunta, explorem os rapidam ente o que ^
foi preciso ocorrer para que o estado de Carter pudesse ^
ter as condições de satisfação que teve. Para se ter o de- 3
sejo de concorrer à presidência, é necessário que tal dese­
jo esteja implantado em toda uma Rede de outros estados
Intencionais. É tentador, mas equivocado, julgar que es­
tes possam ser descritos exaustivam ente com o co n se­
qüências lógicas do primeiro desejo - proposições que
têm de ser satisfeitas para que o desejo original seja satis­
feito. Alguns dos estados Intencionais da Rede estão, as­
sim, logicamente relacionados, mas não todos. Para que
seu desejo seja um desejo de concorrer à presidência,
Carter precisa ter um grande núm ero de crenças tais co­
mo: que os Estados Unidos são um a república, que têm
um sistema presidencial de governo, que têm eleições
periódicas, que estas envolvem sobretudo um a disputa
entre os candidatos dos dois partidos majoritários, o Re-
28 INTENCIONALIDADE

publicano e o Democrata, que esses candidatos são esco­


lhidos em convenções de nom eação e assim por diante
indefinidam ente (mas não infinitamente). Além disso, es­
ses estados Intencionais só têm suas condições de satisfa­
ção, e toda a Rede Intencional só funciona sobre um
Background daquilo que, por falta de um termo melhor,
denom inarei capacidades mentais nâo-representacionais.
Certas m aneiras fundam entais de fazer as coisas e um
certo conhecim ento sobre Como as coisas funcionam são
pressupostos por qualquer forma de Intencionalidade do
gênero.
Na verdade, estou fazendo aqui duas afirmações que
precisam ser distinguidas. Afirmo, em primeiro lugar, que
os estados Intencionais são em geral partes de Redes de
estados Intencionais e suas condições de satisfação só
existem em relação à sua posição na Rede. Versões dessa
perspectiva, em geral chamada de “holismo”, são bastan­
te com uns na filosofia contem porânea; com efeito, um
certo holismo fácil constitui atualm ente uma espécie de
ortodoxia filosófica. Mas estou fazendo também uma se­
gunda alegação, muito mais controversa: além da Rede
de representações, há também um Background de capa­
cidades mentais não-representacionais; e, em geral, as re­
presentações só funcionam, só têm as condições de satis­
fação que têm, em relação a esse B ackground'não-repre-
sentacional. As implicações dessa segunda afirmação são
de longo alcance, mas tanto a argumentação a favor dela
quanto a exploração de suas conseqüências terão de es­
perar até o capítulo 5. Uma conseqüência im ediata de
ambas as teses é que os estados Intencionais não são ni­
tidamente individuados. Quantas crenças, exatamente, te­
nho eu? Não existe uma resposta definitiva para essa per­
gunta. Outra conseqüência é que as condições de satisfa­
ção dos estados Intencionais não são determ inadas inde-
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 29

pendentem ente, mas dependem de outros estados da Re­


de e do Background.
5. A presente abordagem perm ite-nos propor uma
solução para um problem a tradicional da filosofia da
mente; é possível formular o problem a na forma de uma
objeção à minha abordagem: “Não podem os explicar a
Intencionalidade em termos de representação, pois, para
que haja um a representação, é preciso haver um agente

U N I V t ^ ííD A i.E FE.Dt'ft*L DO


B IB LIO TE C A - C E N T R A L
que faça uso de alguma entidade - uma imagem, uma
sentença ou outro objeto qualquer - com o representa­
ção. Logo, se uma crença é um a representação, deve sê-
lo porque algum agente faz uso da crença como repre­
sentação. Mas isso não nos oferece explicação alguma da
crença, pois não nos diz o que o agente f a z para poder
usar sua crença como representação; além disso, a teoria
exige um hom únculo misterioso com sua própria Intencio­
nalidade para poder usar as crenças como representações.
Se formos com isso até o fim, será necessário um regres­
so infinito de hom únculos, pois cada hom únculo deve
ter mais estados Intencionais para poder usar os estados
Intencionais originais como representações ou, com efei­
to, para fazer o que quer que seja”. Dennett, que consi­
dera esse um problem a genuíno, denom ina-o “problem a
de H um e” e acredita que a solução seja postular contin­
gentes inteiros de hom únculos progressivamente imbeci­
lizados9. Não acredito ser esse um problem a genuíno e o
estudo que apresentei até aqui faculta-nos perceber o ca­
m inho para sua dissolução. Em minha abordagem, o con­
teúdo Intencional que determ ina as condições de satisfa­
ção é intrínseco ao estado Intencional: não há meios pos­
síveis de o agente ter uma crença ou desejo sem que te­
nha suas condições de satisfação. Por exemplo, parte do
que é ter a crença consciente de que está chovendo é es­
tar consciente de que a crença será satisfeita se estiver
30 INTENCIONALIDADE

chovendo e não o será se não estiver. Mas que a crença


tenha essas condições de satisfação não é algo que lhe é
im posto pelo fato de ela ser usada de um m odo mais
que de outro, pois a crença, neste sentido, não é usada
em absoluto. Uma crença é, intrinsecamente, uma repre­
sentação no seguinte sentido: consiste apenas em um
conteúdo Intencional e em um m odo psicológico. O con­
teúdo determ ina suas condições de satisfação e o modo
determina que essas condições de satisfação sejam repre­
sentadas com um a certa direção de ajuste. Uma crença
não requer um a Intencionalidade externa para converter-
se em uma representação, pois, se for uma crença, já é
intrinsecam ente um a representação. T am pouco requer
alguma entidade não-intencional, um objeto formal ou
sintático associado à crença de que o agente se utiliza
para produzir a crença. Em resumo, a falsa premissa da
argumentação é a que diz que, para que haja uma repre­
sentação, é preciso haver algum agente que faça uso de
uma entidade qualquer com o representação. O mesmo
se aplica às imagens e sentenças, ou seja, à Intencionali­
dade derivada, mas não aos estados Intencionais. Talvez
quiséssemos restringir o termo “representação” aos casos
com o os de im agens e sentenças, nos quais podem os
estabelecer um a distinção entre a entidade e seu conteú­
do representativo, mas tal não é um a distinção que se
possa estabelecer entre as crenças e os desejos qua cren­
ças e desejos, pois o conteúdo representativo da crença
ou do desejo é inseparável, nesse sentido, da crença ou
do desejo. Dizer que o agente está consciente das condi­
ções de satisfação de suas crenças e desejos conscientes
não é dizer que ele deve necessariamente dispor de esta­
dos Intencionais de segunda ordem sobre seus estados
de primeira ordem de crença ou de desejo. Se assim fos­
se, teríamos de fato um regresso infinito. Em lugar disso,
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 31

a consciência das condições de satisfação é parte da


crença ou do desejo consciente, um a vez que o conteúdo
Intencional é interno aos estados em questão.
6. A presente abordagem da Intencionalidade sugere

PARA
uma descrição bastante simples da relação entre Intencio-
nalidade-com-c e intensionalidade-com-s. A intensionali-
dade-com-s é um a propriedade de certa classe de senten­

CENTRAL
ças, enunciados e outras entidades lingüísticas. Diz-se
que uma sentença é intensional-com-s quando deixa de

t-'LOcK*;_
satisfazer certos testes de extensionalidade, tais com o a
substituibilidade de idênticos e a generalização existencial.
Costuma-se dizer que uma sentença como “John acredita

B . B U Ü T eC A
que o rei Artur matou sir Lancelot” é intensional-com-s

UNIVfc cf HD* v.t


por admitir ao m enos uma interpretação em que pode
ser usada para se fazer um enunciado que não permite
uma generalização existencial a partir das expressões de
referência que se seguem a “acredita”, além de não per­
mitir a substituibilidade de expressões com a mesma re­
ferência, salva veritate. Tradicionalmente, as confusões
que cercam esse tipo de sentença dizem respeito a como
pode se dar que seu uso para fazer um enunciado não
permita as operações lógicas com uns se, com o parece
ser o caso, as palavras contidas nas sentenças têm os sig­
nificados que costumam ter e se as propriedades lógicas
de uma sentença são uma função de seu significado e es­
te, por sua vez, é uma função do significado das palavras
que o com põem . A resposta sugerida pela interpretação
precedente, que desenvolverei no capítulo 7, é simples­
mente que, dado que a sentença “John acredita que o rei
Artur matou sir Lancelot” é usada para fazer um enuncia­
do sobre um estado Intencional - a crença cle John - e
dado que um estado Intencional é um a representação,
segue-se que o enunciado é a representação de um a re­
presentação; e, portanto, as condições de verdade do
32 INTENCIONALIDADE

enunciado dependerão das características da representa­


ção que estiver sendo representada, neste caso das carac­
terísticas da crença de John e não das características dos
objetos ou estados de coisas representados pela crença de
John. Isto é, como o enunciado é a representação de uma
representação, em geral suas condições de verdade não
incluem as condições de verdade da representação que es­
tiver sendo representada. A crença de John só pode ser
verdadeira se existir um rei Artur e se existir um sir Lance-
lot e se o primeiro houver matado o último; contudo, meu
enunciado de que John acredita que o rei Artur matou sir
Lancelot permite uma interpretação segundo a qual pode
ser verdadeiro mesmo que não se verifique nenhuma des­
sas condições de verdade. Sua verdade depende apenas
de que John tenha uma crença e de que as palavras que
se seguem a “acredita”, na sentença, expressem com preci­
são o conteúdo representativo da crença dele. Nesse senti­
do, meu enunciado sobre a crença dele não é tanto a re­
presentação de uma representação, mas, antes, a apresen­
tação de uma representação, pois que, ao relatar a crença
dele, apresento o conteúdo desta sem me comprometer
com suas condições de verdade.
Uma das confusões mais difundidas na filosofia con­
tem porânea é a crença equivocada da existência de uma
estreita relação, talvez até de um a identidade, entre a in-
tencionalidade-com -c e a intensionalidade-com -s. Nada
poderia estar mais afastado da verdade. As duas não são
sequer rem otam ente aparentadas. A intencionalidade-
com-c é aquela pro p ried ad e da m ente (cérebro) pela
qual esta é capaz de representar outros objetos; a intensio­
nalidade-com -s é a incapacidade de certas sentenças,
enunciados etc. de satisfazer certos testes lógicos de ex-
tensionalidade. A única relação entre elas é que algumas
sentenças sobre a intencionalidade-com -c são intensio-
nais-com-s, pelas razões que acabo de apresentar.
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 33

A crença de que há algo inerentem ente intensional-


com-s na intencionalidade-com-c deriva de um erro que
parece ser endêm ico nos m étodos da filosofia lingüística
- a confusão cias características do relato com as caracte­
rísticas da coisa relatada. Os relatos cle estados Intencio-

UNIVERSO »■£;£ FtOtKAL QO PA*A


,nais-com-c são caracteristicam ente intensionais-com -s.
Mas não decorre disso, nem é em geral o caso, que os

CENTRAL
próprios estados Intencionais-com -c sejam intensionais-
com-s. O relato de que John acredita que o rei Artur ma­
tou sir Lancelot é de fato um relato intensional-com-s,
mas a crença de John não é em si mesma intensional. E
com pletam ente extensional: ela é verdadeira sse houver

B .B U O T E C A
um único x tal que x = rei Artur, um único y tal que y = sir
Lancelot, e x matou y. Dificilmente algo poderia ser mais
extensional» Diz-se amiúde, por razões totalmente confu­
sas, que todos os estados Intencionais como as proposi­
ções e os estados mentais são, de algum modo, intensio-
nais-com-s. Contudo, trata-se simplesmente de um erro,
originado da confusão entre as propriedades dos relatos
e as propriedades das coisas relatadas. Alguns estados In­
tencionais são, de fato, intensionais-com-s, tal com o será
dem onstrado nas duas seções seguintes, mas não há n a­
da inerentem ente intensional-com-s na Intencionaliclade-
com-c. A crença de John é extensional, em bora o meu
enunciado sobre ela seja intensional.
Mas e as condições de satisfação? São intensionais
ou extensionais? Muita confusão filosófica está contida
nesta pergunta. Se pensarm os nas condições de satisfa­
ção como características do m undo que satisfazem ou sa­
tisfariam um estado Intencional, seria estritam ente sem
sentido perguntarm os se são intensionais ou ex ten sio ­
nais. Se eu tiver uma crença verdadeira cle que está cho­
vendo, determ inadas características do m undo tornarão
verdadeira minha crença, mas não faz sentido indapa.r se
CLASS.
C U T T ER
34 INTENCIONALIDADE

tais características são intensionais ou extensionais. O


que a pergunta está tentando elucidar é: são intensionais
ou extensionais as especificações das condições de satis­
fação dos estados Intencionais? E a resposta para esta
pergunta d epende de como sejam especificadas. As con­
dições de satisfação da crença de John de que César atra­
vessou o Rubicão são

1. César atravessou o Rubicão,

e 1 é por si mesma extensional. Mas 1 não especifica as


condições enquanto condições de satisfação. Difere, por­
tanto, de

2. As condições de satisfação da crença de John são que


César tenha atravessado o Rubicão.

2, distintamente de 1, é intensional, e a diferença é que 1


enuncia as condições de satisfação, ao passo que 2 enun­
cia que são condições. 1 é uma representação simpliciter;
2 é a representação de uma representação.
7. Introduzimos originariamente a noção de Intencio-
nalidade-com-c de um m odo tal que se aplicasse aos es­
tados mentais, e a noção de intensionalidade-com -s de
um m odo tal que se aplicasse a sentenças e outras enti­
dades lingüísticas. Mas é fácil p erceber agora, dada a
nossa caracterização da Intencionalidade-com-c e de suas
relações com a intensionalidade-com-s, com o é possível
estender cada noção, de m odo a abrangerem tanto as en­
tidades mentais como as lingüísticas.
(a) A intensionalidade-com-s dos enunciados acerca
da Intencionalidade-com-c deriva do fato de tais enuncia­
dos serem representações de representações. Mas, como
os estados Intencionais-com-c são representações, não há
 NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 35

nada que impeça que os estados Intencionais-com-c tam­


bém sejam representações de representações, com parti­
lhando, assim, da característica de intensionalidade-com-s
que possuem as sentenças e enunciados corresponden­
tes. Por exem plo, assim com o m eu enunciado de que

QQ k a R A
John acredita que o rei Artur mator sir Lancelot é intensio-
nal-com-s porque o enunciado é uma representação da
crença de John, minha crença cie que John acredita que o

CENTRAL
rei Artur matou sir Lancelot é um estado mental intensio-
nal-com-s, pois é um estado Intencional que é uma re­
presentação da crença de John e, assim, suas condições
de satisfação dependem das características da representa­
ção que está sendo representada e não das coisas repre­

B(BL 10 TECA
sentadas pela representação original. O bviam ente, p o ­

VNIVEfc^lD* UE
rém, não decorre do fato de m inha crença acerca da
crença de Jo h n ser intensional-com -s que a crença de
John seja intensional-com-s. Repetindo, a crença dele é
extensional; minha crença acerca da dele é intensional.
(b) Até aqui, procurei explicar a Intencionalidade
dos estados m entais apelando ao nosso entendim ento
dos atos de fala. Mas é claro que a característica dos atos
de fala aos quais venho recorrendo é precisamente suas
propriedades representativas, quer dizer, sua Intenciona-
lidade-com -c. Portanto, a no ção de Intencionalidade-
com-c serve igualmente para os estados mentais e para
as entidades lingüísticas tais com o atos cle fala e senten­
ças, para não falar de mapas, diagramas, listas de lavan­
deria e um sem -núm ero de outras coisas.
E é por esse motivo que a explicação da Intenciona­
lidade apresentada neste capítulo não é uma análise lógi­
ca no sentido de oferecer condições necessárias e suficien­
tes em termos de noções mais simples. Se tentássemos
tratar a explicação como uma análise, esta seria irremedia­
velmente circular, dado que a característica dos atos de
36 INTENCIONALIDADE

fala de que me vali para explicar a Intencionalidade de


certos estados mentais é precisam ente a Intencionalidade
dos atos de fala. Em minha opinião, não é possível apre­
sentar uma análise lógica da Intencionalidade do mental
em termos de noções mais simples, uma vez que a Inten­
cionalidade é, por assim dizer, uma propriedade funda­
mental da m ente e não um a característica logicam ente
complexa construída a partir da combinação de elem en­
tos mais simples. Não existe um a posição neutra a partir
da qual possam os investigar as relações entre os estados
Intencionais e o m undo para depois descrevê-las em ter­
mos não-Intencionalistas. Q ualquer explicação da Inten­
cionalidade, portanto, tem lugar nos limites dos conceitos
Intencionais. Minha estratégia foi usar o nosso entendi­
m ento de com o funcionam os atos de fala para explicar
com o funciona a Intencionalidade do mental, mas isso
agora dá origem a nossa próxima questão: Qual a relação
entre a Intencionalidade do mental e a Intencionalidade
do lingüístico?

IV. SIGNIFICADO

Há uma desanalogia óbvia entre os estados Intencio­


nais e os atos de fala, sugerida pela própria terminologia
que estamos em pregando. Estados mentais são estados e
os atos de fala são atos, isto é, realizações intencionais. E
essa diferença tem uma im portante conseqüência para a
maneira com o o ato de fala se relaciona com sua realiza­
ção física. A realização efetiva em que se dá o ato de fala
envolve a produção (ou uso, ou apresentação) de entida­
des físicas, tais com o os ruídos feitos através da boca ou
os sinais gráficos no papel. Crenças, temores, esperanças
e desejos, por outro lado, são intrinsecamente Intencio-
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 37

nais. Caracterizá-los como crenças, temores, esperanças e


desejos é já atribuir-lhes Intencionalidade. Os atos de fa­
la, porém, têm um nível físico de realização, qua atos de
fala, que não é intrinsecamente Intencional. Não há nada

U N IV E K S ID A LE F t D c K H L UU PÀ& A
de intrinsecam ente Intencional nos produtos do ato de
emissão, ou seja, nos ruídos que saem de minha boca ou
nos sinais que fixo no papel. Ora, o problema do signifi­

CENTRAL
cado, em sua forma mais geral, é o problem a de como
passar da física para a semântica, ou seja com o passar
(por exem plo) dos sons que saem da minha boca para o
ato ilocucionário? E a discussão apresentada até aqui nes­
te capítulo proporciona-nos agora, acredito, um novo

BIBLIOTECA
m odo de ver essa questão. Do ponto de vista desta dis­
cussão, o problem a do significado pode ser colocado co­
mo se segue: De que modo a m ente impõe a Intenciona­
lidade a entidades não intrinsecamente Intencionais, enti­
dades com o sons e sinais gráficos, que constituem, se­
gundo determ inada concepção, apenas fenômenos físicos
no m undo corno quaisquer outros? Uma emissão pode
ter Intencionalidade, da m esma forma como uma crença
tem Intencionalidade, mas enquanto a intencionalidade
da crença é intrínseca a da em issão é derivada. Logo, a
pergunta é: Como deriva ela sua Intencionalidade?
Existe um nível duplo de Intencionalidade na reali­
zação do ato de fala. Existe, em primeiro lugar o estado
Intencional expresso, mas, em segundo lugar, está a in­
tenção, no sentido comum e não técnico cia palavra, com
que é feita a emissão. Ora, é esse segundo estado Inten­
cional, a intenção com que é realizado o ato, que confere
Intencionalidade aos fenôm enos físicos. Bem, e com o é
que isso funciona? O desenvolvim ento de uma resposta a
essa pergunta terá de esperar até o capítulo 6, mas, em
linhas gerais, a resposta é a seguinte: a m ente im põe
uma Intencionalidade a entidades não intrinsecam ente
38 INTENCIONALIDADE

Intencionais, atribuindo intencionalm ente as condições


de satisfação do estado psicológico expresso à entidade
física externa. É possível descrever o duplo nível de In­
tencionalidade no ato de fala descrito dizendo-se que, ao
enunciar intencionalm ente alguma coisa com um certo
conjunto de condições de satisfação, aquelas especifica­
das pela condição essencial para esse ato de fala, tornei
essa emissão Intencional e, assim, necessariamente, ex­
pressei o estado psicológico correspondente. Não po d e­
ria fazer um a declaração sem expressar uma crença ou
fazer uma prom essa sem expressar um a intenção, pois a
condição essencial do ato de fala tem como condições de
satisfação as mesmas condições de satisfação que o esta­
do Intencional expresso. Assim, im ponho uma Intencio­
nalidade a m inhas emissões, atribuindo-lhes intencional­
m ente determ inadas condições de satisfação que são as
condições de satisfação de certos estados psicológicos.
Isso explica tam bém a relação interna entre a condição
essencial e a condição de sinceridade do ato de fala. A
chave do significado é sim plesmente que este pode ser
parte das condições de satisfação (no sentido de requeri­
m ento) da m inha intenção de que suas condições de sa­
tisfação (no sentido das coisas requeridas) tam bém te­
nham condições de satisfação. Daí o duplo nível.
“Significado” é uma noção que literalmente se aplica
a sentenças e atos de fala, mas não, nesse sentido, a esta­
dos Intencionais. Faz sentido perguntar, por exemplo, o
que significa uma sentença ou emissão, mas não tem o
m enor sentido perguntar o que significa uma crença ou
um desejo. Mas por que não, um a vez que tanto a enti­
dade lingüística com o o estado Intencional são Intencio­
nais? Existe significado apenas onde houver um a distin­
ção entre o conteúdo Intencional e a forma de sua exter-
nalização, e perguntar pelo significado é perguntar por
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 39

um estado Intencional que acompanha a forma de exter-


nalização. Portanto, faz sentido perguntar pelo significado
da sentença “Es regnet” e faz sentido perguntar pelo signi­
ficado do enunciado de John, isto é, perguntar o que ele

paka
quis dizer; mas não faz sentido algum perguntar pelo sig­
nificado da crença de que está chovendo nem pelo signifi­
cado do enunciado de que está chovendo: no primeiro ca­

CENTRAL
do
so, por não haver uma lacuna entre a crença e o conteúdo
Intencional, e, no segundo porque a lacuna já foi preen­

FfcDtRAL
chida quando especificamos o conteúdo do enunciado.
Como de costume, as características sintáticas e se­
mânticas dos verbos correspondentes fornecem-nos pis­
tas úteis sobre o que está acontecendo. Se eu disser algu­

B iBUOTEO
UNIVERSIDADE
ma coisa do tipo “John acredita que p ”, a sentença pode
ser auto-evidente. Mas se eu disser “John quer dizer que
p ”, a sentença parece exigir, ou pelo m enos pedir, um
com plem ento na forma “ao dizer tal e tal”, ou “ao enun­
ciar tal e tal, John quer dizer que p " . John não poderia
querer dizer que p, a menos que estivesse dizendo ou fa­
zendo alguma coisa por meio da qual quisesse dizer que
p, ao passo que pode sim plesmente acreditar que p sem
fazer coisa alguma. Q uerer dizer que p não é um estado
Intencional que pode ser auto-evidente do mesmo m odo
que acreditar que p. Para que se queira dizer que p, é
preciso que haja alguma ação manifesta. Q uando chega­
mos a “John enunciou p ”, a ação torna-se explícita. Enun­
ciar é um ato, ao contrário de acreditar e querer dizer,
que não são atos. Enunciar é um ato ilocucionário que,
em outro nível de descrição, é um ato de emissão. E a rea­
lização do ato de emissão com um certo conjunto de in­
tenções que converte o ato de emissão em um ato ilocu­
cionário e, desse m odo, impõe Intencionalidade à emis­
são. Ver mais sobre essa questão no capítulo 6.
40 INTENCIONALIDADE

V. CRENÇA E DESEJO

Muitos filósofos consideram que a crença e o desejo


são de certa forma os estados Intencionais básicos e, nes­
ta seção, pretendo explorar algumas das razões a favor e
contra a reivindicação de primazia para esses dois esta­
dos. Pretendo concebê-los de m odo bastante amplo, de
m odo a abrangerem, no caso da crença: sentir-se seguro,
ter um palpite, supor e muitcJs outros graus de convicção;
e, no caso do desejo: querer, aspirar, ansiar por, ambicio­
nar e muitos outros graus de desejo. Observe-se inicial­
m ente que m esm o nessas enum erações há outras dife­
renças além dos meros graus de intensidade. Faz sentido
dizer de alguma coisa que acredito ter feito

I wish I hadn’t done it


(gostaria de não ter feito isso),

mas não é inglês correto dizer

Want/desire I hadn’t done it.


(quero/desejo não ter feito isso.)

Assim, ao conceber “desire” (“desejo”) de m aneira


ampla, precisaremos admitir os casos de “desire” (“dese­
jo”) direcionados a estados de coisas que se sabem ou
que se acredita terem tido lugar no passado, como quan­
do eu gostaria de não ter feito alguma coisa ou estou
contente por ter feito outra coisa. Reconhecendo esses
desvios do inglês comum, tom em os duas categorias am­
plas, que batizaremos de “Cren” (Bei) e “Des” (Des), e
vejamos o quão básicas são. Vejamos até onde podere­
mos ir com essas categorias, que correspondem generica­
m ente a partes das grandes categorias tradicionais da
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 41

Cognição e da Volição. Podem os reduzir outras formas


de Intencionalidade a Cren e Des? Se puderm os, seremos
capazes não apenas de simplificar a análise, com o tam­
bém de eliminar totalmente as formas de Intencionalida­
de que não possuem direção do ajuste, pois seriam redu­

paka
zidas às duas direções do ajuste Cren e Des; poderíam os
até eliminar os casos com o am or e ódio, que não pos­
suem uma proposição completa com o conteúdo Intencio­

UNIVERSIDADE f e d e r a l do
nal, m ostrando que podem ser reduzidos a com plexos de

B IB l IOTECA CE.NTR
Cren e Des.
Para testar essa hipótese, precisamos antes estabele­
cer que os casos cie Des, isto é, clesiring (desejar), wan-
ting (querer), wishing (ansiar) etc., possuem proposições
completas com o conteúdo Intencional. Tal característica
fica encoberta pelo fato de que na estrutura superficial
do inglês tem os sentenças com o “I w ant your h o u se”
(“Quero sua casa”), que parecem ser análogas a “I like
your h ouse” (“Gosto de sua casa”). Contudo, uma sim­
ples argum entação sintática dem onstrará que a estrutura
superficial é enganosa e que wanting (querer) é, na ver­
dade, uma atitude proposicional. Considere-se a sentença

I want your house next summer.


(Eu quero sua casa no próximo verão.)

O que é que “next summer” (“próximo verão”) modifica?


Não pode ser “w ant” (“quero”) pois a sentença não significa

I next-summer-want your house


(Eu próximo-verâo-querer sua casa)

uma vez que é perfeitam ente coerente dizer


42 INTENCIONALIDADE

I now want your house next summer though by next sum­


mer I won’t want your house.
(Eu agora quero sua casa no próximo verão embora no
próximo verão eu não vou querer a sua casa.)

0 que a sentença deve significar é

I want (I have your house next summer)


(Eu quero [Eu tersua casa no próximo verão])

e podem os dizer que a locução adverbial modifica o ver­


bo “have” (“ter”) na estrutura profunda, ou, se estivermos
relutantes em postular tais estruturas sintáticas profundas,
podem os sim plesmente dizer que o conteúdo semântico
da sentença “I w ant your house” (“Eu quero sua casa”) é:
1 want that I have your house (Eu quero que eu tenha a
sua casa). Uma vez que qualquer ocorrência de uma sen­
tença na forma “S { X ” pode acom odar modificadores
desse tipo, podem os concluir que todos os casos de Des
são atitudes proposicionais, isto é, todos têm proposi­
ções com pletas com o conteúdo Intencional.
Voltando agora à nossa questão, podem os reduzir to­
dos (alguns, muitos) estados Intencionais a Cren e Des?
Se nos munirmos de todo um aparato de constantes lógi­
cas, operadores modais, indicadores de tem po e conteú­
dos proposicionais implícitos, poderem os chegar bem
longe fazendo muitas reduções, talvez tão longe quanto
precisemos chegar para a maior parte dos propósitos ana­
líticos, mas não acredito que possamos ir até o fim, a não
ser em alguns poucos casos. Considere-se o temor. Um
hom em que tem a que p, deve acreditar que é possível
que p e deve querer que seja o caso que não p\ portanto

Temor (jti) -*■ Cren (Op) & Des (~p)


A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 43

Mas serão equivalentes? Será o que se segue uma ver­


dade necessária?

Cren (0_p) & Des (~p) <-►Temor (p )

PARA
Não creio, e um a ilustração clara é que, m esm o com
crenças e dSsejos fortíssimos, um a tal com binação de

central
do
crença e desejo não resulta em terror. Desse modo,

FEDERAL
Terror (p) Cren (Op) e Forte Des (~p)

Acredito, p or exemplo, na possibilidade de uma guerra

biblioteca
atômica e quero muito que não ocorra, mas não estou

Ü N I V E R S I D a &E
aterrorizado pela possibilidade de sua ocorrência. Talvez
devesse, mas não estou. Mesmo assim, essa análise com-
ponencial cle estados com plexos com o o tem or aprofun­
da nosso entendim ento dos estados Intencionais e de suas
condições de satisfação. Em um determ inado sentido,
querem os dizer que o fenôm eno superficial do tem or se­
rá satisfeito sse a coisa que tem o vier a acontecer; em um
sentido mais profundo, porém, o tem or não tem outra di­
reção do ajuste que não a crença e o desejo e, com efei­
to, este é o que conta, pois a crença é uma pressuposi­
ção do tem or e não sua essência. O fundamental no te­
m or é querer muito que a coisa que se teme não ocorra,
ao mesmo tem po em que se acredita ser com pletam ente
possível sua ocorrência. E, nesse sentido mais profundo,
meu tem or será satisfeito sse a coisa que temo não ocor­
rer, pois isso é o que desejo - que não ocorra.
Apliquemos agora essas sugestões a outros tipos de
estados Intencionais. A expectativa é o caso mais sim­
ples, uma vez que, em um sentido de “expectativa”, as ex­
pectativas são apenas crenças acerca do futuro. Portanto,

í
44 INTENCIONALIDADE

Expectativa (p) <-»■ Cren (Futuro p)

O desapontam ento é mais complicado. Se estou desapon­


tado porque p, devo ter tido antes a expectativa de que
não p e querido que não p, e agora acredito que p. Assim,

Desapontamento (p) ->■ Cren presente (p) & Cren passada


(futuro ~p) & Des (~p)

Lamentar que p tam bém é relativamente simples:

Lamentar (p) Cren (p) & Des (~p)

O pesar muito im põe uma restrição a mais ao lamentar,


pois o conteúdo proposicional deve dizer respeito a coi­
sas que tenham a ver com a pessoa que está pesarosa.
Posso, por exemplo, estar pesasoro por não ter podido ir
à sua festa, mas não por estar chovendo, m esm o que
possa lamentar que esteja chovendo.

Estou pesaroso (p) -*■ Cren (p) & Cren (p está ligado a
mim) & Des (~p)

O remorso acrescenta o elem ento responsabilidade:

Remorso (p) Cren (p) & Des (~p) & Cren (sou respon­
sável por p)

A culpa é com o o remorso, só que possivelm ente


dirigida a outrem. Portanto,

Culpar X por (p) -■* Cren (p) & Des O p) & Cren (X é
responsável por p)
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 45

Nesse sentido, o remorso envolve necessariamente o cul­


par a si mesmo. O prazer, a esperança, o orgulho e a
vergonha tam bém são relativamente simples:

Ter prazer em que (p ) > Cren (p) & Des (p)


<
SL
A esperança requer uma incerteza quanto à possibilidade <
de que o estado esperado de fato se verifique. Desse , ^
modo, ■' 3 <
t*
j t-
Esperar (p) -» ~ Cren (p) & ~ Cren (~p) & Cren (Op) & ^
Des (p) 2 O
) <
O orgulho e a vergonha exigem alguma relação com o 'L
agente, em bora esta não precise ser tão forte quanto a q
responsabilidade, pois é possível a alguém estar orgulho- ^ j
so ou envergonhado tanto do tam anho do próprio nariz <5
x CD
quanto dos seus ancestrais. Além disso, a vergonha en ­ u
volve, ceteris paribus, um desejo cle ocultar, e o orgulho, ;>
um desejo de tornar conhecido. Assim, 3

Orgulho (p) * Cren (p) & Des (p ) & Cren (p está rela­
cionado a mim) & Des (outros sabem que p)
Vergonha (p} > Cren (p) & Des (~p) & Cren (p esiá rela­
cionado a mim) & Des (p está encoberto dos outros)

E fácil perceber também com o essas análises tom am em


consideração a estrutura formal dos estados Intencionais
de segunda (terceira, enésima) ordem. Pode-se ter vergo­
nha dos próprios desejos; pode-se desejar ficar envergo­
nhado, pode-se ter vergonha do próprio desejo de estar
envergonhado etc.
Obviamente, a lista pode ser estendida, e sugiro, co­
mo um exercício para adquirir destreza, que o leitor a con-
46 INTENCIONALIDADE

tinue com os estados de sua escolha. O método é bastante


simples. Tome um tipo específico de estado Intencional
com um conteúdo proposicional específico. Em seguida,
pergunte a si mesmo em que deve acreditar e o que deve
desejar para estar imbuído desse estado Intencional com
esse conteúdo. Mesmo essa breve listagem sugere algumas
generalizações significativas acerca da primazia de Cren e
Des. Em primeiro lugar, todps esses estados afetivos são
concebidos com mais precisão como formas de desejo, da­
da uma determinada crença. Ou seja, parece equivocado
pensar na estrutura formal do orgulho, da esperança, da
vergonha, do remorso etc., como simplesmente uma con­
junção de crença e desejo. Em vez disso, todos os casos
que consideramos (com exceção da expectativa), bem co­
mo o nojo, a alegria, o pânico etc., parecem ser formas
mais ou menos fortes de desejo positivo ou negativo, dada
ou pressupondo-se um a crença. Portanto, se estou alegre
por ter vencido a corrida, tenho um caso de

Forte Des (vencer a corrida)

dada

Cren (ter vencido a corrida)

Se eu perder a crença, perco a alegria e o que resta é sim­


plesmente o desapontam ento, ou seja, um desejo de ter
venciclo a corrida imposto a uma crença frustrada. Outros-
sim, além da relação lógica de pressuposição que é deixa­
da de lado ao se tratarem os estados enquanto conjunções
de Cren e Des, há também relações causais internas, igno­
radas na análise conjuncional. Por exemplo, sentimos às
vezes vergonha porque acreditamos termos feito algo erra­
do. embora a crença seja também um pressuposto lógico
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 47

no sentido de que não poderíamos ter essa sensação sem


essa crença. E isso leva a uma terceira razão pela qual não
podem os tratar esses estados simplesmente como conjun­
ções de Cren e Des. Há, em muitos desses casos, sensações

üü PAP.A
conscientes, não apreendidas por uma análise do estado
em Cren e Des, que não precisam absolutamente ser cons­
cientes. Assim, se estou em pânico, alegre, enojado ou

CÊNTKAL
aterrorizado, devo estar em algum estado consciente além
de ter certas crenças e desejos. E, até onde alguns dos
nossos exemplos não exigem que eu esteja em um estado
consciente, estamos inclinados, nessa medida, a achar que
a análise em termos de Cren e Des chega mais perto de

BiBUOTECA
ser exaustiva. Assim, se estou pesaroso por ter feito algu­

UNlVt* - i0 - t
ma coisa, m eu pesar pode consistir simplesmente em mi­
nha crença de que fiz algo e meu desejo de não tê-lo fei­
to. Quando digo que há um estado consciente, não quero
dizer que exista sem pre uma “sensaçâo-prima”, além da
crença e do desejo, que poderíamos simplesmente extrair
e examinar em separado. De vez em quando ela existe,
como nos casos de terror, quando se fica com uma sensa­
ção de aperto na boca do estôm ago. A sensação pode
continuar por algum tempo, mesmo depois que o medo
passou. Mas o estado consciente não precisa ser uma sen­
sação corporal; em muitos casos, na atração ardente e na
repulsa, por exemplo, o desejo é parte do estado conscien­
te de um m odo tal que não é possível separar este último,
deixando apenas a Intencionalidade da crença e do d e­
sejo, isto é, os estados conscientes que fazem parte da
atração ardente e da repulsa são desejos conscientes.
O caso mais difícil de todos talvez seja o da inten­
ção. Se tenciono fazer A, devo acreditar que me seja pos­
sível fazer A e devo almejar, em certo sentido, fazer A.
Porém, chegarem os apenas a uma análise parcial da in­
tenção com o seguinte:
48 INTENCIONALIDADE

Tencionar (eu fazer A) -»• Cren (O eu fazer A) & Des (eu


fazer A)

O elem ento adicional deriva do papel causal especial das


intenções na produção de nosso com portamento, e não
teremos condições cle analisar esse aspecto senão nos ca­
pítulos 3 e 4.
Mas e quanto aos estaçlos que aparentem ente nào
requerem proposições com pletas com o conteúdo, tais
com o o amor, o ódio e a admiração? Mesmo esses casos
envolvem conjuntos de crenças e desejos, como pode ser
visto no absurdo de se im aginar um hom em que está
loucamente apaixonado mas não tem crença ou desejo
algum em relação à pessoa am ada, nem m esm o um a
crença de que tal pessoa exista. Um hom em apaixonado
deve acreditar q ue a pessoa amada existe (ou existiu, ou
existirá) e tem certas peculiaridades, e deve ter um com­
plexo de desejos em relação ao ser amado, mas não há
maneira de detalhar o com plexo dessas crenças e desses
desejos com o parte cla definição de “am or”. Diferentes ti­
pos de peculiaridades podem constituir os aspectos pelos
quais alguém é am ado e, notoriam ente, os amantes têm
conjuntos de desejos bastante diferentes em relação à
pessoa amada. A admiração é m enos complicada e pode­
mos ir um p o u co mais longe com ela do que com o
amor e o ódio. Se Jones admira Carter, deve acreditar na
existência de um certo Carter e que este possui certas pe­
culiaridades cuja presença é motivo de alegria para Jones
e que são julgadas positivas por ele. Para qualquer caso
real e concreto de admiração, porém, dificilmente o qua­
dro com pleto se resumiria a isso. Qualquer um que admi­
re Carter pode tam bém desejar que mais pessoas, talvez
ele próprio inclusive, fossem com o Carter, que Carter
continue a ter as particularidades que ele admira etc.
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 49

O quadro que começa agora a se formar a partir da


presente discussão é o seguinte: nossa abordagem origi­
nal da Intencionalidade em term os de representação e
condições cie satisfação não é tão restrita quanto poderia
parecer superficialm ente. Muitos casos, aparentem ente

óO f*AftA
desprovidos de um a direção de ajuste e, portanto, apa­
rentem ente desprovidos de condições de satisfação con­
têm crenças e desejos imbuídos de direção do ajuste e

CENTRAL
condições de satisfação. A alegria e a tristeza, por exem ­
plo, são sentim entos que não po d em ser reduzidos a
Cren e Des, mas, no que diz respeito à sua Intencionali­
dade, não têm Intencionalidade alguma além de Cren e
Des; em cada caso, sua Intencionalidade é uma forma de

BiBUOTECA
desejo, dadas certas crenças. No caso da alegria, o indiví­

'.-t
duo acredita ter um desejo satisfeito; no caso da tristeza,
acredita que não. E até os casos não-proposicionais são
sentimentos, conscientes ou não, cuja Intencionalidade é

UNIVfc*
parcialmente explicável em termos cle Cren e Des. Certa­
m ente, os sentim entos especiais de am or e óctio não
equivalem a Cren e Des, porém no mínimo uma signifi­
cativa porção da Intencionalidade do am or e do óclio é
explicável em termos de Cren e Des.
Em poucas palavras, a hipótese defendida por nossa
breve discussão não é a de que todas ou mesmo várias
formas de Intencionalidade podem ser reduzidas a Cren
e Des - o que é claramente falso -, mas sim a de que to­
dos os estados Intencionais, m esm o aqueles desprovidos
cle uma direção de ajuste e aqueles que não têm uma
proposição completa por conteúdo, não obstante contêm
uma Cren ou um Des, ou ambos, e que em diversos casos
a Intencionalidade do estado é explicada pela Cren ou
pelo Des. Em sendo verdadeira essa hipótese, a análise da
Intencionalidade em termos de representação de condições
de satisfação sob determinados aspectos e com um a de-
50 INTENCIONALIDADE

terminada direção do ajuste é bastante geral em sua apli­


cação e não está simplesmente confinada aos casos cen­
trais. Até onde o leitor julgue plausível essa hipótese, jul­
gará plausível que este livro apresente o início de um a teo­
ria geral da Intencionalidade; até onde a julgar implausí-
vel, a abordagem será apenas um a teoria especial que tra­
ta do grande núm ero de casos centrais.
Além dos motivos para se rejeitar a análise conjuncio-
nal, as maiores limitações da explicação da Intencionali­
dade em termos de Cren e Des parecem-me ser, em pri­
meiro lugar, o fato de a análise não estar suficientemente
depurada para distinguir entre estados Intencionais que
são notavelm ente diversos. Por exemplo, estar aborrecido
porque p, estar triste que p e sentir muito que p são to­
dos casos de

Cren (p) & Des (~p)

mas não são claramente os mesm os estados. Além disso,


em alguns casos não se pode ir muito longe com este ti­
po de análise. Por exemplo, se acho divertido que os de­
mocratas tenham perdido a eleição, devo ter a Cren de
que tenham perdido a eleição, mas e o que mais? Não
preciso ter nenhum a espécie de Des e nem sequer preci­
so ter a Cren de que a situação toda seja au fo n d diverti­
da, m esm o que pessoalm ente admita achar divertido.
Apesar disso, acredito que o poder e o alcance de
uma abordagem da Intencionalidade em termos de con­
dições de satisfação ficarão mais claros quando passar­
mos, nos dois capítulos seguintes, ao que considero as
formas biologicam ente prim árias de Intencionalidade,
percepção e ação. Seus conteúdos Intencionais diferem
das crenças e desejos em um aspecto crucial: não possuem
causação Intencional em suas condições de satisfação, o
A NATUREZA DOS ESTADOS INTENCIONAIS 51

que trará conseqüências que aincla não podem os expor


claramente. Crenças e desejos não são as formas primárias
e sim formas estioladas de experiências mais primordiais
no perceber e no fazer. A intenção, por exemplo, não é
uma forma refinada de desejo; seria mais exato pensar no
desejo com o uma forma esmaecida de intenção, uma in­

DO PARA
tenção cuja causação Intencional está empalidecida.

CENTRAL
ú c -DhK^L
B.BUOTEC*
_
CAPÍTULO 2
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO

ac
<
i.

B iB U O r t C A . Ct_N.TR.AV_
j

L
U
/
l q
«.
Tradicionalmente, o “problem a da percepção” tem ^
sido o problem a cle como nossas experiências percepti- ^
vas internas estão relacionadas com o m undo externo. 3
Acredito que devamos desconfiar m uito dessa m aneira de
formular o problema, uma vez que a metáfora espacial
em termos de interno e externo, ou interior e exterior, re­
siste a qualquer interpretação clara. Se meu corpo, incluin­
do todas as suas partes internas, é parte do m undo exter­
no, com o seguram ente é, on d e deverá se localizar o
m undo interno? Em que espaço ele é interno com relação
ao m undo externo? Em que sentido, exatamente, minhas
experiências perceptivas estão “aqui dentro” e o m undo
está “lá fora”? Apesar disso, tais metáforas são persisten­
tes e talvez até inevitáveis; por este motivo, revelam cer­
tos pressupostos subjacentes que precisaremos examinar.
Meu objetivo no presente capítulo não será, exceto
incidentalmente, discutir o tradicional problem a da per-
54 INTENCIONALIDADE

cepção, mas, antes, apresentar uma exposição das expe­


riências perceptivas no contexto da teoria da Intenciona­
lidade esboçada no capítulo precedente. Tal como a maio­
ria dos filósofos que discorrem sobre a percepção, darei
exemplos em sua maior parte relativos à visão, em bora a
exposição, se correta, deva permitir um a aplicação geral.
Q uando estou olhando para um carro, digamos, uma
cam inhonete amarela, em plena luz do dia, bem de per­
to, sem nenhum im pedimento visual, eu vejo o carro. De
que m odo funciona esse ver? Bem, a óptica física e a
neurofisiologia têm muito a dizer sobre tal funcionam en­
to, mas não é a isso que me refiro, e sim ao funciona­
m ento conceituai; quais os elem entos que com põem as
condições de verdade de sentenças na forma “x vê y ”,
em que x é um perceptor, hum ano ou animal, e y, por
exemplo, um objeto material? Q uando vejo um carro, ou,
aliás, qualquer outra coisa, tenho um certo tipo de expe­
riência visual. Na percepção visual do carro eu não vejo a
experiência visual, vejo o carro. Ao ver o carro, porém,
tenho um a experiência visual, e esta é experiência de um
carro, em um sentido de “d e” que pede uma de explica­
ção. É importante enfatizar que, em bora a percepção vi­
sual tenha sem pre com o com ponente uma experiência
visual, não é a experiência visual que é vista, em n e­
nhum sentido literal de “ver”, pois se eu fechar os olhos
a experiência visual cessa, mas o carro, a coisa que eu
vejo, não cessa. Além disso, em geral não faz sentido
atribuir à experiência visual as propriedades da coisa a
que se refere a experiência visual, a coisa que eu vejo.
Por exemplo, se o carro for amarelo e tiver uma determ i­
nada form a característica de um a cam inhonete, então,
em bora m inha experiência visual seja a de um objeto
amarelo na forma de uma cam inhonete, não faz sentido
dizer que a própria experiência visual é amarela ou que
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 55

tem a forma de uma caminhonete. Cor e forma são pro­


priedades acessíveis à visão, mas, em bora m inha ex p e­
riência visual seja um com ponente de qualquer percep­
ção visual, a experiência visual propriam ente dita não é
um objeto visual; ela mesma não é vista. Se tentarm os
negar esse ponto, ficaremos na posição absurda de iden­
tificar cluas coisas amarelas com a forma de uma cami­
nhonete na situação perceptiva, a cam inhonete amarela e
a experiência visual.
Ao introduzir a noção de experiência visual, estou
distinguindo entre a experiência e a percepção em senti­
dos que ficarão mais claros na discussão subseqüente. A
noção de percepção envolve a noção de sucesso cie um
modo que não se verifica na noção de experiência. A ex­
periência precisa determ inar o que é tomado por suces­
so, mas é possível ter-se uma experiência sem sucesso,
ou seja, sem percepção.
Neste ponto, contudo, o epistemologista clássico se­
guramente desejará objetar o seguinte: suponham os que
não haja carro algum; suponham os que tudo não passe
de uma alucinação; o que é que se estará vendo, então?
E a resposta será: se não houver carro algum, não estarei
vendo coisa alguma do ramo automobilístico. Pode-m e
parecer exatam ente com o se estivesse vendo um carro,
mas, se não houver carro nenhum , não estarei vendo coi­
sa alguma. Poderei ver um fundo de folhagens, ou uma
garagem, ou uma rua, mas, se estiver tendo a alucinação
de um carro, não estarei vendo um carro, nem uma ex­
periência visual, nem um dado dos sentidos, ou uma im­
pressão ou qualquer outra coisa, em bora eu de fato te­
nha a experiência visual e esta possa ser indistinguível
da que eu teria se houvesse de fato visto um carro.
Diversos filósofos negaram a existência das experiên­
cias visuais. Acredito que essas negativas se baseiam em
56 INTENCIONALIDADE

um a co m preensão errônea das questões envolvidas, e


pretendo discutir a questão mais adiante. Por ora, contu­
do, tom ando por pressuposta a existência de experiências
visuais, quero argumentar em favor de uma questão amiú­
de ignorada nos debates da filosofia da percepção, a sa­
ber, que as experiências visuais (e outros tipos de expe­
riência perceptiva) possuem Intencionalidade. A experiên­
cia visual é tão direcionada a ou de objetos e estados de
coisas no m undo quanto qualquer dos estados Intencio­
nais paradigm áticos discutidos no capítulo precedente,
tais com o crença, tem or ou desejo. E o argumento em fa­
vor dessa conclusão é simplesmente que a experiência vi­
sual tem suas condições de satisfação, precisam ente do
mesmo m odo que as crenças e desejos. Não me é possí­
vel separar tal experiência visual do fato de que ela cons­
titui uma experiência de uma caminhonete amarela mais
do que me é possível separar essa crença do fato de que
é uma crença de que está chovendo; o “d e” de um a “ex­
periência d e” é, em resumo, o “d e ” da Intencionalidade1.
Tanto no caso da crença como no da experiência, eu p o ­
deria estar equivocado sobre quais estados de coisas de
fato existem no mundo. Talvez eu esteja tendo uma aluci­
nação e talvez não esteja de fato chovendo. Observe-se,
porém que, em cada caso, o que passa por um engano,
seja este uma alucinação ou uma falsa crença, já está de­
terminado pelo estado Intencional ou evento em questão.
No caso da crença, mesmo que eu esteja de fato engana­
do, sei o que deve ocorrer para que eu não esteja enga­
nado e dizer isso é simplesmente dizer que o conteúdo
Intencional da crença determina as suas condições de sa­
tisfação; determ ina sob quais condições a crença será ver­
dadeira ou falsa. Ora, de m aneira exatam ente análogo,
quero dizer que, no caso da experiência visual, mesmo
que eu esteja tendo uma alucinação, sei o que deve ocor-
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 57

rer para que a experiência não seja uma alucinação, e di­


zer isso é simplesmente dizer que o conteúdo Intencional
da experiência visual determina as suas condições de sa­
tisfação; determ ina o que deve ocorrer para que a expe­
riência não seja um a alucinação, exatamente no mesmo

PARA
sentido que o conteúdo da crença determina suas condi­
ções de satisfação. Suponha-se que nos perguntemos, “O

CENTRAL
que torna a presença ou a ausência de chuva sequer rele­


vante para minha crença de que está chovendo, uma vez
que, afinal de contas, a crença é apenas um estado m en­

i D ' - . ti (■ c 0 c.’< “
tal?”. Ora, podem os, analogamente, nos perguntar: “O que
torna a presença ou a ausência de uma caminhonete am a­

BIBLIO TECA
rela sequer relevante para minha experiência visual, uma
vez que, afinal de contas, a experiência visual é apenas
um acontecim ento mental?” E, em ambos os casos, a res­
posta é que as duas formas de fenôm enos mentais, crença
e experiência visual, são intrinsecamente Intencionais. In­
ternamente a cada fenôm eno há um conteúdo Intencional
que determina suas condições de satisfação. A hipótese de yNIVfc
que as experiências visuais são intrinsecamente Intencionais
é, em resumo, a de que elas têm condições de satisfação
determinadas pelo conteúdo da experiência exatamente no
mesmo sentido que outros estados Intencionais têm condi­
ções de satisfação que são determinadas pelo conteúdo dos
estados. Ao estabelecer uma analogia entre experiência vi­
sual e crença, todavia, não pretendo sugerir que sejam pare­
cidas em todos os aspectos. Mais adiante mencionarei diver­
sas diferenças cruciais.
Se aplicarmos o aparato conceituai desenvolvido no
capítulo precedente, poderem os apresentar diversas se­
melhanças im portantes entre a Intencionalidade da per­
cepção visual e, p o r exemplo, a da crença.
1. O conteúdo da experiência visual, tal com o o da
crença, é sem pre equivalente a um a proposição comple-
58 INTENCIONALIDADE

ta. A experiência visual nunca é simplesmente ífeum ob­


jeto, mas, antes, deve ser sem pre de que determ inada
coisa se verifica. Sempre que, por exemplo, minha expe­
riência visual seja de uma cam inhonete amarela, deve ser
tam bém um a experiência cujo conteúdo seja em parte,
por exemplo, o de que haja uma cam inhonete amarela
diante de mim. Q uando afirmo que o conteúdo da expe­
riência visual equivale a um a proposição completa não
quero dizer que é lingüístico, mas sim que o conteúdo
requer a existência de todo um estado de coisas para ser
satisfeito. Não se limita a fazer referência a um objeto. O
correlato lingüístico desse fato é que a especificação ver­
bal das condições de satisfação da experiência visual as­
sume a forma da expressão verbal de uma proposição
completa e não apenas de um a frase nominal, mas isso
não implica que a experiência visual em si seja verbal.
Do ponto de vista da Intencionalidade, todo ver é ver
que-, sem pre que for verdadeiro dizer que x vê y, deverá
ser verdadeiro que x vê que determ inada coisa ocorre.
Em nosso prim eiro exem plo, portanto, o conteúdo da
percepção visual não fica explicitado na forma

Tenho uma experiência visual de (uma caminhonete ama­


rela)2

mas um primeiro passo para explicitar o conteúdo seria,


por exemplo,

Tenho uma experiência visual (de que há uma caminho­


nete amarela ali).

O fato de as experiências visuais terem um conteúdo In­


tencional proposicional é uma conseqüência imediata (e
trivial) do fato de terem condições de satisfação, pois es­
tas são sem pre a de que determ inada coisa se verifique.
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 59

Existe mais um argum ento sintático em favor cia


mesma conclusão. Assim como os verbos'de desejo admi­
tem m odificadores tem porais que exigem que postule­
mos uma proposição completa com o conteúdo do dese­
jo, o verbo “ver” admite modificadores espaciais que, me-
diante interpretações naturais, exigem que postulem os
um a proposição completa com o conteúdo da experiência ^

CENTRAL
visual. Q uando digo, por exemplo, “Vejo uma caminho- 3
nete amarela na minha fren te’, norm alm ente não quero J
significar que vejo uma cam inhonete que por acaso lam- t
bém está na minha frente, mas sim que vejo que há uma ó
cam inhonete amarela na minha frente. Uma pista adicio- ^

BtBLlQTECA
nal de que a forma “ver q u e” expressa o conteúdo Inten- xi
cional da experiência visual é que esta forma é intensio-
nal-com-s com respeito à possibilidade de substituição, 9
ao passo que as declarações em terceira pessoa da forma x.
“x vê y" são (em geral) extensionais. Quando, nos relatos >
em ver em terceira pessoa, usam os a forma “vê q u e”, es- Z
tamos com prom etidos a relatar o conteúdo da percepção, 3
tal com o apareceu ao percipiente, de um m odo que não
estaríamos se usássemos uma simples frase nom inal co­
mo objeto direto de “ver”. Desse m odo, por exemplo,

Jones viu que o presidente do banco estava parado diante


do banco

juntamente com os enunciados de identidade

O presidente do banco é o homem mais alto da cidade

O banco é o edifício mais baixo da cidade


60 INTENCIONALIDADE

não implica que

Jones viu que o homem mais alto da cidade estava parado


diante do edifício mais baixo da cidade.

Mas

Jones viu o presidente do banco,

juntamente com o enunciado de identidade, implica que

Jones viu o homem mais alto da cidade.

A explicação mais óbvia dessa distinção é que a forma


“ver q u e” relata o conteúdo Intencional da percepção.
Q uando dizemos, nos relatos em terceira pessoa, que um
agente viu q ue p, estam os com prom etidos a relatar o
conteúdo Intencional da percepção visual, mas a forma
“ver x ” relata apenas o objeto Intencional e não com pro­
mete quem relata com o conteúdo, com o aspecto sob o
qual o objeto Intencional foi percebido.
Exatamente a mesma questão - o fato de um con­
teúdo Intencional com pleto ser o conteúdo Intencional
de uma percepção visual - tam bém é ilustrada pela dis­
tinção seguinte:

Jones viu uma caminhonete amarela, mas não sabia que


era uma caminhonete amarela

é perfeitamente coerente, mas

Jones viu que havia uma caminhonete amarela diante dele,


mas não sabia que havia uma caminhonete amarela diante
dele
/I INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 61

é estranho e talvez até autocontraditório. A forma “ver x ”


não com prom ete o relator a relatar com o pareceu ao
agente, mas a forma “ver que” compromete, e um relato
de como pareceu ao agente é, em geral, uma especifica­
ção do conteúdo Intencional.
2. A percepção visual, como a crença e ao contrário
do desejo e da intenção, tem sem pre um a direção de
ajuste mente-munclo. Se as condições de satisfação não
forem satisfeitas de fato, com o nos casos de alucinação,
delírio, ilusão etc., a falha cabe à experiência visual e
não ao mundo. Nesses casos, dizemos que “nossos senti­
dos nos enganam ” e, em bora não descrevam os nossas
experiências visuais como verdadeiras ou falsas (porque
tais palavras são mais apropriadas quando aplicadas a
certos tipos de representação e as experiências visuais
são mais que simples representações - ponto a que che­
garei em pouco tempo), sentimo-nos inclinados a descre­
ver a falha em alcançar o ajuste em termos tais com o
“enganar”, “desviar”, “distorcer”, “ilusão” e “delírio”; e vá­
rios filósofos introduziram a palavra “verídico” para des­
crever o êxito em se alcançar o ajuste.
3. As experiências visuais, tal com o as crenças e os
desejos, são caracteristicamente identificadas e descritas
em termos de seu conteúdo Intencional. Não há meios
de fornecer um a descrição com pleta de m inha crença
sem dizer que se trata de uma crença que e, do mesmo
modo, não há meios de descrever m inha experiência vi­
sual sem dizer que se trata de um a experiência de. O er­
ro filosófico característico, no caso da experiência visual,
tem sido o de supor que os predicados que especificam
as condições de satisfação da experiência visual são lite­
ralmente verdadeiros em relação à própria experiência.
Mas, repetindo, trata-se de um erro de categoria supor
que, quando vejo uma cam inhonete amarela, a experiên­
62 INTENCIONALIDADE

cia visual em si tam bém seja amarela e tenha a forma de


uma caminhonete. Assim com o quando acredito que está
chovendo não tenho literalmente um a crença molhada,
quando vejo algo amarelo não estou tendo literalmente
uma experiência visual amarela. Seria tão possível dizer
que minha experiência visual tem seis cilindros e faz dez
quilômetros por litro quanto dizer que é amarela ou que
tem a forma de uma cam inhonete amarela. Somos tenta­
dos a incorrer no equívoco' de atribuir estes (em vez de
aqueles) predicados à experiência visual porque o con­
teúdo Intencional especificado por “am arelo” e “na forma
de um a cam in h onete” possui um a proxim idade m aior
com as experiências visuais que os outros predicados,
por razões que m encionaremos na próxima seção.
Muito se pode dizer acerca dos estados e eventos In­
tencionais que não constituem especificações de seus
conteúdos Intencionais e onde os predicados são, literal­
mente, verdadeiros em relação aos estados e eventos. Po-
de-se dizer que um a experiência visual tem uma certa du­
ração temporal ou que é agradável ou desagradável, mas
tais propriedades da experiência não devem ser confundi­
das com seu conteúdo Intencional, embora haja ocasiões
em que essas mesmas expressões podem especificar tam­
bém características de seu conteúdo Intencional.
É um tanto difícil saber com o seria possível argu­
m entar em favor cia existência de experiências percepti-
vas para alguém que negue a sua existência. Seria um
pouco com o argumentar em favor da existência da dor fí­
sica: se esta já não fosse óbvia, nenhum argumento filo­
sófico poderia convencer alguém . Todavia, creio que,
por meio de um a argumentação indireta, é possível de­
monstrar que as razões apresentadas pelos filósofos para
negar a existência das experiências visuais podem ser
respondidas. A primeira fonte de relutância em falar de
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 63

experiências perceptivas é o tem or de que, ao reconhe­


cer tais entidades, estejamos admitindo os dados dos sen­
tidos ou algo do gênero, isto é, admitindo entidades que
de algum m odo se interpõem entre nós e o m undo real.
Tenho buscado demonstrar que uma descrição correta da
Intencionalidade das experiências visuais não implica tais
conseqüências. A experiência visual não é o objeto cia
percepção visual e as características que especificam o
conteúdo Intencional em geral não são, literalmente, ca­
racterísticas da experiência. Uma segunda fonte de relu­
tância em admitir que existam experiências visuais (por
exemplo em Merleau-Ponty3) é o fato de qualquer tentati­
va de concentrar nosssa atenção na experiência alterar
inevitavelmente o caráter desta. À medida que nos vamos
dedicando às questões prementes da vida, raramente con­
centramos nossa atenção sobre o fluxo de nossas próprias
experiências visuais, e sim sobre as coisas de que elas são
a experiência. Isso nos induz a pensar que, quando con­
centramos efetivamente nossa atenção na experiência, es­
tamos trazendo à existência algo que não estava presente
anteriormente, que as experiências visuais só existem co­
mo resultado de se adotar a “atitude analítica”, com o
quando se faz filosofia, neurofisiologia ou pintura impres­
sionista. Contudo, esta parece-me ser uma descrição errô­
nea da situação. Alteramos, com efeito, o caráter (embora,
em geral, não o conteúdo) de uma experiência visual ao
concentrarmos nela nossa atenção, mas não decorre desse
fato que a experiência visual não estivesse presente o
tem po todo. O fato de desviarmos a nossa atenção das
condições de satisfação da experiência visual para a pró­
pria experiência não dem onstra q u e a experiência não
existia realmente antes do desvio de nossa atenção.
Até este ponto do presente capítulo, argumentei em
favor das seguintes teses principais: existem experiências
64 INTENCIONALIDADE

perceptivas; estas têm Intencionalidade; seu conteúdo


Intencional tem uma forma proposicional; têm elas uma
direção de ajuste m ente-m undo e as propriedades espe­
cificadas por seu conteúdo Intencional em geral não são
literalmente propriedades das experiências perceptivas.

II

Após ter enfatizado as analogias entre as experiências


visuais e outras formas de Intencionalidade como a cren­
ça, quero, nesta seção, assinalar diversas desanalogias.
Antes de mais nada, afirmei no capítulo 1 que podería­
mos justificadamente chamar os estados Intencionais co­
mo as crenças e os desejos de “representações”, contanto
que reconhecêssem os que não há nenhum a ontologia es­
pecial na noção de representação e que esta é apenas
uma abreviatura para toda uma constelação de noções
independentem ente motivadas com o condições de satis­
fação, conteúdo Intencional, direção do ajuste etc. Contu­
do, quando chegam os às experiências visuais e a outros
tipos de experiência perceptiva, precisamos dizer muito
mais a fim de caracterizar sua Intencionalidade. Tais ex­
periências têm, de fato, todas as características em cujos
term os definim os as representações, mas têm tam bém
outras características intrínsecas que poderiam tornar este
termo enganoso. Estados com o crenças e desejos não n e­
cessitam ser estados conscientes. Alguém pode ter um a
crença ou um desejo mesmo sem estar pensando a res­
peito e pode-se dizer, verdadeiramente, que essa pessoa
tem tais estados mesmo dormindo. Mas as experiências
visuais e outros tipos de experiência perceptiva são even­
tos mentais conscientes. A Intencionalidade de um a repre­
sentação independe do fato de ser realizada na consciên-
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 65

cia ou não, mas, em geral, a Intencionalidade de um a ex­


periência perceptiva é realizada em propriedades fenom e­
nais bastante específicas dos eventos mentais conscientes.
Por esse motivo a alegação de que existem experiências
visuais transcende a alegação de que a percepção tem In­
tencionalidade, pois trata-se de um a alegação ontológica
sobre como é realizada a Intencionalidade; em geral, ela é *<
realizada em eventos mentais conscientes. 3-
A experiência visual não só é um evento m ental O ^
consciente, com o tam bém está relacionada a suas condi- cc
ções de satisfação de um m odo totalm ente diverso do '£
das crenças e dos desejos. Se, por exemplo, vejo um a ca- *
m inhonete amarela à minha frente, a experiência que te- ^
nho é diretamente do objeto. Ela não se limita a “repre- u- O
sentar” o objeto, mas proporciona um acesso direto a es- J *-
te. A experiência tem uma espécie de direcionalidade, i 2
imediatismo e involuntariedade, que não é partilhada por 5 jo
uma crença que eu possa ter acerca do objeto na ausên- x ®
cia deste. Portanto, parece algo não natural descrever as >
experiências visuais com o representações; esse tipo de Z
abordagem, com efeito, leva quase obrigatoriamente à teo- ^
ria representativa da percepção. Em vez disso, dadas as
características especiais das experiências perceptivas, pro­
ponho chamá-las “apresentações”. Direi que a experiência
visual não se limita a representar o estado de coisas per­
cebido, mas, quando satisfeita, faculta-nos um acesso di­
reto a este e, nesse sentido, é um a apresentação de tal
estado de coisas. Estritamente falando, uma vez que nos­
sa abordagem das representações foi neutra do ponto de
vista ontológico e uma vez que as apresentações têm to­
das as condições definitórias que expusem os para as re­
presentações (possuem conteúdo Intencional, condições
de satisfação, direção do ajuste, objetos Intencionais
etc.), as apresentações constituem uma subclasse especial
66 INTENCIONALIDADE

das representações. Contudo, tratando-se de um a sub­


classe especial envolvendo eventos mentais conscientes,
algumas vezes oporei “apresentação” a “representação”,
sem com isso negar que as apresentações sejam repre­
sentações, assim com o é possível opor “hum ano” a “ani­
mal" sem com isso negar que os seres hum anos sejam
animais. Além disso, quando o contexto o permitir, usa­
rei “estado Intencional” em sentido amplo, para cobrir
tanto os estados como os eventos.
A alegação de que a Intencionalidade da visão é ca­
racteristicam ente realizada nas experiências visuais que
constituem eventos mentais conscientes é uma genuína
alegação ontológica empírica, e nesse sentido, contrasta
com a alegação de que as crenças e os desejos contêm
proposições com o conteúdos Intencionais. A alegação de
que há proposições no sentido anteriorm ente explicado
não é uma alegação ontológica empírica, em bora amiúde
tanto seus defensores como seus adversários suponham ,
erroneamente, o contrário. Ou seja, a alegação de que há
proposições ou outros conteúdos nada acrescenta à ale­
gação de que há certas características comuns entre cren­
ças, esperanças, temores, desejos, perguntas, afirmativas,
ordens, promessas etc. Mas a alegação cle que há experiên­
cias visuais de fato acrescenta algo à alegação dc que há
percepções visuais, um a vez que nos indica o m odo pelo
qual o conteúdo dessas percepções é realizado em nossa
vida consciente. Se alguém alegasse que há uma classe
de seres capazes de perceber opticam ente, ou seja, seres
capazes de percepção visual, mas que nào tiveram expe­
riências visuais, estaria fazendo uma genuína alegação
empírica. Mas se alguém alegasse que há uma classe de
seres que, literalmente, têm esperanças, temores e cren­
ças, e que fazem declarações, asserções e ordens, tudo
com suas várias características lógicas, mas que não têm
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 67

conteúdos proposicionais, tal pessoa não saberia do que


está falando ou estaria simplesmente negando-se a adotar
uma notação, pois a alegação de que há conteúdos pro­
posicionais não é, de modo algum, uma alegação empíri­
ca adicional. É, antes, a adoção de um certo instrumento
notacional para representar características lógicas comuns
das esperanças, temores, crenças, declarações etc.
Alguns trabalhos empíricos recentes defendem essa
distinção fundam ental entre o estatuto ontológico da ex­
periência visual com o evento mental consciente e a do
conteúdo proposicional. Weiskrantz, W arrington e seus
colegas 4 estudaram de que m odo alguns tipos de lesão
cerebral produzem o que chamam “visão cega”. O pacien­
te consegue responder corretam ente a perguntas sobre
eventos e objetos visuais que lhe são apresentados, mas
alega não ter a m enor consciência visual desses mesm os
eventos e objetos. Ora, do nosso ponto de vista, o inte­
resse desses casos deriva do fato de os estímulos ópticos
a que o paciente é subm etido produzirem , aparentem en­
te, uma forma cle Intencionalidade. Não fosse assim, o
paciente não seria capaz de relatar os eventos visuais em
questão. Mas o conteúdo Intencional produzido por seus
estímulos ópticos não é realizado do m esm o m odo que
o são os nossos conteúdos presentacionais. Para que ve­
jamos um objeto, precisam os ter experiências visuais de
um tipo determ inado. Presum indo-se que a exposição
de W einkrantz esteja correta, porém , o paciente pode de
algum m odo “ver” um objeto m esm o sem ter as experiên­
cias visuais p ertinentes. Ele sim plesm ente relata um a
“sen sação ” d e q u e algo está presente, ou arrisca um
“palpite” de que esteja presente. Aqueles que duvidam
da existência de experiências visuais, a propósito, p o d e­
riam perguntar-se o que é que nós tem os que parece fal­
tar a esses pacientes.
68 INTENCIONALIDADE

Outra distinção entre a Intencionalidade da percep­


ção e a Intencionalidade da crença é que é parte das
condições de satisfação (no sentido de requisito) da ex­
periência visual que esta deva, ela mesma, ser causada
pelo resto das condições de satisfação (no sentido de
coisa requerida) dessa mesma experiência visual. Assim,
por exemplo, se vejo a cam inhonete amarela, tenho uma
certa experiência visual. Mas o conteúdo Intencional da
experiência visual, que requer a existência de um a cami­
nhonete amarela na minha frente para ser satisfeito, tam ­
bém exige que o fato de haver uma caminhonete amarela
na minha frente seja a causa da própria experiência visual.
Portanto, o conteúdo Intencional da experiência visual re­
quer, como parte das condições de satisfação, que a ex­
periência visual seja causada pelo resto dessas mesmas
condições, ou seja, pelo estado de coisas percebido. Lo­
go, o conteúdo da experiência visual é auto-referente, em
um sentido que espero poder tornar bastante preciso. O
conteúdo Intencional da experiência visual é inteiramente
especificado pelo enunciado das condições de satisfação
da experiência, mas tal enunciado faz um a referência es­
sencial à própria experiência visual nas condições de sa­
tisfação. Pois o que o conteúdo Intencional requer não é
simplesmente que haja um estado de coisas no mundo,
mas, antes, que o estado de coisas no m undo deva causar
a própria experiência visual que é a corporificação ou rea­
lização do conteúdo Intencional. E a argumentação em fa­
vor disso vai muito além da conhecida prova da “teoria
causal da percepção”5; a argumentação comum é que, a
menos que a presença e as características do objeto cau­
sem a experiência do agente, este não vê o objeto. Para
minha abordagem, contudo, é essencial mostrar de que
maneira esses fatos se introduzem no conteúdo Intencio­
nal. O conteúdo Intencional da experiência visual, por­
tanto, deve ser explicitado da seguinte forma:
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 69

Tenho uma experiência visual (de que há uma caminho­


nete amarela e de que há uma caminhonete amarela a
causar essa experiência visual).

