Prática de Música Antiga em Belo Horizonte Relato

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ANAIS DO II ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA DO CAMPO DAS VERTENTES 30 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO DE 2018

PRÁTICA DE MÚSICA ANTIGA EM BELO HORIZONTE: RELATO


DE EXPERIÊNCIA A PARTIR DE PESQUISA DOCUMENTAL NO
ARQUIVO GEORGES E ANA MARIA VINCENT
Domingos Sávio Lins Brandão9
Aline Azevedo10
João Lucas de Oliveira Pantoja11

RESUMO:
A atuação de grupos voltados à prática de música antiga em Belo Horizonte (MG) tem sido constante desde a
metade do século XX até os dias de hoje. Contudo, até o momento não foram realizados registros acadêmicos e
científicos desta práxis musical. Neste âmbito, este trabalho tem como objetivo apresentar um relato de
experiência sobre a prática de música antiga na capital mineira tendo como estímulo inicial o trabalho de
inventariação do fundo documental do Arquivo Georges e Ana Maria Vincent (Núcleo de Acervos da Escola de
Música da UEMG) – onde se encontram registros de dez grupos de música antiga atuantes entre 1982 e 2012 –
mediatizado pela memória-testemunho do professor Domingos Sávio Lins Brandão, músico que participou de
grande parte dos grupos dos quais há registros no arquivo em questão.

Palavras-chave. Musicologia; Acervos musicais; Núcleo de Acervos da Escola de Música da UEMG; Memória-
testemunho.

INTRODUÇÃO

Nenhuma mudança influenciou mais profundamente a interpretação musical nas últimas duas
décadas que o crescimento do movimento de performance histórica (O‟DEA, Jane).

O que nos inspirou a realizar o presente trabalho, por intermédio de Mnémosyné, foi o
nosso contato com o Arquivo Georges e Ana Maria Vincent, pertencente ao Núcleo de
Acervos da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Este
conjunto documental foi encaminhado ao Núcleo em 2012 após o falecimento de Georges
Joseph Pascal Marie Vincent (1935-2012)12, a inventariação do material foi iniciada em 2017
e vem sendo realizada desde então com apoio do Programa Institucional de Apoio à Pesquisa
da UEMG (PAPq/UEMG) e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e
Tecnológica (PIBIC/FAPEMIG/UEMG)13.

9
Mestre, Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais, [email protected].
10
Doutoranda, Universidade do Estado de Minas Gerais, [email protected].
11
Graduando em Música, Universidade do Estado de Minas Gerais, [email protected].
12
Sua esposa, Ana Maria Aguiar Machado Vincent, havia falecido em 2008.
13
Em tempo, agradecemos aos bolsistas Weslley Luiz Aranda dos Santos, Letícia Maria da Costa Pinto, Felipe
Eugênio Dias Soares e João Lucas de Oliveira Pantoja pela dedicação no trabalho de inventariação e pesquisa no
Arquivo Georges e Ana Maria Vincent.

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Este arquivo diferencia-se dos demais resguardados no Núcleo de Acervos14 pelo


grande volume de materiais que registram a prática de música antiga na capital mineira. O
conjunto documental se originou da atuação profissional de Georges Vincent (1935-2012) e
Ana Maria Vincent (1946-2008) em Belo Horizonte entre os anos de 1973 e 2012,
constituindo-se de programas de concertos, recortes de jornais, livros, fotocópias de tratados,
fontes musicais (manuscritas, impressas e fotocópias), orçamentos, contratos,
correspondências, revistas, anotações, releases, fotos, desenhos e alguns objetos
tridimensionais. Esta documentação contempla o movimento da Música Antiga e seus grupos
atuantes em Belo Horizonte, dos anos de 1980 aos inícios do século XXI.

