VI - Indentidade e Diferença Nas Dinamicas Culturais
VI - Indentidade e Diferença Nas Dinamicas Culturais
VI - Indentidade e Diferença Nas Dinamicas Culturais
Antropologia
Material Teórico
Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Revisão Textual:
Profa. Ms. Rosemary Toffoli
Identidade e Diferença nas
Dinâmicas Culturais
5
Unidade: Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Contextualização
Muitas das discussões produzidas contemporaneamente nas Ciências Sociais dizem respeito
a dois aspectos da vida social que, embora apareçam frequentemente como excludentes, tem
se mostrado cada vez mais como passíveis de relação e articulação com a questão cultural. São
eles: identidade e diferença. Isto é, esses temas, embora inicialmente vistos como em polos
opostos da vida, têm uma forma de se relacionar muito concretamente dentro de elementos de
nossa cultura, como música, trabalho, deslocamentos espaciais, festas, entre outros. Colocar em
foco a questão das possíveis articulações entre identidade e diferença nas dinâmicas culturais,
isto é, como foi concebida dentro de práticas culturais que estão em constante transformação e
reelaboração os modos como se é percebido dentro de algum grupo ou, ao contrário, o outro
como diferente de si, com outras formas de relacionar com os mesmos objetos ou, por vezes,
com objetos diferentes.
Explore
Documentário e vídeos
Encontros culturais no metrô: dança
http://www.youtube.com/watch?v=Xxw1NxvWIKY
Encontros culturais no espaço cultural B_Arco
http://www.youtube.com/watch?v=W33jrvstWoE
Porno Poder, Performance
http://www.youtube.com/watch?v=5oFlht29OkI
La sexualidad
http://www.youtube.com/watch?v=s3Xgcv98vR4
Foucault por ele mesmo
http://www.youtube.com/watch?v=vsJVQ2ci0rY
Arnaldo Jabor e o romantismo de “aproximar” as diferenças
http://www.youtube.com/watch?v=pCP3QQE-gag
6
Introdução
Pretendo trazer aqui algumas das discussões tratadas em textos importantes que trabalham
essas questões. Inicialmente pretendo apresentar a relevante contribuição de Foucault (2007)
para os estudos culturais no que diz respeito à uma analítica do poder, tentando mostrar como a
compreensão desse autor acerca dessas categorias como raça, gênero, etnia – ou, colocando num
plano mais concreto, branco e negro, homem, mulher e homossexuais, indígenas e europeus –
que tratamos como algo essencializado são construídas dentro de um sistema social que cria o
anormal e, assim, o normal.
Posteriormente, pretendo colocar em foco a questão das possíveis articulações entre identidade
e diferença nas dinâmicas culturais, isto é, como foi concebida dentro de práticas culturais que
estão em constante transformação e reelaboração os modos como se é percebido dentro de
algum grupo ou, ao contrário, o outro como diferente de si, com outras formas de relacionar
com os mesmos objetos ou, por vezes, com objetos diferentes.
Para tal, partirei das análises pertinentes de Teresa Caldeira (1998) e Avtar Brah (2006)
sobre, primeiramente, como os debates epistemológicos acerca da narratividade etnográfica
implicaram numa antropologia que reconhece suas invariáveis construções frente a seu objeto
como diferença. Em outras palavras, trata-se de mostrar de que modo a antropologia, a partir
de debates muito recentes, pôde perceber que ela própria, ao narrar sobre algum grupo, ela
estava, na verdade, criando esse grupo, ou melhor, criando uma forma de ver o grupo que,
embora possua uma correspondência real, não é a única forma de concebê-lo.
Em segundo lugar, quero apresentar como parte desse debate relacionado à construção das
diferenças, modos de pensar a identidade, em que se reconheça nela, simultaneamente, sua
unidade e diferença. Dito de outra forma, trata-se de uma forma de entender as formas como
as pessoas se reconhecem como parte integrante ou não de um determinado grupo partindo
de uma perspectiva em que não seja necessário pensá-lo como um grupo homogêneo para que
possa ser coeso. A ideia aqui é mostrar, antes, que a coesão do grupo relaciona-se mais com
um mesmo tipo de experiência (racismo e homofobia, por exemplo) que ocorrem com pessoas
muito diferentes entre si.