Embora isso pareça confuso, creio que estamos na


trilha certa. O conteúdo Intencional da experiência visual
determina sob quais condições ela é ou não satisfeita, o
que deve ocorrer para que ela seja, como dizem, “verídi­
ca”. Bem, o que deve ocorrer na cena da caminhonete
amarela para que a expèriência seja verídica? Pelo menos
o seguinte: o m undo deve ser tal com o me parece ser vi­
sualmente e, além disso, o fato de ele ser assim deve ser
a causa de minha experiência visual que constitui o fato
de ele parecer assim. E é essa com binação que estou ten­
tando capturar na representação do conteúdo Intencional.
A representação verbal que acabo de apresentar do
conteúdo Intencional visual não é, em nenhum sentido,
uma tradução. É, antes, uma especificação verbal daquilo
que o conteúdo Intencional requer caso deva ser satisfei­
to. O conteúdo Intencional visual é auto-referente não no
sentido de conter uma representação de si mesmo, repre­
sentação verbal ou de um outro tipo; seguram ente esse
conteúdo não realiza nenhum ato de fala em referência a
si mesmo. Em lugar disso, a experiência visual é auto-re­
ferente apenas no sentido de que figura em suas próprias
condições de satisfação. A experiência visual em si não
d iz isso, mas o mostra-, afirmei-o em minha representação
verbal do co n teú d o Intencional da experiência visual.
Além disso, q u ando afirmo que a experiência visual é
causalmente auto-referente, não quero dizer que a rela­
ção causal seja visível e muito m enos que a experiência
visual seja visível. Visíveis, mais exatam ente, são os obje­
tos e estados de coisas, e parte das condições de satisfa­
ção da experiência visual de vê-los é que a própria expe­
riência seja causada pelo que é visto.
70 INTENCIONALIDADE

Na abordagem presente, a percepção é uma transa­


ção Intencional e causal entre m ente e mundo. A direção
do ajuste é mente-mundo, a direção de causação é mun-
do-mente; e estas não são independentes, pois a adequa­
ção só se realiza se causacla pelo outro termo da relação
de adequação, ou seja, o estado de coisas percebido. Po­
demos dizer ou que é parte do conteúdo da experiência
visual que, para ser satisfeita, esta deve ser causada por
seu objeto Intencional, ou, de maneira mais intricada p o ­
rém mais precisa, que é parte do conteúdo da experiência
visual que, para ser satisfeita, esta precisa ser causada p e ­
lo estado de coisas em que seu objeto Intencional existe e
tem as características que são apresentadas na experiência
visual. E é nesse sentido que o conteúdo Intencional da
experiência perceptiva é causalmente auto-referente.
A introdução da noção de auto-referencialidade cau­
sal de certos tipos de Intencionalidade - uma auto-refe-
rencialidade m ostrada mas não dita - é um acréscim o
fundamental para o aparato conceituai deste livro. A o b ­
servação simples e, creio eu, óbvia de que as experiências
perceptivas são causalmente auto-referentes é o primeiro
passo de um a série de argumentações que usaremos para
atacar diversos problem as filosóficos bastante controver­
sos - sobre a natureza da ação hum ana, a explicação do
com portam ento, a natureza da causação e a análise das
expressões indexicais, para m encionar apenas uns quan­
tos. Uma conseqüência im ediata pode ser m encionada
agora: é bastante fácil perceber de que maneira as ex p e­
riências visuais de idêntico tipo po d em ter diferentes
condições de satisfação e, portanto, diferentes conteúdos
Intencionais. Duas experiências “fenom enologicam ente”
idênticas podem ter conteúdos diferentes, pois cada um a
delas é auto-referente. Assim, por exemplo, suponham os
que dois gêm eos idênticos têm experiências visuais de
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 71

idêntico tipo ao olharem para duas cam inhonetes dife­


rentes, mas de idêntico tipo, ao m esm o tempo, em con­
dições de iluminação e contextos ambientais de idêntico
tipo. Mesmo assim, as condições de satisfação podem ser
diferentes. O gêm eo núm ero 1 requer uma cam inhonete
que cause sua experiência visual e o gêm eo núm ero 2
requer um a cam inhonete que cause sua experiência vi- <
suai num ericam ente diferente. Mesma fenom enologia, 4‘

CEN TR A L
conteúdos diferentes e, portanto, diferentes condições cle ^
satisfação. j
Embora eu considere correta a caracterização da au- 1
to-referencialidade causal, ela nos coloca algumas ques- >
tões difíceis, às quais não estam os ainda em condições

rfcCA
de responder. Qual é o sentido de “causa” nas formula-
ções acima? Não teria essa explicação a conseqüência cé­

.Quto
tica de nunca poderm os ter a certeza de que nossas ex- ^
periências visuais são satisfeitas, um a vez que não existe
uma posição neutra a partir da qual possamos observar a f, 10
relação causal para verificar se a experiência foi de fato -2
satisfeita? Tudo o que poderem os chegar a obter é mais ^
experiências do mesmo tipo. Discutirei essas duas ques­
tões mais adiante, a primeira no capítulo 4 e a segunda
no final deste capítulo.
Outra distinção entre a forma de Intencionalidade
exemplificada pela percepção visual e formas diversas
como as crenças e os desejos está relacionada ao caráter
do aspecto ou ponto de vista sob o qual o objeto é visto
ou percebido cle outro modo. Q uando tenho a represen­
tação de um objeto Intencional em uma crença ou em
um desejo, este será sem pre representado sob um ou ou­
tro aspecto, mas, na crença e no desejo, o aspecto não é
limitado do m esm o m odo que o aspecto da percepção
visual é determ inado pelas características puram ente físi­
cas da situação. Por exemplo, posso representar um de-
72 INTENCIONALIDADE

term inado planeta célebre sob seus aspectos de “Estrela


Matutina” ou de “Estrela Vespertina”. Como, porém, a In­
tencionalidade da percepção visual é realizada de um
modo bastante específico, o aspecto sob o qual percebe­
mos os objetos de nossa percepção desem penha um tipo
de papel diferente daquele desem penhado em outros es­
tados Intencionais. Na percepção visual, o aspecto sob o
qual o objeto será percebido é determ inado pelo ponto
de vista e pelas demais características físicas da situação
perceptiva na qual o objeto é percebido. Dada uma certa
posição, por exemplo, não poderei deixar de ver o lado
esquerdo da cam inhonete amarela. Para ver o carro sob
outro aspecto, eu teria de alterar as características físicas
da situação perceptiva, por exem plo contornando o veí­
culo ou m udando-o de lugar.
Além disso, nos casos nâo-perceptivos, em bora o
objeto Intencional seja sempre representado sob um ou
outro aspecto, não obstante é o próprio objeto que é re­
presentado e não apenas um aspecto. Por esse motivo,
aliás, os objetos Intencionais nada têm de ontologica-
m ente obscuro em minha aboi'dagem. O aspecto sob o
qual um objeto é representado não é algo que se inter­
põe entre nós e o objeto. Em pelo m enos alguns casos
de percepção visual, porém, a situação parece não ser
assim tão simples. Considere-se, por exemplo, o conheci­
do exemplo do pato/coelho de Wittgenstein6.
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 73

Nesse caso, somos inclinados a dizer que, em um certo


sentido, o objeto Intencional é o m esm o tanto em nossa
percepção do pato quanto na do coelho. Isto é, em bora
tenham os duas experiências visuais com dois conteúdos
presentacionais diferentes, existe uma única ilustração na
página diante de nós. Mas, em outro sentido, querem os
dizer que o objeto Intencional da experiência visual é cli-J
ferente nos dois casos. O que se vê é, em um caso, a fi-<
gura cie um pato e, no outro, a de um coelho. Ora, Witt-

CENTRAL
genstein lida, ou melhor, não consegue lidar, com essa o
dificuldade, dizendo tratar-se simplesmente de usos clife- j
rentes do verbo “ver”. Mas tal não parece contribuir mui- *
to para esclarecer a relação d.os aspectos com os objetos ^
Intencionais. Creio que a solução de nosso enigma é as- u

B tBUO TECA
sinalar que, assim como podem os ver objetos literalmen­
te, mesmo que sempre que vemos um objeto o vejamos .
sob um determ inado aspecto, podem os literalmente ver ^
aspectos dos objetos. Vejo literalmente o aspecto pato e 7
vejo literalmente o aspecto coelho do desenho que está ^
diante de mim. Ora, em minha abordagem, isso nos com- i
prom ete com a noção de que vemos tais aspectos sob 3
certos aspectos. Mas por que razão isso nos deveria inco­
modar? Na verdade, se estivermos dispostos a aceitar essa
noção, o paralelo com outros estados Intencionais estará
preservado. Tal como vimos no caso em que John ama
Sally ou crê em algo acerca de Bill, é sem pre sob deter­
minado aspecto que John ama Sally e sob determ inado
aspecto que crê em algo acerca de Bill, mesmo que aqui­
lo a que o am or de John está dirigido e aquilo a que se
refere sua crença não seja um aspecto. Mas, além disso,
não há nada que o impeça de amar um determ inado as­
pecto de Sally ou acreditar em alguma coisa sobre um
determ inado aspecto de Bill. Ou seja, não há nada que
impeça um aspecto de ser o objeto Intencional de uma
74 INTENCIONALIDADE

crença ou de outra atitude psicológica com o o amor. E,


do mesmo modo, não há nada que impeça um aspecto
de ser o objeto Intencional de uma percepção visual. Tão
logo reconheçam os que um aspecto pode ser um objeto
Intencional, em bora toda Intencionalidade que inclua a
Intencionalidade da percepção esteja sob um certo as­
pecto, poderem os ver de que m odo o aspecto é essencial
para os fenôm enos Intencionais, sem ser ele próprio,
apesar disso, o objeto Intencional.
Um m odo de resumir a explicação precedente da In­
tencionalidade da percepção é apresentar um quadro
comparativo das características formais dos vários tipos
de Intencionalidade discutidos. À crença, ao desejo e à
percepção visual acrescentarei a lembrança de aconteci­
mentos do passado, uma vez que esta compartilha de al­
gumas características da percepção visual (tal como ver,
lembrar é auto-referente) e de algumas da crença (tal co­
mo crer, lem brar é mais um a representação que um a
apresentação). Os verbos “v er” e "lem brar”, diferente­
mente dos verbos “desejar” e “crer”, implicam não ape­
nas a presença de um conteúdo Intencional como tam ­
bém que esse conteúdo seja satisfeito. Se eu realmente
vejo um estado de coisas, deve haver algo mais que mi­
nha experiência visual; o estado de coisas que é a condi­
ção de satisfação da experiência visual deve existir e d e­
ve causar a experiência. E se realm ente me lembro de al­
gum acontecim ento este deve ter ocorrido e sua ocorrên­
cia deve causar a m inha lembrança dele.
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 75

Uma comparação entre algumas das características for­


mais da Intencionalidade de ver, crer, desejar e lembrar
Ver Crer Desejar Lembrar

N atureza experiência crença desejo m em ória


do com po n en te visual <C
«!
Intencional •1
X
A presentação apresentação re p re sen ­ rep resen ­ re p re sen ­
0 J
o u rep resen tação tação tação tação
’ *
J h*
C ausalm ente sim n ão n ão sim 1 z
auto-referente t U»
•1 ü
D ireção m ente- m ente- m undo- m ente-

S iB L IQ TÊLC A
j <
d e ajuste m undo m undo m ente m undo 1. O
UJ
J i-
D ireção de m undo- nenhum a nen h u m a m undo- - O
1 —
causação tal com o m ente m ente o J
determ inada pelo <5
x (í
co n teúdo Intencional
>
z
III

Em m eu esforço no sentido de apresentar uma abor­


dagem da Intencionalidade da percepção visual, quero, a
todo custo, evitar que o tem a pareça mais simples do
que realm ente é. Nesta seção, quero chamar a atenção
para algumas das complexidades, em bora os casos que
mencionarei aqui sejam apenas uns quantos dentre mui­
tos enigmas da filosofia da percepção.
Temos uma inclinação para considerar, ã la Hume,
que as percepções nos chegam puras e imaculadas pela
linguagem, e que então rotulamos, através de definições
ostensivas, os resultados de nossos encontros percepti-
vos. Tal imagem, no entanto, é falsa sob vários aspectos.
76 INTENCIONALIDADE

Em prim eiro lugar, está a conhecida noçào segundo a


qual a percepção é uma função da expectativa e pelo me­
nos as expectativas dos seres hum anos costumam ser nor­
malmente realizadas lingüisticamente. Portanto, a própria
linguagem afeta o encontro perceptivo. Há mais de um
quarto de século, Postman e Bruner 7 fizeram algumas ex­
periências que demonstraram que o limiar do reconheci­
m ento de características varia grandem ente, segundo a ca­
racterística particular seja esperada ou não na situação da­
da. Se o indivíduo tem a expectativa cle que a próxima
cor que verá será o vermelho, ele a reconhecerá com mui­
to mais rapidez do que se não tivesse tal expectativa.
Mas, em segundo lugar - e mais importante, do nos­
so ponto cle vista muitas de nossas experiências visuais
sequer são possíveis sem o dom ínio de certas capacida­
des de Background, entre as quais figuram com destaque
as lingüísticas. Considere-se a figura seguinte:

A figura pode ser vista com o a palavra “TOOT”, co­


mo uma mesa com dois grandes balões na parte de bai­
xo, com o o num eral 1001 com um a linha na parte su­
perior, como uma ponte que passa por cima de dois oleodu­
tos, como os olhos de um hom em que está usando um
chapéu com um barbante pendurado de cada lado, e as­
sim por diante. Temos, em cada caso, uma experiência
diferente, em bora os estímulos visuais puram ente físicos,
as linhas no papel à nossa frente e a luz refletida por
eles, sejam constantes. Mas essas experiências e as dife­
renças entre elas dependem de term os dom inado uma
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 77

série de capacidades culturais lingüisticamente im pregna­


das. Por exemplo, não é uma imperfeição no aparato vi­
sual de meu cão que o im pede de ver nesta figura a pa­
lavra “TOOT”. Em um caso com o este, o que se quer di­
zer é que um certo domínio conceituai constitui um a pré-
condição para que se tenha uma experiência visual; e tais V
casos sugerem que a Intencionalidade da percepção vi­ <
x.
sual esteja atada, de diversas maneiras complicadas, a ou­
-> A.
tras formas de Intencionalidade, tais com o a crença e a ^ ^
expectativa, e tam bém com nossos sistemas de represen- i H
tação, sobretudo a linguagem. Tanto a Rede de estados r. íí
Intencionais com o o Background das capacidades men- ^ w
tais nâo-representacionais afetam a percepção. ^ *
Mas se a Rede e o Background afetam a percepção, ui
com o podem as condições de satisfação ser determ inadas - o
pela experiência visual? Há pelo m enos três tipos de ca- 3 £
sos que precisaremos discutir. Em primeiro lugar, há os g
casos em que a Rede de crenças e o Background afetam m
efetivamente o conteúdo da experiência visual. Conside-
re-se, por exemplo, a diferença entre olhar para a frente 3
de uma casa quando se considera tratar-se cla frente de
uma casa com pleta e olhar para a frente de um a casa
quando se considera tratar-se de um a mera fachada, co­
mo, por exemplo, parte de um cenário cinematográfico.
Q uando se acredita estar olhando para um a casa com ple­
ta, a frente parece de fato diferente de quando se acredi­
ta estar vendo a fachada falsa de uma casa, em bora os
estímulos visuais possam ser idênticos nos dois casos. E
essa diferença no caráter real das experiências visuais re-
flete-se nas diferenças entre os dois conjuntos de condi­
ções de satisfação. Faz parte do conteúdo da minha ex­
periência visual o fato de que, ao olhar para uma casa
completa, tenho a expectativa cie que o resto da casa es­
teja ali se, por exemplo, eu resolver entrar ou rodeá-la.
78 INTENCIONALIDADE

Nesses tipos de caso, o caráter da experiência visual e


suas condições de satisfação serão afetados pelo conteú­
do das crenças que se tenha acerca da situação percepti-
va. Não estarei transcendendo o conteúdo de minha ex­
periência visual se disser, “Vejo um a casa” em lugar de
“Vejo a fachada de uma casa”, pois, em bora os estímulos
visuais possam ser os mesmos, as condições de satisfação
no primeiro caso são que haja uma casa completa. Não
estarei inferindo da fachada da casa a presença de uma
casa. mas sim plesmente vendo uma casa.
U m 'segundo tipo de caso surge quando o conteúdo
da crença é de fato incompatível com o conteúdo da ex­
periência visual. Um bom exem plo é o surgimento da lua
no horizonte. Q uando vemos a lua no horizonte, ela p a­
rece bem maior que quando diretamente acima de nós.
Contudo, em bora as experiências visuais sejam diferentes
nos dois casos, não há m udança alguma no conteúdo de
nossa crença. Não acredito que a lua tenha crescido no
horizonte ou encolhido no alto. Ora, em nosso primeiro
tipo de exemplo, vimos que não havia como extrair da
crença que temos acerca da experiência visual o conteú­
do da mesma. A casa de fato parece diferente, dependen­
do do tipo de crença que tivermos sobre ela. Mas, no se­
gundo tipo, querem os dizer que a experiência visual do
tam anho da lua m odifica-se decididam ente segundo a
posição dela e, m esm o assim, nossas crenças perm ane­
cem constantes. E o que poderem os dizer sobre as con­
dições de satisfação das experiências visuais? Em virtude
do caráter holístico da Rede de nossos estados Intencio­
nais, somos inclinados a dizer que as condições de satis­
fação das experiências visuais perm anecem as mesmas.
Uma vez que, na verdade, não estamos nem um pouco
inclinados a acreditar que a lua m udou de tamanho, pre­
sumimos que as duas experiências visuais têm as mesmas
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 79

condições de satisfação. Na verdade, porém, acredito não


ser esta a m aneira correta de descrever a situação. Ao
contrário, parece-m e que m esm o que o conteúdo Inten­
cional de nossa experiência visual esteja em conflito com
nossas crenças e que estas se sobreponham à experiência

PARA
visual teremos, não obstante, o conteúdo Intencional ori­
ginal da experiência visual. As experiências visuais têm
realmente, com o parte de seus respectivos conteúdos In­

CENTRAL
tencionais, que a lua seja m enor no alto do que no hori­
zonte, e o argum ento em favor de tal premissa é que se

UNIVE ® S I D A 1 ê F t D t K A L
imaginarmos que as experiências visuais perm anecessem
em seu estado atual, mas as crenças estivessem ausentes,
que simplesmente não tivéssemos nenhum a crença rele­
vante, estaríamos realmente inclinados a acreditar que a

BiBUOTtO
lua m udou de tam anho. Som ente em razão de nossa
crença independente de que o tam anho da lua perm ane­
ce constante é que permitimos que a Intencionalidade da
crença se sobreponha à Intencionalidade da nossa expe­
riência visual. N esses casos, acreditam os que nossos
olhos nos enganam . Encontram os um exem plo sem e­
lhante nas linhas de Müller-Lyer:

>----------- <
<-------- >

em que o conteúdo Intencional da experiência visual es­


tá em conflito com o conteúdo Intencional das nossas
crenças, que se sobrepõe àquele. Tais casos estão em ní­
tido contraste com o fenôm eno da constância da cor
percebida sob diferentes condições de iluminação. No
caso da constância da cor, esta parece idêntica tanto na
luz com o na sombra, em bora a luz refletida seja bem di­
ferente. Portanto, o conteúdo da crença e o conteúdo da
80 INTENCIONALIDADE

experiência perceptiva são compatíveis, ao contrário dos


casos anteriores.
Um terceiro tipo de caso é aquele em que as experiên­
cias visuais são diferentes mas as condições de satisfação
são as mesmas. Nosso exemplo do “TOOT” é deste tipo.
Outro exemplo seria ver um triângulo primeiro com um
ponto como ápice e depois com outro ponto na mesma
posição. Nestes dois últimos çxemplos não temos a menor
inclinação a pensar que qualquer coisa é diferente no m un­
do real correspondente às diferenças das experiências.
Temos, portanto, diversos m odos pelos quais a Rede
e o Background da Intencionalidade estão relacionados
ao caráter da experiência visual, e tal caráter está relacio­
nado às suas condições de satisfação.
1. O exem plo da casa: Crenças diferentes ocasionam
experiências visuais diferentes com diferentes condições
de satisfação, m esm o dados os mesmos estímulos visuais.
2. O exem plo da lua: As mesmas crenças coexistem
com diferentes experiências visuais com diferentes condi­
ções de satisfação, em bora o conteúdo das experiências
seja incompatível com o das crenças e estas se sobrepo­
nham àquele.
3. Os exem plos do triângulo e do “TOOT”: As m es­
mas crenças, som adas a experiências visuais diferentes,
produzem as mesmas condições de satisfação das expe­
riências visuais.
Sentimos que seria necessária uma explicação teóri­
ca sistemática das relações entre esses vários parâmetros,
mas não sei qual seria essa explicação.
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 81

IV

A abordagem da percepção visual em favor da qual esti­


ve argum entando até aqui é, creio eu, um a versão do rea­
lismo “ingênuo” (direto, de senso comum) e pode ser re­
presentado graficamente da maneira que se segue:

<
Experiência visual _____ i V

Percipiente Objeto percebido


? í0*
■f (objeto causa experiência visual)

Fig. 1 'I
: o
3

Q(SU ür£C A <


•J

Tal percepção visual envolve pelo m enos três elementos:


o percipiente, a experiência visual e o objeto (mais estri­
tamente: o estado de coisas) percebido. O fato de uma
seta representar a percepção visual pretende indicar que
X
a experiência visual tem um conteúdo Intencional, está Jj
dirigida ao objeto Intencional cuja existência é parte de >
suas condições de satisfação (e, com certeza, não preten­ Z
3
de sugerir que a experiência visual existe no espaço físi­
co entre o percipiente e o objeto).
No caso da alucinação visual, o percipiente tem a
mesma experiência visual, mas nenhum objeto Intencio­
nal está presente. Tal caso pode ser representado pelo
diagrama seguinte:

I Experiência visual

Percipiente

Fig. 2
82 INTENCIONALIDADE

Não é m eu objetivo, neste capítulo, envolver-me nas


tradicionais discussões a respeito da filosofia da percep­
ção; entretanto, talvez-a hipótese que estou defendendo
acerca da Intencionalidade da experiência visual fique
mais clara se fizermos uma breve digressão para com pa­
rar essa visão realista ingênua com suas grandes rivais
históricas, a teoria representativa e o fenom enalism o.
Ambas essas teorias diferem do realismo ingênuo por tra­
tarem a própria experiência‘visual com o o objeto da per­
cepção visual, privando-a, assim, de sua Intencionalida­
de. De acordo com elas, o que é visto é sempre, estrita­
mente falando, um a experiência visual (nas diversas ter­
minologias, a experiência visual foi chamada “sensação”,
“dado sensorial” ou “im pressão”). São portanto confronta­
das com uma questão que não se coloca para o realista
ingênuo: Qual a relação entre os dados sensoriais que
vemos e o objeto material que aparentem ente não ve­
mos? A questão não se coloca para o realista ingênuo
porque, na explicação dele, não vem os absolutam ente os
dados sensoriais. Vemos objetos materiais e outros obje­
tos, e estados de coisas no m undo, pelo m enos na maior
parte do tempo; e, nos casos de alucinação, não vemos
coisa alguma, em bora tenhamos de fato experiências vi­
suais em am bos os casos. Tanto os fenom enólogos com o
os teóricos da representação tentam em purrar a linha que
representa a experiência visual na figura 1 para fora do
eixo horizontal e para o vertical, de m odo que o veículo
do conteúdo Intencional de nossa percepção visual, a ex­
periência visual, se torne ele próprio o objeto da percep­
ção visual. Os num erosos argum entos apresentados em
favor desse movimento, notadam ente os da ilusão e os
da ciência, foram, a meu ver, refutados com eficácia por
outros filósofos8, e não os repetirei aqui. A questão rele­
vante, para os propósitos da presente argum entação, é
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 83

simplesmente que, ao se empurrar a linha da experiência


visual para fora do eixo horizontal e para o" vertical, de tal
m odo que a experiência visual se torna o objeto de per­
cepção, somos confrontados com uma escolha quanto ao
m odo como se poderá descrever a relação entre o dado
sensorial que, segundo essa teoria, se percebe de fato, e o <,
objeto material que aparentem ente não se vê. As duas so- 5
luções favoritas para o problema são que a experiência
visual ou o dado sensorial é, em certo sentido, uma cópia ^ <
ou representação do objeto material (na teoria representa- ®
tiva), ou que o objeto é, de algum modo, apenas um a 1 Z
reunião de dados sensoriais (e esta, em suas várias versões, * O
é a teoria fenomenalista). Cada uma dessas teorias pode O
ser representada graficamente pelas figuras abaixo: u - L}
liJ
- O
■ Semelhança 4 —.
L------ '
D ado
J -l ■— 11
9-J. m
Z.

£ sensorial
Percipiente
Objeto 1

Fig- 3

A teoria representativa

Dado sensorial
Percipiente

Fifí- 4 Fenom enalismo

Mesmo se ignorarmos as várias objeções apresenta­


das contra a opinião segundo a qual tudo o que jamais se
percebe são dados sensoriais, parece-m e que há outras
objeções decisivas, ainda, contra cada uma dessas teorias.
84 INTENCIONALIDADE

A principal dificuldade de uma teoria representativa da per­


cepção é que a noção de semelhança entre as coisas que
percebemos, os dados sensoriais, e a coisa que esses daclos
representam, o objeto material, deve ser ininteligível, pois o
termo objeto é, por definição, inacessível aos sentidos. É
absolutamente invisível e imperceptível de qualquer outro
modo. Tal como assinalou Berkeley, não faz sentido dizer
que a forma e a cor que vemos se parecem à forma e à cor
de um objeto que é absolutamente invisível e inacessível
por qualquer outro meio para qualquer de nossos sentidos.
Nesta abordagem, além disso, nenhum sentido literal nem
sequer pode ser ligado à alegação de que os objetos têm
qualidades sensíveis, tais como forma, tamanho, cor, peso
ou as demais qualidades sensorialmente acessíveis, sejam
“primárias” ou “secundárias”. Em resumo, a teoria represen­
tativa é incapaz de dar um sentido à noção de semelhança
e, portanto, não é capaz de dar sentido algum à noção de
representação, uma vez que a forma de representação em
questão requer a semelhança.
A objeção decisiva à visão fenomenalista é que ela
se reduz ao solipsismo. Na visão fenomenalista, os obje­
tos materiais publicam ente acessíveis tornam -se dados
sensoriais, mas estes são sem pre particulares. Desse m o­
do, os objetos que vejo são, em um sentido importante,
meus objetos, uma vez que se reduzem a dados sensoriais,
e os únicos dados sensoriais a que tenho acesso são os
meus. O m undo que percebo não é acessível a ninguém
mais, uma vez que consiste inteiramente em meus dados
sensoriais particulares e, com efeito, a hipótese de que
outras pessoas possam ver os m esm os objetos que eu
torna-se ininteligível, pois tudo o que vejo são m eus da­
dos sensoriais e tudo o que elas poderiam ver seriam os
dados sensoriais delas. Mas, além disso, a hipótese de
que outras pessoas nem sequer existam e percebam da-
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 85

dos sensoriais no sentido que eu existo e percebo dados


sensoriais torna-se, no mínimo, incognoscível e, no máxi­
mo, ininteligível, dado que as m inhas percepções de ou­
tras pessoas são sem pre minhas percepções de m eus da-
clos sensoriais, ou seja, minhas percepções de caracterís­
ticas de mim mesmo.
Uma vez tratando-se o conteúdo da percepção como
seu objeto, algo semelhante às teorias acima parece ine­
vitável. E, de fato, o equivoco dos teóricos dos dados
sensoriais parece-m e análogo àquele de se tratar o con­
teúdo proposicional da crença com o objeto dessa mesma
crença. A crença não tem por objeto ou está direcionada a
seu conteúdo proposicional mais que a percepção visual
a seu com ponente experiencial. Contudo, ao rejeitar a hi­
pótese do dado sensorial, parece-m e que muitos “realis­
tas ingênuos” deixaram cle reconhecer o papel das expe­
riências e da Intencionalidade das experiências na situa­
ção perceptiva. Ao rejeitar a idéia de que o que vemos
são experiências visuais, em favor da idéia de que o que
vemos são, caracteristicamente, por exemplo, objetos ma­
teriais na nossa vizinhança, muitos filósofos, entre eles
Austin9, rejeitaram a idéia de que temos quaisquer expe­
riências visuais. Q uero argum entar que os teóricos tradi­
cionais dos dados sensoriais estavam certos em reconhe­
cer que tem os experiências, visuais e de outros tipos,
mas situaram erroneam ente a questão da Intencionalida­
de da percepção ao suporem que as experiências eram
os objetos da percepção, e que os realistas ingênuos es­
tavam certos em reconhecer que os objetos materiais e os
acontecim entos são caracteristicamente os objetos da per­
cepção, mas muitos deles deixaram de perceber que o
objeto material só pode ser o objeto da percepção visual
porque esta possui um conteúdo Intencional e o veículo
desse conteúdo é uma experiência visual.
86 INTENCIONALIDADE

Estamos agora em condições de voltar à nossa pergunta


original: quais as condições de verdade de uma sentença
cla forma

X vê uma caminhonete amarela.

Mas do ponto de vista da teoria da Intencionalidade essa


pergunta está mal formulada, pois o conteúdo Intencional
da visão é proposicional; a forma correta é, por exemplo:

X vê que há uma caminhonete amarela diante de X.

As condições de verdacle são:


1. X tem um a experiência visual que tem
a. certas condições de satisfação
b. certas propriedades fenomênicas.
2. As condições de satisfação são: que haja um a ca­
m inhonete amarela diante de X e que o fato de
haver um a cam inhonete amarela diante de X seja
a causa da experiência visual.
3- As propriedades fenomênicas são tais que deter­
minam que as condições de satisfação sejam tal
com o descritas em 2. Isto é, essas condições de
satisfação são determinadas pela experiência.
4. A forma da relação causal nas condições de satis­
fação é a causação Intencional contínua e regular.
(Tal condição é necessária para bloquear certos
tipos de contra-exem plo que envolvem “cadeias
causais desviantes”, em que as condições d e satis­
fação de fato causam a experiência visual, mas,
mesmo assim, a experiência não é satisfeita. Exa­
minaremos esses casos e a natureza da causação
Intencional no capítulo 4.)
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 87

5. As condições de satisfação são efetivamente satis­


feitas. Ou seja, há realm ente um a cam inhonete
amarela a causar (do modo descrito em 4) a expe­
riência visual (descrita em 3) que tem o conteúdo
Intencional (descrito em 2).
A presente exposição inclui, além do percipiente, dois ^
com ponentes da percepção visual, a experiência visual e <
a cena percebida, e a relação entre eles é Intencional e
causal.

VI

Alcançamos agora o nosso objetivo inicial de assimi­


lar uma explicação da percepção à nossa teoria cia Inten­
cionalidade. Contudo, surge de im ediato um problem a
que não havíamos ainda enfrentado: discutimos o caso
em que um a pessoa vê que uma cam inhonete amarela
está à sua frente, mas que dizer sobre o caso cle uma
pessoa que vê que uma cam inhonete amarela específica,
previamente identificada, está à sua frente? Quando, por
exemplo, vejo a minha própria cam inhonete amarela, as
condições de satisfação exigem não apenas que haja uma
cam inhonete qualquer que satisfaça m eu conteúdo Inten­
cional, mas sim que seja a minha. Agora, a pergunta é:
de que m odo essa particularidade se introduziu no con­
teúdo Intencional da percepção? Chamemos a este o “pro­
blema da particularidade”10.
Para constatarmos que se trata realmente de um pro­
blema para a teoria da Intencionalidade, imaginemos a
seguinte variação da fantasia de Putnam sobre o planeta
gêm eo11: suponham os que, em um a galáxia distante, es­
teja o planeta gêm eo da nossa Terra, de idêntico tipo à
nossa até a última das micropartículas. Suponhamos que,
88 INTENCIONALIDADE

em nossa Terra, um certo Bill Jones vê a esposa, Sally,


saindo da caminhonete amarela deles e que, na Terra gê­
mea, o Bill Jones gêmeo vê sua esposa gêmea saindo da
caminhonete amarela gêmea deles. Ora, o que haveria no
conteúdo da experiência visual de Bill Jones que faz com
que a presença de Sally, e não a da Sally gêmea, seja parte
das condições de satisfação de sua experiência visual? E o
que faz da presença da Sally gêm ea parte das condições
de satisfação da experiência do Jones gêmeo? Por hipóte­
se, ambas as experiências são qualitativamente idênticas e,
no entanto, faz parte das condições de satisfação da expe­
riência de cada agente que ele não esteja vendo apenas
qualquer mulher com determinadas características visuais,
mas que esteja vendo sua própria esposa, Sally, ou Sally
gêmea, segundo o caso. Já vimos (pp. 79-80) de que ma­
neira experiências visuais qualitativamente idênticas p o ­
dem ter diferentes condições de satisfação nos casos ge­
rais, mas com o podem experiências visuais qualitativa­
mente idênticas ter diferentes condições particulares de sa­
tisfação? O caso da fantasia não é epistêmico. Não estamos
perguntando de que m odo Bill Jones pode dizer que se
trata realmente de sua esposa e não de alguém de aparên­
cia idêntica à de sua esposa. Em lugar disso, nossa per­
gunta é: o que há na experiência visual do Bill Jones aqui
cie nossa Terra que faz com que esta só possa ser satisfeita
por uma m ulher específica, previam ente identificada, e
não uma outra mulher qualquer que por acaso é idêntica
em tipo à primeira, mesmo que Bill Jones não consiga di-
ferenciá-las? Além disso, o propósito da fantasia não é su­
gerir que possa haver de fato uma Terra gêmea, e sim
lembrar-nos de que, em nossa própria Terra, temos con­
teúdos Intencionais com condições de satisfação particula­
res e não gerais. Repetindo, a pergunta é: de que m odo a
particularidade se introduziu no conteúdo Intencional?
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 89

O problem a da particularidade se manifesta em uma


variedade de lugares na filosofia da mente" e na filosofia
da linguagem. E tem uma solução atualm ente em voga,
mas, na verdade, inadequada. Segundo essa “solução”, a
diferença entre Bill Jones e o Bill Jones gêm eo é que, no
caso de Bill Jones, a experiência é efetivamente causada
por Sally e, no caso do Bill Jones gêm eo, é causada pela
Sally gêmea. Se a experiência visual de Bill Jones é efeti­
vam ente causada p or Sally, ele está vendo Sally e não a
estaria vendo se ela não estivesse causando sua experiên­
cia visual. Mas essa suposta solução é incapaz de respon­
der à pergunta de como é que tal fato se introduziu no
conteúdo Intencional. É claro que Bill Jones está vendo
apenas Sally se ela é a causa de sua experiência visual, e
faz parte do conteúdo Intencional desta que ela deva ser
causada por Sally para poder ser satisfeita, mas o que há
exatam ente nessa experiência visual que exige a presen­
ça cie Sally e não de alguém de um tipo idêntico ao seu?
A solução surge do ponto de vista de uma terceira pes­
soa. É uma solução do problem a de com o nós, observa­
dores, podem os distinguir qual das duas ele está real­
mente vendo. Mas o problem a que propus é um proble­
ma interno de primeira pessoa. O que há nessa experiên­
cia que exige ser satisfeita pela presença de Sally e não
apenas por qualquer m ulher com determ inadas caracte­
rísticas, idênticas às de Sally? O problem a assume a m es­
ma forma na teoria da referência e na da percepção, e a
teoria causai da referência é uma resposta tão inadequa­
da em um caso quanto a da teoria causai da percepção o
é no outro. A forma assumida pelo problem a é: “O que
há na Intencionalidade de Bill Jones que faz com que, ao
dizer ‘Sally’, esteja se referindo a Sally e não à ‘Sally gê­
m ea?” A resposta causal na terceira pessoa diz que ele se
refere a Sally e não à Sally gêm ea porque a primeira e
90 INTENCIONALIDADE

não a segunda está em determ inadas relações causais


com o enunciado de Jones. Mas essa resposta simples­
mente evita a pergunta acerca da Intencionalidade de Jo­
nes. Haverá, com certeza, casos em que ele se refere a
Sally sem o saber e casos em que ele vê Sally sem o sa­
ber, casos em que descrições verdadeiras de terceira pes­
soa não correspondem à Intencionalidade dele. Mas tais
casos sem pre dependem da _existência de uma Intencio­
nalidade de primeira pessoa que fixe as condições inter­
nas de satisfação e nenhum a resposta causal à nossa per­
gunta poderá jamais ser adequada enquanto não explicar
de que m odo a causação faz parte da Intencionalidade,
de maneira tal a determ inar que um objeto particular faz
parte das condições de satisfação. A pergunta, em resu­
mo, não é “Em que condições ele de fato vê Sally, saben-
do-o ou não?”, mas “Em que condições ele próprio consi­
dera estar vendo que Sally está diante dele?”. E, do m es­
mo modo, a pergunta para a referência não é “Em que
condições ele se refere a Sally, sabendo-o ou não?”, mas
“Em que condições ele tem a intenção de referir-se a
Sally ao pronunciar ‘Sally’?”.
Creio que um a razão, talvez inconsciente, pela qual
os teóricos causais não dão um a resposta à pergunta
acerca da Intencionalidade, e respondem a uma pergunta
diferente, é não terem esperanças de encontrar uma solu­
ção Intencional de primeira pessoa para o problem a da
particularidade. Q uando se pensa no conteúdo Intencio­
nal unicamente com base no m odelo da concepção de
Sinn por Frege, parece que qualquer quantidade de obje­
tos possíveis poderia satisfazer Sinn e nada no conteúdo
Intencional poderia determinar que só pudesse ser satis­
feito por um objeto particular. G areth Evans12 imagina
um caso em que um hom em conhece duas gêmeas idên­
ticas e está apaixonado por um a delas. Segundo Evans,
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 91

porém, nada existe na mente desse hom em que direcio­


ne seu amor para uma e não para outra. Cita, ratificando-a,
a alegação, atribuída a W ittgenstein, de que se Deus
olhasse para dentro do hom em não conseguiria distinguir
qual gêm ea ele tem em mente. Uma vez que não há res­
posta á pergunta “O que há no hom em que faz com que <
ele efetivamente queira uma e não outra?”, a solução de- *
ve vir do ponto de vista da terceira pessoa, ou ponto de ®-
vista externo. Como diz Putnam, o m undo toma conta. O
a *
Mas essa solução é ineficaz. Q ualquer teoria da Intencio- *
nalidade tem de dar conta do fato de que norm alm ente <j Z
nossos conteúdos Intencionais estão direcionados para *
objetos particulares. O que se pede é uma caracterização 3
xi <
do conteúdo Intencional que mostre de que m odo este u- O
pode ser satisfeito por um, e um único, objeto previa- w *-
m ente identificado. * ~
Do ponto de vista histórico, creio que os dois erros ^ © j
que têm im pedido que os filósofos encontrem a solução a ®
para este problem a são, em primeiro lugar, a suposição >
de que cada conteúdo Intencional é uma unidade isolada Z
a determ inar suas condições de satisfação independente­
m ente de quaisquer capacidades nào-representacionais;
em segundo lugar, a suposição de que a causação é sem ­
pre uma relação nâo-Intencional, ou seja, é sem pre uma
relação natural entre objetos e acontecim entos do m un­
do. Dadas essas duas suposições, o problem a torna-se in­
solúvel. Os teóricos causais vêem, corretamente, que ele
não pode ser resolvido sem a noção de causação, mas,
mesmo assim, m antêm as duas suposições. Fazem as su­
posições atomísticas habituais acerca da Intencionalidade
e depois, para poderem conferir alguma solidez à sua
concepção hum eana cia causalidade, adotam o ponto de
vista da terceira pessoa. Fenom enólogos com o Husserl,
por outro lado, viram a conectibilidade das experiências
92 INTENCIONALIDADE

e a importância de uma explicação em primeira pessoa,


mas foram incapazes de perceber a relevância da causali­
dade, pois sua concepção do caráter abstrato dos conteú­
dos Intencionais levou-os a adm itir tacitam ente q u e a
causação é sem pre um a relação natural, nâo-Intencional.
Qual seria, então, a solução para o problema da par­
ticularidade? Para reunir as ferramentas necessárias para
responder a essa pergunta, precisam os lembrar-nos do
seguinte: em primeiro lugar, a Rede e o Background afe­
tam as condições de satisfação do estado Intencional; em
segundo lugar, a causação Intencional é sempre interna
às condições de satisfação dos estados Intencionais; e,
por último, os agentes estão em relações indexicais com
seus próprios estados Intencionais, suas Redes e seus Pa­
nos de Fundo.
Rede e Background: na concepção de Intencionalida­
de e de causação Intencional apresentada neste livro, os
conteúdos Intencionais não determinam suas condições de
satisfação isoladamente. Em lugar disso, os conteúdos In­
tencionais em geral e as experiências em particular estão
internamente relacionados de maneira holística a outros
conteúdos Intencionais (a Rede) e a capacidades não-re-
presentacionais (o Background). Estão internamente rela­
cionados no sentido dc que não poderiam ter as condi­
ções de satisfação que têm a não ser em relação ao resto
da Rede e do Background. Tal concepção holística impli­
ca a negação dos pressupostos atom ísticos acima m en­
cionados.
Causação Intencional: Já sugerimos que a causação
figura, caracteristicamente, na determinação das condições
de satisfação dos estados Intencionais quando ela é cau-
saçâo Intencional, ou seja, quando a relação causal ocor­
re como parte do conteúdo Intencional. Q uando vincula­
mos esse ponto à Rede e ao Background, podem os ver
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 93

que, para que este seja parte das condições de satisfação


do estado Intencional de Bill Jones, o mesmo deve ser
causado por Sally e não pela Sally gêmea, Bill Jones deve
ter alguma identificação prévia de Sally como Sally e sua
experiência presente deve fazer referência a essa identifi­
cação prévia na determ inação das condições causais de
satisfação.
Indexicalidade: Do ponto de vista de Bill Jones, cada
uma de suas experiências não é apenas uma experiência
que ocorre com alguém; mas é, antes, a sua experiência. A
Rede de estados Intencionais da qual ele tem consciência
é a sua Rede, e as capacidades de Background de que ele
faz uso estão relacionados ao seu Background. Por mais
que a experiência de Bill Jones seja qualitativamente se­
melhante à do Bill Jones gêm eo e por mais que toda a
sua Rede de estados Intencionais seja de mesmo tipo que
a do Bill Jones gêmeo, não há dúvida, do ponto cle vista
do primeiro, de que se trata cle suas experiências, suas
crenças, suas lembranças, suas propensões; em resumo,
sua Rede e seu Background.
Em seguida, precisam os estabelecer claram ente cle
que modo essas características do sistema de Intencionali­
dade se combinam para resolver o problema da particula­
ridade. O problema é mostrar como o Background e a Re­
de se introduzem no conteúdo Intencional para determinar
que as condições causais de satisfação sejam particulares e
não gerais. Para simplificar a exposição, consideraremos
dois casos, um em que ignoramos o Background e nos
concentram os na operação da Rede e depois outro em
que consideramos a operação do Background.
Suponham os que todo o conhecim ento que Bill Jo­
nes tem de Sally venha do fato de ele ter tido um a se­
qüência de experiências, x, y, z..., visuais e de outros tipos,
cle Sally no passado. Essas experiências são experiências
94 INTENCIONALIDADE

passadas, mas ele ainda tem lem branças delas, a, b, c...,


no presente. A seqüência de lembranças a, b, c... está in­
ternam ente relacionada à seqüência experiencial x, y, z...
Se, por exemplo, a é uma lembrança de x, parte das con­
dições de satisfação de a é que deve ter sido causada por
x, assim como faz parte das condições de satisfação de x
que, se for uma percepção de Sally, deve ter sido causa­
da por Sally. Pela transitividade da causação Intencional,
portanto, faz parte das concfições de satisfação da lem ­
brança o dever ter sido causada por Sally. Além disso, as
seqüências devem estar internam ente relacionadas com o
seqüências, pois, na medida em que cada uma dessas ex­
periências perceptivas seja da mesma m ulher e cada lem ­
brança seja a lem brança de um a experiência da m esma
mulher, as condições de satisfação de alguns elem entos
da seqüência farão referência a outros elementos da m es­
ma seqüência. As condições de satisfação de cada ex p e­
riência e cada lem brança após o encontro inicial com
Sally não são apenas que a experiência seja satisfeita por
uma mulher que satisfaça a descrição de Sally em termos
gerais, mas tam bém que seja causada pela mesma m ulher
que causou as outras lembranças e experiências de Bill
Jones. Essa é um a das chaves para a com preensão de co­
mo a Intencionalidade pode ser dirigida para objetos par­
ticulares: pode ser intrínseco a um a representação que
esta faça referência a outras representações na Rede.
Estamos supondo que Bill Jones tenha uma experiên­
cia cuja forma é

1. Exp vis (Sally está presente e sua presença e caracterís­


ticas causam esla experiência visual)

enquanto diverso de
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 95

2. Exp vis (uma mulher com características idênticas às de


Sally está presente e sua presença e características cau­
sam esta experiência visual).

A relação da Rede com o conteúdo Intencional presente,


do ponto de vista de Bill Jones, é

3. Tive no passado uma série de experiências x, y, z...


causada pela presença e pelas características de uma
mulher que fiquei conhecendo como Sally e tenho no
presente uma série de lembranças dessas experiências
a, b, c... que são tais que a minha atual experiência vi­
sual é:
Exp vis (uma mulher com características idênticas às de
Sally está diante de mim e suas presença e característi­
cas causam esta experiência visual e essa mulher é
idêntica à mulher cuja presença e características causa­
ram x, y, z..., que, por sua vez, causaram a, b, c...).

Mas do ponto de vista de Bill Jones - o único ponto


de vista que interessa para esta discussão - o conteúdo
de 3 é tudo o que interessa no conteúdo de 1. Nesse
exemplo, tudo o que Bill Jones tem de Sally no tocante à
Intencionalidade é um a experiência presente ligada a
uma série de lembranças presentes de experiências pas­
sadas. Mas isso é tudo o que ele necessita para garantir
que as condições de satisfação exijam Sally e não alguém
de mesmo tipo dela.
Para com preender a inter-relação entre os elem entos
da Rede, perguntem o-nos onde residiria o erro, do ponto
de vista de Bill Jones, se Sally fosse trocada pela Sally gê­
mea? Em termos muito simples, o erro residiria no fato
cle a mulher que ele veria não ser idêntica a Sally. Do
ponto de vista de Bill Jones, porém, isso consiste apenas
no fato de ela não satisfazer a última cláusula principal
96 INTENCIONALIDADE

na especificação do conteúdo Intencional cle 3- Suponha­


mos que a troca tenha ocorrido no m om ento do nasci­
mento, vinte anos antes que Bill Jones houvesse jamais
visto ou ouvido falar de Sally; neste caso, o conteúdo In­
tencional de Bill Jones é satisfeito. Do ponto de vista cia
Intencionalidade cie outrem, Bill Jones poderia não estar
vendo a verdadeira Sally, mas, do ponto de vista de Bill
Jones, ele está vendo exatamente a pessoa que considera
estar vendo, ou seja, seu conteúdo Intencional determina
essas condições de satisfação e é de fato satisfeito.
Além disso, o fato de o Bill Jones gêm eo estar tendo
ao mesmo tem po uma experiência idêntica em tipo à de
Bill Jones não é nenhum im pedimento a que a experiên­
cia deste seja dirigida a Sally e não à Sally gêmea, pois os
elementos de sua Rede estão indexicalmente relacionados
a ele - são as experiências e lembranças dele.
É claro que não estamos dizendo que Bill Jones d e­
ve ser capaz de decifrar tudo isso por si mesmo. Sua ma­
neira de descrever pré-teoricam ente a situação poderia
ser: “Estou agora vendo a m ulher que sem pre conheci
como Sally”. O que estamos tentando explicar é que tan­
to Bill Jones com o o Bill Jones gêm eo poderiam emitir ao
mesmo tem po a mesma sentença, ambos têm experiências
qualitativamente idênticas e, no entanto, querem signifi­
car algo diferente em cada caso - cada um deles está ten­
do uma experiência que, apesar de ser “qualitativamente
idêntica” à outra, tem um conteúdo diferente e diferentes
condições de satisfação. (Mais adiante verem os de que
maneira esse aparato é útil para um a crítica da teoria
causal dos nomes.)
Considerarem os a seguir um caso da operação do
Backgrouncl na determ inação de casos particulares de re­
conhecim ento perceptivo. Normalmente, a capacidade de
reconhecer pessoas, objetos etc. não requer uma compa-
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 97

ração do objeto com representações preexistentes, sejam


estas imagens, crenças ou outro tipo de -“representações
mentais”. Simplesmente reconhecem -se as pessoas e obje­
tos. Ora, suponham os que Bill Jones reconheça um ho­
mem que vê na rua como Bernarcl Baxter. Ele não precisa
ter lembrança alguma, consciente ou não, de quando ou *
como conheceu Bernard Baxter e não precisa ter repre-
sentaçâo alguma deste com a qual com parar o hom em 3 ^
que é o objeto de seu atual julgamento visual. Ele sim- ^ ç*
plesmente vê Bernard Baxter e sabe que aquele é Bernard Z
Baxter. Nesse caso, o Background funciona como uma ca­

Q . B L I O T ê CA <
.u* • t. I- t-kJ-
pacidade mental nào-representacional; ele tem a capaci­
dade de reconhecer Bernard Baxter, mas essa própria ca­
pacidade não contém, nem consiste de, representações.
Dado que Bill Jones reconhece Bernard Baxter e o
Bill Jones gêm eo reconhece o Bernarcl Baxter gêmeo, e
ambos têm experiências qualitativamente idênticas, o que

UNI V t
há em uma experiência que requer Bernard Baxter e, na
outra, que requer o Bernard Baxter gêm eo como condi­
ções de satisfação? Intuitivamente, sentimos nesse caso,
tal como no das Sallys gêmeas, que Bill Jones reconhece
um homem com o o seu Bernard Baxter e que o Bill Jo­
nes gêm eo reconhece outro hom em com o o seu Bernard
Baxter. Mas com o podem os explicar detalhadam ente essa
intuição em um caso em que não haja representações
prévias às quais o conteúdo Intencional possa fazer refe­
rência? Cada qual tem uma experiência cujo conteúdo é

1. Exp vis (um homem que reconheço como Bernard


Baxter está diante de mim e sua presença e característi­
cas causam esta experiência visual)

enquanto diverso de
98 INTENCIONALIDADE

2. Exp vis (um homem com aquilo que reconheço como


características idênticas às de Baxter está diante de
mim e sua presença e características causam esta expe­
riência visual).

Do ponto cie vista de Bill Jones, o conteúdo de 1 é o


mesmo que

3. Tenho uma capacidade* de reconhecer um certo ho­


mem h como Bernard Baxter que é tal que:
Exp vis (um homem com aquilo que reconheço como
características idênticas às de Baxter está diante de
mim e sua presença e características causam esta expe­
riência visual e esse homem é idêntico a ti).

Tanto Bill Jones com o o Bill Jones gêm eo têm experiên­


cias visuais qualitativam ente idênticas. A diferença nos
dois casos é que a experiência de Bill Jones faz referên­
cia às suas próprias capacidades de Background e a do
Bill Jones gêm eo faz referência às dele. Da mesma forma
como a indexicalidade da Rede solucionou o problema
da Sally gêmea, a indexicalidade do Background solucio­
na o problem a do Bernard Baxter gêmeo. Via de regra, a
capacidade recognitiva será causada pelo objeto do reco­
nhecimento, mas não precisamente. É fácil imaginar ca­
sos em que se poderia aprender a reconhecer um objeto
sem que essa capacidade seja causada por ele.
A titulo de simplificação, considerei separadam ente
as operações da Rede e do Background, mas é claro que,
na vida real, ambas operam em conjunto; com efeito, não
há nenhum a linha demarcatória nítida entre elas.
Até este ponto, o esforço tem sido no sentido de ex­
plicar de que m odo pessoas diferentes com experiências
visuais de idêntico tipo podem ter diferentes condições de
/I INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 99

satisfação, e com o m esm o essas condições podem ser


particulares e não gerais. No entanto, há uma pergunta
paralela, e até agora não respondida, sobre como pessoas
diferentes com experiências diferentes podem ter as m es­
mas condições de satisfação. Poderíamos formular a per­
gunta na forma de uma objeção: “Toda essa exposição le- <
va a uma espécie de solipsismo. Se a marca de identidade <
de cada experiência visual figura em suas próprias condi­
ções de satisfação, é impossível que diferentes pessoas
cheguem a ter experiências com as mesmas condições de
satisfação, mas uma coisa assim deve ser possível, uma
vez que vemos, efetivamente, as mesmas coisas que o u ­
tras pessoas e, ainda por cima, consideramos estar vendo
as mesmas coisas. Observe que, em sua exposição, o re­
quisito de publicidade não é garantido pelo mero fato de
o mesmo estado de coisas ocasionar tanto a sua experiên­
cia visual com o a minha, uma vez que a pergunta é: Co­
mo pode esse fato fazer parte da experiência visual?”
Existe verdadeiramente um elem ento relativo à pers­
pectiva, impossível de eliminar na visão e na percepção
em geral. Percebo o m undo a partir da localização de
meu corpo no tem po e no espaço, e você, da localização
do seu. Mas não há nada de misterioso ou de metafísico
nisso. Trata-se apenas cla conseqüência do fato que meu
cérebro e o resto do meu aparato perceptivo estarem si­
tuados em meu corpo e os seus cérebro e aparato p er­
ceptivo estarem situados em seu corpo. Mas isso não nos
im pede de compartilhar experiências visuais e de outros
tipos. Suponhamos, por exemplo, que você e eu esteja­
mos olhando para um mesmo objeto, talvez uma pintura,
e discutindo-o. Ora, do meu ponto de vista, não estou
apenas observando um a pintura, mas observo-a com o
parte de nossa observação. E o aspecto compartilhado da
experiência envolve mais que minha simples crença cie que
100 INTENCIONALIDADE

você e eu estamos vendo a mesma coisa, mas o próprio


ver deve fazer referência a essa crença, dado que, se ela
for falsa, algo no conteúdo de minha experiência não será
satisfeito: não estarei vendo o que considero estar vendo.
Há um a variedade nos tipos de experiências com ­
partilhadas e não tenho certeza de como, nem mesmo se,
as várias com plexidades podem ser representadas na no­
tação que estivemos usando até agora. Um tipo de caso
bem simples seria aquele em" que o conteúdo de minha
experiência visual faz referência ao conteúdo de um a
crença acerca do que você está vendo. Um exem plo,
enunciado em inglês comum, seria um caso em que “I
believe there is a particular painting that your are seeing
and I am seeing it too” (“Acredito haver um a pintura par­
ticular que você está vendo e eu a estou vendo tam ­
bém ”). Neste caso, o pronom e “it” (“a ”), no escopo de
“see” (“ver”), está no escopo do quantificador, que, por
sua vez, está no escopo de “believe” (“acreditar”), ainda
que “s e e ” (“v e r”) não esteja no e sc o p o de “b e lie v e ”
(“acreditar”). A sentença não diz que acredito que a es­
tou vendo, diz que a vejo. Usando colchetes para o esco­
po dos verbos Intencionais e parênteses para os quantifi-
cadores e perm itindo que os dois se entrecruzem, temos

Bei 1(E! x) (you are seeing x] &


Vis exp [(px and the fact that (px is causing this Vis exp])

Cren 1(E! x) (você está vendo x] &


Exp vis [(px e. o fato de que (px está causando esta Exp
vis])

O fato de você e eu estarmos tendo um a experiência


visual compartilhada do objeto não requer que o vejamos
sob o mesmo aspecto. Portanto, na formulação acima, eu
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 101

o vejo sob o aspecto (p, presum o que você vê o m esm o


objeto, mas não presum o que você o veja "sob (p.

VII

Há uma argumentação cética contra a teoria cia per­


cepção apresentada neste capítulo que prometi antes dis­
cutir. Eis a argumentação: “Aparentemente, a versão cau­
sal do realismo ingênuo que você está expondo leva ao
ceticismo acerca da possibilidade cle jamais se conhecer
o m undo real com base nas suas percepções, pois não
existe nenhum ponto de vista neutro do qual examinar
as relações entre as suas experiências e seus supostos
objetos Intencionais (ou condições de satisfação) para
verificar se estes realmente causam as primeiras. Na sua
exposição, só se pode ver o carro se este causar sua ex­
periência visual, mas como se pode sequer saber ou des­
cobrir se o carro causa a sua experiência visual? Se você
tentar descobrir, apenas poderá ter outras experiências,
visuais ou outras, e exatamente o mesmo problema surgi­
rá no caso destas. Aparentemente, o máximo que se p o ­
deria jamais obter seria alguma coerência interna ao siste­
ma de suas experiências, mas não existe nenhum meio de
sair desse sistema para descobrir se há, cle fato, objetos
do outro lado dele. O mesmo tipo cle incognoscibilidade
do m undo real que você acusou a teoria representativa de
implicar tam bém é implicada por sua teoria, pois, a m e­
nos que você possa saber que os objetos causam a sua
experiência, não haverá como saber que você percebe ob­
jetos; e, na sua interpretação, é impossível saber que os
objetos causam as experiências porque não é possível ob­
servar os dois termos independentem ente para saber se
há um a relação causal entre eles. Cada vez que você
102 INTENCIONALIDADE

acredita estar observando um objeto, deve pressupor a


própria relação causal que está tentando verificar”.
Para verificarmos o que há de errado (e o que há de
certo) com essa objeção, terem os de desmembrá-la em
uma série de etapas.
1. Para que ocorra realm ente que eu esteja vendo o
carro, minhas experiências visuais devem ser causadas
pelo carro.
2. Portanto, para que eu realm ente saiba que há um
carro presente, com base em minhas experiências visuais,
devo saber que o carro causou as experiências visuais.
3. Mas a única maneira pela qual eu poderia co n h e­
cer uma tal alegação causal seria mediante uma inferên­
cia causal; infiro, da presença e da natureza das experiên­
cias com o efeito, a existência e as características do carro
com o causa.
4. Entretanto, uma inferência causal com o esta nun­
ca poderia ser justificada, pois não hã meios de verificá-
la, uma vez que o único acesso que tenho ao carro é
através de outras experiências, tanto visuais com o de ou ­
tros tipos. Não posso verificar a inferência da experiência
visual para o objeto material do m esm o m odo com o pos­
so verificar a inferência causal do vapor liberado para a
água fervènte na chaleira. Portanto, não posso ter justifi­
cativa alguma para aceitar a inferência.
5. Portanto, jamais poderei saber realm ente que o
carro causou minha experiência.
6. Com base em 2, portanto, jamais posso saber real­
mente que há um carro presente com base em minhas
experiências visuais.
Usando abreviações óbvias, a forma do argumento é
a seguinte:
1. Ver X-*- X causou E.V.
2. Saber ver X com base na E.V. -► Saber que X cau­
sou E.V.
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 103

3. Saber que X causou E.V. -* Inferência causal váli­


da de E.V. para X
4. Inferência causal válida ->• verificação da inferên­
cia, mas ~ verificação da inferência, ~ inferência
causal válida.
5. ~ saber que X causou E.V.
6 . ~ saber ver X, com base em E.V. J
Os passos em que esta argum entação tropeça são os de<
números 2 e 3- Não infiro (afirmo, ou descubro) que o ^

BiBLiO t elc a c e m t r a v .
carro está causando a minha experiência visual. Sim ples-o
mente vejo o carro. Do fato de que a experiência visual j
deve ser causada pelo carro para que eu possa vê-lo (eta- ^
pa 1) não decorre que a experiência visual seja a “b a se” ^
ou a com provação de meu conhecim ento de que vejo o ^
carro (etapa 2) nem que haja alguma inferência causal en ­
volvida (etapa 3 ), da experiência visual com o efeito para
o objeto material com o causa. Não infiro que o carro é a q
causa de minha experiência visual mais do que infiro que 7
é amarelo. Ao ver o carro, posso ver que é amarelo e te- oi
nho uma experiência, parte de cujo conteúdo é ser causa- —
da pelo carro. O conhecim ento de que o carro causou mi- 3
nha experiência visual deriva do conhecim ento de que o
vejo, e não o contrário. Dado que não infiro que há um
carro presente, mas simplesmente o vejo, e dado que não
infiro que o carro causou minha experiência visual, mas
esta é, antes, parte do conteúdo da experiência causada
pelo carro, não é correto dizer que a experiência visual é
a “base”, no sentido de comprovação ou fundamento para
se saber que há um carro presente. A “base” é, antes, o
fato de que eu vejo o carro e o meu ato de ver o carro
não tem nenhum a base prévia nesse sentido. Eu apenas
vejo. Um dos com ponentes do evento de ver o carro é a
experiência visual, mas não se faz uma inferência causal
da experiência visual para a existência do carro.
104 INTENCIONALIDADE

Em minha interpretação do caráter causal auto-refe-


rente do conteúdo Intencional da percepção, a causação
Intencional atravessa a distinção que existe entre o co n ­
teúdo Intencional e o mundo natural que contém os o b­
jetos e estados de coisas que satisfazem esse conteúdo
Intencional, pois este tanto representa com o é um termo
da relação causal e, contudo, a causação é parte do mun­
do natural. A distinção entre a causação e as demais co n ­
dições de satisfação é a seguinte: Se tenho uma experiên­
cia visual de um objeto amarelo e essa experiência é sa­
tisfeita, em b o ra tal e x p e riê n cia n ão seja literalm en te
amarela, ela é literalm ente causada. Além disso, é ex p e­
rimentada como causada, seja ou não satisfeita; mas não
é experim entada como amarela, e sim com o de alguma
coisa amarela.
A objeção cética só seria válida se eu não pudesse
experim entar diretam ente o im pacto causal dos objetos
em mim nas p ercep ções que tenho deles, mas tivesse de
certificar-me da presença do objeto, com o causa, através
de algum outro processo de inferência e validação da in­
ferência. Em minha abordagem, a experiência visual não
representa a relação causal com o algo que existe inde­
pendentem ente da experiência, mas, antes, parte desta é
a experiência de ser causada. Ora, o leitor pode conside­
rar, justificadamente, que essa n oção de causação não se
adapta confortavelm ente à sua teoria hum eana da causa­
ção, e terá nisso toda a razão, sendo a teoria hum eana
precisam ente o qu e está send o desafiado. Além disso,
devo ao leitor uma explicação da minha idéia de causa­
ção, idéia que suponho ser de fato a que todos temos; tal
explicação terá lugar no capítulo 4.
O que acredito ser inteiramente correto na o b jeção
cética é que, uma vez tratada a experiência enquanto evi­
dência com base na qual se infere a existência do objeto,
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 105

o ceticism o torna-se inevitável. A inferência careceria cie


toda justificativa. E é nesse ponto que a metáfora do inte­
rior e do exterior nos prepara uma armadilha, pois leva-
nos a pensar que estam os tratando de dois fenôm enos
estanques, unia experiência “interior”, acerca da qual p o ­
demos ter uma esp écie de certeza cartesiana, e uma coisa
“exterior” para a qual o interior deve prover a base, evi­ a
<
dência ou fundamento. O que venho propondo neste ca- £.
pítulo é uma versão não-inferencial, ou seja, realista ingê­ O J<
ry
nua, da teoria causal cla percepção, segundo a qual não
j K
estamos lidando com duas coisas, uma das quais é a evi­ 2
dência cla outra, mas que percebem os uma única coisa e, r ui
u O
ao percebê-la, temos uma experiência perceptiva. O
a 4
Obviam ente, dizer que parte da experiência é a ex ­ u» O, 1
periência de ser causado não equivale a dizer que ela se­
* d.-v i
ja, em nenhum sentido, autovalidativa. Tal com o assinala
Ca &.J ii
o cético clássico, eu poderia estar tendo exatam ente essa ■J: >
experiência e, m esmo assim, ela poderia não ser causada 0
■JJ
por seu objeto Intencional; poderia ser, com o dizem, uma >.
alucinação. E, assim, o cético clássico argumentaria que
nos encontram os na conhecida situação em que, qualquer
que seja nosso fundamento para o conhecim ento, é co e­
rente supor que tal fundamento poderia existir e, todavia,
a proposição que alegam os co n h ecer poderia ser falsa.
Do enunciado cle que a experiência ocorre não se segue
que o objeto existe. Mais uma vez, porém, este argumen­
to é uma fusão cle cluas teses totalmente diferentes.
Cl) Eu poderia estar tendo uma experiência “qualita­
tivamente indistingüível” desta e, m esm o assim,
poderia não haver um carro presente.
(2) Para se saber, nessa situação perceptiva, que há
um carro presente, tenho de inferir a sua existência
através de uma inferência causal desta experiência.
106 INTENCIONALIDADE

A tese (1) é totalm ente verdadeira e, com efeito, é uma


conseqüência trivial de minha explicação da Intencionali­
dade. O estado Intencional determina o que conta com o
suas condições de satisfação, mas é possível que esse es­
tado não seja satisfeito. Mas (2) não se segue de (1) e
busquei provar que (2) é falsa.
Há no entanto mais uma co n seq ü ên cia da análise
que requer m enção especial: os conceitos que demarcam
as características reais do mundo são conceitos causais.
O v erm elh o, por ex em p lo , é aqu ela característica do
mundo que faz com que as coisas pareçam (e tam bém
passem p elas provas de ser), sistem aticam ente, e nas
condições apropriadas, vermelhas. E o mesmo acontece
com as cham adas propriedades fundamentais. As coisas
quadradas são aquelas capazes de causar certos tipos de
efeitos sobre os nossos sentidos e aparatos de medição. E
essa característica causal é tam bém característica das pro­
priedades do m undo não im ediatam ente acessíveis aos
sentidos, tais com o o ultravioleta e o infravermelho, pois,
a m enos que fossem capazes de ter alguns efeitos - por
exem plo em nossos aparatos de m edição ou sobre outras
coisas que por sua vez afetassem os nossos aparatos de
medição, que, por sua vez, afetassem os nossos sentidos
- não poderíam os ter conhecim ento algum da existência
delas. Ora, isso implica que nossos conceitos em píricos
para a descrição de características do mundo são aplica­
dos em relação à nossa cap acidad e de receb er inputs
causais dessas m esmas características; e isso, por sua vez,
parece levar a uma forma de ceticism o: não podem os sa­
ber com o o mundo de fato é, pois só podem os saber co ­
mo é em relação à nossa própria constituição em pírica e
às formas em que exerce um im pacto causal sobre essa
constituição. Mas esse ceticism o não procede; o que pro­
cede é, antes, que podem os saber com o o mundo é, mas
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 107

a nossa própria noção de com o ele é está relacionada a


nossa constituição e com as nossas transações causais
com ele.
Talvez essa forma de ceticism o seja um tanto p areci­
da ao ceticism o de Kant acerca da possibilidade de co ­
nhecim ento das coisas-em -si, em oposição à mera apa­
rência das coisas-em -si. Acredito que a resposta a am bos
esteja em deslocar o eixo da questão para o ponto em
que se possa ver que a própria no ção cle com o as coisas
são em si m esm as é relativa à nossa capacidade de rece­
ber os inputs causais de um m undo que, em sua maior
extensão, existe ind epend entem ente do m odo co m o o
representam os e que, no entanto, esse relativismo causal
é compatível com o mais ingênuo dos realismos ingênuos.
Meu objetivo, nesta seção, não foi o cle responder ao ce ­
ticismo em geral, mas responder às versões deste esp eci­
ficam ente dirigidas às teorias causais da percepção.

VIII

Todavia, nossa abordagem cla p ercepção visual pare­


ce levar a um resultado paradoxal. Se as condições de sa­
tisfação da experiência visual que se tem quando se vê
uma construção com o uma casa com pleta são distintas
das que se tem quando se a vê m eram ente com o a facha­
da de uma casa, e se essas diferentes condições de satis­
fação são determinadas por experiências visuais diferen­
tes, com eça a parecer que quase toda qualidade pode ser
a condição de satisfação de uma experiência visual. Pois
não dizemos apenas “Parece uma casa”, enquanto dife­
rente de “Parece a fachada de uma casa”, mas tam bém
dizemos coisas com o “Ele parece em briagado” e “Ela pa­
rece inteligente”, e, em cada caso, a sentença é em prega-
108 INTENCIONALIDADE

da de m odo bastante literal. Mas com o é possível que a


experiência puram ente visual possa conter, com o condi­
ções de satisfação, características tais com o ser inteligente
ou estar embriagado? Ou então, para colocar o problem a
de m odo mais geral: se a Intencionalidade da experiência
visual tem as características que afirmei, isto é, se envol­
ve uma apresentação causalm ente auto-referente, essas
próprias características pareceriam im por limites muito rí­
gidos àquilo qu e pode figurar com o as condições de sa ­
tisfação de experiências visuais. Pois, aparentem ente, isso
teria com o conseqüência que apenas os objetos e estados
de coisas capazes de causar determ inados tipos de ex p e­
riências visuais podem ser parte das condições de satisfa­
ção destas. Em minha abordagem, porém , os objetos, es­
tados de coisas e características em questão devem incluir
não apenas características tais com o ser vermelho ou ser
quadrado, mas tam bém ser uma casa, estar em briagado e
ser inteligente. É é difícil perceber de que maneira seria
sequer possível que essas características figurassem cau­
salmente na produção de experiências visuais. Se a inteli­
gência deve figurar com o condição de satisfação da ex p e­
riência visual, a inteligência, em minha abordagem, deve
ser capaz de causar experiências visuais. Mas ela com cer­
teza não é, em nenhum sentido ordinário, capaz de cau­
sar experiências visuais desse m odo e, m esm o assim, di­
zemos coisas com o “Ela parece inteligente” e dizemo-las
com tanta literalidade quanto em “parece verm elho”.
Creio que a saída para esse im passe está em distin­
guir entre as propriedades cuja presença podem os aferir
única ou fundam entalm ente através da visão e aquelas
em que são necessários outros testes. Dizem os de fato, li­
teralmente, “Ela parece inteligente” e “Ele parece em bria­
gado”, mas não podem os descobrir se ela é realm ente in­
teligente ou se ele está de fato em briagado apenas atra-
A INTENCIONALIDADE DA PERCEPÇÃO 109

vés da visão. É preciso realizar outros tipos de testes. A


relação entre “Ela parece inteligente” e “Ela é inteligente”
é bem diferente da que hã entre “Parece verm elho” e “É
verm elho”. Tal ocorre porque, n o caso do verm elho, as
condições visuais de satisfação são relatadas em ambas
as em issões, mas, no caso da inteligência, as condições gr
de satisfação já não são mais puram ente visuais. Ou, para £
o dizer de outro modo, é possível que alguém pareça in- ^
teligente para qualquer observador normal em cond ições o j*
normais e, ainda assim, não ser inteligente, em um senti- j h
do em que não é possível que algo pareça vermelho para t u.»
observadores normais em condições normais e não seja
vermelho. Parecer inteligente é independente de ser inte­
ligente de um m odo que parecer vermelho é não inde­
pendente de ser vermelho.
Portanto, é possível que as condições de satisfação
de uma experiência visual sejam a de que alguém seja in­
teligente, mas disso não decorre que a inteligência deva
ser capaz de causar certos tipos de experiências visuais.
Antes, em um caso assim, as características visuais em
questão são a concatenação de características que consti­
tui o parecer inteligente e parecer inteligente é, com efei­
to, o nom e de uma característica visual possível. D e m o­
do mais geral, a sentença na forma “x parece cp” relata a
presença de uma característica puramente visual na m e­
dida em que “x é realm ente (p” possa ser estabelecid o
por uma averiguação visual. Até onde “x é realm ente cp”
não puder ser estabelecido por averiguação visual, (p não
será, nessa medida, o nom e de uma característica visual.
E a sentença na forma “x parece ç" pode, de fato, relatar
uma característica puramente visual independente de (p.
CAPÍTULO 3
INTENÇÃO E AÇÃO

K
<
9.

C fcN TR M .
K ‘-t. O
B .BU O TfcC*
UNIVF.KSID* L. £
I

No decurso de nossa discussão da Intencionalidade


de estados mentais com o a crença e o desejo, e de ev en ­
tos mentais com o as experiências visuais, desenvolvem os
um aparato conceituai bastante extenso para analisar os
problem as da Intencionalidade, aparato este que inclui as
noções de conteúdo Intencional, m odo psicológico, co n ­
dições de satisfação, direção do ajuste, auto-referenciali-
dade causal, direção de causação, Rede, Background e a
distinção entre apresentações e outros tipos de represen­
tação. A explicação da Intencionalidade em termos des­
sas noções não pretende ser redutiva, uma vez que cada
uma delas é uma n oção Intencional. Não estamos tentan­
do demonstrar que a Intencionalidade seja na verdade al­
go diverso, mas sim explicá-la em term os de uma família
cle noções, cada uma das quais é explicada independen­
temente, em geral por m eio de exem plos. Repetindo, não
há nenhum ponto de vista não-intencional do qual pos-
112 INTENCIONALIDADE
*r

samos exam inar as relações entre os estados Intencionais


e suas cond ições de satisfação. Q ualquer análise deve ter
lugar a partir, e no âmbito, do círculo de conceitos Inten­
cionais.
0 propósito deste capítulo é, com o uso desse apa­
rato, exam inar as relações entre intenções e ações. À pri­
meira vista, in ten çõ es e as açõ e s parecem en caixar-se
muito bem no sistema. Som os inclinados a dizer: Assim
com o minha crença é satisfeita sse o estado de coisas re­
presentado pelo conteúdo da crença de fato se verificar e
meu desejo é satisfeito sse o estado de coisas representa­
do pelo conteúdo do desejo vier a ocorrer, minha inten­
ção é satisfeita sse a ação representada pelo conteúdo da
intenção de fato vier a ser realizada. Se acredito que vo­
tarei em Jo n es, minha crença será verdadeira sse eu votar
em Jon es; se d esejo votar em Jo n e s, meu desejo será rea­
lizado sse eu votar em Jones; e se pretendo votar em J o ­
nes minha intenção será levada a cabo sse eu votar em
Jo n es. Além desses paralelos “sem ânticos”, há tam bém
paralelos sintáticos nas sentenças que relatam estados In­
tencionais. D eixand o de lado os problem as de tem po
verbal, a “estrutura profunda” das três sentenças que rela­
tam minha crença, meu desejo e minha intenção é, res­
pectivamente:

1 believe + I vote for Jones


(Eu acredito + eu voto em Jones)

I want + I vote for Jones


(Eu quero + eu voto em Jones)

I intencl + 1 vote for Jones


(Eu tenho a intenção + eu voto em Jones).
INTENÇÃO E AÇÃO 113

D evem os ficar profundam ente im pressionados com


a aparente justeza do ajuste entre a sintaxe e a sem ântica:
cada sentença representa um estado Intencional; cada es­
tado representa suas condições de satisfação e estas são

PAWA
representadas pela sentença “eu voto em Jo n e s”, que é
exatam ente aquela encaixada nas sentenças que repre­
sentam os estados Intencionais. As duas últimas sen ten ­

DO
ças, mas não a primeira, perm item um apagam ento de
SN igual do “eu ” repetido e uma inserção do infinitivo na
estrutura superficial, assim:

B<BL.iOT&CA-
I want to vote for Jones
(Eu quero votar em Jones)

UNlve^^iDAufc
I intend to vote for Jones.
(Eu tenho a intenção de votar em Jones.)

Além disso, a maneira pela qual a ação e a intenção se


enquadram nesta abordagem geral da Intencionalidade
permite-nos apresentar uma form ulação simples (mas pro­
visória) das relações entre as intenções e as ações: uma
ação intencional equivale sim plesm ente às condições de
satisfação de uma intenção. Desde esse ponto de vista, tu­
do quanto pode constituir a satisfação de uma intenção
pode ser uma ação intencional. Assim, por exem plo, der­
ramar cerveja não costuma ser a condição de satisfação
de uma intenção, pois as pessoas norm alm ente não derra­
mam cerveja intencionalmente; mas algo assim pode ser
uma ação intencional, pois pode ser a condição de satisfa­
ção de uma intenção.
Em sua configuração atual, a presente interpretação
resultará ineficaz, pois parece admitir um excesso de situa­
ções. Por exem plo, se eu tenho a intenção de estar p e­
sando 70 quilos até o Natal e for bem -sucedido, não se
114 INTENCIONALIDADE

poderá dizer que realizei a ação intencional de estar p e­


sando 70 quilos no Natal, nem dizer que pesar 70 quilos
no Natal possa ser uma ação intencional. O que se quer
dizer é que, se cumpri a minha intenção de estar pesan­
do 70 quilos no Natal, devo ter realizado certas ações por
meio das quais vim a pesar 70 quilos; e isso requer mais
explicações. Além disso, a interpretação nada diz acerca
das intenções gerais. Pior ainda, a interpretação parece
ter um poder explicativo míiito reduzido; o que quere­
mos saber é: o que é uma intenção? O que é uma ação?
E qual o caráter da relação entre elas, que se descreve di­
zendo que uma é condição de satisfação da outra? Ape­
sar disso, acredito que essa interpretação provisória está
no rumo certo e voltarei a ela posteriorm ente.
Uma de suas vantagens, a propósito, é corresponder
à nossa intuição da existência de uma íntima ligação en ­
tre as ações intencionais e aquilo que se pode determinar
que as pessoas façam. Uma vez que, quando se dá uma
ordem, ordena-se a alguém que realize uma ação intencio­
nal, apenas é possível ordenar às pessoas que façam co i­
sas que possam fazer intencionalm ente e, com o efeito,
não faz o m enor sentido dizer “O rdeno-lhe que realize A
nào-intencionalm ente”. (Ao contrário de, digamos, “O rde­
no-lhe que se coloque em uma situação em que seja pro­
vável que realize A não-intencionalm ente”.) Um bom tes­
te aproximativo para se saber se um verbo ou frase de­
nota ou não um tipo de ação é verificar se o m esm o p o ­
de ou não ocorrer no imperativo. “Caminhar”, “correr” e
“com er” aceitam o imperativo, mas “acreditar”, “preten­
der” e “querer” não designam ações e portanto não pos­
suem uma forma natural do m odo imperativo. O teste é
apenas aproxim ativo porque algumas frases verbais no
imperativo indicam mais a maneira pela qual determ ina­
das ações devem ser realizadas do que nom eiam ações,
com o, por exem plo, “Seja honesto!”, “Seja bom !”.
INTENÇÃO EAÇÀO 115

II

Até aqui tem o-nos movimentado com relativa facili­


dade em nossos esforços para incorporar a ação e a in­
ten ção a uma teoria da Intencionalidade. Neste ponto,
contudo, têm início nossas dificuldades. Há diversas assi­
metrias entre, por um lado, a relação da intenção com a
ação e, por outro lado, a relação entre os demais estados
Intencionais e suas cond ições de satisfação, assimetrias
essas que uma teoria da ação e da intenção deve ter meios
de explicar.
Em prim eiro lugar, deve parecer-nos estranho que
tenham os um nom e especial com o “ação ” e “ato” para as
condições de satisfação das intenções. Por exem plo, não
temos nenhum nom e especial para as condições de satis­
fação de crenças e desejos. Além disso, a ligação entre o
que é nom eado e o estado Intencional que esse nom e
satisfaz é muito mais íntima no caso das intenções do
que nos de outros estados tais com o as crenças e os d e­
sejos. Já vimos que minha crença será satisfeita sse o es­
tado de coisas que eu acredito existir realmente se verifi­
ca e que meu desejo será satisfeito sse o estado de coisas
que eu desejo que exista de fato se verifica e, do m esm o
modo, que minha intenção de realizar uma ação será sa­
tisfeita sse a ação que tenho a intenção de realizar for de
fato realizada. O bserve-se, porém , que, enquanto há uma
enorm e quantidade de estados de coisas cuja existência
não é desejada ou na qual não se acredita, não há ação
sem intenção. M esmo quando há uma ação não-intencio-
nal com o, por exem plo, Édipo casar-se com a mãe, tal
apenas ocorre porque existe um evento idêntico, que é
uma ação que ele realizou intencionalm ente, a saber, ca-
sar-se com Jo c a sta . Há m uitos estad os de co isas sem
crenças correspondentes e há muitos estados de coisas
116 INTENCIONALIDADE

sem desejos correspondentes, mas, em geral, não há ações


sem intenções correspondentes1. Q ual o motivo para a
existência dessa assimetria?
Em segundo lugar, em bora um evento representado
no conteúdo da minha intenção ocorra, não se trata n e­
cessariam ente da satisfação da minha intenção. Tal com o
observaram muitos filósofos, isso deve ocorrer “da ma­
neira certa” e, mais uma vez, não há nada análogo a isso
nas crenças e nos desejos. As'sim, se eu acredito que está
chovendo e está chovendo, minha crença é verdadeira,
seja qual for a maneira pela qual a chuva ocorreu. E, se
meu desejo é enriquecer e enriqueço, esse desejo é satis­
feito, seja com o for que eu tenha ficado rico. Mas uma
variante do exem plo cie Chisholm2 mostrará que tal co n ­
dição não é válida para as ações. Suponham os que Bill
tenha a intenção de matar o tio; pode acontecer que ele
mate o tio e, m esm o assim, as cond ições de satisfação de
sua intenção não se realizem. Podem não se realizar até
em alguns casos em que sua intenção de matar o tio le-
vem -no efetivam ente a matar o tio. Suponham os que ele
esteja dirigindo e pensando em com o vai matar o tio, e
suponham os que sua intenção de m atá-lo o d eixe tão
nervoso que ele, acidentalm ente, atropela e mata um p e­
destre que, casualm ente, é o tio. Ora, neste caso, é corre­
to dizer que ele matou o tio e é correto dizer que sua in­
tenção de o matar foi (parte da) causa de o ter matado,
mas não é correto dizer que ele levou a cabo sua inten­
ção de matar o tio, nem que sua intenção foi satisfeita,
pois ele não matou intencionalmente o tio.
Há na literatura m uitos ex em p lo s d escon certan tes
com o esse. Consideremos o seguinte, de Davidson3, que,
segundo ele, ilustra as fontes do seu
INTENÇÃO E AÇÃO 117

desespero de decifrar (...) a maneira pela qual as atitudes


devem causar a ação se a forem racionálizar (...) Um alpi­
nista pode querer livrar-se do fardo e do perigo de suster
outro alpinista por uma corda e pode saber que, se soltar a
corda, conseguirá livrar-se do peso e do perigo. Essa crença
e esse querer podem deixá-lo tão nervoso que ele solta a *1
corda; no entanto, pode se dar que ele nunca tivesse opta- <
do por soltá-la e nem que o tivesse feito intencionalmente.
O
<
3
E também, poderíam os acrescentar, ele poderia até for­ «
J H
mar a intenção de soltar a corda e essa intenção poderia í £
í UJ
tê-lo deixado tão nervoso que ele a tenha soltado não in­ O
li
tencionalm ente. Em um tal caso, ele tem a intenção de ii <
LL
soltar a corda e sua intenção faz com que a solte, mas O
uu
.íi
não a solta intencionalm ente nem realiza a intenção de >—
- O
soltá-la. Por que não? 4
O ."j
Outro exem plo (igualm ente hom icida) é forn ecid o CD

por Dan B en nett4. Um hom em pod e tentar matar uma 'JL ffi
111

pessoa atirando nela. Suponham os que erre o tiro, mas >

que este faça estourar uma manada de porcos selvagens 2


D
que pisoteiam até a morte a vítima escolhida. Nesse caso,
a intenção do hom em tem a morte da vítima com o parte
de suas cond ições de satisfação e a vítima morre em de­
corrência disso, mas, m esm o assim, relutamos em dizer
que tenha sido uma morte intencional.

III

Nesta seção e na seguinte quero desenvolver um es­


tudo das relações entre intenção e ação que revele de
que modo essas relações se encaixam na teoria geral da
Inten cion alid ad e esb oçad a nos capítulos 1 e 2 e que,
além disso, explique as características paradoxais cla rela-
118 INTENCIONALIDADE

ção entre ação e intenção discutidas na seção anterior.


Com vistas à sim plicidade, co m eçarei com açõ es bem
simples, tais co m o levantar o próprio braço. Mais adiante,
considerarei os casos de maior com plexidade.
Precisamos, antes de mais nada, distinguir as inten­
ções que são formadas antes das ações e as que o não
são. Os casos que consideram os até agora são casos em
que o agente tem a intenção, de realizar a ação antes da
realização da ação em si, quando, por exem plo, ele sabe
o que vai fazer porque já tem a intenção de fazer tal co i­
sa. Mas nem todas as intenções são assim; suponham os
que me perguntem: “Q uando você repentinam ente bateu
naquele hom em , formou antes a intenção de bater nele?”
Minha resposta poderia ser: “Não, só bati n ele”. Mas m es­
mo em um caso assim bati nele intencionalm ente e mi­
nha ação foi executada com a intenção de bater nele. O
que quero dizer, acerca de um caso com o este, é que a
intenção estava, na ação mas não havia intenção prévia.
A forma de expressão lingüística característica de uma in­
tenção prévia é “Farei A” ou “Vou fazer A”. A forma ca ­
racterística de expressão de uma intenção na ação é “Es­
tou fazendo A”. Diz-se de uma intenção prévia que o agen­
te age com base em sua intenção, ou que leva a cab o a
sua intenção, ou que busca levá-la a cabo; em geral, p o ­
rém, não se pode dizer o m esm o da intenção na ação,
pois esta é apenas o conteúdo Intencional da ação; ação
e intenção são inseparáveis, de um m odo que em breve
tentarei explicar.
Há pelo m enos dois m odos de se deixar mais clara a
distinção entre uma in tenção na ação e uma in tenção
prévia. A primeira, tal com o sugere nosso exem plo ante­
rior, é observar que muitas das ações que realizam os são
realizadas esp ontaneam ente, sem que form em os, co n s­
ciente ou inconscientem ente, nenhum a intenção prévia
INTENÇÃO E AÇÃO 119

de fazermos tais coisas. Por exem plo, suponham os que


eu esteja sentado em uma poltrona refletindo sobre um
problema filosófico e de repente levanto-m e e co m eço a
caminhar pela sala. Levantar-me e pôr-m e a cam inhar são
claram ente ações intencionais, mas, para realizá-las, não
é necessário formar antes uma intenção. De modo algum é <
W
L
necessário que eu tenha um plano de levantar-me e por- 5
me a caminhar. Tal com o muitas das coisas que fazem os, *■
eu sim plesm ente realizo essas ações; apenas ajo. Um se- ^ 4
gundo m odo de se perceber a mesma distinção é ob ser­

C tH T
var que, m esm o nos casos em que tenho uma intenção
prévia de realizar determinada ação, haverá normalm ente
uma grande quantidade de ações subsidiárias, não repre­

B-QuiOr&CA.
sentadas na intenção prévia, mas que, m esmo assim, são
realizadas intencionalm ente. Por exem plo, suponham os
que eu tenha a intenção prévia de ir dirigindo até o escri­
tório e suponham os que, enquanto estou levando a cabo
essa minha intenção prévia, m udo da segunda para a ter­
ceira marcha. Não tive nenhum a intenção prévia cle m u­
dar de segunda para terceira. Q uando formei minha in­
tenção de ir dirigindo até o escritório eu nem havia p en ­
sado nisso. No entanto, minha ação de mudar a marcha
foi intencional. Em tal caso, tive uma intenção na ação ao
mudar de marcha, mas nenhuma intenção prévia de o fazer.
Todas as ações intencionais têm intenções na ação,
mas nem todas têm intenções prévias. Posso fazer algo
intencionalm ente sem ter form ado uma intenção prévia
de o fazer e posso ter uma intenção prévia de fazer algo
e todavia não fazer nada no sentido dessa intenção. M es­
mo assim, nos casos em que o agente está agindo com
base em uma intenção prévia, deve haver uma estreita
ligação entre a intenção prévia e a intenção na ação, e
tam bém terem os de explicar essa ligação.
120 INTENCIONALIDADE

Tanto as in ten çõ es prévias co m o as in ten çõ es na


ação são causalm ente auto-referentes no m esmo sentido
em que o são as experiências perceptivas e as lem bran­
ças. Isto é, tal com o as experiências perceptivas e as lem ­
branças, suas cond ições de satisfação requerem que os
próprios estad os Intencion ais guardem certas rela çõ es
causais com o resto de suas cond ições de satisfação. Mais
adiante exam inarem os em detalhe essa característica, mas
ela pode ser ilustrada pela consideração da auto-referen-
cialidade das intenções prévias. Suponham os que eu pre­
tenda erguer o braço. O conteú d o de m inha in ten ção
não pode ser que o meu braço se erga, pois este não p o ­
de erguer-se sem que eu o faça. Tam pouco pode se dar
sim plesm ente que minha intenção seja a causa de meu
braço se erguer, pois vimos, em nossa discussão sobre os
exem plos de Chisholm, Davidson e Bennett, que uma in­
tenção prévia pode causar um estado de coisas represen­
tado pela intenção sem que esse estado de coisas seja a
ação que satisfaria a intenção. Nem, por estranho que pa­
reça, pode se dar

(que eu realize a ação de erguer o braço)

pois posso realizar a ação de erguer o braço de maneiras


que nada tenham a ver com essa intenção prévia. Posso
esquecer com pletam ente essa intenção e mais tarde er­
guê-lo por alguma outra razão independente. O conteú ­
do Intencional de minha intenção deve ser pelo m enos

(que eu realize a ação de erguer o braço através da reali­


zação dessa in ten ção).

Mas o que se entende por “realização” nessa formulação?