O contato com o referido arquivo e a pesquisa subjacente à realização do processo de


inventariação do mesmo trouxe à tona constatações, questionamentos e reflexões, tais como:
1) a escassez de registros sobre a prática de música antiga na capital mineira na parca
bibliografia sobre o Música Antiga no Brasil; 2) a necessidade de iniciar um registro sobre
esse movimento em Belo Horizonte e; 3) a importância da música historicamente informada
no âmbito da reflexão musicológica no tocante à interpretação e à performance musical na
atualidade. Tendo como pressuposto estes três aspectos, a partir do levantamento de dados
realizado no Arquivo Georges e Ana Maria Vincent e da memória-testemunho do professor
Domingos Sávio Lins Brandão – músico que participou de grande parte dos grupos dos quais
há registros no arquivo em questão – este texto tem como objetivo iniciar o registro do
movimento de prática de música antiga em Belo Horizonte. Dada a grande quantidade de
grupos de música antiga dos quais foram encontrados registros no arquivo15, optamos por
dedicar este texto a três grupos: o Conjunto de Música Antiga da UFMG, o Collegium
Musicum de Minas e o Grupo de Música Antiga da UEMG.

14
O Núcleo de Acervos abriga hoje os seguintes conjuntos documentais: Acervo Maestro Vespasiano Gregório
dos Santos, Acervo da Rádio Inconfidência (partituras e discos), Acervo Maestro Chico Aniceto, Acervo da
Banda de Ilicínea (Maestro Francisco Passos), parte do Acervo Hostílio Soares, Arquivo Georges e Ana Maria
Vincent, Arquivo Lodi e Arquivo Delza Gonçalves. Além destes acervos, também se encontram no Núcleo
algumas obras avulsas, a saber: Sonata 2ª (Sonata “Sabará”, manuscrito proveniente do Acervo da Sociedade
Musical Santa Cecília de Sabará/MG), duas edições encadernadas realizadas por Francisco Curt Lange e cinco
cadernos de música provenientes da cidade de Pará de Minas/MG.
15
São eles: 1) Duo composto por Georges Vincent e Maria Rachel; 2) Trio de Música Antiga (Georges Vincent,
Ana Maria Vincent e Maria do Carmo Correa); 3) Conjunto de Música Antiga da UFMG; 4) Trio composto por
Georges Vincent, André Prous e Domingos Sávio Lins Brandão; 5) Collegium Musicum Brasiliensis; 6)
Collegium Musicum de Minas; 7) Grupo de Música Antiga da UEMG (Escola de Música); 8) Camerata Athaíde;
9) Os Caminhos do Campo; 10) Camerata Lusitana.

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MEMÓRIA-TESTEMUNHO

O passado não existe: são as recordações que acumulamos, que arranjamos e que
falsificamos... (TERZANI, Tiziano).

Consideramos que toda memória é uma construção social, mesmo que fundamentada
em documentação – como é o caso do nosso autor memorialista, professor Domingos Sávio
Lins Brandão –, pois a organização documental não deixa de ser um arranjo social.
Alecsandra Matias de Oliveira tece considerações pertinentes a esse respeito:

Ao executar cuidadosamente as recordações coletivas, o indivíduo as ordena de acordo com


suas próprias percepções que, contudo, também estão influenciadas pelos valores do grupo a
que pertence. Assim sendo, a memória pode ser entendida como reconstrução do passado
(OLIVEVIRA, 2009, p. 3-4).

Neste sentido, a documentação do arquivo em questão se transformou, para o


professor Domingos, em “pistas, indícios, ou sinais” no despertar de sua memória-
testemunho:

A história-registro, por muitos anos, considera que um esforço de lembrança (através, por
exemplo, de um documento ou monumento) poderia ressuscitar o passado, transformando o
presente em uma „amálgama‟ – uma reconstrução e uma releitura do que passa, a partir da
inserção do indivíduo na coletividade e em momentos presentes sucessivos. Por essa razão, se
dá a insistente interpretação sobre os „vestígios de objetos e lembranças de realidades
vivenciadas. As „pistas‟ e „índices‟ provenientes de imagens verbais e não verbais,
especialmente as registradas, permitem, pelos fragmentos, uma busca lógica e elucidativa em
determinado tempo e espaço (OLIVEVIRA, 2009, p. 4).

Foi estabelecida, entretanto, a dinâmica de um relacionamento de idas e vindas diante


das pistas, dos indícios e de sinais, já que estes estimularam e delinearam sua memória: ao
mesmo tempo o professor Domingos é o investigador, juntamente com os demais autores do
texto, e o agente investigado que vivenciou o que está contemplado na documentação.