7
Unidade: Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Pretendo, por fim, relacionar essas questões com as reflexões de Sherry Ortner (2007) sobre
a possibilidade de agência dos indivíduos dentro da cultura. Tal debate sobre a agência diz
respeito a um tema caro da antropologia nos últimos quarenta anos, a saber: a relação entre
estrutura e agência, entre um sistema fixo de transmissão e difusão de práticas sociais e a forma
como os indivíduos agem dentro dele e sobre ele para mudá-lo.
Imagem: Wikimedia
8
As teorias contratualistas do século XVIII são um dos exemplos dessas teorias clássicas.
Essas teorias propunham o debate do poder como direito que é cedido ao soberano no interior
de um sistema jurídico-administrativo próprio. Os contratualistas partiam da análise de como
seriam os grupos humanos antes da existência da sociedade como conhecemos, cheia de regras
e normas. Esse estado antes da sociedade seria o que eles chamavam de estado de natureza.
É importante ressaltar que o estado de natureza não era concebido pelos contratualistas
como uma fase que realmente existiu na história humana. Esses filósofos não estão fazendo
alusão ao período pré-histórico, ou algo do gênero, quando falam em estado de natureza. O
estado de natureza era um recurso teórico, um ponto de partida para se pensar como os Estados
e a ordem social foram formados.
Jean Jacques Rousseau (1987), por exemplo, um dos expoentes dessa teoria, defendia que
no estado de natureza, o homem vivia em harmonia com os outros e com a natureza. Porém,
os homens passaram a delimitar o que era seu e de outrem, por exemplo, delimitar as terras
e dizer que elas eram suas. Nasciam os interesses privados. Segundo Rousseau, os homens
entraram em acordo, por meio de um contrato social, para defender o interesse de todos. Os
bens são protegidos, porém cada um deve se privar de uma parte de sua liberdade em prol de
um soberano que governaria para o bem de todos.
Outra corrente da teoria clássica criticada por Foucault é aquela em que possuiria o poder
quem obtivesse o uso legítimo da violência. Não há aqui um soberano de onde emana
o poder, mas, sim, um Estado racionalizado, isto é, burocratizado, compartimentado, uma
verdadeira máquina. Esse Estado não pode ser personificado na figura de ninguém. No nosso
caso, por exemplo, o presidente não toma decisões sozinho, pois depende de todo um aparato
político e institucional que dê suporte a suas decisões. Ele se manteria como tal e manteria a
ordem social pelo uso da força. O Estado possuiria, como diria Weber (2005), o monopólio da
violência, pois somente ele tem legitimidade, ou seja, poderia, por lei, para fazer o uso dela.
O que o Foucault nos mostra é que, primeiramente, “é preciso, em suma, admitir que esse
poder se exerce mais do que se possui, que ele não é um ‘privilégio’ adquirido ou conservado
da classe dominante, mas o efeito conjunto de suas posições estratégicas1” . A rigor, esse poder
não está em lugar nenhum, não é coisa, ele apenas se exerce nas relações entre agentes. Assim,
rompe-se com a unilateralidade do poder inscrita nos aparelhos do Estado. Ele se dilui em cada
microrrelação dentro da sociedade em certas épocas.
Em segundo lugar, é preciso ter em mente que, para Foucault, os mecanismos dos quais ele
esse poder se vale são muito mais sutis e eficazes do que simplesmente o uso da violência, da
força física. A efetividade dessa relação estaria menos ligada ao uso desse tipo de força, pois,
anterior à repressão, as relações de poder criam seus objetos tanto de inclusão, quanto de
exclusão, sendo estes, posteriormente, passíveis do uso da violência.
1. “Il faut en some admettre que ce pouvoir s’exerce plutôt qu’il ne se possède, qu’il n’est pás le ‘privilège’ acquis ou conserve de la classe
dominante, mais l’effet d’ensamble de ces positions stratégiques” (FOUCAULT, 1999, p.35)
9
Unidade: Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Essas relações criam disciplinas para os corpos e assim cria-se identidades, como, por
exemplo, homem e mulher. São criados sujeitos que se comportam segundo as normas por eles
partilhadas e reproduzidas, isto é, as normas que são ensinadas por todo um mundo social e,
assim, reproduzidas de diversas formas por quase todos. Cria, por outro lado, o desviante da
norma, o louco, o sodomita, a criança onanista, todos com uma identidade própria, ditadas
por essas relações de poder. Identidade desviante que deve ser precisada, tratada e, se possível,
normalizada2 . Em outras palavras, usando uma terminologia foucaultiana, pode-se dizer que,
há uma positividade imanente às relações de poder.