Pelo m enos o seguinte: Se estou realizando essa inten-
INTENÇÃO E AÇÃO 121

ção, a m esm a deve d esem pen har um papel causal na


ação e o argum ento em favor disso é sirflplesmente que,
se rom perm os a conexão causal entre intenção e ação,
deixam os de ter um caso de realização da intenção. Su­
ponham os que eu me esqueça com pletam ente da inten­
ção prévia de erguer o braço, de tal modo que ela não <
mais desem penha nenhum papel causal, conscien te ou <
inconsciente, na ação subseqüente. Nesse caso, a ação ■l
não é um caso em que se realiza uma intenção. Apesar Q O ~í
O
disso, tal form ulação dá origem a uma série de perguntas cr.
j t-
a que terem os de responder mais tarde. O que se enten- * Z
de por “açào ” e qual, exatam ente, o papel da auto-refe- * O
rência causal? O
ijj <
Nesse ínterim, tal caráter causal auto-referente das “• ^
jj
intenções parecerá m enos m isterioso se o com pararm os a
o
um fenôm eno sem elhante no dom ínio dos atos de fala Ca 4
O ~j
propósito, é sem pre uma boa idéia, quando se chega a - ®
um im passe na teoria da Intencionalidade, voltar aos atos QC ®
UJ
de fala, pois o fenôm eno dos atos de fala é muito mais >
acessível). Suponham os que eu lhe ordene que saia da 2
sala. E suponham os que vo cê responda dizendo: “Vou
sair da sala, mas não porque vo cê me ordenou e sim
porque de qualquer modo eu ia sair. Mas não teria saído
da sala só porque você me ordenou”. Se, depois disso,
você sair da sala, terá obedecido a minha ordem? Bem , vo­
cê com certeza não a terá desobedecido, mas há um sen ­
tido no qual você tam pouco a obed eceu , pois ela não
funcionou co m o uma razão para o que v o cê fez. Por
exem plo, com base em uma série de casos assim, não
poderíam os descrevê-lo com o uma pessoa “o b ed ien te”.
Mas o que o caso exem plifica é que o conteúdo de mi­
nha ordem não é sim plesm ente que você saia da sala,
mas que saia em obediência a essa ordem ; ou seja, a for­
ma lógica da ordem não é apenas
122 INTENCIONALIDADE

Ordeno-lhe (que saia da sala),

mas é causalm ente auto-referente na forma

Ordeno-lhe (que saia da sala em obediência a essa or­


dem)1.

Até este ponto cia presente seção, tenho defendido a


necessidade de uma distinção entre intenções prévias e
intenções na ação e tam bém aleguei, em bora ainda não
tenha fundam entado plenam ente essa idéia, que am bas
são causalm ente auto-referentes, no m esm o sentido em
que o são as experiências visuais e as lembranças. Q uero
agora estender a analogia entre p ercepção e ação, exam i­
nando as experiências características das ações. Antes de
mais nada, lem brem o-nos das características relevantes
das percepções. Q uando você vê uma mesa à sua frente,
há, na situação perceptiva, dois elem entos: a experiência
visual e a m esa, mas as duas não são ind epend entes,
pois a experiência visual tem a presença e as característi­
cas da mesa com o suas condições de satisfação. Agora, o
que se dá com ações simples com o erguer o braço? O que
se dá quando você realiza a ação intencional de erguer o
braço? Assim com o há experiências características de ver
uma mesa, argumentarei que há experiências característi­
cas de erguer o braço. Erguer o braço, tal com o ver uma
mesa, consiste caracteristicam ente de dois com ponentes:
a experiência de se erguer o braço e o movimento físico
do braço, mas am bos não são independentes, pois, assim
com o a experiência visual da m esa tem Intencionalidade,
também a tem a experiência de se erguer o braço; ela
tem suas condições de satisfação. Se eu tiver exatam ente
essa experiência, sem que meu braço se erga, estarei em
uma situação análoga àquela em qu e estaria se tivesse
INTENÇÀO E AÇÀO 123

exatam ente essa experiência sem que houvesse uma m e­


sa diante de mim. Teria uma experiência'com uma Inten­
cionalidade cujas condições de satisfação não foram satis­
feitas.
Podem os exam inar mais profundam ente o paralelo
entre ação e p ercepção considerando a pergunta de Witt-
genstein: Se eu erguer o braço, o que restará se eu sub­
trair o fato de que meu braço se levantou?6 A pergunta <
p arece-m e exatam ente análoga a esta outra: Se eu vir <
uma mesa, o que restará se eu subtrair a mesa? E, em
am bos os casos, a resposta é que o que resta é uma certa ^ <
forma de Intencionalidade presentacional; o que resta, no t
caso da percepção visual, é uma experiência visual; e, no ■* *
caso da ação, uma experiência cle agir. Q uando ergo o '.o O
braço tenho uma determinada experiência e, tal com o a ^ <
minha experiência visual da m esa, essa experiência cle ^
erguer o braço tem um conteúdo Intencional. Se eu tiver
essa experiência sem que o meu braço se levante, esse
conteúdo não será satisfeito. Além disso, ainda que meu ®
braço se erga, mas que o faça sem essa experiência, não ^ 05
terei erguiclo o braço, ele sim plesm ente se terá levanta- >
do. Ou seja, assim com o o caso de ver a mesa envolve ^
dois com ponentes correlatos, um com ponente In ten cio­
nal (a experiência visual) e as co nd ições de satisfação
desse com ponente (a presença e as características da m e­
sa), tam bém o ato de erguer o braço envolve dois com ­
ponentes, um com ponente Intencional (a experiência de
agir) e as cond ições de satisfação desse com ponente (o
movimento do braço). No que diz respeito à Intencionali­
dade, as d iferenças entre a exp eriên cia visual e a e x p e ­
riência de agir estão na direção do ajuste e na direção da
causação: a experiência visual está para a mesa em uma
direção de ajuste m ente-m undo. Se a m esa não estiver
presente, dizem os que eu estava enganado ou estava ten-
124 INTENCIONALIDADE

do uma alucinação, ou algo do gênero. E a direção da


causaçâo é do objeto para a experiência visual. Para que
o com ponente Intencional seja satisfeito, deve ser causa­
do pela presença e pelas características do objeto. No ca­
so da experiência de agir, porém, o com ponente Intencio­
nal tem a direção do ajuste mundo-mente. Se eu tiver essa
experiência sem que o evento ocorra, dizemos coisas co­
mo “Foi-m e impossível erguer o braço ” e que eu “tentei
levantá-lo, mas não consegui”. E a direção de causação é
cla experiência de agir para o evento. Nos casos em que o
conteúdo Intencional é satisfeito, ou seja, nos casos em
que de fato consigo erguer o braço, a experiência de agir
é a causa de o braço se erguer. Caso não levasse o braço
a erguer-se, mas outra coisa o levasse, eu não teria ergui­
do o braço: ele se teria erguido por algum outro motivo.
E assim com o a experiência visual não é uma represen­
tação de suas condições de satisfação, mas uma apresenta­
ção dessas condições, quero dizer que a experiência de
agir é uma apresentação de suas condições de satisfação.
No presente estudo, a ação, com o a percepção, é uma
transação causal e Intencional entre mente e mundo.
Ora, assim com o não temos um nom e para aquilo
que nos fornece o conteúdo Intencional de nossa per­
cepção visual, e precisam os inventar um termo da arte,
“a experiência visual”, tam pouco tem os um termo para
aquilo que nos fornece o conteúdo Intencional de nossa
ação intencional e precisam os tam bém inventar um ter­
mo da arte, “a experiência de agir”. Contudo, esse termo
seria enganador se desse a im pressão de que tais coisas
são experiências ou sensações passivas que sim plesm en­
te nos afetam, ou que são com o aquilo que alguns filóso­
fos cham am volição, atos de vontade, ou coisa do g ên e­
ro. Não são atos, absolu tam en te, pois não realizam os
nossa experiência de agir, assim com o não vemos nossas
INTENÇÃO EAÇÀO 125

exp eriên cias visuais7. T am p o u co estou afirm ando que


existe algum tipo de sensação especial pertinente a todas
as ações intencionais.
A maneira mais simples de argumentarem favor da
presença da experiência de agir com o um dos com p o­
nentes de ações simples com o erguer o braço é mostrar
que cada com ponente pode ser isolado dos demais. Con­
sideremos, em primeiro lugar, o fam oso caso descrito por

)
CENTRAL
ia
William Jam es8, em que se ordena a um paciente com o

t l i i i -
braço anestesiado que o erga. Os olhos do paciente estão
vendados e, sem que ele o saiba, seu braço está preso
para impedir que se mova. Ao abrir os olhos, ele fica sur­
preso ao descobrir que não ergueu o braço; ou seja, fica

BiBLlO TtC A .
k j NI Vf e f ' , ír<D/-1. fc. F
surpreso ao descobrir que não houve movimento do bra­
ço. Em um caso assim, ele tem a experiência de agir e tal
experiência teve claram ente uma Intencionalidade; pocle-
se dizer do paciente que sua experiência foi tentar, mas
sem conseguir, erguer o braço. E as condições de satisfa­
ção são determinadas pela experiência; ele sabe o que
está tentando fazer e fica surpreso ao descobrir que não
o conseguiu. Tal caso é análogo ao cia alucinação na per­
cepção, pois o com ponente Intencional ocorre na ausên­
cia das cond ições de satisfação. Considerem os agora os
casos relatados por Penfield, em que temos os m ovim en­
tos corporais, mas não os com ponentes Intencionais.

Quando fazia com que um paciente consciente movesse a


mão aplicando um eletrodo ao córtex motor de um hemis­
fério, perguntava-lhes com freqüência a respeito disso. In­
variavelmente, a resposta era: “Eu nào fiz isso. Você fez”.
Quando fazia com que vocalizassem, diziam: “Eu não fiz
aquele som. Você o arrancou de mim”9.

Nesse caso, tem os um m ovim ento corporal, mas nenhu­


ma ação; com efeito, temos um m ovim ento corporal que
126 INTENCIONALIDADE

pode ser exatam ente o m esmo que o movimento corpo­


ral em uma ação intencional, mas com certeza o paciente
tem razão ao negar ter realizado qualquer ação. Se os
movimentos corporais são os m esm os em am bos os ca­
sos, o que está faltando no caso em que as mãos se m e­
xem mas não há ação alguma? E de que modo o paciente
sabe com tal segurança que em um caso está m exendo a
mão e no outro não está fazendo nada? Como resposta a
essas perguntas, sugiro, em primeiro lugar, que há uma
diferença fenom ênica óbvia entre o caso em que a pes­
soa m exe a m ão e o caso em que ela a observa m exen-
do-se independentem ente das próprias intenções; os dois
casos, sim plesm ente, transmitem ao paciente uma sensa­
ção diferente. Em segundo lugar, que essa diferença fe­
nom ênica traz consigo uma diferença lógica, no sentido
em que a experiência de m exer a própria mão tem certas
condições de satisfação. Conceitos com o “tentar”, “con se­
guir” e “fracassar” aplicam -se à experiência de um m odo
que não pode ser aplicado às experiências que o pacien­
te tem quando sim plesm ente observa sua mão a mexer-
se. Ora, é a essa experiência, com suas propriedades fe-
nom ênicas e lógicas, que cham o experiência de agir. E
não estou afirmando que exista uma experiência caracte­
rística com um a todas as ações intencionais, mas sim que
para cada ação intencional consciente existe a experiên­
cia de realizar a ação, e essa experiência tem um conteú­
do Intencional. Uma última argum entação em favor da
mesma conclusão: devem os permitir-nos ficar im pressio­
nados com as im plicações do fato de, em qualquer altura
da vida consciente de um homem, ele conhecer, sem ob ­
servação, a resposta para a pergunta, “O que é que você
está fazendo agora?”. Muitos filósofos apontaram esse fa­
to, mas, até onde eu saiba, nenhum exam inou suas im­
plicações para a Intencionalidade. M esm o em um caso
INTENÇÃO E AÇÃO 127

em que a pessoa esteja enganada sobre quais sejam os


resultados de seus esforços, ela sabe o que está tentando
fazer. Ora, o conhecim ento daquilo que se está fazenclo,
nesse sentido, no sentido em que tal conhecim ento não
garante que o indivíduo saiba que está tendo êxito e não
depende de nenhum a observação que faça acerca de si
m esm o, deriva caracteristicam ente do fato de uma ex p e­
riência consciente de agir envolver uma consciência das
condições de satisfação dessa experiência. E, mais uma
vez, vale o paralelo com a percepção. Assim com o em
qualquer altura da vida consciente de um hom em ele co ­
nhece a resposta à pergunta “O que está vendo agora?”,
tam bém co n h ece a resposta para “O que está fazendo
agora?”. Em am bos os casos, o conhecim ento em questão
é sim plesm ente conhecim ento das condições de satisfa­
ção de uma certa espécie de apresentação.
O paralelo entre a Intencionalidade da p ercepção vi­
sual e a Intencionalidade da ação intencional pode ser
explicitado pelo quadro abaixo.

percepção visual ação intencional

Com ponente Intencional experiência visual experiência de agir

Condições de satisfação do que haja objetos, estados que haja certos m ovim entos
com ponente Intencional de coisas etc.. com certas corporais, estados etc. do
características e certas agente e que estes tenham
relações causais com a certas relações causais com
experiência visual a experiência de agir.

Direção do ajuste m ente-mundo m undo-mente

Direção da causaçâo m undo-inente (.ou seja, a m ente-m undo (ou seja, a


presença de características experiência causa os
do objeto causa a m ovim entos)
experiência)

Características objetos e estados m ovim entos e estados


correspondentes do mundo de coisas do agente
128 INTENCIONALIDADE

IV

Fiz até agora três afirmações: em primeiro lugar, que


há uma distinção entre as intenções prévias e as intenções
em ação; em segundo, que am bas são causalm ente auto-
referentes; e, por último, que a ação, por exem plo, de er­
guer o braço contém dois com ponentes, a experiência de
agir (que tem uma forma de Intencionalidade ao m esm o
tem po presentacional e causal-) e o evento do braço a er­
guer-se. Em seguida, quero incluir essas conclusões em
uma abordagem geral das relações entre intenções prévias,
intenções em ação e ações.
O conteúdo Intencional da intenção em ação e a ex ­
periência de agir são idênticos. Com efeito, no que diz
respeito à Intencionalidade, a experiência de agir é sim­
plesm ente a intenção em ação. Então para que precisa­
mos dessas duas noções? Porque a experiência de agir é
uma experiência consciente com um conteúdo Intencio­
nal e a intenção em ação é apenas o com ponente Inten­
cio n al, esteja ou n ão contid a em algum a ex p eriên cia
consciente de ação. Vez por outra realizamos ações inten­
cionais sem a m enor experiência consciente de o fazer;
em um tal caso, a ação existe sem nenhuma experiência
de ação. Logo, a única diferença entre elas é que a exp e­
riência pode ter certas propriedades fenom ênicas que não
são essenciais para a intenção. E xatam ente do m esm o
modo, a experiência visual tem a mesma Intencionalidade
que seu conteúdo presentacional, mas a experiência tem
certas propriedades fenom ênicas que não são essenciais
para essa Intencionalidade (tal com o demonstrado pelos
experim entos de Weiskrantz m encionados no capítulo 2).
Nosso problem a consiste agora em desvendar as rela­
ções entre os quatro elem entos seguintes: a intenção pré­
via, a intenção em ação, o movimento corporal e a ação.
O método é tom ar um exem plo simples e explicitar ple-
INTENÇÃO EAÇÀO 129

nam ente os conteúdos Intencionais das duas intenções.


" Ora, e por que é esse o método? Porque-nossa meta é e x ­
plicar as relações entre inten ções e ações; e dado que
uma ação é, ao m enos em certo sentido, a condição de
satisfação da intenção de a realizar qualquer tentativa de
esclarecer tais relações deve elucidar com pletam ente de
que modo o conteúdo Intencional da intenção representa
(ou apresenta) a açâo (ou m ovim ento) com o suas condi- <
ções de satisfação. Tal m étodo difere um pouco dos mé- <
todos com uns da filosofia da ação porque não nos afasta- 9"

i t f tD t- K * !- Uw
B tB U U lE C A » C E N T R A L
mos da ação para verificar, a uma grande distância, que
descrição podem os fazer dela, mas temos de nos aproxi­
mar bastante dela e verificar o que essas descrições estão
de fato descrevendo. O outro m étodo produz, incidental-
mente, resultados verdadeiros mas superficiais, co m o o
que afirma que uma ação “pode ser intencional em uma
descrição, mas não-intencional em outra” - seria igual­
m ente possível dizer que um carro de bom beiros pode
ser verm elho em uma descrição, mas não-verm elho em
outra. O que se quer saber é: Quais fatos, exatam ente, es­ yNIVE
sas descrições descrevem? Que fato relativo à ação torna-a
“intencional em uma d escrição ” e que fato acerca dela
torna-a “não-intencional em outra”?
Suponham os que eu, recentem ente, tenha tido a in­
ten ção prévia de ergu er o b raço e su p o nh am os qu e,
agindo com base nessa intenção, eu agora erga o braço.
Como é que isso funciona? O conteúdo representativo da
intenção prévia pode ser expresso da seguinte maneira:

(Eu realizo a ação de levantar o braço através da realiza­


ção dessa intenção).

Portanto, a intenção prévia faz referência à açâo com p le­


ta com o uma unidade, não apenas ao m ovim ento, e é
130 INTENCIONALIDADE

cau salm en te au to -referen te. Mas a ação , co m o vim os,


contém dois com ponentes, a experiência de agir e o m o­
vimento, em que o conteúdo Intencional da experiência
de agir e a intenção em ação são idênticos. O próxim o
passo, portanto, é especificar o conteúdo Intencional da
intenção em ação e mostrar a relação de seu conteúdo
In tencional com o da in ten ção prévia. L em brem o-nos
que o m étodo para se identificar um conteúdo Intencio­
nal com uma direção de ajuste é sem pre interrogar o que
deve ocorrer para que o conteúdo Intencional seja satis­
feito: identifica-se a Intencionalidade por suas condições
de satisfação. Usando esse teste, o conteúdo presentacio-
nal de intenção em ação é

(Meu braço se ergue com o resultado dessa intenção em


ação).

Ora, à primeira vista, o conteúdo cia intenção prévia e o da


intenção em ação parecem bem diferentes, pois, embora
ambos sejam causalmente auto-referentes, a intenção pré­
via representa a ação completa com o o resto de suas con­
dições de satisfação, mas a intenção em ação apresenta, e
não representa, o movimento físico e não a ação completa
com o o resto de suas condições de satisfação. No primeiro
caso, a ação completa é o “objeto Intencional”; no segun­
do, o movimento é o “objeto Intencional”. A intenção em
ação, tal com o a intenção prévia, é auto-referente no senti­
do de que seu conteúdo Intencional determina que seja sa­
tisfeito apenas se o evento que constitui sua condição de
satisfação for ocasionado por ele. Outra diferença é que,
em qualquer situação da vida real, a intenção em ação terá
muito mais determinantes que a intenção prévia, incluindo
não só que meu braço se erga, mas também que se erga
de um certo modo, a uma certa velocidade etc.10
INTENÇÃO EAÇÃO 131

Bem, se o conteúdo cia intenção prévia e a intenção


em ação diferem de tal m odo com o se dá que am bos
consigam - por assim dizer - se reunir? Na verdade, a re­
lação é bem simples, tal com o podem os ver ao desvendar
o conteúdo da intenção prévia e tornar explícita a nature­
za da auto-referência causal da intenção prévia. Uma vez
que a ação com pleta é representada com o uma unidade <
pela intenção prévia, e uma vez que a ação consiste em <
dois com ponentes, a experiência de agir e o movimento ®-

F t ü c * * 1- ÜW
CENTRAL
físico, podem os representar cada com ponente separada­
mente a fim de explicitar na íntegra o conteúdo da inten­
ção prévia. Além disso, com o tanto a auto-referência da
intenção prévia com o a da intenção em ação são cau ­
sais11, a intenção prévia ocasiona a intenção em ação cau­

B iB U O T E C *
sadora do movimento corporal. Em virtude da transitivida­
de cia causaçào Intencional, podem os dizer que a inten­
ção prévia causa tanto a intenção em ação com o o movi­
m ento e, uma vez que tal com binação equivale sim ples­
mente à ação, podem os dizer que a intenção prévia causa
a ação. A imagem que se apresenta é a seguinte:

ação
„ . causa causa
intenção previa --------- ►intenção em a ç ã o -----------► movimento
corporal

O esquem a tam bém nos permite identificar o que havia


de errado nos co n tra-exem p lo s ao estilo de Chisholm
que apresentei antes. Por exem plo, Bill tinha a intenção
prévia de matar o próprio tio e essa intenção fez com
que Bill o matasse, mas sua intenção prévia não causou
uma intenção em ação que apresentasse a morte do tio
com o objeto Intencional, lim itando-se a apresentar sua
132 INTENCIONALIDADE

condução do carro ou algo assim. (Ver mais sobre essa


questão adiante.) Uma vez que, com o vimos, a forma de
auto-referência da intenção prévia é causal e, uma vez
que a representação da ação pode ser dividida em dois
com ponentes, o conteúdo Intencional da intenção prévia
pode agora ser expresso da seguinte maneira:

(Essa intenção prévia causa uma intenção em ação que é


uma apresentação de meu braço a erguer-se e que faz
com que meu braço se erga.)

E, assim, a intenção prévia causa a intenção em ação. Em


virtude da transitividade da causação Intencional, a inten­
ção prévia representa e causa a ação com pleta, mas a in­
tenção em ação apresenta e causa apenas o movim ento
corporal.
Creio qu e é p ossível elucidar mais a fundo essas
questões se avançarm os um pouco mais em nossa analo­
gia com a percepção. Grosso modo, a intenção prévia de
erguer o braço está para a ação de erguer o braço assim
com o a lem brança de ver uma flor está para a visão de
uma flor; ou, antes, as relações formais entre a lem bran­
ça, a experiência visual da flor e a flor são o espelho das
relações formais entre a intenção prévia, a intenção em
ação e o m ovim ento corporal. O ver tem dois com p o­
nentes, a experiência visual e a flor, onde a presença (e
as características) da flor causa(m ) a experiência visual e
esta tem a presença e as características da flor com o o
resto de suas condições de satisfação. O conteúdo da e x ­
periência visual é que haja uma flor presente e é auto-re-
ferente no sentido em que, a m enos que o fato de haver
uma flor presente cause essa experiência, as condições
de satisfação não se realizam, ou seja, eu não vejo real­
mente que há uma flor presente, nem vejo a flor. A lem ­
INTENÇÃO EAÇÀO 133

brança de ver a flor representa tanto a experiência visual


com o a flor, e é auto-referente no sentido em que, a m e­
nos que a lem brança tenha sido causada pela experiência
visual, que, por sua vez, foi causada pela presença (e p e­
las características) da flor, não m e lem bro realm ente de
ter visto a flor. D o m esmo m odo, a ação tem dois com ­

PARA
ponentes, a experiência de agir e o movimento, onde a
experiência de agir causa o m ovim ento e tem o m ovi­
mento (juntamente com suas características) com o o resto

CENTRAL
DQ
de suas condições de satisfação. O conteúdo da experiên­
cia de agir é que haja um movimento de meu braço, e é

PtÜtKfu
auto-referente no sentido em que, a m enos que o movi­
mento seja causado por essa experiência, as condições de
satisfação não se realizam, ou seja, não ergo realmente o

SiB U O TECA
braço. A intenção prévia de erguer o braço representa tan­

UNIV£*í?iD<ai.'t
to a experiência de agir com o o movimento, e é auto-refe-
rente no sentido em que, a m enos que essa intenção cau­
se a experiência de agir, que, por sua vez, causa o movi­
mento, eu não levo efetivamente a cabo minha intenção
prévia. Tais relações podem ser explicitadas pela expansão
de nosso quadro anterior (p. 135). (O s quadros costumam
ser aborrecidos, mas, com o este contém um resumo de
grande parte da teoria da Intencionalidade, peço ao leitor
que o exam ine com muita atenção.)
Alguns aspectos desse novo quadro m erecem desta­
que. Em primeiro lugar, nem a lem brança nem a inten­
ção prévia são essenciais para a p ercepção visual ou para
a ação intencional, respectivam ente. Posso ver uma por­
ção de coisas que não me lembro de ter visto e posso rea­
lizar muitas açõ e s intencionais sem a m enor in ten ção
prévia de as realizar. Em segundo lugar, a assimetria da
direção do ajuste e da direção da causação é perfeita de­
mais para ser acidental. Grosso modo, a explicação intuiti­
va é a seguinte: quando tento fazer com que o mundo
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INTENÇÃO E AÇÃO 135

seja do m odo com o pretendo que seja, terei êxito se o


mundo passar a ser do m odo que pretendo que seja (di­
reção de ajuste m undo-m ente) som ente se eu fizer com
que ele seja d esse m odo (d ireção de cau saçâo m ente-
mundo). Analogamente, vejo o m undo do m odo qu e ele
de fato é (direção de ajuste m ente-m undo) apenas se o
modo com o o mundo é fizer com que eu o veja desse
modo (direção de causação m undo-m ente). Em terceiro
lugar, para simplificar, deixei fora cio quadro o fato de
que as condições de satisfação dos com ponentes Intencio­
nais conterão vários detalhes sobre a aparência da flor e
o modo com o é realizado o ato de erguer o braço. Não
busquei incluir tudo. Em quarto lugar, a estrutura formal

D e .*
do quadro não pretende sugerir que a p e rcep çã o e a

fc.UA.
ação funcionam ind epend entem ente uma da outra. Na

Fl
■maior parte das açõ es com p lexas, tais com o guiar um

i- fc
carro ou com er uma refeição, tenho de ser capaz de per­

S iü L f U T
ceber o que estou fazendo para o poder fazer; e, do m es­
mo modo, há um elem ento intencional na m aior parte
das p e rcep çõ es com p lexas, co m o quando observ o um
yw ivfe
quadro ou sinto a textura de um tapete. Em quinto lugar,
por causa da transitividade da causação, permiti-me o sci­
lar entre dizer que a lem brança de ver a flor é causada
pelo evento de ver a flor e que a lembrança de ver a flor
é cau sada p ela ex p e riê n cia visual, qu e, por su a vez,
quando satisfeita, é causada pela presença cia flor. Do
mesm o m odo, oscilo entre dizer que a intenção prévia
causa a ação e que a intenção prévia causa a intenção
em ação causadora do movimento. Uma vez que em ca­
da caso o evento com p lexo tem um com ponente qu e é,
ao m esmo tem po, Intencional e causal, e uma vez que
em cada caso o com ponente Intencional está em certas
relações causais com outro estado Intencional que repre­
senta o evento com plexo inteiro, não me parece ser im­
portante qual dos dois modos de falar adotaremos.

I
136 INTENCIONALIDADE.

Até este ponto, falamos sobretudo acerca de casos


bem simples, com o erguer o braço; passarei agora a es­
boçar rapidam ente de que m odo a teoria poderia ser es­
tendida de m odo a poder explicar as intenções com ple­
xas e as relações entre intenções com plexas, o efeito san­
fon a 12 e as ações b ásicas13.
Consideremos Gavrilo Princip e seu assassinato do ar-
quiduque Ferdinando em Sarajevo. Dizemos de Princip que

puxou o gatilho
disparou o revólver
atirou no arquiduque
matou o arquiduque
assestou um golpe contra a Áustria
vingou a Sérvia

Além disso, cada elem ento dessa listagem está sistem ati­
cam ente relacionado aos que o precedem e aos que o
sucedem: Princip, por exem plo, disparou o revólver por
meio de apertar o gatilho e atirou no arquiduque por m eio
de disparar o revólver. Algumas dessas relações, mas não
todas, são causais. Puxar o gatilho causa o disparo do re­
vólver; mas matar o arquiduque não é a causa do golpe
assestado contra a Áustria: nas circunstâncias dadas, ma-
tá-lo é assestar sim plesm ente um golpe contra a Áustria.
Os elem entos da listagem, juntam ente com as relações
causais (ou de outro tipo) entre eles constituem as condi­
ções de satisfação de uma única intenção em ação com ­
plexa por parte de Princip. Prova disso é que a especifi­
cação de qualquer um deles, ou de todos, pode ser tida
com o uma autêntica resposta à pergunta “O que você es­
tá fazend o agora?”, em que essa pergunta quer saber
INTENÇÃO EAÇÃO 137

“Qual ação intencional você está realizando ou tentando


realizar agora?”. E o teste que demonstra que fazem parte
do conteúdo da intenção em ação, repetindo, é: “O que
é tido com o êxito ou fracasso?”, ou seja, quais são as
condições cie satisfação do conteúdo Intencional? Havia
toda sorte de fatores diferentes em curso naquela época,
muitos d eles do co n h ecim en to de Princip, que n ã o fa­
ziam parte das condições de satisfação e, portanto, não
faziam parte da intenção com plexa. Intenções com plexas
são aquelas em que as cond ições de satisfação incluem
não apenas o movimento corporal a, mas tam bém alguns
com ponentes adicionais da ação, b, c, d... que pretende­
mos realizar por meio da (ou através da, ou na) realiza­
ção de a, b, c... e tanto a representação de a, b, c... quan­
to as relações entre eles estão incluídas no conteúdo da
intenção com plexa. É um fato notável e pouco observa­
do cia evolução humana e animal o de termos a cap aci­
dade de executar movimentos corporais em que as co n ­
dições de satisfação de nossas intenções ultrapassam os
m ovim entos corporais. Princip m oveu apenas o dedo,
mas sua Intencionalidade cobria todo o Im pério Austro-
Húngaro. Essa capacidade de ter condições de satisfação
adicionais além de nossos m ovim entos corporais é uma
chave para a com preensão do significado e da causaçâo,
com o verem os nos capítulos subseqüentes.
Nossa capacidade de ampliar as autênticas descrições
de ações nos m oldes exem plificados por essa listagem é
por vezes cham ada de efeito sanfona. C om eçando pelo
meio, podem os estender a sanfona para cima e para bai­
xo com elem entos anteriores ou posteriores da seqüência
de ações. O bserve-se, porém , que não se pode fazer isso
indefinidamente. No que toca à história causal, há muitas
coisas que ocorreram bem acima do topo cia lista e abai­
xo do fim e para o lado, que não fazem parte da sanfona
138 INTENCIONAUDAl )Ii

cia ação intencional. Assim, podem os ampliar a listagem


com o se segue:

Ele produziu uma série de descargas de neurônios


no cérebro
contraiu certos músculos do braço e da mão

puxou o gatilho
disparou o revólver
atirou no arquiduque moveu uma porção de
matou o arquiduque moléculas de ar
assestou um golpe contra a Áustria
vingou a Sérvia
arruinou as férias de verão de Lord Grey
convenceu o imperador Francisco Jo sé de que Deus
estava punindo sua família
deixou Guilherme II irado
deflagrou a Primeira Guerra Mundial

Mas nenhum desses fatores acima, abaixo ou ao lado são


ações intencionais de Princip e inclino-m e a dizer que
nenhum deles é uma ação de sua parte. Trata-se apenas
de ocorrências não-pretendidas que se dão com o resulta­
do de sua ação. No que diz respeito às ações intencio­
nais, os limites da sanfona sâo os limites da intenção
com plexa; e, na verdade, o efeito sanfona está presente
nas ações intencionais porque tem os intenções com ple­
xas do tipo que descrevi. Mas a intenção com plexa não
fixa exatam ente os limites da ação, em virtude da possi­
bilidade cle ações não-intencionais.
Se o conceito de uma ação básica tem alguma utili­
dade para nós, podem os dizer que o elem ento mais alto
de qualquer sanfona desse tipo é uma ação básica e po­
demos definir um tipo de ação básica do seguinte modo:
INTENÇÃO EAÇÃO 139

A é um tipo de ação básica para um agente S sse S for


capaz de realizar atos do tipo ^4 e S puder pretender a
execu ção de um ato do tipo A sem pretender a ex ecu ção
de nenhuma outra ação por m eio da qual pretenda fazer
A. O bserve-se qu e uma tal d efinição tornaria b á sica a
ação apenas em relação ao agente e suas capacidades; o
que é básico para um agente pode não o ser para outro. ^
Contudo, talvez seja esta uma forma útil de descrever os £
fatos. Para um bom esquiador, virar à esquerda pod e ser

C tN -TR A -L
uma ação básica. Ele apenas tenciona fazê-lo e o faz. Pa­
ra virar à esquerda, um principiante deverá apoiar seu
peso sobre o esqui que estiver mais abaixo, ao m esm o
tempo que o im pele na direção da encosta, frear o esqui

8<ei~IÜTÊ.CA.
que estiver mais acima, em seguida transferir o p eso da
esquerda para a direita etc., etapas que descrevem, todas,

t.
o conteúdo das intenções em ação do esquiador. Para

UUlVfef'> *0>
dois agentes, os movimentos físicos podem ser incliferen-
ciáveis, m esm o que um esteja realizando o que seria -
para ele - uma ação básica, enquanto o outro está reali­
zando as m esm as ações co m o m eio para realizar uma
ação básica. Além disso, essa definição teria com o co n se­
qüência que, para qualquer agen te dado, não haveria
uma linha divisória nítida entre suas ações básicas e as
não-básicas. Novamente, contudo, talvez seja esta a m a­
neira correta cie descrever os fatos.

VI

Nesta seção, quero reunir alguns fios soltos antes de


proceder à dem onstração de com o a presente exposição
soluciona os paradoxos da seção II.
Ações nâo-intencionais. O que se entende pela afir­
mação de que vima ação pode ser “intencional em uma
140 INTENCIONALIDADE

descrição e não-intencional em outra”? E, a propósito, o


que é uma ação não-intencional? Uma ação intencional
tem dois co m p on en tes, um co m p on en te Inten cion al e
um evento que é o seu objeto Intencional; a intenção em
ação é o com p onen te Intencional e apresenta o objeto
Intencional co m o suas co n d içõ es de satisfação. Mas o
evento com p lexo que constitui a ação também terá todo
tipo de outras características çã o apresentadas pelo co n ­
teúdo Intencional da intenção em ação. Édipo tencionava
casar-se com Jocasta, mas, ao casar-se com ela, casou-se
com sua própria m ãe. “Casar-se com a m ãe” não fazia
parte do conteúdo Intencional da intenção em ação, mas
de qualquer m odo aconteceu. A ação era intencional na
descrição “casar-se com Jocasta” e não-intencional na des­
crição “casar-se com a m ãe”. Mas tudo o que isso quer
dizer é que a ação com pleta tinha elem entos que faziam
parte das cond ições de satisfação da intenção em ação e
outros que não faziam. E enganador declarar esse fato
acerca das ações em termos de descrições de ações, pois
sugere que o que conta não é a ação, mas o modo com o
a descrevem os; ao passo que, segundo minha exposição,
o que conta são os fatos que as descrições descrevem.
Essa distinção ficará mais clara se considerarm os as ações
intencionais realizadas por animais; a propósito, não é
mais estranho atribuir ações intencionais aos animais que
atribuir-lhes p ercep çõ es visuais. Suponham os que o meu
cão esteja correndo atrás de uma bola pelo jardim; ele
está realizando a ação intencional de perseguir a bola e a
ação não-intencional de estraçalhar as lobélias, mas isso
não tem nada a ver com as descrições de quem quer que
seja. O próprio cão com certeza não pode descrever os
fatos e estes perm aneceriam os mesm os, ainda que n e­
nhum ser hum ano jamais os descrevesse. O sentido em
que um e o m esm o evento ou seqüência de eventos po-
INTENÇÃO EAÇÀO 141

de ser ao m esm o tem po uma ação inten cional e uma


ação não-intencional não tem a m enor relação intrínseca
com a representação lingüística, mas sim com uma apre­
sentação Intencional. Alguns aspectos do evento podem
ser condições de satisfação do conteúdo Intencional, en ­
quanto outros podem não o ser; e no primeiro conjunto
de asp ecto s a ação é in ten cio n al, no segu nd o não é;
mesmo assim, não é preciso haver nada de lingüístico no

c ê n t r a -l
modo com o o conteúdo Intencional apresenta suas co n ­
dições de satisfação.
C om o é p o ssível distinguir en tre os asp e cto s do
evento com p lexo sob os quais este constitui uma ação

etB w iO itC A -
não-intencional e aqueles tão afastados da intenção que,
sob eles, o evento nem sequer é uma ação? Q uando Édi-
po se casou com a própria m ãe, mobilizou uma porção
de m oléculas, causou algumas alterações neurofisiológi-
cas em seu próprio cérebro e alterou sua relação espacial
com o Pólo Norte. Tudo isso ele fez sem intenção, e n e­
nhuma delas é uma ação de sua autoria. Contudo, sinto-
me inclinado a dizer que, ao desposar a mãe, em bora o
tenha feito sem intenção, foi, ainda assim, uma ação -
uma ação não-intencional. Qual é a diferença? Não co­
nheço nenhum critério claro para distinguir, entre os as­
pectos das açõ es intencionais, aqueles sob os quais elas
são intencionais e aqueles sob os quais o evento nem se­
quer é uma ação. Um possível critério aproxim ado, suge­
rido por D ascal e G ruengard14, é que con sid erem os a
ação não-intencional sob aqueles aspectos que, em bora
não pretendidos, situam-se, por assim dizer, no cam po
das possibilidades de ações intencionais do agente sob
nosso ponto de vista. Assim, casar-se com a m ãe situa-se
no cam po da possibilidade de constituir uma ação inten­
cional por parte de Édipo, mas m obilizar m oléculas, não.
142 INTENCIONALIDADE

Atos mentais e abstenção. Até aqui discuti apenas ca­


sos em que a ação envolve um m ovim ento corporal, mas
creio não ser difícil estender a interpretação para as ações
em que não há movim ento corporal algum ou em que
apenas um ato mental é realizado. Se, por exem plo, or-
denam-me que fique parado e o bed eço, o conteúdo rele­
vante da minha intenção em ação será

(que essa intenção em ação faça com que se verifique a


não-ocorrência de movimento corporal algum).

Portanto, a ausência de m ovim ento corporal tanto pode


ser parte das co nd ições de satisfação de uma intenção
em ação cau salm ente au to-referente quanto um m ovi­
m ento corporal. C onsiderações sem elhantes aplicam -se
às açõ es negativas. Se me ordenam que pare de fazer
tanto barulho ou m e abstenha de insultar Smith e o b ed e­
ço, a intenção em ação deve causar a ausência de um fe­
nôm eno para ser satisfeita.
Os atos m entais são formalmente isomórficos aos ca­
sos dos atos físicos que estivemos considerando. A única
diferença é que, em vez de um movimento corporal co ­
mo condição de satisfação, tem os um evento puramente
mental. Se, por exem plo, pedem -m e que forme uma ima­
gem mental da Torre Eiffel e acedo, a porção relevante
da intenção em ação será

(que essa intenção em ação me leve a ter uma imagem


mental da Torre Eiffel).

Intenções e precognição. Uma confusão comum é su­


por que, se alguém sabe que uma ação sua terá uma d e­
terminada conseqüência, esse alguém deva pretender tal
conseqüência. Em minha exposição, contudo, é fácil ver
INTENÇÃO EAÇÀO 143

por que isso é falso. Podemos ter conhecim ento de que


determ inada co isa ocorrerá co m o resultad o de n ossa
ação, m esm o que tal ocorrência não se inclua nas condi­
ções de satisfação da intenção. Se, por exem plo, um den­
tista tem conhecim ento de que uma conseqüência de ca ­
voucar o dente de um paciente será a dor, não se segue
que ele pretenda essa conseqüência, o que é dem onstra- <
do pelo fato de que, se a dor não ocorre, não será preci- *
so que diga “Fracassei”, mas sim “Estava enganado”. No

CENTRAL
meu jargão, isso equivale a dizer que as condições de sa­
tisfação de sua crença não foram satisfeitas e não as de
sua intenção. Um engano correlato é supor a existência
de uma relação íntima, talvez até uma identidade, entre
intenção e responsabilidade. Mas consideram os as p es­

B iB U Ú lfc C A
soas responsáveis por muitas coisas que elas não preten­
dem e não as julgam os responsáveis por muitas coisas
que efetivam ente pretendem. Um exem plo do primeiro
caso é o do m otorista que, por im prudência, atropela
uma criança. Ele não pretendia fazer isso, mas é con sid e­
rado responsável. E um exem plo do segundo caso é o do
hom em que é forçado a assinar um contrato sob a mira
de uma arma. Ele pretendeu assinar o contrato, mas não
é considerado responsável.
A redução das intenções a crenças e desejos. P od e­
mos reduzir as intenções prévias a crenças e desejos? Du­
vido, e a razão tem a ver com a auto-referencialiclade
causal especial das intenções. Mas é elucidativo averiguar
até onde conseguim os chegar. Se eu tiver a intenção pré­
via de realizar a ação A, devo acreditar ser possível reali­
zar A e devo ter um desejo de realizar A. O desejo de rea­
lizar A p od e ser “secu n d ário” e não “prim ário”, com o
quando, por exem plo, quero realizar A enquanto m eio
para um determ inado fim e não “por si m esm o”. O bser­
ve-se ainda que não é preciso que eu acredite que vou
144 INTENCIONALIDADE

realm ente con segu ir realizar A, mas devo pelo m enos


acreditar ser possível que o consiga. Incidentalm ente, es­
sa condição explica por que alguém pode, coerentem en­
te, ter desejos que sabe serem incoerentes, mas não p o ­
de, coerentem ente, ter intenções que sabe serem in co e­
rentes. M esmo que eu saiba ser im possível estar nos dois
lugares ao m esm o tempo, posso querer passar a quarta-
feira toda em Sacram ento e querer passar a quarta-feira
toda em Berkeley. Mas não posso, coerentem ente, pre­
tender passar a quarta-feira toda em Sacramento e preten­
der passar a quarta-feira toda em Berkeley. Uma vez que
as intenções, com o os desejos, são fechados co m respei­
to à conjunção, as duas intenções implicariam uma inten­
ção que sei ser impossível de realizar.
Até aqui, portanto, temos

Int (farei A') -> Cren (O farei A) & Des (farei A)

A isso devem os acrescentar a característica auto-referente


de que eu d esejo que o estado em questão cause suas
próprias cond ições de satisfação e que acredito que o es­
tado funcionará causalm ente no sentido de produzir suas
próprias cond ições de satisfação. Tal com o observei an­
tes, não preciso acreditar que terei êxito em minha inten­
ção, mas apenas que o êxito é possível. Portanto, o esta­
do com pleto tem as seguintes im plicações:

Int (farei A) ->■


Há um estado intencional x tal que x contém
Cren (O farei A) &
Des (farei A) &
Cren (x funcionará causalmente no sentido da produção de:
farei A) &
Des ( x causará: farei A)
INTENÇÃO EAÇÃO 145

Ora, isso tudo som ado form a uma intenção? Não


creio. Para co n ceb e r um contra-exem plo; precisaríam os
apenas co n ceb er um caso em que alguém satisfizesse to­
das essas condições, mas, ainda assim, não houvesse efe­
tivamente form ado a intenção de realizar A. Com efeito,
o que a análise deste capítulo e do capítulo 2 sugere é
que é um erro pensar na crença e no desejo com o for­
mas primárias da cognição e da volição. É errado porque
am bos carecem da auto-referencialidade causal interna
que liga a cognição e a volição a suas condições de satis­
fação. Biologicam ente falando, as formas primárias da In­
tencionalidade são a percepção e a ação, pois estas, por
seu próprio conteúdo, envolvem o organismo em relações
causais diretas com o am biente do qual depende a sua
sobrevivência. A crença e o desejo são o que sobra quan­
do se subtrai a auto-referencialidade causal dos conteúdos
Intencionais dos estados Intencionais representacionais
cognitivo e volitivo. Ora, uma vez subtraída essa caracte­
rística, os estados resultantes são muito mais flexíveis. A
crença, ao contrário da lembrança, pode referir-se a qual­
quer coisa e não apenas àquilo que poderia tê-la causado; o
desejo, ao contrário da intenção, pode referir-se a qual­
quer coisa e não apenas àquilo que pode causar.
Por que estão as minhas intenções restritas a conteú ­
dos proposicionais que fazem referência a outras ações
minhas? Por que não posso, por exem plo, pretender que
chova? A resposta a essas perguntas decorre im ediata­
mente de nossa interpretação: devido à auto-referenciali-
dade causal das intenções, só posso pretender o que mi­
nha intenção puder causar. Se eu pudesse causar a chuva
com o uma açào básica, tal com o posso, por exem plo,
causar que m eu braço se erga, poderíam os dizer, por
exem plo, “Pretendo chover”, do m esm o m odo que dize­
m os “P reten d o erg u er o b r a ç o ”, e p o d eríam o s d izer
“Chovi”, assim com o dizemos “Ergui o braço ”.
146 INTENCIONALIDADE

Intenções e explicações da ação. Se as intenções real­


mente causam as ações do m odo descrito, por que não
podem os explicar normalm ente uma ação declarando a
sua in ten çã o ? Se m e p erg u n tam “P or qu e razão ele
ergueu o braço?”, soa estranho responder “Porque ele
pretendeu erguer o braço ”. A razão pela qual isso soa es­
tranho é que, ao identificar a ação com o “erguer o bra­
ç o ”, já a identificam os em termos de uma intenção em
ação. Já revelam os um conhecim ento implícito de que a
causa pela qual o braço subiu foi o com ponente Intencio­
nal na ação de erguê-lo. O bserve-se, porém, que não soa
nem um pou co estranho especificar a intenção em ação
com o a causa do movimento: por que razão o braço dele
se levantou? Ele o ergueu. Tam pouco soa estranho esp e­
cificar alguma outra intenção com o causa da ação. Por
que razão ele ergueu o braço? Ele estava votando / a ce­
nando em despedida / alcançando o livro / exercitando-
se / tentando tocar o teto. É isso que as pessoas estão
tentando dizer quando afirmam que muitas vezes pod e­
mos explicar uma ação redescrevendo-a. Porém, se a re-
descreverm os verdadeiramente, deverá haver, entre os fa­
tos redescritos, alguns que foram deixados cle fora em
nossa prim eira descrição e esses fatos são que a ação
tem um com ponente Intencional que foi deixado de fora
na primeira descrição e que causa o outro com ponente,
ou seja, a intenção prévia do indivíduo de votar erguen­
do o braço causa sua intenção em ação de erguer o bra­
ço, que causa a elevação do braço. Lem brem o-nos de
que, nesta interpretação, todas as ações têm um com p o­
nente Intencional e um com p on en te objeto Intencional
“físico” (ou de outro tipo). Sempre é possível explicar es­
se com ponente não-Intencional pelo com ponente Inten­
cional e este pod e ser tão com plexo quanto se desejar.
Por que razão aquele hom em está se rem exendo daquela
INTENÇÃO E AÇÃO 147

forma? Está afiando um m achado. Mas dizer que ele está


afiando um m achado é dizer que sua ação tem pelo m e­
nos dois com ponentes, uma intenção em ação de afiar o
m achado e a série de m ovimentos que essa intenção cau­
sa. Mas não pod em os respond er à pergunta “Por que
razão ele está afiando o m achado?” através cla identifi- <
cação dessa intenção, pois já identificamos a intenção de *
afiar o m achado quando fizem os a pergunta. Mas pode- 8-

9 ,S u '0 T Ê .C A . C 6 N T R M .
m os dizer, por exem plo, “Porque está se preparando pa­

^
ra cortar uma árvore”.
Uma d iscu ssão m ais d etalhad a da e x p lic a çã o do

U N I V t f c H D - ; t F s .ü t«A u
com portam ento talvez seja tema para outro livro, mas já
está implícita em minha interpretação a seguinte restrição
à explicação do com portam ento: na explicação Intencio­
nal das ações, o conteúdo proposicional da explicação
deve ser idêntico ao conteúdo proposicional de um esta­
do Intencional que funcione causalm ente, via causação
Intencional, na produção do com portam ento. Tais esta­
dos que funcionam causalm ente podem ser ou intenções
ou estados antecedentes tais com o desejos, crenças, es­
peranças, tem ores etc., que causam as intenções através
da razão prática. Q ualquer que seja o caso, porém , se a
explicação de fato explica, o seu conteúdo proposicional
deve ser idêntico ao conteúdo proposicional do estado
Intencional que funciona via causação Intencional.
O que você está fazendo agora? O conteúdo da inten­
ção em ação faz referência a si próprio. É por isso que faz
perfeitam ente sentido dizer, em resposta à pergunta “O
qu e.v ocê está fazendo agora?”, “Estou erguendo o b raço ”,
e não “Estou causando a subida de meu braço”, em bora
esta última expressão articule o com ponente não-auto-re-
ferente da intenção em ação. Mas a ação com pleta é uma
intenção em ação mais um movimento corporal causado
pela intenção em ação e que é o resto das condições de
148 INTENCIONALIDADE

satisfação dessa intenção em ação. D esse modo, aquele


que fala declara o conteúdo da intenção de maneira bas­
tante precisa quando diz “Estou erguendo o braço”; ou, se
quiser separar o conteúdo Intencional de sua satisfação,
pode dizer “Estou tentando erguer o braço”.

vn

Nesta seção, tentarei mostrar de que m odo essa teo ­


ria da ação explica os paradoxos da seção II.
Em prim eiro lugar, a razão pela qual há entre as
ações e as intenções uma ligação mais íntima que entre,
digam os, as cren ças e os estacios de coisas, é qu e as
ações contêm intenções em ação com o um de seus com ­
ponentes. Uma ação é uma entidade composta da qual um
dos com ponentes é uma intenção em ação. Se a entidade
com posta contiver tam bém elem en tos que constituem as
cond ições de satisfação do com p onente Intencional do
m odo descrito acima, o agente tem êxito na realização de
uma ação intencional. Do contrário, ele tenta mas não
consegue. Assim, em nosso exem plo fartamente utiliza­
do: minha ação de erguer o braço tem dois com ponen­
tes, a intenção em ação e o m ovim ento do braço. Tire-se
o primeiro e não se tem uma ação, mas apenas um movi­
mento; tire-se o segundo e não se tem êxito, mas apenas
um esforço frustrado. Não há ações, nem mesm o não-in-
tencionais, sem intenção, pois toda ação tem uma inten­
ção em ação com o um de seus com ponentes.
O sentido em que podem os dizer que uma ação in­
tencional é causada por uma intenção ou sim plesm ente é
a condição de satisfação de uma intenção pode agora ser
expresso com mais precisão. Parte das condições de sa­
tisfação de uma intenção prévia é, de fato, a realização
INTENÇÃO EAÇÃO 149

de uma ação, mas nem todas as ações são realizadas co ­


mo resultado de intenções prévias. T al'co m o vimos, po­
de haver ações sem as correspondentes intenções prévias,
com o quando eu tiro o carro da vaga e atropelo uma
pessoa sem qualquer intenção prévia de a atropelar. Mas
não pode haver nenhuma ação, nem mesmo não-intencio-
nal, sem intenções em ação. Portanto, as ações necessaria­
mente contêm intenções em ação, mas não necessariam en­

00
te são causadas por intenções prévias. Todavia, o conteú ­

CENTRAL
do Intencional da intenção em ação não é que ela deva

E F t D t * “ L.
causar a ação, mas sim que deva causar o m ovim ento
(ou estado) do agente que é sua condição de satisfação;
e os dois em conjunto, intenção em ação e movimento,

OtBUüTECA
constituem a ação. Assim, não foi de todo correto dizer
que uma ação intencional é sim plesm ente a cond ição de

UNIVEK^D^i
satisfação de uma intenção; foi errado por duas razões:
as ações não requerem intenções prévias e, em bora re­
queiram efetivam ente intenções em ação, a condição de
satisfação da intenção em ação não é a ação, mas sim o
m ovim ento ou estado do agente tal com o é causado pela
intenção em ação. Repetindo, uma ação é qualquer even­
to ou estado com p osto que co n ten h a a ocorrên cia de
uma intenção em ação. Se essa intenção em ação causa o
resto de suas condições cle satisfação, o evento ou estado
é uma ação intencional realizada com sucesso; do co n ­
trário, é malsucedida. Uma ação nâo-intencional é uma
ação nào-intencional, seja ela bem ou malsucedida, que
tem em si aspectos não tencionados, ou seja, que não fo­
ram apresentados com o condições de satisfação da inten­
ção em ação. Contudo, muitas coisas que faço sem in­
tenção, com o espirrar, não são ações, pois, em bora sejam
coisas que causo, não contêm intenções em ação.
150 INTENCIONALIDADE

Em segundo lugar, temos agora uma explicação bem


simples para os contra-exem plos ao estilo de Chisholm à
co n cep ção de que as ações causadas por intenções são
ações intencionais. No exem plo do tio, a intenção prévia
causou a m orte do tio, mas esta morte foi não-intencio-
nal. Por quê? Em nossa análise, vimos que há três está­
gios: a intenção prévia, a intenção em ação e o movi­
m ento físico . A in te n ç ã o .p révia cau sa o m o v im en to
através do causar a intenção em ação, que causa e apre­
senta o movim ento com o sua cond ição de satisfação. No
exem plo do tio, porém, esse estágio intermediário ficou à
margem. Não tivemos a morte do tio com o a condição
de satisfação de nenhum a intenção em ação e é por isso
que ele foi m orto nâo-intencionalm ente.
D o ponto de vista formal, o exem plo de Davidson
é idêntico ao de Chisholm: a razão pela qual o fato de o
alpinista soltar a corda é não-intencional, no caso apre­
sentado, é que ele não teve nenhum a intenção em ação
de soltar a corda. Não houve nenhum m om ento em que
ele pudesse ter dito: “Estou agora soltando a cord a”, c o ­
m o m eio de articular o conteú d o de sua in tenção em
ação, ou seja, com o m eio de explicitar as co n d içõ es de
satisfação de sua in ten ção , em bora ele pudesse dizer
precisam ente isso com o m eio d e d escrever o que lhe
estav a a c o n te c e n d o . M esm o q u e , co m b a se em sua
crença e seu d esejo, ele form asse um d esejo secundário
de soltar a corda e esse d esejo o levasse a soltar a co r­
da, ainda assim não seria uma ação intencional se ele
não tivesse uma intenção em ação de soltar a corda. Em
uma ação intencional, por outro lado, o m odo padrão
pelo qual funcionaria a seq ü ên cia de estados In ten cio ­
nais seria o seguinte:
INTENÇÃO E AÇÃO 151

Quero (livrar-me do peso e do perigo)


Acredito (que o melhor meio de me livrar do peso e do
perigo é soltar a corda).

E, pela razão prática, isso leva a um desejo secundário

PARA
Quero (soltar a corda).

E isso leva, com ou sem uma intenção prévia, a uma in­

CEnTWal
DO
tenção em ação: o alpinista diz a si mesm o, “Agora!”, e o
conteúdo de sua intenção em ação é

Ft DER AL
Estou agora soltando a corda.

B 'B u ü T £ C A
Isto é,

UNIVERSIDADE
Essa intenção em ação faz com que minha mão afrouxe
sua pressão sobre a corda.

A estrutura inteira é ao m esm o tem po Intencional e


causal; a seqüência de estados Intencionais causa o m o­
vimento corporal-, O exem plo de B ennett é genuinam en­
te diverso dos outros dois, pois o pretenso assassino tem
de fato uma intenção em ação de matar a vítima e tal efe­
tivamente causa sua morte. Por que, então, 'relutamos to­
dos em dizer que a condição de satisfação foi satisfeita?
Creio que a razão é óbvia: presum im os que o assassino
tinha uma intenção com plexa que envolvia séries esp ecí­
ficas de relações dó tipo por-m eio-de. Tencionava matar
a vítima por m eio de alvejá-la com uma arma etc., e tais
condições de satisfação não foram satisfeitas. Em vez dis­
so, a vítima foi morta pelo estouro não-inten cion al de
uma manada de porcos selvagens.
Consideram alguns que o problem a em todos esses
casos está relacionado à estranheza das seqüências cau-
152 INTENCIONALIDADE

sais, mas a estranheza da seqüência causal só importa se


for parte do conteúdo Intencional da intenção em ação
que essa seqüência não seja estranha. Para verificarmos
esse aspecto, podem os estabelecer a seguinte variante cio
exem plo acim a: O assistente do assassino, sabend o de
antem ão tudo sobre os porcos selvagens, avisa ao assas­
sino: “Atire naquela direção e assim o matará”. O assassi­
no segue as instruções, com a morte da vítima com o co n ­
seqüência última; neste caso, a morte é intencional, em ­
bora tenham os a mesma seqüência causalm ente bizarra
que no exem plo original de Bennett.
Será possível encontrarm os contra-exem plos sem e­
lhantes em que algo se interpõe entre a intenção em ação
e o evento, de tal modo que, em bora possamos dizer que
a intenção em ação causou o evento, a ação não seja in­
tencional? Uma classe de possíveis contra-exem plos são
os casos em que outra intenção em ação qualquer inter­
vém para provocar o evento. Assim, suponham os que,
sem que eu o saiba, meu braço está aparelhado de tal
m odo que, sem pre que eu tento levantá-lo, outra pessoa
faz com que ele se erga; neste caso a ação não é minha,
m esmo que eu tenha tido a intenção em ação de erguer o
braço e, em um certo sentido, minha intenção o tenha
levado a erguer-se. (O leitor reconhecerá nisso, essencial­
mente, a solução ocasionalista para o problem a m ente-
corpo. Deus realiza todas as nossas ações por nós.)
Mas essa classe de contra-exemplos possíveis é elimi­
nada ao simplesmente conceber-se a relação entre a inten­
çã o em a çã o e sua co n d içã o de satisfação co m o um
obstáculo à interferência de outros agentes ou outros esta­
dos Intencionais. E que esta é a maneira correta de se con­
ceber as intenções em ação é ao menos indicado pelo fato
de que, quando minhas intenções em ação fazem referência
explícita às intenções de outros agentes, em geral as ações
INTENÇÃO E AÇÃO 153

tornam-se ações desses outros agentes. Assim, suponhamos


que eu saiba que meu braço está aparelhado e que eu quei­
ra que ele se erga. Neste caso, minha intenção em ação é
fazer com que o outro agente o erga e não erguê-lo. Minha
ação é fazer com que ele o erga, a ação dele é erguê-lo.
Todavia, enquanto não houver Intencionalidade algu- <
ma a intervir e enquanto seu funcionamento for regular e <
confiável, não importa o quão estranho seja o aparato físi-

CENTRAL
co. Mesmo que, sem que eu saiba, o meu braço esteja liga- 3
do a uma profusão de fios que passam por Moscou e retor­
nam via San Diego e quando tento erguer o braço isso ati- *
ve toclo esse aparato cie modo a que o braço se erga, ainda 'j
assim eu ergo o braço. E, com efeito, em alguns tipos de

© iBU O ieCA
ação complexa, chegamos a conceder que se possa realizar

U N IV ER S lD A i-fc
uma ação fazendo com que outros a realizem. Desse m o­
do, dizemos, “Luís XIV construiu Versalhes”, mesmo que a
construção de fato não tenha sido realizada por ele.
Os contra-exem plos que discutimos até aqui, portan­
to, são facilm ente explicáveis por uma teoria da In ten cio­
nalidade da intenção e da ação, e especialmente por um es­
tudo das intenções em ação. Entretanto, o presente estu­
do ainda está incom pleto, pois há uma classe de possí­
veis contra-exem plos que ainda não foi discutida, casos
em que a intenção prévia causa uma outra coisa que cau­
sa a intenção em ação. Suponham os, por exem plo, que a
intenção de Bill de matar o tio lhe cause uma dor de es­
tôm ago e que essa dor de estôm ago o deixe tão irado
que ele se esqueça de sua intenção original, mas, em sua
ira, ele mata o primeiro hom em que vê, o qual reco n h e­
ce com o o tio. A elim inação desses contra-exem plos, ju n ­
tamente com mais alguns contra-exem plos acerca da In ­
tencionalidade das experiências perceptivas, terá de es­
perar até que possam os apresentar um estudo da causa-
ção Intencional no capítulo 4.
CAPÍTULO 4
CAUSAÇÃO INTENCIONAL

ac
<
x

CENTRAL

KtOtK-L.
I

B iB u lO T E C *
WNIVEK^iD-. t
Há na filosofia da m ente uma incôm oda relação en ­
tre Intencionalidade e causalidade. A causalidade é geral­
mente considerada uma relação natural entre eventos no
m undo; a Inten cio n alid ad e é con sid erad a de diversos
modos, mas, em geral, não com o um fenôm eno natural a
integrar a ordem natural tanto quanto qualquer outro fe­
nôm eno bio ló g ico . A In ten cio n alid ade é muitas vezes
considerada algo transcendente, algo situado acim a ou
além, mas apartado do mundo natural. O que dizer, en ­
tão, da relação entre Intencionalidade e causalidade? Po­
dem os estados Intencionais agir causalmente? E onde re­
side sua causa? Tenho diversos objetivos neste capítulo,
mas um dos principais é dar um passo n o sentido de In-
tencionalizar a causalidade e, portanto, no sentido de na­
turalizar a Intencionalidade. Com eçarei esse em preendi­
mento por examinar algumas das raízes da moderna ideo­
logia da causação.
156 INTENCIONALIDADE

No exem plo filosófico adotado à exaustão (e a re­


corrência desses m esm os exem plos na filosofia deveria
despertar nossas suspeitas), a bo la de bilhar A cum pre
seu inevitável trajeto através do pano verde até colidir
com a bola B, ponto em que B com eça a m over-se e A
im obiliza-se. Essa pequena cena, recontada vezes infin­
das, é o paradigma da causalidade: o evento de A coli­
dindo com B causou o evento de B entrar em m ovim en­
to. E, segundo a visão tradicional, quando testem unha­
mos essa cen a não vem os realm ente, nem observam os
de forma algum a, quaisquer co n e x õ e s causais entre o
primeiro e o segundo evento. O que de fato observam os
é um evento seguido de outro. Podem os, contudo, obser­
var a repetição de pares sem elhantes de eventos e essa
re p etiçã o co n sta n te au to riza-n o s a dizer q u e os d ois
mem bros dos pares estão causalm ente relacionados, m es­
mo que não possam os observar relação causal alguma.
Há uma teoria m etafísica profundam ente arraigada
nessa breve interpretação e, em bora as teorias de causa-
çâo variem muito de um filósofo para outro, certas pro­
priedades formais desfrutam tão ampla aceitação enquan­
to características da relação causal que constituem o nú­
cle o da te o ria ; seu s p rin cíp io s b á sico s m e recem um
enunciado à parte.
1. O nexo causal em si não é observável. E possível
observar regularidades causais; ou seja, é possível obser­
var certos tipos de seqüências regulares em que eventos
de um certo tipo são seguidos de eventos de outro tipo;
no entanto, além das regularidades, não se pode obser­
var uma relação de causação entre eventos. Não posso
ver literalmente que um evento causou outro do m esm o
modo que posso ver literalm ente que o gato está no ca­
pacho, ou que um evento se seguiu a outro. No exem plo
da bola de bilhar, vejo eventos que estão de fato causal-
CAUSAÇÃO INTENCIONAL 157

m ente relacionados, mas não percebo relação causal al­


guma além da regularidade.
2. Sem pre que há um par de eventos relacionados
com o causa e efeito, esse par deve exem plificar alguma
regularidade universal. Para cada caso individual em que
um evento causa outro, deve haver alguma descrição do
primeiro evento e alguma descrição do segundo tais que
haja uma lei causal que correlacione os eventos que se
enquadram na primeira descrição com os que se enqua­
dram na segunda.
A idéia de que toda relação causal particular exem ­
plifica uma regularidade universal é, acredito, o cerne da
moderna teoria da regularidade da causaçâo. Ao enunciá-
la, é importante distinguir entre suas versões m etafísica e
lingüística. Na versão metafísica, toda relação causal parti­
cular é, de fato, exem plo de uma regularidade universal.
Na versão lingüística, faz parte do conceito de causação
que cada enunciado causal singular implique a existência
cie uma lei1 causal que relacione os eventos dos dois ti­
pos em uma descrição ou outra. A alegação lingüística é
mais forte que a metafísica, no sentido de que im plica a
alegação metafísica, mas não é implicada por ela.
As versões contem porâneas da tese da regularidade
não afirmam que um enunciado causal singular implica
alguma lei particular, mas sim plesm ente que há uma lei.
E, naturalmente, a lei não precisa ser enunciada nos m es­
mos termos em que o enunciado foi expresso. Assim, por
exem plo, o enunciado “O que Sally fez causou o fen ô ­
m eno visto por Jo h n ”, pode ser verdadeiro m esm o que
não haja nenhum a lei causal relativa ao que Sally faz e
ao que Jo h n vê nessas descrições. D esse modo, suponha­
mos que Sally tenha acendido o fogo debaixo da chaleira
cheia d’água e que Jo h n tenha visto a água fervendo. O
enu nciad o causal original pod e ser verdadeiro e pode
158 INTENCIONALIDADE

exem plificar uma lei, ou leis, causal(is) mesmo que essa


lei seja enunciada em termos da energia cinética das m o­
léculas de água na atmosfera e não em termos dos feitos
de Sally e das percepções visuais de Jo h n 2.
Além disso, algumas versões dessa teoria da regulari­
dade da causação exigem que as leis causais justifiquem
as alegações contrafatuais que norm alm ente consid era­
mos associadas aos enunciados causais. A alegação de
que, em uma instância particular, se a causa não houves­
se ocorrido não teria ocorrido o efeito, desde que as de­
mais circunstâncias perm anecessem as mesmas, precisa
ser justificada por uma correlação universal entre eventos
do primeiro tipo e eventos do segundo tipo, em uma ou
outra descrição.
3. As regularidades causais são distintas das lógicas.
Há muitas regularidades que nem sequer são possíveis
candidatas a regularidades causais porque os fenôm enos
em questão encontram -se logicam ente relacionados. As­
sim, por exem plo, ser um triângulo está sem pre associa­
do a possuir três lados, mas o fato de alguma coisa ser
um triângulo nunca poderia ser a causa dessa coisa ter
três lados, dado que essa correlação ocorre por necessi­
dade lógica. Os aspectos sob os quais um evento causa
outro evento devem ser logicam ente independentes. Mais
uma vez, essa tese metafísica tem um correlato lingüístico
no modo formal. A lei causal deve enunciar regularida­
des em descrições logicam ente independentes e, portan­
to, deve enunciar uma verdade contingente3.
A p resen te abordagem da cau sação está sujeita a
muitas o bjeções, algumas notórias. Apresento a seguir vá­
rias d elas. Em prim eiro lugar, tal ab o rd ag em é uma
afronta à nossa convicção, baseada no senso comum, de
que percebem os efetivam ente as relações causais o tem ­
po todo. A experiência de perceber um evento em segui-
CA USAÇÃ O INTENCIONAL 159

da a outro evento é, na verdade, bem diferente da e x p e­


riência de perceber o segundo evento fenquanto causado
pelo primeiro, e as investigações de Michotte4 e Piaget5
parecem sustentar nossa co n cep çã o baseada no sen so
comum. Em segundo lugar, é difícil perceber de que m o­
do esta abo rd agem pod e d iferen ciar as regu larid ades
causais de outros tipos de regularidades con tin gen tes.
Por que, para usar um exem p lo fam oso, não dizem os «t
que a noite causa o dia? Em terceiro lugar, é difícil ajustar 5
esta interpretação ao fato aparente de que, ao realizar-
mos ações humanas, parecem os ter consciência de estar- O ^
mos afetando causalm ente o nosso ambiente. Alguns filó-
sofos de tal modo se deixaram impressionar pelas peculia­
ridades da ação humana que postularam um tipo especial
de causação, próprio aos agentes. Segundo eles, há, na
verdade, dois tipos cie causação, um para os agentes e
outro para o resto do universo; portanto, distinguem en­
tre a causação “de agente” e a causação “de ev en to”, ou
causação “im anente” e “transitiva”6. Em quarto lugar, esta
abordagem é am bígua acerca daquela que d eve ser a
questão crucial: estarão as causas cle fato presen tes no
mundo externo ou não? Haverá quem queira responder
que naturalmente sim, da mesma forma que as ocorrências
de eventos podem realm ente ser relacionadas um as às
outras no esp aço e no tem po de maneira a poderem ser
relacionadas com o causa e efeito, além cle estarem relacio­
nadas pela co-ocorrência regular de outras ocorrên cias
dos tipos que exemplificam. Mas não é fácil p erceb er de
que m odo poclem existir essas relações além das regulari­
dades na teoria tradicional. Hume, que mais ou m enos
inventou essa teoria, teve a coerência de p erceb er que
não era possível aceitá-la e continuar sendo um realista
acerca da causação. Além da prioridade, contigiiidade e
conjunção constante, a causação não dispõe de mais na-
160 INTENCIONALIDADE

da no m undo real, a não ser de um a ilusão da mente.


Kant achava que a questão nem sequer fazia sentido,
uma vez que os princípios causais formam categorias ne­
cessárias do entendim ento, sem as quais a experiência e
o conhecim ento do m undo seriam de todo impossíveis.
Muitos filósofos pensaram que poderíam os alcançar a n o ­
ção de causação observando as ações hum anas, mas
mesmo com estas há ainda um problem a sério acerca de
com o podem os generalizar em seguida essa noção de
m odo a abranger coisas que não ações humanas e como
podem os conceber a causação com o uma relação real no
mundo, independente de nossas ações. Von Wright, por
exemplo, que acha. que obtem os a idéia de necessidade
causal “a partir de observações que em preendem os ao
interferir ou nos abster de interferir na natureza”, enfren­
ta o problem a da seguinte maneira:

Pode-se dizer que tanto na visão de Hume como na que é


adotada aqui, a necessidade causal não pode ser encontra­
da “na natureza”. A natureza oferece apenas seqüências
regulares.7

Prossegue afirmando que isso não torna nossa conversa


sobre a causação puram ente subjetiva, pois há, de fato,
certas características da natureza que correspondem à
nossa conversa causal, a saber, a recorrência regular de
discretas exemplificações de estados de coisas genéricos,
mas a interpretação de Von Wright, como a de Hume,
acaba negando a visão baseada no senso comum de que
as relações causais estão realm ente “lá fora” na natureza,
além das regularidades.
Em quinto lugar, o presente estudo não distingue en­
tre os causadores, em que, por exemplo, um evento causa
outro evento ou mudança, e outros tipos de relações cau-
CAUSAÇÃO INTENCIONAL l6 l

sais, que podem existir entre os estados de coisas perm a­


nentes e as características de objetos. A'bola de bilhar A a
colidir com a bola B e causando, assim, seu movimento é
um exemplo de um causador. Mas nem todas as relações
causais são causadoras. Por exemplo, se as bolas perm a­
necem imóveis na mesa de bilhar, o tem po todo estão su­
jeitas a forças causais, por exemplo a gravidade. Todos os
enunciados envolvendo causadores são enunciados de re­
lações causais, mas nem todos os enunciados de relações
causais são enunciados envolvendo causadores. “O evento
x causou o evento y ” é uma forma característica de enun­
ciado envolvendo um causador, mas de modo algum é a
única forma de enunciar de uma relação causal. “A bola
de bilhar é gravitacíonalmente atraída para o centro da ter­
ra” enuncia uma relação causal, mas não é uma relação
entre eventos e o enunciado não descreve nenhum causa­
dor. Creio que é por confundirem as relações causais com
os causadores que os adeptos da visão tradicional são in­
clinados a tratar as relações causais como válidas apenas
entre eventos, mas elas existem entre coisas que não even­
tos, como bolas de bilhar e planetas.
Além disso, embora seja comum distinguir entre os
enunciados na forma “x causou y ”, que são explicações
causais, e os demais, tanto quanto eu saiba não tem sido
adequadam ente enfatizado que o poder explicativo de
um enunciado na forma x causou y depende da medida
em que as especificações de x e y descrevem-nos sob as­
pectos carnalmente relevantes. Em nosso exemplo anterior,
a ação de Sally causou o fenôm eno visto por John, mas
que a ação fosse em preendida por Sally e vista por John
não são aspectos sob os quais os dois eventos estão cau-
salmente relacionados. Alguns dos aspectos causalmente
relevantes, nesse caso, são que a água foi aquecida e que
ferveu. Há pouco poder explicativo em dizer que a ação
162 INTENCIONALIDADE

de Sally causou o fenômeno visto por John, pois que a


ação fosse em preendida por Sally não é um aspecto cau­
sal responsável pelo evento a ser explicado, e ser visto
por John não é um aspecto do evento sob o qual ele é
explicado pelos aspectos causais do evento que o causou.
Desde o artigo de F0llesclal8 sobre o tema, tem sido
amplamente aceito o fato de que certas formas de enuncia­
do causal são intensionais. Por exem plo, enquanto os
enunciados na forma “x causou y ” são extensionais, aque­
las na forma “x causalmente explica y" são intensionais.
Cieio que a explicação para esse fato lingüístico é que
apenas certas características dos eventos são aspectos cau­
salmente relevantes; portanto, com o o enunciado reivindi­
ca um poder explicativo, a verdade não é preservada me­
diante a substituição por outras expressões que não espe­
cificam x e y sob aspectos causalm ente relevantes. Por
exemplo, se o fato de Jones ter comido peixe envenenado
explica causalmente a sua morte e o evento de Jones ter
comido peixe envenenado é idêntico ao evento de Jones
ter comido truta ao molho bearnês pela primeira vez na vi­
da, não se segue que o fato de haver ele comido truta ao
molho bearnês pela primeira vez na vida explica causal­
mente sua morte. A noção de um aspecto causalmente re­
levante e sua relação com a explicação causal são cruciais
para a argumentação do restante deste capítulo.

II

Quero agora chamar a atenção para o fato de que


há certos tipos de explicações causais muito com uns rela­
cionadas a estaclos, experiências e ações hum anas que
não se adaptam muito com odam ente à interpretação or­
todoxa da causação. Por exemplo, suponham os que eu
CAUSAÇÂO INTENCIONAL 163

esteja com sede e tome um gole d ’água. Se alguém me


p erg u n tar p o r que tom ei um gole d-água, co n h eço a
resposta sem nenhum a outra observação: estava com se­
de. Além disso, nesse tipo de caso, parece-me conhecer
a verdade do contrafatual sem nenhum a observação adi­
cional e nenhum apelo a leis gerais. Sei que se eu não
estivesse com sede exatam ente naquele m om ento e lugar
não teria tom ado aquele gole crãgua específico. Ora,
quando alego conhecer a verdade de um a explicação
causal e de um contrafatual causal desse tipo, será por­
que sei existir um a lei universal que correlaciona os
“eventos” do primeiro tipo, eu estar com sede, com os do
segundo tipo, eu beber, em uma ou outra descrição? E
quando disse que o fato de eu estar com sede causou
meu ato de beber água, estará a existência de uma lei
universal incluída no sentido de minhas palavras? Estarei
comprometido com a existência de uma lei em virtude do
próprio significado das palavras emitidas? Parte de minha
dificuldade para dar respostas afirmativas a essas pergun­
tas reside em eu ter muito mais confiança na verdade de
meu enunciado causal original e no correspondente con­
trafatual causal do que tenho na existência de quaisquer
regulariclades universais que cobririam o caso. Parece-me
bem pouco provável haver quaisquer leis pertinentes pu­
ramente psicológicas: suponham os que todos os fatores
psicológicos fossem repetidos exatam ente (o que quer
que isso queira dizer); suponham os que eu tenha o mes­
mo grau de sede, que a água tenha o mesmo grau de
disponibilidade conhecida etc. Será que m inha alegação
original me com prom ete com a posição de que, em uma
situação exatam ente sem elhante, eu agiria do m esm o
modo? Duvido. Na segunda vez eu poderia ou não tom ar
um gole d ag u a. Cabe a mim decidir. Talvez haja leis físi­
cas no nível neurofisológico ou até no molecular que des-
164 INTENCIONALIDADE

creveriam o caso, mas seguramente nâo tenho por certo


que tais leis existam, muito menos que leis poderiam ser
essas; e, ao fazer minha alegação causal original, não me
comprometo com a perspectiva de que tais leis existam.
Como filho da era moderna, acredito na existência de toda
sorte de leis físicas, conhecidas e desconhecidas, mas não
foi isso que eu quis dizer, nem parte do que eu quis dizer,
quando disse que tomei um gole d ’água porque estava
com sede. Bem, e o que foi que eu quis dizer?
Considerem os alguns outros exem plos. Nos casos
das percepções e das ações, há dois tipos de relações
causais entre os estados Intencionais e seus objetos In­
tencionais. No caso da percepção, minha experiência vi­
sual é tipicamente causada pelo encontro com algum ob­
jeto no m undo e, por exemplo, se alguém me perguntas­
se “O que o levou a ter a experiência visual da flor?”, a
resposta natural seria com certeza “Eu vi a flor”. E, no ca­
so da ação, m eu estado Intencional causa um movimento
do meu corpo, de m odo que, se alguém me perguntasse
“O que levou seu braço a erguer-se?”, a resposta natural
seria “Eu o ergui”. E observe-se que essas duas explica­
ções causais bastante com uns parecem com partilhar as
mesmas características desconcertantes do exem plo de
beber água, se tentarmos assimilá-las à teoria oficial. Co­
nheço, sem n enhum a outra observação, a resposta às
perguntas “O que levou seu braço a mover-se e o que o
levou a ter a experiência visual da flor?”, e conheço, sem
nenhum a outra observação, a verdade dos contrafatuais
correspondentes; além disso, a verdade do enunciado
causal e dos contrafatuais não parece depender da exis­
tência de leis universais abrangentes. E, em bora eu de fa­
to acredite na provável existência de leis universais da
percepção e da ação intencional, de m odo algum é óbvio
que, ao fazer essas alegações causais isoladas, eu esteja
CAUSAÇÀO INTENCIONAL 165

com prom etido com a existência de tais leis universais,


que faz parte do significado das próprias alegações a
existência de tais leis.
Um caso ligeiramente mais com plexo pode ser o do
tipo a seguir. Estou cam inhando quando, de repente, um
hom em vindo no sentido contrário esbarra em mim sem
querer, em purrando-m e para a sarjeta. Ora, mais um a

PAR*
vez, excluindo as alucinações e coisas do gênero, sem
nenhum a outra observação, a resposta à pergunta “O que

CENTK.VU
o levou a cair na sarjeta?” seria “O hom em chocou-se

ÚO
contra mim e em purrou-m e para a sarjeta”. Nesse caso,
quer-se dizer, “Sei tudo isso porque me senti sendo em ­

Fcl>c *
purrado para a sarjeta e vi o hom em fazendo-me isso”.
Os quatro casos acima envolvem a Intencionalidade

BiBUQTfcC*
sob uma ou outra forma e todas as explicações em ques­
tão parecem partir da teoria tradicional acerca do que

t
presumivelm ente é a explicação causal. Chamemos esses

UNlVE*.Siü*i
casos - e outros do gênero - casos de causação Intencio­
nal e examinemos de que m odo, exatamente, a forma da
explicação na causação Intencional difere daquela pres­
crita pela teoria tradicional cla regularidade da causação.
Em primeiro lugar, conheço, em cada caso, tanto a
resposta para a pergunta causal como a verdade do con-
trafatual correspondente sem nenhum a observação adicio­
nal além da experiência do evento em questão. Quando
afirmo conhecer a resposta à pergunta causal sem nenhu­
ma outra observação, não quero dizer que tais alegações
de conhecimento sejam incorrigíveis. Eu poderia estar ten­
do uma alucinação quando disse que essa experiência vi­
sual foi causada pela visão de um a flor, mas a justificação
da alegação original não depende de outras observações.
Em segundo lugar, essas alegações causais não me
com prom etem com a existência de nenhum a lei causal
pertinente. Eu poderia adicionalm ente - e, aliás, isso de
166 INTENCIONALIDADE

fato acontece - acreditar na provável existência de leis


causais correspondentes a esses quatro tipos de eventos,
mas não era esse o significado de minhas palavras em ca­
da caso, ao responder à pergunta causal. A alegação de
que há leis causais correspondentes a esses eventos não é
uma conseqüência lógica desses enunciados causais isola­
dos. E o argumento em favor dessa independência é que
é logicamente consistente insistir na verdade dessas expli­
cações causais e todavia negar uma crença nas leis cau­
sais correspondentes. Sei, por exemplo, o que me levou a
tomar o gole d ’água: estava com sede; mas, ao dizer isso,
não estou comprometido com a existência de nenhum a lei
causal, mesmo que eu de fato acredite na existência de
tais leis. Além disso, meu conhecim ento da verdade dos
contrafatuais, em cada caso, não deriva de meu conheci­
mento de nenhum a lei correspondente ou mesmo de meu
conhecim ento da existência de tais leis.
Se pensarm os nisso um pouco, parece que a visão
tradicional, pelo m enos em sua versão lingüística, faz
uma alegação extraordinariamente enfática e infundada, a
saber, que qualquer enunciado do tipo

Minha sede levou-me a beber

implica um enunciado na forma

Há uma lei L tal que há uma descrição <jo de minha sede e


uma descrição y/ de meu ato de beber e L afirma a exis­
tência de uma correlação universal entre eventos do tipo <p
e eventos do tipo y/.

