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A Comédia do Coração (*)

Peça em três atos

(*) – Representada pela primeira vez no dia 12 de agosto de 1925, no teatro Apolo, de S. Paulo, pela
Companhia Iracema de Alencar, com a seguinte distribuição de papéis:

ALEGRIA – Iracema de Alencar; PAIXÃO – Auricélia Bernard; DOR – Adelaide Coutinho; RAZÃO –
Nina Castro; DESCONHECIDA – Odete Guerreiro; SONHO – Amélia de Oliveira; MEDO – Artur de
Oliveira; CIÚME – Gervásio Guimarães; e ÓDIO – Manuel Durães.

Era dedicada pelo autor a seu irmão Manuel Alexandre Gonçalves Junior. Melodias de Marcelo
Tupinambá.

PRIMEIRO ATO

Finjamos o interior de um coração numa gruta fantástica, onde os sentimentos vivam individualizados e
vestidos das cores que lhes emprestam os ocultistas: a Paixão, cor de rosa; o Medo, cor de cinza; o Ódio,
escarlate, rajado de negro; o Ciúme, cor de cinza, pintalgado de vermelho; a Alegria, branco, com
manchas verdes. Faltou entre eles a Dor, que, em contraste com a Alegria, se veste austeramente de luto.
Abertos nas paredes laterais dessa gruta há seis quartos, assim dispostos:

(à esquerda) (à direita)
ALEGRIA DOR
CIÚME PAIXÃO
MEDO ÓDIO

Ao fundo, adaptadas em forma de lira, deitam para o cérebro duas escadas, por onde sobem e
descem a Razão e o Sonho; e, entre essas duas escadas, uma larga porta misteriosa.
O Sonho, vaporoso na sua fantasia azul-celeste, é um rapazola às vezes bufo, às vezes sentimental,
dançarino de atitudes e gestos imprevistos.
A Razão é uma velha desdentada, vestida de amarelo vivo, mangas arregaçadas, óculos sujos,
virote agressivo espetado no cocoruto.
Os habitantes do coração, não há quem lhes ignore as características:
A Paixão é uma rapariga capaz de loucuras;
A Alegria, sempre moça, tintinambulante de guizos, traz um tirso nas mãos peraltas;
O Ódio é cego de nascença; pavor do coração, tem as roupas em frangalhos e não fala: -
tartamudeia.
A Dor é lamentosa e pálida; ninguém percebe que ela no fundo é mística;
O Ciúme, impulsivo e desconfiado, vive a roer as unhas e a olhar para os cantos;
O Medo figura-se magricela, os cabelos em pé, os olhos arregalados, as pernas sempre trêmulas.
A Desconhecida, triste como uma folha morta, tem os cabelos romanticamente desastrados.

(A cena está deserta)

SONHO (desce aflito, chamando) – Alegria! Alegria! Alegria! Alegria!

ALEGRIA (do interior) – Quem é?

SONHO – Eu, o Sonho! Depressa, Alegria, depressa! Eu não posso ficar aqui exposto, Alegria! Abra a
porta, vá!

ALEGRIA – Ih! Que desespero!


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SONHO – Oh! Depressa, Alegria, depressa!

ALEGRIA (aparecendo) – Pronto. Que é isso?

SONHO – Ela! Deixe-me entrar no seu quarto!

ALEGRIA – Ela? Quem?

SONHO – Ora, quem há de ser? A Razão! Ainda agora brigou comigo de novo! Essa velha entendeu de
perseguir-me! Deixe-me entrar no seu quarto, Alegria!

ALEGRIA (vendando-lhe passagem) – Ora! Também, nem tanto! Crie coragem! Sossegue!

SONHO (dando meia volta) – Ah! E a Paixão? Teria conseguido dormir esta noite? (Batendo-lhe à porta)
Paixão, acorde! (à Alegria, em voz baixa) Psiu! Ponha-se aí de sentinela no sopé da escada,
Alegria, para me avisar quando a coroca desce. Vigie, hein! (chamando) Ó Paixão, acorde! (à
Alegria) Vigie, hein! Eu a responsabilizo por qualquer surpresa.

ALEGRIA – Tenho uma birra dessa bruxa!

SONHO – E eu, birra e medo (Abre-se a porta do Medo).

ALEGRIA – Olhe ali, o Medo abriu a porta!

MEDO (aparecendo) – Com licença... Parece que ouvi chamarem por mim...

SONHO – Nada! Desapareça da minha frente! (O Medo sai espavorido). Não se pode pronunciar o nome
desse maricas que ele não meta logo o nariz para fora! (Em voz alta) Ó Paixão! Acorde que
não posso ficar aqui a vida inteira!

PAIXÃO (Sonolenta, esfregando os olhos, num bocejo) – Por que chamaram... por mim?...

SONHO (arremedando-a) – Por que... chamaram... por mim? Ah! É um pecado acordar a Paixão a estas
horas. Mas quando precisa de mim para a consolar, não lamenta fazer comigo a mesma coisa.
Olhe, vim tratar de sua sorte. Ocorreu-me um plano mirífico para a sua completa felicidade.
Idealizei um epílogo para sua história. Um epílogo que a livra da impertinência da Razão e que
a vai tornar venturosa para sempre.

PAIXÃO (interessada) – É? Como, hein?

SONHO – Uma fuga

PAIXÃO – Uma fuga?

SONHO – Sim, uma fuga para longe. A fuga facilita o casamento.

PAIXÃO (num sorriso descrente) – Castelos, Sonho, castelos...

SONHO – Ó alma tíbia dos meus cuidados! Pense nas deliciosas passagens dessa aventura! A viagem! O
encanto da sua primeira noite! O seu leito de rendas! Os beijos ardentes que êle lhe vai dar! As
palavras de infinita doçura que êle vai dizer! Que mais receita? Os fumos de experiência da
Razão? E admite-se que só se casem os ricos? Pois eu disponho de fortunas... Eu, o Sonho
poderei Torná-la milionária de uma hora para outra.
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ALEGRIA – Não vê! De que modo?

SONHO – De que modo? Explorando o trabalho alheio. É esse o único segredo do capital.

ALEGRIA – Está a Paixão bem arranjada com os seus vagos processos de enriquecer!

SONHO – (batendo na testa) – Ah!

ALEGRIA – Que foi?

SONHO – Ia-me esquecendo da minha principal virtude.

ALEGRIA – Virtude? Você só tem defeitos!

SONHO – Virtude, sim; legítima virtude, reconhecida por toda a gente, - dar palpites para o jogo de
bicho. Você terá dinheiro para noivar principescamente, Paixão, toda vestida de seda mais rara
que usarem os mandarins... Sapatos de ouro maciço, como os da Gata Borralheira...

PAIXÃO – Para quê, se êle não me entende as intenções mais íntimas...

ALEGRIA – Ora, isso até não é mau como parece! Pelo contrário, não é? Os namorados não chegam
nunca a devassar integralmente a alma de quem amam. Depois até é bom deixar-se no fundo
do amor uma intenção misteriosa, que não seja nunca descoberta.

SONHO (rindo e arregalando os olhos) – Esta agora! A Alegria está virando psicóloga!

ALEGRIA – Então! Para mim isso representa uma garantia!

PAIXÃO – Qual! Não se consegue nada, não. A Razão analisa tudo quanto eu faço, segue-me em tudo; e
tem mãos de ferro, com que me aperta e obriga a confessar até o que penso...

ALEGRIA – Ai, ai, ai ! Se você continua desalento, tranco-me ali no quarto e quero ver depois como se
arruma!

SONHO (gritando eletricamente) – Ah! Um lampejo, Paixão, mais prático do que os outros!

ALEGRIA – É, sim, Sonho; você é muito prático! Essencialmente prático! Confiássemos no seu gênio, e
viveríamos aqui a pão e laranja.

SONHO – Eu sou o Sonho; poeta e acrobata, prestidigitador e bailarino... E você? Só inspira o riso, para
nada mais serve! ( A Razão surge no alto).

ALEGRIA – IH! Sonho, olhe quem vem lá! Eu ainda grudo um rabo de papel nessa velha! Não será a
primeira Razão no mundo que ande com uma cauda grotesca de Alegria.

SONHO (fugindo) – Chi! Lá se foi tudo por água abaixo! Oh! Megera metediça! Oh! Desmancha-
prazeres! Até logo. (sobe)

RAZÃO (ao Sonho) – Por que não fica? (à Alegria) A prestação de contas não é com você; é som aquele
maluco. Ó moça, não precisa fugir de mim. Eu não sou inimiga, como lhe parece.

ALEGRIA (altiva) – Não tenho nada a lhe dizer.

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RAZÃO (remordendo-se) Malcriada! (à Paixão) O Sonho estava a lhe contar rodelas, não é verdade?
(Batendo à porta a Dor) Não sei como é que aqui em baixo ainda dão crédito a esse doido
varrido!

DOR (aparecendo) – Que foi? A! É você, Razão?

RAZÃO – Trago-lhe uma esplêndida notícia. Resolvi desfazer o compromisso que essa menina tomou.

PAIXÃO (violenta) – Como? Nunca! Não desfará! Com que direito se quer meter na minha vida?

RAZÃO – Desfarei amanhã e de uma vez pra sempre. Até quando quer que suporte esta vida por seu
capricho! Noites e noite a fio e tenho passado em insônia...

PAIXÃO – Não é demais. Eu também. O que não admito é que se imiscua em meu caso. Demais, não é
de hoje que o seu sossego é desfeito e não é só por mim. Os outros também abusam...

DOR – Eu é que não.

PAIXÃO (à Dor) – A senhora é a asa negra dela. Quando eu acordei, a Alegria estava quase morta
naquele quarto, e fui eu quem a reanimou. Amo, sim. É essa a minha culpa? Amo
perdidamente, desvairadamente. Se é essa a minha culpa, eu mesma a proclamo. É preciso
sofrer, eu sofro; é preciso passar fome, eu passo; é preciso ousar, eu saberei ousar; é preciso
sacrificar-me, eu me sacrificarei. Agora, se começam a guerrear-me, por causa de um noivado
que ainda está em promessa... (em tom de choro) EU é que encanto a todos aqui dentro.

DOR – Não é argumento. Eu também sou quem espiritualiza a todos, e não me queixo...

RAZÃO – Venha cá, não se aflija, minha filha. Suas palavras são lindas, não resta dúvida, mas falta-lhe
um pouco de cálculo; você precisa ver as coisas como elas são na realidade. Olhe, já pensou
nas suas responsabilidades futuras? Ainda não, de certo! Casar, como? Você ignora que a vida
está pela hora da morte? Que os gêneros de primeira necessidade encarecem
assustadoramente? Nada de ilusões, minha filha! Sim, onde pretende você morar? Nos
Jardins? No meio da rua? Que vai comer? Sopa de pedras? Depois, que habilidade tem você
para dirigir uma asa pobre, nas condições em que certamente vai ser a sua? (toma-lhe uma das
mãos) Então, esta é a mão para pegar uma vassoura? Com estas unhas é que pretende você
lavar roupa?

PAIXÃO – Ih! Que prosaísmo!

RAZÃO – Mas a vida é prosaica, minha filha

PAIXÃO – Qual. A vida é bela! De resto, o Sonho disse que eu poderei viver sem a menos preocupação
de ordem material, no dia que reinar a harmonia entre os homens, com o comunismo...

RAZÃO – Não digo? Esse vagabundo anda a criar fantasias para embaçar as idéias dessas raparigas e
desmoralizar-me. Qual comunismo, qual nada! Você precisa cuidar da vida, das coisas de
interesse, do estômago. Mande o Sonha às favas com essas bobagens...

PAIXÃO (sai, batendo a porta) – Ora! Dispenso-lhe os conselhos!

RAZÃO – Viu? Tudo isto é obra do Sonho! Ele é que anda a encher caraminholas os ouvidos dessa
rapariga! Mas isso não pode continuar assim. Esse rapaz é oco, inquieto, contraditório, e se
não abrirmos os olhos a tempo é bem capaz de botar a perder essas serigaitas. Aqui o recurso
que tenho para acabar com estas desordens, é acorrentá-lo.
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DOR – Acorrentar o Sonho?