Cabe considerar que, mesmo que a nossa investigação via memória-testemunho tenha
sido desencadeada pela documentação onde o autor memorialista é participante, o uso da
intuição e da sensibilidade para argui-la com criatividade deve estar sempre presente, e deve-
se estar atento aos atos falhos que os registros de gênero textual não contemplem, mesmo
sendo “cúmplice” e “estranho” da documentação perscrutada. Sobre este aspecto Arlete Farge
pondera que:

O sabor do arquivo passa por esse gesto artesão, lento e pouco rentável, em que se copiam
textos, pedaço por pedaço [...]. Sem pensar muito nisso. E pensando o tempo todo. Como se a
mão, ao fazê-lo, permitisse ao espírito ser simultaneamente cúmplice e estranho ao mesmo
tempo [...] (FARGE, 2009, p. 23).

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Recorremos ainda a Lucien Goldmann que considera que, como fator humano,
histórico e social, as etapas envoltas à construção do conhecimento científico considera a
identidade parcial entre sujeito e objeto (GOLDMANN, 1979). Assim, deve o pesquisador
estar ciente que seus juízos de valores não podem ser eliminados, ainda mais em nosso texto
onde temos um “cúmplice” dos acontecimentos registrados pela documentação. Porém, cabe
ao investigador esforçar-se para chegar ao espírito “estranho” procurando evitar, portanto uma
possível deformação provocada por suas memórias, onde a contenda de simpatias ou por
antipatias pessoais são inevitáveis. Além disso, Goldman ressalta que, ainda que alcançada de
maneira restringida, o investigador deve se empenhar ao entendimento de realidades totais e
concretas (GOLDMANN, 1979).

A CAPITAL MINEIRA DESCONHECIDA

Minha vida musical no Brasil foi marcada por tocar música antiga europeia. Agora, olha que
interessante, só tenho feito música antiga brasileira (Georges Vincent, 1999)

No livro referência da gambista Kristina Augustin, Um olhar sobre a Música Antiga:


50 anos de história no Brasil (AUGUSTIN, 1999), a autora contempla a música antiga no Rio
de Janeiro abordando a atuação de vários grupos como o Conjunto de Música Antiga da Rádio
MEC, os trabalhos de Roberto de Regina nos anos de 1960 frente ao Madrigal Ars Antiqua e
ao Coro Dante Martinez, resultando inclusive na gravação dos discos Cantos e Danças da
Renascença16. A autora também contempla as ações dos grupos Kalenda Maya e Quadro
Cervantes17, também no Rio de Janeiro, e o Conjunto de Música Antiga da UFF18em Niterói.
Em São Paulo, K. Augustin (1999) salienta a atuação do Musikantiga liderado por Ricardo
Kanji19 que chegou a gravar quatro discos20, como também o Paraphernália, o Confraria e o
Quadro Carmina. No Nordeste, o destaque é dado para o Conjunto Musika Bahia, liderada
pela mineira Maria do Carmo Corrêa21, sendo que a continuação desse trabalho se deu pelo
Grupo Anticália. No sul do país o destaque é dado ao Conjunto de Câmera de Porto Alegre e

16
Segundo Domingos Sávio Lins Brandão, discos fundamentais para sua formação como flautista doce, professor
e musicólogo.
17
O professor Domingos participou de oficinas realizadas por Helder Parente, flautista do Quadro Cervantes, na
capital mineira nos anos de 1970.
18
Um dos músicos desse grupo, Mario Orlando, gambista, flautista doce e cantor, realizou oficinas e participou
de grupos musicais em Belo Horizonte em que o professor Domingos também atuou: o Conjunto de Música
Antiga da UFMG, o Collegium Musicum de Minas e o Camerata Athaide.
19
Do qual o professor Domingos foi aluno em Belo Horizonte e em Juiz de Fora.
20
Segundo Domingos, discos igualmente referenciais para sua formação profissional.
21
Que também atuou em Belo Horizonte no Trio de Música Antiga juntamente com Georges e Ana Maria
Vincent e nos inícios do Conjunto de Música Antiga da UFMG. Maria do Carmo também foi professora do
Domingos e alguns de seus instrumentos estão em fase de incorporação ao Núcleo de Acervos.