Com certeza, tal não é intuitivamente plausível e, então,


qual será o suposto argum ento em favor do enunciado?
O único que jamais vi é o argumento humeano, segundo
CAUSAÇÃO INTENCIONAL 167

o qual, dado que a causação não tem nada além da regu­


laridade, para cada enunciado causal vÊrdadeiro deve ha­
ver uma regularidade. Se negarm os o realismo causal, a
nada poderão se referir os enunciados causais exceto a
regularidades. Se somos realistas causais, porém, se acre­
ditamos, com o eu, que o termo “causa” designa uma rela­
ção real no m undo real, o enunciado de que essa relação
existe em um a instância particular não implica, em si m es­
mo, um a correlação universal de instâncias semelhantes.
Em terceiro lugar, em cada caso parece haver uma
conexão lógica ou interna entre causa e efeito. E não me
refiro apenas à existência de um a relação lógica entre a
descrição da causa e a descrição do efeito (em bora isso
tam bém fosse verdadeiro em nossos exemplos), mas sim
a que a própria causa, independentem ente de qualquer
descrição, está logicamente relacionada ao próprio efeito,
independentem ente de qualquer descrição. Como é pos­
sível tal coisa? Em cada caso, a causa era ou uma apre­
sentação ou uma representação do efeito, ou o efeito era
uma apresentação ou representação da causa. Vejamos
os exemplos: a sede, independentem ente de com o é des­
crita, contém um desejo de beber e tal desejo tem, como
condições de satisfação, que se beba; uma intenção em
ação de erguer o braço, independentem ente de com o é
descrita, tem como parte de suas condições de satisfação
que o braço se levante; a experiência visual de um a flor,
independentem ente de como é descrita, tem com o con­
dições de satisfação a presença de uma flor; experiências
tácteis e visuais de ser em purrado por um homem, inde­
pendentem ente de como são descritas, têm com o parte
de suas condições de satisfação o ser em purrado por um
homem. A razão pela qual há uma relação lógica ou in­
terna entre a descrição da causa e a descrição do efeito
nos nossos exem plos é que em cada caso há um a rela-
168 INTENCIONALIDADE

çào lógica ou interna entre as próprias causas e efeitos,


uma vez que em cada caso há um conteúdo Intencional
causalmente relacionado com suas condições de satisfa­
ção. A especificação de causa e efeito sob esses aspectos
causalmente relevantes, que envolvem a Intencionalidade
e as condições de satisfação dessa Intencionalidade, nos
oferecerá descrições logicamente relacionadas de causa e
efeito precisam ente porque as próprias causas e efeitos
estão logicamente relacionados; não logicamente relacio­
nados por vinculação, mas sim por conteúdo Intencional
e por condições de satisfação. Acredito que suporm os
que os eventos só podem estar logicamente relacionados
em um a descrição revela um a confusão fundam ental,
pois os próprios eventos podem ter conteúdos intencio­
nais que os relacionem logicamente, independentem ente
cle como são descritos.
Qual a noção de causaçâo segundo a qual essas for­
mas um tanto comuns de explicação são até mesmo pos­
síveis? Como essas formas não parecem cumprir os requi­
sitos hum eanos clássicos quanto àquilo que se supõe ser
a forma de uma explicação causal, elevemos responder à
pergunta sobre com o tais formas de explicação são até
m esm o possíveis. A estrutura formal do fenôm eno da
causaçâo Intencional para os casos simples de percepção
e de ação é a seguinte: há, em cada caso, um estado ou
evento Intencional auto-referente e a forma da auto-refe-
rência (no caso da ação) é que seja parte do conteúdo
do estado ou evento Intencional que suas condições de
satisfação (no sentido de requisito) requeiram que cause
o restante de suas condições de satisfação (no sentido de
coisa requerida), ou (no caso da percepção) que o res­
tante de suas condições de satisfação cause o próprio es­
tado ou evento. Se ergo o braço, m inha intenção em
açâo tem com o suas condições de satisfação que essa
CAUSAÇÀO INTENCIONAL 169

própria intenção deva causar a elevação de meu braço; e,


se vejo que há uma flor presente, o fato de haver uma
flor presente deve causar exatam ente aquela experiência
visual cujas condições de satisfação são que haja uma
flor presente. Em cada caso, causa e efeito estão relacio­
nados enquanto apresentação Intencional e condições de
satisfação. A direção do ajuste e a direção da causação
são assimétricas. Ali onde a direção de causação é mun-
do-m ente, com o no caso da percepção, a direção do
ajuste é mente-munclo; e ali onde a direção de causação
é mente-munclo, com o no caso da ação, a direção do
ajuste é mundo-mente. Tal como vimos no capítulo 3, ob­
servações análogas se aplicam aos casos representacio-
nais de auto-referênda causal nas intenções prévias e nas
lembranças de eventos. Contudo, nem todos os casos de
causação Intencional envolvem conteúdos Intencionais au-
to-referentes: por exem plo, um desejo de realizar uma
ação pode causar uma ação, mesmo que não faça parte
do conteúdo Intencional do desejo que este deva causar a
ação. Em cada caso de causação Intencional, porém, ao
m enos um termo é um estado ou evento Intencional e tal
estado ou evento causa ou é causado por suas condições
de satisfação.
Mais precisamente, se x causa y, x e y estão em uma
relação de causação Intencional sse

1. Ou (a) x é um estado ou evento Intencional e y é as con­


dições de satisfação de x (ou faz parte delas)
2. ou (b) y é um estado ou evento Intencional e x é a s con­
dições de satisfação de y (ou faz parte delas)
3. se (a), o conteúdo Intencional d e i é um aspecto cau-
salmente pertinente sob o qual ele causa y
se (b), o conteúdo Intencional de y é um aspecto cau-
salm ente relevante sob o qual ele é causado por x.
170 INTENCIONALIDADE

Em virtude do funcionam ento do conteúdo Intencional


como um aspecto causalmente pertinente, os enunciados
de causação Intencional serão, em geral, intensionais.
A definição acima ainda nos deixa a noção de causa
como um conceito inexplicado. Qual o suposto significa­
do de “causa” quando digo que na causação Intencional
um estado Intencional causa suas condições de satisfação
ou que estas causam o estado? A noção básica de causa­
ção, aquela que ocorre nos enunciados de causadores e
da qual dependem todos os demais usos do termo “cau­
sa", é a noção de fazer alguma coisa acontecer: no senti­
do mais rudim entar, quando C causa E, C determ ina a
ocorrência de E. Ora, a peculiaridade da causação Inten­
cional é que experim entam os diretam ente essa relação
em muitos casos em que determ inamos a ocorrência de
algo ou que outra coisa determina que algo nos ocorra.
Quando, por exemplo, ergo o braço, parte do conteúdo
da minha experiência é que seja esta que determ ine a su­
bida de m eu braço; e, quando vejo uma flor, parte do
conteúdo da experiência é que esta seja causada pelo fa­
to de haver uma flor presente. Nesses casos, experim en­
tamos diretamente a relação causal, a relação de uma coi­
sa a determ inar a ocorrência de outra. Não preciso de
uma lei de cobertura para dizer-me que, quando ergo o
braço, causei a elevação de meu braço, pois quando ergui
o braço experimentei diretamente o causador: não obser­
vei dois eventos, a experiência de agir e o movimento do
braço, mas, ao contrário, parte do conteúdo Intencional
da experiência de agir foi que esta própria experiência es­
tava determ inando a elevação de m eu braço. Assim como
posso experienciar diretam ente um objeto verm elho ao
vê-lo, posso experienciar diretamente a relação de uma
coisa determ inando a ocorrência de outra, seja por deter­
minar a ocorrência de alguma coisa, com o no caso da
CAUSAÇÀO INTENCIONAL 171

ação, seja p or alguma coisa determ inar a ocorrência de


alguma coisa a mim, como no caso da percepção.
Poderíamos estabelecer um a diferença entre a teoria
tradicional e a que estou a defender dizendo que, segundo
a teoria tradicional, nunca se tem uma experiência de cau-
sação e, segundo a minha teoria, não apenas se verificam
com freqüência experiências de causação, como, inclusive, «t,
toda experiência de percepção ou ação é precisam ente <
uma experiência de causação. Ora, esse enunciado seria ®~

CEKfRAL
uU
enganador se sugerisse que a causação é o objeto Intencio­
nal dessas experiências; antes, a idéia subjacente a essa
maneira de apresentar a questão é que sempre que perce­
bemos o m undo ou agimos sobre ele temos estados Inten­
cionais auto-referentes do tipo que descrevi, e a relação de

3(3UC>rECA
causação é parte do conteúdo, não do objeto, dessas ex­

‘ fc
periências. Se a relação de causação é uma relação de de­
terminar a ocorrência de alguma coisa, trata-se de uma re­
lação que todos experimentamos sempre que percebemos
ou agimos, ou seja, mais ou m enos o tempo todo9.
Em m in h a in te rp re ta ç ã o , os h u m ean o s estavam
olhando para a direção errada. Buscavam a causação (for­
ça, poder, eficácia etc.) enquanto objeto da experiência
perceptiva e não conseguiram encontrá-la. Minha suges­
tão é que ela estava presente o tem po todo com o parte
do conteúdo das experiências perceptivas e das experiên­
cias de ação. Q uando vejo um objeto vermelho ou ergo o
braço, não vejo causação nem ergo causação, mas sim­
plesmente vejo a flor e ergo o braço. Nem a flor nem o
movimento fazem parte do conteúdo da experiência; an­
tes, cada qual é um objeto da experiência pertinente. Em
cada caso, porém, a causação é parte do conteúdo da ex­
periência daquele objeto.
Creio que essa concepção ficará mais clara se eu a
com parar à concepção de diversos filósofos, de Reid a
172 INTENCIONALIDADE,

Von Wright, de que a noção de causação deriva das ob­


servações que fazemos de nós m esmos ao realizarmos
ações intencionais. Minha concepção difere desta em p e ­
lo menos três aspectos. Primeiro, não é na observação,
mas na realização das ações que tomamos consciência
da causação, pois parte do conteúdo Intencional da ex­
periência de agir, quando realizo ações intencionais, é
que essa experiência causa _o movimento corporal. Ob-
serve-se que não estou apenas argum entando aqui que o
conceito de causação participa da descrição da ação, mas
sim que parte do fenôm eno real da ação é a experiência
de causação. Nesses casos não há problem a algum refe­
rente ao m odo com o passamos da experiência à causa-
ção, a própria experiência é o causador; quando bem-su-
cedida, causa aquilo a que está direcionada. E isso não
equivale a dizer que a experiência é infalível; eu poderia
ter a experiência e imaginar ser ela a causa da elevação
de meu braço e mesmo assim estar enganado - questão
a que retornarei em breve.
Em segundo lugar, em minha abordagem somos tanto
diretamente conscientes da causação na percepção quanto
na ação. Não há nada de privilegiado na ação no que diz
respeito à experiência de causação. Na ação, nossas expe­
riências causam movimentos corporais e outros eventos fí­
sicos; na percepção, eventos e estados físicos causam nos­
sas experiências. Em cada caso, contudo, estamos direta­
mente conscientes do nexo causal, pois, em cada caso,
parte do conteúdo da experiência é tratar-se esta da expe­
riência de alguma coisa a causar ou sendo causada.
A pergunta de Hume era com o pode o conteúdo d.e
nossas experiências indicar que estamos diante de uma
relação de causa e efeito, e sua resposta era a de que
não pode. Mas se parte de um a experiência é que ela
própria causa algo ou é causada por algo não pode ha-
CAUSAÇÂO INTENCIONAL 173

ver dúvidas quanto a com o uma experiência nos pode


dar um a consciência da causação, dadó que tal consciên­
cia já faz parte da experiência. O nexo causal é interno à
experiência e não objeto desta.
Em terceiro lugar, m inha posição difere daquelas de
Reid e de Von Wright no sentido em que estas não nos
revelam exatam ente de que m odo a observação da ação
faculta-nos o conhecim ento da causação; e, na verdade,
é difícil perceber como o poderiam , pois, se as ações em
questão forem eventos e se eu obtiver o conhecim ento
da causação através da observação a esses eventos, pare­
ce que todos os argumentos hum eanos contra a possibili­
dade de um a experiência de vínculo necessário seriam
válidos, pois tudo o que eu poderia observar seriam dois
eventos: a minha ação e o que quer que a precedesse ou
seguisse. Em minha abordagem, não se observa um “vín­
culo necessário” entre eventos; antes, um evento, por
exemplo minha experiência de agir, é uma apresentação
Intencional causal do outro evento, por exemplo o movi­
m ento de m eu braço; os clois juntos formam o evento
composto, minha ação de erguer o braço.
Em pelo m enos uma interpretação dos princípios da
teoria tradicional com que dei início a este capítulo, de­
safiei esses três princípios. Pois, no caso cla causação In­
tencional:
1. Tanto na percepção com o na ação experimenta-se
a relação causal. Ela não é inferida da regularidade.
2. Não é o caso de que cada enunciado causal isola­
do acarreta a existência de um a lei causal universal cor­
respondente. Por exemplo, o enunciado de que minha
sede causou o meu beber não implica que haja um a lei
universal que relacione eventos dos tipos pertinentes em
alguma descrição. Além disso, sabe-se am iúde que um
enunciado causal isolado é verdadeiro sem que se saiba
174 INTENCIONALIDADE

da existência de lei correspondente alguma. E, finalmen­


te, conhece-se com freqüência a verdade de um contrafa-
tual correspondente sem que esse conhecim ento se ba­
seie em nenhum a lei assim.
3- Há um a relação lógica de certo tipo (muito mais
tênue que a relação de vinculação entre enunciados) en­
tre causa e efeito nos casos de causação Intencional, por­
que, por exemplo, no caso da intenção prévia e da inten­
ção em ação, a causa contém um a rep resen tação ou
apresentação do efeito em suas condições de satisfação
e, na percepção e na lembrança, o efeito contém uma re­
presentação ou apresentação da causa em suas condições
de satisfação. Em todo caso de causação Intencional, o n ­
de o conteúdo Intencional é satisfeito, há uma relação in­
terna entre causa e efeito sob aspectos causalmente rele­
vantes. E, repetindo, não estou afirmando simplesmente
que a descrição da causa está internam ente relacionada à
descrição do efeito, mas sim que as próprias causas e
efeitos estão internamente relacionados desse m odo, uma
vez que um é representação ou apresentação do outro.

III

Mesmo presum indo que eu esteja correto até este


ponto, há diversas perguntas e objeções sérias acerca do
que expus acima. Antes de mais nada, de que modo, em
minha abordagem , podem os jamais estar justificados ao
supor que outras entidades além das nossas experiências
podem ser causas e efeitos? Em segundo lugar, não teria
minha abordagem o resultado absurdo de que a experiên­
cia de causação do agente é de certo m odo autocom pro-
batória? Por último, qual o papel da regularidade em mi­
nha abordagem? Afinal de contas, em um certo sentido
CA USAÇÀ O INTENCIONAL 175

que até agora não expliquei, parece que a regularidade


deve constituir um a parte essencial dé nossa noção de
causação. Apresentarei, a seguir, as duas primeiras dessas
objeções e tentarei responder a elas; discutirei a terceira
na próxima seção.
Primeira objeção: admitamos, para os fins da discus­

PAKA
são, que podem os tomar consciência das relações causais
com o parte dos conteúdos de nossas experiências; isso
continuaria proporcionando-nos o conhecim ento das re­

CENTRAL
OO
lações causais apenas onde um dos termos é um a expe­
riência, mas a maioria dos casos interessantes de causa­

UNlVÊRf lDAl t flLDtfcai-


ção são casos em que nenhum dos termos é uma experiên­
cia. E com o se dá que minha abordagem chegue a admi­
tir a simples possibilidade do conhecim ento desse tipo

T £C*
d e relação ou m esm o de sua existência? Com o, p o r
exemplo, é possível saber, em ininha abordagem , que o
evento da bola de bilhar A colidindo com a bola cle bi­
lhar B causou o evento da bola B mover-se? Como é pos­
sível, em minha abordagem, que haja nessa relação qual­
quer coisa além da recorrência regular de instâncias asse­
melhadas? Falando cruam ente, será que eu ainda não
deixei a causação como uma propriedade de sensações
cla m ente e não como uma característica do m undo real,
externo à mente?
Trata-se, aparentem ente, cle uma forte objeção e meu
estudo deve agora estender-se, de modo a fazer frente a
ela. Antes disso, porém, quero esclarecer algo. Falarei fre­
qüentem ente, no que se segue, em termos ontogenéticos,
mas o que se segue não se pretende uma hipótese em pí­
rica sobre com o são adquiridos os conceitos causais. Con­
sidero provável que sejam adquiridos desse modo, mas é
perfeitamente coerente com minha abordagem supor que
não o sejam e, na verdade, tanto quanto eu saiba, podem
ser idéias inatas. A questão não é como chegamos à cren-
176 INTENCIONALIDADE

ça de que a causa é uma relação real no m undo real, mas


com o p oderíam os estar justificados ao alim entar essa
crença, de que m odo nós, enquanto empíricos, podería­
mos racionalmente acreditar que a causação é uma carac­
terística do m undo real além da recorrência regular. Já vi­
mos q ue pod em os estar racionalm ente justificados ao
acreditarmos que nós, como agentes, agimos causalmente
e, como percipientes, somos objeto de ação causal; agora,
porém, a questão é: como podem os estar justificados em
su por que algo desprovido de Intencionalidade po d e
com partilhar as mesmas relações que com partilham os
nossos estados e eventos Intencionais?
Uma das teses que os experim entos de Piaget pare­
cem fundam entar é a de que a criança adquire o conhe­
cim ento da relação por-m eio-de (o que Piaget cham a
“transitividade”)10 já num a idade muito tenra. Até os b e­
bês muito novos descobrem que por meio de em purrar
um objeto suspenso com as mãos podem movê-lo para a
frente e para trás. Ora, qual foi, exatamente, a descoberta
da criança do ponto de vista da Intencionalidade? Tom e­
mos um exem plo ligeiramente mais complexo. Suponha­
mos que uma criança um pouco mais velha tenha desco­
berto, como outras tantas, que ao bater em um vaso com
uma pedra pode quebrá-lo. A criança descobriu que essa
intenção em ação resulta nesse movimento da mão e do
braço, que resulta nesse movimento da pedra que resulta
no vaso quebrado. E aqui as regularidades entram em jo­
go, pois, com base nas ocorrências repetidas, a criança
pode descobrir que por m eio desse m ovim ento pode
mover a pedra e que por meio do m ovimento da pedra
pode quebrar o vaso. E cada um desses vários estágios
da relação por-meio-de torna-se parte das condições de
satisfação da intenção em ação. A intenção é quebrar o
vaso por meio dessas outras ações. Já vimos, porém, que
CAUSAÇÃO INTENCIONAL 177

a causação é parte do conteúdo da intenção em ação,


pois se a intenção em ação não causa o resto das condi­
ções de satisfação a intenção não é satisfeita. A causalida­
de da intenção em ação pode levar até o último estágio,
quebrar o vaso, pois passa por cada um dos estágios in­

KAíUk
termediários da relação por-meio-de. Cada estágio é um
estágio causal e a transitividade da relação por-meio-de
permite que a intenção em ação abranja todos eles. Faz

CE.NTH.Ak.
ÚO
parte do conteúdo da intenção em ação da criança que
essa intenção cause o movimento do braço, mas também
que esse movimento da pedra cause a quebra do vaso,

UNtVfc ^:iD* 1.1 V t Oi; *


porque é isso que a criança está tentando fazer: causar a
quebra do vaso atingindo-o com uma pedra. A intenção

I i,CA-
da criança não é apenas m over o braço e depois observar
o que acontece; este seria um tipo de caso totalmente di­
ferente. O fato de o movimento da pedra causar a quebra
do vaso é, portanto, parte da experiência da criança
quando ela quebra o vaso, porque a causalidade da inten­
ção em ação se estende para cada estágio da relação por-
meio-de. Diz-se com freqüência que a causalidade está in­
timamente ligada à noção de manipulação; isso é correto,
mas a m anipulação ainda pede uma análise. Manipular
coisas é precisamente explorar a relação por-meio-de.
Um dos pontos de convergência da abordagem da
causação a partir da regularidade e a abordagem Intencio­
nal da causação é a manipulação. Em relação ao mundo,
é o fato que ele contém regularidades causais que podem
ser descobertas. A regularidade dessas relações causais
permite-nos descobri-las, pois, por ensaio e erro, a crian­
ça descobre o funcionamento da regularidade com pedras
e vasos; mas o fato de essas relações serem manipuláveis
permite-nos descobrir que são causais, pois o que a crian­
ça descobre em seus ensaios e erros com pedras e vasos
é um meio de fazer as coisas acontecerem.
178 INTENCIONALIDADE

Uma vez adquirida a capacidade de abranger a rela­


ção causal por-meio-de com o parte do conteúdo de sua
intenção em ação, a criança adquire a capacidade de des­
cobrir e n ão apenas projetar relações causais em um
m undo natural em grande parte independente dela; na
verdade, já descobriu instâncias da relação causal no
m undo. Pois o que, exatam ente, descobriu a criança
quando descobriu que podia quebrar um vaso ao atingi-
lo com um objeto rígido? Bem, parte do que ela desco­
briu é que, ao atingir um vaso, um objeto rígido pode
causar sua quebra, mas essa relação continua a mesma,
esteja ou não a criança atingindo o vaso com um objeto
rígido ou se, por exemplo, o objeto rígido estiver caindo
no vaso. O nde temos uma seqüência de relações causais
por-meio-de, cujo primeiro term o é a experiência de uma
ação, o conteúdo Intencional pode incluir cada um dos
vários estágios - a intenção pode ser, por exemplo, que­
brar o vaso p o r meio de atingi-lo com um objeto rígido,
por meio de m over o objeto rígido, por meio de m over a
mão que segura o objeto rígido. Mas os estágios além do
movimento da mão são, todos, estágios causais e a mes­
ma causação que é parte do conteúdo da experiência em
m anipulação pode ser observada nos casos em que não
há manipulação. A relação que o agente observa quando
vê a pedra quebrar o vaso ao atingi-lo é - no que diz
respeito à causação - a mesma relação que experimenta
quando quebra o vaso com a pedra. Nos casos em que
ele observa a causação de eventos independentes de sua
vontade, não experim enta o nexo causal do m esm o m o­
do que o experim enta na experiência de agir ou de per­
ceber e, nesse sentido, os hum eanos têm razão em afir­
mar que a causação entre eventos independentes d e nós
não é observável do m odo que os próprios eventos são
observáveis. Mas o agente observa efetivamente os even-
CAUSAÇÂO INTENCIONAL 179

tos como causalm ente relacionados e não apenas como


uma seqüência de eventos; e está ou pôde estar justifica­
do ao atribuir causalidade a uma tal seqüência de even­
tos, pois o que atribui no caso da observação é algo que
experim entou no caso da manipulação.
O problem a de com o é possível haver no m undo
causas independentes de nossas experiências é um pro- g
blema da mesma forma que o de como pode haver obje- <
tos quadrados no m undo independentem ente de olhar­

CENTRAL
mos para eles; e o problema de com o podem os perceber
os eventos en q u an to causalm ente relacionados é um

iD*i-fc. K'cDr-K *L-


problem a da mesma forma que o de como podem os ver
uma casa com o uma casa completa e não apenas com o
uma fachada, mesmo que só um a face da casa esteja visí­

BiBUOttCA
vel para nós. Não estou afirmando que não haja proble­
ma algum nesses fenôm enos - a existência cie caracterís­
ticas do m undo em m om entos em que não são observa­
das e a capacidade de ver coisas com o algo além do que
é visualm ente apresentado - , mas afirmo efetivam ente
que a visão realista da causação, a visão de que as causas UNIVE
são relações reais no m undo real, não apresenta nenhum
problema especial. Não existe um problema cético espe­
cial envolvido na existência de relações causais que não
são experimentadas, além do problem a geral da existên­
cia de características do m undo nos m om entos em que
não são observadas.
Segunda objeção: A experiência de agir ou a ex p e­
riência de perceber não podem conter a experiência de
causação porque, por exem plo, é sem pre possível que
na verdade outra coisa esteja causando o movimento cor­
poral que imaginamos estar sendo causado pela experiên­
cia. E sem pre possível que eu imagine estar erguendo o
braço quando na verdade outra causa o está erguendo.
Portanto, não há nada na experiência de agir que garanta
180 INTENCIONALIDADE

de fato ser ela causalmente efetiva. A resposta para isso é


que é verdade, mas irrelevante. O btenho uma experiên­
cia direta de causação no fato de que parte do conteúdo
Intencional de m inha experiência de agir é causar o m o­
vimento corporal, ou seja, ela só é satisfeita se o movi­
mento corporal for causado por ela; e obtenho uma ex­
periência direta de causação no fato de parte do conteú­
do Intencional de minha experiência perceptiva ser cau­
sada pelo objeto percebido, isto é, ela só é satisfeita se
for causada pela presença e pelas características do obje­
to. Ora, o que se considera com o condições de satisfação
de m eu evento Intencional é, na verdade, determ inado
pelo evento Intencional, mas o fato de tal evento ser efe­
tivamente satisfeito não faz parte, em si, do conteúdo.
Ações e percepções, em minha abordagem, são transações
causais e Intencionais entre m ente e mundo, mas o fato
de as transações estarem efetivamente acontecendo não é
uma decisão da mente. E, com efeito, esse fato é uma
conseqüência do fato de não haver nada de subjetivo na
causação. Sua presença é real. A objeção de que eu p o ­
deria ter a experiência e todavia a relação não ser de fato
causal tem exatam ente a mesma forma da objeção à posi­
ção de que obtenho a idéia de vermelho do fato de ver
coisas vermelhas, segundo a qual eu poderia, em qual­
quer caso relativo à visão de uma coisa vermelha, estar
tendo uma alucinação: uma objeção verdadeira, mas irre­
levante. Que um objeto verm elho seja a causa de uma
experiência visual minha faz parte das condições de sa­
tisfação da experiência e isso basta para me proporcionar
um a experiência de algo vermelho. Se realmente há ou
não, em qualquer instância dada, um objeto vennelho dian­
te de mim é um problem a separado, independente da
questão de com o me é possível adquirir o conceito de
vermelho com base em m inhas experiências. Um argu­
CAUSAÇÀO INTENCIONAL 181

m ento exatamente análogo é o de que obtenho a idéia de


causação experim entando a causação como parte de mi­
nha experiência de agir ou perceber. Mas a questão de se
em qualquer caso dado essa experiência me está ou não
enganando, se de fato estou ou não em uma relação cau­
sal com o objeto Intencional do conteúdo Intencional cle
minha experiência, é simplesmente irrelevante.
Mesmo assim, embora inválida, essa objeção assinala

P t ü t . w h|«- C|(-)
C E N -TR A L
uma assimetria crucial entre a causação e outros conteú­
dos perceptivos. O vermelho não é um a característica cle
minha experiência visual, mas parte das condições de sa­
tisfação; a experiência é de alguma coisa vermelha, mas
não é em si m esma um a experiência vermelha. Mas a

BtBwíGTfcCA
causação faz parte do conteúdo da minha experiência. A
experiência apenas é satisfeita se ela própria causar (no

UHVVF ►SiD* l
caso da ação) o restante cle suas condições de satisfação
ou for causada (no caso da percepção) pelo restante de
suas condições de satisfação. A experiência de algo ver­
m elho, q u ando satisfeita, não é literalm ente vermelha,
mas é literalmente causada. E o aspecto paradoxal da as­
simetria é o seguinte: em minha interpretação, o conceito
de realidade é um conceito causal. Parte da nossa noção
de como o m undo é realmente é que ele ser como é faz
com que o percebam os desse modo. As causas são parte
da realidade e, no entanto, o próprio conceito de realida­
de é um conceito causal.
Há uma variação a esta objeção que pode ser enun­
ciada da seguinte maneira: se a experiência tem qualquer
semelhança com o que a tradição empirista ou intelectua-
lista nos diz, é difícil perceber de que modo as experiên­
cias poderiam ter as características que estou reivindicando.
Se a experiência é uma seqüência de impressões “todas
em pé de igualdade”, como afirma Hume, aparentem ente
ninguém poderia experim entar uma impressão como cau-
182 INTENCIONALIDADE

sal enquanto parte do conteúdo da impressão. Mas se Kant


e os intelectualistas estão certos em considerar que as expe­
riências já nos chegam como causais, é somente porque já
temos o conceito de causação como um conceito a priori.
Será óbvio, para o leitor que acompanhou a argumentação
até aqui, q ue estou rejeitando essas duas visões da expe­
riência. Nenhuma delas consegue descrever a Intencionali­
dade cie nossas experiências de agir e perceber. Nenhuma
delas consegue explicar o fato de as condições de satisfação
serem determinadas pela experiência e que parte das condi­
ções de satisfação é que a experiência seja a de fazer com
que seu objeto Intencional se efetive, ou de que seu objeto
Intencional faça com que se efetive. Por essa razão, pode­
mos experimentar a causação, mas não precisamos ter um
conceito apriorístico de causa para tanto, assim como não
precisamos de um conceito apriorístico de vermelho para
experimentar o vermelho.

IV

Temos agora pelo menos dois elementos em nossa


interpretação da causalidade: a experiência primitiva cla
causação na percepção e na ação e a existência de regula-
ridades no mundo, sendo algumas delas causais e outras
não. Podemos estender a experiência primitiva de causa­
ção para além dos limites cie nossos corpos através da des­
coberta de regularidades causais manipuláveis no mundo.
O que descobrimos quando descobrimos uma regularida­
de manipulável desse tipo é o que experimentamos na ex­
periência primitiva de causalidade, a relação de um evento
fazendo outro evento acontecer. Uma conseqüência desta
abordagem é que um ser incapaz de ação e percepção
não poderá ter a nossa experiência de causalidade.
CAUSAÇÃO INTENCIONAL 183

Mas o enigma que ainda nos resta, nossa terceira ob­


jeção, é o seguinte: qual, exatamente, é a relação entre a
experiência primitiva de causação e as regularidades do
mundo? O enunciado de que determ inada coisa causou
outra, isto é, prom oveu sua realização, e o enunciado de
que alguém experim entou tais causações na ação e na ^
percepção não acarretam por si mesmas a existência de £
regularidade alguma. Um m undo em que alguém prom o- %.
ve a realização de algo mas no qual a seqüência de even­

LA,
CENTRAL
tos não exemplifica nenhuma relação geral de coocorrên-
cia é um m undo logicamente possível. Ao mesmo tempo,
contudo, intuímos que deve haver alguma relação im por­
tante entre a existência de regularidades e nossa experiên­
cia de causação. Qual? Uma tentação é supor que, além

B. BUÜfECA
da experiência real de causas e efeitos, sustentem os uma

UN,V E «S I0^.E
hipótese de regularidade geral no mundo. E, seguindo es­
sa linha, somos inclinados a pensar que essa hipótese é
desafiada por aquelas partes da física que negam o deter­
minismo geral. Segundo essa visão, sustentamos uma teo­
ria de que as relações causais exemplificam leis gerais e
essa teoria é presumivelm ente empírica como qualquer
outra.
Essa concepção tem uma longa história na filosofia e
é subjacente a algumas tentativas, por exemplo a de Mill,
cle enunciar um princípio geral de regularidade capaz de
“justificar a indução”. Tenho a impressão de que ela des­
creve erroneam ente o m odo pelo qual a suposição de
um a regularidade influi em nosso uso do vocabulário
causal e em nossas atividades de percepção e ação. Con­
sideremos o exem plo seguinte. Suponhamos que, ao er­
guer o braço, eu descubra, para m eu espanto, que a ja­
nela do outro lado da sala está subindo. E suponham os
que, ao abaixar o braço, a janela desça também. Em tal
caso, ficarei imaginando se minha ação de erguer e abai-
184 INTENCIONALIDADE

xar o braço está determ inando que a janela suba e desça.


Para descobrir a resposta, tentarei novamente. Suponha­
mos que funcione pela segunda vez. Meu conteúdo In­
tencional ficará alterado nas ocasiões subseqüentes. Já
não estarei apenas erguendo o braço, mas sim tentando
subir e descer a janela por m eio da ação de erguer e
abaixar o braço. Uma relação causal entre o movimento
do braço e o movimento _cla janela faz agora parte do
conteúdo Intencional cla intenção em ação. Mas a única
maneira pela qual posso determ inar se esse conteúdo In­
tencional é de fato satisfeito, ou seja, a única maneira pela
qual posso determinar se o movimento de meu braço tem
de fato um efeito sobre a janela, é por ensaio e erro. Mas
ensaio e erro só têm sentido sobre a suposição de um
Background de regularidades gerais. Não sustento a hipó­
tese de que o m undo é tal que as relações causais manifes­
tam regularidades gerais, mas sim que uma condição da
minha possibilidade de aplicar a noção de se determinar a
ocorrência de determinada coisa é minha capacidade de
estabelecer uma distinção entre os casos em que alguma
coisa efetivamente determinou a ocorrência de alguma coi­
sa e aqueles em que só pareceu determinar a ocorrência
de alguma coisa. E uma condição da possibilidade dessa
distinção é pelo menos a suposição de algum grau de re­
gularidade. Ao investigar a distinção entre os casos apa­
rentes e reais de relações causais, como em qualquer in­
vestigação, adoto um certo ponto de vista. A adoção desse
ponto de vista não se resume a ter um conjunto de cren­
ças: em parte, o ponto de vista é uma questão de capaci­
dades de Background. Ao investigar o modo como o m un­
do efetivamente opera com causas e efeitos, a suposição
da regularidades é parte do Background.
Uma questão sem elhante surge quando examinamos
casos em que há um aparente elem ento aleatório. Quan-
CAUSAÇÂO INTENCIONAL 185

do tento fazer cestas da linha de lance livre, às vezes


consigo e às vezes não, em bora tente o mais que posso
fazer a mesma coisa todas as vezes. Ora, em tais casos, é
mais que justa um a hipótese de que efeitos diferentes
provêm de causas diferentes, pois, se fosse m eram ente
uma hipótese, as evidências sugeririam que é falsa. Até ^
onde posso discernir, faço a mesma coisa, mas com re- *
sultados diferentes em ocasiões diferentes. A suposição &.
de regularidade subjaz à m inha tentativa de fazer uma

CENTRAL
cesta ou a fundamenta, não é uma hipótese invocada pa­
ra explicar o sucesso ou o fracasso dessa tentativa. Sim­
plesm ente não posso aplicar a idéia de determ inar a
ocorrência de algo - enquanto oposta à simples aparên­
cia de efetivam ente determ inar a ocorrência de algo —

9 .B U ü r£ C *
sem que minhas capacidades de Background manifestem
uma suposição de pelo m enos algum grau de regularida­
de. Observe-se que, no presente exemplo, se a bola se
movimentasse de maneira totalmente aleatória, eu teria li­
teralmente perdido o controle sobre ela e não diríamos
que minha intenção em ação havia causado a sua entra­
da na cesta, mesmo que eu tivesse a intenção de fazê-la
entrar na cesta e ela efetivamente entrasse.
Para com preenderm os esses pontos um pouco mais
claramente, devemos distinguir entre a crença na existên­
cias de leis causais específicas e a suposição de algum ní­
vel geral de regularidade causal no mundo. São muitas as
minhas crenças referentes a regularidades causais particu­
lares, por exem plo aquelas referentes às propriedades lí­
quidas da água, o com portam ento de automóveis e m á­
quinas de escrever, e a tendência dos esquis a m udarem
de direção quando se lhes imprime um movimento late­
ral. Contudo, além das crenças em regularidades específi­
cas, não tenho e não necessito de uma hipótese geral de
regularidade. Da mesma forma, a tribo que arm azena ali-
186 INTENCIONALIDAQE

mentos para o inverno não necessita possuir um a teoria


da indução, em bora necessite de determinadas concep­
ções gerais acerca das condições de alimentação e algu­
ma idéia quanto ao ciclo das estações.
Portanto, a resposta que estou propondo à pergunta
“Qual a relação entre a experiência primitiva de causação
na ação e na percepção e a existência de regularidacles
no mundo?” é a seguinte: nem as declarações que afir­
mam a existência da experiência de causação nem a exis­
tência de casos particulares de causação implicam que
haja leis causais gerais. Não obstante, as leis causais efeti­
vamente existem e uma condição da possibilidade de se
aplicar a noção de causação em casos específicos é uma
suposição geral de regularidade no mundo. A m enos que
eu suponha algum nível de regularidade - não necessaria­
mente universal - não posso sequer começar a fazer a
distinção entre o parecer que a minha experiência está
em relações causais como parte de suas condições de sa­
tisfação e o ela estar efetivamente em tais relações. Só
posso aplicar a noção de alguma coisa determ inando a
ocorrência de outra, enquanto oposta à aparência de que
determina, sobre uma suposição de regularidacles cau­
sais, pois é apenas em virtude do fracasso ou do sucesso
das regularidades que posso avaliar o caso individual.
Após três séculos de fracassos na tentativa de se ana­
lisar o conceito de causação em termos de regularidades,
deveríamos ser capazes de perceber por que essas tentati­
vas malograram. A resposta breve é que a noção de deter­
minar a ocorrência de alguma coisa é diferente da noção
cle uma regularidade, de m odo que qualquer tentativa de
analisar a primeira em termos da segunda está fadada ao
fracasso. E, mesmo que concordem os que a regularidade
é necessária para a aplicabilidade do conceito de causa­
ção, as únicas regularidades relevantes são as regularida-
CAUSAÇÃO INTENCIONAL 187

cies causais e qualquer tentativa cie analisar a causaçào


em termos de regularidades previam ente identificadas co­
mo causais está condenada à circularidade.
Outra conclusão de nossa discussão da relação entre
causação Intencional e regularidade é a seguinte: não há
dois tipos de causação, a de regularidade e a Intencional.
Há apenas um tipo, a causação eficiente; a causação é ^
uma questão cle coisas determ inando a ocorrência de ou- a-

C E NT RAL
tras. Contudo, em uma subclasse especial d.a causação
eficiente, as relações causais envolvem estaclos Intencio­

t H tO tK » L
nais; tais casos de causação Intencional são especiais em
diversos aspectos: podem os estar diretamente conscien­
tes do nexo causal em alguns casos, há uma relação “ló­

Bi BUüf EC*
gica” entre causa e efeito, e tais casos são a forma primi­
tiva da causação no que diz respeito às nossas experiên­
cias. Os enunciados causais singulares não implicam que
haja uma regularidade causal universal por eles exem pli­
ficada, mas o conceito de causação eficiente, Intencional
ou não, só tem aplicabilidade em um universo no qual se
supõe um alto grau de regularidade.

Neste ponto, nossa discussão da causação Intencio­


nal já preparou o caminho para um exame das chamadas
cadeias causais desviantes na ação e na percepção, exa­
me que começamos, mas não terminamos, no capítulo 3-
Por mais cerradas que façamos as restrições entre os dife­
rentes estágios na análise Intencional da percepção e da
ação, parece, todavia, que ainda seremos capazes de pro­
duzir contra-exem plos que envolvem “cadeias causais
desviantes”. Em cada um dos casos, os requisitos formais
da auto-referência causal Intencional parecem ser satisfei-
188 INTENCIONALIDADE

tos e, no entanto, não diríamos, ou pelo menos relutaría­


mos em dizer, que o estado Intencional é satisfeito. No
caso da percepção, há exemplos em que, não obstante a
experiência visual seja causada pelo objeto, o agente não
“vê” literalmente o objeto; e, no caso da ação, em bora
haja casos em que a intenção prévia causa a intenção em
ação e casos em que a intenção em ação causa o movi­
mento, não diríamos que a intenção prévia foi levada a
cabo nem que a ação foi "intencional. Consideremos al­
guns exem plos de cada caso.
Exemplo l 11. Suponhamos que um homem seja inca­
paz de erguer o braço porque seus nervos foram corta­
dos. Por mais que tente, não consegue afastar o braço do
corpo. Continua tentando e tentando sem sucesso; em
uma ocasião, porém, tenta com tanto em penho que seu
esforço o faz cair sobre um com utador que ativa um mag-
neto no teto, o qual por sua vez atrai o metal do relógio
que está em seu pulso, erguendo-lhe o braço. Ora, em
um tal caso, sua intenção em ação foi a causa do ergui-
mento do braço, mas não o causou “da maneira certa”.
Em tal caso, relutamos em dizer que ele ergueu intencio­
nalmente o braço, ou sequer que tenha erguido o braço.
Exemplo 2. Bill tenciona matar o tio. Essa intenção
prévia deixa-o de tal m odo perturbado que lhe provoca
uma dor de estôm ago e ele se esquece com pletam ente
da intenção, mas a dor de estôm ago deixa-o irado e, por
causa dessa ira, ele mata o primeiro hom em que vê, que
casualm ente é, e o qual ele reconhece como, seu tio.
Nesse caso, a intenção prévia causou a intenção em ação
por meio de causar a dor de estôm ago que causou a ira,
e a intenção em ação. causou suas próprias condições de
satisfação. Não obstante se tenha tratado de um a morte
intencional, não foi um caso em que se levou a cabo a
intenção prévia.
CAUSAÇÀO INTENCIONAL 189

Exemplo 3. Suponhamos que um homem olha para


uma mesa e suponham os que, sem que ele o saiba, não
está de fato olhando para a mesa. Mas suponham os que
essa mesa exale um certo odor e que esse odor lhe cause
uma alucinação visual qualitativamente indistinguível cia
experiência visual que ele teria tido se de fato tivesse visto
a mesa. Em tal caso, a mesa causa a experiência visual e
as condições de satisfação apresentadas na experiência vi­
sual são de fato satisfeitas, ou seja, há realmente uma me­
sa presente, mas, mesmo assim, o homem não vê a mesa.
Todos esses exemplos, com o outros que vi de cau-
sação desviante, possuem certas características comuns:
ou implicam alguma impossibilidade do conteúdo Inten­
cional em ser o aspecto causal, ou envolvem uma falta
de regularidadeplanejãvel nas relações causais do estado
Intencional. O m odo de eliminar esses exemplos é perce­
ber que a causação Intencional deve funcionar sob as­
pectos Intencionais e, para que isso ocorra, é preciso ha­
ver regularidades planejáveis. Consiclere-se o exem plo 1.
Suponhamos que o homem saiba da existência do mag-
neto e saiba que pode erguer o braço simplesmente ati­
vando o m agneto ao apertar o botão. Se fizesse isso re­
gularm ente e soubesse o que estava acontecendo, não
hesitaríamos em dizer que ele ergueu o braço intencio­
nalmente, em bora tal não pudesse definir uma ação bási­
ca. Sua intenção em ação seria a de mover o com utador
e isso seria parte da pretendida relação por-meio-de que
resultou na elevação de braço. Além disso, em outra varia­
ção desse exemplo, suponham os que ligássemos o ho­
mem de tal m odo que, sem que ele o soubesse, a cada
vez que tentasse erguer o braço, tal ação ativasse magne-
tos suspensos acima dele que lhe ergueriam o braço. Di­
ríamos simplesmente, em um caso tal, que ele ergueu o
braço, em bora a forma da seqüência causal seja bem di-
190 INTENCIONALIDADE

ferente da do caso base. Neste caso, com efeito, a elevação


do braço seria uma ação básica. A característica do caso
original que nos incomoda é o seu caráter acidental e inad­
vertido: quando o braço do indíviduo se ergue, as coisas
não estão indo conforme o planejado. No exemplo dado, o
fato de o braço do indivíduo ter-se erguido naquela ocasião
específica é apenas acidental. Porém, se tivéssemos alguma
forma de eficácia Intencional coerente, não hesitaríamos
em dizer que o estado Intencional foi satisfeito.
Consideremos agora o exem plo 2. Para esse exem ­
plo, era essencial que o indíviduo se esquecesse com ple­
tamente de sua intenção original. Foi a ira dele e não a
sua intenção prévia que o levou a matar o tio. Se não ti­
véssemos o aspecto do esquecim ento da intenção, mas
ele se lem brasse da intenção e agisse com base nela,
mesmo que agisse com base nela apenas por estar tão
irado, continuaria a ser um caso de levar a cabo essa in­
tenção. O que está ausente nesse exem plo é a operação
causal do estado Intencional sob seu aspecto intencional.
A intenção prévia não funciona causalmente até o ponto
da produção da intenção em ação e, conseqüentem ente,
quando o agente age, não o faz por meio de levar a cabo
sua intenção prévia. Uma condição necessária para satis­
fazer o conteúdo Intencional de um a intenção prévia é
que o conteúdo Intencional deve funcionar causalmente
como o aspecto causal na produção de suas condições
de satisfação e, em tal caso, essa característica foi perdi­
da. O co n teú d o Intencional original produziu apenas
uma dor de estômago.
Consideremos agora o exem plo 3. Tal com o o exem ­
plo 1, trata-se do caso de uma seqüência causal regular
mais acidental que planejável, razão pela qual não é o
caso de um a autêntica percepção visual da mesa. Isso fi­
cará claro se alterarmos o exem plo de m odo que mani-
CAUSAÇÃO INTENCIONAL 191

feste um a regularidade planejável. Suponham os que a


“alucinação” do hom em com a mesa não seja um evento
único, m as suponham os que ele possa obter constante­
m ente de suas terminações nervosas olfativas o mesmo
tipo de experiências visuais de mesas, cadeiras, m onta­
nhas, arco-íris etc. que nós obtem os do nosso aparato vi­
sual. Nesse caso, diríamos simplesmente que o hom em
viu tudo o que vimos, mas não de maneira normal. O
que está errado no exemplo original, em resumo, é a fal­

CENTRAL
UNIVE ftSiDMi E. Ft-Dti^í a L DÜ
ta de constância planejável.
P odem os agora enunciar as condições necessárias
para corrigir a abordagem de m odo a eliminar todas as
cadeias causais desviantes que consideramos. Uma pri­
meira condição é que haja uma eficácia contínua do con­

9.Bi_»GT£0
teúdo Intencional sob seus aspectos Intencionais. Isso eli­
mina todos os casos de Intencionalidade interferente ou
intermitente. Uma segunda condição é que haja um grau
pelo m enos razoável de constância ou regularidade pla­
nejável. Q uando uso expressões com o “constância” e “re­
gularidade”, não me refiro a elas no sentido estatístico.
Por exemplo, nos exemplos com uns nào-desviantes, nem
sem pre tem os um a constância estatística. Q uando tento
fazer cestas da linha de lance livre, apenas ocasionalm en­
te serei bem -sucedido. Mas a questão é que, q uando
bem -sucedido, as coisas caminham segundo o planejado.
Se a bola fosse levada para a cesta por uma lufada cle
vento circunstancial não planejada e não prevista, não
atribuiríamos o m eu sucesso às minhas intenções.
Ora, tanto no exemplo 1 com o no exemplo 3, tal co­
mo enunciados originalmente, as coisas não caminham
segundo o planejado e nos dois casos isso é devido a al­
guma característica acidental ou inadvertida, externa à
Rede e ao Background de expectativas do agente. Tão
logo revisamos essas características de m odo que a carac-
192 INTENCIONALIDADE

terística estranha passe a estar sob controle ao ponto de


poder tornar-se parte do plano, isto é, possa ser repre­
sentada p or nossa Rede de com o as coisas funcionam
quando percebem os ou agimos, os casos deixam de ser
contra-exemplos. Tal sugere que minha concepção é de
fato pertinente: não existe um a cadeia causal desviante
per se. Uma cadeia causal só é desviante em relação às
nossas expectativas e em relação à nossa Rede e ao nos­
so Background da Intencionalidade em geral.
Embora essas duas condições - que a causação In­
tencional deve estar subm etida a aspectos Intencionais e
que deve m anifestar regularidades planejáveis - sejam
suficientes para eliminar os contra-exemplos que consi­
deramos, ainda não estou inteiramente satisfeito. As con­
dições ainda estão enunciadas de m aneira vaga e m eu
instinto me leva a pensar que podem os ainda ser capazes
de forjar outros tipos de contra-exemplos. Algo ainda po­
de estar furtando-se a nós. Acredito, porém, que possa­
mos avaliar a força da resposta que venho dando até
aqui se fizermos a pergunta de Peacocke12: Por que nos
interessa saber com o opera a cadeia causal? Se consegui­
mos o tipo certo de movimento corporal ou o tipo certo
de experiência visual, o que nos interessa se foram ou
não causados “da m aneira certa”? Estou sugerindo que
talvez possam os encontrar o com eço de uma resposta a
essa pergunta ao longo das linhas que se seguem. Nossas
maneiras mais fundamentais de lidar com o m undo são
através da ação e da percepção, as quais envolvem es­
sencialmente a causação Intencional. Ora, quando se tra­
ta de formar conceitos para descrever essas relações In­
tencionais básicas, conceitos tais com o ver um objeto, ou
levar a cabo um a intenção , ou tçntare obter êxito, exigi­
mos, para a aplicação do conceito, mais que a simples
existência de um a correspondência correta entre o con-
CAUSAÇÃO INTENCIONAL 193

teúdo Intencional e o estado de coisas que este causa ou


que o causa. Fazemos mais uma exigência, que os filóso­
fos expressaram dizendo que a correspondência deve
ocorrer “da m aneira correta”. Mas por que fazem os tal
exigência e em que consiste ela, exatamente? Fazemos a
exigência porque querem os que nossos conceitos expres- J
sem a condição de que a Intencionalidade na ação e na <
a.
percepção realm ente funcione; portanto, insistimos em
O

CENTHAL
que a Intencionalidade não deve ser epifenomenal. E in- O
sistimos em que a Intencionalidade deve funcionar com J

suficiente regularidade e constância para enquadrar-se x


nos nossos planos e expectativas gerais. Expressei essas ^
duas condições como meio de explicar o significado da ^

T £CA
expressão “da maneira certa”, dizendo que o conteúdo
Intencional deve ser um aspecto causalmente relevante e
1

QtQLlO
deve exemplificar uma regularidade planejável. a
•j.
OJ
>
Z
3
CAPÍTULO 5
O BACKGROUND

PA JM
DO
t Fc.L>i.
Si0L_tO f LCA.
Os estados Intencionais com uma direção de ajuste
têm conteúdos que determ inam suas condições de satisfa­
ção. Mas não funcionam de m aneira independente ou
atomística, pois cada estado Intencional tem seu conteúdo
e determina suas condições de satisfação apenas em rela­
ção a num erosos outros estados Intencionais1. Vimos isso
no caso do hom em que passa a ter a intenção de concor­
rer à Presidência dos Estados Unidos. Normalmente ele
acreditaria, por exemplo, que os Estados Unidos são uma
República, que têm eleições periódicas, que nessas eleições
os candidatos dos dois principais partidos concorrem pela
Presidência e assim por diante. E ele normalmente deseja­
ria receber a indicação de seu partido, desejaria que as
pessoas trabalhassem por sua candidatura, que os eleito­
res votassem nele e assim por diante. Talvez nada disso
seja essencial para as intenções do tal hom em e, certa­
mente, a existência de nada disso é acarretada pelo enun­
ciado de que o hom em tem a intenção de concorrer à
Presidência dos Estados Unidos. Não obstante, sem uma
196 INTENCIONALIDADE

Rede de estados. Intencionais dessa natureza, ele não po­


deria ter form ado o que chamaríam os de “intenção de
concorrer à Presidência dos Estaclos Unidos”. Poderíamos
dizer que essa intenção se refere a esses outros estados
Intencionais, no sentido de que só pode ter as condições
de satisfação que tem e, portanto, só pode ser a intenção
que é, porque está situada em uma Rede de outras cren­
ças e desejos. Além disso, em qualquer situação de vida
real, as crenças e desejos são apenas parte de um com­
plexo mais amplo de outros estaclos psicológicos ainda;
haverá intenções subsidiárias, bem com o esperanças e te­
mores, ansiedades e antegozos, sentimentos de frustração
e de satisfação. Em resumo, estive chamando toda essa
rede holística simplesmente “Rede”.
Entendem os com pletam ente o que seja, para um
homem, pretender tornar-se Presidente dos Estados Uni­
dos, mas não tem os absolutam ente nenhum a idéia clara
acerca do que seria para um hom em pretender tornar-se
uma xícara de café ou uma m ontanha, pois - entre ou­
tras razões - não sabemos com o adequar um a tal inten­
ção à Rede. Mas suponham os agora, tom ando seriam en­
te a hipótese da Rede, que com eçam os a tentar seguir os
vários fios que ligam um estado Intencional a outro; su­
ponham os que tentam os nos livrar desses “e assim por
diante” dos parágrafos anteriores, expondo detalhada­
mente cada um dos estados Intencionais da Rede. Logo
descobriríamos ser impossível a tarefa por diversas razões.
Em primeiro lugar, porque grande parte, talvez a maior
parte, da Rede está subm ersa no inconsciente e não sa­
bem os exatam ente com o trazê-la à tona. Em segundo,
porque os estados da Rede não se individuam; não sabe­
mos, por exemplo, com o considerar as crenças. Mas, por
último, se tentássem os de fato levar a cabo essa tarefa,
logo nos veríamos form ulando um conjunto de proposi-
O BACKGROIJND 197

ções que p areceriam improváveis se as incluíssemos em


nossa lista cie crenças na Rede; “im prováveis” porque,
em certo sen tid o , são dem asiado fundam entais para se­
rem q u alificad as com o crenças, m esm o inconscientes.
C onsiderem os as seguintes proposições: as eleições são
realizadas na superfície da terra ou em suas imediações;
as coisas so b re as quais as pessoas pisam costum am ser
sólidas; as p esso as só votam quando despertas; os obje­
tos oferecem resistência ao toque e à pressão, Enquanto
conteúdos d e crenças, essas proposições não assentam
muito com crenças como a de que os Estados Unidos rea­
lizam eleições presidenciais a cada quatro anos ou que
os Estados m aiores têm mais votos eleitorais que os m e­
nores. Um h o m em poderia de fato acreditar insconscien-
tem ente (e, n e sse caso, isso significa apenas que ele
nunca pensa sobre sua crença) que os Estados maiores
têm mais vo to s eleitorais que os m enores, mas parece
errô n eo d iz e r q u e eu, agora, n esse sentido, tam bém
acredito que a m esa em que estou trabalhando oferecerá
resistência ao toque. Certamente eu ficaria surpreso se
tal não ocorresse, e isso no mínimo sugere que tem os al­
go sem elhante a condições de satisfação. Além disso, um
hom em com certeza poderia ter a crença de que as m e­
sas oferecem resistência ao toque, mas, no decorrer des­
te capítulo, argum entarei não ser essa a m aneira correta
de descrever a posição que eu, por exem plo, assum o
agora em relação a esta mesa e a outros objetos sólidos.
Para mim, a rigidez da mesa manifesta-se no fato cle eu
saber com o sentar-m e à mesa, poder escrever sobre uma
mesa, colocar pilhas de livros em cima da mesa, usar a
mesa com o bancada de trabalho e assim por diante. E,
ao fazer cada um a dessas coisas, não estou, além de mi­
nha ação, pen sando inconscientem ente comigo mesmo:
“ela oferece resistência ao toque”.
198 INTENCIONALIDADE

Acredito que quem quer que tente seriamente seguir


os fios da Rede acabará chegando a um alicerce de capa­
cidades m entais que, em si mesmas, não constituem esta­
dos Intencionais (representações), mas, não obstante, for­
mam as precondições para o funcionam ento dos estados
Intencionais. O Background é “pré-intencional”, no senti­
do de que, em bora não seja uma forma ou formas de In­
tencionalidade, é, não obstante, uma precondição ou um
conjunto de precondições de Intencionalidade. Não sei
com o dem onstrar essa hipótese de m odo conclusivo, em ­
bora neste capítulo eu pretenda examiná-la e apresentar
alguns argumentos a seu favor.

I. O QUE SE ENTENDE, EXATAMENTE,


POR “BACKGROUND”?

O Background é um conjunto de capacidades m en­


tais não-representacionais que perm ite a ocorrência de
toda representação. Os estados Intencionais apenas têm
as condições de satisfação que têm e, portanto, apenas
são os estados que são sobre um Background de capaci­
dades que, em si mesmas, não são estados Intencionais.
Para que eu possa ter agora os estados Intencionais que
tenho, preciso ter determ inados tipos cle saber prático
(Know-how): preciso saber com o as coisas são e preciso
saber como fazer as coisas, mas esses tipos cle “saber co­
m o” (Know-how) em questão não são, nesses casos, for­
mas cle “saber que” (Know-what).
Para esclarecer esse ponto, consideremos outro exem­
plo. Pensemos no que é necessário, no que deve ocorrer,
para que eu possa agora passar a ter a intenção de ir até a
geladeira e apanhar uma garrafa de cerveja gelada para
beber. Os recursos biológicos e culturais a que devo ape-
O BACKGROUND 199

lar para essa tarefa, até para passar a ter a intenção de rea­
lizá-la, são (considerados sob uma determinada perspecti­
va) verdadeiramente estonteantes. Mas sem esses recursos
eu não poderia, absolutamente, passar a ter a intenção: le­
vantar-me, andar, abrir e fechar portas, manipular garrafas,

PARA
copos, geladeiras, abrir, servir e beber. Normalmente, a
ativação dessas capacidades envolveria apresentações e re­
presentações, por exemplo, preciso ver a porta para poder

F £ Ur.'* “ L DO
abri-la, mas a capacidade de reconhecer a porta e a capa­
cidade de abri-la não são, em si mesmas, outras represen­
tações. São essas capacidades nâo-representacionais que
constituem o Background.
Uma geografia mínima do Background incluiria pelo

B iB L O fE C »
m enos o seguinte: precisamos distinguir aquilo que pode­

VÍHlVfRSiDaGE
ríamos cham ar “Background de b ase”, que incluiria no
m ínimo todas aquelas capacidades de B ackground co­
m uns a todos os seres hum anos normais em virtude de
sua constituição biológica - capacidades tais como andar,
comer, pegar, perceber, reconhecer e a atitude pré-inten-
cional que leva em conta a solidez clas coisas e a existên­
cia independente de objetos e outras pessoas -, com base
no que poderíam os chamar “Background local”, ou práti­
cas culturais locais, que incluiriam coisas tais com o abrir
portas, beber cerveja em garrafa e a atitude pré-intencio-
nal que assumimos em relação a coisas como carros, gela­
deiras, dinheiro e reuniões sociais.
Ora, tanto no Background de base com o no local
precisamos distinguir entre os aspectos relacionados ao
“m odo com o as coisas são” e os aspectos relacionados
ao “m odo com o fazer as coisas”, em bora seja importante
enfatizar que não há um a linha divisória nítida entre “o
m odo com o as coisas são para m im ” e “o m odo com o eu
faço as coisas”. Por exemplo, faz parte de minha atitude
pré-intencional para com o m undo que eu reconheça

k
200 INTENCIONALIDADE
%

graus de rigidez das coisas com o parte do “m odo com o


as coisas são” e que eu tenha certas habilidades físicas
com o parte do “m odo com o fazer as coisas”. Mas não
posso ativar minha capacidade pré-intencional de, diga­
mos, descascar laranjas, independentem ente de minha
atitude pré-intencional para com a rigidez das coisas.
Posso, por exem plo, pretender descascar um a laranja,
mas não posso, desse mesmo modo, pretender descascar
uma pedra ou um carro; e isso nào se dá porque eu te­
nha uma crença inconsciente, “é possível descascar uma
laranja, m as é impossível descascar uma pedra ou um
carro”, mas sim porque minha atitude pré-intencional pa­
ra com laranjas (o m odo com o as coisas são) perm ite
uma gama com pletam ente diversa de possibilidades (o
m odo como fazer as coisas) da que tenho para com pe­
dras ou carros.

II. QUAIS OS ARGUMENTOS EM FAVOR


DA HIPÓTESE DO BACKGROUND?

Seja a “hipótese do Background” a alegação de que


os estados Intencionais são fundam entados por capacida­
des não-representacionais e pré-intencionais do m odo
que esbocei acima. Como dem onstrar que tal hipótese é
verdadeira? E, aliás, que diferença em pírica acarretaria
uma tal hipótese? Não conheço nenhum argumento de­
monstrativo que prove a existência do Background. Tal­
vez a melhor m aneira de argum entar a favor da hipótese
do Background seja explicar ao leitor de que m odo eu
próprio me convenci dela. Tal convicção resultou de uma
série de investigações mais ou menos independentes, cujo
efeito acumulativo foi produzir um a crença na hipótese
do Background.
O BACKGROUND 201

(i) A compreensão do significado literal

A com preensão do significado literal das sentenças,


das mais simples, como “O gato está no capacho”, às mais
com plexas formuladas pelas ciências físicas requer um
Background pré-intencional. Por exemplo, a sentença “O
gato está no capacho” determina apenas um conjunto defi­
nido de condições de verdade sobre um Background de
pressupostos pré-intencionais que não fazem parte do sig­
nificado literal da sentença. Isso é dem onstrado pelo fato
de que, se alterarmos o B ackground pré-intencional; a
mesma sentença com o mesmo significado literal determi­
nará diferentes condições de verdade e diferentes condições
de satisfação, mesmo sem nenhum a alteração no significa­
do literal cia sentença. A conseqüência disso é que a no­
ção de significado literal de uma sentença não é uma
noção independente do contexto; tem apenas uma aplica­
ção relativa a um conjunto de pressupostos e práticas pré-
intencionais de Background2.
A melhor maneira de argumentar a favor desse ponto
talvez seja mostrar de que modo, dados Panos de Fundo
diferentes, o mesmo significado literal determina condições
de verdade diferentes e, dados alguns Panos de Fundo,
sentenças semanticamente perfeitas do ponto de vista clás­
sico são simplesmente incompreensíveis, incapazes de de­
terminar qualquer conjunto claro de condições de verdade.
Consideremos a ocorrência do verbo “open” (“abrir”) nas
cinco sentenças seguintes, cada uma das quais uma substi­
tuição cia sentença aberta “X opened Y” (“X abriu Y”):

Tom opened the door (Tom abriu a porta)


Sally opened her eyes (Sally abriu os olhos)
The carpenters opened the wall (Os carpinteiros abriram a
parede)
202 INTENCIONALIDADE

Sam o pened the book to page 37 (Sam abriu o livro na


página 37)
The surgeon o p en e d the w o u n d (O cirurgião abriu a fe­
rida).

Parece-m e claro que a palavra “o p e n ” (“abrir”) tem o


mesmo significado literal em todas as cinco ocorrências.
Q ualquer um que negasse isso seria logo forçado a sus­
tentar a posição de que “open" (“abrir”) é indefinidamen­
te, ou talvez até infinitamente, ambígua, um a vez que po­
dem os prosseguir com esses exemplos. Além disso, os
exemplos contrastam com outras ocorrências de “o p e n ”
(“abrir”) em que é pelo m enos passível de discussão que
o termo tenha um sentido ou significado diverso. Consi­
derem os os exem plos seguintes:

The chairman opened the m eeting (O presidente abriu a


sessão)
The artillery opened fire (A artilharia abriu fogo)
Bill opened a restaurant (Bill abriu um restaurante).

O ponto que quero enfatizar agora é: embora o conteúdo


semântico transmitido pelo term o “abrir” seja o mesmo
em cada elem ento do primeiro conjunto, a maneira pela
qual esse conteúdo sem ântico é entendido difere total­
mente em cada caso. Em cada caso, as condições de ver­
dade indicadas pelo termo “o p en ” (“abrir”) são diferentes,
embora o conteúdo semântico seja o mesmo. O que cons­
titui abrir um ferimento é totalmente diverso do que consti­
tui abrir um livro, e com preender essas sentenças literal­
mente requer a com preensão diferenciada de cada uma,
embora “o p en ” (“abrir”) tenha o m esm o significado literal
em todos os casos. Poderemos perceber que as interpreta­
ções são diferentes se imaginarmos como se levaria a cabo
O BACKGROUND 203

diretivos literais que incluíssem o termo “open” (“abrir”).


Suponhamos que, em resposta à ordem “O pen the door”
(“Abra a porta”), eu começasse a fazer incisões nela com
um bisturi; terei aberto a porta, ou seja, terei “obedecido”
literalm ente à ordem literal, “O pen the d o o r” (“Abra a
p o rta”)? Creio q ue não. A em issão literal da sentença £
“Open the door” (“Abra a porta”), requer, para sua com- J
preensão, mais que o conteúdo semântico de suas expres­

CfcNTRA.L
sões com ponentes e as regras para a combinação destas

UNlVfcN?lD*i fc Ft£/«.'WÍ>L
em sentenças. Além disso, a interpretação correta não é
forçada pelo co nteúdo sem ântico das expressões que
substituem “x ” e “y ”, uma vez que seria fácil imaginar prá­
ticas de Background ali onde essas palavras mantivessem

BtBulUTk-CA
os mesmos significados mas nós entendêssemos as senten-
■ças de m odo totalmente diverso; se as pálpebras houves­
sem evoluído para portas com dobradiças de bronze e
grandes cadeados de ferro, entenderíam os a sentença,
“Sally opened her eyes” (“Sally abriu os olhos”) de m odo
bastante diverso cio que hoje a entendemos.
Tentei até aqui dem onstrar que a com preensão é
mais que a apreensão do significado, pois, falando em
termo gerais, aquilo que se entende vai além do signifi­
cado. Outra maneira de afirmar a mesma coisa é mostrar
que é possível apreender todos os significados com po­
nentes e, m esm o assim, não entender a àentença. Consi­
deremos as três sentenças seguintes, que também contêm
o verbo “o p en ” (“abrir”):

Bill opened the mountain (Bill abriu a montanha)


Sally o pened the grass (Sally abriu a grama)
Sam opened the sun (Sam abriu o sol).

Não há nada incorreto, do ponto de vista gramatical,


nessas três sentenças. São, todas, sentenças perfeitam ente

h
204 INTENCIONALIDADE

corretas e entendem os com facilidade cada uma das pala­


vras que as com põem . Mas não temos absolutam ente ne­
nhum a idéia de com o interpretar as sentenças. C onhece­
mos, por exemplo, o significado de “op en ” (“abrir”) e co­
nhecem os o significado de “m o u n tain ” (“m o n tan h a”),
mas desconhecem os o significado de “open the m oun­
tain” (“abrir a m ontanha”). Se alguém me ordenar abrir a
montanha, não terei a mais-remota idéia do que se espe­
ra que eu faça. É claro que eu poderia inventar um a in­
terpretação para cada uma das sentenças, mas, para tan­
to, seria preciso que eu ampliasse a com preensão para
além do que é fornecido pelo significado literal.
Devemos, portanto, explicar dois conjuntos de fatos:
em primeiro lugar, que com preendem os o mesmo signifi­
cado literal diferentemente em cada caso do prim eiro
conjunto de exemplos e, em segundo, que na última sé­
rie não com preendem os absolutam ente as sentenças, em ­
bora não tenham os nenhum a dificuldade em apreender
os significados literais de seus com ponentes.
A explicação, acredito, é simples e óbvia, mas tem
conseqüências de longo alcance para a teoria clássica do
significado e do entendimento. Cada uma das sentenças
do primeiro grupo é entendida no contexto de uma Rede
cle estados Intencionais e sobre um Background de capa­
cidades e práticas sociais. Sabemos abrir portas, livros,
olhos, feridas, paredes etc., e as diferenças na Rede e no
Background de práticas produzem entendim entos dife­
rentes do m esm o verbo. Além disso, simplesmente não
tem os práticas com uns de abrir m ontanhas, grama ou
sóis. Seria fácil inventar um Background, ou seja, imagi­
nar uma prática que desse um sentido claro à idéia de
abrir m ontanhas, grama e sóis, mas, no m om ento, não
dispomos desse Background comum.
O BACKGROUND 205

Acerca da relação entre o Background e o significa­


do literal, qu ero ainda considerar mais duas questões
correlatas. A primeira é que, ainda que as porções perti­
nentes do Background já não sejam parte do conteúdo
semântico, por que não poderiam , por decreto, passar a
fazer parte desse conteúdo? A segunda, se o Background
é uma pré-condiçâo de representação, lingüística ou de
outras formas, por que não pòcle o Background tam bém
ser com posto cie estados Intencionais como as crenças
inconscientes?
Em resp o sta à prim eira q u estão , se tentássem os
identificar as partes relevantes do Background com o um
conjunto de sentenças que expressam outros conteúdos
sem ânticos, isso sim plesm ente exigiria mais Panos de
Fundo para sua com preensão. Suponhamos, por exem ­
plo, que relacionássemos todos os fatos acerca de portas
e acerca de abrir que, no nosso entender, fixariam o en­
tendim ento correto de “O pen the door” (“Abrir a porta”).
Tais fatos serão enunciados em um conjunto de senten­
ças, cada qual com seu p ró p rio conteúdo sem ântico.
Agora, porém , essas próprias sentenças teriam de ser en ­
tendidas e tal entendim ento exigiria ainda mais B ack­
ground. Se tentássem os identificar o Background com o
parte do conteúdo sem ântico, não saberíam os quando
nos deter e cada conteúdo sem ântico que produzíssemos
necessitaria ainda mais Background para a sua inclusão.
Sobre a segunda questão: Se a representação pressupõe
um Background, este não pode, em si mesmo, consistir
em representações sem gerar um regresso infinito. Sabe­
mos que o regresso infinito é empiricamente impossível,
ciada a finitude das capacidades intelectuais humanas. A
seqüência de etapas cognitivas na ccrmpreensão lingüísti­
ca chega a um fim. Na concepção apresentada aqui, ela
não chega a um fim com a apreensão do conteúdo se-
206 INTENCIONALIDADE

mântico isolado ou mesmo com o conteúdo sem ântico


juntam ente com um conjunto de crenças pressupostas,
mas, antes, o conteúdo semântico só funciona sobre um
Background que consiste em um saber prático cultural e
biológico; é esse saber de Background que nos permite
entender os significados literais.

(ii) A compreensão das metáforas

É tentador pensar que deve existir algum conjunto


definido de regras ou princípios que permita aos usuários
de um idioma produzir e entender a emissões metafóri­
cas, e que essas regras ou princípios devem ter algo co­
mo um caráter algorítmico tal que, dada uma aplicação
estrita das regras, ter-se-ia a interpretação correta de
qualquer metáfora. Contudo, tão logo se tentam enunciar
esses princípios de interpretação, descobrem -se alguns
fatos interessantes. As regras que se podem aduzir razoa­
velm ente não são, de m odo algum , algorítmicas. Com
efeito, existem princípios passíveis de serem descobertos
que permitem aos usuários de um idioma descobrir que,
quando um falante afirma m etaforicam ente que X é Y,*
quer dizer que X é como Y com respeito a certas caracte­
rísticas C. Mas essas regras não funcionam de forma m e­
cânica: não há nenhum algoritmo para descobrir quando
uma emissão é entendida m etaforicamente e nenhum al­
goritmo para calcular os valores de C, mesmo quando o
ouvinte já descobriu que a emissão deve ser entendida
metaforicamente. Além disso - o que é talvez mais inte­
ressante para o presente caso —há muitas metáforas cuja
interpretação não se apóia em nenhum a percepção de
uma sem elhança literal entre a extensão do termo F e o
referente do term o X. C onsiderem os, por exem plo, as
OBACKGROUND 207

metáforas de sabor para os traços de personalidade e as


de tem peratura para os estados emocionais. Assim, por
exemplo, falamos de uma “pessoa doce”, de uma “dispo-
sição azeda" e de uma “personalidade amarga”. Também
falamos de um a “recepção calorosa”, de uma “recepção

»»ARA
fria”,
y de um a “amizade
X m yorna”,’ de uma “discussão
x
acalo-
y
rada”, de um “caso am oroso ardente” e de “frigidez se­
xual”. Mas nem no caso cias metáforas de sabor nem no

c en tr a i.
DO
das de tem peratura há qualquer semelhança literal entre
a extensão do term o Y e o referente do term o X que

U N I V E ^ í i i D * í F l ü é K ml
baste para explicar o significado de emissão metafórica.
Por exem plo, o significado da em issão m etafórica da
expressão “recepção m orna” não é baseado em n en h u ­

B - B i_' OTECA
ma sem elhança literal entre as coisas m ornas e o caráter
da recepção assim descrita. Há, cle fato, princípios de
sem elhança sobre os quais funcionam algumas m etáfo­
ras; mas o q ue os exem plos presentes querem dem ons­
trar é que há tam bém certas m etáforas - e até classes
inteiras destas - que funcionam sem nenhum princípio
subjacente de sem elhança. Parece sim plesm ente ser um
fato de nossas capacidades mentais o poderm os inter­
pretar certos tipos de metáfora sem a aplicação de n e­
nhum a “regra” ou “princípio” subjacentes além da pura
capacidade de fazer determ inadas associações. Não co­
nheço nenhum m odo m elhor de descrever essas capaci­
dades do que dizer que se trata cle capacidades m entais
não-representacionais.
Tanto o caráter não-algorítmico das regras quanto o
fato de algumas das associações não serem de m odo al­
gum determ inadas por regras sugerem o envolvim ento
de capacidades não-representacionais, mas tal alegação
seria enganadora caso se considerasse que implica o fato
de um conjunto completo e algorítmico de regras para a
metáfora dem onstrar a inexistência de um tal Background,
208 INTENCIONALIDADE

pois mesmo essas regras exigiriam um Background para


serem aplicadas, tal como veremos.

(iii) Habilidades físicas

Consideremos como é aprender a esquiar. O esquia­


dor principiante recebe um cojunto de instruções verbais
sobre o que deve fazer: “incline-se para a frente”, “dobre
os joelhos”, “apóie o peso no esqui que estiver mais à
frente” etc. Cada um a delas é uma representação explíci­
ta e, na m edida em que o esquiador esteja ten tan d o
aprender seriamente, cada um a delas funcionará causal-
m ente com o parte do conteúdo Intencional que determ i­
na o com portamento. O esquiador tenta manter o peso
sobre o esqui que estiver mais à frente por meio de obe­
decer à instrução de apoiar o peso sobre o esqui que es­
tiver mais à frente. Temos aqui um caso perfeitam ente
modelar cle causaçâo Intencional: as instruções têm uma
direção de ajuste mundo-palavra e uma direção de causa­
çâo palavra-m undo. Esquiar é um a dessas habilidades
que se aprendem com a ajuda de representações explíci­
tas. Depois de algum tempo, porém, o esquiador se apri­
mora; já não precisa lembrar-se das instruções, mas ape-^
nas se põe a esquiar. Segundo a visão cognitivista tradicio­
nal, as instruções foram internalizadas e passaram a fun­
cionar inconscientemente, mas ainda como representações.
Com efeito, seg u n d o alguns au to res - P olanyi3, por
exemplo —é essencial para seu funcionam ento que esses
conteúdos Intencionais funcionem inconscientem ente,
pois, quando se pensa neles ou se tenta trazê-los à cons­
ciência, eles se interpõem no caminho e o indivíduo não
consegue mais esquiar tão bem com o antes. Um tanto
como a proverbial centopéia que pensa sobre qual perna
O BACKGROUND 209

deve m over a seguir e fica paralisada, o esquiador ficará


paralisado, ou pelo menos bloqueado, s t tentar lembrar-
se das regras do instrutor; o melhor para ele é deixá-las
funcionar inconscientemente.
Considero essa interpretação do que se dá quando o
esquiador se aprimora implausível, e quero sugerir uma

para
hipótese alternativa. À medida que o esquiador se apri­
mora, não internaliza melhor as regras, mas, antes, estas

C E N .IR A ».
ÜÜ
vão se tornando progressivamente irrelevantes. As regras
não ficam “em butidas” com o conteúdos Intencionais in­

FLUtK^L
conscientes, m as as experiências repetidas criam aptidões
físicas, presum ivelm ente realizadas como trilhas neurais,
que tom am as regras simplesmente irrelevantes. “A práti­

B tB U Q T E C A
ca faz a perfeição”, não por resultar em uma perfeita m e­
morização das regras e sim porque a prática repetida p er­

UHIVEKSIDaí.E
mite que o corpo assuma o com ando e que as regras re­
cuem para o Background.
É possível dar conta dos dados com um aparato ex­
plicativo mais econômico se não tivermos de supor que
cada habilidade física está apoiada em um grande núm e­
ro de representações mentais inconscientes, mas sim que
a prática e o treinam ento repetidos em uma variedade de
situações acaba tornando o funcionam ento causal da re­
presentação desnecessário no exercício da habilidade em
questão. O esquiador avançado não segue melhor as re­
gras, mas esquia de um modo totalmente diferente. Seus
movimentos são fluentes e harmoniosos, ao passo que o
esquiador principiante, ao se concentrar consciente ou
inconscientem ente nas regras, realiza movimentos espas­
módicos, bruscos e ineptos. O esquiador experim entado
é flexível e reage diferentem ente a diferentes condições
de terreno e neve; o principiante é inflexível e, diante de
situações diferentes e incom uns, sim plesmente tende a
cair. Encosta abaixo, o com petidor de uma corrida move-
210 INTENCIONALIDADE

se com extrema rapidez, a mais de 100 quilômetros por


hora, sobre um terreno irregular e acidentado. Seu corpo
realiza milhares de ajustes rapidíssimos às variações do
terreno. Ora, o que é mais plausível: quando seu copro
realiza tais ajustes, tal se dá som ente porque o esquiador
está em preendendo uma série velocíssima de cálculos in­
conscientes para aplicar regras inconscientes ou será por­
que o corpo dele está treinado de tal m odo que essas va­
riações do terreno são enfrentadas automaticamente? Em
minha opinião, o corpo assume o com ando e a Intencio­
nalidade do com petidor concentra-se em vencer a corrida.
Isso não equivale a negar a existência de formas cie Inten­
cionalidade envolvidas no exercício de habilidades físicas
nem que parte dessa Intencionalidade seja inconsciente.
Nenhum desses três conjuntos de considerações é,
em sentido algum, conclusivo e seguram ente nenhum ar­
gum ento formal foi apresentado para dem onstrar a hipó­
tese do Background. Não obstante, um certo quadro co­
meça a formar-se: temos efetivamente estados Intencio­
nais, alguns conscientes, muitos inconscientes; tais esta­
d o s formam uma Rede complexa. A Rede dissolve-se em
um B ackground de capacidades (que incluem diversas
habilidades, aptidões, suposições e pressuposições pré-
intencionais, atitudes não-representacionais e posturas).
O Background não está na periferia da Intencionalidade,
mas permeia toda a Rede de estados Intencionais; uma
vez q u e sem o B ackground os estados não poderiam
funcionar, estes não podem determinar condições de sa­
tisfação. Sem Background não poderia haver percepção,
ação, õu m em ória, ou seja, esses estados Intencionais
não poderiam existir. Dado esse quadro como hipótese
de trabalho, as evidências em favor do Background co­
meçam a acumular-se por toda a parte. Por exemplo, as
regras para a realização de atos de fala ou para a inter-
O BACKGROUND 211

pretação dos atos de fala indiretos têm uma aplicação d e­


pendente do Background como as “regras” da metáfora.
Em últim a instância, essas considerações sugerem
um argum ento de caráter mais tradicional em favor do
Background (embora eu confesse achar as “considerações”
mais convincentes que o “argum ento”): Suponham os que
o contrário da hipótese do Background fosse verdade, is­
to é, suponham os que toda a vida mental Intencionalista
e todas as capacidades cognitivas pudessem ser reduzi­
das inteiram ente a representações: crenças, desejos, re­
gras internalizadas, conhecim ento cle que determ inada
coisa é verdadeira etc. Cada uma dessas representações
seria exprimível como um conteúdo semântico explícito
(em bora, é claro, m uitos deles sejam inconscientes e,
portanto, inacessíveis à introspecção do agente) e os p ro ­
cessos mentais consistiriam em passar de um desses con­
teúdos sem ânticos para outro. Contudo, há certas dificul­
dades nesse quadro. Os co n teú d o s sem ânticos que a
concepção nos fornece não podem ser aplicados por si
mesmos. Ainda que dados os conteúdos semânticos, te­
mos de saber o que fa ze r com eles, com o aplicá-los, e
esse conhecim ento não pode consistir em outros conteú­
dos sem ânticos sem um regresso infinito. Suponhamos,
por exemplo, que minha aptidão para andar consistisse
de fato em eu haver internalizado uma série de regras
para andar. Como poderiam ser essas regras? Bem, para
começar, experim entem os a seguinte regra para andar:
“Primeiro, ponha o pé esquerdo para a frente, depois o
direito, depois o esquerdo e siga em frente desse m odo”.
Como já vimos, porém, qualquer conteúdo semântico do
tipo que acabam os de expressar está sujeito a uma varie­
dade de interpretações. O que, exatamente, se entende
por “p é ”, “m ovim ento”, “para a frente” e “seguir em fren­
te desse m odo”? Dados diferentes pressupostos de Back-
212 INTENCIONALIDADE

ground, poderíam os interpretar essa regra em um núm e­


ro indefinido de maneiras, muito embora, nas atuais cir­
cunstâncias, todos saibamos qual a interpretação “corre­
ta”. Ora, esse conhecim ento não pode ser representado
como mais um conteúdo semântico, pois, nesse caso, o
mesmo problem a tornaria a se apresentar na íntegra: pre­
cisaríamos de outra regra para a correta interpretação da
regra de interpretação para a regra de andar. A saída des­
se paradoxo é perceber que, em primeiro lugar, não pre­
cisamos de um a regra de andar: nós simplesmente anda­
mos4. E nos casos em que de fato agimos segundo uma
regra, em que seguimos uma regra, com o nas regras dos
atos de fala, simplesmente agimos com base nelas, sem
precisarmos de outras regras para interpretá-las. Existem
de fato representações, algumas das quais funcionam cau-
salmente na produção de nosso comportamento, mas, na
seqüência de representações, acabam os por chegar a um
fundam ento último de capacidades. Como sugere Witt-
genstein, nós simplesmente agimos.
Suponham os que você escrevesse em um gigantesco
rolo de papel todas as coisas em que acredita. Suponha­
mos que você incluísse todas as crenças que são, na ver­
dade, axiomas que lhe permitem gerar mais crenças, e que
escrevesse quaisquer “princípios de inferência” de que ti­
vesse necessidade para derivar mais crenças de suas cren­
ças anteriores. Assim, não seria necessário escrever que
“7 + 1 = 8” e que “8 + 1 = 9”; um enunciado dos princípios
da aritmética ã la Peano daria conta da infinita capacida- ’
de gerativa de suas crenças m atemáticas. Suponham os
agora que você escrevesse desse m odo até a última de
suas crenças. Q uero dizer, no tocante a essa lista, que se
tudo o que tem os é uma expressão verbal do conteúdo
de nossas crenças não temos absolutam ente nenhum a In­
tencionalidade por enquanto. E isso não se dá porque
OBACKGROUND 213

aquilo que você escreveu são sinais gráficos “sem vida”,


sem significação, mas porque mesmo que as concebam os
como expressões de entidades semânticas fregeanas, ou
seja, como conteúdos proposicionais, as proposições não
são auto-aplicáveis. Ainda é preciso saber o que fazer

PARA
com os elem entos semânticos antes que possam funcio­
nar; devem os ser capazes de aplicar os conteúdos se­
mânticos para que estes possam determ inar condições de

CENTRAL
DO
satisfação. Ora, é essa capacidade de aplicar ou interpre­
tar conteúdos Intencionais que estou afirmando ser uma

FtOtiKJL
função característica do Background.