RAZÃO – Acorrentá-lo, e enforcá-lo se for preciso. Não vê que esta solução a previne de possíveis
amarguras?

DOR – Se me fere, como previne?

RAZÃO – Previne de peores conseqüências, ora essa! Ou quer você sofrer depois remover a causa do
sofrimento?! Acorrentá-lo, sim. O difícil é escolher quem o prenda. Pensei no Ódio, mas o Ódio
é visinho da Paixão. E se vier a saber que a prisão é por causa dela... As aparências enganam, olá
se enganam. Já muitas vezes que ele erra a porta e entra no quarto dela.

DOR – Pois então que se consultem todos os homens da casa.

RAZÃO – De nada valerá. Em todo caso em confesso que tinha força para acorrentá-lo, mas o que me
falta é agilidade. Esse diabo é mais fino do que um mico! Vamos, ajude-me que o benefício é
seu.

DOR (batendo na porta do Medo) – Faça o favor

MEDO (aparecendo) – Ah! É a senhora?

DOR – Olha, Medo, a Razão resolveu aprisionar o Sonho.

RAZÃO – É. Cheguei à conclusão de que ele é o único responsável por esta mixórdia. Ninguém mais
pode ter paz nesta casa. São sobressaltos sobre destinos. Você naturalmente está de acordo
conosco?

MEDO (gaguejando) – Eu? Nem se pergunta... Eu detesto as discordâncias, minha senhora.... Mas... uma
coisa: quem vai ser encarregado disso?

RAZÃO – Você mesmo!

MEDO – Quem? Eu?! Não posso, minha senhora. Sou terminantemente inimigo de brigas.

RAZÃO – Ahn! Excusa de por mais na carta; nós já tínhamos certeza da sua negativa!

MEDO – Não, não é o que a senhora julga, não. Não me faltaria coragem pra isso...

RAZÃO – Também já sabemos...

MEDO – Mas é que, pensando bem, todas as complicações neste mundo se podem resolver sem tapas...
Depois, o Sonho nunca me fez mal nenhum...

RAZÃO – Hipócrita!

MEDO – A senhora julga? Seja. Eu respeito o juízo dos outros. (sai)

RAZÃO (À Dor) – Não lhe dizia que não adianta nada! Então não conheço esta gente a fundo? Bem,.
Agora o Ciúme. (batendo-lhe à porta) Com este será a mesma. Enfim! ...

CIÚME (aparecendo) – Ah! É a senhora? Que foi?

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RAZÃO – Vimos consultá-lo a respeito de uma coisa: resolvi prender o Sonho.

CIÚME – Prender o Sonho? Por que?

RAZÃO – O fato liga-se...

DOR - ... liga-se ao caso da Paixão.

RAZÃO – Não vê que essa rapariga anda aí apaixonada. Isso, porém, não teria a menos importância, se
ela não estivesse agora toda encantada com a idéia de casar, ignorando a tola que isso é
impossível, porque o rapaz que lhe faz a corte não está absolutamente em condições de tomar a
ombros o encargo de uma casa! Compreende?

CIÚME – Ahn!

DOR – E acontece que a Razão está tratando de arranjar um jeito de dissuadi-la, porque depois, quando
vierem os desenganos, eu, a Dor, é que vou sofrer as conseqüências

RAZÃO – Compreende?

CIÚME – Ahn!

RAZÃO – E eu resolvi acorrentá-lo para sempre.

CIÚME – Não; o Sonho tem dado provas de ser meu amigo. Eu me vou entender diretamente com a
Paixão. Descobri um segredo, e hoje mesmo tenho de obrigá-la a por um ponto final nesse
romance. De qualquer forma. (Confidencial) A Paixão está cega! Não atina que ele visa apenas
desfrutá-la... Já de há muito que desconfio... Vai ver que isto ainda acaba em tragédia...

RAZÃO – Pois de qualquer modo o seu plano concorre para o meu.

CIÚME – Bem. Então depois falaremos (sai)

RAZÃO – Não lhe dizia? Agora vá você ao Ódio.

DOR – Eu?

RAZÃO – Sim; como irá ele me atender, se é meu inimigo declarado? Vá tome a chave. (entrega-lha)

DOR – Mas eu só abro a porta. Falar, não falo.

RAZÃO (com aspereza) – Como não, se você é quem lucra com isso? Fala, sim; depois, o ódio ninguém
precisa convencer, porque é puro instinto. Vamos! (pára num degrau ao alto).

DOR (vai a porta e desiste, lacrimosa) – Mas você é bárbara! O ódio estrangula esse rapaz. Se ele o
arrasta para o quarto, não há salvação possível!

RAZÃO (imperiosa) – Vamos! Que mais espera? Quem lhe ordena sou eu. (Dor abre a porta do ódio e
afasta-se, receosa. O ódio surge de golpe a cena escurece, cortada de relâmpagos. Silêncio)

RAZÃO (à Dor, em voz baixa) – Tome isto: diga que é para prender o Sonho

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DOR (medrosamente) – Esta corrente é para aprisionar o Sonho. (o Ódio arrebata-lhe bruscamente a
corrente, num rugido. A Dor, e a Razão saem, enquanto ele maquinalmente se dirige para o
quarto da Paixão, forçando a porta).

PAIXÃO (entrando) – Oh! Quem foi que o soltou? Venha! Venha! É este o seu quarto. (Ódio sai. A cena
ilumina-se. No entanto o fato intrigou-a) Mas que quer dizer isto? O Ódio solto?!

CIÚME (vê asado o momento) – Paixão

PAIXÃO – Oh Ciúme! Quem é que abriu a porta do Ódio?

CIÚME – Não sei, nem me interessa. A minha hora de o açular ainda não chegou.

PAIXÃO – Pergunto porque não consta que ninguém mais aqui, a não sermos nós dois, saiba abrir a porta
do Ódio.

CIÚME (num sussurro, depois de olhar para os lados) – Venha Cá. Sigilo! Você não tem desconfiado de
nada?

PAIXÃO – Desconfiado de quê?

CIÚME – Também você é muito crédula. Para uma Paixão viver tranqüila uma dose de desconfiança.
(com mistério) Lembra-se daquela rapariga de olhos pretos?

PAIXÃO – Sim... Que houve?

CIÚME – Pode você ficar certa... (relanceia o olhar pela cena) Pode você ficar certa...

PAIXÃO (ansiosa) – Sim, de quê?

CIÚME – De que foi amante dele.

PAIXÃO – Amante? Como?

CIÚME – Pois não tenho repetido que ele é volúvel e não merece a constância que você lhe vota? Saiba
que a promessa de noivado que ele lhe fez, não é mais do que um pretexto para quebrar um
capricho dessa rapariga, - amante que ele conservará depois de casado.

PAIXÃO (tirando uma rosa do seio, atira-a no chão e pisa-a) – Ah! (crispa as mãos de raiva) Grande
cínico! Então que pretende ele de mim? Que idéia faz de minha inocência? Eu o mato!

CIÚME (entregando-lhe um punhal) – Mate, mate. Eu sou sumário. Mate por minha conta e risco! E se
alguém a interpelar sobre isso, diga que fui eu, o Ciúme! Quero ver quem me condena! Até eu
mesmo não sei se sou defeito ou virtude. Vá ! (impele-a)

PAIXÃO (ofegante, levantando o punhal, dirige-se para a escada à direita, enquanto o Ciúme se coloca à
porta_ - Ele jurou ser meu, e será só meu. Ou meu, ou de ninguém (vai subir, quando o Medo
aparece)

MEDO (num brado) – Que é isso, Paixão? (corre a segura-la)

PAIXÃO – Nada! Aquele miserável tem que jurar sobre a ponta desde punhal, que não pode amar a mais
ninguém.

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MEDO – Paixão, dê esse punhal, Paixão! Não me comprometa, (tira-lhe a arma). E deste tamanho
(suspira). Ai! Ai! Que susto! Assim acabo perdendo a pinguinha de sangue que a natureza me
deu. (sai)

CIÚME – Paixão, você precisa resolver esse caso de qualquer modo, ou violenta ou insidiosamente.
Assim é que não pode ficar, Considere que essa rapariga de olhos negros é mais bonita do que
você e será sempre a tentação à margem do destino dele. Dou-lhe um outro punhal; não deixe o
Medo tocá-la.

PEIXÃO (chorosa) – Mas eu o amo, Ciúme.

CIÚME (dando-lhe um vidro) - Então ... a única solução é matar-se... Tome. Envenene-se.

PAIXÃO (hesitante) – Veneno?!...

CIÚME (chegando-lhe o vidro aos lábios) – Não reflita. Não reflita.

MEDO (entrando, num grito) – Paixão! Que é isso, Paixão?

CIÚME – Ela tem de envenenar-se. Não se aproxime.

MEDO – Envenenar-se?!! Ah! Não; sinto muito, mas desta vez tenho de brigar mesmo. (atraca-se com o
Ciúme procurando tirar-lhe o vidro).

CIÚME – Ela tem de envenenar-se!

PAIXÃO (batendo palmas) – Não! O medo não tem nada com isso! É e minha vontade e pronto!

MEDO – Ó Ciúme, queira fazer-me... o especial obséquio de... de... eu não suporto estes abalos... Eu...
desmaio... (e efetivamente desmaia nos braços do Ciúme).

SONHO (surgindo) – Que é isso?

CIÚME – Medo! Medo! E essa agora! Levante-se!

PAIXÃO (sacudindo-o) – Abra os Olhos! Abra os Olhos!

SONHO – Mas por que é que ele desmaiou?

CIÚME – Porque queria impedir a Paixão se envenenasse!

MEDO (voltando a si e apalpando-se...) – Ai ... Ai... Será que ainda estou vivo?

SONHO – Bem, vá cada qual para seu quarto.

MEDO (aflante) – Não... sou eu.. quem provoca estas cenas... O Ciúme é que anda aí a excitar a Paixão
com idéias sinistras.

CIÚME – Esse individuo precisa ser expulso daqui. A permanência dele aqui só nos rebaixa (sai)

MEDO (tremelicado) – Ai... ai... Mas eu aqui só levo uma vida de sustos! Arre! Nesse andar eu morro
antes do tempo (sai)

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SONHO – Ah! Paixão, venha cá: idealizei desenhos lindíssimos para o seu enxoval. (notando-lhe o
acabrunhamento) Que foi? Você ficou impressionada?

PAIXÃO (lamentosamente) – Sonho, ele ama outra mulher, Sonho!

SONHO – Quem é que lhe disse?

PAIXÃO – O Ciúme.

SONHO (num sorriso) – Ah! O Ciúme gosta muito de hipóteses.

PAIXÃO – Hipótese, quando ela já é amante dele! Quando ele se dispõe a viver com ela, depois de casar-
se comigo? (violenta) Ah! Eu não o perdôo, não (chamando à porta) Ódio!

SONHO (correndo a segurá-la) – Paixão! Que vai fazer?

PAIXÃO – Ódio! Acorde!

SONHO (arrebatando-a) – Não faça isso! Com o Ódio não se brinca. Então vai atiçar assim o Ódio contra
ele, por simples suposição? Venha! Acalme-se. Recline sua cabeça aqui no meu ombro... Assim
(Acariciando-lhe o rosto) Assim... Pense em coisas amáveis, como compete às paixões. Hoje lhe
ensinarei uma história fantástica, uma história que você começará a ouvir na terra e continuará a
ver em realidade no céu. (a Alegria aparece).

PAIXÃO (de olhos semi cerrados) – Sonho! Quem eu sou, hein?

SONHO – Você? Você é o desejo de se refletir noutra alma.

PAIXÃO (impetuosa) – Canalha! Você me vai fazer o favor de lhe dizer que tudo está acabado entre nós,
ouviu?

ALEGRIA – Aconteceu alguma catástrofe, hein?

PAIXÃO (entre exaltada e chorosa) – Isto é uma humilhação. E capricho por capricho, mais vale o meu!
Diga-lhe que está tudo acabo entre nós. Vá, Sonho; eu me torno a encerrar no meu quarto e
nunca mais apareço.

SONHO – Isso é sério?

PAIXÃO – Definitivamente.

SONHO – Bem, você quer... Com essas mesmas palavras?