É enunciada, desse modo, a existência de outro elemento que não pode ser desvinculado da
questão do poder, para Foucault: o saber. Nas palavras de Ortega (1999, p.67) “somente através
da superação da proibição como modelo explicativo foi possível trazer à luz os mecanismos de
um complexo saber/poder”. Isto é, quando Foucault percebe que os mecanismos pelos quais se
exerce o poder passam, necessariamente, por um “conhecimento” que o corresponda e justifique
e que também é, por sua vez, um poder, é que ele pode criar formas de desvendamento da
emergência de determinado acontecimento. Dessa forma, existe uma intrincada relação entre
saber e poder.
O saber trata-se, precisamente, desse mecanismo inseparável do poder, que, em última
análise, é a forma como podemos dar sentido a essa relação, isto é, dar-lhe inteligibilidade.
Ou seja, é nosso modo de perceber essas relações e torná-las alvo de nosso olhar, mesmo que
essas relações nos passem despercebidas. Suscintamente podemos dizer que, grosso modo,
por exemplo, se a relação entre um pai e um filho é uma relação de poder, onde um manda e
o outro obedece, a forma utilizada pelo pai para fazer com que o filho obedeça, seja usando a
força, seja apenas conversando, é um saber, compartilhado por ambos.
GENERO (S)
Assim, se para Foucault é preciso problematizar os objetos do
conhecimento e as práticas que os dão sentido, uma vez que,
como vimos, esses objetos são criados numa relação de poder
em um determinado tempo, o autor em Histoire de la Sexualité
(2007) se vê às voltas de um elemento que há muito tempo era
objeto de disputas políticas e dos mais variados saberes: o sexo.
Imagem: Wikimedia Commons
2. A este respeito ver Foucault (1999), p.214-215: “En somme, l’art de punir, dans le regime du pouvoir disciplinaire, ne vise l’expiation, ni
même exactament la repression. Il met en oevre cinq operation bien distinctes: référer les actes, les performances, les conduites singulières à un
ensamble qui est à la fois champ de comparaison, espace de differenciation et principe d’une règle à suivre. Differencier les individus les uns par
rapport aux autres et en fonction de cette règle d’ensamble [...]. Mesurer en termes quantitatifs et hierarchiser en termes de valeur les capacites,
le niveau, la ‘nature’ des individus. Faire jouer, à travers cette mesure ‘valorisante’ la contrainte d’une conformité à realiser. Enfin, la limite qui
definira la différance par rapport à toutes les differances, la frontier exterieure de l’anormal [...]. En un mot elle normalize”
10
Visto que o filósofo não podia conceber um poder que fosse necessariamente repressivo, seria
preciso problematizar a hipótese corrente à época da repressão da sexualidade, isto é, a ideia
de que, sinteticamente, o sexo havia sido suprimido em todo o seu potencial biológico para ser
enquadrado numa ordem sexual burguesa, onde os silêncios sobre os desejos se sobreporiam
à realização destes.
Dessa forma, “a análise da hipótese repressiva implicava uma crítica geral à concepção do
poder em termos de repressão” (CASTRO, 2009, p. 398; grifo meu). Ou seja, o exame da
hipótese de um sexo cujo potencial fora aprisionado em um corpo, levava, para Foucault a um
questionamento mais fundamental acerca da relação entre sexo e poder no sentido jurídico: era
preciso “pensar, de uma só vez, o sexo sem a lei e o poder sem o rei3” . O sexo não poderá mais
ser pensado enquanto reprimido, ou antes, enquanto uma categoria que nos é pré-existente
como um dado empírico inscrito em nosso corpo que forçosamente escondemos em nome de
uma vida comum social.