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ao Camerata Antiqua de Curitiba dirigido por Roberto de Regina e ao Conjunto


Renascentista, liderado pala gambista Eunice Brandão. E assim, a ação de muitos outros
grupos foram contemplados, todos de fora do Estado de Minas Gerais.

A autora da obra cita apenas, sem maiores considerações, um grupo belo-horizontino:


o Collegium Musicum de Minas (AGUSTIN, 1999, p. 103), que atuou intensamente entre
anos os 1993 a 2003 e teve como flautista doce e coordenador o professor Domingos.

Em outro livro referencial, do Centro Cultural Pró-Música de Juiz de Fora, Uma


contribuição de 25 anos à história da Música Antiga no Brasil (PRÓ-MÚSICA, 2000), a
abordagem está centrada no incansável trabalho desta instituição com os seus grupos de
música antiga e na realização de inúmeras edições do Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga22. Há uma foto (PRÓ-MÚSICA, 2000, p. 101) e uma
referência (PRÓ-MÚSICA, 2000, p. 102) a um concerto que o Collegium Musicum de Minas
realizou no festival de 1989, colocando, entretanto, esse grupo como se fosse da Universidade
Federal de Minas Gerais UFMG. Na verdade, o Collegium Musicum de Minas recebia o
apoio institucional da então recém-fundada Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG).

Da produção bibliográfica recente citamos a tese de doutorado de Patricia Michelini


Aguilar, A flauta doce no Brasil: da chegada dos jesuítas até 1970 (AGUILAR, 2017). O
trabalho é sobre a flauta doce, mas não é possível abordar tal temática sem citar os flautistas
Helder Parente, Laura Ronai, Ricardo Kanji e a atuação destes em grupos de música antiga.
Destacamos que a flauta doce sempre foi um instrumento ligado à sonoridade e a performance
deste repertório.

Embora o recorte temporal da tese se limite aos anos de 1970, a autora ultrapassa esta
data ao abordar os cursos oficiais do referido instrumento e a atuação do grupo Le Bizzarre
(Pouso Alegre, Minas Gerais) dirigido por Marialba Mattos. Outra vez, Belo Horizonte não é
referenciada, embora a habilitação em flauta doce nos cursos de graduação da Escola de
Música da UEMG tenha sido autorizada a funcionar em 1998 pelo Conselho Estadual de
Educação de Minas Gerais a partir da primeira gestão do professor Domingos como diretor da
Escola de Música.

22
Nosso autor memorialista, professor Domingos, participou de algumas edições do festival, primeiro como
aluno e, depois, como musicólogo e músico.

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SOBRE O FAZER MÚSICA ANTIGA

Para fazer música, é necessário pensar e tocar inteligentemente [...]. Se você parte do princípio
que uma partitura do período barroco, por exemplo, é simplesmente um plano, um esboço do
que é para ser feito, você se depara com essa questão do conhecimento, da pesquisa, da
necessidade de aprender outras coisas, extra-mecanicamente, extra-musicalmente (Luis Otávio
dos Santos)

Um dos motes que nos impulsionou para a realização destas considerações é como as
pesquisas e os estudos sobre a interpretação da música antiga têm estimulado as reflexões
sobre a performance musical de maneira geral. Os parâmetros metodológicos para a
performance da música barroca propostos por Ross W. Duffin (DUFFIN, 1995), por exemplo,
vêm sendo utilizados para performances de obras de outras temporalidades históricas, como a
apresentada no artigo de Lara Greco e Lúcia Barranechea sobre obra de Frederico Richter
(1932), Inspiratio para piano e violão (GRECO; BARRENECHEA, 2007), e por Mario Sève
num artigo em que se discute questões relacionadas à interpretação do choro (SÈVE, 2016). O
mesmo autor, além de utilizar Ross Duffin, evoca igualmente Nicolaus Harnoncourt, para
discutir questões pertinentes à notação musical e ao estilo de interpretação da Schottisch-
Choro, segundo movimento da Suíte popular brasileira para violão solo, de Heitor Villa-
Lobos (SÈVE, 2016).