PAIXÃO – Com estas mesmas. São rudes, mas eu não sei falar de outro modo. Demais ele já sabe que eu
sou muito fraca e o meu mal foi o de ser assim.

SONHO (piruetando) – Vá lá alguém se meter a entender paixões! (sai)

ALEGRIA – Mas afinal o que é que a pôs tão frenética?

PAIXÃO – O Ciúme contou-me...

ALEGRIA (atrapalhando-a) – Ah! Espere! Foi o Ciúme? Aposto que foi por causa de qualquer coisa que
ninguém viu, não é?
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PAIXÃO – É, mas não se trata de invenção.

ALEGRIA – Pois deixe enlear-se por ele, que acaba no hospício ou na cadeia.

PAIXÃO (alheada) – Patife!

ALEGRIA – Olhe: eu tenho aqui um remédio para dissipar as mágoas... (entra em seu quarto) Espere!
Um milagroso bálsamo para as mágoas...

PAIXÃO (em solilóquio) – Agora compreendo que não devo ser tão ingênua, a ponto de lhe desvendar
por inteiro meu coração...

ALEGRIA (voltando com uma botelha de vinho e um copo) – Pronto!

PAIXÃO – Que é isso, Alegria?

ALEGRIA – Vinho. Para distrair as mágoas não há como vinho. (dando-lhe o copo cheio) Vá, Paixão,
beba.

PAIXÃO – Beber? E que vale isto para um profundo mal de amor? A primeira desilusão dói mais do que
as vindouras, porque nosso coração ainda é virgem.

ALEGRIA – Vá, beba! Eu só queria saber por que é que vocês, as paixões, são sempre literatas! O mais
estúpido dos burgueses , se por acaso se apaixona, mela-se todo por uma frase bonita. Vá, beba!

PAIXÃO (receosa) – Mas olhe, Alegria, isso não me fará mal? Eu sou fraca da cabeça.

ALEGRIA – Qual! Isso é intriga da Razão que só bebe água. Beba. (Paixão bebe) Engula o copo todo. (a
Paixão obedece) Outro, vá!

PAIXÃO – Alegria, eu fico tonta!

ALEGRIA – Ora essa! Fica tonta, mas esquece. E é isso o qeu lhe importa. Vá, beba! (Paixão bebe a
metade do copo) Agora chega.

ALEGRIA – Não chega, não; acabe!

PAIXÃO (após um tempo, dando demonstrações de alterada) – Amanhã... eu lhe vou pedir... perdão pelo
que fiz... (a Razão aparece)

ALEGRIA ( prudentemente se vai afastando para seu quarto) – Ih! Agora é que vai começar a dança das
tangarás. Aí vem a marcadora dos compassos.

RAZÃO – Mas que significa isso?

PAIXÃO (passando a mão pela fronte) – Foi a Alegria que me embebedou ... (a Alegria solta uma risada)
Ela é que tem culpa...

RAZÃO – Mas afinal que significa isso? (conduz a Paixão pela orelha para seu quarto).

PAIXÃO – Ai! Ai! Não fui eu! Foi a Alegria! (sai. A Dor aparece)

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RAZÃO – Vejam só! Inteiramente bêbada! (vai a sair) Será possível que não me possa afastar um
instante, sem que se cometa aqui dentro uma loucura?! Corja! Eu ainda hei de pôr isto nos eixos!

ALEGRIA (imitando-a) – Traste! E eu ainda hei de quebrar esses óculos. (sai)

RAZÃO (à Dor) – Viu? Viu que mal educada? E ainda por cima aturar desaforos desta ordem!

DOR – Ah! Essa menina ainda não penetrou o sentido da vida. É frívola, fútil, insolente...

RAZÃO – Pois imagine que embebedou a Paixão. Que dirão de mim lá fora? Fazerem-me passar por este
vexame!

DOR – Ah! Mas a Alegria é assim mesmo: tem modos de gente paca!

RAZÃO – Mas se estas coisas acontecem é exclusivamente por causa do Sonho. Se tanto a uma como a
outra ninguém desse corda, andaria tudo no melhor dos mundos! Você deixou a porta aberta?

DOR – Deixei.

RAZÃO – Bem. O Ódio é capaz de errar o bote, porque é o cego, e o Sonho é arisco como um relâmpago.

(O Sonho aparece no alto da escada e aí pára, a olhar ironicamente para ambas, que se
juntam à D. baixa)

DOR (apreensiva) – Mas... Isto é uma crueldade.

RAZÃO – Psiu!

SONHO (recita em gestos cômicos, descendo lentamente).

Minhas senhoras, meus senhores.


Sou eu, com as minhas fantasias,
O inspirador dos jogadores de loterias.

E muito embora vos irrite,


Devo deixar-vos, minha irmã,
Que ando à procura de um palpite para amanhã.

RAZÃO (subindo) – Macaco! (Sai juntamente com a Dor).

SONHO

A idéia não se coaduna


Com o vosso gênio; mas então
Como arranjar-se uma fortuna para a Paixão

(Percebendo-se sozinho, corre e bate ao quarto da Paixão) – Paixão! O plano da fuga está pronto! Paixão!
(O Ódio abre a porta de improviso. A cena escurece, cortada de coriscos. Troveja. O Sonho solto
um uivo. O Ódio segura-o fortemente pelas mãos, ele tenta desvencilhar-se apavorado) – Não!
Não! (Mas o Ódio é inflexível: acorrenta-o e arrasta-o, entre soluços e gritos, para o seu quarto)
Não! Ali eu morro! Não! Paixão! Alegria! Socorro! Dor! Socorre-me a mim, que sou a tua asa
de consolação e de poesia! Não! (cai sobre o coração um silêncio trágico. A Razão desce,
sorridente, e tranca a porta do Ódio. A cena Ilumina-se).

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ALEGRIA (aparecendo) – Que é isto?

RAZÃO – Nada (e suspira) Até que em fim (sai).

ALEGRIA (batendo à porta da Paixão) – Paixão!

PAIXÃO – Que é?

ALEGRIA – Você não ouviu uns gritos?

PAIXÃO – Não. Por que?

DOR (aparece e explica, postada à sua porta) – Foi o Ódio que acorrentou o Sonho e levou para seu
quarto.

PAIXÃO E ALEGRIA – O Sonho?!

DOR – A Razão disse que era pra me prevenir de amarguras, e eu... não tive senão que concordar... (e
dito isto, ressai).

ALEGRIA – E agora, Paixão?

PAIXÃO – Há um precipício lá dentro, Alegria! Eu sei que há um precipício! É preciso impedir que o
Ódio o atire nele.

ALEGRIA – Bem me estava parecendo que a Razão veio armar uma cilada para o Sonho. (E como se
começam a ouvir gemidos lancinantes do Sonho, ambas se afligem) Ele! É a voz dele, sim!

PAIXÃO – Precisamos salvá-lo, Alegria!

ALEGRIA (forçando a porta) – A Razão levou a chave! E agora, como vai ser?

PAIXÃO (leva a mão à cabeça, desorientada) – Que angústia! Que Angústia! Eu não posso viver sem ele!

ALEGRIA – Vamos, Paixão, arranje um meio! Arranje um meio! Bata no quarto da Dor! Quem sabe se
ela é capaz de convencer a Razão?

PAIXÃO (põe a bradar) – Dor! Ciúme!

ALEGRIA – Você foi mexer com o Ciúme... o resultado é este!

PAIXÃO – O Sonho está sendo estrangulado pelo Ódio! Socorro!

ALEGRIA – É preciso salvá-lo!

PAIXÃO – Também a Dor deixou a Razão dominar-nos!

ALEGRIA (brandando também) – Mas é preciso salvar o Sonho!

PAIXÃO – Como há de ser? Como há de ser? (pára de improviso, como se tivesse descoberto um meio
de salvá-lo) Ah! Pronto! Achei, Alegria!

ALEGRIA – Como, hein?

12
PAIXÃO – Depois você saberá! Ponha-se aí de guarda à porta do Ódio! Não saia! (Entra no seu quarto)

ALEGRIA – Pois sim. Depressa. Paixão! Depressa! (Espectação; continuam os gemidos).

RAZÃO (aparece e, deparando com a Alegria ordena-lhe) – Ó menina, vá para seu quarto! Acabou-se a
festa! Agora outro galo canta aqui dentro!

ALEGRIA ( obedecendo, contrariada) – Infelizmente não é galo quem canta, é uma galinha velha que
cacareja (e coloca-se à sua porta)

RAZÃO (ouvindo os gemidos do Sonho batendo à porta da Dor) – Morre! Que já não é cedo!

DOR (aparecendo) – Ah!

RAZÃO (severa) – Vou eu tomar agora mando disto, entendeu? Faça o favor de avisar a todos! Bem! (e
sobe)

DOR (à alegria) – Ouviu?

ALEGRIA – Nunca!

DOR – Malucas! Querem morrer com o Sonho, não é? (sai).

ALEGRIA (percebendo-se só, corre à porta da Paixão) – pronto, Paixão? Daqui a pouco ela desce de
novo!

PAIXÃO (do interior, alacremente) PRONTO!

SONHO (seguido pela Paixão, com os cabelos e a roupa desfeitos, arfando de cansaço) – Ah! Agora! Só
agora, depois de ser quase esfrangalhado pelo Ódio, é que vocês aparecem?

ALEGRIA – Ó Sonho!

SONHO (subindo) – Eu aqui é que apareço mais!

ALEGRIA – Mas como foi isso?

MEDO (aparecendo) – Chi! Credo em Cruz! O Sonho está solto! Chi!

ALEGRIA – O Medo então só sabe Chiar!

MEDO (encolhendo-se) – Eu estava espiando aqui pelo buraco da fechadura... Espero que vocês sejam
mais legais, dizendo à Razão que o Medo foi comportado como sempre.

SONHO – Suma-se, tragalhadanças! (o Medo sai) E agora vou eu também. De uma coisa podem ficar
certas: É que esta é a ultima vez que desço ao coração. NUNCA MAIS!

ALEGRIA – Mas como é que a Paixão o soltou, hein?

PAIXÃO – Não vê que entre o meu quarto e o do ódio há uma porta falca?

ALEGRIA – Ah! É?! E a Razão não sabia?

PAIXÃO – Não. Ó Sonho, aonde vai?


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SONHO (do alto) – Dar cambalhotas entre as estrelas. Quer alguma coisa de lá?

PAIXÃO – Você lhe deu o recado?

SONHO – Que recado?

PAIXÃO – Que estava tudo acabado entre nós... Já deu?

SONHO – Dei!

PAIXÃO (num enleio) – Mas... estou arrependida... Queria que você... lhe dissesse que eu me arrependi e
que PE melhor fazermos as pazes...

SONHO (fixa a admirado e, depois de um tempo) – Já sei.. Já sei... compreendo... Quem ama não tem
vergonha!

Cai o pano

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SEGUNDO ATO

(Sentada no primeiro degrau da escada à D., a


Alegria afaga a Paixão que dorme estendida no solo,
com a cabeça reclinada em seu regaço.)

Alegria canta um nina-nana (*)

Dorme, Paixão, que a Alegria Não se embriague e transmude,


Vela o teu sono noite e dia Transmude num paraíso.
Não pode haver juventude, Dorme, Paixão, que a Alegria
Que, com o teu beijo e o meu riso, vela o teu sono noite e dia

(*) – música da canção da Alegria: no segundo ato, conto a seco, no terceiro ato, violino e piano.

PAIXÃO (de olhos fechados) – Oh! Que maravilha é amar e ser amada!

ALEGRIA (rindo) – Que é isso? Você agora virou sonâmbula? (pausa).

PAIXÃO (abrindo os olhos) – Alegria, você é a mais doce das minhas irmãs...

ALEGRIA – Também não me consta que você tenha outras... (continua a cantar)

Saiba que faça perguntas


À esfinge felicidade

Que esta existe, na verdade,


Enquanto vivemos juntas.

Dorme, Paixão, que a Alegria


Vela o teu sono noite e dia...

(a Paixão dorme de novo, quando, no topo da escada apareça a razão)

ALEGRIA (voltando o rosto) – Já?!

RAZÃO – Já, sim! Já sempre!