Para o autor, o “sexo” terá outro papel. Ele será “um ponto imaginário fixado pelos
dispositivos da sexualidade4” . É “o elemento mais especulativo, o mais ideal e também o mais
interior dentro de um dispositivo da sexualidade que o poder organiza em suas capturas sobre
os corpos, sua materialidade, suas forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres”5 . Isso
quer dizer que, para ele, o que entendemos como sexo (tanto no que diz respeito às genitais,
quanto, principalmente, todas as práticas que envolvem essas genitais) é, na verdade, uma
abstração, algo que foi criado muito recentemente em nosso mundo (por volta do século XVII),
algo que nem sempre foi visto e pensado desse modo e, inclusive, é pensado diferentemente em
outros lugares do mundo atualmente.
Dessa forma, Foucault inscreve o sexo na sexualidade ou, em outras palavras, nos mostra
que antes do “sexo”, foi preciso existir outro elemento: a sexualidade. Sexo, assim, não é o
ponto dela partida, como se poderia presumir, mas o elemento especulativo necessário ao
seu funcionamento. O que o autor nos está dizendo, é que, sexo, como um objeto empírico,
como genitais, hormônios etc., não existe sem um investimento cultural, uma forma de vermos
para ele, delimitá-lo, precisa-lo, normalizá-lo, a que ele chama de sexualidade. A isso que,
resumidamente, Foucault irá chamar de dispositivo de sexualidade. Em outras palavras, como
dirá Gayle Rubin,
3. “Penser à la fois le sexe sans la loi, et le pouvoir sans le roi” (FOUCAULT, 2007, p.120)
4. “um point imaginaire fixé par le dispositif de sexualité” (FOUCAULT, 2007, p. 205).
5. “l’element le plus spéculatif, le plus idéal, le plus intérieur aussi dans un dispositif de sexualité que le pouvoir organise dans ses prises sur les
corps, leur matérialité, leurs forces, leurs énergies, leurs sensations, leurs plaisirs” (Idem).
6. “As with other aspects of human behaviour, the concrete institutional forms of sexuality at any given time and place are products of human
activity. They are imbued with conflicts of interest and political manoeuvring, both deliberate and incidental. In that sense, sex is always
political.” (RUBIN, 1993, p.4)
11
Unidade: Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Para concluirmos ao texto de Michel Foucault, é importante que saibamos que ao autor
lançar mão de uma análise preliminar das alterações estratégicas dos mecanismos de poder na
sociedade ocidental nos últimos cinco séculos, ele nos mostra a passagem do “velho direito de
fazer morrer ou de deixar viver” para “um poder de fazer viver ou de rejeitar à morte7”. Isto
é, essas mudanças táticas do poder dizem respeito à passagem de um poder soberano, que
tinha às mãos a possibilidade de matar seus súditos conforme fosse necessário e desejável para
defender sua soberania, para um poder disciplinar, que encontra na gestão da vida particular e
pública sua forma mais efetiva de ação.
Esse poder sobre vida – ao que o autor chamou biopoder – teria se desenvolvido a partir
do século XVII, através, principalmente, de duas formas não concorrentes: as disciplinas
– constituídas como uma anátomo-política do corpo humano – e os controles reguladores –
como uma bio-política da população (FOUCAULT, 2007). As primeiras dizem respeito ao
investimento do corpo como máquina através do cálculo de suas aptidões, redirecionamento de
suas forças, sua integração a um sistema de controles eficazes. Os segundos, formados pouco
mais tarde, dizem respeito a intervenções sobre as populações no espaço, por meio do controle
de natalidade, da mortalidade infantil, da saúde pública etc. (Idem).
Não se trata aqui de atribuir todas as mudanças que ocorreram efetivamente na antropologia
apenas à obra de Foucault. Entretanto, para bem ou mal (ou para além de ambos), embora sua
morte tenha ocorrido há quase 30 anos, a obra foucaultiana continua a possuir um potencial
crítico indispensável para uma série de debates contemporâneos e, sem dúvidas, nos faz pensar
algumas de nossas práticas mais íntimas, ou antes, nos faz perguntar sobre o papel dessas
práticas como perpetuadoras de um determinado mecanismo que, ainda que não seja estável,
reproduza efeitos de dominação. Coloca em questão quais operações essas práticas põem em
funcionamento as quais ainda não podemos ou conseguimos prescindir.