Por estes exemplos, constata-se que a música antiga, antes considerada uma prática de
amadores23, conseguiu sua respeitabilidade musicológica e, conforme declarou Andreas
Holschneuder, diretor e produtor da série Archiv24 entre os anos de 1970 a 1992, mesmo com
avalanches de críticas persistentes até o tempo presente, especialmente no que tange à questão
da autenticidade25.

A interpretação histórica passou à corrente principal da vida européia. Algumas obras antigas
de Bach e Haendel antes do “boom” histórico eram interpretadas por grandes orquestras. Agora
esse tipo de abordagem soa ridículo. O público exige interpretações baseadas nas fontes
históricas (FOLHA DE SÃO PAULO apud BRANDÃO, 1993).

23
O compositor Luciano Berio, ao ser questionado sobre o renascimento da música antiga afirma que “o
fenômeno da descoberta de Bach esteja ligado à descoberta, por parte dos jovens, da dimensão prática do fazer
música. E isso pode acontecer com músicas relativamente simples [...] que podem ser tocadas inclusive como o
mínimo de técnica, como a flauta doce [...]” (BERIO, sem data). Esta consideração de Berio é um elogio e não
uma declaração desdenhosa ao movimento da música antiga como alguns críticos consideraram.
24
A série Archiv foi responsável por gravações de discos referenciais sobre a música medieval, renascentista e
barroca, com instrumentos de época e com interpretações historicamente orientadas.
25
“Segundo Charles Rosen, a busca de autenticidade coloca em primeiro plano o estudo das condições de
execução e não do texto. Ora, o emprego de instrumentos de época não garante um resultado à antiga, assim
como informações interessantes em um programa não garantem uma interpretação „autêntica‟ [...] Enfim, música
reduzida ao seu aspecto fônico, abstraída de todas as suas funções sociais, de toda interação com o resto da
cultura” (GANDELMAN, sem data).

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As interpretações baseadas em fontes históricas é um dos componentes constitutivos


dos atributos discursivos do que vem ser considerado como identidades musicais delineadoras
do que é visto como música antiga.

Além das interpretações baseadas em fontes históricas, consideramos que as


representações sociais26 acerca do movimento de música antiga e sua prática se alicerçam, em
várias proposições musicológicas, a nosso ver, fundamentais, as quais nos levaram a inquiri-
las, com auxílio das lembranças do professor Domingos provenientes de sua participação no
movimento da música antiga belo-horizontino. Estes tópicos musicológicos que
apresentaremos a seguir, segundo relato do professor Domingos, foram relevados em maior
ou menor grau pelos grupos de Belo Horizonte elencados na documentação do Arquivo
Georges e Ana Maria Vincent.

A primeira proposição para a realização da prática da música antiga é a pesquisa de


manuscritos originais dos compositores do passado, pois neles poderão estar contidas
informações que os editores posteriores negligenciaram. Consideramos fundamental, da
mesma forma, o estudo de escritos sobre a música, coevos às obras pesquisadas: os de
Ganassi, Thomas Morley, Frescobaldi, Quantz, Geminiani, Johannes de Muris, Tinctorius,
Zarlino, Vizenzo Galilei, Caccini, Johann Matherson, Rousseau, Monteverdi, Benedetto
Marcello, Carl Phillipp Emanuel Bach27 e vários outros28. Se antes era complicadíssimo ter
acesso ao escritos desses autores, hoje praticamente todos estão disponíveis na internet, como
também, incontáveis fac-símiles de partituras de compositores do passado.