ALEGRIA – Bem, mas não berre, porque a acorda. A senhora não é mulher, a senhora é um grifo!

RAZÃO – Quero saber quem teve o desplante de soltar o Sonho! Quem teve a audácia de desrespeitar
uma ordem minha! Cambada de desordeiros!

ALEGRIA – Não grite! Não vê que a Paixão está dormindo?

RAZÃO – Pois que acorde, que tenho eu com isso? Até é bom que acorde mesmo. (A Paixão desperta,
num suspiro) Ó dona, ponha-se em pé, para me explicar como é que se deu liberdade ao Sonho!
Então, quem sou eu aqui?

ALEGRIA – (levantando-se num frenesi) – Ora, pipocas! Eu também não sei que coração imprestável é
este, que não se inflama, não reage, não protesta contra esta vergonhosa tirania.

PAIXÃO (investindo-a) – É. Sua presença aqui é importuna, insuportável, intolerável.

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RAZÃO (pondo as mãos nas ilhargas) – Ora vejam! Assanharam-se as duas baratas!

PAIXÃO – Melhor será que nunca se envolva em nossa vida. Sim, porque não poderemos fazer liga com
quem é ardilosa e grosseira como a senhora.

ALEGRIA – Saiba que nós a detestamos. A senhora, é o cálculo, nós p ímpeto: não há aliança possível
entre nós!

RAZÃO (muda de tática) – Afinal, minhas filhas, vocês são exaltadas por natureza; mas olhem que com
isso nada adiantam. Não percam a calma, guardem a serenidade para o raciocínio. Acreditem
que eu não lhes quero mal. Se minha missão é tornar-me protetora de vocês, como lhes vou
querer mal? É certo que alguém lhes anda a assoprar nos ouvidos, intrigando-as comigo.

PAIXÃO – Calúnia! O Sonho é superior demais para ser intrigante.

RAZÃO – O Sonho é a perdição de vocês.

ALEGRIA – Seja! O caso é que estamos dispostas a morrer com ele, ou por ele! Damos tudo pela sua
independência!

RAZÃO – Pois verão se ele vale semelhante sacrifício. No entanto, minhas filhas, a mim, que nada peço
nem exijo para protegê-las, como me tratam vocês? (à Alegria) Essa, foge de mim; desfeiteando-
me sem o menos motivo, como agora; quando não se retira, com a minha chegada...

ALEGRIA – Era isso o que todos deviam fazer, se tivessem um pouco de brio, uma réstia de amor
próprio!

RAZÃO (à Paixão) – Esta, por sua vez, iludida por esse pateta, vota-me esse rancor surdo, que às vezes
explode sem conseqüências... Para casar, minha filha, não se precisa de Sonho: precisa-se de
mim. Você anda nesse estado de enlevo, nesse período de êxtase cor de rosa... (ironicamente)
Faz questão de não olhar para as reles contingências da vida... Como se a gente, neste mundo a
neste século, vivesse de brisas ou da poesia das estrelas! Considere que sobre mim é que pesarão
os compromissos financeiros do seu casamento (a Paixão faz um amuo) e que, portanto, devo
ser ouvida e consultada. Não é que eu me oponha ao seu desejo, não. O que eu quero é que sua
escolha se faça depois da minha.

PAIXÃO – Torno a dizer-lhe que isso não é da sua conta. E... não me aborreça! (sai, batendo a porta. A
Alegria solta uma risada).

RAZÃO – Isto não pode continuar assim. Só a chicote! É desaforo sobre desaforo! (Com mistério) Ah!
Mas eu bem sei o que devo fazer (Sobe).

ALEGRIA (Batendo à porta da Paixão) – Paixão! Paixão!

PAIXÃO – Que é?

ALEGRIA – Abra!

PAIXÃO – A Razão já foi embora?

ALEGRIA – Já.

PAIXÃO (aparecendo com um espelho e um arminho) – Arre, e não é fora de tempo. Ainda nem tive
sossego para me preparar. Segure este espelho, Alegria.
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ALEGRIA – Pois não. (Confidencial) Mas por que será que fingimos tanto, hein, Paixão? Será que o
fingimento é uma condição da índole feminina?

PAIXÃO – Sei lá!!... Eu não finjo.

ALEGRIA – Não, sonsa. Que significa todo este cuidado, senão o seu desejo de aparecer mais bonita... de
fingir encantos que não tem?... Qual! De uma coisa você pode ficar certa: os homens é que se
apaixonam, os homens é que amam... Não é à toa que Cupido é masculino...

PAIXÃO (empoando-se) – Ao menos estes últimos toques. É possível que ele hoje venha antes da hora
marcada... (volteando-se) Está direito o vestido, Alegria?

ALEGRIA – Uma galanteza! Nunca se viu uma Paixão mais sedutora, nem mais maluca do que esta!

PAIXÃO – Também por que é que os homens gostam sempre das coisas mais difíceis? Que se arrumem
com o nosso fingimento. Não nota nada no vestido, Alegria?

ALEGRIA – Nada. Que faceirice!

PAIXÃO (enquanto leva os objetos ao quarto e volta) – Obrigada! Ontem ele me escreveu uma carta,
sabe?

ALEGRIA – Por onde se prova que o “Secretário doa Amantes” ainda tem saída. (O Sonho desce
cautelosamente, com o papel e lápis na mão).

ALEGRIA – Ó Sonho! Que demora!

SONHO – A Razão está lá em cima crepitando como uma labareda! E a carta?

PAIXÃO – Ah! É mesmo! A carta! Vamos escrevê-la?

SONHO – Nós escrevemos e a Razão borra, isso é fatal, mas em todo caso...

ALEGRIA – Bem, eu vou buscar o meu banco. (sai)

SONHO – A carta é em resposta, não é?

PAIXÃO – É, é em resposta.

SONHO – Está bem. (Subitamente, voltando-se para o fundo) Ó Paixão!

PAIXÃO (assustada) – Que foi?

SONHO – Quem é que mora aí nesse quarto?

PAIXÃO – Era isso? Não sei, não. Arre! Você tem repentes que nos desconsertam!

SONHO (batendo à porta situada entre as escadas) – Desconhecido morador deste quarto: eu vos exorto a
nos revelar o vosso tremendo ou lírico segredo!

ALEGRIA (de volta com o seu banco) – Ó Sonho! Que está você fazendo aí? Deixe de ser bisbilhoteiro.

SONHO – Eu não bisbilhoto: eu perquiro!


17
ALEGRIA – Olhem a vaidade do Sonho; quem perquire é a Razão.

SONHO – Pois então, vôo.

ALEGRIA – E eu canto.

PAIXÃO – E eu queimo...

SONHO – Bem. Deixemo-nos de profissões de fé. Vamos fazer o rascunho. (Dando o papel e o lápis à
Alegria, que senta no meio da cena) Tome!

ALEGRIA – Assim está direito: a Paixão dita, o Sonho floreando as idéias com palavras poéticas e eu
escrevo. Está direito assim?

SONHO – Direitíssimo! Vá, Paixão, comece!

PAIXÃO (espalmando a destra sobre o coração e rebuscando expressões com esforço) – Eu... eu... Não!
Esperem! Eu... amo!

ALEGRIA (imitando-lhe o gesto) – Eu... amo. Esta então só sabe dizer isso! Curioso, como as paixões se
repetem.

SONHO – Vamos lá: em que consiste a resposta? Quer dizer galanteios? É para marcar um idílio?

PAIXÃO – Não. Ele me escreveu, perguntando se podia pedir-me hoje, e eu... desejo responder que sim...

SONHO – Ora, não há coisa mais fácil. Por sinal que é uma belo tema...

PAIXÃO – Vá, Alegria, escreva: meu amor...

SONHO (girando o dedo sábio no ar) – Não, espere! Escreva: lírio que desabrochas no meu coração...

ALEGRIA (depois de olhar o Sonho, encabuladoramente) – Ou o Sonho é um gênio, ou eu sou idiota.

SONHO – Ué! Por quê? A frase, se não é linda, pelo menos não é muito vulgar... Ou será melhor pedir-se
à Razão o começo da carta? Experimentem! Eu adivinho a expressão que ela ditaria: - Ilmo.
Snr., saúde e fraternidade...

ALEGRIA – Mas esse lírio reduz o coração a lama...

PAIXÃO – Pois está muito certo; eu o sinto mesmo dentro do coração.

ALEGRIA – Onde já se viu um lírio de barba! Enfim!... Pronto! Que mais?

SONHO – Tua promessa de noivado...

ALEGRIA - ... tua promessa de noivado...

SONHO - ... é como um aceno que me fizesses com um lenço branco...

ALEGRIA – Mais devagar... Eu não sei taquigrafar... Um lenço branco...

SONHO - ... do píncaro azul da montanha da felicidade.


18
PAIXÃO – Oh! Mas o Sonho só fala por imagens! Isso é muito campanudo, muito complicado...

SONHO – Ó Criatura! Vocês me querem tirar os surtos? Minha natureza é esta! Se serve, muito bem! Se
não...

PAIXÃO – Não gosto porque não é bem isso que estou sentindo. Escreva que eu estou pronta para ser
pedida...

ALEGRIA – Mas isso vai assim em tom de ofício de repartição pública? Hein, Sonho?

SONHO (Aborrecido) – Vai. Quando eu penso que nem vocês, que se dizem minhas amigas, me
entendem aqui dentro! Pois não floreio mais nada, pronto!

PAIXÃO – Ó Sonho, se falei é porque sou sincera. Então você nega que há um choque de temperaturas
entre nós? Você diz de tal forma as coisas, que ele há de julgar que eu sou fria, ou estou
fingindo. Quem ama não fala certo...

ALEGRIA – Quem ama, erra a colocação dos pronomes!

SONHO (à Alegria) – Pois escreva como ela quer.

PAIXÃO (afagando o Sonho) – Sonho! Consolo dos tristes! Meu amado Sonho! Eu que o libertei da
morte...

SONHO (amuado) – Que é? (num repente) Ah! Quem é que mora ale naquele quarto, hein?

PAIXÃO – Eu lhe quero bem, Sonho. Desculpe-me o que lhe disse. Mas você já sabe qual é o meu
feitio...

ALEGRIA – Ó Ciúme, venha ver esta pouca vergonha! Vamos lá. Já escrevi. Olhem:... da montanha da
felicidade! Estou pronta para ser pedida.

SONHO (tomando o papel) – Está bem, está bem assim. Vou levar a cara para a Memória ler, antes de ser
passada a limpo. Até logo (Sobe).

ALEGRIA – Bem, agora venha cá um instante.

PAIXÃO – Para quê?

ALEGRIA (à porta) – Espere aí um pouco. Tenho uma surpresa... (Entra no quarto).

PAIXÃO – Surpresa! Que será? Olhe, Alegria; se for vinho, dispenso.

ALEGRIA – Uma surpresa, para comemorar a promessa de hoje. (Aparece com o seu banco, um festão
de rosas e uma fieira de bandeirinhas multicoloridas) Olha aqui!

PAIXÃO – Que é isso? É para enfeitar meu quarto?

ALEGRIA – Embandeirar o coração todo. Hoje é dia de gala aqui dentro, homenagem mais cândida e à
mais aluada das paixões da terra.

PAIXÃO (contentíssima) – Oh! Tudo isso?! Eu a ajudo a colocar, Alegria! Muito obrigada pela sua
lembrança.
19
ALEGRIA- Pena é que eu não possa ir sempre diante de você, espalhando ouro em pó pelo seu caminho.

PAIXÃO (batendo à porta da Dor) – Dor! Ó Dor!

ALEGRIA (enérgica) – Que é isso. Paixão!

PAIXÃO – Venha ver o que ganhei!

ALEGRIA – Que é isso, Paixão? Venha cá! Saia daí!

PAIXÃO – Por quê?

ALEGRIA – Por quê? Você é tola, criatura! Chama a Dor nesta hora?

PAIXÃO – Mas a Dor é tão boa pra mim!

ALEGRIA – Não compreende que ela não pode estimar enquanto você estiver no esplendor? (Põe-se a
trabalhar) Assim fica bem?