O que nos é importante aqui nessa longa introdução às ideias de Foucault, é entender que,
a partir dessa concepção que impõe desconfortos aos saberes convencionais, questionando
posições naturalizadas, essencializadas, tanto da identidade, quanto da diferença, o autor abriu
um potencial crítico para diversos movimentos sociais e teóricos.
Isso porque, se radicalizarmos o que o autor nos apresenta acerca da sexualidade e, portanto,
das identidades sexuais, podemos pensar todos os tipos de identidade como produzidas no
âmbito de relações de poder. Se essas identidades são produzidas nesse âmbito, então podemos
afirmar, sem medo, que todas as identidades são políticas. Elas podem e devem ser questionadas
e entendidas no interior de um sistema que as normalize e que cria formas de dizer sobre
elas que abrem pouco espaço para a diferença. Em resumo, entender que as identidades e as
diferenças estão imersas num campo de disputas.
7. “On pourrait dire qu’au vieux droit de faire mourir ou de laisser vivre s’est substitué um pouvoir de faire vivre et de rejeter dans la mort”
(FOUCAULT, 2007, p.181).
12
Uma das ressonâncias dessa concepção podemos encontrar no artigo de Teresa Caldeira A
presença do autor e a pós-modernidade em antropologia (1998). Embora não haja referencias
especificamente a Foucault, é interessante como a autora apresenta as mudanças dos paradigmas
nos relatos dos textos antropológicos, percebendo, gradativamente, por meio de mudanças
teóricas de cada tempo, as formas como os etnógrafos criavam narrativas acerca do “nativo”,
como figura de alteridade, como alguém fora do normal (nesse sentido, é só lembrarmo-nos das
nomenclaturas referentes a eles como “selvagens”, ao contrário de nós, ocidentais, “civilizados”).
Segundo essa autora, inicialmente, na antropologia, havia a tentativa de descrever nos
mínimos detalhes a cultura de um lugar. Assim, o etnógrafo assumia o papel de especialista
daquela cultura e porta-voz daquelas pessoas. Nesse caso, o papel de autoridade conferida
a ele, se dava a partir do modo em que ele poderia conhecer detalhadamente o que via – e
conhecer, aqui, significava ser possível descrever – e, desse modo, ser quem dava ordem às mais
caóticas peculiaridades dos “selvagens”.
Contudo, gradativamente, esse modo de fazer antropologia foi dando espaço a debates
críticos em que se percebeu que o antropólogo também estava falando de uma posição e, em
geral, uma posição em que enxergava o que a ele parecia importante naquela cultura. Esse
ponto é importante, pois trata-se da percepção do etnógrafo não como uma pessoa neutra,
apenas observando, mas alguém que também tem uma história em outra cultura que seria
impossível dissociar na hora de observar como as pessoas agem em lugares completamente
diferentes de sua terra natal.
Acompanhado desse debate, houve uma crise também das fontes. Isso porque não apenas o
antropólogo possuiria uma posição na observação, como seus informantes (sejam eles pessoas
ou documentos), também possuem uma posição dentro da própria sociedade. Dessa forma, no
estudo, entrevistar, por exemplo, um homem ou uma mulher, um pai ou um irmão, uma pessoa
hierarquicamente “superior” ou “inferior”, interferiria radicalmente nos resultados da pesquisa.
Assim, aponta Caldeira (1998), pouco a pouco os etnógrafos se retiraram das narrativas,
dando espaço para que os nativos mesmo falassem e, ao mesmo tempo, deixando claro de
onde o nativo fala, qual a posição dele na estrutura de poder daquelas sociedades.
Imagems: Wikimedia Commons
Essa noção de que há disputas em torno da produção e reprodução do que se pensa sobre
algo ou alguém é central também em Diferença, diversidade, diferenciação (2006), de Avtar
Brah, embora, nesse trabalho ela confira privilégio para formas de penas esse tipo de análise
a partir do “diferente”. Isto é, nesse trabalho a autora irá pensar como é possível articular
diferença e identidade.