Consideramos de suma importância também, para a prática da música antiga, a busca


de outras fontes culturais elucidativas do momento histórico das obras a serem executadas,
como a iconografia, a organologia e a literatura. Fundamental igualmente é a leitura de textos
e de livros de autores, publicadas na contemporaneidade, que se dedicaram ao estudo sobre a

26
Os objetos musicais podem ser entendidos como objetos sociais e, em consequência, como representações
sociais. É por essa razão que “o modo como indivíduos e grupos reagem ante eles [os objetos musicais] seria
influenciado pelas representações que os indivíduos têm sobre música e sobre a instituição a que estão
vinculados” (ARCANJO, 2008).
27
Destes três últimos fomos premiados, neste início de século com três publicações em português: Ensaio sobre
a maneira correta de tocar teclado, de Carl Phillipp Emanuel Bach (UNICAMP, 2009), Cartas de Monteverdi
(UNESP, 2011) e O teatro à moda de Benedetto Marcello (UNESP, 2010).
28
Foram elencados aqui os autores aos quais nosso autor memorialista, professor Domingos, teve acesso antes da
era da internet. Alguns livros foram de grande de valia, segundo ele, para os estudos teóricos e estéticos sobre a
música antiga. Destacamos aqui o Source readings in music history: the Renaissance (STRUNK, 1965), onde
vários textos do passado estão selecionados e o Historical anthology of music (DAVIDSON; APPEL,1946), que
reúne partituras e comentários sobre as mesmas.

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prática da música antiga, os quais destacamos Arnold Dolmetsch, Roger Cotte, Thurston Dart,
Joseph Kerman, Hans-Martin Linde, Nikolaus Harnoncourt29, Robert Donington, Mario
Videla, Jean-Claude Veilhan, Ross W. Duffin e Jordi Savall dentre outros. Dos autores
brasileiros destacamos os livros de José Maria Neves30, Raul Costa d‟Avila31, Rogério
Budasz32, Laura Rónai33 e Silvana Ruffier Scarinci34, além de um livro ontológico, sem igual
a nosso ver, que é o Da interpretação da música, de Paulo Couto e Silva, catedrático de
História da Música do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul35.

Uma fonte de pesquisa para a prática da música histórica é a escuta de gravações dos
grupos e orquestras de música antiga, desde os pioneiros aos dos dias e atuais, como também
a apreciação de vídeos. Outra proposição intrínseca à performance historicamente informada36
é o uso dos chamados instrumentos antigos (originais ou cópias), ou instrumentos de época.
Essa questão não se trata de uma opção exótica: os instrumentos de época há muito, fazem
parte da paisagem sonora musical da atualidade. No entanto, não é o simples uso destes
instrumentos e seus timbres peculiares que serão os responsáveis por uma interpretação mais
fidedigna e autêntica de um repertório. Cesar Marino Villavicencio Grossmann comenta como
a complexidade que envolveu historicamente o uso de instrumentos antigos:

Um problema inicial da releitura das obras do passado era conseguir redescobrir como os
instrumentos eram construídos e tocados. Quem ouviu as primeiras gravações dos anos setenta
e oitenta, anunciadas como “interpretações autênticas” em “instrumentos originais”, deve
recordar quão rudimentar era o controle instrumental. Iniciava-se um processo, não só de
redescoberta estilística, mas de transformação instrumental e estética do modo de tocar a
música anterior ao século XIX (GROSSMANN, 2011).

Consideramos, portanto, que para buscar uma fidelidade às concepções estilísticas de


uma obra é necessário tocar com certa mestria um instrumento de época para não deixar
transformar um concerto de música antiga num espetáculo de curiosidade pelo estranho e pelo
excêntrico. Trata-se sim de uma demanda que envolve timbres específicos, uma idiomática

29
Apenas alguns livros dos autores estrangeiros citados se encontram traduzidos para a língua portuguesa:
Interpretação da música de Thurston Dart (Martins Fontes, 1990), Musicologia de Joseph Kerman (Martins
Fontes, 1987), Música e simbolismo de Roger Cotte (Cultix, 1990), Pequeno guia para ornamentação da música
barroca de Hans-Martin Linde (Musicália, 1979), O discurso dos sons (Jorge Zahar, 1990) e o Diálogo musical
de Nikolaus Harnoncourt (Jorge Zahar, 1993).
30
NEVES, Joé Maria. Música sacra mineira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1987.
31
D‟AVILA, Raul Costa. A articulação na flauta transversal moderna: uma abordagem histórica, suas
transformações, técnicas e utilização. Pelotas: UFPEL, 2004.
32
BUDASZ, Rogério. A música no tempo de Gregório de Matos. Curitiba: DeArtes/UFPR, 2004.
33
RÓNAI, Laura. Em busca de um mundo perdido. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
34
SCARANCI, Silvana Ruffier. Safo novella: uma poética do abandono nos lamentos de Barbara Strozzi,
Veneza, 1619-1677. São Paulo: Algol Editora/EDUSP, 2008.
35
SILVA, Paulo Couto e. Da interpretação da música. Porto Alegre: Editora Globo, 1960.
36
Outro termo para música antiga.