PAIXÃO (Voluptuosamente, desfolhando uma flor) – Ah! Se ele cumpre o juramento! Meu desejo era
unir à dele a minha boca, pondo entre as duas assim uma pétala de rosa, e demorar o beijo até
que a pétala murchasse.

ALEGRIA – Ah! Se todas as paixões da terra tivessem uma Alegria gratuita, uma Alegria camarada,
assim como eu...

PAIXÃO – Mas não sei por que motivo ainda receio...

ALEGRIA (sem desviar a atenção de sua tarefa) – Depois, eu cantarei e você e o Sonho dançarão. Há de
ser um forrobodó inesquecível, tanto assim que para isso convidaremos a Memória...

PAIXÃO – Vago receio, indecisão indefinível, desconfiança de que não se entregue todo à minha carícia
exclusiva...

ALEGRIA – Ó Boba, chega de divagações. Olhe aqui para cima; agrada-lhe este arranjo?

SONHO (surge no topo da escada à E. Vem com as mãos algemadas nas costas e fala com irritação) –
Espere! Não empurre!

PAIXÃO – Olhe, Alegria, ai vem o Sonho algemado.

RAZÃO (empurrando) – Desça!

SONHO – Devagar, senão rola na escada.

RAZÃO – Deixe-se de luxo! Anda sempre às cabriolas, por que não pode agora descer depressa? (dando
com os enfeites) Mas que espalhafato é este? (Ríspida) Alegria! Paixão! Tirem tudo isso,
vamos!

ALEGRIA (obedecendo) – Paixão, nós precisamos reagir contra essa megera.

SONHO – Covardia! Eu não me submeto ao seu mando. Eu sou o gênio da liberdade. Solte essas
algemas, vá!
20
RAZÃO (obrigando-o a sentar-se) – Sente-se! Nem um pio!

SONHO – No chão?

RAZÃO – Sim, espere aí sentado!

ALEGRIA – Ó coroa azarenta! Se a cada um de nós seis, aqui dentro, coubesse um dia da semana,
restava um para ela: a sexta-feira.

PAIXÃO (altiva) – Por que acorrentou o Sonho, se ele é um clarão para os sentimentos?

RAZÃO (à porta da Dor) – Para ser julgado. (batendo e chamando) Dor! Ó Dor!

PAIXÃO – Julgado? Julgado por quê?

RAZÃO (imperiosa) – Cale-se. Não tenho satisfações a dar-lhe.

DOR (aparecendo) – Ah! É você? (dando com o Sonho) O Sonho conseguiu livrar-se? Como foi isso?

RAZÃO – Valeu-me a experiência. Fiquei sabendo que entre o quarto da Paixão e o do Ódio existe uma
porta falsa, por onde ele fugiu. Fugiu, mas prendi-o de novo. Desta vez, eu sozinha.

PAIXÃO (à meia voz) – Isso é um atentado à soberania do coração.

SONHO – Depois sou mais velho do que essa rabugenta! Não parece, porque eu tomo o elixir da eterna
juventude. Mas eu nasci primeiro e ela devia respeitar-me! Quando ela nasceu, eu já tinha buço.

RAZÃO – O que importa é saber que vai entrar em julgamento... Vamos lá! Tempo é dinheiro! (à Paixão)
Vá! Chame a Alegria e o Ódio. Essa gente só se entende com você.

PAIXÃO – Mas eu não me conformo.

RAZÃO – Tanto melhor para mim. Faça o que lhe ordeno, e não me refugue. Agora aqui mando eu.
Vamos! Mora essas pernas, vamos!... (à Dor) Chame você aquele, que eu bato à porta deste.

PAIXÃO (batendo) – Ódio!

DOR (idem) – Medo!

RAZÃO (idem) – Ciúme! (à Alegria) Então, já acabou de desfazer o escândalo? Leve tudo isso outra vês
para seu quarto, e esconda... que eu nunca mais veja essas bandeirolas. Tinha graça, o coração
embandeirado em arco! ...

DOR e RAZÃO (aos que aparecem, anunciam simultaneamente) – O Sonho vai ser julgado! Aprontem-se
para servir de juízes.

SONHO – Venham, não se penalizem, porque o meu destino é mesmo heróico... Sem mim heróis não
vivem.

RAZÃO – É melhor que cada um traga o seu banco. Vamos! Depressa! (A Dor, Alegria, Medo, Ciúme e
ódio fecham a porta).

21
SONHO – Ah! Mas o morador daquele quarto (Aponta para a porta do F) Eu reclamo a presença dele.
Quem sabe se é um voto a meu favor?!

RAZÃO – Quem mora aí?

DOR – Não sei.

RAZÃO (intriga-se com isso) Ó moça, quem mora aí?

PAIXÃO – Não sei. Essa porta nunca se abriu. É um mistério.

(A dor, a Alegria, o Ódio, o Medo e a Ciúme


aparece, ao mesmo tempo, cada qual com um banco,
forrado ou pintado de cor das vestes.)

RAZÃO – Ai, ai, ai! Eu não quero mistérios. Preciso conhecer tudo isto! Não quero ter mais surpresas
aqui dentro.

SONHO – Quem é que vai fazer minha defesa?

RAZÃO – Em primeiro lugar previno o réu de que não pode interromper o julgamento com apartes.

SONHO – Discordo!

RAZÃO – Silêncio!

SONHO – Discordo e protesto. Em primeiro lugar, quero saber quem vai fazer a minha defesa.

RAZÃO – Ninguém (pausa).

(Sentam-se, cada qual em frente do seu quarto,


formando um ângulo agudo, em cujo vértice fica a Razão
de pé, de braços cruzados. O Sonho permanece no meio, sentado no chão).
ALEGRIA – O Medo não devia entrar no júri, porque não tem opinião: O Medo só concorda...

MEDO (levantando-se) – Está muito enganada. Isso, com perdão da palavra... é uma inverdade.

RAZÃO – Bem. Todos aqui devem ter notado que só gosto das coisas às claras. É uma questão de caráter.
Assim nasci, assim hei de morrer... Este julgamento é decisivo; ou absolvem este doido e
deixam-no às soltas, ou me outorgam o direito de resolver tudo ao meu arbítrio, para cumprir
as responsabilidades que nos cabem. A Paixão quer por força casar-se e eu não me oponho a
isso. Mas, como sou eu quem tem de medir as conseqüências desse passo, desde já pondero
que casamento não é brincadeira. A Paixão é exaltada, mas eu vejo as coisas a frio. Porque é
necessário considerar que, numa união, o principal é o lado econômico. Ela vê a flor, que é o
beijo; mas eu vejo o fruto, que é o filho. Demais, ideal não enche barriga; o preço da vida hoje
em dia, está pela hora da morte; o que se come, o que se bebe, o que se veste, o aluguel da
casa, e, além do mais, a eventualidade de uma doença...

SONHO (à meia voz) – Ih! Que chateza!

RAZÃO – Afinal, a mim é que assiste o dever de cuidar antecipadamente de tudo isso, para evitar
dívidas, e mais vale prevenir do que remediar.

SONHO (à meia voz) – Mas que amor à chapa!


22
RAZÃO – Ora, a liberdade do Sonho é um entrave para isso, pois só vive a encher caraminholas a cabeça
da rapariga. A gente não bebe Sonho, não veste Sonho, nem come Sonho. Portanto, pergunto:
prende-se ou liberta-se este maluco? (pausa)

SONHO – O silêncio dos momentos solenes.

PAIXÃO (levantando-se) – Eu tenho necessidade de falar.

ALEGRIA – Fale. As paixões recolhidas estouram...

PAIXÃO (com veemência, depois de ligeira pausa) – Por minha causa, não se acuse, nem se condene o
Sonho! A ré sou eu. Julguem-me, portanto. Afinal, qual é o meu crime? Amar, simplesmente
amar. E quem poderá afirmar que eu seja delícia ou martírio? Delícia, porque gero êxtases? Ou
martírio, porque gero as dores luminosas? Demais, a Razão não penetrou no um íntimo, para
saber se me angustia a dúvida em que vivo; e no entanto, guerreia-me, como se em amar não
consistisse unicamente o meu destino, como se não me bastasse o suplício de não ser amada
como amo. (à Razão) Por que me encara com esses olhos duros? Eu denuncio o seu plano...
(Chorosa) O que ela astutamente prepara – sabe? – é a entrega do meu corpo a alguém que eu
não estime, ou que talvez até repugne... Já bastam as pobres das paixões que se sacrificam ao
seu império torvo; bastam os pobres amantes suicidas que a senhora faz rolarem sem uma
lágrima – coitadinhos! – porque até a lágrima, que sacrifica, a senhora cresta. Chorar é
privilégio do coração.

DOR – Justo. E que bendito privilégio!...

RAZÃO – Silêncio! Deixe a rapariga acabar o discurso. Continue com a palavra. Acabou?

PAIXÃO – Não. Quero apenas acrescentar uma coisa; quem me entendeu, que faça o meu libelo. De
resto, se ele é pobre e tem defeitos, abertamente declaro que não me iludo com a vida até
mesmo de privações que vá passar. Essa expectativa não me apavora; pelo contrário. Vou
passar privações? Pois eu aceito de bom grado...

ALEGRIA (apertando-lhe a mão) – Toque! E aqui estou firme na colaboração.

SONHO – Muito bem! E eu também para a servir nas horas vagas.

RAZÃO – Silêncio!

PAIXÃO – Não faz mal! Eu quero viver junto dele de qualquer modo! (senta-se)

RAZÃO – Que três (à Paixão) Afinal que entende você da vida! Casar, sabendo antecipadamente que vai
passar privações?! E não sabe você que a miséria esfria o amor?

SONHO – Bravo! Bravo!

RAZÃO – Bravo, por quê? Isso é graça?

ALEGRIA (Admirada) – Ué! O Sonho concorda com a Razão... Querem ver que ele é gira mesmo?!!

SONHO – Oh! Se a miséria esfria o amo!! Nisso estamos de acordo. Por essas e outras é que eu prego a
igualdade econômica; se o consumismo fosse uma realidade, os casos como este já estariam
resolvidos.

23
PAIXÃO – Apoiado!

RAZÃO – Cale-se!

SONHO – Calo-me, mas sustento que o que estou dizendo é uma verdade!

RAZÃO – Bico! É verdade, mas não me convém pensar nessas coisas.

MEDO – Isso! Muito bem pensado, minha senhora! Não convém à gente criar complicações com a
polícia.

SONHO – É. Desgraçadamente você interpreta bem a humanidade!

RAZÃO – Chega! (pausa) – Tem a palavra o Ódio. (silêncio)

SONHO (à meia voz) – Eu queria saber onde é que viu o Ódio ouvir a Razão!

PAIXÃO – Depois é inútil! O Ódio, quando muito, poderá votar.

RAZÃO – Então fale o Medo. O senhor, o que pensa a respeito?

MEDO – Eu?! (pausa. Levanta-se) O que posso dizer é que, quando a Paixão começou a querer declarar-
se, eu a segurei enquanto pude; mas um dia ela foi mais esperta, desvencilhou-se de minhas
mãos quando eu menos esperava e... fez a confissão de amor ao rapaz. É isto apenas o que
tenho a declarar. (senta-se) Se ofendi alguém, que me desculpe... mas juro que não tive essa
intenção.

RAZÃO – A palavra continua ao dispor de quem se queira manifestar antes de dar o voto.

SONHO – Mas, esperem! Eu reclamo a defesa! Quero saber quem é que toma o meu patrocínio...

ALEGRIA – Tomo eu, pronto! (Levanta-se. Silêncio. Repara no Ciúme, que rói as unhas) Ó Ciúme, por
que é que você tem esse mau hábito de roer as unhas, hein?

CIÚME – É herança de minha mãe: a Inveja.

RAZÃO – Mas afinal, as unhas não vêm ao caso. Como é isto?

ALEGRIA – Bem. Perdoem-me se for inconveniente, mas que fazer? Não sou como alguém que muitas
vezes bate à minha porta, implorando-me que apareça em seu lugar, embora constrangida...

SONHO – Eh! Isso é carapuça pra Dor!

DOR (quase a chorar) – Não o faço por mim. Faço-o porque a vida obriga, minha filha; e com que
profunda mágoa não lhe fui, uma só vez, pedir que me substituísse!