13
Unidade: Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Para ela, nesse artigo, ao fazer uma revisão nos debates feministas, volta-se para uma
compreensão mais sofisticada da ideia de diferença nos movimentos sociais e, ao mesmo tempo,
volta-se para um exame crítico dos diversos essencialismos a que esses movimentos estiveram
submetidos. Desse modo, apresenta como essas diferenças, dentro de um mesmo movimento
contestatório (no caso dela, o feminista), constituídas como essenciais, fixas e em oposição
umas às outras, podem ser vistas “como campos historicamente contingentes de contestação
dentro de práticas discursivas e materiais” (BRAH, 2006, p.331).
Assim, Brah (2006) inicia sua exposição tratando da categoria “negro” que, na Grã-Bretanha
no pós-Guerra, abarcava tanto africanos-caribenhos, quanto sul-asiáticos, ou seja, pessoas com
características físicas pouco equivalentes, mas que, no entanto, eram identificados igualmente
como “niggers”.
Segundo ela, a construção da identidade desse grupo se deu, primeiramente, através da raça
como princípio produtor de alteridade, em outras palavras, “raça” foi o critério para estabelecer
quem era inglês e quem não era. Desse modo, “racializou-se” classe e gênero em torno de uma
“não-brancura”. Assim, embora a incidência dessa racialização não tenha sido igual naquele
conjunto heterogêneo de pessoas (africanos-caribenhos e sul-asiáticos), elas enfrentavam
experiências comuns de exclusão e/ou discriminação (BRAH, 2006).
O conceito de “negro”, portanto, tornou-se uma categoria política para aqueles que eram alvo
desse tipo de preconceito, unindo-os em torno de um mesmo movimento que lutava por um
mesmo objetivo. Em outras palavras, esse conceito “constituiu um sujeito político inscrevendo a
política de resistência contra racismos centrados na cor” (BRAH, 2006, p.333).
Entretanto, a autora nos mostra que o que estava em jogo era a articulação de um conceito –
o de “negro” – constitutivo de uma identidade que, embora se apresente de modo coeso, como
uma unidade, não deve ser visto em termos essencialistas. Segundo Brah (2006), as dinâmicas
internas desse grupo no período pós-Guerra não negava as diferenças culturais entre os grupos,
mas o princípio que os organizavam dentro da prática política era a luta contra o racismo.
E mais: esse processo mesmo de reorganização em torno de um objetivo comum, isto é, a
forma como grupos heterogêneos adquirem novas funções em um conjunto, dita os diferentes
resultados políticos e estratégias que precederam esses resultados.
Pense
A crítica da autora a essa concepção essencializada de categorias sociais, apresenta ainda outra
nuance importante: para ela, a análise de uma categoria de diferença deve ser inscrita num quadro
geral produtor dessas diferenças. Em outras palavras, de modo parecido a Foucault, as diferenças
devem ser pensadas no interior de um sistema que produz e reproduz desigualdades.
14
Agência versus estrutura
Para Ortner (2007b), na análise das dinâmicas sociais durante muito tempo foi deixado de
lado o aspecto da ação. Em fins dos anos 70, os três grandes paradigmas no cenário antropológico
eram: o interpretativismo, cujo maior representante era Clifford Geertz; o economicismo político
marxista de, não apenas, mas principalmente, Eric Wolf e o estruturalismo lévistraussiano. Essas
teorias tendiam a privilegiar o aspecto coercitivo do mundo social.
Desse modo, em resposta a essas teorias, autores representantes do interacionismo como,
destacadamente, Goffman, propuseram outra abordagem de análise que foi, como Ortner
(2007b) denomina, uma teoria da ação. Assim, colocavam a questão da agência dos indivíduos
em relação às estruturas, destacando interações interpessoais, deixando praticamente de lado
as coerções estruturais, mas ainda assim mantendo a oposição ação/estrutura.
Assim, Ortner (2007a), se propõe a analisar a agência, isto é, a possibilidade de ação dos
indivíduos, de uma nova forma, a saber, inserindo esta possibilidade de ação de sujeitos em
um campo de desigualdades, assimetrias e forças sociais. Dessa forma, segundo ela, a agência
é uma capacidade humana culturalmente construída, de modo que os atores, assimetricamente
empoderados, tem suas possibilidades de ação influenciadas quanto a seu tipo e extensão,
de acordo com o lugar que ocupam numa relação de poder. Em outras palavras, trata-se de
entender que o lugar que um determinado sujeito ocupa na sociedade como, por exemplo,
hierarquicamente superior ou inferior, com maior ou menor poder econômico, homem, mulher
ou homossexual etc.