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característica, realização de nuances distintas e técnicas interpretativas, notadamente,


possíveis de se realizar em instrumentos específicos. E, sobretudo, que não basta tocar um
instrumento: é necessária uma postura estética em relação ao propósito musical, e tendo
consciência que, como Jordi Savall considera, “a interpretação autêntica não existe. A
interpretação será sempre uma aproximação, um desejo de fidelidade a um determinado estilo,
idéia, compositor ou instrumento. Mas tem que ser sempre moderna” (SAVALL, 1997).
Nesse sentido, Kerman, ao se referir aos preceitos apresentados em manuais do século XVIII
messadivoce, notes inegales, vibrato aplicado seletivamente, ornamentos com propósitos
expressivos e retomados pela prática da música antiga contemporânea diz que, estes preceitos
são empregados a serviço de uma nova – ou melhor, de uma antiga – estética da arte barroca
(KERMAN, 1987).

Outro princípio essencial, claro, é a execução de um repertório específico,


notadamente obras do mundo barroco e dos períodos renascentista e medieval, e na música
brasileira, de obras do período colonial e do século XIX37. Para tal, caso se use obras editadas,
faz-se necessária uma revisão crítica das partituras publicadas com a intenção de rever as
intervenções e deturpações de dinâmicas, agógicas e outras nuances acrescentadas
posteriormente à composição das obras pelos musicólogos, revisores e editores.

Enfim, consideramos o praticante da música antiga como um musicólogo que deve ser
movido pela curiosidade intelectual, interrogar e estabelecer um diálogo com as obras e seus
autores, considerar as composições musicais como documentos-monumentos, que mais do que
uma herança do passado, são construções culturais, são representações sociais. Nas obras
musicais estão cravejadas as memórias de seus autores e de suas coletividades, onde as
concepções estéticas das poéticas musicais devem ser buscadas num jogo que exige do
músico decisões interpretativas conscientes. E, conforme observa José Eduardo Costa Silva,
uma questão angular emerge sobremaneira neste jogo: “de alguma forma eles [os intérpretes
da música antiga] dialogavam com a essência ambígua da arte – ser estético e histórico ao
mesmo tempo” (SILVA, 2000).

37
Essa questão temporal, desde os anos mil novecentos e noventa, foi rompida. Interpreta-se Mozart, Beethoven,
Berlioz, Schubert, Verdi e até Mahle com instrumentos de época e segundo os princípios da música
historicamente informada.

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AS PREMISSAS E O CONJUNTO DE MÚSICA ANTIGA DA UFMG, O


COLLEGIUM MUSICUM DE MINAS E O GRUPO DE MÚSICA ANTIGA DA
UEMG

Dos grupos apresentados no escopo documental do Arquivo Georges e Ana Maria


Vincent vamos nos ater a três para tecermos alguns comentários sobre as observações aos
princípios que aqui expusemos. São eles: o Conjunto de Música Antiga da UFMG, o
Collegium Musicum de Minas e o Grupo de Música Antiga da UEMG.

O Conjunto de Música Antiga da UFMG (1983-1994)38, do qual o professor


Domingos participou em sua primeira formação e de outra, posteriormente, surgiu quando a

Universidade Federal de Minas Gerais adquiriu em 1983 cópias de instrumentos antigos que
eram praticamente desconhecidos dos professores e alunos desta instituição. Os professores
Georges Vincent e André Prous foram então convidados a ministrar um curso de extensão de
música antiga e, a partir daí, formou-se o Grupo de Música Antiga da UFMG, dirigido por
Vincent durante todo período de atividade do grupo (1983-1995), que mereceu reconhecimento
público (GOMES et al, 2016, p. 3).