RAZÃO – Silêncio! Continue a Alegria!

ALEGRIA – Sou inconveniente como estão vendo, mas que fazer? É uma questão de caráter também.
Lamento do fundo d’alma que este vexame ao Sonho se dê por causa da Paixão, porque a
Paixão, o Sonho e eu somos as cores alegres desta casa de macambúzios...

CIÚME – Ora, Alegria, você tem queda para o vício!

24
ALEGRIA – E você para a crime, simulador! (Balbúrdia; protestos. O Sonho solta uma gargalhada).

MEDO – Que é isso? Sejamos serenos. Calma! Não se exaltem! Calma! Calma!

RAZÃO – Silêncio! A palavra está com a Alegria!

ALEGRIA – Rir, amar e sonhar – eis os três verbos de que se compõe a felicidade. Sou, por isso,
contrária a qualquer ameaça que se queria fazer ao Sonho, porque o Sonho nos é necessário.
De resto, eu, a Paixão e ele já fizemos o juramento de envelhecer juntos.

PAIXÃO E SONHO – É verdade.

ALEGRIA – Portanto, nada nos resta fazer senão encurtar os trabalhos e por em votação a proposta. (alto)
Quem votar pela libertação do Sonho, levanta-se; quem votar ao contrário, fique sentado.
(Ódio levanta-se)

PAIXÃO – Eu voto a favor.

MEDO – Com licença? Eu requeiro abstenção de voto. Não é desconsideração a nenhuma das partes.
Nem por sombra... É... É simplesmente um caso de consciência.

ALEGRIA – Está bem. Ninguém mais vota a favor?

CIÚME – Eu.

ALEGRIA – Um, dois, três... quatro comigo. Acabou-se o julgamento.

SONHO (suspirando) – Livra!

ALEGRIA – Nada mais resta a discutir. (vai desatar as algemas do Sonho).

MEDO (à Razão) – Como a senhora bem viu, a culpa não foi minha, não é verdade?

RAZÃO – Retire-se!

MEDO – É, ou não, uma infâmia que eu só voto com a maioria?

RAZÃO (entre si) – Esta gente ilógica me compromete...

MEDO (ao Sonho) – Meus parabéns.

ALEGRIA – Veio acender a segunda vela, hein, pisa-flores? Cumprimentou a Razão e vem agora felicitar
o Sonho!

MEDO – Duas velas, não. Em qualquer parte do mundo, toda gente sabe que o Medo é sempre cortês...

ALEGRIA (largando as algemas no chão) – Pronto! Liberto!

SONHO – Obrigado. Hoje à noite, para agradecer esta prova de solidariedade, iluminarei este coração a
fogos de bengala. (Saem todos os sentimentos. O Sonho pirueteia, curvando-se
exageradamente diante da Razão) A benção, irmã. A Boêmia reverencia a sisudez. (e
escafede-se como um corisco).

RAZÃO (Passeia pensativamente; não se conforma com a decisão do júri e estuda um novo plano.)
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DOR (abre a porta e encaminha-se lentamente para ela) – Em que raciocina você?

RAZÃO (severa) – Foi muito bom você aparecer, porque achei o remédio. Vá buscar o seu cadeado.

DOR – Meu cadeado? Para quê?

RAZÃO – Saberá depois... Vá buscá-lo.

DOR (apreensiva) – Mas... Que vai fazer com o cadeado?

RAZÃO – Não precisa saber pra quê! Já aprendi, pelas experiências que tenho tido, que não devo mais
consulta-la quando se torne preciso resolver questões que me interessam. Vamos! Devo
assumir todo o meu império sobre vocês! Vamos!

DOR – Já vou... já vou... (Sai. Simultaneamente aparece a Alegria)

RAZÃO – Que é?

ALEGRIA (Sem sair da porta, chamando) – Paixão!

RAZÃO (duramente) – A Paixão está dormindo, não a acorde. Agora os papéis se inverteram. Recolha-
se. (A Dor aparece)

ALEGRIA (Faz-lhe uma figa) – Vou espalhar pelo mundo que a senhora dá azar. (Sai batendo a porta).

DOR – Hum! Quando a Alegria aparece sem ser chamada é prenúncio de algum desgosto.

RAZÃO – Trouxe?

DOR – Trouxe. Aqui está. Mas por que é que não me quer mais consultar...

RAZÃO (atalhando-a) – Porque você nunca está disposta a concordar comigo, ora essa! Tudo que lhe
redunde em sofrimento, você repele; e o fato é que necessito ser decisiva. (Encaminha-se para
a porta da Paixão). Ah! Que é da chave?

DOR – A chave? Aqui está.

RAZÃO (depois de um tempo) – Olhe, eu deliberei estrangular a Paixão.

DOR – Estrangular!

RAZÃO – Estrangular, sim. Uma vez que deram liberdade ao Sonho, preciso resolver a minha
tranqüilidade de qualquer forma, eu – a única pessoa de juízo que há aqui dentro.

DOR – Mas que culpa tem a pobrezinha?

RAZÃO – Não... Essas coisas de coração, não têm importância e parecem até ridículas... nos outros.
Aqui, porém, o caso muda de figura...

DOR (aflita) – Espere! Que vai fazer?

RAZÃO – Não a estrangularei. Não quero ser tão cruel. Vou trancar-lhe a porta.

26
DOR – E encerra-la para sempre? (Corre à porta e abre os braços) Não. A coitadinha morre. Mas por que
impedi-la de amar? É irrealizável esse amor? Que importa? Tanto mais puro será, quanto
menor for a esperança de felicidade. Deixa-a nessa ilusão pela vida toda. (A Paixão abre a
porta, silenciosa e medrosa).

RAZÃO – Qual! Cantigas! Cantigas de romantismo. A época não é para isso. Vamos, largue-me, que
preciso fechar a porta.

PAIXÃO (derrama os olhos vagos pela cena monologando) – Eu?... Eu?... Não... (Atira-se de ímpeto de
joelhos, aos pés da Razão, abraçando-a e chorando). Não! Tenha piedade de mim!... Por que
me sacrificar? Que lhe fiz eu, minha senhora? Quer que eu sofra? Mais ainda? Mas eu, em
essência, não sou mais do que o sofrimento da incerteza. Deixe-me em liberdade, sim? É
algum castigo que me vai impor? Mas eu sou aquela que se castiga rudemente a si mesma.
Dentro de mim carrego a minha própria condenação, porque não me basto, como a senhora
bem sabe; porque a minha condição é estar sujeita a um outro ser, único senhor da minha
felicidade. Não é assim? Eu lhe suplico, eu lhe imploro que me deixe livre. Se acha que sou
muito arrebatada, mudarei (lentamente). Mentirei. Direi que não o amo, se for preciso... Mas
deixe-me em liberdade...

(Razão imóvel, bate-lhe rudemente na cabeça e estende o braço com império, apontando-lhe o
quarto. A Paixão levanta-se, limpando os olhos, dirige-se vagarosa para o quarto e de repente
se volta, consultando a Razão num olhar de profunda mágoa. Ela, porém, torna a indicar o
quarto mudamente, inflexivelmente, até a Paixão sair. Move-se então para fechá-la quando a
Dor abre os braços afim de lhe impedir o intento).

DOR (dramática) – Não! Para sempre ela morre...

RAZÃO – Pois é para morrer mesmo. (Arremedando-a) “Deixa-a nessa ilusão pela vida toda”. Na vida
preciso pensar eu. Vamos, deixe-me fechar a porta.

DOR – Não!

RAZÃO (segura-a) – Saia!

DOR – Não saio, não! Nem a força! (Procura arrebatar-lhe o cadeado. Lutam. Vem ao meio da cena).

RAZÃO – Eu contava com isto... Eu já contava com isto...

DOR (chorando) – Ninguém tem culpa de querer bem, Razão.

RAZÃO – Largue! (Desvencilha-se e corre à porta) Então ia lá ser vencida?

DOR – Não!

RAZÃO – Pronto! (Afasta-se).

DOR – Ela morre. (Vai à porta e chama baixinho) Paixão! Paixão!

RAZÃO – Ah! (volta à porta) A chave... ia-me esquecendo... (tira-a e vai subir)

DOR – Quem sabe um dia, nos imprevistos da fortuna... Ela pedia tão pouco...

RAZÃO (já em cima, sem se voltar) – Ora! Eu só admito os casamentos que se fazem por
conveniência!...
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DOR (ajoelha-se à porta de frente para a cena, chorando) – É assim que se ganha espiritualidade, minha
filha.

CAI O PANO

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TERCEIRO ATO

O Sonho está sentado no sopé da escada à Esquerda, fazendo bolhas de sabão. De tal modo se enleva
nisso, que nem percebe a Razão surgir com um molho de chaves preso ao cós do vestido e um chicote na
mão. Ela desce cautelosamente, até o degrau de onde possa furar as bolhas que ele assopra.

RAZÃO (num grito) – Ponha-se, malandro!

SONHO – Ah! É você, anjo dos meus cuidados?

RAZÃO – Ponha-se! Já! A brincar com bolhas de sabão, enquanto eu me vejo às aranhas lá em cima, a
pensar nas mixórdias que andam a fazer aqui por sua causa! Ponha-se!

SONHO – Não vou. As nossas obrigações estão aqui muito bem definidas; a sua é cuidar das contas; a
minha, é fazer bolhas de sabão! Não resta dúvida que está tudo muito bem feito!

RAZÃO (numa atitude muito sua, pondo as mãos nas ilhargas) – Que adiantam à vida bolhas de sabão,
vagabundo? Vá fazer alguma coisa de útil, alguma coisa que se aproveite. O seu papel aqui
dentro é esbanjar, engambelar, desorientar...

SONHO – E o seu...

RAZÃO – O meu é fiscalizar, e cumpro o meu dever à risca. E olhe que já não é pouco fiscalizar um
manicômio como este.

SONHO – Bem, o que é preciso, é acabarmos de uma vez para sempre com estes atritos.

RAZÃO – É inútil, não se acabam. A própria natureza é que nos fez inimigos de morte.

SONHO – Diga antes: que me fez sua inimiga, porque eu não lhe dou confiança. Eu sou um ser mágico.
Sobrepairo aos seus botes...

RAZÃO – Um ser de tal magia, que espalha por tudo uma influência perniciosa. Sim, porque a sua
influência é perniciosa.

SONHO – E a sua é corrosiva. Imperasse o seu gosto no mundo e ficaria tudo reduzido à maior das
sordícias: algarismos, algarismos, algarismos! Toda a humanidade não passaria de um
formidável cifrão! Eu, pelo menos, dissipo a dor dos homens, com os meus fogos de artifício!

RAZÃO – Artifício! Artifício! O que me importa é cuidar da realidade.

SONHO (rindo) – Ah! Ah! Por esse caminho iríamos longe. Não queria saber qual de nós é mais real
sobre a terra. Basta-lhe saber o que é mais grato aos sofredores. E porventura o que é mais
grato aos sofredores? As minhas fantasias, ou os seus óculos filosóficos? O meu hálito criador,
ou o seu ranço mortal? Megera! Minha mascote é uma vara de condão; a sua, um espanador!

RAZÃO – Afinal nem sei por que infelicidade o tenho de aturar lá em cima! Você devia ter nascido aqui!

SONHO – Foi muito bem que lá nasci. Eu sou a sentinela do coração no cérebro.

RAZÃO – Ora! Estava eu bem arranjada se lhe desse ouvidos! (Dirige-se ao quarto da Dor)

SONHO – Eu embeveço, você preocupa; eu aristocratizo, você vulgariza...

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RAZÃO (voltando-se ofendida) – Que disse?

SONHO – Que disse? Vá perguntar à Memória; eu não repito, nunca soube repetir o que disse. Eu não
volto, eu caminho. Para mim só existe o adiante.

RAZÃO – Ora, vá falando. Palavras ou bolhas de sabão, são a mesma coisa: feitas de ar... Vá falando à
vontade. (Bate à porta da Dor)

SONHO – Muita honra dou eu em falar com uma assassina.

RAZÃO – Que foi? Como diz?

SONHO – Assassina, repito. Quem é que assassinou a Paixão?