B'SUOTEC*
III. EM QUE SENTIDO O BACKGROUND É MENTAL?

É possível argum entar, com o já vi argum entarem ,


que aquilo que estivemos cham ando Background é na
verdade um fator social, um produto da interação social,
ou que é fundam entalm ente biológico, ou m esm o que
consiste de objetos reais no m undo, tais com o cadeiras e
mesas, martelos e pregos - “a totalidade referencial do
equipam ento à m ão”, em uma veia heideggeriana. Q uero
afirmar que há pelo menos um elem ento de verdade em
todas essas concepções, mas que isso não nos desvia do
sentido crucial em que o Background consiste de fenô­
menos mentais.
Cada um de nós é um ser biológico e social em um
m undo de outros seres biológicos e sociais, rodeados por
artefatos e objetos naturais. Ora, o que venho cham ando
de Background na verdade é derivado de toda a congérie
de relações que todo ser biológico-social guarda com o
m undo à sua volta. Sem minha constituição biológica e
sem o conjunto de relações sociais em que estou envolvi­
do, não poderia ter o Background que tenho. Mas todas
214 INTENCIONALIDADE

essas relações biológicas, sociais e físicas, todos esses en­


vo lv im en to s, só são re le v an tes p ara a p ro d u ç ã o do
Background em virtude dos efeitos que este tem sobre
mim, especificamente os efeitos que tem sobre m eu cére-
bro-mente. O m undo só é relevante para o m eu Back­
ground por causa de minha interação com o mundo; e
para esclarecer essa questão podem os apelar para a co­
nhecida fábula do “cérebro-na-cuba”. Ainda que eu fosse
um cérebro em uma cuba - ou seja, mesmo que todas as
minhas percepções e ações no m undo fossem alucinações
e as condições de satisfação de todos os m eus estados
Intencionais externam ente referentes fossem, na verdade,
não-satisfeitos —não obstante eu teria o conteúdo Inten­
cional que tenho e, assim, por força, teria exatam ente o
mesmo Background que teria se não fosse um cérebro
em uma cuba e não tivesse esse conteúdo Intencional
particular. O fato de que tenho um certo conjunto de es­
tados Intencionais e o fato de que tenho um Background
não exigem logicamente que eu esteja efetivamente em
certas relações com o m undo à minha volta, em bora eu
não pudesse, por uma questão de fato empírico, ter o
Background que tenho sem um a história biológica espe­
cífica e um conjunto específico de relações sociais com
outras pessoas e relações físicas com objetos naturais e
artefatos. O Background, portanto, não é um conjunto de
coisas nem um conjunto de relações misteriosas entre
nós e as coisas, mas simplesmente um conjunto de habi­
lidades, suposições e pressuposições pré-intencionais,
posturas, práticas e hábitos. Tudo isso, até onde se sabe,
é realizado nos cérebros e corpos humanos. Não há ab­
solutam ente n ada de “tran scen d en tal” ou “m etafísico”
acerca do Background, no sentido em que estou em pre­
gando o termo.
O BACKGROUND 215

IV. QUAL A MELHOR FORMA DE ESTUDARMOS


O BACKGROUND?

Creio que o mais proveitoso é estudar o Background


em casos de pane, casos em que os estados Intencionais
não conseguem alcançar suas condições de satisfação de­
vido a alguma falha no conjunto de condições pré-inten-
cionais de B ackground referentes à Intencionalidade.
Consideremos dois tipos de exemplos. Suponhamos que,
ao entrar em m eu escritório, eu depare subitamente com
um enorm e abismo do outro lado cia porta. Meus esfor­
ços para entrar no escritório seriam com certeza frustra­
dos, o que constitui uma falha na realização das condições
de satisfação de um estado Intencional. Mas a razão para
essa falha está relacionada a um a pane em minhas pres­
suposições de Background. Não se trata de eu sem pre ter
tido uma crença - consciente ou inconsciente - de que
não há abismos do outro lado de minha porta, ou m es­
mo de eu sem pre ter acreditado que meu piso era “nor­
mal”; antes, o conjunto de hábitos, práticas e suposições
p ré-in ten cio n ais q u e ten h o acerca de m eu escritório
quando tento intencionalm ente entrar nele falharam nes­
se caso e, por esse motivo, minha intenção foi frustrada.
Um segundo tipo de caso diz respeito ao exercício de
habilidades físicas. Suponhamos que, ao tentar nadar, eu
descubra subitam ente que sou incapaz de o fazer. Sem­
pre capaz de nadar desde a infância, descubro-me subita­
mente incapaz de dar uma única braçada. Nesse caso, po-
de-se dizer que dois estados Intencionais foram frustra­
dos, Em primeiro lugar, minha intenção de nadar foi frus­
trada e, em segundo, minha crença de que sou capaz de
nadar foi falseada. A efetiva capacidade de nadar, porém ,
não é nem um a intenção nem um a crença. A efetiva ca­
pacidade de nadar, minha capacidade de realizar deter-
216 INTENCIONALIDADE

m inados m ovim entos físicos, nesse caso sim plesm ente


faltou-me. Pode-se dizer que o que temos, no primeiro
caso, é um a falha no “modo com o as coisas são” e o que
temos no segundo caso é um a falha no “modo com o fa­
zer as coisas”. Em ambos temos um a pane, que se mani­
festa na falha em realizar as condições de satisfação de
algum estado Intencional; contudo, a razão para essa fa­
lha, em ambos os casos, não é mais uma falha referente
à Intencionalidade, mas sim uma pane no funcionam ento
das capacidades pré-intencionais subjacentes aos estados
intencionais em questão.

V. POR QUE ESTAMOS TENDO TANTAS DIFICULDADES


EM DESCREVER O BACKGROUND OU MESMO EM
ENCONTRAR UMA TERMINOLOGIA NEUTRA PARA
O DESCREVER? E POR QUE NOSSA TERMINOLOGIA
SEMPRE PARECE “REPRESENTACIONAL”?

O leitor já deve ter notado que há uma dificuldade


real em encontrar termos da linguagem comum para des­
crever o Background: fala-se vagam ente de “practices”
(“práticas”), “capacities” (“capacidades”) e “stances” (“ati­
tudes”) ou se fala sugestivamente, mas de maneira passí­
vel de induzir a erro, de “assum ptions” (“suposições”) e
“presuppositions” (“pressuposições”). Estes últimos ter­
mos devem ser literalmente errôneos, pois implicam o
aparato da representação com seus conteúdos proposicio-
nais, suas relações lógicas, valores de verdade, direções
do ajuste etc.; e é por isso que, normalmente, prefacio,os
term os “assu m p tion” (“su p o sição ”) e “presupposition"
(“pressuposição”) com o term o aparentem ente oximorô-
nico “preintentional” (“pré-intencional”), uma vez que o
sentido de “assum ption” (“suposição”) e “presupposition”
OBACKGROUND 217

(“pressuposição”) em questão não é representacional. Mi­


nhas expressões favoritas são “capacities”- (“capacidades”)
e “practices” (“práticas”), uma vez que estas podem ter
êxito ou fracassar sem serem em si mesmas representações.
Contudo, m esm o elas são inadequadas, pois não conse­
guem transmitir um a im plicação apropriada de que se
trata de fenôm enos explicitam ente mentais. O fato de
não termos nenhum vocabulário natural para discutir os

DO
CENTRAL
fenôm enos em questão e o fato de tenderm os a cair em
um vocabulário Intencionalista deveria chamar a nossa
atenção. Por que ocorre isso?

ÜNIVEWSID^L-E. F E Dt RAL
A principal função da m ente é, em nossa acepção
especial da palavra, representar. E, o que não é de estra­

B.Bu'OrECA
nhar, as línguas com o o inglês proporcionam -nos um vo­
cabulário bastante rico para descrever essas representações,
um vocabulário de memory (memória) e intention (inten­
ção), belief (crença) e desire (desejo), perception (per­
cepção) e action (ação). Mas, assim como a língua não
está m uito bem aparelhada para falar de si m esm a, a
mente não é bem aparelhada para refletir sobre si m es­
ma: ficamos bem à vontade com estados Intencionais de
primeira ordem e bem à vontade com um vocabulário de
primeira ordem para esses estados: por exemplo, acredi­
tamos ( helieve) que parou de chover, desejamos ( desire)
beber uma cerveja gelada e sentimos muito (are sorry)
que as taxas de juro tenham caído. Q uando chega o m o­
mento de fazer investigações de segunda ordem de nos­
sos estados de primeira ordem, não temos vocabulário al­
gum à disposição, exceto o de primeira ordem. Nossas
investigações de segunda ordem dos fenômenos de pri­
meira ordem adotam, muito naturalmente, o vocabulário
de primeira ordem, de m odo que se pode dizer, muito
naturalmente, que rejietimos ( reflect) sobre a reflexão (re-
llection), tem os crenças ( beliefs) sobre a crença (belie-
218 INTENCIONALIDADE

ving) e até pressupomos (presupose) a pressuposição (pre­


supposition). Mas quando se trata de examinar as condi­
ções da possibilidade do funcionamento da mente, nós
simplesmente temos um vocabulário muito exíguo à nossa
disposição, afora o vocabulário dos estados Intencionais
de primeira ordem. Simplesmente não existe vocabulário de
primeira ordem para o Background, porque este não tem
Intencionalidade. Como pré-condição da Intencionalidade,
o Background é tão invisível para a Intencionalidade
quanto d olho que vê é invisível a si mesmo.
Além disso, como o único vocabulário de que dispo­
mos é o dos estados mentais de primeira ordem, quando
efetivamente refletimos sobre o Background a tentação é
representar os seus elementos segundo o modelo de ou­
tros fenômenos mentais e pensar que nossas representa­
ções são de representações. Que outra coisa poderiam
ser? Almoçando em um restaurante, ergo minha caneca
de cerveja e me surpreendo por sua leveza. Uma inspe­
ção revela que a grossa caneca não é de vidro e sim de
plástico. Díriamos, naturalmente que eu acreditava que a
caneca era de vidro e que esperava que ela fosse pesada.
Mas está errado. No sentido em que eu realmente acredi­
to, sem ter jamais pensado explicitamente sobre isso, que
as taxas de juros vão cair e que de fato espero uma inter­
rupção da atual onda de calor, eu não tinha tais crenças
e expectativas acerca da caneca de cerveja, mas* simples­
mente agi. O uso comum convida-nos a tratar - e pode­
mos tratar e tratamos - os elementos do Background co­
mo se fossem representações, mas não decorre disso,
nem se verifica, que, ao funcionarem, tais elementos fun­
cionem como representações. O preço que pagamos por
ir deliberadamente contra a linguagem comum é a metá­
fora, o oxímoro e o neologismo sem rodeios.
O BACKGROUND 219

VI. COMO FUNCIONA O BACKGROUND?

O Background proporciona um conjunto de condi­


ções capacitantes que possibilitam o funcionamento de
formas particulares de Intencionalidade. Assim como a
Constituição dos Estados Unidos permite que um certo ^
candidato em potencial passe a ter a intenção de ser Pre- *
sidente e assim como as regras cle um jogo permitem a t-
execução de certos movimentos, o Background nos capa- O —
cita a ter formas particulares de Intencionalidade. Tais 3 qc
analogias, no entanto, passam a ser insatisfatórias quando ^ 2
refletimos em que as regras do jogo e a Constituição são * ^
conjuntos de representações; especificamente, são con- O
juntos de regras constitutivas. O Background, repetindo, \l :_)
não é um conjunto de representações, mas, tal como a oi
estrutura do jogo ou a da Constituição, proporciona não ^ 2
obstante um con ju nto de co n d içõ es capacitantes. O 9 ®
Background funciona causalmente, mas a causação em ffi
questão não é determinante. Em termos tradicionais, o ■£[
Background proporciona condições necessárias, mas não %.
suficientes, para entender, acreditar, desejar, tencionar 3
etc. e, nesse sentido, é capacitante e não determinante.
Nada me força ao entendimento correto do conteúdo se­
mântico da sentença “Open the door” (“Abra a porta”),
mas, sem o Background, o entendimento que tenho não
seria p ossível e qualquer en ten d im en to req u er um
Background qualquer. Portanto, seria incorreto pensar no
Background com o algo que forma uma ponte entre o
conteúdo Intencional e a determinação das condições de
satisfação, como se o próprio conteúdo Intencional não
fosse capaz de alcançar as condições de satisfação. Seria
ainda mais incorreto pensar no Background com o um
conjunto de funções que tomam conteúdos Intencionais
como argumentos e determinam condições de satisfação
220 INTENCIONALIDADE

como valores. Ambas essas concepções interpretam o


Background com o mais um conteúdo Intencional que se
prende ao conteúdo Intencional primário. Na concepção
que estou apresentando, é, antes, o conjunto cie práticas,
habilidades, hábitos e atitudes que permitem que os esta­
dos Intencionais funcionem nas diversas maneiras que
funcionam e é nesse sentido que o Background funciona
causalmente, ao fornecer um conjunto de condições ca-
pacitantes para a operação dos estados Intencionais.
Muitos problemas filosóficos se originam da dificul­
dade em se compreender a natureza e a operação do
Background. Mencionarei apenas uma fonte desses pro­
blemas: tal como observei anteriormente, é sempre possí­
vel tomar um elemento do Background e tratá-lo como
uma representação mas não decorre do fato de ser possí­
vel tratar um elemento do Background como uma repre­
sentação, que este funcione, quando funciona, como uma
representação. Bom exemplo disso é a disputa filosófica
corrente e recorrente acerca de algo denominado “realis­
mo”. O realismo, quero dizer, não é uma hipótese, crença
ou tese filosófica, mas faz parte do Background na se­
guinte maneira: meu compromisso com o “realismo” fica
patente no fato de eu viver cio modo como vivo, dirigir
meu carro, beber minha cerveja, escrever meus artigos, fa­
zer minhas conferências e esquiar em minhas montanhas.
Ora, além de todas essás atividades, cada uma delas ma­
nifestação de minha Intencionalidade, não há uma “hipó­
tese” complementar de que o mundo real existe. Meu
compromisso com a existência do mundo real se mani­
festa toda vez que realizo praticamente qualquer ativida­
de. É um erro tratar esse compromisso como se fosse uma
hipótese, como se, além de esquiar, beber, comer etc., eu
sustentasse uma crença - a de que existe um mundo real
independente de minhas representações do mesmo. De-
O BACKGROUND 221

pois de conceberm os o funcionamento do Background


desse modo equivocado, ou seja, uma vez tratado aquilo
que é pré-intencional como se fosse uma espécie de In­
tencionalidade, a questão torna-se imediatamente proble­
mática. Fica parecendo que eu nunca poderia mostrar ou
demonstrar a existência de um mundo real independente
de minhas representações do mesmo. Mas é claro que eu
nunca poderia mostrar ou demonstrar isso, uma vez que
qualquer mostra ou demonstração pressupõe o B ack­
ground, e este é a corporificaçâo de meu compromisso
com a realidade. As discussões contemporâneas do realis­
mo são, em sua maior parte, estritamente desprovidas cie
sentido, pois a própria formulação da pergunta, na verda­
de qualquer pergunta, pressupõe o realismo pré-intencio­
nal do Background. Não pode haver uma pergunta plena­
mente significativa na forma “Existe um mundo real inde­
pendente cie minhas representações do mesmo?”, pois o
próprio fato de termos representações só pode existir so­
bre um Background que confira às representações o cará­
ter de “representar alguma coisa”. Isso não quer dizer que
o realismo seja uma hipótese verdadeira, mas, antes, que
nào se trata absolutamente de uma hipótese, e sim da
pré-condição para se ter hipóteses.
CAPÍTULO 6
SIGNIFICADO

£>0
CEN.HWAJ.
FEDiF.ftAV.
StÔ U O V C C A .
I. SIGNIFICADO E INTENCIONALIDADE

UMkVÊKSIDM.E
A abordagem à Intencionalidade adotada neste livro
é resolutamente naturalista: penso nos estados, proces­
sos e eventos Intencionais com o parte da história de
nossa vida biológica, do mesmo modo que a digestão, o
crescimento e a secreção de bílis fazem parte da história
de nossa vida biológica. De um ponto de vista evolucio­
nário, da mesma forma como há uma ordem de priorida­
de no desenvolvimento de outros processos biológicos,
há uma ordem de prioridade no desenvolvimento dos
fenômenos Intencionais. Nesse desenvolvimento, a lin­
guagem e o significado, ao menos no sentido que lhes é
atribuído pelos seres humanos, surgiram bem tardiamen­
te. Muitas outras espécies além da humana têm percep­
ção sensorial e ação intencional, e algumas, os primatas
com certeza, têm crenças, desejos e intenções, mas mui­
to poucas espécies, talvez apenas a humana, têm uma
forma de Intencionalidade não só peculiar, como tam­
224 INTENCIONALIDADE

bém biologicamente baseada, que associamos à lingua­


gem e ao significado.
A intencionalidade difere de outros tipos de fenôm e­
nos biológicos por ter uma estrutura lógica e, assim co­
mo há prioridades evolucionárias, há também prioridades
lógicas. Uma conseqüência natural da abordagem bioló­
gica advogada neste livro é considerar o significado, no
sentido em que os falantes significam alguma coisa por
suas emissões, com o um desenvolvimento especial de
formas mais primitivas de Intencionalidade. Assim conce­
bido, o significado do falante deve ser inteiramente defi­
nível em termos de formas mais primitivas de Intenciona­
lidade. E a definição é nâo-trivial nesse sentido: defini­
mos o significado do falante em termos de formas de In­
ten cion alid ad e não intrinsecam ente lingüísticas. Por
exemplo, se pudermos definir o significado em termos de
intenções, teremos definido uma noção lingüística em
termos de uma noção não-lingüística, embora muitas das
intenções humanas, talvez a maioria, sejam de fato lin-
güisticamente realizadas.
Nesta abordagem, a filosofia da linguagem é um ra­
mo da filosofia da mente. Em sua forma mais geral, filia-
se à concepção segundo a qual certas noções semânticas
fundamentais, como o significado, são analisáveis em ter­
mos de noções psicológicas ainda mais fundamentais, co­
mo a crença, o desejo e a intenção. Tais concepções são
bastante comuns ria filosofia, mas há uma discordância
considerável entre os adeptos da abordagem segundo a
qual a linguagem está subordinada à mente quanto à
aparência que deve ter a análise de noções semânticas.
Uma das versões mais influentes dessa concepção (deri­
vada de Grice)1 é que, para um falante, significar alguma
coisa por uma emissão é ter um certo conjunto de inten­
ções direcionadas para uma audiência real ou possível:
SIGNIFICADO 225

para o falante, significar alguma coisa por uma emissão é


fazer essa emissão com a intenção cie" produzir certos
efeitos sobre sua audiência. Caracteristicamente, os adep­
tos dessa con cepção julgam as noções de intenção e
ação, bem com o outras noções mentais, como a crença e
o desejo, com o não-analisadas.
Neste capítulo, quero retomar a discussão cia análise
do significado em termos das intenções do falante. A abor­
dagem que adotarei difere da tradicional, inclusive daque­
la de meus trabalhos anteriores, em dois aspectos impor­
tantes. Primeiro, adotarei a interpretação das ações e dos
estados Intencionais apresentada nos capítulos anteriores
para fundamentar as noções de significado e de atos cle fa­
la em uma teoria mais geral da mente e da ação. O signifi­
cado é um tipo de Intencionalidade; o que o distingue dos
outros tipos? Os atos cle fala são tipos de ato; o que os dis­
tingue dos outros tipos? Segundo, rejeitarei a idéia cle que
as intenções relevantes para os significados são aquelas
que produzem efeitos sobre terceiros. A questão funda­
mental que abordarei é simplesmente esta: Quais as carac­
terísticas das intenções do falante em emissões significativas
que fazem com que o falante signifique alguma coisa por
sua emissão? Quando um falante faz uma emissão, produz
um evento físico; em termos muito simples, pergunta-se:
O que sua intenção acrescenta ao evento físico para que
este se caracterize na instância de um falante que significa
alguma coisa por seu intermédio? Como passamos, por as­
sim dizer, cla física para a semântica?
Esta pergunta, “Quais são as características das inten­
ções do falante que as tornam conferidoras de significa­
ção?”, deve ser distinguida de diversas outras perguntas
na filosofia da linguagem que, na minha opinião, são to­
talmente irrelevantes para ela. Por exemplo, o problema
de como os falantes são capazes de produzir e entender
226 INTENCIONALIDADE
li

um número potencialmente infinito cie sentenças é im­


portante, mas não tem nenhum vínculo especial com o
problema do significado. Este, ao menos na forma em
que o estou formulando, perm aneceria exatam ente o
mesmo para o falante de um idioma que permitisse ape­
nas um número finito de sentenças.
Outra pergunta correlata é: Que conhecimento deve
ter um falante para que possa ser tido como conhecedor
de um idioma, como o francês ou o inglês? O que um fa­
lante sabe quando sabe francês, por exemplo? Esta tam­
bém é uma pergunta interessante, mas não tem vínculo es­
pecial algum com o problema cio significado, ao menos
não da forma como o estou concebendo. O problema do
significado surgiria até para duas pessoas que estivessem
se comunicando sem utilizar um idioma comum. Às vezes,
por exemplo, em um país estrangeiro, acontece-me tentar
comunicar-me com pessoas com as quais não tenho ne­
nhum idioma comum. Em uma situação tal, o problema
do significado surge de forma aguda, e minha pergunta é:
O que há em minhas intenções em tal situação que as tor­
na especialmente significativas? Nessa situação, significo al­
guma coisa por meus gestos, ao pas\so que em outra, fa­
zendo os mesmos gestos, posso não significar coisa algu­
ma. Como funciona isso nos casos significativos?
Em nossa discussão da estrutura da ação no capítulo
3, analisamos ações simples com o erguer o braço em
seus componentes correlatos: uma ação intencional leva­
da a cabo com êxito consiste em uma intenção-em-ação
e em um movimento corporal. A intenção-em-ação tanto
causa com o apresenta o movimento corporal. Causado
por ela, o movimento corporal equivale às condições de
satisfação da intenção-em-ação. Em uma seqüência que
envolve uma intenção prévia e uma ação que consiste
em levar a cabo essa intenção, a intenção prévia repre­
SIGNIFICADO 227

senta a ação toda, causa a intenção-em-ação, que, por


sua vez, causa o movimento corporal e, pela transitivida­
de da causaçâo, pode-se dizer que a intenção prévia cau­
sa a ação completa.
Na vida real, contudo, muito poucas intenções e
ações são simples assim. Um tipo cle ação complexa en­
volve uma relação causal por-meio-de. Assim, por exem ­
plo, tal como vimos no capítulo 3, seção V, um homem
pode tencionar apertar o gatilho de uma arma para atin­
gir seu inimigo. Cada passo da seqüência - apertar o ga­
tilho, disparar a arma, atingir o inimigo - é uma etapa
causal, e a intenção-em-ação abrange as três etapas. O
assassino tenciona atirar no inimigo por meio de disparar
a arma e tenciona disparar a arma por meio de apertar o
gatilho. Mas nem todas as ações complexas são causais
dessa forma. Se um homem recebesse a ordem de erguer
o braço, poderia erguê-lo com a intenção de obedecer à
ordem. Teria, assim, uma intenção complexa: a intenção
cle erguer o braço para obedecer à ordem. Mas a relação
entre erguer o braço e obedecer à ordem não é causal do
mesmo modo que apertar o gatilho e disparar a arma é
uma relação causal. Nesse caso, há condições de satisfação
relacionadas ao movimento corporal que não tencionam
causar o movimento ou ser causadas por ele: o homem
tenciona erguer o braço por meio de obedecer à ordem,
mas não tenciona que a elevação do braço cause mais al­
gum fenômeno além de ele obedecer à ordem. Nesse con­
texto, erguer o braço é apenas obedecer à ordem e nisso
se resume sua intenção. Tais condições de satisfação não-
causais adicionais são também características das intenções
significativas, tal como veremos em breve.
Para podermos esclarecer as intenções significativas,
precisamos entender essas várias noções: a distinção en­
tre as intenções prévias e as intenções em ação, o caráter
228 INTENCIONALIDADE

causal e auto-referente de ambas, e a presença de condições


tanto causais como não-causais nas intenções complexas,
sejam estas intenções prévias ou intenções em ação.

II. A ESTRUTURA DAS INTENÇÕES DE SIGNIFICAÇÃO

Com este aparato em mãos, dirijamo-nos para a ques­


tão central deste capitulo: qual a estrutura das intenções
de significação? O problema é: quais as condições de sa­
tisfação das intenções em ação dos enunciados que lhes
conferem propriedades semânticas? Produzo um ruído
com a boca ou fixo sinais gráficos em um papel. Qual a
natureza da intenção complexa em ação que faz com
que a produção desses sinais gráficos ou desses sons seja
algo mais que a simples produção de sinais gráficos e
sons? A resposta breve é que eu tenho a intenção de que
a produção dos sinais e dos sons seja a realização de um
ato de fala. A resposta longa é caracterizar a estrutura
dessa intenção.
Antes de atacar de frente esta questão, gostaria de
mencionar mais algumas características peculiares que
devemos explicar. Quero especificar mais algumas condi­
ções de adequação para a análise.
Afirmei anteriormente que há um nível duplo de In­
tencionalidade na realização de atos ilocucionários, um
nível do estado Intencional expresso na realização do ato
e o grau da intenção de realizar o ato. Quando, por
exem plo, faço a afirmação de que está chovendo, ao
mesmo tempo em que expresso a crença de que está
chovendo, realizo o ato intencional de afirmar que está cho­
vendo. Além disso, as condições de satisfação do estado
mental expresso na realização do ato de fala são idênti­
cas às condições de satisfação do próprio ato de fala. Um
SIGNIFICADO 229

enunciado será verdadeiro sse a crença expressa for ver­


dadeira; uma ordem será realizada sse o. desejo expresso
for atendido; uma promessa será cumprida sse a intenção
expressa for levada a cabo. Esses paralelos não são aci­
dentais e qualquer teoria do significado deve explicá-los.
Ao mesmo tempo, porém, temos de ter em mente a dis­

DO PARA
tinção entre fazer um enunciado e fazer um enunciado
verdadeiro, entre dar uma ordem e dar uma ordem que é
obedecida, entre fazer uma promessa e fazer uma pro­

CfcNTRAL
messa que é cumprida. Em cada caso, a intenção de sig­
nificação é uma intenção de realizar apenas a primeira
metade - fazer um enunciado, dar uma ordem, fazer uma
promessa - e, no entanto, de um certo modo essa inten­
ção já tem uma relação interna com a segunda metade,

! t;C*
dado que a intenção de fazer um enunciado específico

UNIVKPSID^l-t
deve determinar o que passa por verdade do enunciado;
a intenção de dar uma ordem deve determinar o que
passa por obediência à ordem etc. O fato de as condições
de satisfação do estado Intencional expresso e as do ato
de fala serem idênticas sugere que a chave do problema
do significado é perceber que, na realização do ato de fa­
la, a mente impõe intencionalmente à expressão física do
estado mental expresso as mesmas condições de satisfa­
ção do próprio estado mental. A mente impõe Intencio­
nalidade à produção de sons, sinais gráficos etc., pela im­
posição cias condições de satisfação do estado mental à
produção dos fenômenos físicos.
Pelo menos as seguintes são condições de adequa­
ção para a nossa análise:
1. Há um nível duplo de Intencionalidade na realiza­
ção do ato de fala, um nível do estado psicológico ex­
presso na realização do ato de fala e um nível da inten­
ção com que o ato é realizado e que faz dele o ato que
é. Chamemo-los, respectivamente, de “condição de since­
230 INTENCIONALIDADE

ridade” e “intenção de significação”. Em sua forma mais


geral, nossa tarefa é caracterizar a intenção de significa­
ção e uma condição de adequação dessa caracterização é
que explique esse duplo nível de Intencionalidade.
2. As condições de satisfação do ato de fala e as
condições de satisfação da condição de sinceridade são
idênticas. Ora, nossa abordagem da intenção de significa­
ção deve mostrar de que maneira isso ocorre, mesmo
que as condições de satisfáção da intenção de significa­
ção sejam diferentes tanto das condições de satisfação do
ato de fala quanto das condições de sinceridade. A inten­
ção de fazer um enunciado, por exemplo, difere daquela
de fazer um enunciado verdadeiro, mas, mesmo assim, a
intenção de fazer um enunciado deve comprometer des­
de logo o falante a fazer um enunciado verdadeiro e a
expressar a crença na verdade do enunciado que está fa­
zendo. Em resumo, nossa segunda condição de adequa­
ção é que nosso estudo da intenção de significação deve
explicar por quê, embora as condições de satisfação da
intenção de significação não sejam as mesmas que as
condições de satisfação do ato de fala ou do estado psi­
cológico expresso, o conteúdo da intenção de significa­
ção deve determinar que o ato de fala e as condições de
sinceridade tenham as condições de satisfação que têm e
que tenham as mesmas condições de satisfação. Por que,
por exemplo, minha intenção de enunciar que está cho­
vendo, que pode ser satisfeita mesmo se não estiver
chovendo, não obstante determina que o meu ato de fala
será satisfeito sse estiver chovendo e será a expressão de
uma crença que será satisfeita sse estiver chovendo?
3- Precisamos estabelecer uma clara distinção entre
representação e comunicação. Caracteristicamente, ,um
homem que faz um enunciado tenciona ao mesmo tem­
po representar um fato ou estado de coisas e comunicar
SIGNIFICADO 231

essa representação a seus ouvintes. Mas sua intenção de


representação não é a mesma que sua intenção de comu­
nicação. Comunicar é uma questão de produzir certos
efeitos em nossos ouvintes, mas pode-se ter a intenção
de representar algo sem a menor preocupação quanto
aos efeitos sobre os ouvintes. Pode-se fazer um enuncia­
do sem ter a intenção de produzir convicções ou crenças

PARA
nos ouvintes ou sem ter a intenção de fazer com que
acreditem que o falante acredita no que diz ou mesmo

C F.N TK A L
sem ter sequer a intenção de fazê-los entender alguma

DO
coisa. Há, portanto, dois aspectos nas intenções de signi­

UNIVE w? I D a ,;.E F £ D í :. híal


ficação, a intenção de representar e a intenção de comu­
nicar. A discussão tradicional desses problemas, meu pró­
prio trabalho inclusive, sofre de uma falha em distinguir

9i.3L.tOI EGA
entre ambas as intenções e em partir da suposição de
que o significado pode ser totalmente descrito em termos
de intenções de comunicação. Na presente abordagem, a
representação é anterior à comunicação e as intenções
de representação são anteriores às intenções de comuni­
cação. Parte daquilo que comunicamos é o conteúdo das
nossas próprias representações, mas podemos ter a inten­
ção de representar algo sem ter a intenção de comunicar.
E o contrário não é válido para os atos de fala com con­
teúdo proposicional e direção do ajuste. Pode-se ter a in­
tenção de representar sem ter a intenção de comunicar,
mas não se pode ter a intenção de comunicar sem ter a in­
tenção de representar. Não posso, por exemplo, ter a inten­
ção de informar-lhes que está chovendo sem ter a intenção
de que minha emissão represente, verdadeira ou falsa­
mente, as condições do tempo2.
4. Já argumentei alhures3 que há cinco, e apenas cin­
co, categorias básicas de atos ilocucionários: assertivos,
quando dizemos aos ouvintes (verdadeira ou falsamente)
como as coisas são; diretivos, quando tentamos fazer
232 INTENCIONALIDADE

com que realizem coisas; compromissivos, quando nos


comprometemos a fazer alguma coisa; declarações, quan­
do provocamos mudanças no mundo através de nossas
em issões; e expressivos, quando expressam os nossos
sentimentos e atitudes. Ora, encontramos esses cinco ti­
pos de atos ilocucionários “empiricamente”, por assim di­
zer. Os atos de fala que realizamos e com os quais depa­
ramos exibem apenas esses cinco tipos. Mas, se estes são
de fato os cinco tipos básicos, deve haver alguma razão
mais profunda para tal. Se o modo como a linguagem re­
presenta o mundo é uma extensão e uma realização do
modo como a mente o representa, esses cinco tipos de­
vem derivar de características fundamentais da mente.
A Intencionalidade da mente não só cria a possibili­
dade do significado, como também limita as suas formas.
Por que razão, por exemplo, temos emissões performati-
vas para pedir desculpas, enunciar, ordenar, agradecer e
felicitar - todos casos em que podemos realizar um ato
ao dizer que o estamos realizando, ou seja, representan-
do-nos como realizando-os - mas não temos e não pode­
mos ter um performativo para, por exemplo, fritar um
ovo? Se alguém cliz “Peço desculpas”, pode com isso pe­
dir desculpas, mas se diz “Frito um ovo” não pocle com
isso fritar um ovo. Talvez Deus possa fritar um ovo sim­
plesmente emitindo uma sentença performativa desse ti­
po, mas nós não podemos. Por que não? Outra meta da
análise do significado, portanto, é mostrar de que modo
as possibilidades e limitações do significado derivam da
Intencionalidade da mente.
Precisamos de um exemplo com o qual trabalhar; to­
memos um caso em que um homem realiza um ato de
fala realizando alguma ação básica como erguer o braço.
Suponhamos que você e eu tenhamos combinado de' an­
temão que, se eu erguer o braço, tal ação deverá servir
SIGNIFICADO 233

como um sinal da ocorrência de determinado fato. Supo­


nhamos, em um contexto militar, que eu sinalize desde o
alto de uma colina para você, postado no alto de outra,
que o inimigo recuou e que, por uma combinação anterior,
eu sinalize tal fato erguendo o braço. Como é que isso
funciona? A intenção complexa em ação tem o seguinte
conteúdo, no que diz respeito à representação:

(Meu braço se ergue como resultado dessa intenção em


ação e a elevação de meu braço tem como condições de
satisfação, com uma direção do ajuste mente(ou emissào)-
munclo, que o inimigo tenha recuado).

Isso parece algo estranho, mas creio que estamos no


caminho certo. O problema do significado se resume em
elucidar como a mente impõe Intencionalidade a entida­
des não intrinsecamente Intencionais. Como é possível
que meras coisas possam representar? E a resposta que
estou propondo é que o ato de emissão é realizado com
a intenção de que a própria emissão tenha condições cle
satisfação. As condições de satisfação da crença de que o
inimigo está recuando são transferidas para a emissão
por um ato Intencional. Portanto, a razão pela qual a rea­
lização do ato de fala, ou seja, nesse caso, o erguer o
braço, serve como expressão da crença de que o inimigo
está recuando é que ele é realizado com a intenção de
que suas condições de satisfação sejam precisamente
aquelas da crença. Na verdade, o que o torna uma ação
significativa, no sentido lingüístico de uma ação significa­
tiva, é ter essas condições de satisfação intencionalmente
impostas. O elemento chave na análise das intenções de
significação é simplesmente esse: para a maioria dos atos
de fala, as intenções de significação são, ao menos em
parte, intenções de representar, e uma intenção de repre­
234 INTENCIONALIDADE

sentar é uma intenção de que os eventos físicos que consti­


tuem parte das condições de satisfação (no sentido de coi­
sa requerida) da intenção tenham, eles próprios, condições
de satisfação (no sentido de requisito). No exemplo, as
condições de satisfação são que meu braço se erga e que
este erguer-se tenha condições de satisfação, nesse caso
condições de verdade. O primeiro conjunto de condições
de satisfação está causalmente relacionado com a inten­
ção: a intenção deve causar a elevação de meu braço.
Nesse caso assertivo, o segundo conjunto de condições
de satisfação - que o inimigo tenha recuado - não está
causalmente relacionado com a intenção. A emissão pre­
tende ter a direção do ajuste mente(ou emissão)-mundo.
Ora, se até aqui eu estiver no caminho certo, a passa­
gem da intenção de representação para a intenção de co­
municação é bastante simples. A intenção de comunicação
consiste simplesmente na intenção de que o ouvinte reco­
nheça que o ato foi realizado com a intenção de represen­
tação. Logo, ao sinalizar para você através da elevação de
meu braço, minha intenção é conseguir que você reconhe­
ça que estou sinalizando que o inimigo recuou. E, no jar­
gão empregado até agora, isso equivale ao seguinte:

(Essa intenção em ação causa a elevação de meu braço e a


elevação de meu braço tem como condições de satisfação,
com a direção do ajuste mente(ou emissão)-mundo, que o
inimigo esteja recuando e que minha audiência reconheça
tanto que meu braço se está elevando como que esse ato
de elevar-se conta com tais condições de satisfação).

Observe-se que essa explicação distingue claramente en­


tre a parte do significado relacionada à representação - a
qual, como já afirmei, acredito ser o cerne do significado
- e a parte relacionada à comunicação. Em segundo lu­
SIGNIFICADO 235

gar, ela não tem o defeito de confundir a intenção de fa­


zer um enunciado com a intenção cle fâzer um enuncia­
do verdadeiro, ou a intenção de fazer um enunciado com
a intenção de produzir na audiência certos efeitos, como
crença ou convicção. Caracteristicamente, quando faze­

Í*AJM
mos efetivamente um enunciado, tencionamos fazer um
enunciado verdadeiro e tencionam os produzir certas
crenças em nossa audiência, mas, apesar disso, a inten­

CENTRAL
UO
ção de fazer um enunciado é diferente da intenção cle
produzir convicção ou da intenção de falar a verdade.

FtÜt.KAL
Qualquer estudo da linguagem deve levar em conta o fa­
to de que é possível mentir e é possível realizar um
enunciado ao mesmo tempo em que se mente. E qual­

fEUA
quer estudo da linguagem deve levar em conta o fato de
que é possível ter-se êxito total em fazer um enunciado
e, ao mesmo tempo, fracassar em fazer um enunciado ver­
dadeiro. Outrossim, qualquer estudo da linguagem deve
levar em conta o fato de que uma pessoa pode fazer um
enunciado e estar totalmente indiferente quanto ao fato
de sua audiência acreditar ou não nela, ou mesmo de a
audiência compreendê-la ou não. A presente abordagem
leva em conta essas condições porque nela a essência de
se fazer um enunciado é representar algo enquanto ver­
dadeiro e não comunicar representações de um indíviduo
a seus ouvintes. Pode-se representar alguma coisa como
sendo o caso mesmo que se acredite que não o seja
(uma mentira); mesmo que se acredite que seja o caso,
mas não o seja (um engano); e mesmo que não se esteja
interessado em convencer ninguém de que é o caso ou
mesmo em levar alguém a reconhecer que se está repre­
sentando algo como sendo o caso. A intenção de represen­
tação é independente da intenção da comunicação e é
uma questão de impor as condições de satisfação de um
236 INTENCIONALIDADE

estado Intencional a um estado aberto e, com isso, ex­


pressar tal estado Intencional.
Outra maneira de abordar a mesma questão é per­
guntar-se qual a diferença entre dizer alguma coisa com
o propósito de significar precisamente tal coisa e dizer al­
guma coisa sem pretender significá-la. Wittgenstein faz-
nos amiúde esse tipo de pergunta para lembrar-nos que
“significar” não é o nome de um processo introspectivo;
mesmo assim, há uma diferença entre dizer uma coisa e
significá-la e dizer uma coisa e não a significar. Qual é
essa diferença, exatamente? Pelo menos esta: Quando di­
go algo e significo isso, meu enunciado tem condições
de satisfação de um modo que não tem se eu disser a
mesma coisa sem a significar. Se eu disser “Es regnet” co­
mo modo de treinar minha pronúncia alemã, o fato de o
Sol estar ou não brilhando quando pronuncio essa sen­
tença é irrelevante. Mas se eu disser “Es regnet” queren­
do significar isso, o fato de o Sol estar brilhando é rele­
vante; torna-se relevante porque dizer uma coisa e querer
significá-la é uma questão de dizê-la com as condições de
satisfação intencionalmente impostas ao enunciado.
Creio que aprofundaremos nossa discussão dessas
questões se mostrarmos como se aplicam a outros tipos
de atos de fala. Quando nos voltamos para os diretivos e
os compromissivos vemos que, ao contrário dos enuncia­
dos, têm eles uma direção de ajuste mundo-palavra e sua
análise torna-se mais complicada pelo fato de terem uma
forma adicional de auto-referência causal. No caso de
uma ordem, ela só é obedecida se o ato ordenado ao ou­
vinte for levado a cabo por este a título de obedecer à
ordem. E, no caso de uma promessa, ela só é cumprida
se a ação prometida for realizada a título de cumprir a
promessa. Podemos esclarecer esse ponto com o tipo de
exemplo que consideramos no capítulo 3 (derivado de
SIGNIFICADO 237

Wittgenstein). Suponhamos que você mç ordene sair da


sala. Eu poderia dizer, “Bem, eu ia sair de qualquer mo­
do, mas não faria isso só porque você me ordenou”. Te­
ria obedecido à ordem se saísse então da sala? Por certo
não a teria desobedecido; mas, em um sentido pleno,

PARA
tampouco se pode dizer que eu a tivesse obedecido. Por
exemplo, com base em uma série de exemplos clo mes­
mo tipo, não descreveríamos o nosso ouvinte como uma

B.fi.i-íúí.ECA. CENTRAL
DO
pessoa “obediente”. Observações análogas se aplicam ao
prometer. O que esses exemplos pretendem demonstrar,

FfcDEkAL
na presente discussão, é que, além do caráter auto-referen-
te de todas as intenções, a intenção de fazer uma promes­
sa ou dar uma ordem deve impor uma condição de satis­
fação auto-referente à emissão. Promessas e ordens são

U N lVE*SID*O E
auto-referentes porque suas condições de satisfação fazem
referência às próprias promessas e ordens. No sentido ple­
no, apenas cumprimos uma promessa ou obedecemos a
uma ordem se fizermos o que fazemos através do cumpri­
mento da promessa ou da obediência à ordem.
Outra forma de se perceber essa mesma característi­
ca é observar que tanto as promessas como as ordens
criam razões para as condições de satisfação de um mo­
do totalmente diferente daquele dos enunciados. Assim,
fazer um enunciado por si só não cria a evidência cla ver­
dade do enunciado. Fazer uma promessa, porém, cria
uma razão para se realizar a coisa prometida e pedir a uma
pessoa que faça alguma coisa cria uma razão para que
ela a faça.
Qual é, então, a estrutura da intenção de significação
ao se emitir uma ordem? Suponhamos, em nossa situação
anterior, que eu erga o braço a título de sinalizar-lhe que
você deve recuar, ou seja, a título de lhe ordenar que se
retire. Se com erguer o braço tenciono uma diretiva, en­
tão tenciono pelo menos o seguinte:
238 INTENCIONALIDADE.

(Meu braço se eleva como resultado dessa intenção em


ação e a elevação de meu braço tem como condições de
satisfação, com uma direção de ajuste mundo-mente(ou
emissão), que você recue e que recue porque a elevação
de meu braço tem essas condições de satisfação).

O que ordeno é a sua obediência, mas, para obedecer à


minha ordem, você tem de fazer aquilo que lhe ordeno
fazer e minha ordem eleve ser a razão para que você a
faça. Minha ordem só é obedecida se você fizer o ato a
título de obedecer a ordem.
A intenção de comunicação é simplesmente a inten­
ção de que esta intenção de representação seja reconhe­
cida pelo ouvinte. Ou seja, tudo o que a intenção de co­
municação acrescenta ao que foi afirmado até agora é:

(Que a audiência reconheça a elevação de meu braço e


que a elevação de meu braço tem essas condições de sa­
tisfação).

A estrutura formal da intenção ao se realizar um ato


compromissivo é bem parecida; a principal diferença está
em que o falante é o sujeito das condições de satisfação
cie um compromissivo e o ouvinte é o sujeito do diretivo.
Desse modo, para usar um exemplo semelhante, supo­
nhamos que ao erguer o braço eu lhe esteja sinalizando o
meu compromisso em avançar contra o inimigo. A intenção
de representar tem as seguintes condições de satisfação:

(Meu braço se eleva como resultado dessa intenção em


ação e meu braço erguendo-se tem como condições de sa­
tisfação, com a direção do ajuste mundo-mente(ou emis­
são), que eu avance contra o inimigo e que o faça, pelo
menos em parte, porque a elevação de meu braço tem es­
sas condições de satisfação).
SIGNIFICADO 239

O que prometo é o cumprimento de minha promessa,


mas, para cumpri-la, é preciso que eu faça aquilo que
prometi e ter prometido fazer isso tem de funcionar co­
mo uma razão para o fazer. E, mais uma vez, tudo o que
a intenção de comunicação acrescenta é:

(que a audiência reconheça a elevação de meu braço e


que a elevação de meu braço tem essas condições de sa­
tisfação).

As declarações tais com o declarar guerra, declarar


um casal marido e mulher, declarar adiada a sessão ou
vacante o posto têm duas características especiais que
não são comuns a outros tipos de atos de fala. Em pri­
meiro lugar, uma vez que a finalidade ilocucionária cla
declaração é provocar um novo estado de coisas em vir­
tude unicamente das emissões, as declarações possuem
ambas as direções do ajuste. Uma faz com que p, por
meio de representar como sendo verdadeiro que p. As­
sim, “eu agora os declaro marido e mulher” toma verda­
deira a condição de vocês serem marido e mulher (dire­
ção de ajuste mundo-palavra) por meio de representar co­
mo verdadeiro que vocês são marido e mulher (direção
cle ajuste palavra-mundo). Para que isso funcione, o ato
de fala deve ser realizado nos limites de uma instituição
extra-lingüística em que o falante esteja apropriadamente
investido do poder de provocar novos fatos institucionais
unicamente pela realização adequada de atos de fala.
Com exceção das declarações sobrenaturais, todas as de­
clarações provocam fatos institucionais, fatos que existem
apenas em sistemas de regras constitutivas e que, portan­
to, são fatos em virtude de um acordo humano.
Suponhamos, então, que temos uma instituição ex­
tra-lingüística tal que, pela autoridade que me é conferi-
240 INTENCIONAUDAW

da por ela, seja-me facultado realizar Li m a declaração


através cia elevação de meu braço. Suponhamos, por
exemplo, que, ao erguer o braço, eu possa adiar a ses­
são. Nesse caso, dada a autoridade institucional, a estru­
tura da intenção em ação é:

(Essa intenção em ação causa a elevação de meu braço e


a elevação cie meu braçq tem com o condições de satisfa­
ção, com a direção do ajuste mundo-mente, que a sessão
seja adiada, estado de coisas causado pelo fato de que a
elevação de meu braço tem como condições de satisfação
o adiamento da sessão).

Embora um tanto prolixa, a idéia subjacente a essa for­


mulação é muito simples: Em geral, podemos chegar ao
conteúdo de uma intenção perguntando.- “O que o agen­
te está tentando fazer?” Bem, o que ele está tentando fa­
zer quando faz uma declaração? Está tentando fazer com
que alguma coisa seja verdadeira representando-a como
verdadeira. Mais precisamente, está tentando causar uma
mudança no mundo cle modo que um conteúdo proposi-
cional alcance uma direção cle ajuste mundo-mente. por
representar o mundo como tendo-se modificado nesse
sentido, ou seja, por expressar o mesmo conteúdo pro-
posicional com uma direção de ajuste mente-mundo. Ele
não realiza dois atos de fala com duas direções de ajuste
independentes, mas um único ato com uma direção cle
ajuste clupla, uma vez que, se tiver êxito, terá modificado
o mundo por representá-lo com o tendo sido modifica­
do nesse sentido; assim, terá satisfeito as duas direções
de ajuste com um único ato de fala.
Esta análise tem a conseqüência cle que uma decla­
ração expressa, ao mesmo tempo, uma crença e um de­
sejo. Um homem que declara sinceramente que a sessão
SK.MF/CAIX) 241

está adiada deve querer adiar a sessão e deve acreditar que


com isso a sessão está adiada. Tal como em outros tipos de
ato de fala, a intenção comunicativa é simplesmente:

(Que a audiência reconheça a elevação cle meu braço e


que a elevação de meu braço tem estas condições de satis­

PARA
fação).

Na análise dos assertivos, diretivos, compromissivos

CENTRAL
DO
e declarações, usei a noção de direção do ajuste como
um primitivo não-analisaclo. Considero isso justificável

fc FtDtWftL
porque a noção de direção do ajuste não é redutível a
nacla além. Não obstante, diferentes direções do ajuste
têm conseqüências diferentes no tocante à causação. No

SiSUOrECA
caso dos assertivos (excetuados os casos cle auto-referên-
cia), supõe-se que a asserção deva corresponder a uma

VJNIVEPPIDM
realidade de existência independente, de modo que não
seria satisfeita se causasse o estado de coisas que repre­
senta. Mas no caso cios diretivos, dos compromissivos e
das declarações a emissão, caso satisfeita, funcionará cau-
salmente de diversas maneiras na produção do estado de
coisas que representa. Esta assimetria é uma conseqüên­
cia da diferença na direção do ajuste. Em uma versão an­
terior desta análise4, usei essas diferenças causais em lu­
gar de tratar a direção do ajuste como uma característica
primitiva do analisando.
A finalidade ilocucionária de expressivos tais como o
pedido de desculpas, o agradecimento e as felicitações é
simplesmente expressar um estado Intencional, a condi­
ção de sinceridade do ato de fala, acerca de um estado
de coisas que se presume vigente. Quando, por exemplo,
peço desculpas por ter pisado no seu pé, expresso meus
remorsos por ter pisado no seu pé. Ora, vimos no capítu­
lo 1 que meus remorsos contêm as crenças de que pisei
242 INTENCIONALIDADE
t.

no seu pé e de que sou responsável por ter pisado no


seu pé, e o desejo de não ter pisado no seu pé. Mas o
propósito do ato de fala não é expressar minhas crenças
e meu desejo, e sim expressar meus remorsos, pressu­
pondo a verdade de minhas crenças. Embora minhas
crenças tenham condições de satisfação com uma direção
do ajuste (condições de verdade) e o desejo tenha condi­
ções de satisfação com uma direção do ajuste (condições
de realização), o ato de fafa, no que diz respeito à sua fi­
nalidade ilocucionária, não tem direção do ajuste. Não
estou nem tentando alegar que seu pé foi pisado nem
tentando fazer com que seja pisado. Mesmo que os pres­
supostos tenham condições de verdade, o ato de fala, co­
mo tal, não tem direção do ajuste nem lhe são impostas
condições de satisfação adicionais. Mas então, como po­
deremos analisar o pressuposto? Existe um grande núme­
ro de tratamentos do pressuposto na literatura filosófico-
lingüística e nenhum dos que vi me satisfaz de fato. Tal­
vez o pressuposto seja apenas um primitivo psicológico e
não possa ser analisado, quer como condição de felicida­
de da realização dos atos de fala, quer como um tipo de
relação lógica semelhante, mas não igual, ao acarretamen-
to. Seja como for, para os propósitos da presente discus­
são, tratá-lo-ei simplesmente como uma noção primitiva.
Dado que, em geral, os expressivos não têm direção
de ajuste alguma, tampouco têm outra condição de satis­
fação além de que a emissão seja uma expressão do esta­
do psicológico pertinente. Se tenciono que minha emis­
são seja expressão de um estado determinado, ela será
uma expressão desse estado, embora, é claro, eu possa
não conseguir comunicar tal expressão, ou seja, meu ou­
vinte possa ou não reconhecer minha intenção.
Suponhamos que o falante e o ouvinte tenham uma
convenção combinada segundo a qual, quando o falante
SIGNIFICADO 243

ergue o braço, tal ato seja tido com o um expressivo; por


exemplo, como um pedido de desculpas por algum esta­
do de coisas p. Nesse caso, as condições de satisfação à
intenção de significação serão, simples e tautologicamen-
te, que:

(Essa intenção em ação causa a elevação de meu braço e


que a elevação de meu braço é uma expressão de remor­
so, pressupondo que p).

A intenção de comunicação, mais uma vez, é simplesmen­


te que essa intenção de significação seja reconhecida pelo
ouvinte segundo o modelo de nossos casos anteriores,
exceto que, no caso presente, não há intenção de repre­
sentar e, portanto, não se trata de que o ouvinte reconhe­
ça condições de satisfação adicionais impostas à emissão.
Podemos agora mostrar, brevemente, de que modo
esta abordagem satisfaz nossas quatro condições de ade­
quação.
1 e 2. Em cada um dos quatro primeiros tipos de ca­
so, em que temos uma distinção entre as condições de
sinceridade do ato de fala e a intenção com que tal ato é
realizado, a caracterização da intenção de significação é
tal que determina que a própria emissão tenha condições
de satisfação. Em cada caso, porém, as condições de sa­
tisfação da emissão impostas pela intenção de significa­
ção são idênticas às condições de satisfação das condições
de sinceridade expressas. No caso dos assertivos, por
exemplo, um homem realiza um ato intencional de emitir
e também tem a intenção de que essa emissão tenha cer­
tas condições de satisfação. Mas estas são idênticas às
condições de satisfação da crença correspondente. Desse
modo, ele realizou uma ação que o compromete a ter
uma certa crença. De modo algum ele pode produzir es­
244 INTENCIONALIDADE

sa emissão com tais condições de satisfação sem expres­


sar uma crença, porque o compromisso da emissão é
exatamente o mesmo que o da expressão de uma crença.
Observações semelhantes aplicam-se aos diretivos, com-
promissivos e declarações. No caso dos expressivos, sua
intenção de significação é simplesmente expressar o esta­
do Intencional, de modo que não há problemas para ex­
plicar por que sua emissão é expressão de suas condições
de sinceridade. Em cada um dos cinco casos, a intenção
de significação difere da condição de sinceridade (donde
o nível duplo de Intencionalidade); contudo, onde houver
uma direção de ajuste, a intenção de significação determi­
nará as condições de satisfação do ato de fala e essas con­
dições serão idênticas às da condição de sinceridade.
3. Em todos os casos, isolamos explicitamente a inten­
ção de significação primária da intenção de comunicação.
4. Como o significado lingüístico é uma forma de In­
tencionalidade derivada, suas possibilidades e limitações
são fixadas pelas possibilidades e limitações da Intencio­
nalidade. A principal função derivada da Intencionalida­
de pela linguagem é, obviamente, sua capacidade de re­
presentar. Pode-se fazer com que entidades não intrinse­
camente Intencionais passem a sê-lo; para isso basta, por
assim dizer, decretar intencionalmente que o sejam. Mas
as limitações da linguagem são precisamente as que pro­
vêm da Intencionalidade. Wíttgenstein fala com freqüên­
cia como se fosse possível inventar um novo jogo de lin­
guagem ao nosso bel-prazer, mas, se o tentarmos, desco­
briremos que nossos novos jogos de linguagem são ex­
pressões de formas preexistentes cle Intencionalidade. E a
taxonomia é fundamentalmente um reflexo dos vários
modos pelos quais as representações podem ter direções
de ajuste. A direção do ajuste mente-mundo corresponde
aos assertivos e, por ser preeminentemente avaliável co­
SIGNIFICADO 245

mo verdadeira ou falsa, uma característica definidora dos


assertivos é admitirem valores de verdade. Correspoden-
tes à direção do ajuste mundo-palavra são os diretivos e
os compromissivos. A divisão das emissões com essa di­
reção do ajuste em duas categorias de atos de fala é mo-
tivada pela preeminência do falante e do ouvinte como X
dramatis personae na realização dos atos de fala. Nos a.
compromissivos, o falante é responsável pela realização

DO
CENTRAL
da adequação; nos diretivos, o responsável é o ouvinte.
Ambos, porém, envolvem também uma causação Intencio­

rtDh-KML.
nal derivada; ou seja, faz parte das condições de satisfa­
ção dos compromissivos e diretivos que funcionem cau-
salmente na efetivação do restante de suas condições de

BíBLtÜfECA
satisfação. Sua Intencionalidade derivada é semelhante,

UNIVEHSiD*uE
em estrutura, a certas formas de Intencionalidade intrín­
seca, por compartilharem da característica de auto-refe-
rência causal. Além disso, assim como há estados Intencio­
nais sem direção do ajuste, também há atos de fala nâo-
representacionais, a categoria dos expressivos. Com efei­
to, a forma mais simples de ato de fala é aquela em que
o propósito ilocucionário é apenas expressar um estado
Intencional. Há alguns expressivos que são expressões
de um estado com direção do ajuste, como, por exem­
plo, as expressões de desejo do tipo “Se ao menos o
John viesse”, mas, mesmo nesses casos, o propósito ilo­
cucionário do ato de fala não é realizar o ajuste, mas
apenas expressar o estado.
Os casos mais escorregadios são as declarações. Por
que não podemos ter uma declaração “Com isso frito um
ovo” e com isso o ovo seja frito? Porque nesse caso as
capacidades da representação são excedidas. Um ser so­
brenatural poderia fazer isso porque seria capaz de ocasio­
nar intencionalmente determinados estados de coisas ao
representá-los como tendo sido ocasionados. Não pode-
246 INTENCIONALIDAQE

mos fazer isso. No entanto, temos uma palavra mágica


despretensiosa mas, ainda assim, divina: podemos con ­
cordar antecipadamente que determinadas espécies de
atos de fala podem efetivar estados de coisas represen­
tando-as como se tivessem sido realizadas. Tais atos de
fala têm ambas as direções do ajuste, mas não separada e
independentemente. Não podemos fritar ovos desse mo­
do, mas podemos adiar sessões, renunciar, declarar pes­
soas marido e mulher e declarar guerras.

III. A INTENCIONALIDADE E A INSTITUIÇÃO


DA LINGUAGEM

Até agora estivemos descrevendo a estrutura das in­


tenções de significação para as pessoas que já dispõem
de uma linguagem, e tentamos isolar o caráter específico
da intenção de significação imaginando que todo o ato
de fala fosse realizado por meio da efetivação de alguma
“emissão” simples como erguer o braço. Nossa pergunta
era: “O que a intenção acrescenta ao evento físico para
torná-lo um caso em que se significa algo pela produção
Intencional de um evento físico? Dada a existência da lin­
guagem como instituição, qual a estrutura das intenções
de significação individuais?
Isso, porém, deixa-nos ainda sem resposta para a
questão da relação da instituição com a Intencionalidade.
Admitindo-se que tais instituições sejam conjuntos de re­
gras constitutivas, como se relacionam com as formas
pré-lingüísticas da Intencionalidade?
Suponhamos que houvesse uma classe de seres ca­
pazes de ter estados Intencionais como crença, desejo e
intenção, mas que não dispusessem de uma linguagem.
De que mais precisariam para serem capazes de realizar
SIGNIFICADO 247

atos lingüísticos? Note-se que não há nada de fantasioso


na suposição de seres nesse estado, uma Vez que a pró­
pria espécie humana já passou pelo mesmo. Note-se tam­
bém que a questão é conceituai e não histórica ou gené­
tica. Não estou perguntando que acréscimos precisariam
ser feitos aos seus cérebros nem de que maneira a lin­
guagem efetivamente evoluiu na história da raça humana.
Ao atribuirmos aos nossos seres a capacidade de ter
estados Intencionais, atribuímo-lhes também a capacida­
de de relacionar tais estados Intencionais a objetos e es­
tados de coisas no mundo. A razão para tal é que um ser
capaz de ter estados Intencionais deve ser capaz de uma
consciência clas condições mediante as quais são satisfei­
tos seus estados Intencionais. Por exemplo, um ser capaz
de ter desejos deve ser capaz de uma consciência cia sa­
tisfação ou frustração de seus desejos, e um ser capaz de
intenções deve ser capaz de reconhecer a realização ou
frustração de suas intenções. E isso pode ser generaliza­
do: para toclo estado Intencional com uma direção de
ajuste, um ser imbuído de tal estado deve ser capaz de
distinguir entre a realização e a frustração desse estado.
Tal aspecto decorre do fato de ser o estado intencional
uma representação das condições de sua satisfação. Isso
não quer dizer que tais seres acertarão sempre ou mesmo
na maior parte das vezes, que não cometerão enganos.
Quer dizer, antes, que eles devem ter a capacidade de
reconhecer como seria acertar.
Agora, voltemos a nossa pergunta: de que mais pre­
cisariam tais seres para terem uma .linguagem? A pergun­
ta precisa ser restrita a um campo mais estreito, pois há
todo tipo de características de linguagens existentes que
são irrelevantes para a nossa presente discussão. Presu­
mivelmente, esses seres precisariam de um instrumento
recursivo capaz de gerar um número infinito de senten­
248 INTENCIONALIDAQE

ças; precisariam de quantificadores, conectivos lógicos,


operadores modelares e deônticos, tempos verbais, pala­
vras para cores etc. A pergunta que estou fazendo é mui­
to mais restrita: De que precisariam eles para passar da
posse de estados Intencionais à realização de atos ilocu-
cionários?
A primeira coisa de que nossos seres precisariam pa­
ra realizar atos ilocucionários seria um meio qualquer de
externalizar, de tornar reconhecíveis pelos demais, as ex­
pressões de seus estados Intencionais. Um ser capaz de
iazê-lo propositalmente, ou seja, um ser que não só ex­
pressa estados Intencionais, como ainda realiza atos com
o propósito de dar conhecimento de seus estados Intencio­
nais a outros, já apresenta uma forma primitiva de ato de
fala. Mas não possui ainda nada tão rico quanto nossos
enunciados, pedidos e promessas. Um homem que faz
um enunciado faz mais que dar conhecimento de que
acredita em alguma coisa; um homem que faz um pedido
faz mais que dar conhecimento de que almeja alguma
coisa, um homem que faz uma promessa faz mais que dar
conhecimento de que tem a intenção de alguma coisa.
Mais uma vez, porém, o que mais? Cada uma das categorias
de atos de fala, mesmo a expressiva, serve a propósitos
sociais que vão além da simples expressão da condição de
sinceridade. Por exemplo, o propósito extra-lingüístico
fundamental dos diretivos é fazer com que as pessoas fa­
çam coisas; um dos propósitos extra-lingüísticos primários
dos assertivos é transmitir informações; um dos propósitos
extra-lingüísticos primários dos compromissivos é criar ex­
pectativas estáveis de comportamento das pessoas.
Tais fatos proporcionam, creio eu, uma pista para as
relações entre os tipos de ato de fala e os tipos corres­
pondentes de estados Intencionais. À guisa de formula­
ção preliminar, pode-se dizer que nossos seres seriam ca­
SIGNIFICADO 249

pazes de produzir uma forma primitiva de asserção quan­


do fossem capazes de realizar ações que fossem expressões
de crenças ou tivessem o propósito cle transmitir informa­
ções; os diretivos (nessa forma primitiva) seriam expressões
de desejo com o propósito cle fazer com que pessoas fa­
çam coisas; os compromissivos (também em forma primiti­

f*ARA
va) seriam expressões de intenção com o propósito de criar
em outros expectativas estáveis acerca do rumo futuro do
comportamento cle quem se compromete.

c en tr a i.
DO
O próxim o passo seria introduzir procedim entos
convencionais para a realização cle cada uma dessas coi­
sas. Contudo, não existe um modo pelo qual esses pro­
pósitos extra-lingüísticos possam ser realizados por um
procedimento convencional. Todos estão relacionados a

B<EJuforecA
efeitos perlocucionários que nossas ações têm sobre nos­

UNlVEkSiD-Éc £
sa audiência e não há meios pelo qual um procedimento
convencional possa garantir que tais efeitos serão alcan­
çados. Os efeitos perlocucionários de nossas emissões
não podem ser incluídos nas convenções para o uso do
dispositivo emitido, pois um efeito que se alcança por
convenção não pode incluir as reações e o comporta­
mento subseqüentes de nossa audiência. O que os proce­
dimentos convencionais podem capturar é, por assim di­
zer, o análogo ilocucionário dessas diversas metas perlo-
cucionárias. Assim, por exem plo, qualquer dispositivo
convencional para indicar que a emissão deve ter a força
de um enunciado (por exemplo, o modo indicativo) será
aquele que, por convenção, comprometa o falante com a
existência do estado de coisas especificado no conteúdo
proposicional. A emissão deste, portanto, fornece ao ou­
vinte uma razão para acreditar nessa proposição e ex­
pressa uma crença, por parte do falante, nessa mesma
proposição. Qualquer dispositivo convencional para indi­
car que a emissão deve ter a força de um diretivo (por
250 INTENCIONALIDADE
V

exemplo, o modo imperativo) será aquele que, por con­


venção, seja tido como uma tentativa, por parte do falan­
te, de fazer com que o ouvinte realize o ato especificado
no conteúdo proposicional. A emissão deste, portanto,
fornece uma razão para que o ouvinte realize o ato e ex­
pressa um desejo, por parte do falante, de que o ouvinte
realize o ato. Qualquer dispositivo convencional para in­
dicar que a emissão deve ter a força de um compromissi-
vo é tido como uma garantia, por parte do falante, de
que realizarei o ato especificado no conteúdo proposicio­
nal. Sua emissão, portanto, cria uma razão para que o
ouvinte espere que ele realize tal ato e expressa uma in­
tenção, por parte do falante, de realizá-lo.
Portanto, os estágios necessários para passar da pos­
se de estados Intencionais à execução de atos ilocucioná-
rios convencionalmente realizados são os seguintes: pri­
meiro, a expressão deliberada de estados Intencionais
com o propósito de dar conhecimento de que se os tem;
segundo, a execução desses atos para alcançar as metas
extra-lingüísticas a que os atos ilocucionários caracteristi­
camente servem; e, terceiro, a introdução de procedi­
mentos convencionais que convencionalizem os propósi­
tos ilocucionários que correspondem aos diversos fins
perlocucionários.
CAPÍTULO 7
RELATOS INTENSIONAIS
DE ESTADOS INTENCIONAIS
E ATOS DE FALA

PARA
CfcUTRAL
00
r'tür.K~L
e.auofEC A
U N lV EkSiD "0£
No capítulo 1, estabelecemos uma distinção entre In-
tencionalidade-com-c e intensionalidade-com-s. Embora a
Intencionalidade seja uma característica tanto dos atos de
fala como dos estados mentais e a intensionalidade seja
uma característica de alguns estados mentais e de alguns
atos de fala, há uma clara distinção entre ambas. Argu­
mentei ainda que é um engano confundir as característi­
cas de relatos de estados Intencionais com as caracterís­
ticas dos próprios estados e, em particular, que é um en­
gano supor que, como os relatos de estados Intencionais
são intensionais-com -s, os próprios estados Inten cio­
nais também devam ser intensionais-com-s. Tal confusão
faz parte de uma confusão mais arraigada e fundamental,
a saber, a crença de que podemos analisar o caráter da
Intencionalidade unicamente pela análise das peculiarida­
des lógicas dos relatos dos estados Intencionais. Creio
que, ao contrário, revelamos uma confusão fundamental
quando tentamos esclarecer a Intencionalidade analisan­
do a intensionalidade. É importante ter em mente que há
pelo menos três conjuntos diferentes de questões relati­
252 INTENCIONALIDADE,.

vas aos estados Intencionais e ao modo como são relata­


dos em em issões de sentenças intensionais. Primeiro,
quais as características dos estados Intencionais? (Os ca­
pítulos 1-3 foram dedicados à discussão dessa questão.)
Segundo, como são representadas tais características no
discurso ordinário? (O presente capítulo ocupa-se basica­
mente dessa questão.) Terceiro, como melhor representar
essas características em um sistema formalizado como o
cálculo de predicados? (Se for possível esclarecer as res­
postas para as duas primeiras perguntas, a terceira ficará
consideravelmente mais fácil.)
O presente capítulo é sobre a intensionalidade e, por­
tanto, apenas incidentalmente sobre a Intencionalidade. É
sobre o estatuto das palavras que se seguem a “that”
(“que”) em contextos como “said that” (“disse que”), “be-
lieves that” (“acredita que”), “fears that” (“teme que”) etc.,
sobre as palavras que se seguem a “whether” (“se”) em
“wonclers whether” (“imagina se”), “asks whether” (“per­
gunta se”) etc.; sobre o estatuto das palavras que se se­
guem ao verbo em “wants to” (“quer”), “intends to” (“ten­
ciona”), “promises to” (“promete”), etc. É importante ter
em mente, na discussão que se segue, a distinção entre
sentenças ( sentences) (que são entidades sintáticas às quais
normalmente está vinculado um significado literal), as
emissões ( ulterances) de sentenças (que são atos de fala de
um certo tipo mínimo, por exemplo, atos de emissão) e
emissões literais e sérias de sentenças (que são, quando
têm êxito, atos de fala de um tipo muito mais rico, como,
por exemplo, os atos ilocucionários, cuja força ilocucioná-
ria e cujo conteúdo proposicional são uma questão con­
cernente ao significado literal da sentença emitida). Todo
ato ilocucionário é um ato de emissão, mas não o inverso.
E a cada um dos três termos dessas distinções aplica-se a
diferenciação de tipo-ocorrência usual.
RELA TOS INTENSIONAIS DE ESTADOS INTENCIONAIS.. 253

Qual é, exatamente, o estatuto das palavras que se


seguem a “que” no relato

1. O xerife acredita que o sr. Howard é um homem ho­


nesto

e como se comparam ao estatuto das palavras no enun­


ciado

2. O sr. Howard é um homem honesto.

Seria possível perguntar: por que se supõe que haja aqui


um problema em absoluto? Não é óbvio que as palavras
que se seguem a “que” em 1 significam exatamente a
mesma coisa que em 2? A razão pela qual há um proble­
ma especial nesses casos é que, por um lado, inclinamo-
nos a dizer que as palavras na oração subordinada em 1
devem ter, e ser usadas com, o mesmo significado que
costumam ter, e com que são usadas, em 2 (de que outra
maneira poderíamos entender 1?). Mas, por outro lado,
inclinamo-nos também a dizer que em tais casos elas não
podem ser usadas com seu significado ordinário porque
as propriedades lógicas das palavras que se seguem a
“que” em 1 parecem bem diferentes daquelas das mes­
mas palavras em 2. Em ambos os critérios, 2 é extensio-
nal e 1 é intensional. A generalização existencial é uma
forma válida de inferência em 2 (se 2 é verdadeiro, então
(3 x é um homem honesto)); e a substituição por outras
expressões referentes ao mesmo objeto conserva o valor
de verdade em 2 (por exemplo, se sr. Howard é um ho­
mem honesto e sr. Howard é Jesse James, então Jesse Ja ­
mes é um homem honesto). Nenhuma dessas condições
se aplica de modo geral a sentenças da forma 1. Além
disso, em uma emissão literal séria de 2, a proposição de
254 INTENCIONALIDADE

que o sr. Howarcl é um homem honesto é afirmada, ao


passo que em uma emissão literal séria de 1 tal proposição
não é afirmada. Em resumo, se o significado do todo é
uma função do significado das partes, se as partes perti­
nentes em 1 e 2 têm o mesmo significado, e se as proprie­
dades lógicas de uma emissão literal e séria são determina­
das pelo significado da sentença emitida, como pode ser
possível que 1 e 2 tenham propriedades lógicas diferentes?
Trata-se de um problema filosófico característico:
por um lado, intuições lingüísticas muito poderosas incli­
nam-nos a certas opiniões de senso comum, nesse caso
de que há uma sinonimia perfeita entre os pontos rele­
vantes de 1 e 2; mas, por outro lado, argumentos pode­
rosos parecem militar contra o senso comum. Creio que
uma aplicação da teoria dos atos de fala nos permitirá sa­
tisfazer nossas intuições lingüísticas e, ao mesmo tempo,
explicar as propriedades lógicas diferentes de 1 e 2.
Ao risco de ficar um pouco repetitivo, vou agora ex­
plicitar o que considero serem as diversas condições de
adequação em qualquer estudo dos relatos intensionais
de estados Intencionais. Para os propósitos da presente
discussão, ignorarei os problemas de intensionalidade que
surgem nos contextos modais, porque levantam certas
questões especiais que estão além do escopo deste livro.
A. A análise deve ser coerente com o fato de que os
significados das palavras comuns em pares como 1 e 2
são os mesmos, e que as palavras são usadas com esses
mesmos significados nas emissões literais sérias de cada
elemento do par.
B. Deve explicar o fato de que em 1 a sentença en­
caixada não tem as mesmas propriedades lógicas que em
2; ou seja, 2 é extensional e 1 é intensional.
C. Deve ser coerente com o fato de que faz parte
dos significados de 1 e 2 que, em emissões literais sérias
RELA TOS INTENSIONAIS DE ESTADOS INTENCIONAIS. 255

de 1, a proposição de que o sr. Howard é um homem


honesto não seja afirmada, mas em 2 o seja.
(Com base em uma interpretação natural, Frege1 e
seus seguidores rejeitam a condição A, enquanto aceitam
B e C; Davidson2 e seus seguidores aceitam a condição
A, enquanto rejeitam B e C. Defenderei a idéia de que
podemos aceitar as três.)
D. A análise deve explicar outros tipos de sentenças
que contêm orações “that” (“que”), inclusive aquelas em
que algumas ou todas as propriedades lógicas são preser­
vadas, tais como

3. É um fato que o sr. Howard é um homem honesto

(3 admite tanto a generalização existencial quanto a substi­


tuição)

4. O xerife sabe que o sr. Howard é um homem honesto

(4 acarreta a existência do sr. Howard, mas não permite a


substituição).
E. A análise deve aplicar-se a outros tipos de relato
de estados Intencionais e atos de fala que não empregam
orações “that” ( “qu e”), encaixadas em sentenças, mas
usam infinitivos, pronomes interrogativos, subjuntivos,
mudança de tempos verbais etc. Além disso, a análise de­
ve funcionar não apenas para o inglês, mas para qual­
quer idioma que contenha relatos de estados Intencionais
e atos de fala. Alguns exemplos são:

5. Bill quer que o sr. Howard seja um homem honesto


(Bill wants Mr. Howard to be an honest man)
256 INTENCIONALIDADE

6. Bill m and ou Sally fazer do sr. Howard um homem ho­


nesto
(Bill to ld Sally to make Mr. Howard be an honest man)
7. Sally te m e que o sr. Howard seja um homem honesto
(Sally fears that Mr. Howard is an honest man).

(Em muitos idiomas, como o português, a cópula em 7


precisa estar no subjuntivo.)

8. O sr. Howard disse que se tomaria um homem honesto


(Mr. Howard said he would become an honest man)

(em que “w ould”, em inglês, está no subjuntivo).


Como um passo no sentido de uma análise do dis­
curso indireto, comecemos pela consideração de um tipo
bem mais simples de relato:

9. O xerife emitiu as palavras, “O sr. Howard é um homem


hon esto”.

Qual o estatuto das palavras entre aspas em 9? Em outra


parte3, argumentei extensamente contra a opinião (ainda!)
ortodoxa segundo a qual a colocação de uma palavra en­
tre aspas serviria para criar uma palavra inteiramente no­
va, nome próprio da palavra ou das palavras citadas. Em
meu estudo, as palavras que ocorrem entre aspas em 9
são exatamente as mesmas que ocorrem em 2. Se eu ti­
vesse quaisquer dúvidas a esse respeito, uma simples ins­
peção visual serviria para me tranqüilizar. Segundo a opi­
nião tradicional, contudo, as palavras não ocorrem entre
as aspas em 9, porque a expressão inteira, inclusive as as­
pas, é um novo nome próprio, o nome próprio da senten­
ça que ocorre em 2. Segundo essa opinião, absolutamente
nenhuma palavra ocorre entre aspas em 9- Para o olhar
RELA TOS INTENSIONAIS D E ESTADOS INTENCIONAIS. 257

ingênuo e não familiarizado com as sutilezas dos textos


elementares de lógica, diversas palavras, cómo “sr.”, “Ho-
ward”, “é ”, e assim por diante, efetivamente parecem
ocorrer entre aspas em 9, mas, segundo a opinião ortodo­
xa, trata-se de um mero acidente ortográfico, do mesmo
modo que é um acidente ortográfico que “bule” parece

PAW
ocorrer em “tabuleiro”. Segundo a visão tradicional, tudo
não passa de um nome próprio, desprovido de palavras
componentes e desprovido de estrutura interna.