Nesse sentido, é preciso entender que a relação entre agência e poder não é
necessariamente inscrita na dualidade dominação-resistência. Para Ortner (2007a), ela deve
ser complexificada para abarcar jogos que podem ser contraditórios em relação à agência de
poder, mas estão de pleno acordo com projetos culturais. Aqui vale se ater um pouco mais.
Por projetos culturais, a autora está chamando essa estrutura social que nos imputa alguns
limites e nos diz o que é normal e o que não é, o que pode e o que não pode ser feito. Nesse
sentido, Ortner nos mostra que, precisamos fugir do binarismo dominador-dominado, pois,
segundo ela, mesmo que o sujeito esteja em situação de “dominar”, eventualmente alguns
“projetos culturais” acabam sendo mais importante do que essa “dominação” e, assim, ele
cede. O que está em jogo aqui é conciliar numa mesma análise estrutura (projetos culturais)
e agência (ação interessada dos sujeitos).
Percebemos, portanto, que a questão mesma da identidade se insere no debate sobre a
agência, na medida em que, como afirma mesmo Sovik (2009), a “identidade é um lugar que
se assume, uma costura de posição e contexto” (p.15), isto é, é o lugar em que se coloca o
indivíduo, de acordo com suas possibilidades de ação em um tempo específico, dentro de um
determinado grupo que, embora seja composto de um conjunto de atores heterogêneos, se une
em torno de uma identidade de modo a garantir força política estratégica para embates maiores
no campo da cultura.
15
Unidade: Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Em Síntese
Conclusão
A relação entre produção das identidades e das diferenças continua em aberto. Por muito que
Foucault e os outros autores aqui apresentados tenham contribuído de forma significativa para o
aprofundamento da discussão, ainda há muito o que fazer e muito a ser pensado e repensado. Isso
porque, quando se trata das dinâmicas culturais, como o próprio termo “dinâmica” pode sugerir,
nada é estática.
O motivo disso está em tratar-se, em todos os casos de identidade e, portanto, diferença, de processos
em constante mudança e, por isso mesmo, em necessária reelaboração. Isto é, as lutas concretas dos
diversos movimentos sociais mostram, o tempo todo, novos grupos que são deixados de lado e, por
isso, é de fundamental que estejamos sempre reformulando nossas formas de pensar sobre os que
são excluídos e o que faz com que outros sejam incluídos.
16
Material Complementar
Explore
http://www.ufrgs.br/e-psico/subjetivacao/formacao_individuo/sexualidade-poder.pdf
http://www.marilia.unesp.br/Home/Publicacoes/foucault_book.pdf
http://goo.gl/y7GO2
http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/67411
http://www.youtube.com/watch?v=MoLZQs1be4A
17
Unidade: Identidade e Diferença nas Dinâmicas Culturais
Referências
BRAH, A. Diferença, Diversidade, Diferenciação. Cadernos PAGU, no. 26, jun/jul 2006.
ORTNER, S. Poder e projetos: Reflexões sobre a Agência. In: GROSSI, M. P.; ECKERT, C.;
FRY, P. H (orgs.). Conferências e Diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau:
Nova Letra, 2007a.
______. Uma atualização da teoria da prática. In: GROSSI, M. P.; ECKERT, C.; FRY, P. H (orgs.).
Conferências e Diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Nova Letra, 2007b.
ROUSSEAU, J. Do contrato social: Ensaio sobre a origem das línguas. 4. ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1987.
RUBIN, G. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality. In: ABELOVE,
H.; BARALE, M.; HALPERIN, D. (eds.) The Lesbian and Gay Studies Reader. Nova York:
Routledge, 1993.
SOVIK, L. Apresentação: Para ler Stuart Hall. In: SOVIK, Liv (org.). Da diáspora: identidade e
mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
WEBER, M. Três tipos de poder e outros escritos. Lisboa: Tribuna da história, 2005.
18
Anotações
19
www.cruzeirodosulvirtual.com.br
Campus Liberdade
Rua Galvão Bueno, 868
CEP 01506-000
São Paulo SP Brasil
Tel: (55 11) 3385-3000