RAZÃO (fita-o severamente e estala o chicote) – Chega! (Bate à porta com força) – Dor! Ó Dor acorde!

SONHO (continua a fazer bolhas de sabão) – A boêmia gera o gênio, a ordem gera a mediocridade.

RAZÃO – É muito engraçado! Pelo que vejo você sentiu muito a morte da rapariga! Em cima da tristeza,
bolhas de sabão! Seu sentimento foi muito grande, não resta dúvida!

SONHO – Se o meu papel é este... Chorar aqui é privilégio da Dor. (A Dor aparece, desfiando um terço)
E olhe que eu a tenho distraído muito... Não é verdade?

DOR – Que foi?

RAZÃO (encara-a) – Você já deve ter compreendido que me deve obedecer.

DOR (apreensiva) – Ai! Será mais alguma desgraça de que você me vai obrigar a servir de testemunha?

RAZÃO – Hum! Vão começar as lágrimas? (Ao Sonho) Ó cavalheiro! Vá lá em cima e pergunta à
Memória há quanto tempo desmanchei o casamento dessa menina.

SONHO – Vá, não: faço o favor (E, como ele sai lentamente, distraído ainda com o brinquedo, ela se
irrita-se).

RAZÃO – Mas isso depressa. Não pode ser mais rápido um pouco?

SONHO – Poderia, se eu não amasse os caprichos.

RAZÃO – Mas olhe! Eu quero saber o dia certo, ouviu? Não me traga respostas vagas, como é de seu
costume...

SONHO – (da escada) Ó Dor! Por que não promove uma reação dessa gente contra essa bruxa? Ela acaba
tomando conta do coração! Agora vai a chicote!

RAZÃO (ameaçando-o) – Ó idiota! Ainda aí? (O Sonho sai) Se o pilho de jeito faço-o engulir toda aquela
água! (à Dor) Agora, nós! (Segura-a pelo punho e leva-a à porta da Paixão) Olhe: - A Paixão
morreu.

DOR – Não, a Alegria disse que não.

RAZÃO (num brado de império) – Morreu... e pronto! (Pausa) Quando a tranquei aí, era para que
morresse mesmo.
30
DOR – Tão cheia de imprevistos a vida, e eu tão sensível!

RAZÃO – E agora saiba que esta casa precisa de ordem. Não consegui por bem, vai à força.

DOR (após um tempo, com acento grave) – Eu a acuso, madrasta, eu a acuso como a causadora de todos
os meus tormentos. Mas vingo-me, e bem vingada ficarei, fundindo-me para sempre com a sua
sombra...

RAZÃO (estalando o chicote e atalhando-a) – Aqui mando eu! (pausa) Que tal?! Bem, saiba agora que o
noivo da defunta Paixão está aí na cidade. Previno-a de que não tem licença de sair do seu
quarto, enquanto durar o encontro, está ouvindo?

DOR - Ah! Não; eu apareço.

RAZÃO – Não aparece, porque eu vou mentir. É necessário mentir.

DOR – Como você está se tornando odiosa!

RAZÃO – Mas não me convém revelar o que se passou. É preciso não dar parte de fraca. Eu vou dizer
que está tudo esquecido.

DOR – Nem fugitivamente?

RAZÃO – Nem assim. E basta! (A Alegria entra) Oh! Nem a propósito. Venha cá (à Dor) Venha cá
também você! (faz as duas se enfrentarem, no primeiro plano e mete-se no meio) Pensei
melhor: façamos uma experiência. (À Dor) Ria!

DOR – Como?

RAZÃO – Ria, não entende? Ria! Vamos!

DOR (depois de uma tentativa amarga) – Mas eu não posso rir... Eu não sei rir...

RAZÃO – Então sorria! (A Dor a custo sorri) Assim não presta! Dá idéia de amargura! Chega! (Volta-se
para a Alegria) Agora você: vamos lá, finja que chora!

ALEGRIA (reprimindo o riso) – É difícil... Eu não posso chorar...

RAZÃO (estalando o chicote) – Menina! Obedeça-me: chore!

ALEGRIA (depois de um esforço cômico, desatando a rir) - Mas não está em mim!

RAZÃO – Chega, raça de imprestáveis! (à Alegria) Pegue lá dos seus apetrechos que vou precisar dos
seus serviços.

ALEGRIA – Sim, senhora. (E sai).

RAZÃO – Bem. E você não tem o direito de dizer nada. Nem uma palavra. Feche-se aí enquanto durar o
encontro... (Mas o império da Razão é humilhante e a Dor rebela-se).

DOR – Não fico. Eu aparecerei!

RAZÃO – Pois veremos. (Nisto o Sonho surge à escada) Agora, hien?


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SONHO – Agora.

RAZÃO – Quando foi?

SONHO – O quê?

RAZÃO – A resposta.

SONHO – Que resposta?

RAZÃO – Então não perguntou à Memória o que mandei?

SONHO (aéreo) – Ahn! Perguntei!

RAZÃO – Então? Quanto tempo faz que a Paixão está presa?

SONHO – Ahn! Ela disse, mas eu já esqueci. Eu sou essencialmente lunático, você já sabe que eu não
tenho jeito para mensageiro de datas...

RAZÃO – Oh! Mas é preciso haver ordem nesta casa. Vocês têm de me obedecer a muque!

SONHO – Eu sou um cavaleiro andante!

RAZÃO – É só contratempos, amofinações...

SONHO – Desilusões... decepções...

RAZÃO - ... De toda a espécie. Mas isto é uma pouca vergonha. Um dia dou um tiro na cabeça e pronto.
Arrumem-se (sai).

SONHO – Ó Sorte! Quando chegará esse dia? (à Dor) A Senhora já sabe da novidade?

DOR – Já (Dirige-se à porta da Alegria) E não há maneira de salvar essa pobrezinha? (Bate) Alegria!

ALEGRIA (aparece) – Quem é?

DOR – Sou eu, minha filha. Olhe, minha filha; o noivo da Paixão...

SONHO – Está aí...

ALEGRIA – Ah! Está aí?

SONHO – A Razão quer que você apareça para simular, entende? ...

ALEGRIA – Quê? É para isso? Pois que fique esperando pela graça postiça. Pobre da Paixão! Está
agonizando ali naquele quarto!

DOR (num repente) – Ah! Achei!

ALEGRIA E SONHO – Achou o quê?

DOR – Vamos abrir a porta da Paixão. Por onde é que o Sonho foi salvo?

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SONHO (Depois de rebuscar uma lembrança) – Por onde fui salvo?... Não me lembro!

ALEGRIA – Por onde? Eu também não me lembro mais.

DOR – Ah! Não foi por uma porta falsa?

ALEGRIA – Ah! Foi! É mesmo! Espere! (Com esforço) Uma porta falsa existe entre o quarto dela e o do
Ódio!

DOR – Então abrimos o quarto do Ódio. (Corre a ele e desilude-se) Ora!

ALEGRIA (rindo) – Vocês pensam que a Razão é idiota? Ela já o tinha previsto. Trancou-o e levou a
chave.

DOR – Psiu! (A Alegria estanca o riso. Pausa de expectativa) Sonho!

SONHO – Que é?

DOR – Alegria!

ALEGRIA – Que é?

DOR (misteriosa, depois de lançar um olhar à escada) – Nós precisamos proibir terminantemente que a
Razão se envolva na vida dos nossos sentimentos. Já basta. Que nunca mais ela desça ao
coração!

SONHO - Arre! Só agora! (Toma o tirso da Alegria e levanta-o, bradando) Eu dou o alarme! Guerra à
intrusa! Guerra à intrusa!

ALEGRIA – Guerra! (Batendo à porta) Medo! Ó Medo!

DOR (Idem) – Ciúme!

SONHO (Idem à porta do F.) - Aqui não atendem. Quem será que mora neste quarto?

MEDO (Aparece) – Que houve, hein?

ALEGRIA – Que houve? É que vamos brincar de cabra-cega com o Ódio!

MEDO – Mas por que é que você é tão escarninha para comigo, Alegria? No fundo, você é talvez mais
ridícula do que eu...

CIÚME (Aparece) – Que foi, hein?

DOR – Venham cá. Escutem! (Agrupam-se todos em torno dela)

ALEGRIA – O Medo vai discordar pela certa.

MEDO – Alegria, eu arranco esses guisos...

ALEGRIA (Investe-o rompante) – Que é, hein? Repita a ameaça! Arranque, se for capaz.

MEDO (Caindo em si) – Troça. Então não se pode troçar com você?

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DOR – Psiu! (Silêncio) Ouçam: Nós precisamos reagir contra a Razão. O império dela aqui dentro nos
humilha. A Alegria, por exemplo, depois da morte da Paixão, só aparece a contragosto.

ALEGRI – É, sim.

DOR – Eu só apareço quando ela bem quer. Não, isto não pode continuar assim. É necessária uma
rebelião contra esse domínio. Ah! Se adivinhassem as nossas lutas secretas! ... Morre a Paixão
e eu rezo. Que conforto melhor haverá para quem sofre? E eu sofro tanto... Pois a horas mortas
ela desce, invade sorrateiramente o meu quarto, e põe-se a interromper-me com as suas
dúvidas... a interromper-me com as suas dúvidas... ( num remate comovente) Não! A hora
amorosa, ainda vá; mas a religiosa, não!

CIÚME – De acordo. Reagir enquanto é cedo, e com violência, senão ela acaba dominando o coração
completamente.

ALEGRIA – Quando os papéis é que se deviam inverter; nós é que devíamos dominá-la. Sim, o que há de
melhor na vida mora aqui no coração; Aqui é que reside a poesia...

SONHO – Isso não: lá em cima também há.

ALEGRIA – Ora! A sua poesia é a que você rouba da gente. Só vive aqui! Por que você não fica lá em
cima?

DOR – O coração é que salva.

ALEGRIA – O cérebro não é mais do que um escritório.

DOR – Não, precisamos opor-nos contra ela.

ALEGRIA – E agora, coragem, minha gente! Em ordem militar! Vamos! Coragem! (Marcham em fileira,
volteando pela cena) Um, dois! Um, dois! Um, dois! Um, dois! (Voltam-se todas para o F. em
ordem de ataque).

MEDO – Não! Esperem! ... Esperem!... Peço licença para advertir aos meus bondosos vizinhos que isso é
uma temeridade!

ALEGRIA – Bastou falar-se em coragem, pronto, o Medo se manifesta!

MEDO – Não, não é por isso. O que eu acho é que é imprudência... Eu absolutamente não me
responsabilizo pelas conseqüências. ( A Razão aparece à escada e pára no alto).

SONHO – Ih! Olhem quem está aí. (saem o Medo e o Ciúme, fugindo).

ALEGRIA – Pronto! Gorou tudo! Também nunca vi um coração tão mole e desmoralizado como este!

DOR – Mas então deixam-me sozinha para enfrenta-la?

RAZÃO (de cima da escada, à Alegria) – Vai começar o reboliço? Olhem que eu estou atenta lá em cima.
(chamando) Ó Alegria!

ALEGRIA (humildemente) – Senhora.

RAZÃO – Já está pronta?

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ALEGRIA – Ainda não, senhora.

RAZÃO – Então, o que espera? Vamos! (A Alegria chega-se à porta e a Razão sai, resmungando).

SONHO (batendo na testa) – Ah! Achei! Achei! Arranjei um plano para libertar a Paixão! Vamos armar
um estratagema!

ALEGRIA (numa risada) – Para quem pôr em prática? Os varões da casa? Com a valentia que ainda
agora provaram?

SONHO – Eu! Eu abrirei a porta.

DOR – Qual! Eu não me iludo mais. É inútil estarmos aqui a nos insurgir contra os atos da Razão. Ela é
esperta e brutal, ao mesmo tempo. A Paixão fecha os olhos e a porta não se abre.

SONHO – Bem. Mas deixe-se de fazer maus augúrios. Vamos ao que mais importa. Eu já idealizei o
plano da libertação.

ALEGRIA – E qual é esse plano?

SONHO – Na hora do encontro, a Razão não pode vir cá em baixo, porque ela mesma faz questão de ficar
sozinha, para saber o que vai dizer. Enquanto ela estiver com a atenção presa, eu, sem ser
pressentido, posso muito bem roubar-lhe a chave.