CENTR AL
UQ
Considero essa visão francamente absurda. É difícil
imaginar qualquer linha de raciocínio que pudesse con­

FfcDfcK^L
vencer-me de que as palavras entre aspas em 9 não são
exatamente as mesmas que ocorrem após o algarismo “2”
em 2, ou que há quaisquer nomes próprios em 9 além cie

SiBi_KJ?£CA
“Howard”. Mesmo assim, para que não pareça ser apenas

U > M V E « F I D a PE
uma teimosia “à Moore” de minha parte, farei uma pausa
para considerar a visão ortocioxa. A única motivação que
consegui identificar para essa visão é o princípio de que,
se quisermos falar de alguma coisa, jamais podemos co­
locar a própria coisa em uma sentença, mas sim o seu
nome ou alguma expressão referente a ela. Mas esse
princípio - parece-m e - é obviam ente falso. Se, por
exemplo, alguém lhe pergunta qual foi o som produzido
pelo pássaro que você viu ontem, você pode responder,
“O pássaro fez esse som —”, onde o espaço em branco
deverá ser preenchido por um som e não pelo nome do
som. Em um caso tal, uma ocorrência do próprio som faz
parte da ocorrência da emissão e uma consciência desse
som faz parte da proposição expressa pelo falante e en­
tendida pelo ouvinte. Evidentemente, podemos usar pala­
vras para referir-nos a outras palavras. Podemos dizer,
“John emitiu as palavras que formam as últimas três na li­
nha 7 da página 11 cio livro”, e usamos aqui uma descri­
ção definida para referir-nos às palavras; mas, quando es-
258 INTENCIONALIDADE
\

tamos falando de palavras, dificilmente é necessário usar


nomes ou descrições definidas, pois quase sempre pode­
mos produzir as próprias palavras. As únicas exceções
que conheço a esse princípio são os casos em que é obs­
ceno, ou sacrílego, ou por algum motivo um tabu dizer a
própria palavra, como em “le mot de Cambronne”. Em
tais casos, precisamos de um nome para ela, mas, comu-
mente, não precisamos de um nome, simplesmente repe­
timos a palavra.
Há ainda mais um argumento contra a visão de que
quando colocam os expressões entre aspas criamos um
novo nome. Muitas vezes, a posição sintática do trecho ci­
tado nem sequer permite a inserção de um nome ou de
qualquer frase nominal. Desse modo, observe-se a dife­
rença entre “Gerald disse: ‘vou considerar a possibilidade
de concorrer à presidência’” e “Gerald disse que iria ‘con­
siderar a possibilidade de concorrer à presidência’”. Na se­
gunda forma, se considerarmos as palavras entre aspas
simples como um novo nome, uma frase nominal, a sen­
tença se tornaria não-gramatical, uma vez que o contexto
“Gerald disse que iria” não permite uma frase nominal
após “iria”. A visão ortodoxa transforma a original em uma
sentença com a forma gramatical do tipo, por exemplo,

Gerald disse que iria Henry

o que é não-gramatical.
Portanto, voltando à nossa pergunta, qual é o estatu­
to das palavras citadas em 9 e qual sua relação com as
palavras de 2? A relação entre as palavras citadas em 9 e
as palavras de 2 é de identidade, as mesmas palavras que
ocorrem entre aspas em 9 ocorrem em 2. Mas qual a di­
ferença no estatuto delas? Na emissão literal séria de 2, o
falante faz um enunciado com essas palavras. Em uma tal
RELA TOS INTENSIONAIS DE ESTADOS INTENCIONAIS. 259

emissão de 9, porém, essas palavras são apresentadas in-


dexicalmente, e reportadas; não são usadas para fazer
um enunciado nem para realizar nenhum ato de fala
além de um ato de emissão. Em 2, as palavras pertinen­
tes são usadas para realizar um ato de emissão, um ato
proposicional e um ato ilocucionário. Em uma emissão
de 9, o relator repete o mesmo ato de emissão, mas não
repete o mesmo ato proposicional nem o mesmo ato ilo-
cucionárío. Creio que isso nos fornece uma pista para a
análise do discurso indireto em geral, pois sugere que a
pergunta apropriada a fazer seria: Quais dos atos de fala
originais do falante original são repetidos pelo relator e
quais são meramente reportados por ele? Considerem-se
os vários graus de comprometimento, por parte do rela­
tor, na seguinte seqüência:

10. O xerife pronunciou as palavras, “O sr. Howard é um


homem honesto"
11. O xerife disse que o sr. Howard é um homem honesto
12. O xerife disse, “O sr. Howard é um homem honesto”
13. O xerife disse então, e eu digo agora, o sr. Howard é
um homem honesto.

Para utilizar uma terminologia conveniente, chamarei


os relatos do tipo 10 relatos de palavra, os do tipo 11 re­
latos de conteúdo e os do tipo 12 relatos Verbatim. Cha­
marei a pessoa que pronuncia as sentenças 10-13 relator
e a pessoa que está sendo relatada falante.
Ora, qual dos atos originais do falante o relator fica
comprometido a repetir pela emissão séria e literal de ca­
da uma dessas sentenças? Creio que as respostas são bas­
tante óbvias, de modo que vou simplesmente apresentá-las
e depois desenvolver minha argumentação relativa a elas.
262 INTENCIONALIDADE

11'. O xerife asseverou essa proposição: O sr. Howarcl é


um homem honesto.

Nesse caso, o resto da sentença deixa claro que a propo­


sição original é repetida e, portanto, apresentada de­
monstrativamente; mas a força ilocucionária original não
é repetida, é apenas relatada. A proposição original é apre­
sentada dem onstrativam ente, tal com o seria possível
apresentar demonstrativamente qualquer outra coisa no
contexto da emissão.
Dado que Frege tinha os elementos necessários para
conceber essa interpretação, em particular uma teoria ru­
dimentar da distinção entre conteúdo proposicional e for­
ça ilocucionária, e dado que a análise é fregiana em espí­
rito, pode parecer estranho que ele nunca tenha sequer
considerado essa explicação. Mas a razão pela qual ele
não podia ter aceito a análise que estou apresentando é
que aceitava o princípio subjacente à teoria do uso e da
menção, a qual já vimos razões para rejeitar: Frege consi­
derava que o único modo para se falar de uma coisa era
nomeá-la ou referir-se a ela de qualquer modo. Supunha
que, se a proposição do falante fosse de algum modo
mencionada pelo relator, o ocorrido na emissão deste de­
veria ser o nome - e não uma expressão - da própria
proposição. Com efeito, a tese de Frege sobre o discurso
indireto é precisamente que as expressões em questão
referem-se a seu sentido costumeiro e que toda a oração
encaixada se refere a uma proposição; é o nome próprio
de uma proposição. Porém, uma vez constatada a falácia
da interpretação tradicional da distinção perfeitamente
válida entre o uso e a menção das expressões, estamos
em condições de constatar a falácia da extensão do mes­
mo princípio ao discurso indireto. A menção de uma pro­
posição não requer que a nomeemos ou nos refiramos a
RELATOS LNTENSIONALS DE ESTADOS INTENCLONAIS. 263

ela de outro m odo qualquer; podem os simplesmente


apresentar a proposição mesma. Quando 'relatamos uma
fala alheia, não precisam os nom ear suas proposições
mais do que suas palavras, simplesmente repetimos sua
expressão dessas proposições no relato de conteúdo, da
mesma forma com o repetimos suas palavras no relato de
palavra. E claro que podemos nomear ou referir-nos de
outro modo a suas proposições. Quando dizemos, por
exemplo, “O sr. Howard asseverou a Hipótese Coperni-
cana”, a expressão “a Hipótese Copernicana” serve para
referir uma proposição, não para expressá-la. No entanto,
com a exceção de umas quantas proposições famosas co­
mo a Hipótese Copernicana, as proposições não têm no­
mes e nem precisam deles.

v o a jo n a ia
A presente interpretação dos relatos dos atos de fala
pode facilmente ser estendida aos relatos de estados In­
tencionais e não é nem um pouco surpreendente que as­
sim seja, dado o íntimo paralelo entre os atos de fala e os
estados Intencionais que exploramos no capítulo 1. Nos
relatos de conteúdo dos atos de fala da forma 11, o rela­
tor repete a proposição expressa pelo falante; nos relatos
cle conteúdo de crenças da forma 1, o relator expressa a
proposição que é o conteúdo representativo da crença
de quem acredita, mas não precisa repetir nenhuma ex­
pressão de crença, pois aquele que acredita pode jamais
ter expresso sua crença. O relator expressa a proposição
em que o crente acredita, mas, ao fazê-lo, não precisa re­
petir coisa alguma que o crente tenha feito. (Muitas ve­
zes, na vida real, relaxamos o requisito de que o conteú­
do expresso seja exatamente o mesmo que o conteúdo
em que se acredita. Dizemos, por exemplo, “O cão acre­
dita que seu dono está à porta”, sem com isso atribuir­
mos ao cão a posse do conceito de propriedade.) E, as­
sim como o relato de conteúdo da forma 11 apresenta a
264 INTENCIONALIDADE

proposição sem sua força ilocucionária de asserção, mas


com um relato dessa força, o relato de conteúdo de cren­
ça da forma 1 apresenta a proposição sem seu modo In­
tencional de crença, mas com um relato desse modo. Co­
mo a existência de estados Intencionais não requer abso­
lutamente fala alguma, há poucos relatos verbatim de es­
tados Intencionais. Estritamente falando, um relato verba­
tim pode ser apenas o relato.de um ato de fala (pode ser
um ato de fala interno) e, portanto, o relato verbatim de
um estado Intencional pode ser apenas o relato de um
estado Intencional expresso em um ato de fala.
Talvez essa interpretação fique mais clara se eu a
comparar com as opiniões de Davidson. Segundo este, o
relator que diz

17. Galileu disse que a Terra se move

diz algo equivalente a

18. (a) A Terra move-se.


(b) Galileu disse isso.

18(a) é completamente extensional e como, segundo Da­


vidson, sua ocorrência em 17 é equivalente à sua ocor­
rência em 18, a oração subordinada em 17 também é ex­
tensional. A razão para uma mudança no valor de verda­
de de 17 mediante substituição nada tem a ver com in-
tensionalidade alguma da oração subordinada, mas deri­
va do fato de que a referência do demonstrativo “que”
pode mudar com a introdução de expressões co-referen-
tes em substituições à formulação original. Segundo o pa­
recer de Davidson, se eu emitir 17, eu e Galileu somos
agentes do mesmo discurso.
RELA TOS INTENSIONAIS DE ESTADOS INTENCIONAIS. 265

Em minha interpretação, precisam ente não somos


agentes do mesmo discurso uma vez que em uma emissão
séria e literal de 17 eu não digo que a Terra se move, ape­
nas digo que Galileu o disse. Não somos agentes do mesmo
discurso, mas agentes que expressam a mesma proposição.
Por outro lado, uma emissão séria e literal de 18 efetiva­
mente torna Galileu e eu agentes do mesmo discurso, pois
em um tal enunciado de 18 eu assevero que a Terra se mo­
ve. Em 18(a) a força assertiva faz parte do significado lite­
ral, mas essa força assertiva é removida pela oração encai­
xada em 17; é por isso que 18(a) é extensional, mesmo
que a oração subordinada em 17 seja intensional.
Creio que, intuitivamente, a interpretação apresenta­
da neste capítulo é bastante óbvia e, com efeito, uma vez
afastado o equívoco acerca do uso e da menção, não vejo
realmente nenhuma objeção a ela. Mesmo assim, até ago­
ra eu a apresentei, mas não argumentei a seu favor. Como
seria possível argumentar a seu favor de modo a conven­
cer um cético? Talvez a melhor forma para enfrentar esse
desafio seja mostrar de que maneira tal interpretação po­
de ser submetida aos nossos quatro critérios de adequa­
ção, de A a E, de sorte que forneça uma intepretação uni­
ficada das orações com o termo “que”, sejam estas exten-
sionais ou intensionais, e uma interpretação unificada dos
relatos de estados Intencionais e atos de fala, seja em ora­
ção com o termo “que”, seja em outras formas.
O primeiro passo para enfrentarm os o desafio é
mostrar como podemos resolver o paradoxo que deriva
das condições A, B e C, que deu origem ao enigma em
primeiro lugar: Como é possível que (A) as palavras nas
orações subordinadas de relatos com o 1 e 11 tenham
seus significados ordinários e, mesmo assim, (B) as pro­
priedades lógicas de uma emissão séria e literal dessas
mesmas palavras em 2 não se conservem em uma emis-
266 INTENCIONALIDADE,

são séria e literal de 1 e 11? Além disso, (C) se as pala­


vras conservam seu significado original, por que a propo­
sição asseverada em uma emissão séria e literal de 2 não
se conserva em uma tal emissão de 1 e 11? Creio que a
resposta a esta última pergunta fornece a resposta para a
anterior. Em minha interpretação, embora as palavras nas
sentenças mantenham seus significados, estes, em 1, 2 e
11, determinam conteúdos proposicionais, mas não for­
ças ilocucionárias. Em 2, a força ilocucionária não está
contida em qualquer das palavras e a força ilocucionária
do original é removida pelo encaixe em uma oração su­
bordinada em 1 e 11. A força ilocucionária de uma emis­
são séria e literal de 2 é determinada pela ordem das pa­
lavras, pelo modo verbal, pelos limites da sentença e pe­
los contornos de entonação. Ora, estritamente falando, a
sentença de 2 não é repetida na íntegra em 1 e 11, dado
que perdeu seus limites de sentença. Em 1 e 11, a se­
qüência de palavras “Mr. Howard is an honest man” (“O
sr. Howard é um homem honesto”) não é em si mesma
uma sentença, embora baste, nesse contexto, para ex­
pressar um conteúdo proposicional. O inglês moderno é
particularmente enganador nesses casos, pois permite-
nos manter no relato o mesmo modo verbal que no ori­
ginal4, mas, mesmo no inglês moderno, a separação entre
conteúdo proposicional e força ilocucionária é claramen­
te visível nos relatos de emissões de sentenças imperati­
vas e interrogativas, cuja estrutura não nos permite man­
ter no relato o modo verbal original. Assim, suponhamos
que o xerife pergunte:

19. Is Mr. Howard an honest man?


(O sr. Howard é um homem honesto?)

Isso é relatado por


RELATOS LNTENSIONAIS D E ESTADOS LNTENClONALS. 267

20. The sheriff a s k e d w h eth er Mr. Howard w as an honest


man.
(O xerife perguntou se o sr. Howard era um homem
honesto.)

Fica claro, nesse caso, que a força interrogativa que ocor­

PARA
re como parte do significado literal em 19 é relatada, mas
não ocorre, em 20. O verbo “ask” (“perguntar”) relata ex­
plicitamente a força ilocucionária, e a sentença que ex­

CENTRAL
ÜQ
pressa a proposição original é apresentada com uma or­
dem de palavras diferente, uma mudança do modo inter­

ftlDi-KfeL
rogativo original do verbo, uma mudança (opcional) do
tempo verbal e um encaixe no escopo do pronome inter­

ECA
rogativo “whether” (“se”). Considero que o que acontece
na estrutura de superfície dessas formas é bastante revela­

í
UNI VERSIDADE
dor do que está acontecendo na estrutura lógica. A força

B íB lJQ
interrogativa de 19 é removida em 20 porque, embora a
mesma proposição ocorra em 19 e 20, em 20 ela é apre­
sentada não como pergunta, mas como parte do relato de
uma pergunta. Considerações semelhantes aplicam-se aos
relatos de atos de fala diretivos. Assim 21, dito pelo xerife,

21. Mr. Howard, be an honest man!


(Sr. Howard, seja um homem honesto!)

é relatado como

22. The sheriff ordered Mr. Howard to be an honest man.


(O xerife ordenou ao sr. Howard ser um homem ho­
nesto.)

Nesse par, o modo imperativo de 21 é removido em 22,


substituído pelo infinitivo e relatado pelo verbo “orde­
red” (“ordenou”).
268 INTENCIONALIDADE c

O que vem os em cada um desses pares, 19/20,


21/22, é que o relator repete o conteúdo proposicional,
mas relata a força ilocucionária. Nesses casos, há uma
variedade de recursos sintáticos para sinalizar ao ouvinte
que a proposição no relato tem uma situação ilocucioná­
ria diversa da que tinha em sua ocorrência original.
Em resumo, portanto, nossa resposta à pergunta
acerca da condição C é que as palavras e outros elemen­
tos repetidos em relatos de conteúdo como 1 e 11 con­
servam seu significado original, mas tais significados de­
terminam o conteúdo proposicional e não a força ilocucio­
nária. A força ilocucionária do original não é repetida,
mas relatada; e o inglês e outros idiomas têm uma varie­
dade de recursos sintáticos para sinalizar ao ouvinte que
a força ilocucionária do original nâo está mais vinculada
à proposição no relato.
Ora, uma vez que a força ilocucionária assertiva é
removida do conteúdo proposicional em 1 e 11, e uma
vez que é o compromisso envolvido em asseverara pro­
posição - e não apenas a proposição como tal — que
compromete o falante com suas condições de verdade, o
relator pode expressar a mesma proposição com as mes­
mas palavras que o falante e, ainda assim, não se com­
prometer com as condições de verdade dessa proposição.
E é por isso que a expressão da proposição pelo relator é
intensional, ao passo que pelo falante ela é extensional.
Para podermos demonstrar como essa interpretação resol­
ve o aparente paradoxo resultante de se sustentar tanto a
condição A como a B, consideremos a generalização exis­
tencial e a substituibilidade.
Se as palavras pertinentes têm o mesmo significado
em 2 e 11 e a proposição em 2 é repetida em 11, por
que razão a generalização existencial é uma forma válida
de inferência a partir de 2 e não a partir de 11? O falante
que faz uma emissão séria e literal de 2 não se limita a
RELA TOS INTENSIONAIS DE ESTADOS INTENCIONAIS. 269

expressar o conteúdo proposicional, na verdade ele o as­


severa. Tal asserção compromete-o com as condições de
verdade da proposição, as quais incluem a existência de
um objeto a que supostamente se refere a emissão da ex­
pressão referente. Se 2 é verdadeiro, deve existir um tal
objeto e por isso a generalização existencial é uma forma
válida de inferência. Mas o relator que realiza uma emis­

KARA
são séria e literal de 11 compromete-se apenas com a ex­
pressão da mesma proposição que o falante original de
2, mas não se compromete com asseverá-la. As condições

CENTKAL
DO
de verdade com que ele se compromete incluem a con­
dição de que o relato contenha uma expressão da mesma

FtUtk^L
proposição que a expressa pelo falante original, mas, co­
mo não assevera essa proposição, e portanto não está
comprometido com suas condições de verdade, 11 pode

0 'BuJO T £CA
ser verdadeiro mesmo que não haja nenhum objeto cor­

UNIVERSND^i.é
respondente à expressão referente; e é por isso que a ge­
neralização existencial não é uma forma válida de infe­
rência para 11.
Por que a substituição funciona para 2, mas não pa­
ra 11, se a proposição é a mesma nos dois casos? A subs­
tituição não funciona porque a forma de 11 compromete
o relator a repetir a mesma proposição que o falante; em
sentido estrito, a expressão “ele disse que” em 11 com­
promete o relator a repetir a mesma proposição original­
mente expressa pelo falante, razão pela qual qualquer
substituição que altere a proposição pode alterar também
o valor de verdade do relato. Tal como sabia Frege, em
geral as substituições que conservam não apenas a mes­
ma referência, mas também o mesmo significado, conser­
vam o valor de verdade, mesmo em contextos intensio-
nais: enquanto o conteúdo proposicional for conservado
pela substituição, o valor de verdade permanece constan­
te. Mas ali onde os dois termos são ordinariamente usa-
270 INTENCIONALIDADE

dos para referir-se ao mesmo objeto e o sentido de am­


bos for diferente, a substituição de um termo por outro
pode alterar o conteúdo da proposição e, portanto, alte­
rar o valor de verdade do relato. O valor de verdade de
2, por outro lado, não depende de como o objeto é iden­
tificado; outras identificações do mesmo objeto conserva­
rão o valor de verdade.
Com freqüência temos relatos de conteúdo parciais
em que o relator não se compromete com a proposição
original no seu todo. Assim, dizemos coisas na forma

23. Não direi exatamente o que ele disse, mas o xerife dis­
se que o sr. Howard era um certo tipo de homem.

Nesse caso, a forma do relato deixa claro que o relator


não se com promete a repetir o original no seu todo.
A análise que estou apresentando aqui é na verdade
apenas uma extensão cie questões apresentadas no capí­
tulo 1. Nos relatos de estados Intencionais, representa-se
uma representação. Ora, como o relato é da representa­
ção básica e não do que é representado por ela, os com­
promissos dessa representação básica podem estar au­
sentes do relato; logo, os compromissos ontológicos do
primeiro podem estar ausentes do último. E, como o re­
lato se configura pela repetição do conteúdo proposicio-
nal da representação original, qualquer substituição que
altere esse conteúdo proposicional pode alterar o valor
de verdade do relato, uma vez que, em tal caso, uma re­
presentação diversa é apresentada no relato.
Condição D: Dadas as nossas respostas às perguntas
relativas às condições A, B e C, como podemos apresen­
tar uma interpretação unificada das orações “that” (“que”)
etc.? Ou seja, se as orações “that” (“que”) encaixadas são,
em geral, apresentações demonstrativas de conteúdos
RELA TOS INTENSIONAIS D E ESTADOS INTENCIONAIS. 271

proposicionais, como explicar o fato^de algumas serem


intensionais e outras extensionais?
Se a proposição encaixada é ou não intensional ou
extensional é inteiramente uma questão de conteúdo se­
mântico do restante da sentença. Assim, as diferenças das
sentenças nas formas

1. O xerife acredita que o sr. Howard é um homem honesto

3. É fato que o sr. Howard é um homem honesto

são inteiramente uma questão de diferença de significado


entre “O xerife acredita que” e “É fato que”. Ambas as
sentenças são usadas literalmente para fazer asserções,
mas, enquanto “É fato que” compromete o falante com a
asserção da proposição encaixada, “O xerife acredita
que” não compromete. A diferença entre o estatuto da
proposição expressa nos dois casos é unicamente uma
questão do restante da sentença e não requer que postu­
lemos dois tipos diferentes de orações “that” (“que”). Ou­
tro indício de que o estatuto da ocorrência das duas ora­
ções subordinadas é o mesmo é que as duas sentenças
permitem reduções de conjunções da forma “É fato que
Jones acredita que o sr. Howard é um homem honesto”.
A sentença 4 oferece um caso intermediário. “Sabe
que”, tal como “prova que” e “vê que”, é, na verdade,
um verbo Intencional, mas, além de assinalarem a Inten­
cionalidade do estado ou ato da pessoa que está sendo
relatada, todos eles são verbos de “sucesso”. Para esses
contextos, a inferência da existência dos objetos a que
supostamente se faz referência na oração subordinada é
uma forma válida de inferência; e todos os enunciados
272 INTENCIONALIDADE

na forma “X sabe que p, X vê que p, X provou que p ”


acarretam p. Para esses contextos, todavia, a substituição
não conserva a verdade, pois a identidade do conteúdo
do que é sabido, provado ou visto é, ao menos em parte,
uma questão do aspecto sob o qual os referentes são sa­
bidos, provados ou vistos.
Cabe aos lingüistas, e não aos filósofos da lingua­
gem, apresentar uma resposta completa para a pergunta
relativa à condição E: de que modo essa interpretação se
coaduna com a variedade de recursos do inglês e outros
idiomas para indicar intensionalidade? Já considerei algu­
mas das maneiras pelas quais o inglês relata atos de fala
indicativos, interrogativos e imperativos, e em cada caso
vimos - embora isso fosse mais marcante nos relatos in­
terrogativo e imperativo - uma separação entre a força
ilocucionária relatada e o conteúdo proposicional repeti­
do. Para poder estender a interpretação neste capítulo -
e assim testá-la - , seria preciso saber de que modo a for­
ça ilocucionária e o conteúdo proposicional são indica­
dos em uma variedade de outros idiomas e de que modo
a distinção entre conteúdo proposicional e força ilocucio­
nária é representada nos relatos de emissões nesses idio­
mas. Uma forma sintática de particular interesse, existen­
te no inglês e diversos outros idiomas, é a que os france­
ses chamam “style indirect libre”. Considere-se

Ela [Louisa] não suportava pensar em sua irmã altiva e es­


piritual degradada no corpo daquela forma. Mary era vil,
vil, vil: não era superior, era delituosa, incompleta.
(D. H. Lawrence, As-filhas do vigário)

A segunda sentença é o relato de um estado Intencional; o


autor não nos está dizendo que Mary era vil, vil, vil, mas
que Louisa considerava-a vil, vil, vil. A complexidade do
RELATOS INTENSIONAIS DE ESTADOS INTENCIONAIS. 273

exempio deriva de três características: em primeiro lugar,


embora a sentença seja o relato de um estado Intencio­
nal, está isolada e não encaixada (donde “libre” em “style
indirect libre”); em segundo lugar, tem algumas caracte­
rísticas do discurso direto - supõe-se que pensemos em
“vil, vil, vil” com o algo em que Louisa está pensando
consigo mesma nesses termos; mas, em terceiro lugar,
tem também características de discurso indireto, como a
mudança de tempo verbal - supõe-se que pensemos em
Louisa dizendo a si mesma “Mary é vil, vil, vil”, mas isso
é relatado como “Mary era vil, vil, vil”.
O presente capítulo tem-se ocupado basicamente
dos relatos intensionais de estados Intencionais e de atos
de fala, os chamados relatos de dicto. Mas e quanto aos
relatos em que a ocorrência cle algumas das expressões é
extensional, os chamados relatos de re'í “Bush acredita
(believes) que Reagan é Presidente” é um relato de dicto
e intensional. Pode ser verdadeiro mesmo que Reagan
nunca tenha existido. Mas e quanto a

Reagan é tido (is believed) como Presidente por Bush

ou

Reagan é tal que Bush acredita (believes) que ele é Presi­


dente?

Tais relatos são de re e neles a ocorrência de “Reagan” é


extensional. O erro endêmico na filosofia lingüística tem
sido o de inferir, do fato de que o relato de dicto é inten­
sional, que os próprios estados relatados devam ser in­
tensionais. Aleguei no capítulo 1 que essa posição é uma
enorme confusão e, neste capítulo, tentei analisar senten­
ças usadas para fazer relatos de dicto. A confusão parale­
274 INTENCIONALIDADE

la no caso dos relatos de re tem sido a de se inferir, do


fato de haver dois tipos de relato, de dicto e de re, que
há dois tipos de estado relatados, que os próprios esta­
dos são ou de dicto ou de re. Mas do fato de haver dois
tipos diferentes de relato simplesmente não se segue,
nem se verifica, que haja dois tipos diferentes de estado.
Vamos dedicar-nos a essa e a outras confusões correlatas
no próximo capítulo.
CAPÍTULO 8
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS
NA CABEÇA?

PARA
CENTRAL
DQ
B.BUüTfcCA
A pergunta fundamental da filosofia da linguagem

UNIVERSlD^ > t
sempre foi: Como a linguagem se relaciona com a reali­
dade? A resposta por mim apresentada em Speech acts foi
que a linguagem se relaciona com a realidade em virtude
do fato de os falantes estabelecerem tal relação na reali­
zação de atos de fala. A pergunta original fica assim re­
duzida à análise da natureza e das condições da possibi­
lidade de tais atos. No livro presente, tentei mais ainda
alicerçar essa análise na Intencionalidade da mente: a
pergunta, “Como a linguagem se relaciona com a realida­
de?”, é apenas um caso especial da pergunta, “Como a
mente se relaciona com a realidade?”. E, assim como a
pergunta sobre a linguagem reduzia-se a uma pergunta
acerca dos vários tipos de ato de fala, a pergunta sobre a
mente reduz-se a uma pergunta acerca das diversas for­
mas de Intencionalidade, sendo as capacidades represen-
tacionais dos atos de fala simplesmente um caso especial
de Intencionalidade derivada.
Com base em uma interpretação de Frege, minha
abordagem geral à Intencionalidade consiste em revisar e
276 INTENCIONALIDADE

estender a concepção fregiana de “Sinn” para a Intencio­


nalidade em geral, inclusive a percepção e outras formas
de auto-referência; e a minha abordagem ao problema
especial da referência é, em alguns aspectos, fregiano no
espírito, embora não, é claro, no detalhe. Especificamen­
te, é possível distinguir pelo menos duas linhas indepen­
dentes na interpretação de Frege das relações entre ex­
pressões e objetos. Em primeiro lugar, em sua interpreta­
ção do Sinn e Bedeutung do Eigennamen , uma expres­
são refere-se a um objeto porque este ou se ajusta ao
Sinn associado à expressão ou o satisfaz. Em segundo lu­
gar, em sua luta contra o psicologismo, Frege julgou ne­
cessário postular a existência de um terceiro domínio de
entidades abstratas: sentidos, proposições etc. A comuni­
cação na emissão de uma expressão só é possível porque
tanto o falante como o ouvinte são capazes de apreender
um sentido abstrato comum associado à expressão. Mi­
nha interpretação pessoal é fregiana na aceitação da pri­
meira dessas linhas, mas rejeito a segunda. A referência
lingüística é um caso especial da referência Intencional e
esta sempre se dá por meio da relação do ajuste ou de
satisfação. Mas não é necessário postular nenhum domí­
nio metafísico especial para interpretar a comunicação e
a Intencionalidade compartilhada. Se você pensar sobre a
Estrela Vespertina sob o modo de apresentação “Estrela
Vespertina” e eu pensar no mesmo planeta sob o mesmo
modo de apresentação, o sentido em que temos uma en­
tidade abstrata em comum é aquele absolutamente trivial
em que, se eu fizer uma caminhada pelas colinas de Ber-
keley e você fizer exatamente a mesma caminhada, com­
partilharemos a mesma entidade abstrata, a mesma cami­
nhada. A possibilidade de conteúdos Intencionais com­
partilhados não requer um aparato metafísico mais vulto­
so que a possibilidade de caminhadas compartilhadas.
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 277

Tanto a interpretação fregiana do significado quanto


a presente são internalistas no sentido de que é em virtu­
de de um estado mental qualquer na cabeça de um falan­
te e de um ouvinte - o estado mental de apreender-se
uma entidade abstrata ou simplesmente ter-se um certo
conteúdo Intencional — que falante e ouvinte podem en­

PAHA
tender as referências lingüísticas. No momento em que
este trabalho é redigido, as mais representativas teorias

CENTRAL
da referência e do significado rejeitam a análise fregiana

DO
ou internalista. Há uma variedade de razões pelas quais a
posição antiinternalista entrou em voga e há um conside­

FtOt.K -L
rável desacordo entre os antiinternalistas quanto a qual
seria a análise correta da referência e do significado.

BiBu-FOTECA
Neste capítulo e no seguinte considerarei e responderei
a pelo menos alguns dos ataques mais representativos à

V mi VERS I D^CE
tradição internalista, fregiana ou Intencionalista. Tais ca­
pítulos, portanto, são mais argumentativos que os prece­
dentes: minha meta será não apenas apresentar uma in­
terpretação Intencionalista da referência, mas fazê-lo de
modo a responder ao que acredito ser uma família de
doutrinas equivocadas da filosofia contemporânea. Eis
aqui, sem nenhuma ordem especial, algumas das teses
mais representantes lançadas contra a imagem internalista:
1. Supõe-se haver uma distinção fundamental entre
as crenças de re e de dicto e outros tipos de atitude pro-
posicional. As crenças de re são relações entre agentes e
objetos; não podem ser individualizadas unicamente em
termos de seus conteúdos mentais ( de dictó), pois o pró­
prio objeto ( res) deve fazer parte do princípio de indivi­
duação da crença.
2. Supõe-se haver uma distinção fundamental entre
os usos “referencial” e “atributivo” das descrições defini­
das. Só no caso dos usos atributivos das descrições defi­
nidas o falante “refere-se” a um objeto em virtude do fato
278 INTENCIONALIDADE

de seu conteúdo Intencional estabelecer condições que o


objeto satisfaz, mas esses não são, absolutamente, casos
genuínos de referência; no uso referencial das descrições
definidas, o falante não precisa usar um a expreessão sa­
tisfeita pelo objeto a que se faz referência1.
3. As expressões indexicais com o “eu ”, “você”, “is­
to”, “aquilo”, “aqui”, “agora” são supostam ente impossí­
veis de serem explicadas por uma teoria internalista, da­
do que sua emissão carece de um “sentido fregiano con­
cludente”.
4. Supõe-se que os expoentes da cham ada teoria
causal dos nom es e da teoria causal da referência tenham
refutado algo denom inado “teoria descritivista” dos no­
mes e da referência, refutando com isso qualquer expli­
cação internalista ou fregiana, e dem onstrando que a re­
ferência é realizada em virtude de algumas relações cau­
sais externas.
5. A teoria causal da referência é supostam ente apli­
cável a um a ampla classe de termos gerais, aos termos
naturais de espécie e talvez ainda a outros; e, para esses
termos, supõe-se haver argumentos decisivos a dem ons­
trar que o conhecim ento de seus significados não pode
consistir no fato de se estar em algum tipo de estado psi­
cológico, mas deve envolver alguma relação causal mais
direta com o mundo. Supõe-se haver sido dem onstrado
que os “significados não estão na cabeça”.
Creio que todas essas visões são falsas. Além disso,
têm em com um um a sem elhança de família; sugerem
uma imagem da referência e do significado na qual o
conteúdo Intencional interno do falante é insuficiente p a­
ra determinar a que ele se refere, em seus pensam entos
com o em suas emissões. Compartilham elas a idéia de
que, para explicar as relações entre as palavras e o m un­
do, precisamos introduzir (em alguns casos? em todos?)
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 279

relações causais externas contextuais, não-conceituais,


entre a em issão de expressões e as características do
m undo sobre o qual versa a emissão. Se essas visões esti­
verem corretas, a interpretação da Intencionalidade por
mim apresentada deve estar equivocada. Neste ponto,
não vejo outra alternativa senão a de listar uma série p a­
dronizada de argumentos filosóficos fixos. A justificativa
para se fazer tanto barulho acerca de posições que acre­
dito serem falsas está relacionada à dimensão cias questões
envolvidas. Se formos incapazes de interpretar a relação
de referência em termos de conteúdos Intencionais inter­
nos, sejam estes os conteúdos do falante individual, se­
jam os da com unidade lingüística de que ele faz parte,
toda a tradição filosófica desde Frege, tanto a analítica
como as correntes fenomenológicas, está enganada, e te­
remos de com eçar de novo com algum a interpretação
causal externa da referência em particular e da relação
das palavras com o m undo em geral.

I. OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA

Começarei pela consideração do argumento de Hi-


lary Putnam, segundo o qual “os significados não estão
na cabeça”2. Creio que, no sentido pertinente, os signifi­
cados estão precisam ente na cabeça - não existe outro
lugar onde possam estar - e que os argumentos de Put­
nam não conseguem dem onstrar nada em contrário.
Putnam considera duas posições:
(1) C onhecer o significado de um a palavra ou ex­
pressão consiste em estar em um determ inado
estado psicológico.
(2) O significado (intensão) determ ina a extensão.
280 INTENCIONALIDADE

A propriadam ente concebidas, essas posições acarretam


uma terceira:
(3) Os estados psicológicos determ inam a extensão.
Putnam tenta dem onstrar que não podem os sustentar
tanto (1) com o (2) ao mesmo tem po e que (3) é falso.
Propõe rejeitar (1) e (3) e aceitar um a versão revisada de
(2). Na discussão que se segue, é im portante assinalar
que não há nada contra a aceitação da distinção analíti-
co-sintética tradicional; para os propósitos da presente
discussão, tanto eu como Putnam aceitamos o holismo e
nada em nossa discussão toca esta questão.
A estratégia de Putnam é tentar conceber casos intui­
tivamente plausíveis em que o m esm o estado psicológico
determ ina extensões diferentes. Se estados psicológicos
tipo-idênticos podem determ inar extensões diferentes, a
determ inação da extensão deve transcender os estados
psicológicos e, portanto, a visão tradicional é falsa. Put­
nam apresenta dois argumentos independentes para m os­
trar de que m odo o mesmo estado psicológico pode de­
terminar extensões diferentes. Fala às vezes como se fos­
sem parte do m esm o argumento, mas, na verdade, são
totalmente independentes e, acredito, apenas o segundo
é de fato sério. Portanto, tratarei do primeiro de um m o­
do um tanto breve.
O prim eiro argumento diz respeito ao que ele deno­
mina princípio da “divisão lingüística do trabalho”, ou se­
ja, o princípio segundo o qual, em qualquer com unidade
lingüística, determ inadas pessoas são mais especializadas
na aplicação de certos termos que outras. Em nossa co­
munidade, por exemplo, algumas pessoas têm mais conhe­
cimento acerca de árvores que outras e, portanto, podem
dizer, por exemplo, quais árvores são faias e quais são
olmos. O utras, com o eu, não conhecem grande coisa
acerca da diferença entre faias e olmos, de m odo que, na
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 281

medida em que haja quaisquer conceitos ligados às pala­


vras “faia” e “olm o”, para mim eles são praticamente os
mesmos. Nos dois casos, tenho o conceito de uma grande
árvore decídua que cresce no leste dos Estados llnidos.
Portanto, segundo Putnam, no meti idioleto o conceito,
ou “intensâo”, é o mesmo, mas a extensão é claramente
diversa. “Faia” denota faias e “olm o” denota olmos: um <
mesmo estado psicológico e extensões diferentes.

l>0
CENTHAL
Não acredito realm ente que qualquer defensor da
posição tradicional fique preocupado com esse argum en­

W*WVEKSIDa [..E FLDHfc-L


to. Dificilmente a tese de que o significado determ ina a
referência poderia ser refutada considerando-se casos de
falantes que nem sequer conhecem o significado, ou co­

Bi3ufU>ffcCA
nhecem-no apenas imperfeitamente. Ou, para afirmar a
mesma coisa de m aneira diferente, as noções de intensão
e extensão não são definidas com relação a idioletos. Tal
como concebida tradicionalmente, uma intensâo, ou Sinn
fregiano, é um a entidade abstrata que pode ser mais ou
menos im perfeitam ente apreendida por falantes indivi­
duais. Todavia, provar que um falante pode não ter apreen­
dido a intensâo ou apreendeu-a apenas imperfeitamente
não prova que a intensâo não determina a extensão, pois
um tal falante tam pouco tem uma extensão pertinente. A
noção de “extensão no meu idioleto” não se aplica aos ca­
sos em que não se conhece o significado da palavra.
Para defender sua posição, Putnam teria de argu­
mentar que a coletividade de estados Intencionais dos fa­
lantes, inclusive os de todos os especialistas ideais, não
determina as extensões corretas. Mas, se o argum ento se
baseia na ignorância lingüística e factual, a própria dou­
trina da divisão lingüística do trabalho pareceria refutar o
argumento desde o início, pois, segundo essa m esm a
doutrina, sem pre que ignorante, um falante pode apelar
aos especialistas: cabe a eles decidir o que é e o que não
282 INTENCIONALIDADE .
\

é um olmo. Ou seja, onde a intensão dele (falante) for


inadequada, ele deixa que a intensão deles (especialistas)
determ ine a extensão. Além disso, se presumirmos que
Putnam sabe que seu argumento é válido, obterem os al­
go muito sem elhante à incoerência que se segue:

1. Meu (de Putnam) conceito de “olm o” = meu conceito


de “faia”

mas

2. A extensão de “olm o” em meu idioleto ^ da extensão


de “faia” em meu idioleto.

Como sei que 2 é verdadeiro? Obviamente, porque

3. Sei que olmos não são faias e que faias não são olmos.

E como sei disso? Sei porque sei que olmos e faias são
duas espécies diferentes de árvore. Por imperfeita que se­
ja a minha apreensão dos conceitos pertinentes, tenho
pelo m enos um conhecim ento conceituai suficiente para
saber que as duas são de espécies diversas. Mas, exata­
m ente por essa razão,

4. O núm ero 3 enuncia um conhecim ento conceituai.

Se esse conhecim ento não é conhecim ento conceituai,


nada é. Portanto,

5. Contrariamente a 1, meu conceito de “olm o” # de meu


conceito de “faia”.

Em seu segundo argumento, mais im portante e in­


fluente, Putnam tenta mostrar que a coletividade de esta-
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 283

dos Intencionais dos falantes talvez seja insuficiente para


determinar a extensão, pois pode haver duas coletivida­
des com o m esm o conjunto de intensões coletivas, mas
com extensões diferentes. Im agine-se que, em um a galá­
xia distante, haja um planeta muito sem elhante ao nosso,

PAJM
com pessoas com o nós que falam um idioma indistinguí­
vel do nosso. Imagine-se ainda que, nessa Terra gêmea,

C tH T R A t
aquilo que eles cham am “ág u a” seja, do ponto de vista

ÜO
perceptivo, indistinguível d o que nós chamamos “água”,

FfcDE^At.
mas que, na verdade, tenha uma com posição química di­
ferente. O q u e na Terra g êm ea tem a d en o m in aç ão
“água” é um com posto quím ico muito complicado, cuja

SfcSUortCA
fórmula podem os abreviar para líXYZ". Segundo as intui-
çôes de Putnam, a expressão “água” na Terra, em 1750,

O ^ V E R R ID a o ê
antes que se soubesse qualquer coisa acerca da com posi­
ção química da água, referia-se a H20 ; e “água”, na Terra
gêmea, em 1750, referia-se a XYZ. Assim, em bora tanto
as pessoas na Terra como na Terra gêm ea estivessem no
ífiesmo estado psicológico em relação à palavra “água”,
tinham extensões diferentes e, portanto, Putnam conclui
que os estados psicológicos não determ inam a extensão.
A maior parte daqueles que criticaram os argum en­
tos de Putnam desafiaram as intuições deste acerca do
que diríamos a respeito do exem plo da Terra gêmea. Mi­
nha estratégia pessoal será aceitar por completo suas in­
tuições para os propósitos da presente discussão e d e­
pois argum entar que elas não conseguem dem onstrar
que os significados não estão na cabeça. Quero, porém,
fazer uma breve digressão para considerar o que diriam
os teóricos tradicionais sobre o argum ento, tal com o
apresentado até agora. Creio que seria algo do gênero:
Até 1750, “água” queria dizer a m esma coisa, tanto na
Terra com o na Terra gêmea, e tinha a mesma extensão.
Após a descoberta de que se tratava de dois com postos
284 INTENCIONALIDADE t

químicos diferentes, um na Terra e outro na Terra gê­


mea, teríamos uma alternativa. Poderíamos definir “água”
como H20 , que foi o que de fato fizemos; ou podería­
mos apenas dizer que há dois tipos cie água, e que na
Terra gêmea a água é concebida diferentem ente da água
na Terra. Com efeito, essas intuições têm alguma base.
Suponhamos, por exemplo, que tenha havido um intenso
intercâmbio entre a Terra e a Terra gêmea, de m odo que
fosse provável que os falantes houvessem encontrado os
dois tipos. Nesse caso, seria provável que concebêssemos
a água com o hoje concebem os o jade. Assim como há
dois tipos de jade, nefrita e jadeíta (exem plo de Putnam),
haveria dois tipos de água, H20 e XYZ. Além disso, pare­
ce que teríamos de pagar um alto preço pela aceitação
das intuições de Putnam. Um grande núm ero de coisas
tem a água com o um de seus com ponentes essenciais, de
moclo que, se a substância existente na Terra gêmea não
é água, presumivelmente sua lama não é lama, sua cerve­
ja não é cerveja, sua neve não é neve, seu sorvete não é
sorvete, etc. Na verdade, se levarmos isso realmente a sé­
rio, parece que sua química seria radicalmente diferente
cia nossa. Na nossa Terra, quando dirigimos um carro ob­
temos H20 , CO e C 0 2 como produtos da com bustão de
hidrocarbonetos. E o que deveria ser expelido pelos au­
tomóveis na Terra gêmea? Creio que um defensor da teo­
ria tradicional pocleria também assinalar que é estranho
que Putnam presum a que “H20 ” é determ inado e que
“água” é problemático. Pode-se muito bem imaginar ca­
sos em que H20 na Terra gêm ea seja ligeiramente dife­
rente do que é na Terra. Contudo, não quero prosseguir
com essas intuições alternativas às de Putnam, mas acei­
tar suas intuições para os propósitos da discussão e se­
guir em frente com sua explicação positiva de com o a
extensão é determinada.
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 285

Na teoria de Putnam, a extensão d e um termo geral


como “água” - e, na verdade, em sua teoria acerca de
qualquer termo geral - é determ inada indexicalmente da
seguinte maneira: identificamos um tipo de substância co­
mo a água por certas características superficiais. Coisas

PANA
como o ser a água um líquido claro, insípido, incolor etc.
O ponto crucial é que a extensão da palavra “água”, por­
tanto, é determ inada como o que quer que seja idêntico

C tM TK A L
DO
em estrutura a essa substância, seja qual for essa estrutu­
ra. Desse modo, segundo tal interpretação, a razão pela

k ai.
qual o term o “água” na Terra gêm ea tem uma extensão

F £ DE
diferente daquela do termo “água” na Terra é que a subs­
tância identificada indexicalmente tem, na Terra gêmea,

S ia L K jf E C A
uma estrutura diversa da que tem na Terra, e “água” é

UH iVER SID AD E
definida sim plesmente como o que quer que guarde com
tal substância uma relação de “m esm o Z”.
Ora, do ponto de vista da teoria tradicional, aonde,
exatamente, nos leva essa argumentação? Mesmo supon­
do-se que Putnam tenha razão acerca de suas intuições,
túdo o que fez foi substituir um conteúdo Intencional por
outro. Substituiu o tradicional conteúdo Intencional forma­
do por um conglom erado-de-conceitos por um conteúdo
Intencional indexical. Em cada caso, é um significado na
cabeça que determina a extensão. Na verdade, a sugestão
de Putnam é uma abordagem bastante tradicional dos ter­
mos de espécie natural: uma palavra é definida ostensiva­
mente como aquilo que guarde a relação certa com a de­
notação da ostensão original. Água foi simplesmente defi­
nida como aquilo que é idêntico em estrutura a essa subs­
tância, qualquer que seja essa estrutura. E trata-se de ape­
nas um caso entre outros em que as intensões, que estão
na cabeça, determinam as extensões.
Segundo a visão lockiana tradicional, a água é defi­
nida (essência nominal) por um inventário de conceitos:
286 INTENCIONALIDADE

liqüido, incolor, insípido, etc. Na proposição de Putnam,


a água é definida (essência real) indexicalmente, identifi­
cando-se algo que satisfaça a essência nominal e em se­
guida declarando-se que a água deve ser definida como
o que quer que tenha a mesma essência real que a subs­
tância assim identificada. Isso pode ser um aperfeiçoa­
m ento em relação a Locke, m as com certeza não d e­
monstra que os significados não estão na cabeça.
Creio que Putnam não veria nisso uma resposta ade­
quada, uma vez que todo o tom de seus escritos sobre o
tema sugere que ele não considera estar propondo uma
variação da visão tradicional de que os significados estão
na cabeça, e sim estar rejeitando a tradição como um to­
do. O interesse dessa discussão para a presente obra só
fica claro quando examinamos os pressupostos subjacen­
tes sobre a Intencionalidade que o levaram a presumir
que a interpretação alternativa do significado que propõe
é, de algum m odo, fundamentalm ente incompatível com
a visão de que os significados estão na cabeça. Procure­
mos expor a posição de Putnam de m odo um pouco
mais claro. Podem os distinguir três teses:
(1) O conglom erado associado de conceitos não de­
termina a extensão,
(2) A definição indexical determ ina a extensão,
(3) O que está na cabeça não determ ina a extensão.
Ora, (3) não decorre cle (1) e (2). Para supor que de­
corre, é preciso pressupor que a definição indexical não
está na cabeça. Putnam usa (1) e (2) para argumentar a
favor de (3), adm itindo com isso que a definição indexi­
cal não está na cabeça. Ora, e por que razão ele pensa
isso? Por que razão considera que, no caso dessas defini­
ções indexicais, o que está na cabeça não determ ina a
extensão? Acredito haver duas razões pelas quais ele faz
esse deslocam ento falacioso. Em primeiro lugar, presum e
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 287

que, um a vez q ue d esconhecem os a m icroestrutura e


uma vez que é esta que determ ina a extensão, o que está
na cabeça é insuficiente para determiná-la.
Mas isso, creio eu, é sim plesm ente um equívoco-, e
podemos esclarecer em que sentido é um equívoco consi­
derando o exemplo que se segue. A expressão “O assassi­
no de Brown” tem uma intensão que determina como sua
extensão o assassino de Brown3. A intensão, “O assassino
de Brown”, fixa a extensão, ainda que seja um fato sobre o
mundo quem assassinou Brown. Para alguém que desco­
nheça quem assassinou Brown, a extensão da expressão
“O assassino de Brown” continua sendo o assassino de
Brown, ainda que desconheça sua identidade. Ora, analo­
gamente, o conteúdo Intencional “idêntico em estrutura a
essa substância (inclexicalmente identificada)” é um conteú­
do Intencional que detenninaria uma extensão, ainda que
desconhecêssemos o que é essa estrutura. A teoria de que
a intensão determina a extensão é a teoria de que as inten-
sões estabelecem certas condições que determinada coisa
tem de satisfazer para poder ser parte da extensão da in-
tensão relevante. Mas essa condição é satisfeita pelo exem­
plo de Putnam: a definição indexical de água tem um con­
teúdo Intencional, ou seja, estabelece determinadas condi­
ções que qualquer amostra em potencial deve satisfazer pa­
ra poder fazer parte da extensão de “água”, exatamente no
m esm o sen tid o em que a exp ressão “O assassino de
Brown” estabelece certas condições que qualquer candida­
to em potencial deve satisfazer para poder ser a extensão
de “O assassino de Brown”. Em ambos os casos, porém,
trata-se de um fato sobre o m undo se alguma das entida­
des existentes satisfaz ou não o' conteúdo Intencional. Por­
tanto, é simplesmente um erro supor que, como definimos
“água” em termos de uma microestrutura desconhecida, a
intensão não determina a extensão.
288 INTENCIONALIDADE
*

Mas há um a segunda razão, m ais profunda, pela


qual Putnam supõe que sua análise dem onstra que os
significados não estão na cabeça. Ele faz certas pressupo­
sições acerca da natureza dos conteúdos Intencionais e a
natureza das expressões indexicais, especialm ente sobre
o m odo com o os conteúdos Intencionais se relacionam
com as expressões indexicais, que devem os exam inar
agora. Tais pressuposições surgem quando ele diz:

Para essas palavras (indexicais) ninguém jamais sugeriu a teo­


ria tradicional cle que “a intensâo determina a extensão”. Em
nosso exem plo da T e m Gêmea, se eu tiver um Doppelgän­
ger na Terra Gêmea, quando eu pensar: “estou com dor de
cabeça”, ele pensa, “estou com dor de cabeça”. Mas a exten­
são da ocorrência particular do termo “eu” no seu pensa­
mento verbalizado é ele mesmo (ou sua classe de unidade,
para sermos precisos), ao passo que a extensão da ocorrên­
cia de “eu ” no m eu pensamento verbalizado sou eu (ou a
minha unidade de classe, para sermos precisos). Portanto, a
mesma palavra, “eu”, tem duas extensões diversas em dois
idioletos diversos; mas disso não decorre que o conceito
que tenho de mim mesmo é de algum m odo diverso do
conceito que meu Doppelgänger tem de si mesmo4.

A passagem acima deixa claro que Putnam presume que


a visão tradicional de que o que está na cabeça determ i­
na a extensão não pode ser aplicada aos indexicais e que
se dois falantes, eu e m eu Doppelgänger; temos estados
mentais tipo-idênticos, nossos estados devem ter as m es­
mas condições de satisfação. Creio que ambos os pressu­
postos são falsos. Quero argumentar, em primeiro lugar,
que se por “intensâo” referimo-nos ao conteúdo Intencio­
nal a intensâo da emissão de um a expressão indexical
precisam ente determ ina extensão; e, em segundo lugar,
que, nos casos perceptivos, duas pessoas podem estar
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 289

em estados m entais tipo-idênticos — na verdade, p o d e­


mos até supor que um homem e seu Doppelgänger sejam
de tipo-idênticos até a última micropartícula - e mesmo
assim seus conteúdos Intencionais podem ser diferentes;
podem ter diferentes condições de satisfação. Tanto a In­

PAHA
tencionalidade perceptiva como a indexicalidacle são ca­
sos de auto-referencialidade do conteúdo Intencional ou
semântico. Examinaremos a auto-referencialidade das pro­

CENTRAL
üO
posições inclexicais mais adiante neste mesmo capítulo.
Para nossos presentes propósitos, basta lembrarmo-nos da
auto-referencialidade causal da experiência perceptiva
que examinamos nos capítulos 2 e 4 e mostrar cie que
m odo é relevante para o argumento da Terra gêmea.

BlBLlOrtCA
Suponham os que em 1750, na Terra gêmea, Jones

UNIVEfrüIDAL-E
identifique algo indexicalmente e o batize como “água”, e
que o Jones gêm eo na Terra gêm ea também identifique
algo indexicalm ente e o batize de “água”. Suponhamos
também que ambos tenham conteúdos mentais e experiên­
cias visuais e outras tipo-idênticos ao estabelecerem a
identificação indexical. Ora, como os dois dão as mesmas
definições tipo-idênticas, ou seja, a “água” é definida co­
mo o que quer que seja idêntico em estrutura a essa subs­
tância, e como ambos estão tendo experiências tipo-idên-
ticas, Putnam supõe que não podem os explicar de que
modo a água tem uma extensão diferente na Terra e na
Terra gêmea em termos de seus conteúdos mentais. Se as
experiências de ambos são as mesmas, como podem ser
diferentes seus conteúdos mentais? Na interpretação cla
Intencionalidade apresentada neste livro, a resposta para
este problema é simples. Embora tenham experiências vi­
suais de tipo-idênticas nas situações em que a água é
identificada indexicalmente por cada um, seus conteúdos
Intencionais não são tipo-idênticos. Ao contrário, seus
conteúdos Intencionais podem ser diferentes porque ca-
290 INTENCIONALIDADE
K

da conteúdo Intencional é causalmente auto-referente no


sentido por mim explicado anteriormente. As definições
indexicais de “água” dadas por Jones na Terra podem ser
analisadas da seguinte maneira: a “água” é definida inde-
xicalmente com o o que quer que seja idêntico em estrutu­
ra à substância causadora dessa experiência visual, seja
qual for tal estrutura. E, para o Jones gêmeo na Terra gê­
mea, a análise é: a água é definida indexicalmente como
o que quer que seja idêntico em estrutura à substância
causadora dessa experiência visual, seja qual for tal estru-
tuia. Assim, em cada caso, temos experiências de idêntico
tipo, emissões de idêntico tipo mas, na verdade, em cada
caso uma coisa diferente é significada. Ou seja, em cada ca­
so as condições de satisfação estabelecidas pelo conteúdo
mental (na cabeça) é diferente por causa da auto-referen-
cialidade causal das experiências perceptivas.
Não decorre da presente interpretação que falantes
diferentes na Terra devam significar coisas diferentes com
o termo “água”. A maioria das pessoas não sai por aí ba­
tizando espécies naturais, mas tão-som ente tenciona usar
as palavras para significar e referir do mesmo m odo que
a com unidade em geral, incluindo os especialistas, usa as
palavras para significar e referir. E, m esm o quando há
tais batismos públicos, estes costumam envolver, do lado
dos participantes, experiências partilhadas, visuais e de
outras espécies, dos tipos que discutimos no capítulo 2.
Mas a interpretação tem, efetivamente, como conseqüên­
cia que, ao fazer definições indexicais, falantes diferentes
podem estar significando coisas diferentes, pois seus con­
teúdos Intencionais são auto-referentes às experiências
Intencionais de ocorrência. Concluo, portanto, que m es­
mo que aceitemos todas as suas intuições - o que não é
o caso para muitos de nós nào - os argumentos de Put-
nam não dem ostram que os significados não estão na ca­
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 291

beça. Ao contrário, sua contribuição foi apresentar uma


interp retação In tencionalista alternativa, baseada nas
apresentações indexicais, dos significados de uma certa
classe de termos gerais.

II. HAVERÁ CRENÇAS IRREDUTIVELMENTE DE RE?1’

PA**
Nunca deparei com um enunciado claro e preciso

Ctr+TR A L
do que se supõe ser, exatamente, a distinção de dicto/de

ÜO
re, quando aplicada às atitudes proposicionais. Talvez haja
tantas versões diferentes de tal distinção quanto autores
sobre o tema e, com certeza, as noções ultrapassaram lar­
gam ente o significado literal dos termos latinos, “de pala­

S iB u .IOi !. ECA
*
vras” e “de coisas”. Suponhamos que se acredite, com o
eu, que todos os estados Intencionais sejam inteiramente

U*UVEKSiD»Ofc
constituídos por seu conteúdo Intencional e seu m odo
psicológico, am bos na cabeça. Em uma interpretação tal,
todas as crenças são de dicto. São inteiramente individua-
*das por seu conteúdo Intencional e seu modo psicológi­
co. Todavia, algumas crenças, na verdade estão relacio­
nadas a objetos reais no m undo real. Pode-se dizer que
tais crenças são de re, no sentido de que se referem a ob­
jetos reais. As crenças de re seriam uma subclasse das
crenças de dicto e a expressão “crença de dicto" seria re­
dundante, um a vez que significa simplesmente crença.
Segundo essa visão, a crença na visita de Papai Noel
na noite de Natal e a crença de que De Gaulle foi Presi­
dente da França seriam, ambas, de dicto e a segunda se­
ria também de re, dado que se refere a objetos reais, De
Gaulle e França.
Uma tal interpretação da distinção de dicto/de re não
geraria em mim oposição alguma. Mas, desde o artigo
original de Q uine6, diversas interpretações na literatura fi-
292 INTENCIONALIDADE
X

losófica defendem uma tese muito mais ousada: a idéia


intuitiva é que, além da classe das crenças de dicto, intei­
ramente individuadas por seus conteúdo e modo, pelo
que está na cabeça, há uma classe de crenças para a qual
o que está na cabeça é insuficiente para individuá-las,
por envolverem relações entre quem crê e os objetos co­
mo paite da identidade da crença. Tais crenças não cons­
tituem uma subclasse das crenças de dicto, mas são irre-
dutivelmente de re. Crenças puram ente de dicto poderiam
ser sustentadas p o r um cérebro em um a cuba; elas inde­
pendem de com o o m undo de fato é. Mas as crenças de
re, segundo essa visão, são relações entre crentes e obje­
tos; para elas, se o m undo fosse diferente em certos mo­
dos, as próprias crenças seriam diferentes, embora o que
estivesse na cabeça perm anecesse inalterado.
Tanto quanto posso dizer, há pelo menos três conjun­
tos de considerações que levam as pessoas à idéia de que
há crenças irredutivelmente de re. A primeira é que parece
haver uma classe de crenças referentes, de modo irredutí­
vel, a objetos, isto é, crenças que relacionam o crente a um
objeto e não apenas a uma proposição e, nesse sentido,
são mais de re que de dicto. Por exemplo, suponham os
que George Bush acredite que Ronald Reagan é Presidente
dos Estados Unidos. Ora, trata-se claramente de um fato re­
ferente a Bush, mas, nessas circunstâncias, não seria igual­
mente um fato referente a Reagan? Não será um fato claro
referente a Reagan que Bush acredita ser ele Presidente?
Além disso, não há como explicar o fato simplesmente em
termos de fatos referentes a Bush, incluindo-se nestes os
fatos que o relacionam a proposições. O fato em questão é
enunciado por uma proposição na forma

Referente a Reagan, Bush acredita ser ele Presidente dos


Estados Unidos
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 293

ou, de maneira mais pretensiosa,

Reagan é tal que Bush acredita em relação a ele (of him)


que ele é Presidente dos Estados Unidos.

Tais proposições, que descrevem crenças de re, permitem

P AMA
a quantificação em contextos de crença; ou seja, cada
uma permite uma inferência de que

CENTRAL
DU
(3„r) (Bush acredita (y é Presidente dos Estados Unidos)
relacionado a (of) x)

FEDURal
De acordo com a opinião aceita, tanto nossa teoria lógica
como nossa teoria da mente nos com pelem a uma análi­

B.BL.lurtCA
se tal.
Em segundo lugar, há uma clara distinção entre as

UNlVFRSlD/Af.E
atitudes proposicionais direcionadas a objetos particula­
res e aquelas que não o são. No exem plo cie Quine, pre­
cisamos estabelecer uma distinção entre o desejo que um
Jiomem poderia ter por uma chalupa em que qualquer
chalupa velha serve e o desejo que um hom em poderia
ter que estivesse direcionado a um a chalupa em particu­
lar, a chalupa Nellie ancorada na Marina de Sausalito. No
primeiro desejo, ou desejo de dicto , o hom em procura -
com o diz Quine - mais um “alívio para a falta de chalu­
p a” e no segundo, o desejo de re, seu desejo o relaciona
a um objeto em particular. A diferença, segundo Quine, é
expressa nas duas sentenças seguintes7:

de dicto-, Eu desejo que (3x) (x é uma chalupa & eu tenho x)


de re-, (3 x ( x é uma chalupa e eu desejo ter x))

Em terceiro lugar - o que acredito ser o mais im por­


tante -, supõe-se haver uma classe de crenças que con­
têm um elem ento “contextuai”, “nâo-conceitual”, e que
294 INTENCIONALIDADE

por essa razão não estão sujeitas a um a explicação inter-


nalista ou de dicto. Tal como escreve Tyler Burge8, “uma
crença de re é uma crença cuja correta atribuição põe o
crente em um a relação nâo-conceitual apropriada com
os objetos sobre os quais versa a crença... O ponto crucial
é que a relação não seja m eram ente de conceitos como
conceitos do objeto - conceitos que o denotam ou se
aplicam a ele” (os primeiros itálicos são meus). Segundo
Burge, tais crenças não podem ser completa ou exausti­
vam ente caracterizadas em termos de seus conteúdos In­
tencionais, pois, com o diz ele, há elem entos contextuais
e nào-conceituais cruciais para a identidade da crença.
Creio que essas três razões podem ser respondidas
sem hesitação e que as três corporificam várias noções
confusas da Intencionalidade. Começarei com o terceiro
conjunto de razões, dado que uma discussão deste pre­
para o caminho para uma discussão dos dois primeiros; e
limitarei minhas observações a Burge, por ser ele quem
apresenta o mais sólido enunciado da tese referente às
crenças de re que conheço.
Implícito na interpretação de Burge há um contraste
entre o conceituai e o contextuai. Uma crença plenam en­
te conceituai é de dicto e totalmente analisável em termos
gerais. Uma crença contextuai é individuada em parte p e ­
las relações entre o crente e os objetos no m undo, e,
portanto, é de re. Sua estratégia é argumentar, por meio
de exemplos, que há crenças não plenam ente conceituais,
mas são contextuais. Concordo em que há crenças que
não são plenam ente conceituais, no sentido em que não
constituem descrições verbais em termos gerais, mas isso
não dem onstra que sejam contextuais ou de re na acep­
ção de Burge. Além das duas opções de “conceituai” ou
“contextuai”, há uma terceira possibilidade; há formas de
Intencionalidade não genéricas mas particulares, e que,
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 295

mesmo assim, estão inteiram ente na cabeça, são inteira­


mente internas. A Intencionalidade pode conter elem en­
tos auto-referentes tanto do tipo causal, que considera­
mos em nossa discussão da percepção, da memória, da
intenção e cia ação, com o do tipo indexical, à qual fiz
uma breve alusão na discussão sobre Putnam e que vol­
tarei a m encionar mais adiante neste capítulo. Creio que
uma correta co m preensão da auto-referencialidade de
certas formas de Intencionalidade bastará para explicar
todos os exem plos de crenças supostam ente de re apre­
sentados por Burge, visto que em cada caso é possível
demonstrar que o conteúdo Intencional explica por intei­
ro o conteúdo da crença. E essa é apenas outra maneira
de dizer que, no sentido pertinente, a crença é de dicto.
Seu primeiro exem plo é o de um hom em cuja apro­
ximação em meio a uma neblina revolta é avistada a dis­
tância. Desse exem plo ele diz: “Pode-se dizer plausivel-
mente que, a seu respeito, acreditam os que está usando
um boné vermelho, mas não vem os o hom em com sufi­
ciente nitidez para descrevê-lo ou formar uma imagem
dele de modo a individuá-lo plenam ente. É claro que p o ­
demos individuá-lo ostensivamente com a ajuda de des­
crições que p o d em os aplicar, m as não há razão para
acreditarmos que sem pre podem os descrever ou concei-
tualizar as entidades ou posições espaço-tem porais nas
quais nos apoiam os para fazer nossa dem onstração”.
Considero esse trecho altam ente revelador, um a vez
que não diz absolutam ente nada sobre o conteúdo Inten­
cional da própria experiência visual, que, no caso, faz
parte do conteúdo da crença. Uma vez entendido que a
experiência visual tem um conteúdo proposicional cau-
salmente auto-referente, não é preciso preocupar-se com
a “descrição” ou “conceitualização” cie coisa alguma em
palavras para se inclividuar o homem: o conteúdo Inten­
296 INTENCIONALIDADE

cional da experiência visual já o fez. Em minha interpre­


tação, o conteúdo Intencional (de dictó) da experiência
visual prom ove a individuação do hom em e tal conteúdo
faz parte do conteúdo (de dictó) da crença. O conteúdo
Intencional de dicto pertinente da crença pode ser ex­
presso da seguinte maneira:

(Há um hom em ali presente causando essa experiência vi­


sual e esse hom em está usando um boné vermelho).

Nesse caso, os elementos “contextuais” estão de fato


presentes, mas são plenamente internalizados, no sentido
de fazerem parte do conteúdo Intencional. Observe-se que
essa crença de dicto basta plenam ente para individuar
qualquer suposto análogo de re, mas, ao mesmo tempo, é
compatível com a hipótese de que não haja homem algum
presente. Uma crença tal poderia ser sustentada por um
cérebro em uma cuba. Poder-se-ia objetar que esta análise
tem como conseqüência a impossibilidade, em princípio,
de duas pessoas diferentes terem a mesma crença percep-
tiva. Mas tal conseqüência não decorre, pois o mesmo ho­
mem pode fazer parte das condições d.e satisfação de duas
crenças perceptivas diferentes; pode até ser parte do con­
teúdo de duas crenças perceptivas que tenham exatamen­
te o mesmo hom em como parte de suas condições de sa­
tisfação. Assim, no caso de experiências visuais comparti­
lhadas, posso acreditar não só que estou vendo um ho­
mem e que você está vendo um homem, como também
que nós dois estamos vendo o mesmo homem. Nesse ca­
so, as condições de satisfação exigem não apenas que haja
um homem presente a causar minha experiência visual,
mas que o mesmo homem esteja também causando a sua
experiência visual. Obviamente, nossas crenças serão dife­
rentes no sentido trivial de que qualquer conteúdo percep-
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS íVA CABEÇA? 297

tivo auto-referente faz referência a uma ocorrência particu­


lar e não a ocorrências qualitativamente semelhantes, mas,
cie qualquer modo, trata-se de um resultado que deseja­
mos, uma vez que, q u an d o você e eu com partilham os
uma experiência visual, o que compartilhamos é um con­

PAR*
junto comum de condições de satisfação e não as mesmas
experiências visuais de ocorrências. A sua experiência será
numericamente diferente da minha, ainda que sejam am­

CENTRAL
DO
bas qualitativamente semelhantes.
A classe seguinte d e casas considerada por Burge é

FkLCcK"L
a dos indexicais. Seu exem plo é o do homem que acredi­
ta, a respeito clo m om ento presente, que está no século
XX. Mas isso está sujeito a uma análise Intencionalista

BtBUOTECA
form alm ente sem elhante à que apresentam os no caso
perceptivo. Como antes, o m étodo em pregado nesse ca­

UNlVEPSlD^t
so é sem pre perguntar-se o que deve ocorrer para que o
estado Intencional seja satisfeito. No caso da percepção
visual, a própria experiência visual deve figurar causal-
mente nas condições de satisfação. No caso dos indexi-
tais há uma auto-referencialidade análoga, embora nesse
caso não seja causal. As condições de verdade de “Este
m om ento está situado no século XX” são que o m om ento
dessa emissão esteja situado no século XX. Assim com o o
caso perceptivo é auto-referente à experiência, o caso in-
dexical é auto-referente à emissão. Apresso-me em acres­
centar que esse enunciado das condições de satisfação
não é entendido como um a tradução da sentença origi­
nal: não estou dizendo que “este m om ento” sim plesmen­
te significa “o m om ento dessa em issão”. Antes, estou ar­
gum entando que o operador indexical na sentença indi­
ca, em bora não represente nem descreva, a forma da au-
to-referencialidade. A auto-referencialidade das expressões
indexicais, nesse sentido, é mostrada, mas não dita, as­
sim como a auto-referencialidade da experiência visual é
298 INTENCIONALIDADE

“m ostrada”, mas não “vista”. No caso do enunciado das


condições de satisfação, descrevo, ou represento, ou digo
o que foi indicado ou m ostrado no original.
Concluo, portanto, que não há nada de irredutivel-
m ente de re nas crenças perceptivas ou indexicais. Elas
estão sujeitas a uma análise Intencionalista ou análise de
dicto e o engano de se supor a existência de conjuntos
irredutivelmente de re de crenças perceptivas ou indexi­
cais parece basear-se na suposição de que todas as análi­
ses Intencionalistas de dicto devem ser apresentadas com
o uso de palavras puram ente genéricas. Uma vez explica­
das as formas auto-referentes da indexicalidade e da ex­
periência perceptiva, é fácil perceber que há formas de
Intencionalidade em que os conteúdos Intencionais são
suficientes para determ inar todos os conjuntos de condi­
ções de satisfação, mas não fazem isso fixando condições
puram ente gerais, mas sim indicando relações que o res­
to das condições de satisfação deve guardar com o pró­
prio estado ou evento Intencional.
Logo, o diagnóstico do engano com etido pelos teóri­
cos das crenças de re que se baseiam nas crenças percep­
tivas e indexicais é o seguinte: eles vêem corretamente
que há uma classe de crenças que não pode ser explica­
da em termos puram ente gerais. Vêem também que tais
crenças dependem de características contextuais e então,
equivocadam ente, supõem que tais características contex­
tuais não podem , elas mesmas, ser inteiram ente repre­
sentadas como parte do conteúdo Intencional. Após te­
rem confrontado o conceituai (em termos gerais) com o
contextuai (que envolve o m undo real), ignoram a possi­
bilidade de uma interpretação totalmente internalista das
crenças não-conceituais. A idéia que defendo é a de que
há formas de Intencionalidade que não são conceituais,
mas tam pouco são de re.
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 299

Estou convencido de que parte cla dificuldade nesse


aspecto vem dessa term inologia arcaica que aparente­
m ente nos força a escolher entre as concepções de que
todas as crenças são em palavras (dieta) e que algumas
envolvem coisas (res). Podemos sair disso se distinguir­
mos entre diversas perguntas diferentes. A pergunta “Se­
rão todas as crenças de dicto ?” tende a oscilar entre pelo
menos quatro interpretações diferentes:
1. Serão todas as crenças expressáveis em term os
puram ente genéricos?
2. Todas as nossas crenças ocorrem -nos em palavras
que bastam para esgotar seu conteúdo?
3. Todas as nossas crenças consistem inteiram ente
em um conteúdo Intencional?
4. Será que algumas crenças relacionam o crente di­
retam ente com um objeto, sem a mediação de um
conteúdo Intencional que seja suficiente para indi-
viduar o objeto? Serão elas tais que uma mudança
no m undo acarretaria necessariam ente um a mu-
1 dança na crença, mesmo que o que esteja na ca­
beça perm aneça inalterado?
A resposta para as primeiras duas perguntas é não: a pri­
meira, porque muitas crenças contêm essencialmente ter­
mos singulares, tal com o verem os em nossa discussão
dos indexicais, e a segunda porque muitas crenças con­
têm, por exemplo, um conteúdo perceptivo, tal com o vi­
mos no caso em que uma crença contém uma experiên­
cia visual com o parte de seu conteúdo. Mas uma resposta
negativa para as primeiras duas perguntas não implica
uma resposta negativa para a terceira: uma crença pode
ser exaustivamente caracterizada por seu conteúdo Inten­
cional e ser, nesse sentido, uma crença de dicto, ainda
que não seja caracterizável em termos genéricos e conte­
nha formas não-verbais de Intencionalidade. Se por de
300 INTENCIONALIDADE

dicto entendem os verbal, em palavras, nem todas as cren­


ças são de dicto, mas disso não decorre que haja crenças
irredutivelmente de re, pois uma resposta negativa para
as primeiras duas perguntas não acarreta uma resposta
negativa para a quarta. Se a resposta para 3 é sim, ou se­
ja, se, como acredito, todas as crenças consistem inteira­
m ente em seu conteúdo Intencional, é coerente afirmar
que a resposta para 1, 2 e 4 é.não. No sentido de de dic­
to acima, há algumas crenças que não são de dicto (em
palavras), mas isso não dem onstra que haja crença algu­
ma irredutivelmente de re, pois em outro sentido de de
dicto (conteúdo Intencional) todas as crenças são de dic­
to (o que demonstra, entre outras coisas, que essa termi­
nologia é confusa).
Com esses resultados, podem os agora dedicar-nos
aos outros dois argumentos em favor da crença em atitu­
des irredutivelm ente de re. O prim eiro argum ento diz,
corretamente, que é um fato referente a Ronald Reagan
que Bush acredita ser ele Presidente. Mas em que consis­
te tal fato? Em minha interpretação, consiste simplesmente
no fato de que Bush acredita na proposição de dicto de
que Ronald Reagan é Presidente dos Estados Unidos e
que Ronald Reagan satisfaz o conteúdo Intencional asso­
ciado ao uso, por Bush, do nom e “Ronald Reagan”. Parte
desse conteúdo é perceptivo, parte indexical, e grande
parte é causal; mas todo ele é de dicto, no sentido em
que consiste inteiramente em um conteúdo Intencional.
Bush poderia ter tido exatam ente a mesma crença se Ro­
nald Reagan jamais houvesse existido e tudo, percepções
e todo o resto, não tivesse passado de uma enorme aluci­
nação. Em tal caso, Bush teria tido uma grande quantida­
de de conteúdos perceptivos, indexicais e causais a que
nada satisfaria.
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 301

O argum ento de Quine, acredito, baseia-se em uma


visão que confunde a distinção entre atitudes proposici-
onais particulares e genéricas com a distinção entre ati­
tudes proposicionais de dicto e de re. Há de fato uma
distinção entre os estados Intencionais que fazem refe­
rência a um objeto em particular e os que não o fazem. ^
Em cada caso, porém , o estado é de dicto. Segundo essa
posição, a sentença que Q uine apresenta para expressar 1*
a atitude de re não pode ser correta, pois a sentença que

DO
C ê NTHAL
expressa o desejo por uma chalupa em particular é in­
completa: de m odo algum um agente pode ter um dese­
jo por um objeto em particular sem representar esse ob­
jeto para si m esm o de alguma maneira, e a formalização
de Quine não nos revela de que m odo o objeto é repre­

©iBUUTECA
sentado. No exem plo, tal com o apresentado, o agente

VNIVERSIDa l-fc
teria de ter um a crença na existência de um a chalupa
em particular e um desejo de ter essa mesma chalupa. A
única maneira de expressar a relação entre a crença na
existência de um a chalupa em particular e o desejo de a
têr, na notação quantificadora, é permitir que o escopo
do quantificaclor intercepte o escopo dos operadores In­
tencionais. Q ue essa é a m aneira correta de se represen­
tar os fatos é pelo m enos sugerido pelo fato de que as­
sim expressaríamos o estado m ental do hom em na lin­
guagem ordinária. Suponham os que o hom em que quer
uma chalupa em particular desse expressão a todo o seu
estado mental, inclusive à sua representação da chalupa.
Ele poderia dizer

Há uma chalupa muito boa na marina e, com certeza, eu


gostaria de a ter.

Os estados m entais expressos por ele seriam, primeiro,


uma crença na existência de um a chalupa em particular
302 INTENCIONALIDADE

e, segundo, um desejo de ter essa chalupa. Em lingua­


gem comum,

Eu acredito que há uma chalupa muito boa na marina e


gostaria de a ter.

Observe-se que, na formulação acima, o escopo do quan-


tificador no conteúdo da crença estende-se para o conteú­
do do desejo, ainda que este não pertença ao escopo da
crença. Assim, usando colchetes para o escopo dos ver­
bos Intencionais, parênteses para o quantificaclor e F p a­
ra o conteúdo Intencional que identifica a chalupa em
questão, temos:

Cren l(3x) ((chalupa x & Fx) & (VyXchalupa y & Fy ->• y =


xj] & Des [ter x})

Essa forma de dicto representa todo o conteúdo do dese­


jo direcionado a um objeto particular.
Até agora consideram os e rejeitam os alguns argu­
mentos a favor da crença nas atitudes proposicionais de
re. Quero concluir com um diagnóstico wittgensteiniano
do que acredito serem as motivações mais profundas, p o ­
rém não declaradas, para a crença em atitudes irreduti-
velmente de re. A crença em ciois tipos fundam entalm en­
te diversos de atitudes proposicionais, de re e de dicto ,
deriva da possibilidade proporcionada por nossa lingua­
gem de apresentar dois tipos diversos de relatos de atitu­
des proposicionais, relatos de re e relatos de dicto. Supo­
nhamos, por exemplo, que Ralph acredita que o hom em
de chapéu m arrom é um espião9. Assim, em relação à
crença de Ralph podem os dizer, “Em referência ao ho­
m em de chapéu marrom, Ralph acredita ser ele um es­
pião”, ou então, “Ralph acredita que o hom em de chapéu
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 303

marrom é um espião”. O primeiro relato compromete a


nós, os relatores, com a existência do hom ein de chapéu
marrom. O segundo com prom ete-nos apenas com o rela­
to do conteúdo da crença de Ralph. Ora, uma vez que as
sentenças sobre crenças podem diferir desse modo, p o ­
dendo até possuir diferentes condições de verdade, so­
mos levados a pensar que deve haver um a diferença nos
fenômenos relatados. Observe-se, porém , que a distinção
que podem os estabelecer entre o relato de re da crença
de Ralph e o relato de dicto não é um a distinção que
Ralph possa fazer. Suponhamos que Ralph diga, “Em re­
ferência ao hom em de chapéu marrom, acredito ser ele
um esp ião ”, ou que diga, “Acredito que o hom em de
chapéu marrom seja um espião”. Do ponto de vista de
Ralph, isso equivale a exatam ente a mesma crença. Ima-
gine-se a insensatez do diálogo seguinte:

Quine: Em referên c ia ao h o m em de ch ap éu m arrom ,


Ralph, você acredita ser ele um espião?
Ralph: Não, Quine, você me perguntou se sustento uma
crença de re, mas não é em referência ao hom em
de chapéu marrom que acredito ser ele um espião.
Antes, acredito na crença de dicto, acredito que o
hom em de chapéu m arrom é um espião.

Assim com o a crença de que os estados Intencio-


nais-com-c de algum m odo são, intrinsecamente, entida­
des intensionais-com -s baseia-se na confusão entre as
propriedades lógicas dos relatos de estados Intencionais
e as propriedades lógicas dos próprios estados Intencio­
nais, a crença na existência dois tipos diferentes de esta­
dos Intencionais, de re e de dicto, baseia-se na confusão
entre dois tipos diferentes de relato de estados Intencio­
nais, os relatos de re e de dicto, e as características lógi-
304 INTENCIONALIDADE

cas dos próprios estados. Concluo, portanto, que existe


uma genuína distinção de dicto/de re, mas trata-se apenas
de uma distinção entre tipos de relato. Se as atitudes pro-
posicionais de re são supostam ente aquelas em que o
conteúdo Intencional é insuficiente para individuar o es­
tado mental, segue-se que não existem atitudes proposi-
cionais de re, em bora haja relatos de re de atitudes pro-
posicionais, no sentido em que há relatos que com pro­
metem o relator com a existência dos objetos sobre os
quais versam as atitudes proposicionais.

III. EXPRESSÕES INDEXICAIS

Tanto em nossa discussão do ataque de Putnam ao


internalismo na semântica quanto na discussão da supos­
ta existência de crenças irredutivelmente de re, sugerimos
um a interpretação das expressões indexicais; chegou o
m om ento de explicitá-la plenam ente.
Há pelo m enos uma grande diferença entre o p ro ­
blema das atitudes de re e o problem a dos indexicais:
não existem atitudes proposicionais irredutivelmente de
re, mas há de fato expressões indexicais e proposições
indexicais. Nesta seção, portanto, a estratégia será dife­
rente daquela adotada nas seções precedentes. Em pri­
meiro lugar, precisamos desenvolver uma teoria dos in­
dexicais, em segundo, fazê-lo de m aneira a mostrar de
que modo ela se enquadra na interpretação geral da In­
tencionalidade desenvolvida neste livro; e, em terceiro,
ao fazê-lo, resp o n d er às interpretações dos indexicais
que afirmam ser impossível assimilá-los a uma interpreta­
ção internalista ou fregiana da linguagem . Com eçarei
com alguns dos argumentos dos oponentes.
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 305

Vários autores, notadam ente Perry10 e Kaplan11, sus­


tentam que há conteúdos de pensam ento essencialmente
indexicais. Considere-se, por exemplo, a crença que eu
poderia ter se viesse a acreditar que, inadvertidamente,
estou sujando todo o supermercado derram ando açúcar
de meu carrinho. Se viesse a acreditar que estou sujando
o supermercado, o conteúdo de m eu estado Intencional
pareceria conter um elemento indexical essencial; e isso
é revelado pelo fato cle que nenhum a paráfrase de minha
crença, em nenhum termo não-indexical, capturaria exa­
tamente a crença que tenho quando acredito estar sujan­
do o superm ercado. Se eu tentar especificar a crença
com o uso de coordenadas de espaço e tempo, não serei
capaz de especificar o conteúdo de minha crença. Por
exemplo, o fato de possuir a crença de que a pessoa p
está sujando o local / e num tempo t não explicaria como
o meu comportamento se modifica quanclo descubro que
sou eu quem está sujando o supermercado, uma vez que
eu poderia ter a crença de que alguma pessoa que satisfaz
certas coordenadas espaço-temporais está sujando o su­
perm ercado sem me dar conta de que sou eu. Observa­
ções análogas aplicam-se a descrições claramente defini­
das e nomes próprios: a crença de que estou sujando o
supermercado não é a mesma que a crença de que o úni­
co filósofo sem barba está sujando o superm ercado de
Berkeley ou que a crença de que JS está sujando o super­
mercado de Berkeley, pois eu poderia ter essas crenças
sem saber que sou o único filósofo sem barba no super­
mercado de Berkeley, ou que sou JS. Portanto, o conteúdo
de minha crença parece-me ser essencialmente indexical.
Tenho a certeza de que tanto Perry como Kaplan es­
tão cônscios de que, até aqui, nada há de antifregiano ou
antiinternalista nessa tese. Na verdade, parece um exem ­
plo paradigmático da distinção cle Frege entre sentido e
referência. Assim com o a proposição de que a Estrela
306 INTENCIONALIDADE

Vespertina brilha perto do horizonte é diferente da pro­


posição de que a Estrela Matutina brilha perto do hori­
zonte, a proposição de que estou sujando o superm erca­
do é diferente da proposição de que JS está sujando o
supermercado. Até aqui, tudo fregiano.
Em seguida vem a tese antifregiana. Segundo Perry12
e Kaplan1-’, não há maneira de um fregiano poder explicar
esses conteúdos intencionais essencialm ente indexicais,
pois nesses casos não há um “sentido fregiano concluden­
te” que baste, por si só, para determinar as condições cle
satisfação. Para esclarecer e fundam entar essa alegação,
Perry introduz o seguinte tipo de exemplo: suponham os
que David Hume acredite, “Eu sou David Hum e”. Supo­
nham os tam bém que Heimson acredite, “Eu sou David
Hume” e, apenas para imaginarmos um caso extremo, su­
ponham os que Heimson seja o Doppelgänger de David
Hume na Terra gêm ea e que tenha estados mentais idênti­
cos em tipo aos de David Hume; podem os até supor que
eles sejam idênticos até a última micropartícula. Ora, a
sentença que tanto Heimson quanto David Hume emitem
(ou pensam), “Eu sou David Hum e”, tem o mesmo sentido
fregiano nas duas ocasiões e tanto Heimson como Hume
vivem estados mentais de idêntico tipo. Mas as proposições
expressas têm cle ser diferentes, pois têm valores cle verda­
de diferentes. A de Hume é verdadeira e a de Heimson
falsa. Há um sentido fregiano na sentença, “Eu sou David
Hume”, mas não basta para determinar qual proposição é
expressa. Desses exemplos, Kaplan e Peny concluem que
a interpretação fregiana d.e sentido e referência e a inter­
pretação fregiana das proposições deve ser inadequada
para explicar os indexicais. Uma vez que o expresso nes­
sas emissões é essencialmente indexical e uma vez que
não há um sentido fregiano concludente, precisamos de
outra teoria das proposições, ao menos para esses casos.
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 307

Nesta altura, eles adotam o que me parece ser um


expediente desesperado, a teoria da “referência direta” e
das “proposições singulares”. Segundo eles, nesses casos
a proposição não é o conteúdo Intencional na mente do
falante, mas, antes, a proposição deve conter os objetos
reais a que se faz referência. A proposição de Hume con­

PARA
tém Hume, o hom em real e não uma representação dele,
e a de Heimson contém Heimson, o homem real e não

CENTRAL
uma representação dele. Afirmam que as expressões que

DO
(como os nomes logicamente próprios de Russell) introdu­

fc ftüfc. Kfeu.
zem os próprios objetos nas proposições são “diretamente
referenciais”; diz-se também (equivocadam ente) que as
proposições em questão são “proposições singulares”.

e !B i_ fO t£ C A .
Francamente, sou incapaz de perceber qualquer sen­
tido na teoria da referência direta e das proposições sin­
gulares, mas, para os propósitos da presente discussão,
não estou criticando sua inteligibilidade, mas sua necessi­
dade de explicar os dados: considero que os argumentos
em favor dela são inadequados e baseiam -se em uma
cõficepçâo errônea da natureza da Intencionalidade e da
natureza do funcionamento dos indexicais.

(i) Como operam as expressões indexicais?

Precisamos desenvolver uma interpretação dos inde­


xicais que revele o m odo como a emissão de uma expres­
são indexical pode ter um sentido fregiano concludente14:
isto é, precisamos revelar de que m odo, na emissão de
Uma expressão indexical, um falante pode expressar um
conteúdo Intencional que baste para identificar o objeto a
que se refere, em virtude do fato de tal objeto satisfazer
ou adequar-se a esse conteúdo Intencional.
Nas páginas seguintes, limitarei a discussão a expres­
sões indexicais de referência tais com o “eu ”, “você”, “este".
308 INTENCIONALIDADE

"aquele”, “aqui”, “agora”, “ele”, “ela” etc. Contudo, vale as­


sinalar que o fenômeno da indexicalidade - o fenômeno
das condições de satisfação serem determinadas em virtu­
de de relações que as coisas guardam com a realização do
próprio conteúdo Intencional - é bastante genérico e vai
além das simples expressões de referência e, n a verdade,
até mesmo além dos casos das expressões indexicais. Várias
formas de indexicalidade fazem parte do Background não-
representacional. Por exemplo, eu agora acredito que Ben-
jamin Franklin foi o inventor das lentes bifocais. Suponha­
mos que fosse descoberto que 80 bilhões de anos antes da
descoberta de Franklin, em uma galáxia distante, povoada
por seres parecidos com os humanos, algum humanóide
tenha inventado o equivalente funcional das lentes bifo­
cais. Será que minha idéia de que Franklin inventou as
lentes bifocais me pareceria falsa? Creio que não. Quando
digo que Benjamin Franklin inventou as lentes bifocais, há
um indexical oculto no Background: nesses casos, o funcio­
namento do Background atribui uma interpretação indexi­
cal à sentença. Com relação à nossa Terra e à nossa histó­
ria, Benjamin Franklin inventou as lentes bifocais; o enun­
ciado de que ele as inventou, portanto, como a maioria
dos enunciados, é indexical; mesmo que não haja expres­
sões indexicais (além das do tem po de verbo) contidas na
sentença usada para fazer o enunciado.
Comecemos por perguntar-nos o que têm as expres­
sões indexicais referentes em comum que as torna indexi­
cais? Qual a essência da indexicalidade? O traço definidor
das expressões indexicais de referência é simplesmente es­
se: ao emitirem expressões indexicais de referência, os fa­
lantes fazem a referência por meio de relações de indicação
que o objeto referido guarda com a emissão da própria
expressão. “Eu” refere-se à pessoa que emite a expressão,
"você” refere-se à pessoa a quem nos dirigimos na emis-
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 309

são da expressão, “aqui” refere-se ao local da emissão da


expressão, “agora” refere-se ao momento da efnissào da ex­
pressão, e assim por diante. Observe-se que, em cada ca­
so, o falante se refere a uma entidade em particular, pois
sua emissão expressa um conteúdo Intencional que indica
relações que o objeto a que ele refere guarda com a pró­
pria emissão. A emissão de expressões indexicais, portan­
to, tem uma forma de auto-referencialidade semelhante à
auto-referencialidade de certos estados e eventos Intencio­
nais, e teremos de examinar esse aspecto com mais vagar.
Neste ponto, contudo, precisamos apenas observar que es­
sa característica auto-referente basta para explicar de que
m odo a emissão de uma expressão indexical pode ter um
sentido fregiano concludente. O problema para uma expli­
cação fregiana (internalista ou Intencionalista) da referên­
cia é mostrar, em cada caso, de que modo a referência
tem êxito em virtude do fato de a emissão fixar condições
de satisfação, e a referência a um objeto se dá em virtude
do fato de este satisfazer tais condições. A referência a um
objçtç se dá por este satisfazer um conteúdo Intencional,
normalmente expresso por um falante na emissão de uma
expressão. Essa é a idéia básica da noção do “Sinri' do
“Eigennamen” de Frege. Seus exemplos favoritos são ca­
sos como o da “Estrela Matutina”, em que o significado le­
xical da expressão é supostamente suficiente para determi­
nar a que objeto se faz referência. O especial nas expres­
sões indexicais é que o significado lexical da expressão,
por si só, não determina a que objeto ela pode ser usada
para fazer referência; antes, o significado lexical fornece
uma regra para determinar a referência em relação a cada
emissão da expressão. Desse modo, a mesma expressão
nào-ambígua usada com o mesmo significado lexical pode
ser usada para fazer referência a objetos diferentes, pois o
significado lexical determina que as condições estabeleci­
310 in t e n c io n a l id a d e

das pela emissão da expressão, a saber, o sentido comple­


to expresso pelo falante em sua emissão, é sempre auto-
referente à própria emissão. Assim, por exemplo, “eu” tem
o mesmo significado lexical quando emitido por você ou
por mim, mas em cada caso a referência é diferente, pois
o sentido expresso pela sua emissão é auto-referente em
relação a esse mesmo enunciado e o sentido expresso p e­
lo seu enunciado é auto-referente em relação à sua emis­
são: em qualquer emissão, o termo “eu ” refere-se à pessoa
que o emite.
Há, portanto, três com ponentes no sentido fregiano
expresso p o r um falante na emissão de expressões inde-
xicais: a característica auto-referente que é o traço defini­
dor, ou essência, da indexicalidade; o restante do signifi­
cado lexical, que pode ser expresso em termos gerais; e,
para muitas emissões indexicais, a consciência, por parte
do falante e do ouvinte, das características pertinentes do
contexto real da emissão, por exem plo nas dem onstrati­
vas perceptivas com o “aquele hom em ali”. Devemos exa­
minar cada um a dessas características.

Auto-referencialidade. Como funciona? Recordem o-nos


de que, para as experiências visuais, a especificação das
condições de satisfação faz referência à própria experiên­
cia visual. Se vejo minha mão diante do meu rosto, as
condições de satisfação são

Exp Vis (há um a mão presente e o fato de haver uma mão


presente está causando essa Exp Vis).

A forma das condições de satisfação das proposições


indexicais é analogam ente auto-referente, em bora haja
uma diferença pelo fato de não ser causal a auto-referen­
cialidade dos casos indexicais. O sentido em que os ca­
E.STARÀO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 311

sos indexicais são auto-referentes, tal como no caso cia


auto-referência Intencional, não implica que õ falante, ao
fazer a emissão, realize um ato de fa la de referência à
emissão, nem tam pouco é a emissão explicitamente re­
presentada em si mesma. Em vez disso, a especificação
das condições de satisfação, ou seja, as condições de ver­
dade, requer uma referência à própria emissão. Considere­
mos qualquer emissão da sentença, “Estou agora com fo­
m e”. Tal emissão será a execução de um enunciado verda­
deiro se a pessoa que emite a sentença estiver com fome
no momento em que a emitir. As condições de satisfação,
portanto, podem ser representadas do seguinte modo:

(a pessoa que está fazendo essa emissão, “eu ”, está com


fome no m om ento da emissão, “agora”).

Essa análise não implica que “e u ” seja sinônimo de “a


pessoa que está fazendo essa emissão”, nem é “agora” si­
nônimo de “o momento da emissão”. Não podem ser sinô­
nimos porque a auto-referencialidade do original é mos­
trada mas não afirmada e, no enunciado das condições de
verdade, nós a afirmamos mas não mostramos. Da mesma
forma como não vemos a experiência visual apesar cle es­
ta fazer parte de suas próprias condições cle satisfação -
e, nesse sentido, é auto-referente não nos referimos à
emissão (no sentido de ato de fala) da expressão indexi-
cal, embora a emissão faça parte de suas próprias condi­
ções de verdade e seja, nesse sentido, auto-referente. A
auto-referencialidade da experiência visual é mostrada,
mas não vista. A auto-referencialidade da emissão indexi-
cal é mostrada, mas não afirmada. Se quiséssemos intro­
duzir um sinônimo que mostrasse a indexicalidade, pode­
ríamos introduzir um recurso arbitrário, com o um asteris­
co (*), por exemplo, para indicar a indexicalidade, ou se-
312 INTENCIONALIDADE

ja, para expressar, sem o declarar, o fato de que a expres­


são estava sendo usada para fazer referência por meio de
relações de indicação que o objeto a que se faz referência
tem com a emissão da própria expressão. Tal forma de
expressão daria uma notação canônica para se isolar a au-
to-referencialidade das expressões indexicais:

eu = ‘pessoa emitente
você = *pessoa a quem se "endereça a emissão
aqui = "coespacial
agora = ‘cotemporal

e assim por diante. Todas essas equivalências dão-nos


um a amostra do significado das expressões e, conse­
qüentem ente, uma amostra do significado das sentenças
que contêm tais expressões. Assim, o significado da sen­
tença “Estou com fom e” é dado por

•pessoa que emite está com fome em *cotemporal

Conteúdo descritivo não-indexical. Poderemos aprofundar


nossa com preensão da característica auto-referente das
expressões indexicais se perceberm os de que maneira ela
se liga ao restante do significado lexical, o conteúdo des­
critivo não-indexical, da expressão. Afirmei que todas as
expressões indexicais de referência fazem a referência
mediante as relações de indicação que o objeto a que se
faz referência tem com a emissão da expressão. É natural
que isso dê origem a uma pergunta: quantos tipos de re­
lação são indicados desse modo? Em inglês, e em outros
idiomas que conheço, há com certeza quatro - e possivel­
mente cinco - tipos de relação indicados pelo significado
literal das expressões indexicais. Os quatro são:
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 313

(1) tempo: exem plos de tais expressões são “agora”, “o n ­


tem", “am anhã” e “mais tarde”;
(2) lugar: por exemplo, “aqui” e “ali”;
(3) direcionalidade da emissão: “você” refere-se à pessoa a
quem alguém se está dirigindo na emissão, “eu ” refere-
. se à pessoa que emite;
(4) relações de discurso: pronom es anafóricos e expressões
com o “o prim eiro” e “o últim o” referem-se a alguma
coisa em virtude de sua relação com o resto do discur­
so em que está encaixada a em issão indexical.

Observe-se que, em cada um dos exemplos, o significado


lexical descritivo nâo-indexical contém dois elementos:
um sentido que expressa a forma particular determinada
da relação determinável indicada e um sentido que ex­
pressa o tipo de entidade a que se faz referência. Assim,
“ontem ” expressa a indicação de tem po determinada “um
dia antes”, e o tipo de entidade a que se faz referência é
um dia. Portanto, o conjunto das condições de satisfação
expressas por “ontem ” é: o dia que é um dia antes do dia
dessa emissão. Nem todos os indexicais têm um significa­
do lexidal com pleto nesse sentido; por exemplo, os de­
monstrativos “este(a)” e “aquele(a)” em geral requerem
uma expressão adicional (“este hom em ” ou “aquela árvo­
re”), bem com o um a consciência do contexto para se p o ­
der expressar um sentido fregiano com pleto em uma da­
da emissão. Voltaremos a essa questão mais adiante.
Essas quatro seguram ente constituem formas de rela­
ções indexicais expressas no significado literal das ex­
pressões indexicais inglesas. Há quem sustente que outra
relação é indicada por palavras com o “concreto” (“actual”)
e, “real” (“real”), no sentido em que a palavra “concreto”
(“actual”) expressa o seu sentido indexicalmente referin­
do-se ao mundo em que é emitida; e assim, dentre os
m undos possíveis, o m undo concreto é escolhido indexi-
314 INTENCIONALIDADE

calmente. Creio que essa alegação é totalmente falsa. No


entanto, com o envolve questões modais que vão além do
escopo deste livro, não a discutirei mais aqui15.
Embora haja apenas quatro (ou cinco, como é possí­
vel demonstrá-lo) formas de relações indexicais indicadas
no significado lexical de expressões em idiomas como o
inglês, em princípio não há limite algum para a introdu­
ção de novas formas de indexicalidade. Poderíamos, por
exem plo, ter um a expressão que, quando em itida em
uma certa faixa sonora, indicaria sons de uma faixa sono­
ra mais alta, mais baixa, ou idêntica. Em outras palavras,
poderíam os imaginar uma classe de expressões indexi­
cais usadas para fazer referência a qualidades tonais m e­
diante relações de indicação que as qualidades tonais
guardariam com a qualidade tonal da emissão, analoga­
mente ao m odo com o “hoje”, “ontem ” e “am anhã” refe­
rem-se a dias m ediante indicações de relações que guar­
dam com o dia da emissão da própria expressão.

Consciência do contexto da emissão. Muitas vezes a emis­


são literal de um a expressão indexical não carrega por si
só um sentido fregiano completo, mas este é fornecido
pelo conteúdo Intencional da em issão indexical junta­
mente com o conteúdo Intencional da consciência, por
parte do falante e do ouvinte, do contexto da emissão.
Tal aspecto se revela com toda clareza no caso da emis­
são dos demonstrativos “este(a)” e “aquele(a)”. Suponha­
mos que, ao ver um hom em comportar-se estranham ente
em uma festa, eu diga: “Aquele hom em está b êb ad o ”.
Ora, nesse caso, o conteúdo descritivo do term o “h o ­
m em ”, juntam ente com o indexical, não fornece o senti­
do fregiano completo, pois a emissão só é feita e com­
preendida no contexto de uma percepção visual conco­
mitante do hom em de quem se fala, e a proposição ex-
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 315

pressa deve conter o conteúdo Intencional da experiên­


cia perceptiva que acom panha a emissão. O argumento
em favor disso é sim plesmente que alguém que não te­
nha as experiências perceptivas pertinentes, seja porque
está falando comigo ao telefone, seja porque é cego ou es­
tá ouvindo o que digo da sala ao lado, não pode apreen­

PA-KA
der plenam ente a proposição por mim expressa; sem a
experiência perceptiva, essa pessoa literalmente não en­

Si BUi O T.5.C*- CtNi'í ff A L


tenderá a proposição completa, m esm o que entenda to­

DQ
das as palavras emitidas.
Nesses casos, um a análise com pleta da proposição

PfcÜÊWAV
que torna plenam ente explícito o sentido fregiano com ­
pleto teria de incluir tanto o conteúdo Intencional da
emissão quanto o conteúdo Intencional da experiência
visual, e teria de mostrar de que m odo o segundo está

VWJ.VEKÇICADÍ
abrigado no primeiro. E assim que funciona: a expressão’
indexical faz referência m ediante relações de indicação
que o objeto guarda com a emissão da própria expres­
são. Nesse caso, portanto, há um a relação R tal que as
condições de verdade da emissão podem ser expressas
nos seguintes termos:

O hom em que guarda uma relação R com essa emissão es­


tá bêbado.

E, no caso, tal com o descrito, R é perceptiva e temporal.


O hom em a que se faz referência é o hom em que esta­
mos vendo no momento dessa emissão. Porém, se esti­
vermos vendo alguém no m om ento dessa emissão, cada
um de nós terá tam bém uma experiência visual com seu
próprio conteúdo proposicional no tem po presente:

Exp vis (há um hom em presente e o fato de haver um h o ­


mem presente está causando essa experiência visual).
316 INTENCIONALIDADE

Ora, esse conteúdo Intencional simplesmente se liga ao


conteúdo Intencional do restante da emissão para dar-
nos o sentido fregiano com pleto que identifica o hom em
unicam ente em virtude tanto da auto-referencialidade da
emissão quanto da auto-referencialidade da experiência
visual. As condições de satisfação completas da proposi­
ção toda (com as partes auto-referentes em itálico) po­
dem ser expressas nos seguintes termos:

((há um homem, x, presente, e o fato de x estar presente


está causando essa exp vis) e x é o hom em experienciado
visualmente no m om ento dessa emissão e x está bêbado).

Isso pode parecer estranho, mas creio que o leitor que


esteja preparado para reconhecer a Intencionalidade da
experiência visual, seu papel na Intencionalidade da pro­
posição expressa pela emissão, a auto-referencialidade da
experiência visual e a auto-referencialidade da emissão
indexical, constatará que algo sem elhante a essa formula­
ção deve estar correto. Ela pretende capturar tanto os
conteúdos indexical e perceptivo da proposiçâò com o as
relações entre ambos. No caso do uso perceptivo dos de­
monstrativos, tanto o sentido da expressão indexical co­
m o o co n teú d o Intencional da experiência perceptiva
que acom panha a emissão contribuem para o conteúdo
proposicional expresso na emissão. Observe-se que, nes­
ses casos, temos um sentido fregiano com pleto suficiente
para identificar o objeto. Observe-se, ainda, que não há
problem a relativo à Terra gêm ea para esses casos. Eu,
nesta Terra, e o meu Doppelgänger, na Terra gêmea, ex­
pressaremos sen tidos' fregianos diferentes em nosso uso
do demonstrativo “Aquele hom em ”, em bora nossas emis­
sões e nossas experiências sejam qualitativamente tipo-
idênticas. Tanto sua percepção quanto sua emissão são
auto-referentes, da mesma forma que as minhas.
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 317

Vamos agora resumir a interpretação. Temos de dis­


tinguir entre um a expressão indexical com seu significa­
do literal, a em issão literal de uma expressão indexical, e
o sentido expresso por um falante na emissão literal da
expressão. Analogamente, temos de distinguir a sentença
indexical (isto é, qualquer sentença que contenha uma
expressão indexical ou m orfema, tal com o um tem po
verbal), com seu significado literal, a emissão literal de
um a sentença indexical, da proposição expressa pelo fa­
lante na emissão literal de uma sentença indexical. O sig­
nificado da expressão indexical, por si só, não basta para
fornecer o sentido fregiano com pleto, uma vez que a
mesma expressão, com o m esm o significado, pode ser
usada para fazer referência a objetos diferentes, p o r
exemplo, pessoas diferentes referem-se a si mesmas di­
zendo “eu ”. Contudo, o significado indexical literal é tal
que determina que, quando um falante faz uma emissão
dessa expressão, o sentido por ele expresso será relativo
a essa emissão. Portanto, o sentido da expressão pode
tornar-se um sentido fregiano com pleto relativo a uma
emissão porque o sentido lexical determ ina que qualquer
emissão é auto-referente a essa mesma emissão. E isso
explica com o dois falantes diferentes podem em itir a
mesma sentença com o mesmo significado, por exemplo,
“Eu estou com fom e”, e, mesmo assim, expressar propo­
sições fregianas diferentes: cada proposição expressa é
auto-referente à emissão em que é expressa. É o sentido
fregiano com pleto expresso que determ ina a referência, e
é o sentido fregiano, não a referência, que é um consti­
tuinte da proposição. Nunca é demais enfatizar que não
há nada de reducionista ou eliminativo nessa interpreta­
ção da indexicalidade. Não estou tentando dem onstrar
que a indexicalidade é na verdade outra coisa, mas sim
tentando mostrar o que ela é e com o funciona em emis­
sões para expressar conteúdos Intencionais.
318 INTENCIONALIDADE

(ii) Como essa interpretação responde á objeção


a uma interpretação internalista dos indexicais

No curso do desenvolvimento de uma interpretação


dos indexicais motivada independentem ente, responde­
mos, de passagem, à objeção de Perry e Kaplan de que
nenhum a interpretação dos indexicais ao estilo fregiano
consegue fornecer um sentido fregiano completo. Hume
e Heimson em item a mesma sentença com o mesmo sig­
nificado literal, mas cada sentença expressa um conteúdo
Intencional diferente; e, portanto, cada sentença tem um
sentido fregiano com pleto diferente, pois cada proposi­
ção expressa é auto-referente à emissão que a expressa.
Em todos os casos, mostramos como a auto-referenciali-
dade da emissão indexical, tal com o determinada pelas
regras de uso da expressão indexical, estabelece as con­
dições que um objeto deve satisfazer para ser referente a
tal emissão. Perry sustenta, corretamente, que há conteú­
dos de pensam ento (proposições, no meu sentido) inde­
xicais, mas tam bém sustenta, a meu ver incorretamente,
que não existe um sentido fregiano com pleto para os
conteúdos de pensam ento essencialm ente indexicais. E,
com base nessas duas premissas, cdnclui que as proposi­
ções expressas nesses casos só podem ser explicadas a
partir de uma teoria da referência direta. Aceito a primeira
das premissas, mas rejeito a segunda e a conclusão. As
expressões indexicais não são contra-exemplos à alegação
da teoria da Intencionalidade segundo a qual as emissões
fazem referência aos objetos som ente em virtude do fato
de que a emissão estabelece condições de satisfação que
os objetos a que se faz referência devem satisfazer.
Duas observações para finalizar: em primeiro lugar,
chamei minha interpretação dos indexicais “fregiana” em
espírito, mas ela difere bastante das poucas observações
ESTARÃO OS SIGNIFICADOS NA CABEÇA? 319

efetivas de Frege acerca dos indexicais. O pouco que ele


disse parece ao mesmo tem po equivocado -e incom patí­
vel com sua teoria geral do sentido e da referência. Sobre
o termo “e u ”, afirma ele que, um a vez que cada um de
nós tem consciência de si m esm o de um m odo especial,
particular,, “e u ” tem tanto um sentido público como parti­
cular. Sobre os termos “ontem ” e “hoje”, afirma que se
quisermos expressar hoje a m esma proposição expressa
ontem por um a emissão que continha o term o “hoje”, d e­
vemos usar a palavra “qntem ”16, no que dá a impressão,
portanto, de adotar uma explicação de rè de proposições
indexicais. O que fazer com tais observações? A idéia de
sentidos de expressões incomunicáveis é profundam ente
antifregiana, uma vez que a noção de sentido foi introdu­
zida, em párte, para proporcionar um conteúdo publica­
mente apreensível para ser compartilhado pelo falante e
pelo ouvinte. E o exemplo de “ontem ” e “hoje” parece um
exemplo-padrão do tipo de caso em que sentidos diferen­
tes podem determinar a mesma referência. Assim como “a
Estrela Vespertina” e “a Estrela Matutina” podem ter a mes­
ma referência com sentidos diferentes porque o referente
é apresentado em cada caso com um “modo de apresenta­
ção” diverso, “hoje” dito ontem e “ontem ” dito hoje têm
sentidos diferentes e, portanto, fazem parte da expressão
de diferentes proposições fregianas, em bora ambos os ter­
mos sejam usados para referir-se ao mesmo dia. Acredito
que Frege não percebeu ser possível apresentar uma inter­
pretação fregiana dos indexicais por não ter conseguido
perceber o caráter auto-referente destes, e que tal incapa­
cidade £àz parte de uma incapacidade maior em perceber
a natureza da Intencionalidade.
Em segundo lugar, as discussões com o a presente
tendem a degenerar para um tipo de escolasticismo per­
nóstico que oculta os pressupostos “metafísicos” básicos
320 INTENCIONALIDADE

em questão, e acredito que, tanto quanto possível, deve­


mos permitir que tais pressupostos venham à tona. Meu
pressuposto básico é simplesmente este: as relações cau­
sais e de outros tipos com o m undo real só são relevantes
para a linguagem e outros tipos de Intencionalidade na
medida em que causem um impacto sobre o cérebro (e o
resto do sistema nervoso central), e os únicos impactos
que interessam são aqueles que produzem Intencionalida­
de, inclusive a Rede e o Background. Alguma forma de in-
ternalismo deve estar correta, pois não há nada mais que
possa realizar a tarefa. O cérebro é tudo de que dispomos
para os propósitos de representar o m undo para nós mes­
mos e tudo o que podem os usar deve estar no interior do
cérebro. Cada uma de nossas crenças deve ser possível
para um ser que seja um cérebro em uma cuba porque ca­
da um de nós é precisamente um cérebro em uma cuba; a
cuba é um crânio e as “mensagens” que chegam fazem-no
por meio de impactos sobre o sistema nervoso. A necessi­
dade desse internalismo fica oculta para nós, em muitas
dessas discussões, pela adoção do ponto de vista de uma
terceira pessoa. Adotando um ponto de vista divino, ima­
ginamos poder identificar quais as crenças reais de Ralph,
ainda que ele não consiga. Mas o que esquecemos, quan­
do tentamos conceber uma crença não inteiramente situa­
da na cabeça de Ralph, é que somente a concebemos na
nossa cabeça. Ou, para dizê-lo de outra forma, mesmo
que. houvesse um conjunto de conceitos semânticos exter­
nos, estes teriam de ser parasitários de um conjunto de
conceitos internos e inteiramente redutíveis ao mesmo.
Paradoxalmente, portanto, o ponto de vista a partir do
qual defendo uma interpretação “fregiana” da referência é
um ponto de vista que Frege teria considerado totalmente
estranho, uma espécie de naturalismo biológico. A Intencio­
nalidade é um fenômeno biológico e faz parte do m undo
natural, como qualquer outro fenômeno biológico.
CAPÍTULO 9
NOMES PRÓPRIOS E
INTENCIONALIDADE

I. A NATUREZA DO PROBLEMA

O problem a dos nomes próprios deveria ser trivial, e


acredito que em determ inado nível o seja: precisamos fa­
zer repetidas referências ao m esm o objeto, mesmo quan­
do este não está presente e, assim, atribuímos ao objeto
um nome. A partir de então, tal nom e é em pregado para
se fazer referência àquele objeto. Contudo, alguns em ba­
raços se apresentam quando refletimos sobre as seguin­
tes considerações: os objetos não nos são dados anterior­
mente ao nosso sistema de representação; o que é tido
com o um único ou mesmo objeto é função do m odo co­
mo dividimos o m undo. O m undo não chega a nós já di­
vidido em objetos; com pete a nós dividi-lo; e o m odo co­
mo o dividimos é de com petência de nosso sistema de
representação e, nesse sentido, é de nossa competência,
ainda que se trate de um sistema biológico, cultural ou
lingüisticamente configurado. Ademais, para que alguém
possa atribuir um nom e a determ inado objeto ou saber
322 INTENCIONALIDADE

que determ inado nom e é- o nom e de tal objeto, é neces­


sário que o indivíduo disponha de alguma outra repre­
sentação daquele objeto, independentem ente da simples
posse do nome.
Cabe-nos explicar, para os objetivos do presente es­
tudo, de que m odo o uso dos nom es próprios se enqua­
dra em nossa interpretação geral da Intencionalidade.
Tanto as descrições definidas com o as descrições indexi-
cais servem para expressar pelo m enos um a p eq u en a
porção do conteúdo Intencional. Talvez a expressão em
si nao seja suficiente para identificar o objeto referido,
mas, nos casos em que a referência é eficaz, há conteú­
dos Intencionais outros suficientes, à disposição do falan­
te para fixar a referência. Essa tese vale inclusive para os
usos “referenciais” das descrições definidas, em q u e o
conteúdo Intencional efetivamente expresso na emissão
pode nem sequer ser verdadeiro quanto a'o objeto referi­
d o 1. Mas e quanto aos nomes próprios? Estes sem dúvida
carecem de um conteúdo Intencional explícito, mas ser­
vem, efetivamente, para, de algum m odo, evidenciar a
Intencionalidade do falante e do ouvinte; ou se limitam a
referir-se a objetos sem a interferência de conteúdo In­
tencional algum? Na minha opinião, a resposta é eviden­
te. Uma vez que a referência lingüística depende sem pre
da referência mental ou é uma forma desta, e um a vez
que a referência mental sempre se dá em virtude de um
conteúdo Intencional que inclui o Background e a Rede2,
os nomes próprios devem depender, de algum modo, do
conteúdo Intencional, e é chegado o m om ento de tornar
tal modo - ou tais m odos - plenam ente explícito.
O problem a dos nomes próprios costumava ser ex­
presso na forma, “Serão providos de sentido os nom es
próprios?”, e a filosofia contem porânea presum e haver
duas respostas em disputa com relação a essa indagação:
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 323

uma resposta afirmativa, fornecida pela teoria “descritivis-


ta”, segundo a qual um nome designa através de sua as­
sociação com alguma descrição, ou talvez um feixe de
descrições, e um a resposta negativa, fornecida pela teoria
“causal”, segundo a qual um nom e designa em razão de

PAKA
uma “cadeia causal” a vincular a emissão de um nom e a
seu portador ou, ao menos, à cerimônia de batismo em
que o portador de um nom e o adquiriu. Acredito que n e­

ííiC K C E N T R A L
DO
nhum a das duas teorias se mostraria satisfeita com esses
rótulos. A teoria causal seria m elhor descrita como a ca­
deia causal externa da teoria da com unicação3, e a teoria
descritivista seria m elhor descrita com o a teoria Intencio-
nalista ou internalista, por razões que deverão emergir no
presente discusso.

ÜNIVERSIDml.é
Rótulos à parte, é importante ter claro desde o início
o que, exatamente, está em questão para essas duas teo­
rias. Quase sem exceção, as interpretações da teoria des­
critivista com que deparei são, em maior ou m enor esca­
la, grosseiras distorções da m esm a, e quero explicitar
quatro das concepções equivocadas mais comuns dessa
questão a fim de as colocarmos de lado, de m odo que
possamos abordar as questões de fato.
Em primeiro lugar, a divergência, certamente, não se
deve à questão de se os nomes próprios devem ser anali­
sados exaustivamente em termos com pletam ente genéri­
cos. Não conheço teoria descritivista alguma que tenha
sustentado tal concepção, muito em bora os escritos de
Frege dêem p or vezes a impressão de que este poderia
nutrir alguma simpatia por ela. Em todo caso, jamais foi
essa a minha concepção e tam pouco, acredito, terá sido
a de Strawson ou a de Russell.
Em segundo lugar, até onde me diz respeito, a diver­
gência na verdade não se refere, em absoluto, à análise
dos nomes próprios em palavras. Em meus escritos ante­
324 INTENCIONAUDADi:

riores sobre esse tem a4 assinalei que, em certos casos, a


única “descrição de identificação” que um falante poderia
ter, e associar ao nome, seria simplesmente a faculdade
de reconhecer o objeto.
Em terceiro lugar, alguns autores5 consideram que o
descritivista sustenta estarem os nom es próprios associa­
dos a um “dossiê” arm azenado na m ente do falante e
que a divergência ocorre entre essa concepção do uso
dos nomes próprios baseado nesse dossiê e a concepção
do uso de um nom e próprio com o análogo ao ato de
apontar. Mas essa tam bém é um a concepção equivocada
do descritivismo. Na interpretação do descritivista, apon­
tar é precisam ente um exemplo que se encaixa em sua
tese, uma vez que o apontar apenas logra eficácia em vir­
tude das intenções daquele que aponta.
Em quarto lugar, Kripke defende que, no quadro
descritivista, “um hom em realmente designa, ao introdu­
zir-se na privacidade de seu próprio ambiente e afirmar
que o referente será a única coisa com determ inadas pro­
priedades de identificação”6. Tal concepção, porém , ja­
mais foi abraçada por descritivista algum de m eu conhe­
cimento e não é de surpreender que Kripke não forneça
fonte alguma para essa estranha concepção.
Mas se essas quatro abordagens representam de for­
ma equivocada o descritivismo e os conflitos entre o des­
critivismo e as teorias causais, o que, exatamente, consti­
tuem essas concepções e os conflitos entre elas? O ponto
em disputa é simplesmente o seguinte: Os nomes próprios
fazem referência pelo estabelecimento de condições inter­
nas de satisfação, de uma forma coerente com a interpre­
tação geral da Intencionalidade que venho apresentando,
ou fazem referência em virtude de alguma relação causal
externa ? Vamos tentar delinear essa questão de m odo
mais preciso. O descritivista está com prom etido com a vi­
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 325

são de que, para descrever o m odo como um nom e pró­


prio se refere a um objeto, precisamos demonstrar o m o­
do como o objeto satisfaz o conteúdo Intencional “descri­
tivo” associado ao nom e na mente dos falantes ou o mo­
do como nele o objeto se enquadra ; parte dessa Intencio­
nalidade normalmente será expressa, ou no mínimo será
exprimível, em palavras. A teoria causal está comprometi­
da com a visão de que nenhum a análise Intencionalista
do gênero jamais cumprirá essa tarefa e que, para descre­
ver a relação de referência eficaz entre a emissão de um
nom e e o objeto referido, devemos revelar alguma espé­
cie de relação causal externa entre a emissão de um no­
me e o objeto. Ambas as teorias constituem tentativas de
responder à pergunta, “Como, na emissão de um nome, o
falante consegue referir-se a um objeto?”. A resposta for­
necida pelo descritivista é a de que o falante se refere ao
objeto porque, e som ente porque, o objeto satisfaz o con­
teúdo Intencional associado ao nome. O teórico causal
responderá que o falante se refere ao objeto porque, e so­
mente porque, existe uma cadeia causal de comunicação
a vincular a emissão do falante ao objeto, ou ao menos
ao batismo do objeto - uma im portante qualificação que
abordaremos mais tarde.

II. A TEORIA CAUSAL

Existem diferentes versões da teoria causal e não


tentarei discuti-las em sua totalidade. As mais representa­
tivas são as de Kripke e Donnellan e a maior parte de
minha discussão se restringirá a essas concepções. Não
se trata de concepções idênticas, mas chamarei a atenção
para as diferenças entre elas som ente quando necessário,
a fim de evitar confusão.
326 INTENCIONALIDADE

Começarei com a versão de Kripke.

O enunciado esquem ático de um a teoria pode se dar nos


termos que se seguem. Tem lugar um batismo inicial. Nes­
se m om ento o objeto pode ser designado por ostensão, ou
a referência do nom e pode ser fixada por uma descrição.
Q uando o n o m e 'é “transmitido de elo para elo”, o recep­
tor do nom e deve pretender, penso eu, quando ele ouve o
nome, usá-lo com a mesma .referência que o hom em de
quem o ouviu o usou7.

Vários são os aspectos a ser observados acerca dessa


passagem. Primeiro, o relato da introdução do nom e no
batismo é inteiram ente descritivista. O batismo ora nos
fornece um conteúdo Intencional sob forma verbal, uma
descrição definida (Kripke dá o exem plo da introdução
do nom e “N etuno” para um planeta na época ainda não
identificado), ora nos fornece o conteúdo Intencional de
um a percepção quando determ inado objeto é designado
ostensivamente. No c-aso perceptivo, existe, de fato, um a
relação causal, porém , na m edida em que se trata de
um a causação Intencional, interna ao conteúdo percepti­
vo, de nada vai adiantar para ó teórico causal em seu
esforço por apresentar uma interpretação causal externa
da relação entre nom e e objeto. Em tais casos, obviam en­
te, haverá tam bém um a interpretação causal externa em
termos do im pacto do objeto sobre o sistema nervoso,
mas os fenôm enos causais externos não fornecerão, por
si, um a definição ostensiva do nome. Para obter a defini­
ção ostensiva o percipiente deve perceber o objeto, e is­
so envolve algo mais que o impacto físico do objeto so­
bre o sistema nervoso. Trata-se, portanto, de uma estra­
nha característica da versão kripkiana da teoria causal o
fato de a cadeia causal externa não alcançar realmente o
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 327

objeto, mas chegar apenas a seu batismo, à cerimônia de


introdução do nom e, e, daquele ponto em- diante, o que
fixa a referência é um conteúdo Intencional que pode ou
não ter uma relação causal externa com o objeto. Muitos
filósofos, talvez a maioria, consideram que a teoria causal
dos nomes sustenta a existência de um a relação causal en- k
tre o uso referencial dos nomes e o objeto por eles desig- 5
nados, porém, ao m enos no caso de Kripke, tal não é real- ®-
mente verdadeiro. Questão interessante e à qual voltare- O ^ I
mos mais tarde. &
-J
Alguns autores, Devitt8, por exemplo, mostram-se de- < z i
sapontados com esse aspecto da teoria de Kripke e pre- J y j
tendem reservar a noção de nomes genuinam ente “desig- ^ ^
nacionais” àqueles causalmente relacionados ao próprio ,J- >J j
objeto. Isso parece, porém, bastante arbitrário. Nada há ^ ?
que nos impeça de introduzir um nom e através de descri- * ~ '
ção e usá-lo para fazer referência, ainda que como um — ffi j
“designador rígido”; e, em todo caso, há uma porção de ® S
nomes próprios de entidades abstratas, por exemplo, nu- >
merais, que são nom es de números, e é impossível a enti- X
dades abstratas deflagrar cadeias causais físicas.
Uma segunda característica a ser observada acerca
da teoria de Kripke é que a cadeia causal não é, por as­
sim dizer, pura. Além da causação e do batismo, permite-
se a sutil intromissão de um elem ento Intencionalista adi­
cional: cada falante deve pretender referir-se ao mesmo
objeto a que a pessoa de quem ele aprendeu o nom e se
referiu. Temos aqui, portanto, algum conteúdo Intencio­
nal associado a cada uso do nom e “N ” na cadeia causal,
a saber, “N é o objeto referido pela pessoa que me trans­
mitiu o nom e”. Ora, trata-se de um requisito estranho,
pela seguinte razão: se todos os indivíduos integrantes da
cadeia tivessem realm ente essa intenção restrita, e se o
conteúdo Intencional de fato fosse satisfeito, isto é, se ca-
328 INTENCIONALIDADE

da falante realm ente lograsse referir-se ao mesmo objeto,


seguir-se-ia, de m odo trivial, que a referência se reporta­
ria diretamente ao alvo do batismo inicial e a discussão
sobre a causação seria redundante. Mas não é essa, su­
postamente, a idéia de Kripke, um a vez que a mesma es­
taria desprovida de todo e qualquer poder explicativo e
seria, na verdade, circular. Explicaríamos a referência bem-
sucedida em termos de uma cadeia de referências bem-su-
cedidas. A idéia de Kripke é claramente essa: podem os
descrever o m odo como o conteúdo causal é satisfeito,
ou seja, o m odo com o a referência é bem-sucedida, em
termos da causação externa som ada à intenção de que a
mesma seja eficaz. Kripke, portanto-, estabelece três con­
dições para se descrever o m odo com o cada em issão
ocorrência se refere ao alvo inicial: batismo inicial, cadeia
causal e conteúdo Intencional restrito. E a descrição é
ainda externa no seguinte sentido: em bora cada elo da
cadeia comunicativa seja percebido tanto pelo falante co­
mo pelo ouvinte, “O importante não é o modo com o o
falante imagina ter obtido a referência, mas sim a efetiva
cadeia comunicativa”9
Antes de criticarmos a abordagem de Kripke, exami­
nemos a de Donnellan.

A idéia central é a de que quando um falante em prega


um nom e com o propósito de referir-se a um indivíduo e
dele predicar algum a coisa, a referência eficaz se dará
quando houver um indivíduo que se introduza na identifi­
cação historicam ente correta do indivíduo [ s í c ] do qual o
falante pretendeu predicar algo. Tal indivíduo passará e n ­
tão a ser o referente e a emissão produzida será verdadei­
ra ou falsa dependendo de ter ou não a propriedade d e­
signada pelo predicado.10
SOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 329

A passagem tem dois elementos-chave: (a) “identificação


historicamente correta d e”, e (b) “indivíduo-do qual o fa­
lante pretendeu predicar algo”. A fim de auxiliar-nos com
(a), Donellan introduz a idéia de um “observador onis­
ciente da história”. Tal observador onisciente enxergará
aquele Ou aquilo que designamos, ainda que sejamos in­
capazes de fornecer qualquer conteúdo Intencional que
corresponda à pessoa ou coisa que designamos. Mas, en ­
tão, em que consistiu a satisfação de (b) por nossa parte?
Que fato, referente a rtós, torná verdadeiro que, ao dizer­
mos, por exemplo, “Sócrates tem nariz arrebitado” aquele
“de quem pretendem os predicar algo” seja Sócrates? Na
teoria de Donnellan, evidentemente, nem um único fato
a nosso respeito - salvo a cadeia causal a relacionar nos­
sa emissão a Sócrates. Mas, nesse caso, qual a natureza
dessa cadeia? O que procura o observador onisciente e
por quê? Rorty assegura-nos que a teoria causal necessita
apenas da “causação física ordinária”, o choque ruidoso
de objeto contra objeto, por assim dizer. Creio que será
necessário ao observador de D onnellan procurar um a
causação Intencional e um conteúdo Intencional. Voltare­
mos a essa questão mais adiante.
Kripke insiste, e suponho que Donnellan concorda­
ria, em que a teoria causal não se pretende um a teoria
completa, mas sim um “quadro” do funcionam ento dos
nomes próprios. Ainda assim, querem os saber se se trata
de um quadro preciso e uma das maneiras de proceder é
tentar obter contra-exemplos, exem plos de nom es cujo
funcionamento não obedece a tal quadro. Será que a teo­
ria (ou tjuadro) causal, tal com o formulada, por exemplo,
por Kripke, fornece-nos condições suficientes de referên­
cia bem-sucedida com o uso d e nom es próprios? A res­
posta, a meu ver, é claramente não. Há num erosos con­
tra-exemplos na literatura, mas talvez o mais elucidativo
330 INTENCIONALIDADE

se deva a Gareth Evans”11. “Madagascar” era, em sua ori­


gem, o nom e de uma região da África. Marco Polo, em ­
bora presum ivelm ente satisfizesse a condição kripkiana
de pretender em pregar o nom e com a mesma referência
que a “do hom em de quem ele o ouviu”, referiu-se a
uma ilha afastada da costa africana e é a essa ilha que
atualmente designam os por “Madagascar”. Assim, o uso
do nom e “Madagascar” satisfaz um a condição causal que
o vincula ao continente africano, mas tal não é suficiente
para capacitá-lo a referir-se ao continente africano. A
questão que devem os retomar é: com o e por que o no­
me se refere a Madagascar e não ao continente africano,
dado que a cadeia causal se dirige para o continente?
Se um quadro kripkiano da cadeia causal não nos
fornece uma condição suficiente, oferecerá, ao m enos,
uma condição necessária? Nesse caso também a resposta
me parece claramente negativa. Geralmente é um a boa
idéia adotar exem plos que tenham sido apresentados
contra determ inada concepção com o exemplos que, na
verdade, trabalham a favor de tal concepção; considere­
m os, p ortanto, o exem plo a seguir, sugerido p o r Ka-
plan12. Segundo esse autor, a teoria descritivista não po­
deria estar correta pois, por exemplo, reza o Concise Bio-
graphical Dictionary (Concise Publications: Walla Walla,
Washington) que “Ramsés VIII” é “Um dentre num erosos
faraós antigos acerca dos quais nada se conhece”. Mas,
seguramente, podem os nos referir a ele mesmo que não
satisfaçamos a teoria da descrição para usar o seu nome.
O que o exem plo revela, na verdade, é que muito se co­
nhece acerca de Ramsés VIII e este constitui, com efeito,
um caso bastante ideal mesmo para a versão mais ingê­
nua da teoria da descrição, uma vez que, aparentem ente,
temos uma descrição perfeitamente identificadora. Ram­
sés VIII é o faraó chamado “Ramsés” que governou o Egi-
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 331

to sucedendo a um faraó cham ado “Ramsés VII”13. Ou se­


ja, imagina-se, com o presumo que seja o caso, que possuí­
mos no mínimo algum conhecim ento da história do anti­
go Egito, incluindo o conhecim ento de que os faraós de
mesmo nom e são numerados seqüencialmente. Suponha­
mos, apenas para argumentar, que temos um vasto co­
nhecimento acerca de Ramsés VII e Ramsés IX. Nesse ca­
so, poderíam os empregar, sem som bra de hesitação, o
nome “Ramsés VIU” para nos referir ao Ramsés surgido
entre Ramsés VII e Ramsés IX, ainda que as diversas ca­
deias causais a reportar-nos ao antigo Egito omitam Ram­
sés VIII. O que temos, nesse caso, é um exemplo da Rede
em operação; nesse caso, é aquela parte da Rede que
contém um conhecim ento acerca do passado.
Pode-se dizer, em geral, que a totalidade da Rede da
Intencionalidade está causalm ente ancorada, via eausa-
ção Intencional, ao m undo real, em vários pontos, mas
seria um grave erro presumir que a Rede deva obrigatoria­
mente estar ancorada, por qualquer tipo de causaçâo, em
todo ponto individual que seja alvo de referência pelo
uso de um nom e próprio14. Acredito que a razão pela
qual os teóricos causais incorreram nesse equívoco é
exagerarem a analogia que estabelecem entre referência
e percepção, analogia esta explicitam ente traçada por
Donnellan15. Nesse sentido, a percepção ancora-se efeti­
vamente no m undo real em cada ponto, uma vez que ca­
da experiência perceptiva está imbuída daquela auto-re-
ferencialidade do conteúdo Intencional por nós discutida
anteriormente. Todavia, os nom es próprios não carregam
esse tipo de causação, mesmo de causação Intencional. É
possível satisfazer as condições para o uso bem -sucedido
de um nom e próprio, mesmo em face da inexistência de
qualquer vínculo causal, quer Intencional, quer externo,
entre a emissão do nom e e o objeto referido. Na verda­
332 INTENCIONALIDADE

de, isso se verifica em qualquer sistema de nom es em


que é possível identificar o portador do nom e com base
na posição do nom e no sistema. Posso, por exemplo, re­
ferir-me à rua M em Washington, pelo simples fato de sa­
ber que existe, naquela cidade, uma seqüência alfabética
de nom es de ruas - “A”, “B”, “C”, etc. Não é necessário
que eu tenha relação causal alguma com a rua M para fa­
zê-lo16. E a questão se torna ajnda mais clara se conside­
rarmos os nom es de entidades abstratas: se eu contar até
387, o numeral designa o núm ero sem que nenhum a ca­
deia causal me relacione a alguma suposta cerimônia ba­
tismal daquele número.
São muitos os contra-exemplos conhecidos à alega­
ção de que a teoria causal fornece-nos as condições quer
necessárias, quer suficientes, para que o uso de um no­
me próprio estabeleça uma referência àquele que o p o ­
nha. Por que razão os autores dessas teorias não se im­
pressionam com tais exemplos? Existe, a propósito, uma
estranha assimetria na função dos contra-exemplos nes­
sas discussões: supostos contra-exemplos à teoria descri-
tivista são geralmente considerados desastrosos para a teo­
ria, enquanto os contra-exemplos à teoria causal são en ­
tusiasticamente aceitos como se não tivessem im portân­
cia. A razão q ue leva os teóricos causais a não se deixa­
rem im pressionar, suspeito eu, é que consideram que,
como afirma Kripke explicitamente, a teoria causal forne­
ce um quadro mais adequado de com o os nom es funcio­
nam, ainda que não possa abranger todos os casos. Afi­
nal, os contra-exemplos podem não passar de casos es­
tranhos e marginais, e o que realm ente querem os saber é
o que haverá de central e essencial na operação da insti­
tuição dos nomes próprios. Além disso, os contra-exem ­
plos não têm de fato grande im portância para nós do
ponto de vista teórico, a menos que estejam fundamenta-
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 333

«.los em alguma teoria de motivação independente, algu­


ma explicação do porquê de constituírem' contra-exem-
plos. Sou simpático a ambos esses impulsos e acredito
que devemos procurar o caráter essencial da instituição e
não nos deixar im pressionar em excesso por exem plos
extravâgantes, e acredito que os contra-exemplos são im­
portantes apenas quando fundam entados em alguma teo­
ria que os explique. Gostaria, inclusive, de ver contra-
exem plos às teorias causal e descritivista tratados com a
mesma atitude. A dificuldade é que os contra-exemplos
que apresentei parecem, efetivamente, suscitar sérias difi­
culdades para a teoria (ou quadro) causal, e eles têm co­
m o suporte uma teoria da Intencionalidade. No caso de
Madagascar, a Intencionalidade que se prende ao nome
modifica a referência desde o ponto de partida da cadeia
causal até o objeto que satisfaz o conteúdo Intencional as­
sociado e, no caso da localização de nomes em sistemas
nominativos, a posição de um nom e enquanto elem ento
da Rede fornece Intencionalidade suficiente para assegu­
rar ao nom e uma referência sem nenhum a cadeia causal.
Passemos agora à questão mais importante: Acaso a
teoria ou quadro causal revela o caráter essencial da ins­
tituição dos nom es próprios? Creio que a resposta é cla­
ramente negativa. Para se perceber isso, imaginemos uma
com unidade primitiva de caçadores e colhedores dotada
de uma linguagem que contenhà nom es próprios. (E de
m odo algum é implausível imaginar uma linguagem usa­
da por um a com unidade primitiva; ao que se sabe, foi
em com unidades tais que as linguagens hum anas conhe­
ceram seu primeiro desenvolvim ento.) Imaginemos que
todos os m em bros da tribo conhecem todos os demais
membros e que os membros neonatos sejam batizados
em cerimônias freqüentadas por toda a tribo. Im agine­
mos, ainda, que, à medida que as crianças crescem, vão
334 INTENCIONALIDADE

aprendendo os nom es das pessoas, assim como os no­


mes locais de m ontanhas, lagos, ruas, casas etc. por os-
tensão. Suponhamos, também, que exista um rígido tabu
na tribo contra o falar sobre os mortos, de sorte que o
nom e de um indivíduo jamais é pronunciado após sua
morte. Ora, o essencial da fantasia é simplesmente o se­
guinte: Do m odo como a descrevi, essa tribo dispõe de
uma instituição de nom es próprios usados para referên­
cia, exatam ente da mesma forma com o os nossos nom es
são usados para referência, mas não existe um único uso
de um nome na tribo que satisfaça a cadeia causal da teo­
ria da comunicação. Do m odo com o a descrevi, não
existe uma única cadeia de com unicação do tipo defendi­
do por Kripke, Donnellan e outros. Cada uso de um no­
me nessa tribo, tal com o o descrevi, satisfaz a alegação
descritivista da existência de um conteúdo Intencional a
associar o nom e ao objeto. No caso em questão, deve­
mos supor que as pessoas aprendem os nomes por os-
tensão e que aprendem a reconhecer os membros de sua
tribo, as m ontanhas casas etc. O ensino estabelece um
conteúdo Intencional que é satisfeito pelo objeto17.
Parece-me que os teóricos causais poderiam apre­
sentar a seguinte réplica: O espírito da teoria causal se
mantém no exemplo, pois, embora não haja uma cadeia
de comunicação, há, não obstante, uma relação causal
entre a aquisição do nom e e o objeto nom eado, pois o
objeto é apresentado ostensivam ente. A resposta a tal
alegação é dupla. Em primeiro lugar, o tipo de relação
causal que ensina o uso do nom e é a pura e simples cau-
sação Intencional; não é de m odo algum externalista. Va­
le dizer, o tipo de relação causal estabelecida nesses ca­
sos é uma relação causal descritivista. Q uando digo “Bax­
ter”, designo o hom em ao qual sou capaz de reconhecer
como Baxter ou o homem a quem fui apresentado como
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE. 335

sendo Baxter, ou o homem a quem vi ser batizado como


Baxter, e, em cada úm desses casos, o elemento causal im­
plicado pelo termo em itálico é a causação Intencional.
Em cada caso a condição causal é parte do conteúdo In­
tencional associado ao nome. Observe-se, ainda, que o
que conta não é o fato de eu fornecer uma descrição ver­
bal, mas a existência de um conteúdo Intencional.
Se devemos ter na teoria causal uma alternativa à teoria
descritivista, a causação em questão não deve ser descriti-
vista e não deve ser interna, do contrário a teoria causal
será uma simples variante da teoria descritivista. Isso equi­
vale simplesmente à alegação de que o descritivismo inclui
alguns elementos, por exemplo perceptivos, no conteúdo
Intencional associado ao emprego do nome. Mas, em se­
gundo lugar, nem sequer precisamos supor que todos os
nomes da com unidade sejam introduzidos por ostensão.
Como admite Kripke, podem existir, na comunidade, no­
mes introduzidos puramente através de descrição. Supo­
nhamos que os astrônomos e meteorologistas da comuni­
dade sejam capazes de prever tempestades e eventos as­
tronômicos futuros, e que atribuam nomes próprios a tais
eventos e fenômenos futuros. Esses nomes são ensinados
a todos os membros da comunidade puramente via descri­
ção, e está fora de questão a hipótese de os eventos cau­
sarem os nomes, uma vez que os eventos estão localiza­
dos no futuro. Ora, temos aqui, parece-me, uma comuni­
dade que satisfaz todas as condições essenciais para a
existência de nomes próprios e a existência de uma insti­
tuição de nomes próprios que funcione como instrumento
de referência, da mesma forma com o os nossos nom es
próprios funcionam como instrumentos de referência, mui­
to embora não haja um único uso de nom e próprio que
satisfaça a estória, quadro ou teoria dos teóricos causais.
336 INTENCIONALIDADE

Se com tal facilidade descrevemos o exem plo de to­


da uma com unidade que satisfaz as condições para o uso
de nom es próprios mas não satisfaz as condições estabe­
lecidas pela teoria causal, como devemos explicar o fato
de a teoria ter parecido tão plausível aos olhos de tantos
filósofos? O que faremos com essa divergência? Observe-
se que nem em Donnellan nem em Kripke a teoria causal
foi apresentada com o o resultado de alguma interpreta­
ção, independentem ente motivada, do uso dos nom es,
mas sim com o uma alternativa, esboçada em linhas ge­
rais, à teoria descritivista. O principal esforço de ambas
as argum entações era no sentido de buscar refutar o des-
critivismo, e se pretendem os com preender o que existe
nessa disputa devemo-nos voltar agora para èssa teoria.

III. A TEORIA DESCRITIVISTA DOS NOMES PRÓPRIOS

Será impossível com preender as teorias descritivistas,


a menos que se com preendam as concepções a que elas
originalm ente se opunham . Na época em que escrevi
“Proper nam es”18, em 1955, havia três concepções funda­
mentais dos nom es na literatura filosófica: a concepção
de Mill de que os nomes não têm conotação alguma, mas
apenas uma denotação; a concepção de Frege de que o
significado de um nom e é dado por um a única descricão
definida que lhe é associada; e aquela que poderíam os
chamar a concepção lógica tradicional e ortodoxa de que
o significado de um nom e “N" é simplesmente “chamado
N”. Ora, a primeira dessas concepções parece obviam en­
te inadequada. Se o problema de uma teoria dos nom es
próprios é responder à pergunta, “Por que razão o falan­
te, ao enunciar um nome, consegue referir-se a um obje­
to particular?”, a interpretação de Mill é sim plesm ente
SOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 337

Lima recusa em responder à questão; tudo o que ela diz é


que o nom e se refere ao objeto, e ponto final. Mas a ter­
ceira resposta é também insatisfatória. Conforme escrevi
em Speech Acts,

a descrição “O homem chamado X ” não é válida, ou ao


menos não vale por si mesma, como uma satisfação do
princípio de identificação. Isso porque se me perguntarem,
“A quem você designa por X V’, e eu responder, “O ho­
mem chamado X ”, ainda que seja verdadeiro que não
exista senão um homem chamado X, estarei simplesmente
dizendo que se trata do homem ao qual os outros se refe­
rem pelo nome “X Mas se eles se referem a ele pelo no­
me “X ” também devem estar preparados para substituir
“X" por uma descrição de identificação e se, em seguida,
substituírem “o homem chamado X ”, a questão somente é
prolongada até um estágio posterior, e é impossível pro-
longá-la sem que haja uma circularidade ou um regresso
infinito. Minha referência a um indivíduo pode ser parasi­
tária da referência de outrem, porém tal parasitismo não
pode estender-se indefinidamente se pretendemos que ha­
ja alguma referência em absoluto.
Por essa razão, não estaremos respondendo, de mo­
do algum, à pergunta de qual, se é que existe algum, o
sentido do nome próprio “X”, se dissermos que seu senti­
do, ou parte deste, é “chamado X”. Poderíamos igualmen­
te dizer que parte do significado de “cavalo” é “chamado
um cavalo”. É de fato surpreendente a freqüência com que
se comete tal equívoco.19

Surpreendente em igual proporção talvez seja o fato


de Kripke dizer a mesma coisa20, chegando a adotar o
mesmo exem plo do “cavalo” com o se fosse uma objeção
ou em pecilho à teoria descritivista, quando, na realidade,
trata-se de um a das teses fundam entais da m esm a, ao
m enos em suas formulações mais recentes. Observe-se,
338 INTENCIONALIDADE

no entanto, que o trecho acima não implica a impossibili­


dade de alguém se referir a determ inado-objeto por um
nom e “N ” quando a única descrição de identificàcão que
se tem do objeto é “cham ado ‘TV’”, mas afirma, antes,
que tal descrição não pode constituir, em si, uma expli­
cação de com o os nomes próprios fazem referência, pois
tais descrições de identificação dependem da existência
de algumas outras descrições de identificação de um tipo
com pletam ente diverso. A polêmica meta do trecho em
questão era com bater a concepção lógica padrão, não
para fornecer um a falsa interpretação de como é assegu­
rada a referência, mas para fornecer uma interpretação
incompleta e de poder explicativo fraco. Muitas vezes, na
verdade, o indivíduo faz efetivamente o que denom inei
referências parasitárias pelo uso de um nom e próprio:
muitas vezes, a única descrição de identificação que se
associa ao nom e “N ” é sim plesmente o “objeto cham ado
N em m inha com unidade ou por m eus interlocutores”.
Em um caso tal, meu uso do nom e é parasitário do uso
do nom e por parte de outros falantes, no sentido cie que
minha referência, pelo uso de um nom e ao qual unica­
mente posso atribuir o conteúdo Intencional “cham ado
N", apenas será bem -sucedida áe existirem agora, ou se
tiverem existido no passado, outras pessoas que usam ou
usaram o nom e “N ” e atribuam a ele um conteúdo se­
mântico ou Intencional de natureza com pletam ente di­
versa. (E, lembremos, a “descrição de identiftóação” não
implica “em palavras”, mas significa simplesmente: con­
teúdo Intencional, incluindo Rede e Background, suficien­
te para identificar o objeto, e tal conteúdo pode ou não
ser em palavras.) Assim, por exem plo, se tudo o que co­
nheço acerca de Plotino é o que ouvi da boca de outras
pessoas sobre alguém que usa o nom e “Plotino”, posso,
ainda assim, referir-me a Plotino usando o nom e “Ploti-
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 339

no”, mas minha capacidade de fazê-lo é parasitária d a­


quela de outros falantes.
A teoria de Frege, portanto, é a mais promissora, e foi
esta que busquei desenvolver. Seu mérito principal reside
no fato de Frege perceber que, no caso dos nomes próprios,
assim como no de qualquer termo capaz de fazer referên­
cia, deve haver algum conteúdo Intencional em virtude do
qual o termo faz referência. Seus principais deméritos resi­
dem no fato de haver, aparentemente, julgado que o con­
teúdo semântico estava sem pre em palavras, sobretudo
descrições, e que a descrição parecia uma definição ou
um sentido do nome. Uma virtude adicional da teoria fre-
giana, e da teoria que busquei desenvolver, é que ambas
facultam-nos responder a determinadas questões curiosas
referentes à ocorrência dos nomes próprios em enuncia­
dos de identidade, enunciados existenciais e enunciados
intensionais-com-s acerca de estados Intencionais, e, até
onde consigo perceber, nenhum teórico causal até o pre­
sente forneceu uma resposta satisfatória a essas questões.
À luz desse pequeno esboço das motivações para a
teoria descritivista, examinemos agora, mais uma vez, a
teoria causal. Do ponto de vista da teoria descritivista, a
análise causal conduz ã seguinte conclusão: a “cadeia
causal de co m u n ica çã o” é simplesmente um a caracteri­
zação dos casos parasitários observados de um ponto de
vista externo. Permitam-me esclarecer esse ponto. Kripke
afirma que o falante, em cada elo da cadeia comunicati­
va, deve ter a intenção: “quando enuncio ‘N ’ pretendo
referir-me ao m esm o objeto que a pessoa de quem obti­
ve o nom e W ”. Afirma o descritivista que uma modalida­
de de descrição da identificação que o indivíduo pode
atribui a um nom e TV’ é “a pessoa referida pelos outros
m em bros de m inha com unidade lingüística com o ‘/V’”.
Ambos os lados concordam em que tal não é suficiente
340 INTENCIONALIDADE

por si mesmo: Kripke insiste em que a cadeia deve partir


de um batismo inicial; o descritivista admite uma varieda­
de de meios em que pode ter início a cadeia, um dos
quais é o batismo. Onde está a diferença? No que se refe­
re ao conflito entre o descritivismo e a teoria causal, não
há diferença alguma: a teoria de Kripke é apenas um a
forma variante do descritivismo. Mas e quanto à cadeia
causal? Não é verdade que a teoria causal exige um a ca­
deia causal externa que garanta a eficácia da referência?
A cadeia causal externa não desempenha função explica­
tiva alguma, quer na teoria de Kripke, quer na de Don-
nellan, conform e explicarei brevemente. A única cadeia
relevante é aquela em que se dá uma transferência de
conteúdo Intencional, de um determ inado uso de um a
expressão para o seguinte, e, em cada caso, a referência
é assegurada em virtude do conteúdo descritivista Inten­
cional na m ente do falante que em prega a expressão. Es­
se ponto se tornará mais claro quando passarmos aos su­
postos contra-exem plos, mas já se pode percebê-lo na
caracterização de Kripke: Suponham os que, haja o batis­
mo inicial de um a m ontanha com o nom e “N" e em se­
guida um a cadeia com dez elos, cada qual formado por
uma pessoa que emite “N" com o propósito de usar o
termo para referir-se ao mesmo ente, qualquer que seja
este, a que a pessoa que lhe transmitiu o nom e referiu-
se. Admitindo que não haja a intromissão de Intencionali­
dade alguma, nenhum a outra crença etc., acerca de N,
para garantir que cada um se refira ao alvo inicial do b a­
tismo, N é suficiente, por si, unicam ente em virtude do
fato de existir um, e um único, objeto que satisfaz o con­
teúdo Intencional da pessoa. Após o falante que em preen­
deu o batismo inicial, os conteúdos Intencionais subse­
qüentes são parasitários dos conteúdos Intencionais ante­
riores na obtenção da referência. O bviam ente, haverá
SOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 341

uma caracterização causal externa da cadeia, e um obser­


vador onisciente poderia observar o sr. Um conversando
com a sra. Dois, e assim sucessivamente até o sr. Dez, e
poderia descrever uma seqüência de eventos sem mencio­
nar Intencionalidade alguma, sem nenhum a m enção de
conteúdo descritivo. Todavia, não é a seqüência de tra­
ços caracterizados pelo observador externo que assegura
a referência. A referência, para Kripke, é assegurada in­
teiramente por um conteúdo descritivo.
O modo de se verificar qual fator é responsável pela
tarefa de assegurar a referência, conteúdo descritivo ou
cadeia causal, é variar um deles m antendo, ao m esm o
tempo, o outro constante, e verificar o que acontece. Su­
ponham os que a senhorita Sete decida usar o nom e não
para referir-se à mesma coisa que a pessoa que lhe trans­
mitiu o termo, mas para referir-se, em vez disso, a seu
poodle de estimação. A cadeia de comunicação, a partir
de uma descrição externa, pode ser exatamente a mesma:
o nome “N ” é transmitido de Um a Dez, mas a mudança
de conteúdo Intencional significa que Sete, Oito, Nove e
Dez estão se referindo a um poodle e não uma montanha,
pelo simples fato de que um poodle e não a montanha satis­
faz a descrição de identificação destes (o que muito se as­
semelha ao exem plo de Madagascar). Imaginemos, inver­
samente, que a cadeia seja a de um conteúdo descritivo
constante, cada qual parasitário do falante anterior até o
batismo inicial, mas variemos a história causal externa de
qualquer modo que o desejarmos e, ainda assim, a refe­
rência não será afetada. Uma vez admitida essa hipótese,
que fator é responsável pela tarefa, a Intencionalidade ou
a “causaçâo física ordinária“?
Em resposta à sugestão de que o descritivista pode
facilmente acatar suas teorias, tanto Kripke como Donel-
lan e Devitt insistem em que, segundo a concepção des-
342 INTENCIONALIDADE

critivista, o falante deveria lembrar-se de quem lhe trans­


mitiu o nom e. Mas isso me parece francam ente falso.
Posso fazer (e faço), por exemplo, referências parasitárias
em pregando o nom e “Plotino” do m odo como considerei
acima, sem me recordar de quem me transmitiu o nome.
Simplesmente tenciono referir-me à mesma pessoa com o
aquela (seja ela quem for) que me transmitiu o nome, de
acordo com a versão kripiana do descritivismo.
Mas por que isso é relevante? Que diferença faz se a
cadeia é descrita em termos de conteúdo Intencional ou
causação física externa? Porque a questão, eu repito, é
saber se a referência é bem -sucedida em virtude do fato
de o objeto referido adequar-se a, ou satisfazer, alguma
descrição associada, ou se a referência é obtida em virtu­
de de alguns fatos acerca do m undo, de modo com pleta­
m ente independente de com o tais fatos são representa­
dos na mente: alguma condição que a emissão da ex­
pressão satisfaz e que seja independente dos conteúdos
de qualquer descrição associada. Kripke e Donnellan ale­
gam estar argum entando contra a concepção de referên­
cia via conteúdo Intencional associado e em favor das
condições causais externas. De minha parte, defendo o
ponto de vista de que, até ònde a teoria de ambos é efi­
caz, tal se deve ao fato de ser ela descritivista; a cadeia
causal externa não desem penha papel explicativo algum.
E não estou dizendo que seja possível im por à teoria d e­
les um padrão descritivista, mas sim que, quando exami­
nada em detalhe, a própria interpretação que apresentam
é descritivista apenas na superfície. Não nos deveríamos
surpreender por eles terem tão pouco a dizer acerca da
causação. Esta não desem penha função alguma em suas
teorias. Para observarmos tal aspecto mais a fundo, pode­
mos recorrer a Donnellan.
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 343

Suponhamos que alguém diga “Sócrates tinha nariz arrebi­


tado”, e indaguemos a quem o falante estã se referindo. A
idéia central é a de que isso pede uma explicação históri­
ca; estamos em busca não de um indivíduo que melhor se
ajuste às descrições do falante, e ao qual o falante consi­
dera estar se referindo... mas sim de um indivíduo histori­
camente relacionado ao uso do nome “Sócrates”, por par­
te do falante, em tal ocasião. Poderia se dar que um obser­
vador onisciente da história enxergasse um indivíduo rela­
cionado a um autor de diálogos, que um dos personagens
centrais desses diálogos fosse moldado com base nesse in­
divíduo, que tais diálogos houvessem passado de mão em
mão e que o falante os houvesse lido em traduções, que o
fato de o falante predicar agora, de algum indivíduo, que
ele tem nariz arrebitado seja explicado pelo fato de haver
lido essas traduções (...) “Que indivíduo, se é que há al­
gum, o falante descreveria dessa forma, ainda que, talvez,
erroneamente?” (os itálicos são meus)21.

O trecho acima parece fornecer um a interpretação


bastante sensata - a dúvida que perm anece é: O que o
observador onisciente deve procurar identificar e por quê?
Que considerações ele faz ao concluir “que indivíduo, se
é que há algum, o falante descreveria dessa forma”? Uma
vez que existe um núm ero indefinido de “relações históri­
cas”, deve haver algum princípio para a seleção daquelas
que são pertinentes. Qual será esse princípio? Creio que a
resposta está im plícita'na passagem citada. Devemos to­
mar dois conjuntos de conteúdos Intencionais como deci­
sivos. Em primeiro lugar, o autor dos diálogos moldou um
dos personagens centrais com base em um indivíduo real,
ou seja, o autor dispunha de uma representação do indi­
víduo em questão e tencionava que o nom e “Sócrates”,
no diálogo, se referisse a ele. Em segundo lugar, o falan­
te, tendo lido os diálogos, tencionou usar o nom e “Sócra-
344 INTENCIONALIDADE

tes” para referir-se à mesma pessoa a que se referia o au­


tor dos diálogos. O falante, por sua vez, colherá nos diá­
logos uma porção de descriçõés adicionais, as quais po­
derão ser ou não verdadeiras com respeito ao hom em ao
qual ele se refere.
Ora, se indagarmos a um homem, “A quem o senhor
designa por ‘Sócrates’?”, talvez ele nos forneça algumas
dessas descrições e, com o ressalta Donnellan, estas talvez
não sejam verdadeiras com respeito ao hom em referido
como “Sócrates” pelo autor dos diálogos, mas verdadeiras
com respeito a outrem, digamos, o próprio autor. Supo­
nhamos que o hom em diga, “Por ‘Sócrates’ designo o cria­
dor do m étodo dialético”, e suponham os que o próprio
autor dos diálogos tenha inventado o m étodo e atribuído,
modestam ente, sua criação a Sócrates. Ora, se dissermos
então, “Ainda assim, o hom em estava realmente se refe­
rindo à pessoa referida pelo autor com o ‘Sócrates’ e não
ao hom em que de fa to criou o m étodo dialético”, esta­
mos com prom etidos com a noção de que o conteúdo In­
tencional do falante, “Refiro-me ao m esm o hom em ao
qual se referiu o autor dos diálogos”, precede seu con­
teúdo, “Refiro-me ao criador do m étodo dialético”. Q uan­
do nos deu a última resposta, ele o fez baseado no pres­
suposto de que um e o mesmo hom em satisfaziam a am­
bos os conteúdos. Caso estes se separem , ou seja, se ca­
da conteúdo Intencional for satisfeito por uma pessoa di­
ferente, cabe ao falante determ inar qual deles assum e a
precedência. O falante expressou um fragmento de sua
Rede de conteúdos Intencionais. Se tal fragm ento não
corresponde ao objeto que satisfaz o restante da Rede, o
observador onisciente, de forma bastante sensata, deverá
supor que o restante da Rede assum e a precedência. Ele
estará se referindo ao Sócrates histórico, ainda que tenha
fornecido uma descrição falsa, mas tal suposição é uma
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 345

suposição acerca de como o conteúdo Intencional do ho­


mem determ ina a referência. Assim, tanto na teoria de
Kripke com o na de Donnellan as condições da referência
bem-sucedida são profundam ente descritivistas.

IV. DIFERENÇAS ENTRE AS DUAS TEORIAS

Embora tanto a teoria “descritivista” como a “causal”


sejam no fundo descritivistas, existe ainda uma série de
importantes diferenças entre ambas.
1. Segundo a teoria causal, a transferência de Inten­
cionalidade na cadeia de comunicação constitui realm en­
te a essência da instituição dos nom es próprios. Segundo
o descritivista, trata-se apenas de um fator incidental e,
de m odo algum, a característica essencial ou definidora
da instituição. E o objetivo da parábola da com unidade
de caçadores e colhedores era tão-som ente o de dem ons­
trar esse aspecto: a tribo dispõe da instituição dos nom es
próprios para fazer referência, mas não há cadeias dè co­
m unicação e não há referências parasitárias. Outra forma
de dem onstrar o mesmo aspecto é perceber que, em bora
a referência parasitária seja sem pre possível no caso dos
nom es próprios, esse tipo de parasitismo também é pos­
sível no caso de toda e qualquer palavra que expresse
um conteúdo Intencional, incluindo os termos genéricos.
Considerem-se, por exemplo, as palavras “estruturalism o”
e “estruturalista”. D urante m uito tem po, tive apenas a
mais vaga das idéias quanto ao significado dessas pala­
vras. Sabia que o estruturalismo era um certo tipo de teo­
ria em voga, mas era esse, aproximadamente, o limite de
meu conhecim ento. Ainda assim, dadas m inha Rede e
Background, eu poderia usar a palavra “estruturalismo"
de uma forma parasitária; eu poderia, por exemplo, inda-
346 INTENCIONALIDADE

gar, “Existem ainda muitos estruturalistas na França?”, ou


“Será Pierre um estruturalista?” E observe-se que tal parasi-
tismo não se restringe aos termos naturais de espécie do
modo m encionado por Putnam. Não se trataria de um ca­
so de identificar, de forma ostensiva e por seu aspecto su­
perficial, estruturalistas que estivessem de passagem, na
esperança de que algum dia as investigações científicas re­
velassem sua verdadeira natureza. No que tange a essa di­
ferença entre a teoria descritivista e a causal, a argumenta­
ção pareceria favorecer a alegação descritivista de que as
cadeias comunicativas não constituem o fator essencial da
instituição dos nom es próprios, muito embora ambas as
facções concordassem em que elas de fato costum am
ocorrer.
2. O descritivista considera bastante implausível pre­
sumir que, nas cadeias de com unicação, quando estas
efetivamente ocorrem, a única Intencionalidade que asse­
gura a referência é que cada falante pretende referir-se
ao mesmo objeto a que se referia o falante que o prece­
de na cadeia. Na vida real, todo um volume de informa­
ção é transferido na cadeia comunicativa e parte dessa
informação será pertinente à garantia da referência. Por
exemplo, o tipo de coisa nom eada pelo nom e - seja esta
uma montanha, um homem, um alce ou o que for - é
geralmente associado ao nome, m esm o nos casos parasi­
tários; e caso o falante esteja redondam ente equivocado
acerca disso dificilmente diríamos que foi de fato bem-
sucedido ao fazer sua referência. Suponhamos, por exem ­
plo, que ele ouça uma discussão acerca da filosofia so­
crática da matemática e, por um a confusão, imagine ser
“Sócrates” o nom e de um núm ero ímpar. Suponham os
que ele diga “Creio que Sócrates não é primo, mas é divi­
sível p or 17”. Ele satisfaz a versão kripkiana da teoria
causal, mas sua tentativa de referir-se a Sócrates não é
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 347

bem-sucedida. Além disso, ali onde o alvo inicial do batis­


mo não coincide com o objeto que satisfaz ò conteúdo
associado não-parasitário, nem sem pre' concebemos a re­
ferência com o a reportar-se ao alvo inicial. No caso de
Madagascar, presumimos que cada falante pretendia refe­
rir-se ao mesmo objeto que o orador anterior, porém Mar­
co Polo intruziu um certo conteúdo Intencional-novo que

PARA
assumiu a precedência na cadeia comunicativa. Ele identi­
ficou uma ilha e não uma região do continente africano.

CENTRAL
Uma conseqüência pouco observada, mas absurda,

uO
da concepção de Kripke, é o fato de a mesma não esta­
belecer restrição alguma quanto ao objeto a que o nom e

U M V E K ímD/-. t ftDr.K^
pode resultar referir-se. Assim, por exemplo, pode resul­
tar que por “Aristóteles” eu esteja me referindo a um tam­

S iBLIOTECA
borete na Jo e ’s Pizza Place em H oboken no ano de 1957,
se ocorresse que a cadeia causai conduzisse a tal. Em ou­
tras palavras: não poderia referir-me por “Aristóteles” a
um tamborete, pois não é isso o que designo por “Aristó­
teles”. E as observações de Kripke acerca do essencialis-
mo são insuficientes para obstar tal resultado, pois consti­
tuem elas próprias, sem exceção, necessidades de re afi­
xadas a objetos, mas sem afixar nenhum conteúdo Inten­
cional restritivo ao uso do nome. Portanto, ainda que se
trate de uma necessidade metafísica de re que o hom em
concreto tivesse uma determinada m ãe e um determinado
pai, tal absolutamente nada nos revela acerca do m odo
como o nom e se refere ao hom em e não a um tamborete.
3. Em geral, o descritivista tende a preferir o conteúdo
Intencional de primeira ordem e julgar menos importantes
os casos parasitários; o teórico causal enfatiza a descrição
de identificação parasitária. O embrião da verdade na teo­
ria causal parece-me o seguinte: Nos casos em qu.e não te­
mos uma familiaridade direta com o objeto que designa­
mos, tenderemos, normalmente, a conferir precedência ao
348 INTENCIONALIDADE

conteúdo Intencional parasitário. Por exemplo, no caso


dos nomes de figuras históricas remotas, como Napoleão
ou Sócrates, ou gente famosa, como Nixon, em face de
um conflito entre o conteúdo Intencional de primeira' or­
dem e o parasitário, optaremos, normalmente, pelo segun­
do. Por quê? Porque a cadeia da Intencionalidade parasitá­
ria nos reportará ao alvo original do batismo e é este que
- via de regra, embora não sempre - tendemos a conside­
rar importante. Nesse sentido, ós nomes próprios diferem
dos termos genéricos. Uma vez que o objetivo de se pos­
suir nomes próprios é tão-somente o de fazer referência a
objetos, e não descrevê-los, via de regra não damos a me­
nor importância ao conteúdo descritivo empregado para
identificar o objeto, contanto que tal conteúdo identifique
o objeto correto, onde “objeto correto” é exatamente aque­
le a que os outros se referem pela utilização do nome.