ALEGRIA – Admirável! É a única maneira de abrirmos a porta.

SONHO – Ah! É preciso daqui a pouco estejam alerta cá em baixo, para que atendam ao meu primeiro
aviso e possam ajudar-me.

DOR – Pois sim. De minha parte vá descansado. Não quero que me dêem a culpa de qualquer fracasso.
(sai)

SONHO – A Razão vai pagar-me este plano com beijos, já sei, mas é bem para ela ver que eu não perdi,
nem perderei nunca a minha independência. (Entra a Razão com o seu chicote) E por falar em
felicidade, aí vem ela.

RAZÃO (À Alegria) – Então? Ainda não se arrumou?

ALEGRIA (enleada) – A senhora bem me podia dispensar de aparecer a contragosto... Tantas vezes...

RAZÃO – O que se diz cumpre-se (A Alegria sai)

SONHO (Em tom sussurrante, depois de fazer uma pirueta) – Ó flor das flores! Você quer fazer as pazes
comigo?

RAZÃO – São graçolas? São ironias? Diga com franqueza.

SONHO (insinuante) – Não, minha irmã, falando sério. É um ajuste leal que lhe proponho; você quer
fazer as pazes comigo?

RAZÃO (secamente) – Não. Nunca!

SONHO – Duas negativas assim imediatas não dignificam o caráter de uma Razão tão grave e ríspida
como você. Diga que vai pensar primeiro... (aproxima-se) Afinal, que é necessário para
35
estabelecer a harmonia duradoura entre nós dois? Que cada qual sufoque a pretensão de
prevalecer aqui dentro. Sonho e Razão andam em perpétuo equilíbrio em tanta gente, por que
não podemos fazer o mesmo?

RAZÃO – Não, não e renão!

SONHO – Mas quem terá a lucrar é você, exclusivamente. Que vantagens me pode oferecer na sua vida
ratejante?(Enquanto a Razão, tapando os ouvidos, anda a fugir-lhe desorientadamente, ele a
persegue, ilustrando as palavras com trejeitos caricaturais) Eu, não; eu lhe proporcionarei um
passeio celeste diariamente: arrebato-lhe entre as minhas asas, mergulharemos nas ondas de
ouro da Via Láctea e, todo orvalhados de estrelas, depois desse banho maravilhoso, sairemos a
brincar pelas estradas planetárias, numa corrida doida para segurar a cauda de um cometa...
Ouça-me... Vamos combinar desde já a aposta?quem a agarrar primeiro, ganha uma
condecoração: o Cruzeiro do Sul, por exemplo (A Razão estala o chicote; ele trepa à escada D.
e solta uma risada) Não quer, hein? É porque você tem pavor de olhar para o céu. O infinito a
perturba, e bastava um só passeio desses para você mudar sua moral.

RAZÃO (ameaçando-o) – Vá-se embora, atrevido!

SONHO (fazendo uma careta) – Até já, encanto da vida humana! (sai).

RAZÃO (Batendo à porta do Medo) – Arre! Que isto cansa. Agora este. Ó Medo!

MEDO – Pronto, minha senhora.

RAZÃO – Vim avisa-lo de que o noivo da defunta Paixão está aí. E eu venho preveni-lo, porque não
quero que você me comprometa, entendeu?

MEDO – Eu? Credo! Seria deslustrar todo o meu conceito... Não era preciso ter esse incômodo...

RAZÃO – Bem sei por que o previno. Ah! Mais uma coisa: pelo sim, pelo não, leve o mesmo aviso ao
Ódio. É melhor agir com toda prudência.

MEDO (fica estarrecido) – Perdão, minha senhora... Isso... não posso...

RAZÃO (zangada) – Não pode, por quê?

MEDO – Sim... isto é... é que... o Ódio não tem educação, minha senhora...

RAZÃO – Mas afinal, mando ou não nesta casa?

MEDO – Como não? A senhora é a nossa majestade; e para mim vale até por uma honra ser pisada pelos
seus pés...

RAZÃO – E depressa, porque o encontro não demora. (À porta da Alegria, batendo) Ó dona, como é? Já
está arrumada?

ALEGRIA (aparecendo, em voz sumida) – Já, sim, senhora.

RAZÃO (Sorrindo) – como tudo vai afinado nesta casa! Pois vamos, que é necessário, ao menos, dar a
ilusão de que ninguém aqui se preocupa com a morte da Paixão. (Ao Medo) E o senhor já
cumpriu a ordem?

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MEDO – Oh! Mas... isso é perversidade, minha senhora... Querer que eu mexa com essa onça? Eu não
sou domador...

RAZÃO – Poltrão! Não preciso mais, dispenso-lhe a ajuda. (Suspira) Eu não sei como ainda não esgotei a
paciência e a cautela com tal gente.

MEDO – Então estou dispensado?

RAZÃO – Está. E lembre-se de que se me comprometer...

MEDO – Oh! Minha senhora! Por mim é que nunca se alteraria a paz aqui dentro. (sai)

RAZÃO – E você? Você fique sabendo que deve rir, entendeu?

ALEGRIA – Rir, eu rio, mas assim contrafeita!

RAZÃO – Vamos! Agite esses guizos. Oh! Mas espere, isto é demais (Arranca boa parte deles) Está
muito escandalosa! Dá na vista!

ALEGRIA – Eu não preciso de lições. A minha melhor virtude é ser espontânea.

RAZÃO – Ora, deixe-se de luxo. E lembre-se de que não deve dar a menor demonstração de
contrariedade. Porque se não...

ALEGRIA – Sim, senhora.

RAZÃO – Não saia daqui, está ouvindo?

ALEGRIA – Não, senhora.

RAZÃO – Eu darei o sinal para você subir. (sai).

ALEGRIA (chega-se à porta da dor) – Dor!

DOR – É a Alegria?

ALEGRIA – Sou eu, sim.

DOR (Aparecendo) – E o Sonho?

ALEGRIA – Ainda não apareceu, mas o encontro é agora. (noutro tom) Ó Dor! O que a Razão exige de
mim é um verdadeiro sacrifício. Eu não quero mais fingir.

DOR – Ah! Minha filha. E pensar-se que há muita alegria fingindo-se no mundo, como você! É a Paixão,
minha filha... Tudo por causa da Paixão. No entanto o primeiro amor é quase sagrado...

ALEGRIA (procurando espiar pela fechadura do quarto) – Mas será que ela morreu mesmo?

DOR – Mas não há por ser o primeiro; é que este era todo feito de ingenuidade e quando a ingenuidade se
desencanta, a vida amarga... Ah! Mas eu confio no plano do Sonho...

SONHO (do alto da escada) – Alegria!

ALEGRIA – Que é, ó Sonho!


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SONHO (vivamente) – A Razão está chamando.

DOR – Deu-se o encontro, é?

SONHO – Vai dar-se agora, mas não atenda ao chamado, sabe, Alegria? Não saiam daqui.

ALEGRIA – Não, não entendo. E a chave?

SONHO – É agora. Eu roubo. Fiquem aí de sobreaviso. A Razão está catando todos os lugares comuns
para dizer. (E some-se arisco).

DOR – Fique você no sopé daquela escada, que eu fico nesta.

ALEGRIA – Não vê! Eu é que não sirvo de máscara para ela... Ainda mais de quem...

DOR – Psiu!

SONHO (Torna a aparecer; vem cabisbaixo e vagaroso).

ALEGRIA – Pronto!

DOR – Trouxe?

SONHO – Foi impossível. A nossa maior desgraça, nessa velha nefanda, é a prudência!

ALEGRIA – Ora!

DOR (Num desalento) – Lá se foi a última esperança.

ALEGRIA – Olhe, a senhora não se fie muito nele, sabe? O Sonho é muito bom, mas mente. A mim já
mentiu uma porção de vezes.

SONHO – Mas eu não pude, foi impossível. A Razão tirou o molho de chaves do cós da saia e enfiou-as
no seio. Que havia de fazer?

DOR (Chorosa) – Mas então estamos condenados a nunca mais ver a Paixão? Nunca mais?

(Abre-se a misteriosa porta do centro. Toda a gruta esplende num clarão violáceo. Os três espantam-se.
Lá dentro, vestida de roxo, aparece, imóvel, a Desconhecida, que estende a mão ao Sonho).

DESCONHECIDA – Tome esta chave, abra aquela porta (Sonho obedece-a).

ALEGRIA (timidamente) – Venha, eu sou a Alegria!

DOR – E eu, sou a Dor. Venha! (Ambas a conduzem ao meio da cena, cada qual por um braço).

SONHO (entrando no quarto) – Oh! A Paixão está caída no chão...

DESCONHECIDA – Traga-a nos braços.

SONHO – Ela está fria...

ALEGRIA – Traga-a nos braços, Sonho!


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SONHO – A Paixão está morta.

DOR (Golpeado) – Morta?! Oh!...

ALEGRIA – Bem. Mas não chore.

SONHO (Carregando o corpo da Paixão) – Pronto!

DOR – Ah! Eu bem adivinhava que a sorte desta triste criatura era a morte...

DESCONHECIDA – Ajoelhe-se, deite-a com cuidado...

SONHO – Assim? Assim? (Põe-se a afagar-lhe a cabeça, reclinada sobre uma das coxas. Começa-se a
ouvir em surdina a música da canção que a Alegria cantou no segundo ato).

DESCONHECIDA (Observa-a) – A Paixão não está morta como julgam. Eu conheço a palavra de
encantamento que a fará reanimar... (Chamando-a) Paixão! Sou eu, Paixão...

ALEGRIA – A senhora conhece-a?

DESCONHECIDA – Conheço!

DOR (tomando-lhe as mãos) – Não, ela está morta mesmo. Está com as mãos geladas...

ALEGRIA – Mas então se já a conhecia, por que não apareceu antes?...

DESCONHECIDA – Porque eu sou prisioneira do Presente...

DOR (curvando-se para vê-la de perto) – Mas a culpa é toda da Razão, que não sabe avaliar estas coisas
de sentimentos...

DESCONHECIDA – Esperem! É fácil para mim ressuscita-la; basta que eu a toque de leve. Ela está
apenas adormecida.

DOR – Estará?!

Sonho – Ah! Então no mínimo a senhora é feiticeira!

DESCONHECIDA – Está. Prestem atenção. (toca de leve com os dedos na fronte da Paixão. Silêncio de
expectativa. A Dor e a Alegria fixam os olhos nela).

SONHO (Interrogativamente, levanta os olhos para a Desconhecida) – Nada! A Senhora não se enganou,
não?

DESCONHECIDA (Com acento poético) – Paixão, acorde. Eu sou a alma das despedidas, a sua irmã
incorpórea, que vinha enchendo de ternura os seus edilios, dulcificando os seus olhos, e
fazendo demorar, mais do que devera, o entrelaçamento dos abraços! Acorde, Paixão...
(Silêncio).

SONHO – Qual! Nada!

DOR – E a palavra de encantamento?

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ALEGRIA – É, por que não pronuncia a palavra mágica, de que nos falou?

DESCONHECIDA – Pronunciarei. (Pausa) Paixão! Paixão! Eu sou a Saudade! (Silêncio).

ALEGRIA – Quem?

DESCONHECIDA – a Saudade, aquela que eterniza as Paixões, por mais breves que tenham sido! (A
Paixão move-se).

DOR – OH! Moveu-se. Esperem...

SONHO – Pronto!...

ALEGRIA – Está salva a Pátria!

SONHO – Silêncio!

ALEGRIA (Limpando uma lágrima) – Oh! Olhe que esquisito, não? Uma lágrima! (A Paixão abre os
olhos e, enquanto a Desconhecida se a fasta para o F., levanta-se hesitante, amparada pela
Alegria).

SONHO (Solta um brado irreprimível) – Glória à minha independência! Glória à minha independência!

DOR – Que milagre!

ALEGRIA – Muito obrigada! Eu sou a Alegria, sabe? Moro ali naquele quarto. Muito prazer em conhece-
la. Quando quiser rosas ou vinho, apareça... Não faça cerimônia...

CAI O PANO

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