V. SUPOSTOS CONTRA-EXEMPLOS AO DESCRITIVISMO

Com a presente discussão em mente, passemos ago­


ra aos contra-exemplos. Os contra-exemplos à teoria des-
critivista com que deparo geralmente malogram, em ra­
zão de os autores procurarem observar tão-som ente o
que o agente poderia dizer e não o conteúdo Intencional
total que este tem na cabeça, e tam bém por negligencia­
rem a função da Rede e do Background. Cada contra-
exemplo pretende dem onstrar que um falante irá se refe­
rir a um objeto na emissão de um nome, ainda que a
descrição definida associada não seja satisfeita por tal ob­
jeto, ou seja satisfeita por outro objeto, ou por nenhum .
Mostrarei que, em cada caso, a referência é consumada
unicamente porque o objeto satisfaz o conteúdo Intencio­
nal presente na m ente do falante.
XOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 349

Exemplo 1: O caso Gôdel/Schmidt (Kripke)

A única coisa que Jones conhece ou pensa conhecer


acerca de Kurt Gõdel é que se trata do autor da célebre
prova da incom pletude. Mas suponham os, de fato, que
a prova tenha sido escrita por outro hom em , Schmidt.
Ora, quando solicitamos a Jones uma descrição de identi­
ficação de “G õdel” ele diz, “o autor do teorema da in­
com pletude da aritmética”. Na verdade, porém, quando
Jones em prega o nom e ‘'G õdel” está se referindo a Gõdel
e não ao hom em que satisfaz sua descrição.
Com base no que expus, torna-se óbvio que a inter­
pretação correta desse caso é que Jones tem um conteú­
do Intencional consideravelm ente maior do que a sim­
ples descrição que fornece. No mínimo tem “o hom em
cham ado ‘G õdel’ em minha com unidade lingüística ou,
ao menos, por aqueles que me transmitiram o nom e”. Ao
lhe pedirem um a descrição de indentificação a razão pela
qual não dá esse conteúdo como resposta é que parte do
pressuposto de que se espera algo mais do que isso.
Qualquer um que lhe pedisse a descrição de identifica­
ção já estaria de posse de tal parcela de Intencionalidade.
E característico dessas discussões que muito rara­
mente os autores nos forneçam as sentenças nas quais
devemos imaginar a ocorrência do nome, mas, se consi­
derarmos sentenças concretas, esse exemplo poderia to­
mar qualquer uma das duas direções. Suponhamos que
Jones diga, “Na linha 17 de sua demonstração, Gõdel faz
o que a mim me parece uma inferência falaciosa”, e su­
ponham os que indagamos a ele o que designa por “Gö­
del”. Ele responde, “Designo o autor do célebre teorema
da in co m p letu d e”, ao que, de nossa parte, dizem os,
Bem, na verdade, Gõdel não dem onstrou esse teorema,
cie foi originalmente dem onstrado por Schmidt”. Ora, o
350 INTENCIONALIDADE

que diz Jones? Parece-me que poderia perfeitamente di­


zer que por “G õdel” designa simplesmente o áutor da d e­
monstração da prova de incompletude, independente de
com o seja, na verdade, chamado. Kripke admite que pos­
sam existir tais usos. Envolvem eles o que denom inei
usos de aspecto secundário dos nom es próprios22. Mas
não é preciso que Jones o diga. Ele poderia dizer, “Esta­
va me referindo ao hom em a quem ouvi chamarem ‘Kurt
Gõdel’, independente de havér ele dem onstrado ou não
a incom pletude da aritmética”. Por outro lado, suponha­
mos que Jones diga, “Kurt Gõdel viveu em Princeton”.
Nesse caso, parece-m e bastante provável que se Jones
imagina que Gõdel não satisfaz a descrição definida, não-
parasitária, que afixou ao nome, ele simplesmente recor­
rerá ao conteúdo Intencional parasitário que afixa ao no­
me. Em am bos os casos, porém, é o conteúdo Intencional
do falante que determina a referência. Não basta observar
simplesmente o que diz o falante em resposta a uma per­
gunta específica, mas é preciso observar seu conteúdo In­
tencional na íntegra, bem como as capacidades de Back­
ground associadas a um nome e o que diria ele se infor­
mado que diferentes partes de tal conteúdo seriam satis­
feitas por objetos diferentes. A m eu ver, nada há nesse
exemplo que deva perturbar o descritivista.

Exemplo 2: Tales, o cavador de poços (Donnellan)2$

Suponham os que tudo quanto um determ inado fa­


lante conhece ou pensa conhecer acerca de Tales é que
se trata de um filósofo grego que afirmou que tudo é
água. Suponham os, porém, que jamais haja existido um
filósofo grego que tenha dito tal coisa. Suponhamos que
Aristóteles e H eródoto estivessem se referindo a um ca-
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 351

vador de poços que teria dito, “Gostaria que tudo fosse


água, pois assim não teria de cavar esses malditos p o ­
ços”. Nesse caso, segundo Donnellan, quando o falante
em prega o nom e “Tales”, está se referindo ao cavador de
poços. Suponham os, ainda, que houvesse um erem ita
que jamais tenha tido o menor contato com ninguém e que
efetivamente sustentasse que tudo é água. Ainda assim,

UNIVERSIDADE Ftl/cKAt DO PA/M


quando dizemos “Tales”, claramente não estamos nos re­
ferindo àquele eremita.
Na verdade, existem dois aspectos nessa argum enta­

CENTRAL
ção: o primeiro acerca do eremita e o segundo acerca do
cavador de poços. Aparentemente, o caso do cavador de
poços se assemelha, na forma, ao caso de Gõdel/Schmidt.
O falante tem sem pre seu conteúdo Intencional parasitá­
rio a que recorrer caso sua descrição associada seja satis­

BIBLIOTECA
feita por algum objeto que não se encaixa no restante de
seu conteúdo Intencional. Todavia, o caso também susci­
ta a questão isolada de com o a Rede das crenças do fa­
lante estabelecerá algumas restrições adicionais à cadeia
da Intencionalidade parasitária. Suponham os que Heró-
doto tenha ouvido uma rã, no fundo de um poço, a pro­
duzir um coaxar que soasse com o “tudo é água” em gre­
go; suponham os ainda que a tal rã é um bichinho de es­
timação de nom e “Tales” e que o incidente seja a origem
da co n cep ção su sten tad a p o r alguém de que tu d o é
água. Q uando em prego o nom e “Tales”, julgando estar-
me referindo a um filósofo grego, estarei me referindo
àquela rã? Creio que não. Dúvidas semelhantes poderiam
ser apresentadas acerca do cavador de poços: é possível
imaginar sentenças em que eu estivesse inclinado a dizer
que me referia ao cavador de poços e outras em que es­
tivesse inclinado a dizer que não consegui referir-me a
ninguém pois não existia nenhum Tales filósofo. Contu­
do, nos casos em que m e refiro a um cavador de poços,
352 INTENCIONALIDADE

faço-o p orque este satisfaz o suficiente meu conteúdo


descritivo; em particular, satisfaz o conteúdo, “A pessoa
referida com o ‘Tales’ pelas pessoas que me transmitiram
o uso do nom e”, ou seja, ele satisfaz o conteúdo Intencio­
nal parasitário do tipo que m encionam os anteriormente.
No- caso do eremita, a razão pela qual não sentimos ab­
solutamente inclinação alguma para dizer que nos referi­
mos a ele com o mesmo nom e “Tales” é que o eremita
não satisfaz a condição de eficaixar-se na Rede de Inten­
cionalidade pertinente. Q uando dizemos “Tales é o filó­
sofo grego que sustentava que tudo é água”, não desig­
namos sim plesmente qualquer indivíduo que sustentasse
que tudo é água, mas designamos a pessoa conhecida de
outros filósofos gregos como aquela que sustentava que
tudo é água; e que era referida em seu tem po ou subse­
qüentem ente p o r alguma variante grega ou antecessora
da expressão que atualm ente pronunciam os com o “Ta­
les”, cujas obras e idéias chegaram até nós postum am en­
te por intermédio dos escritos de outros autores, e assim
por diante. Repetindo, pois, haverá, em todos esses ca­
sos, uma interpretação causal externa de com o obtive­
mos tal informação, mas o que assegura a referência não
é a cadeia causal externa e sim a seqüência em que se dá
a transferência dos conteúdos Intencionais. A razão pela
qual não nos mostramos inclinados a admitir que o ere­
mita seja qualificado como Tales é que ele simplesmente
não se encaixa na Rede e no Background. O exem plo
em questão é algo análogo ao exem plo do hum anóide
que inventou as lentes bifocais 80 bilhões de anos antes
qtie Benjamin Franklin tivesse nascido. Q uando afirma­
mos que Franklin inventou as lentes bifocais, querem os
dizer: relativamente a nossa Rede e Background.
XOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 353

Exemplo 3: As duas m anchas (D onnellan)2i

Suponham os que um hom em enxergue duas m an­


chas coloridas em uma tela, uma acima da outra. Supo­
nhamos que nom eie a de cima “A ” e a de baixo “B ”. A
única descrição de identificação que poderá fornecer é
que A é “a de cim a”. Suponhamos, porém, que, sem que m
o saiba, tenham os dado a ele lentes de inversão, de mo- ^
do que aquela que imagina estar no alto está embaixo e 3-

C tH T R A V .
vice-versa. Em tal caso, a descrição de identificação que

‘-'U
ele poderá fornecer é, na verdade, falsa com respeito ao
objeto referido, muito em bora sua referência a A seja

r - c U i '. « '-
bem-sucedida.
Tratarei esse exem plo com alguma brevidade. A é

f EGA.
aquela que ele efetivamente enxerga bem ali. É a m an­
cha que causa essa experiência visual. Seria impossível

*>t
esperar por uma “descrição de identificação” melhor do
que essa. Expressões do tipo “a d e cima” destinam-se ri­

UNlVEKi-iD
gorosamente ao consum o público e, ainda que possam os
imaginar casos em que viriam a preceder a apresentação
Intencional, na maior parte dos casos o conteúdo apre-
sentacional é primário. Em resumo, quer em percepção,
quer em memória, o conteúdo Intencional do falante será
suficiente para destacar A. Suponhamos, porém, que ele
esqueça que viu A e que chegue mesmo a esquecer ter
imaginado que A se encontrava em cima. Tudo de que se
lembra é que o nom e nomeava um a mancha. Não pode­
rá, ainda assim, usar o nom e para referir-se à mancha?
Evidentemente. Não há motivo por que um conteúdo In­
tencional parasitário não possa depender dos conteúdos
Intencionais anteriores do próprio indivíduo. Nesse caso,
A será identificada simplesmente com o “aquela que ante­
riormente fui capaz de identificar com o ‘A’”, um caso li­
mite talvez, mas, não obstante, possível.
354 INTENCIONALIDADE

Exemplo 4: A Terra gêmea (Putnam e outros) 25

A correta interpretação de coroo um nom e garante a


referência para nós aqui na Terra não pode ser a de que
isso se dá por meio de um conteúdo descritivo associa­
do, pois, caso houvesse uma Terra gêmea, nossos nom es
continuariam a se referir a objetos em nossa Terra e não
na Terra gêmea, ainda que qualquer descrição de um ob­
jeto na Terra assentasse com igual perfeição a seu Doppel­
gänger na Terra gêmea. Assim, para se com preender co­
mo a referência é bem-sucedida de forma não ambígua
na Terra, devem os reconhecer a função dos elos causais
externos èntre as emissões e os objetos.
Já respondi a esse tipo de objeção no capítulo 2, com
referência à percepção, e no capítulo 8 com referência às
expressões indexicais. Para o caso dos nomes próprios, é
suficiente dizer que a auto-referencialidade causal de to­
das as formas perceptivas de Intencionalidade, a auto-re-
ferencialidade das formas indexicais de Intencionalidade,
e em geral o m odo como estamos indexicalmente relacio­
nados aos nossos próprios conteúdos Intencionais, incluin­
do a Rede e o Background, é suficiente para obstar quais­
quer am bigüidades originárias da Terra gêmea. Mesmo
nos casos parasitários, tal pode ser percebido. Quando,
por exemplo, afirmo que a única descrição que associo a
“Plotino” é “cham ado Plotino”, não me refiro simplesmen­
te a qualquer objeto alguma vez chamado “Plotino” por
alguém. Designo, antes, inter alia, a pessoa à qual eu ouvi
e li ser referida com o Plotino. O fato de que um Doppel­
gänger na Terra gêm ea tam bém pudesse ser cham ado
“Plotino” é tão irrelevante como o fato de que alguém po­
deria ter (e sem dúvida alguém terá) dado a seu cão o no­
me “Plotino” ou que muitas outras pessoas tenham sido
chamadas pelo nom e “Plotino”.
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 355

VI. ARGUMENTOS MODAIS

Este livro tem por tema a Intencionalidade e não a


modalidade, de sorte que evitei abordar questões modais
até o presente. Entretanto, alguns filósofos reputam os ar­
gum entos m odais de Kripke decisivos contra qualquer
versão do descritivismo, de m odo que farei no mínimo ^
uma breve digressão a fim de considerá-los.
Frege argumentara que a descrição definida associa- a.
da por um falante a um nom e próprio fornecia o “senti- q

CENTRAL
do”, na acepção técnica que a palavra tinha para ele, do a
nome próprio para aquele falante. Defenderei, em oposi- j
ção a Frege, a idéia de que seria impossível à descrição 'L'
definida associada fornecer um sentido ou definição do _l

B I BL I O TE C A .
nom e próprio, pois isso teria com o conseqüência, por ^
exemplo, que seria uma necessidade analítica o fato de m
haver sido Aristóteles o mais célebre tutor de Alexandre, ^
caso um falante associasse a descrição definida, “o mais 9
célebre tutor de Alexandre, o G rande”, como o sentido do ^
nome próprio “Aristóteles”. Argumentei que o conglome-
rado de conteúdos Intencionais associado pelos falantes a x
um nom e próprio relaciona-se ao nom e por intermédio 3
de uma relação algo mais fraca que a definição, e que tal
abordagem conservaria as virtudes da teoria de Frege, ao
mesmo tem po que evitaria suas conseqüências absurdas.
Kripke inicia sua crítica à minha abordagem estabelecen­
do uma distinção entre o descritivismo concebido como
uma teoria da referência e o descritivismo concebido co­
mo uma teoria da significação, e afirmando que se o des­
critivismo for concebido apenas com o uma teoria da refe­
rência, uma teoria de como é assegurada a referência no
caso dos nom es próprios, será incapaz de fornecer uma
solução fregiana aos enigmas concernentes aos nom es
próprios em enunciados de identidade, enunciados exis-
356 INTENCIONALIDADE

tenciais e enunciados referentes a atitudes proposicionais.


Nada é afirmado em apoio a essa última alegação e, em
todo caso, a mesma me parece francamente falsa. Minha
tentativa é dem onstrar que os nom es próprios não têm
definições no sentido usual, mas que a referência é asse­
gurada por um conteúdo Intencional associado. Nos ter­
mos de Kripke, portanto, estou apresentando uma teoria
da referência, mas não uma teoria da significação. Contu­
do, a distinção não é tão precisa quanto ele sugere, pela
seguinte razão: o conteúdo Intencional associado a um
nom e próprio pode figurar como parte do conteúdo pro-
posicional do enunciado produzido por um falante, utili­
zando esse nome, ainda que o conteúdo Intencional asso­
ciado do falante não faça parte da definição do nome. E
essa é a razão pela qual é possível apresentar uma teoria
descritivista de com o os nomes próprios asseguram a re­
ferência (e, por conseguinte, apresentar uma teoria da refe­
rência e não uma teoria da significação para os nomes
próprios), demonstrando, ao mesmo tempo, que os m éto­
dos pelos quais os nomes próprios asseguram a referência
explicam o m odo com o o significado de emissões formu­
ladas com o uso de tais nomes contém um conteúdo des­
critivo (e, portanto, fornecem uma interpretação dos no­
mes que traz conseqüências para os significados das pro­
posições que contêm esses nomes). Na teoria descritivista,
por exemplo, um falante pode acreditar que Héspero bri­
lha nas proximidades do horizonte, ao mesmo tempo em
que não acredita que Fósforo brilhe nas proximidades do
horizonte, muito em bora Héspero e Fósforo sejam idênti­
cas. Um falante poderá coerentem ente acreditar nisso ca­
so associe conteúdos Intencionais independentes a cada
nome, ainda que em nenhum dos casos o conteúdo In­
tencional forneça um a definição do nom e. A teoria do
conglomerado é capaz de dar conta de tais enigmas, ao
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 357

mesmo tem po em que se apresenta como uma aborda­


gem de como a referência é assegurada e não como uma
abordagem do significado no sentido restrita e rigorosa­
mente fregiano.
Na verdade, a teoria que estou apresentando sugere
a direção para a solução do “enigma relativo à crença”,
de Kripke26. Eis o enigma: Suponham os que um falante
bilíngüe, ignorando que “Londres” e “London” nom eiam
a mesma cidade, assevera com sinceridade, em francês,
que “Londres est jolie” (“Londres é bela”) e, tam bém com
sinceridade, assevera em inglês que “London is not pret-
ty” (“Londres não é bela”). Ele acredita ou não que Lon­
dres é bela? O primeiro passo para solucionar o enigm a é
perceber que, como o falante associa conteúdos Intencio­
nais diferentes a “Londres” e “London”, a contribuição de
cada palavra à proposição na cabeça do falante é diferen­
te e, portanto, ele acredita em duas proposições que, em ­
bora não possam ser ambas verdadeiras (uma vez que se
referem ao mesmo objeto e atribuem propriedades incoe­
rentes ao mesmo), não são contraditórias. Trata-se de um
caso análogo ao exemplo de Héspero e Fósforo27.
O principal argumento modal adotado contra minha
teoria é o argum ento do designador rígido. Em suas ver­
sões mais esquemáticas, a argumentação tem o seguinte
desenvolvim ento:
(1) Os nom es próprios são designadores rígidos
(2) As descrições definidas não são designadores rígi­
dos; e, por equivalência de raciocínio, os conteú­
dos Intencionais não são designadores rígidos e.
portanto,
(3) Os nom es próprios não são equivalentes em sig
nificado, sentido ou funcionam ento a algum tipi >
de descrição definida ou conteúdo Intencional.
358 INTENCIONALIDADE

Ainda que se adm ita a primeira prem issa para fins de


discussão, parece-m e que a argum entação não atinge
seu objetivo por duas razões. Em primeiro lugar, algu­
mas descrições definidas são, de fato, designadores rígi­
dos. Na verdade, qualquer descrição definida que ex­
presse condições de identidade relativas ao objeto, ou
seja, qualquer descrição que especifique características
que determ inam a identidade do objeto, será um desig-
nador rígido. Q ualquer descrição que expresse proprie­
dades necessárias e suficientes para, por exem plo, ser
idêntica a Aristóteles, será um designador rígido. Na ver­
dade, era a esse aspecto que eu buscava chegar em mi­
nha primeira discussão dos nom es próprios, quando afir­
mei que a questão da regra para o uso de um nom e de­
ve estar vinculada à questão da identidade do objeto28.
Mas, em segundo lugar, e mais im portante para a pre­
sente discussão, absolutam ente qualquer descrição defi­
nida pode ser tratada com o um designador rígido, ao ser
indexada ao m undo real. Posso, por simples decreto, de­
cidir usar a expressão “O inventor das lentes bifocais” de
tal modo que esta se refira à pessoa que realm ente in­
ventou tais lentes e continue a referir-se exatam ente
àquela pessoa em qualquer m undo possível, m esm o em
um m undo possível em que ele não as tivesse inventa­
do29. Um tal uso da descrição definida terá sem pre um
am plo escopo ou, de certo m odo, não terá escopo al­
gum, de um m odo que é característico aos nom es pró­
prios. Mesmo que seja possível transformar uma descri­
ção definida q u alq u er em um designador rígido, isso
não demonstra que o funcionam ento dos nomes próprios
difere da função das descrições definidas em m ostrar
que os nom es próprios são sem pre (ou quase sempre)
designadores rígidos e que as descrições definidas em
geral não são designadores rígidos.
NOMES PRÓPRIOS E INTENCIONALIDADE 359

VII. COMO OPERAM OS NOMES PRÓPRIOS?

A resposta a essa pergunta tal como afirmei no início


deveria ser bastante trivial, e parto do pressuposto de que
temos determ inados princípios em mente. Os fatos que
buscamos explicar são: Os nomes são usados para fazer

UKlVEhfciDALt F t U K « i . UÜ PAKA
referência a objetos. Em geral, a contribuição de um nome
para as condições de verdade de enunciados reside sim­
plesmente no fato cle o mesmo ser empregado para refe-

CENTRAL
rir-se a um objeto. Existem, porém, alguns enunciados em
que a contribuição do nome não reside, ou não exclusiva­
mente, no fato cle ser em pregado para fazer referência a
um objeto: nos enunciados de identidade, nos enunciados
existenciais e nos enunciados acerca cle estados Intencio­

Bi EU GT ECA
nais. Além disso, um nome é empregado para referir-se ao
mesmo objeto em diferentes mundos possíveis onde tenha
propriedades diversas daquelas que tem no m undo real.
São os seguintes os princípios que devemos ter em
mente ao explicar esses fatos:
1. Para que um nome possa chegar a ser em pregado
para referir-se a um objeto, é preciso que exista, antes de
mais nada, alguma representação independente do obje­
to. Esta pode se dar através da percepção, memória, des­
crição definida etc., mas deve haver conteúdo Intencional
suficiente para que se identifique a que objeto o nom e
está afixado.
2. Uma vez estabelecida a relação entre nome e obje­
to, os falantes que dominaram a prática do Backgrouncl re­
ferente à utilização de nomes podem fazer uso do fato de
que a relação entre nome e objeto foi estabelecido, igno­
rando qualquer outra coisa acerca do mesmo. Contanto
que não tenham nenhum conteúdo Intencional em flagran­
te contradição com os fatos acerca do objeto, seu único
conteúdo Intencional pode ser o fato de estarem usando o
360 INTENCIONALIDADE

nome para se referirem àquilo a que se referem os outros


ao utilizarem o nome, porém tais casos são parasitários das
formas nào-parasitárias de identificação do objeto.
3. Toda referência se dá em virtude do conteúdo In­
tencional (em sua acepção mais ampla), quer a referência
se dê por meio de nomes, descrições, indexicais, citações,
rótulos, imagens, ou o que for. O objeto é referido ape­
nas se corresponder a, ou satisfizer, alguma condição ou
conjunto de condições expressas pelo, ou associadas ao,
recurso utilizado para referi-lo. Em casos particulares, tais
condições podem consistir em simples capacidades de
Background para o reconhecimento, como, por exemplo,
no caso por nós considerado no capítulo 2, em que o
único conteúdo Intencional que um hom em associara ao
nom e fora sim plesmente sua capacidade de reconhecer o
portador do nome, ou poderão ser conteúdos Intencio­
nais parasitários, do tipo descrito no princípio 2. Os prin­
cípios 1 e 2 são simples aplicações do princípio 3-
4. O que conta como objeto e, portanto, como um
possível alvo de nom eação e referência, é sempre deter­
m inado relativam ente a um sistem a de representação.
Dado que dispom os de um sistema rico o bastante para
individuar objetos (por exemplo, rico o bastante para que
se conte um cavalo, um segundo cavalo, um terceiro ca­
valo...), e para se identificar e reidentificar objetos (por
exemplo, rico o bastante para determ inar o que se dá ca­
so seja esse o mesmo cavalo que vimos ontem), podem os
associar nomes a objetos, de m odo a preservar o vínculo
dos mesmos nomes aos mesmos objetos, mesmo em situa­
ções contrafatuais em que o conteúdo Intencional asso­
ciado ao nom e não é mais satisfeito pelo objeto. Os prin­
cípios 1, 2 e 3 só têm aplicação em um sistema represen-
1acionai que satisfaça o princípio 4.
Acredito que esses princípios explicam os fatos m en­
cionados acima. Toda a finalidade de se possuir a institui-
\ OMF.S PRÓPRIOS U IM E X aO X A lID A D i; 361

çào dos nom es próprios é capacitar-nos a nos referir a


objetos, mas, uma vez que haverá algum conteúdo Inten­
cional associado a cada nome, tal conteúdo pode figurar
como parte do conteúdo proposicional de um enuncia­
do, que faça uso de um nome, nos enunciados de identi­
dade, enunciados existenciais e enunciados acerca de es­
tados Intencionais, ainda que a função normal e funda­
mental não seja expressar um conteúdo Intencional, mas
tão-som ente fazer referência a objetos, e ainda que o
conteúdo Intencional associado não faça parte da defini­
ção do nome. K a explicação para o fato de os nomes
poderem ser introduzidos por e usados com um conteú­
do Intencional que não seja um designador rígido, e
mesmo assim poderem ser usados com o um designador
rígido, é simplesmente o fato de possuirmos uma noção
da identidade de um objeto que é separável daqueles
conteúdos Intencionais particulares em pregados para a
identificação do objeto. Assim, por exemplo, temos uma
noção de o mesmo homem que é independente de tais
descrições como o autor da Odisséia. Podemos, portanto,
empregar o nom e “Homero" para nos referir ao hom em
que foi o virtual autor da Odisséia, mesmo em m undos
possíveis em que Homero não tenha escrito a Odisséia.
Parte da impressão de que existe algo especialmente
problemático nessas explicações bastante simples é que
existe uma família de diferentes tipos de casos em que
tais princípios operam. Primeiro, os casos centrais. O uso
de nomes mais importante e extensivo para cada um de
nós é o uso que se refere a pessoas, lugares etc., com os
quais mantemos um contato pessoal diário ou, no míni­
mo, constante. Afora o caso do batism o, o indivíduo
aprende originalm ente esses nom es de outras pessoas,
mas, uma vez aprendido, o nom e é associado a uma ga­
ma tão rica de conteúdos Intencionais na Rede que o in-
362 INTENCIONALIDADE

divíduo independe de outras pefssoas para determinar a


que objeto determ inado falante está se referindo. Consi­
deremos, por exemplo, os nomes de nossos amigos pró­
ximos e m em bros da família, da cidade em que vivemos
ou cias ruas de nossa vizinhança. Está fora de questão,
nesse caso, qualquer cadeia de comunicação. Exemplos
de nomes tais, em m eu caso, seriam “Berkeley, Califór­
nia”, ou “Alan C ode“.
Em segundo lugar, existem nom es com usos proem i­
nentes, casos em que o uso não se baseia em uma familia­
ridade com o objeto. O conteúdo Intencional associado a
esses nomes deriva, em sua maioria, de outras pessoas,
mas é um conteúdo rico o bastante para ser qualificado
como conhecimento acerca do objeto. Exemplos desse ti­
po seriam, no meu caso, nom es com o “Japão” ou “Char­
les de Gaulle”. Em tais casos, o conteúdo Intencional é
rico o bastante para estabelecer restrições muito severas
quanto ao tipo de coisa que pode ser referida por meu
uso desses nomes. Por exemplo, independente da cadeia
de comunicação, não poderia resultar que por “De Gaul­
le” eu me referisse a um a tapeçaria florentina ou, por “Ja­
p ão”, a uma borboleta.
Terceiro, existem usos de nomes em que o indivíduo
depende por completo do uso anterior por parte de outras
pessoas para assegurar a referência. Foram esses casos que
descrevi como parasitários, pois neles o falante não dispõe
de um conteúdo Intencional suficiente que possa ser qua­
lificado como conhecimento referente ao objeto. E possí­
vel que o objeto nem seja referido geralmente pelo nome
que o falante adquiriu para designá-lo. Para mim, esse no­
me poderia ser “Plotino”. Mesmo nesses casos, o conteúdo
Intencional limitado estabelece algumas restrições quanto
ao tipo de objeto nomeado. Em meu uso, Plotino não po­
deria resultar ser um núm ero primo.
CAPÍTULO 10
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE
E O CÉREBRO

K
<
L

>

CE .NT PA L
)
1

BlBUQTtCA
Ao longo de todo este livro, evitei discutir as questões
mais proeminentes nas discussões contemporâneas da fi-
losofia da mente. Quase nada foi dito acerca do behavio- ^
rismo, do funcionalismo, do fisicalismo, do dualismo ou
qu aisq u er outras tentativas de solucionar o problema- j
m ente-corpo ou mente-cérebro. Em minha opinião, há, £
ainda, uma visão implícita da relação entre fenôm enos 3
mentais e cérebro que pretendo definitivamente explicitar.
Minha abordagem dos estados e eventos mentais foi
totalmente realista, no sentido em que de fato considero
que existem fenômenos mentais intrínsecos que não po­
dem ser reduzidos a outra coisa ou eliminados por algum
tipo de redefinição. Existem, de fato, as dores, cócegas e
coceiras, crenças, temores, esperanças, desejos, experiên­
cias perceptivas, experiências de agir, pensamentos, sen­
timentos e todo o resto. Ora, é possível imaginar que tal
alegação é tão obviam ente verdadeira que mal vale a p e­
na ser formulada, mas o espantoso é que ela é rotineira­
m ente negada, em bora em geral de forma velada, por
364 INTENCIONALIDADE

muitos dos pensadores avançados quq escrevem sobre


tais assuntos, talvez pela maior parte deles. Já vi alega­
rem que os estados mentais podem ser inteiramente defi­
nidos em termos de suas relações causais, ou que as do­
res não passam de estados mecânicos de certos tipos de
sistemas de com putador, ou que as atribuições corretas
da Intencionalidade eram simplesmente uma questão do
êxito prognosticado a ser obtido assumindo-se um certo
tipo de “atitude intencional” para com os sistemas. Não
creio que quaisquer dessas concepções estejam sequer
perto da verdade e argumentei extensam ente contra elas
em outros escritos.1 Este não é o lugar para repetir tais
críticas, mas quero chamar a atenção para certas caracte­
rísticas peculiares dessas posições, que devem provocar
nossas suspeitas filosóficas. Em primeiro lugar, ninguém
jamais chegou a essas posições após um exame atento
dos fenôm enos em questão. Ninguém jamais considerou
sua própria e terrível dor ou sua mais profunda preocu­
pação e concluiu que não passavam de estados de uma
m áquina de Turing, ou que poderiam ser inteiram ente
definidos em term os de suas causas e efeitos, ou que
atribuir tais estados a si mesmo era apenas uma questão
de assumir uma certa atitude p^ra consigo mesmo. Em
segundo lugar, ninguém pensaria em tratar desse m odo
outros fenôm enos biológicos. Se alguém estivesse fazen­
do um estudo das mãos, dos rins, ou do coração, sim­
p lesm en te p resum iria a existência das en tid ad es em
questão, para então prosseguir com o estudo de sua es­
trutura e função. Ninguém pensaria em dizer, por exem ­
plo, “Ter mãos é apenas estar disposto a certos tipos de
com portamento tais como pegar” (behaviorismo manual),
ou “As mãos podem ser definidas inteiramente em ter­
mos de suas causas e efeitos” (funcionalismo manual), ou
'Para um organismo, ter mãos é sim plesmente estar em
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE E O CÉREBRO 365

um certo estado computacional com os tipos corretos de


inputs e outputs (funcionalismo manual de máquinas de
Turing), ou “Dizer que um organismo tem mãos é apenas
adotar uma certa postura em relação a ele” (a postura
manual).
Como explicar, então, o fato de os filósofos terem
dito essas coisas ap a ren tem e n te estranhas acerca do
mental? Uma resposta adequada a essa pergunta traçaria
a história da filosofia da mente a partir de Descartes. A
resposta sucinta é que cada uma dessas posições não foi
concebida tanto para aclequar-se aos fatos quanto para
evitar o dualismo e oferecer uma solução para o aparen­
tem ente insolúvel problem a m ente-corpo. Meu sucinto
diagnóstico da persistente tendência antimentalista na re­
cente filosofia analítica é que esta se baseia largamente
no pressuposto tácito de que, a m enos que haja algum
modo de eliminar os fenômenos mentais, concebidos in­
genuamente, ficaremos com uma classe de entidades ex­
trínseca ao dom ínio da autêntica ciência, e com o insolú­
vel problema de relacionar tais entidades ao m undo real
dos objetos físicos. Ficaremos, em resumo, com toda a
incoerência do dualismo cartesiano.
Existirá outra abordagem que não comprometa o in­
divíduo com a visão de que há uma ciasse de entidades
mentais inteiramente extrínseca ao m undo físico e, m es­
mo assim, não negue a existência real e a eficácia causal
dos aspectos especificam ente m entais dos fenôm enos
mentais? Acredito que sim. Para perceberm os que existe,
temos de livrar-nos de várias imagens apriorísticas sobre
com o os fenôm enos m entais devem estar relacionados
aos fenômenos físicos a fim de que possamos descrever
de que m odo estão efetivam ente relacionados, tanto
quanto saibamos. E, como sói acontecer na filosofia, nos­
so problema consiste em remover um conjunto de mode-
366 INTENCIONALIDADE

los ou paradigm as inadequados do relacionam ento em


questão e substituí-lo por m odelos e paradigm as mais
adequados. Como primeiro passo nessa direção, quero
tentar expor, o mais enfaticamente possível, quais seriam,
supostam ente, algumas das dificuldades tradicionais de
uma posição com o a minha.
Em minha abordagem , os estados m entais são tão
reais quanto quaisquer outros, fenôm enos biológicos, tão
reais quanto a lactação, a fotossínteses, a mitose ou a di­
gestão. Como esses outros fenômenos, os estados m en­
tais são causados por fenôm enos biológicos e, por sua
vez, causam outros fenôm enos biológicos. Se quisésse­
mos um rótulo, poderíam os chamar essa visão “naturalis­
mo biológico”. Mas de que maneira esse naturalismo bio­
lógico lidaria com o célebre p roblem a m ertte-corpo?
Bem, não existe apenas um problem a mente-corpo, mas
vários - um se refere a outras mentes, outro áo livre-arbí-
trio etc. -, porém o que parece mais incôm odo diz res­
peito à possibilidade de relações causais entre fenôm e­
nos mentais e físicos. Do ponto de vista de alguém que
leve esse problem a a sério, a objeção à minha aborda­
gem poderia ser formulada do seguinte modo: “Você diz,
por exemplo, que uma intenção em ação causa um movi­
mento corporal, mas, se a primeira é mental e o segundo
é físico, com o poderia haver um a relação causal entre
eles? Devemos imaginar, então, que o evento mental im­
pele os axônios e dendritos, ou que de algum m odo ele
se insinua m em brana celular adentro e ataca o núcleo da
célula? O dilema de sua abordagem é simplesmente esse:
se os aspectos especificam ente m entais dos estados e
eventos mentais funcionam causalmente como você ale­
ga, a relação causal é totalmente misteriosa e oculta; se,
por outro lado, você usar a conhecida noção de causa-
ção, segundo a qual os aspectos causalmente pertinentes
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE E O CÉREBRO 367

dos eventos são aqueles descritos por leis causais, e se­


gundo a qual todas as leis causais são leis físicas, os as­
pectos mentais dos eventos mentais não podem ter n e­
nhuma eficácia causal. No máximo, haveria uma classe
de eventos físicos que satisfaz algumas descriçõs mentais,
mas essas descrições não são aquelas em que os eventos
são casos particulares de leis causais e, portanto, não
apreendem os aspectos causais dos eventos. Você pode
ou ter o dualism o e uma interpretação ininteligível da
causaçào, ou ter uma interpretação inteligível da causa-
ção e abandonar a idéia da eficáciá causal em favor de
alguma versão da tese da identidade acom panhada de
um epifenom enalismo dos aspectos mentais dos eventos
físico-mentais”.
O quadro que venho sugerindo - e que, acredito,
acabará levando a uma solução do dilema - é aquele se­
gundo o qual os estados mentais são ao mesmo tem po
causados pelas operações do cérebro e realizados na es­
trutura cerebral (e no resto do sistema nervoso central).
Uma vez entendida a possibilidade de fenômenoà m en­
tais e físicos guardarem ambas as relações, teremos re­
movido pelo m enos um dos principais obstáculos à com ­
preensão de com o os estados mentais causados pelo cé­
rebro podem tam bém causar outros estados cerebrais e
mentais. Um dos pressupostos comuns a muitos dualistas
e fisicalistas tradicionais é que, ao admitirmos a realidade
e a eficácia causal do mental, temos de negar qualquer
relação de identidade entre os fenôm enos mentais e o
cérebro; e que, ao contrário, se afirmarmos uma relação
de identidade, teremos dé negar toda relação causal en­
tre os fenôm enos mentais e os físicos. Na com paração de
J. J. C. Smart, se o ladrão é idêntico a Bill Sikes, não po­
de estar carnalm ente relacionado a Bill Sikes2 (mas com ­
paremos: a tendência do ladrão para o crime pode estar
368 INTENCIONALIDADE

causalmente relacionada à formação de Bill Sikes). Como


primeiro passo para remover o dilema, temos de mostrar
de que m odo os fenômenos mentais podem satisfazer a
ambas as condições.
A fim de desmitologizar um pouco todo o problem a
m ente-corpo, quero com eçar pela consideração de al­
guns exemplos com pletam ente triviais e bem conhecidos
desses mesmos tipos de relação. Os exemplos foram deli­
beradam ente escolhidos por sua banalidade. Considere-
se a relação das propriedades líqüidas da água com o
com portam ento das moléculas individuais. Ora, não se
pode dizer de nenhum a molécula individual que a m es­
ma seja molhada, mas tanto se pode dizer que as proprie­
dades líqüidas da água são causadas pelo com portam en­
to molecular com o se pode dizer que são realizadas no
conjunto de moléculas. Consideremos cada relação à sua
vez. Causadas por: a relação entre o com portam ento mo­
lecular e as características físicas superficiais da água é
claramente causal. Se, por exemplo, alterarmos o com ­
portam ento molecular, causamos um a alteração nas ca­
racterísticas superficiais; obtem os gelo ou vapor, depen­
dend o se o m ovim ento m olecular for suficientem ente
mais lento ou mais veloz. Além disso, as.próprias caracte­
rísticas superficiais da água funcionam causalmente. Em
seu estado liqüido, á agua é molhada; derrama-se, é pos­
sível bebê-la ou banhar-se nela etc. Realizada em-, a li­
qüidez de um balde d ’água não consiste em algum tipo
de suco adicional secretado pelas m oléculas de H20 .
Q uando descrevemos tal substância com o liqüida, esta­
mos apenas descrevendo essas m esm as m oléculas em
um nível de descrição mais elevado que o das moléculas
individuais. A liqüidez, embora não epifenomênica, é rea­
lizada na estrutura molecular da substância em questão.
Portanto, se alguém perguntasse, “Como pode haver uma
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE E O CÉREBRO 369

relação causal entre o com portam ento molecular e a li­


qüidez se a mesma substância é ao mesmo tem po liqüida
e um conjunto de moléculas?”, a resposta é que pode "ha­
ver relações causais entre fenôm enos em níveis diferen­
tes da mesm íssim a substância subjacente. Com efeito,
uma tal com binação de relações é muito comum na natu­
reza: a solidez da mesa sobre a qual estou trabalhando e
a elasticidade e resistência às punções dos pneus de meu
carro são dois exemplos de propriedades causais que são
elas próprias causadas e realizadas em uma microestrutu-
ra subjacente. Para generalizar, neste ponto, podem os di­
zer que dois fenômenos podem estar relacionados tanto
pela causação com o pela realização, contanto que isso
aconteça em níveis de descrição diferentes.
Passemos agora à aplicação das lições desses exem ­
plos simples ao problem a m ente-corpo. Considere-se, pa­
ra começar, a interpretação contem porânea tradicional da
neurofisiologia da percepção visual. É claro que, no mo­
mento, a interpretação é ainda incompleta e é possível
que se venha a provar que a teoria de que dispomos está
equivocada em todos os sentidos fundamentais. Mas as
dificuldades em se apresentar uma interpretação correta
são as incríveis dificuldades em píricas'e conceituais para
se entender a operação de um sistema tão com plicado
com o o cérebro do homem (ou de um mamífero); não
existe, além disso, nenhum obstáculo metafísico a que
uma tal interpretação não possa estar correta, ou pelo
menos é isso que pretendo defender. A história começa
com o assalto dos fótons contra as células fotorreceptoras
da retina, os conhecidos bastonetes e cones. Tais sinais
são processados mediante pelo m enos cinco tipos de cé­
lulas no fotorreceptor da retina, as células horizontais, bi-
polares, am ácrinas e ganglionares. Passam então pelo
nervo óptico para o núcleo geniculado lateral, sendo daí
370 INTENCIONALIDADE

enviados para o córtex estriado e em seguida difundidos


através das células notavelmente especializadas do res­
tante do córtex visual, as células simples, complexas e hi-
percom plexas de pelo m enos três zonas, a 17 (estriada),
a 18 (área visual II) e a 19 (área visual III).
Observe-se que essa história é um relato causal que
nos conta com o a experiência visual é causada pela des­
carga de um vasto núm ero de neurônios em literalmente
milhões de sinapses. Mas, então, onde se localiza a expe­
riência visual nesse relato? Precisamente no cérebro, on­
de tiveram lugar ésses processos. Isto é, a experiência vi­
sual é causada pelo funcionam ento do cérebro em res­
posta ao estímulo óptico externo do sistema visual, mas é
também realizada na estrutura do cérebro. Uma história
parecida na forma, embora totalmente diversa no conteú­
do, pode ser contada sobre a sede. Secreções renais de
renina causam a síntese de angiotensina, e parece prová­
vel que, por sua vez, essa substância aja sobre os neurô­
nios do hipotálam o para produzir a sede. Há m esm o
uma certa quantidade de indícios de que pelo m enos al­
guns tipos de sede estão localizados no hipotálamo. De
acordo com essa explicação, a sede é causada por even­
tos neurais no hipotálamo e realizada no hipotálamo. É
irrelevante para os nossos propósitos se essa é de fato a
explicação correta da sede; a questão é que se trata de
uma explicação possível.
Os problem as empíricos e conceituais para se des­
crever as relações entre os fenôm enos mentais e o cére­
bro são incrivelmente complexos, e o progresso, a des­
peito de muitas declarações otimistas, tem sido agonizan­
tem ente lento. Mas a natureza lógica dos tipos de relação
entre a m ente e o cérebro não me parecem ser, nesse
sentido, absolutam ente misteriosos ou incompreensíveis.
Tanto as experiências visuais com o a sensação de sede,
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE E O CÉREBRO 371

tal como a liqüidez da água, são características genuínas


do m undo que não podem ser descartadas, redefinidas ou
rotuladas como ilusórias. E também aqui, tal como a liqüi­
dez, elas se prendem às duas pontas da cadeia causal. Am­
bas são causadas por microfenômenos subjacentes, e cau­
sam por sua vez outros fenômenos. Assim como a liqüidez

PARA
de um balde d ’água é causalmente explicada pelo com ­
portamento das micropartículas, mas, apesar disso, é capaz
de funcionar causalmente, a sede e as experiências visuais

CENTRAL
:\J <*■. L r'tüi » “ L L<0
são causadas por uma série de eventos no micronível e são,
apesar disso, capazes de funcionar causalmente.
Leibniz considera a possibilidade de uma interpreta­
ção nesses m oldes e a rejeita com base nos seguintes
fundamentos:

BiBLIOrECA
E, supondo que houvesse uma máquina arquitetada de
modo a pensar, sentir e ter percepções, nós a concebería­
mos ampliada e contudo mantendo as mesmas proporções,
de maneira a que pudéssemos entrar nela como em um

UNI Vfc
moinho. Admitido isso, deveríamos encontrar, ao visitá-la,
apenas peças a impelir umas às outras, mas nunca coisa
alguma pela qual se pudesse explicar a percepção. Esta
deve, portanto, ser procurada na substância simples e não
no composto ou na máquina3.

Um argumento exatamente paralelo ao de Leibniz seria


afirmar que o com portam ento das moléculas de H20 ja­
mais poderia explicar a liqüidez da água, pois, caso p e ­
netrássemos o sistema de moléculas “como em um moi­
nho, deveríamos encontrar, ao visitá-lo, apenas peças a
im pelir um as às outras, mas nunca coisa algum a pela
qual se pudesse explicar” a liqüidez. Em ambos os casos,
porém, estaríamos olhando para o sistema em um nível
errôneo. A liqüidez da água não pode ser encontrada no
372 INTENCIONALIDADE

nível da molécula individual e tam pouco são a percepção


visual e a sede encontradas no nível dos neurônios ou
das sinapses individuais. Caso conhecêssem os os princí­
pios com base nos quais funciona o sistema de m olécu­
las de H20 , poderíam os inferir que se trata de um estado
liqüido pela observação do m ovim ento das m oléculas,
mas, da mesma forma, se conhecêssem os os princípios
com base nos quais funciona _o cérebro, poderíam os infe­
rir que o m esm o se encontra em um estado de sede ou
tendo uma experiência visual.
Contudo, esse modelo de “causado por” e “realizado
em ” som ente suscita mais uma pergunta: com o pode a
Intencionalidade funcionar causalm ente? Adm itindo-se
que os próprios estados Intencionais podem ser causados
pela estrutura do cérebro e nela realizados, como pode a
p rópria Intencionalidade ter q u alq u er eficácia causal?
Q uando levanto o braço, minha intenção em ação o leva
a erguer-se. Trata-se do caso em que um evento mental
causa um evento físico. Mas, poder-se-ia perguntar, como
é possível algo assim ocorrer? A elevação de meu braço é
inteiramente causada por uma série de descargas neuro­
lógicas. Não sabemos em que parte do cérebro têm ori­
gem essas descargas, mas, em um ponto qualquer, eles
atravessam o córtex m otor e passam a controlar um a sé­
rie de músculos do braço que se contraem à descarga
dos neurônios apropriados. Bem, e qual a relação de
qualquer evento mental com isso? Tal como agimos em
relações às perguntas anteriores, quero responder a esta
pergunta apelando a níveis diferentes de descrição de
um a substância, em que os fenômenos, em cada um dos
níveis, funcionam causalmente; e, tal com o com a nossa
pergunta anterior, quero deixar claras as relações envol­
vidas, considerando exem plos inteiram ente banais e li­
vres de problemas. Considere-se a explosão no cilindro
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE E O CÉREBRO 373

de um m otor a combustão interna de quatro tem pos. A


explosão é causada pela descarga de umã faísca da vela,
mesmo sendo a descarga e a explosão causadas por fe­
nôm enos em um micronível e nele realizados, nível de
descrição este em que termos com o “descarga” e “explo­
são” são inteiram ente inadequados. Do m esm o m odo,
quero dizer que a intenção em ação causa o movimento
corporal, ainda que a intenção em ação e o movimento cor­
poral sejam causados em uma microestrutura e nela se
realizem, estrutura em cujo nível termos como “intenção
em ação” e “movimento corporal” são inadequados. Ten­
temos descrever o caso com um pouco mais de atenção
- e, mais um a vez, não é o caso particular nem seus d e­
talhes que interessam, mas o tipo cie relação exemplifica­
da. O aspecto causalmente relevante do disparo da faísca
da vela é o aum ento da tem peratura no cilindro entre os
eletrodos até o ponto de ignição da mistura de ar e com ­
bustível. É essa elevação da tem peratura que causa a ex­
plosão. Mas ela, por sua vez, é causada pelo - e realiza­
da no - movimento de partículas individuais entre os ele­
trodos da vela. Além disso, a explosão é causada pela
oxidação das moléculas individuais de hidrocarboneto, e
nela se realiza. Podem os representar graficamente o pro­
cesso da seguinte maneira:

í?
aum ento da _ causa ► ex p lo sã o no
temperatura a à cilindro

causa e realiza causa e realiza

m ovim ento d e elétrons causa oxidação d e m oléculas


individuais entre individuais de hidrocarboneto
eletrodos
374 INTENCIONALIDADE

Os fenôm enos em t l e t2, respectivamente, são os m es­


mos fenôm enos descritos em níveis diferentes de descri­
ção. Por esse motivo poderíamos tam bém traçar setas dia­
gonais m ostrando que o movimento dos elétrons causa a
explosão, e o aum ento de tem peratura causa a oxidação
das moléculas de hidrocarboneto.
Embora pouco saibamos sobre o m odo como a ação
intencional tem origem no cérebro4, sabemos que os m e­
canismos neurológicos estimulam os movimentos muscula­
res. Especificamente, estimulam os íons de cálcio a pene­
trarem o citoplasma de uma fibra muscular, o que desen­
cadeia uma série de eventos que resultam no deslocamen­
to da tropomiosina. A tropomiosina coloca em contato os
filamentos espessos de miosina e os filamentos finos de
actina que se entrecruzam. Alternadamente, os filamentos
ligam-se a cadeias de actina, exercem pressão, desligam-
se, retrocedem, ligam-se novamente e exercem mais pres­
são5. Isso contrai o músculo. No micronível, portanto, te­
mos uma seqüência de descargas neurológicos que cau­
sam uma série de alterações fisiológicas. No micronível, a
intenção em ação é causada pelos processos neurológicos
e neles é realizada, e o movimento corporal é causado pe­
los processos fisiológicos resultantes e neles se realiza. Em
termos de representação gráfica, o processo apresenta
uma forma semelhante àquela da ignição de um motor de
combustão interna:

intenção em ação causa + . m ovim ento corporal


Â
causa e causa e
realiza realiza

descargas de ________ causa m udanças fisiológicas


neurônios individuais
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE E O CÉREBRO 375

Observe-se que, na representação acima, tal como na an­


terior, tam bém poderíam os traçar setas" diagonais que,
nesse caso, mostrariam que a intenção em ação causa
m udanças fisiológicas, e que as descargas neurológicas
causam m ovimentos corporais. Observe-se também que,
em uma representação assim, os fenôm enos mentais não
são mais epifenom ênicos que o aum ento de tem peratura
no disparo da faísca de uma vela.
Obviamente, as analogias que adotei, como a maior
parte das analogias, são imperfeitas. Especificamente, po-
der-se-ia objetar que as interpretações da liqüidez, da so­
lidez etc., adequam -se a uma concepção espaço-temporal
bem estabelecida de com o o m undo funciona, de um
m odo que nenhum a interpretação dos estados m entais
poderia adequar-se; que, ao fazer essa analogia, ajo co­
mo se os estados mentais possuíssem um a característica
de que na verdade carecem, a saber, localizações espaço-
temporais bem definidas. Mas será que tal objeção é m es­
mo tão devastadora? Creio que ela se baseia em nossa
atual ignorância de como o cérebro funciona. Suponha­
mos que tivéssemos uma ciência do cérebro perfeita, de
tal modo que soubéssemos em detalhe o m odo como as
funções cerebrais produzem estados e eventos mentais.
Tivéssemos um conhecimento perfeito de como o cérebro
produz, por exemplo, a sede ou as experiências visuais,
não hesitaríamos em atribuir regiões no cérebro para tais
experiências, caso as evidências apoiassem uma tal atribui­
ção. E supondo-se que houvesse estados e eventos mentais
para os quais não houvesse indícios de localização preci­
sa, mas, antes, indícios de serem características globais do
cérebro ou de alguma extensa região cerebral com o o
córtex, ainda assim seriam tratados com o características
globais de uma entidade espacial, a saber, o cérebro ou
alguma região específica com o o córtex.
376 INTENCIONALIDADE

Voltemos agora ao nosso “dilem a”. O primeiro extre­


mo sustenta que, se considerarmos causal a relação entre
o mental e o físico, ficaremos com um a noção misteriosa
de causação. Argumentei que isso não acontece. Só pare­
ce acontecer se pensarm os no mental e no físico com o a
nom ear duas categorias ontológicas, duas classes de coi­
sas m utuam ente exclusivas, as coisas mentais e as coisas
físicas, com o se vivêssemos em dois mundos, um mental
e outro físico. Mas se pensarm os em nós mesmos viven­
do em um único m undo que contém coisas mentais no
sentido em que contém coisas líqüidas e coisas sólidas,
não haverá obstáculos metafísicos para uma interpretação
causal dessas coisas. Minhas crenças e meus desejos, mi­
nha sede e m inhas experiências visuais, são característi­
cas causais reais de meu cérebro, tanto quanto a solidez
da mesa em que trabalho e a liqüidez da água que bebo
são características causais das mesas e da água.
O segundo extrem o de nosso dilema articula a posi­
ção am plam ente sustentada de que um a interpretação
causal ideal cio m undo deve sem pre fazer referência a
leis causais (estritas) e que tais leis devem sem pre ser
enunciadas em termos físicos. Há muitos argumentos di­
ferentes em favor dessas posições e nem sequer comecei
ainda a respondê-los, mas tentei apresentar algumas ra­
zões para se considerarem falsas as conclusões: a nossa
interpretação da causação Intencional oferece tanto o
princípio de um a estrutura teórica com o muitos exem ­
plos em que os estados Intencionais funcionam causal-
m ente com o estados Intencionais. E, em bora não haja
leis “estritas”, há uma porção de regularidades causais na
operação da causação Intencional: por exemplo, as inten­
ções prévias causam ações, a sede causa o beber, as ex­
periências visuais causam crenças. Perm anece em aberto
a questão empírica sobre com o esses estados de nível
EPÍLOGO: A INTENCIONALIDADE E O CÉREBRO 377

mais elevado são realizados nas operações do cérebro e


causados por elas, e também sobre quais das operações
são “tipo-tipo” e quais são “ocorrência-ocorrência”. Os ar­
gumentos apriorísticos que conheci contra a possibilida­
de de realizações mais de tipo que de ocorrência tendem
a negligenciar um fator crucial: o que passa por tipo é
sempre relativo a uma descrição. O fato de não poder­
mos obter realizações tipo-tipo declaradas em, por exem ­
plo, termos químicos não implica que não podem os ter
realizações tipo-tipo em absoluto. Se insistirmos sempre
em realizações em termos químicos, a redução da Lei de
Boyle-Charles às leis da mecânica estatística - um dos su­
cessos perenes das reduções de tipo - não funcionaria,
porque a redução não faz m enção alguma a qualquer
composição química específica dos gases. Q ualquer gás
velho serviria. Pelo que sabemos, o tipo de realizações
que os estados Intencionais têm no cérebro p o d e ser
descrito em um nível funcional muito mais elevado que o
da bioquímica específica dos neurônios envolvidos. Mi­
nha especulação pessoal - e no estado presente cle nosso
conhecim ento da neurofisiologia só pode ser especula­
ção - é que, se viermos a com preender a operação do
cérebro na produção de Intencionalidade, é provável que
isso se dê com base em princípios totalmente diversos
dos que ora empregamos, tão diversos quanto os princí­
pios da mecânica quântica são dos da mecânica new to-
niana. Porém, sejam quais forem esses princípios, para
fornecer-nos uma interpretação adequada do cérebro, te­
rão de reconhecer a realidade da Intencionalidade do cé­
rebro e explicar suas capacidades causais.
NOTAS

Introdução

1. “Minds, brains and programs”, Behavioral and Brain


Sciences, vol. 3 (1980), pp. 417-24; “Intrinsic Intentionality”, Be­
havioral and Brain Sciences, mesma edição, pp. 450-6; “Analy­
tic philosophy and mental phenomena". Midwest Studies in Phi­
losophy, vol. 5 (1980), pp. 405-23. “The Myth of the Computer”,
New York Review o f Books (1982), vol. xxix, n2 7, pp. 3-6.

Capítido 1

1. Para uma discussão mais detalhada da noção de “dire­


ção do ajuste”, ver J. R. Searle, “A taxonomy of illocutionary
acts’’, em Expression and Meaning (Cambridge: Cambridge Uni­
versity Press, 1979), pp. 1-27.
2. Como o ajuste é uma relação simétrica, pode parecer
estranho que possa haver diferentes direções do ajuste. Se a se
ajusta a b, b se ajusta a a. Talvez possamos diminuir essa preo­
cupação considerando o seguinte caso nào-lingülstico e pouco
sujeito a controvérsias: Se Cinderela entra em uma sapataria pa-
380 INTENCIONALIDADE

ra comprar um novo par de sapatos, toma o tamanho ie seu pé


como dado e procura sapatos que se ajustem (direção do ajuste
pé-sapato). Mas, quando o príncipe procura a dona do sapato,
toma o sapato como dado e procura um pé que se ajuste a ele
(direção do ajuste sapato-pé).
3. As exceções que podem ser concebidas para este princí­
pio são os casos em que o indivíduo se dissocia de seu próprio
ato de fala, tal como em, por exemplo, “É meu dever informar-
lhe que p, mas não acredito que realmente p ”, ou “Ordeno-lhe
que ataque aquelas fortificações, mas não quero realmente que
as ataque”. Nesses casos, é como se a pessoa fosse o porta-voz
de um ato de fala de outrem. O falante emite a mesma sentença,
mas dissocia-se dos comprometimentos da emissão.
4. Há alguns casos desconcertantes de interesse, tais como
duvidar se p ou imaginar se p. O que dizer de minha dúvida,
de se p é satisfeito se p! Ou se não p? Ou o quê?
5. Em, por exemplo, “Intentionality and noema”, Journal
of Philosophy, vol. 78, n2 11 (novembro, 1981), p. 714.
6. Philosophical Investigations (Oxford: Basil Blackwell,
1953), Parte I; parágrafo 621.
7. Para uma discussão mais detalhada dos problemas da
ficção, ver “The logical status of fictional discourse", in Searle,
Expression and meaning, pp. 58-75.
8. Com efeito, a terminologia russelliana de atitude propo-
sicional é uma fonte de confusões, pois implica que uma cren­
ça, por exemplo, é uma atitude para com uma proposição, ou
acerca dela.
9. D. Dennett, Brainstorms (Montgomery, Vermont: Brad­
ford Books, 1978), pp. 122-5.

Capítulo 2

1. Tal como observamos no capítulo 2, a linguagem co­


mum é enganadora nesse aspecto, pois falamos de uma expe­
riência de dor e de uma experiência de vermelhidão, mas no
primeiro caso a própria experiência é a dor e o “de” não é o
NOTAS 381

“de” da Intencionalidade, ao passo que no segundo caso a ex­


periência não é em si mesma vermelha e o “de” é Intencional.
2. Observe-se mais uma vez que, quando estamos apenas
especificando o conteúdo Intencional, não podemos usar ex­
pressões como “ver” ou “perceber”, uma vez que estas impli­
cam êxito, implicam que as condições de satisfação são de fato
satisfeitas. Dizer que tenho uma experiência visual de que há
uma caminhonete amarela ali presente é apenas especificar o
conteúdo Intencional. Dizer que vejo ou percebo que há uma
caminhonete ali presente implica que o conteúdo é satisfeito.
3. M. Meiieau-Ponty, The Phenomenology of Perception
(Londres: Routledge & Kegan Paul), 1962.
4. L. Weiskrantz et al., “Visual capacity in the hemianopic
field following a restricted occipital ablation”, Brain, vol. 97
(1974), pp. 709-28.
5. Ver H. P. Grice, The causal theory of perception, Procee­
dings of the Aristotelian Society, supl. vol. 35 ( 1961), pp. 121-52.
6. L. Wittgenstein, Philosophical Investigations (Oxford:
Basil Blackwell, 1953), Parte II, seção 10.
7. L. Postman, J. Bruner e R. Walk, “The perception of er­
ror”, British Journal of Psychology, vol. 42 (1951), pp. 1-10.
8. Ver, por exemplo, J. L. Austin, Sense and Sensibilia (Ox­
ford: Oxford University Press, 1962), para uma discussão do ar­
gumento baseado na ilusão.
9. Op. cit.
10. Tenho uma dívida para com Christine Skarda pela dis­
cussão desse tópico.
11. H. Putnam, “The Meaning of meaning”, in Mind, Lan­
guage and Reality, Collected Papers, vol. 2 (Cambridge: Cam­
bridge University Press, 1975), pp. 215-71.
12. “The causal theory of names”, Proceedings of the Aris­
totelian Society, supl. vol. 47, pp. 187-208: reimpresso em S. P.
Schwartz (ed.), Naming, Necessity and Natural Kinds (ítaca e
Londres: Cornell University Press, 1977), pp. 192-215.
382 INTENCIONALIDADE

Capítulo 3

1. Em minha abordagem, coisas como espirrar, roncar,


dormir e muitos movimentos reflexos não são ações. Se tenho
ou não razão acerca do uso ordinário é menos importante do
que o fato de se posso ou não fornecer uma interpretação da
intenção e da ação que demonstra serem tais casos fundamen­
talmente diversos dos que reputo como ações.
2. R.M. Chisholm, “Freedom and Action”, in K. Lehrer
(ed.), Freedom and Determinism (Nova York: Random House,
1966), p. 37.
3. D. Davidson, “Freedom to act”, in T. Honderich (ed.),
Essays on Freedom of Action (Londres, Henley e Boston: Rout-
ledge & Kegan Paul, 1973), pp. 153-4.
4. Citado por D. Davidson in.T. Honderich (ed.), op. cit..,
pp. 152-3.
5. A auto-referência não leva ao regresso infinito. Quando
lhe ordeno que faça A, estou na verdade criando uma razão pa­
ra que faça A tal que a ordem será obedecida se você fizer A
por essa razão, ou seja, porque lhe ordenei fazê-lo. Mas não es­
tou, além disso, criando uma razão para que tal seja uma razão,
nem lhe dou uma ordem de segundo nível para que obedeça à
minha ordem de primeiro nível.
6. Ver capítulo 1, pp. 29-30.
7. A teoria da ação de Prichard parece-me cometer o mes­
mo equívoco que as teorias dos dados sensoriais da percepção.
Ele reconhece a existência da experiência de agir, mas quer
transformá-la em objeto Intencional, do mesmo modo que os
teóricos dos dados dos sensoriais querem fazer da experiência
visual o objeto da percepção visual (H. A. Prichard, “Acting,
willing, desiring”, in A. R. White (ed.), The Philosophy of Action
(Oxford: Oxford University Press, 1968), pp. 56-69.
8. The Principles of Psychology, vol. 2 (Nova York: Dover
Publications, 1950), pp. 489ss.
9. Wilder Penfield, The Misteiy o f the Mind (Princeton:
Princeton University Press, 1975), p. 76.
NOTAS 383

10. A incleterminaçâo relativa das intenções prévias é mais


potente no caso das ações complexas. No exemplo anterior, em
que levo a cabo minha intenção de dirigir até o escritório, ha­
verá um grande número de atos subsidiários não representados
pela intenção prévia, mas apresentados pelas intenções em
ação: intencionalmente, dou a partida, engato as marchas, ultra­
passo os veículos mais lentos, paro nos semáforos, desvio de
ciclistas, mudo de pista, e assim por diante, com dezenas de
atos subsidiários executados intencionalmente, mas que não ne­
cessariamente foram representados por minha intenção prévia.
Tal diferença tem sido também uma fonte de confusão na filo­
sofia. Vários filósofos observaram que nem tudo o que faço in­
tencionalmente é algo que tive a intenção de fazer. Por exem­
plo, os movimentos específicos de minha mão ao escovar os
dentes são executados intencionalmente, mesmo que eu não te­
nha a menor intenção de executá-los. Trata-se, porém, de um
equívoco derivado de uma falha em se perceber a diferença en­
tre as intenções prévias e as intenções em ação. Posso não ter
tido a menor intenção prévia de executar precisamente esses
movimentos com a mão, mas tive uma intenção em ação de
executá-los. G. H. von Wright, Explcmation and understanding
(ítaca, Nova York: Cornell University Press), 1971, pp. 89-90.
11. Talvez seja bom enfatizar que tal opinião não implica
um determinismo. Quando se age segundo os próprios desejos
ou se leva a cabo as próprias intenções prévias, o desejo e a in­
tenção funcionam causalmente, mas não necessariamente se dá
que o indívicluo não pudesse agir de outro modo, que, simples­
mente, não houvesse escolha.
12. O termo “efeito sanfona” deve-se a J. Feinberg, Doing
and Deseiving (Princeton: Princeton University Press), 1970, p. 34.
13. O termo “ação básica” cleve-se a A. Danto, “Basic ac-
tions”, mWhite (ed.), op. cit., pp. 43-58.
14. M. Dascal e O. Gruengard, “Unintentional action and
non-action”, Manuscrito, vol. 4, n2 2 (abril de 1981), pp. 103-13.
384 INTENCIONALIDADE

C a p ítu lo 4

1. Em algumas versões alegou-se também que para se sa­


ber que A causou B, é preciso saber que existe uma lei. Assim,
Davidson escreve, "Seja como for, para poder saber que um
único enunciado causal é verdadeiro, não é necessário saber a
verdade de uma lei; é necessário apenas saber que existe urna
lei que compreende os eventos à mão" (itálico meu), “Actions,
reasons, and causes”, reimpresso in k . R. White (eel), The Phi­
losophy of Action (Oxford: Oxford University Press, 1968), p. 94.
2. Cf. Davidson, op. cit.
3. Em oposição a esse parecer, Davidson alega ejue o fato
de os eventos estarem ou não logicamente relacionados depende
apenas de como são descritos (Davidson, op. cit.). Buscarei de­
monstrar subseqüentemente que as duas visões são falhas.
4. A. Michotte, La Perception de la causalité (Louvain: Publi­
cations Universitaires cle Louvain, 1954).
5. J. Piaget, Understanding Causality (Nova York: W. W.
Norton & Co., 1974).
6. Ver R. M. Chisholm, “Freedom and action”, in K. Lehrer
(ed.), Freedom and Determinism (Nova York: Random House,
1966), pp. 11-44.
7. G. H. von Wright, Causality and determinism (Nova
York e Londres; Columbia University Press, 1974), pp. 53 ss.
8. D. Follesdal, “Quantification into causal contexts”, in L,
Linsky (ed.), Reference and Modality (Oxford: Oxford Univer­
sity Press, 1971), pp. 53-62.
9. Muitos filósofos estão dispostos a concordar comigo em
que a causação faz parte da experiência de agir ou das percep­
ções corporais tácteis, mas não admitem que o mesmo possa
valer para a visão. Não consideram a causação parte das expe­
riências visuais. Talvez a seguinte experiência ele pensamento
ajude a eliminar algumas dessas dúvidas. Suponhamos que ti­
véssemos a capacidade de formar imagens visuais tão vívidas
quanto nossas experiências visuais presentes. Imaginemos en­
tão a diferença entre formar uma tal imagem da fachada de
uma casa, como uma ação voluntária, e de fato ver a fachada
NOTAS 385

da casa. Em cada caso, o conteúdo puramente visual é igual­


mente vívido: então, o que explicaria a diferença? Experimenta­
ríamos as imagens formadas voluntariamente como causadas
por nós e a experiência visual da casa como causada por algo
independente de nós. A diferença nos dois casos é uma dife­
rença no conteúdo causal das duas experiências.
10. Em Understanding Causality.
11. Devo esse exemplo a Steve White.
12. C. Peacocke, “Deviant causal chains”, Midwest Studies
in Philosophy, vol. 4 (1979), pp. 123-55.

Capítulo 5

1. Estou discutindo estados Intencionais humanos tais co­


mo percepções, desejos, crenças e intenções. Talvez possa haver
estados Intencionais biologicamente mais primitivos que não re­
queiram uma Rede ou talvez nem sequer um Background.
2. Para uma discussão detalhada dos exemplos, ver “Literal
meaning”, in}. R. Searle, Expression and Meaning (Cambridge:
Cambridge University Press, 1979).
3. M. Polanyi, Personal Knowledge: Toward a Post-Critical
Philosophy (Chicago: University of Chicago Press, 1958).
4. Cf. L. Wittgenstein, Philosophical Investigations (Oxford:
Basil Blackwell, 1953), parágrafos 198-202.

Capítulo 6

1. H. P. Grice, “Meaning”, The Philosophical Review, vol.


66 (1957), n2 3, pp. 377-88.
2. Para uma discussão mais ampla dessa questão, ver J. R.
Searle, “Meaning, communication and representation”, in Grandy
(ed.), A Festschrift for H. P. Grice.
3. Ver “A taxonomy of illocutionary acts”, in Expression and
Meaning (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), pp. 1-29.
4. “Meaning, communication and representation”, in
Grandy, op. cit.
386 INTENCIONALIDADE

C a p ítu lo 7

1. G. Frege, “On sense and reference”, in P. Geach e M.


Black (eds.), Translations from the Philosophical Writings of
Gottlob Frege (Oxford: Basil Blackwell, 1952), pp. 56-78.
2. D. Davidson, “On saying that”, in D. Davidson e G.
Harman (eds.), The Logic of Grammar (Encino e Belmont, Cali­
fornia: Dickenson, 1975), pp. 143-52.
3. Ver Speech Acts (Cambridge: Cambridge University
Press, 1969), capítulo 4.
4. Mesmo o inglês moderno exige com freqüência uma
mudança de tempo verbal na fala relatada. Nixon disse “I am
not a crook” (“Eu não sou um vigarista”). Mas o relato de con­
teúdo correto é: Nixon disse que não era (was) um vigarista.

Capítulo 8

1. Não pretendo levar adiante a discussão dessa concepção


no presente livro, uma vez que já tentei refutá-la alhures; ver
“Referential and attributive”, in}. R. Searle, Expression and Mea­
ning (O&mbnàge: Cambridge University Press, 1979), pp. 137-61.
2. H. Putnam, “The meaning of meaning”, in Philosophical
Papers, vol. 2, Mind, Language, and Reality (Cambridge: Cam­
bridge University Press, 1975), pp. 215-71.
3. Estritamente falando, determina a classe unitária cujo
membro exclusivo é o assassino de Brown, mas, para os propó­
sitos da presente argumentação, podemos ignorar tal distinção.
4. Op. cit., p. 234.
5. A exemplo de outros autores que escrevem sobre esse
tema, usarei a crença como um exemplo de toda a classe de
atitudes proposicionais.
6. W. V. Quine, “Quantifiers anci propositional attitudes”, in
Ways of Paradox (Nova York: Random House, 1966), pp. 183-94.
7. Ver Quine, op. cit., p. 184.
8. T. Burge, “Belief de re”, Journal of Philosophy, vol. 74,
n2 6 (junho de 1977), pp. 338-62.
NOTAS 387

9. O exemplo vem, é claro, de Quine, “Quantifiers and


propositional altitudes”.
10. J. Perry, “The problem of the essential indexicals”,
NOUS, vol. 13, ns 1 (março, 1979), pp. 3-21.
11. D. Kaplan, “Demonstratives”, texto mimeografado,
UCLA, 1977.
12. J. Perry, “Frege on demonstratives”, The Philosophical
Review, vol. 86, na 4 (outubro, 1977), pp. 474-97.
13- Op. cit.
14. Lembremo-nos, porém, que a interpretação deixa de
ser fregiana ao postular um terceiro domínio de entidades abs­
tratas. Normalmente os conteúdos Intencionais cumprem essa ta­
refa. Quando digo “sentido fregiano completo”, não pretendo
significar que tais sentidos sejam entidades abstratas, mas, sim,
que bastam para fornecer “modos de apresentação” adequados.
15. Para uma crítica dessa concepção, ver P. van Inwagen,
“Indexicality and actuality”, The Philosophical Review, vol. 89,
na 3 (julho, de 1980), pp. 403-26.
16. G. Frege, “The thought: a logical inquiry”, reimpresso
in P. F. Strawson (ed.), Philosophical Logic (Oxford: Oxford
University Press, 1967), pp. 17-38.

Capítulo 9

1. Ver J. R. Searle, “Referential and attributive”, in Expres­


sion and Meaning (Cambridge: Cambridge University Press,
1979), pp. 137-61.
2. No restante deste capítulo usarei a expressão “conteúdo
Intencional” no sentido amplo, de maneira a incluir elementos
pertinentes da Rede e do Background.
3. K. Donnellan reconhece a inadequação desse rótulo pa­
ra suas concepções. Cf. “Speaking of nothing”, The Philosophi­
cal Review, vol. 83 (janeiro cle 1974), pp. 3-32; reimpresso in
S. P. Schwartz (ed.), Naming, Necessity and Natural Kinds (íta­
ca e Londres: Cornell University Press, 1977), pp. 216-44.
388 INTENCIONALIDADE

4. Em, por exemplo, Speech Acts (Cambridge: Cambridge


University Press, 1969), p. 90.
5. O termo, acredito, foi usado pela primeira vez por H. P.
Grice em “Vacuous names”, in Davidson e Hintikka (eels.),
Words and Objections (Dordrecht: Reidel, 1969), pp. 118-45.
6. S. Kripke, “Naming and Necessity’’, in G. Harman e D.
Davidson (eds.), Semantics of Natural Language (Dordrecht:
Reidel. 1972), p. 300.
7. Kripke, op. cit., p. 302.
8. M. Devitt, Designation (Chicago: University of Chicago
Press, 1981), esp. o capítulo 2, pp. 25-64.
9. Kripke, op. cit., p. 300.
10. Donnellan, op. cit., p. 229.
11. G. Evans, “The causal theory of names”, Proceedings of
the Aristotelian Society, supl. vol. 47, pp. 187-208; reimpresso in
Schwartz (ed.), op. cit., pp. 192-215.
12. D. Kaplan, “Bob and Carol and Ted and Alice”, in K. J.
Hintikka et al. (eds.), Approaches to Natural Language (Dor­
drecht e Boston: Reidel, 1973), pp. 490-518.
13. Por motivos que não tardaremos a investigar, essa des­
crição é parasitária de outros falantes, mas é suficiente, todavia,
para se identificar acerca de quem estamos falando.
14. Estou em dívida para com Jim Stone pela discussão
desse ponto.
15. In Schwartz (ed.), op. cit., p. 232.
16. Evans, op. cit., dá diversos exemplos desse tipo.
17. É claro que isso não estabelece uma definição, pelas
razões que apresentei em “Proper names”, Mind, vol. 67 (1958),
pp. 166-73-
18. Op. cit.
19. Op. cit., pp. 170-1.
20. Kripke, op. cit., pp. 283-4.
21. Donnellan, op. cit., pp. 229-30.
22. “Referential and attributive”, in Expression and Mea­
ning, p. 148.
23. “Proper names and identifying descriptions”, Synthese,
vol. 21 (1970), pp. 335-58.
NOTAS 389

24. “Proper names and identifying descriptions”, op. cit.,


pp. 347 ss.
25. H. Putnam, “The meaning of meaning”, in Philosophi­
cal Papers, vol. 2, Mind, Language and Reality (Cambridge:
Cambridge University Press, 1975), pp. 215-71.
26. S. Kripke, “A puzzle about belief”, in A. Margalit (ed.),
Meaning and Use (Dordrecht: Reidel, 1976), pp. 239-83.
27. Kripke considera a abordagem que sugiro, mas rejeita-a
com base em fundamentos que considero inadequados. Julga
que o mesmo enigma poderia surgir se o falante associasse as
mesmas “propriedades identificadoras” a cada nome sem saber
que eram as mesmas. Por exemplo, o falante pensa, em inglês,
“London is in England” e, em francês, “Londres est en Angleter-
re”, sem saber que England é Angleterre. Mais uma vez, porém,
se observarmos o conteúdo Intencional total que supomos estar
na cabeça do indivíduo para podermos imaginá-lo dizendo,
“Londres est jolie” e, ao mesmo tempo, “London is not pretty”,
deveremos supor que ele tenha diferentes conteúdos Intencio­
nais associados a “London” e “Londres”. No mínimo, deveremos
supor que ele imagina tratar-se de duas cidades diferentes e
que isso, por si só, tenha todo tipo de ramificações na Rede do
falante: por exemplo, ele considera que “é idêntica a Londres” é
falso em relação à cidade a que se refere como “London” e ver­
dadeiro em relação à cidade a que se refere como “Londres”;
considera que London e Londres têm localizações diferentes na
superfície da terra, habitantes diferentes etc. Como sempre, a
moral é: para resolveres o enigma, olha não apenas para a sen­
tença que emite o falante, mas para o conteúdo Intencional to­
tal na cabeça do mesmo.
27. In Mind {1958), op. cit.
28. Uma posição semelhante é defendida por D. Kaplan
com sua noção de “Dthat” (“Dthat”, in P. Cole (ed.), Syntax
and Semantics, vol. 9 (Nova York, 1978)) e por A. Plantinga
com sua noção de uma “transformação alfa" (in “The Boethian
compromise”, American Philosophical Quarterly, vol. 15, nQ 2
Cabril de 1978), pp. 129-38).
390 INTENCIONALIDADE

C a p ítu lo 1 0

1. “Minds, brains and programs”, Behavioral and Brain


Sciences, vol. 3 (1980), pp. 417-24; “Intrinsic Intentionality”, Be­
havioral and Brain Science, mesma edição, pp. 450-6; “Analytic
philosophy and mental phenomena”, Midwest Studies in Philo­
sophy, vol. 5 (1980), pp. 405-23.
2. “Não é possível correlacionar algo consigo mesmo. Po­
de-se correlacionar pegadas com ladrões, mas não Bill Sikes o
ladrão com Bill Sikes o ladrão.” J. J. C. Smart, “Sensations and
brain processes”, in Chappell (ed.), The Philosophy of Mind (En­
glewood Cliffs, Nova Jersey: Prentice-IIall, 1962), p. l6l.
3. G. W. Leibniz, Monadology, parágrafo 17.
4. Mas veja-se L. Deecke, P. Scheicl e H. H. Kornhuber,
“Distribution of readiness potential, pre-motion positivity, and
motor potential of the human cerebral cortex preceding volun­
tary finger movements”, Experimental Brain Research, vol. 7
(1969), pp. 158-68.
5. Neil R. Carlson, Physiology of Behavior (Boston: Allen
and Bacon, Inc., 1977), pp. 256 ss.
ÍNDICE

A gradecim entos................................................................ V
Introdução......................................................................... VII

1. A natureza dos estados Intencionais..................... 1


2. A Intencionalidade da p e rc e p ç ã o .......................... 53
3. Intenção e a ç ã o .......................................................... 111
4. Causação Intencional................................................ 155
5. O B ackground............................................................ 195
6. Significado.................................................................. 223
7. Relatos intensionais de estados Intencionais e
atos de fa la ................................................................. 251
8. Estarão os significados na cabeça?......................... 275
9- Nomes próprios e Intencionalidade...................... 321
10. Epílogo: A Intencionalidade e o cérebro.............. 363

Notas. 379
Coleção Tópicos
últimos lançamenLos

Julián Marías
A perspectiva cristã
Roland Barthes
O grau zero da escrita
Jürgen Habermas
0 discursofilosófico da modem idQéle
G. H. Hardy
Em defesa de um matemático
Gaston Bachelard
A terra e os devaneios da vontade
Ernst Cassirer
A filosofia dasfornias simbólicas
1 - .4 lin g u a g e m

Umberto Eco e outros


Interpretação e superinte/pretaçâo
Henri Bergson
O riso
Roland Barthes
A aventura semiológica.
Michel Foucault
Os anormais
Georg Simmel
Filosofia do amor
Erwin Panofsky
Arquitetura gótica e escolástica
Ernst Cassirer
Indivíduo e cosmos na filosofia do
Renascimento
José Ortega y Gasset
A rebelião das massas
Émile Durkheim
Lições de sociologia
Raymond Aron
As etapas do pensamento sociológico
Joh n R. Searle
Expressão e significado
Marilena Chaui
Experiência do pensamento
Tzvetan Todorov
A conquista da América
Coleção Tópicos

A coleção procura reunir as obras


mais significativas nas diversas
áreas do pensamento humano a
partir de Ktetzscbe; não se restringe
ü Filosofia propriamente dita, mas
inclui a reflexão de pensadoras de
diversas áreas do conhecimento, dos
quais o pensamento moderno é
tributário. O pensamento brasileiro
estará representado Tia coleção pelos
autores que. por seu trabalho de
reflexão e pesquisa, ajudaram a
enriquecer esse acwvo universal ou
a irradiá-lo entre nós.

ISBN fi£ -3 3 t -1 7 S 3 -a

9 788533 617230

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