Em um programa de concerto consultado, constatamos o registro de uma apresentação


do grupo realizada em 18 de maio de 1983 no auditório da Reitoria da UFMG (evento Quarta
doze e meia) com a participação dos músicos Hermínio Carlos de Almeida, Eduardo Carvalho
Ribeiro, Domingos Sávio Lins Brandão, Ana Maria Vincent, André Prous, Georges Vincent,
Áurea Arruda Tavares e Maria do Carmo Correa. Da lista dos instrumentos utilizados nesta
apresentação consta quarteto de flautas doces, quarteto de cromornos, pommer soprano e
tenor, ranket barroco, gemhorn contralto e tenor, kortholt baixo, rauschpfeif contralto e
alaúde.

Outro programa de concerto que registra uma das últimas apresentações do Conjunto
de Música Antiga da UFMG (Sala Juvenal Dias nos dias 26 e 27 de agosto de 1994),
constatamos a participação dos músicos Ana Maria Vincent, André Prous, Domingos Sávio
Lins Brandão, Georges Vincent, Lúcia Melo e Weruska Wilke, tendo sido usados flautas
doces, khummhorn, gemshorn, alaúde, violas da gamba, rauschpfeife, korthaut, percussão e
quarteto vocal.

38
Para mais informações sobre este grupo, consultar: GOMES, Amanda et al. Grupo de Música Antiga da
UFMG: levantamento documental a partir do Arquivo Georges e Ana Maria Vincent. In: Nas Nuvens...
Congresso de Música, v. 2. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.

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Durante sua existência, este grupo se dedicou notadamente à questão da prática


musical: tocar música medieval, renascentista e do primeiro barroco e, para tal, buscava-se na
pouca bibliografia disponível e na intuição o como tocar instrumentos antigos (khummhorn,
gemshorn, alaúde, rauschpfeife, korthaut), que se tornaram o diferencial e atributo sedutor
para as apresentações públicas. Foram cruciais os conhecimentos musicais de Georges
Vincent, formado como Maître de Chapelle pela Schola Saint Grégoire de Le Mans e
coordenador do grupo e de André Prous, que se formou na primeira classe de alaudistas do
Conservatório de Paris nos finais dos anos sessenta do século passado. Era nossa preocupação
a aproximação, um desejo de fidelidade a um determinado estilo, ideia, compositor ou
instrumento, e sempre dialogávamos com a essência ambígua da arte – ser estético e histórico
ao mesmo tempo. Porém, não havia espaço para a discussão de cunho musicológico e estético,
já que a missão do grupo era primordialmente as apresentações públicas.

Quanto ao Collegium Musicum de Minas (1993-2003), inicialmente Collegium


Musicum Brasiliensis, participaram de sua primeira formação os músicos Antonio Viola
(violoncelo), Sérgio Martino Aversa (cravo), Rodolfo Padilla (violino) e Domingos Sávio
Lins Brandão (flauta doce). Três anos depois, em 1996 por ocasião de uma viagem à cidade
do Porto (Portugal) para participar do Festival de Música Antiga. Seus músicos eram: Ana
Maria Vincent (canto), Rodolfo Padilla (violino barroco), Georges Vincent (viola da gamba e
canto), Antônio Carlos de Magalhães (cravo) e Domingos Sávio Lins Brandão (flauta doce).
Sua trajetória iniciou-se também, como um grupo prioritariamente performático, que em 1996
decidiu partir pela busca das proposições musicológicas anteriormente elencadas neste texto,
tendo em vista um trabalho musical consciente e fundamentado historicamente.

A partir de então, o Collegium Musicum de Minas parte para a ênfase da interpretação


e performance do repertório antigo brasileiro, latino-americano e ibérico. Uso de instrumentos
de época, revisão de publicações de partituras, pesquisa de fontes históricas, reflexões
estéticas, o estudo da música antiga naturalmente e, principalmente, a execução de obras
nortearam o trabalho desse grupo.

O Collegium Musicum de Minas chegou a gravar três CDs: Ninguém morra de ciúme
(1997), Senhora del mundo (1998) e A origem (2000). No encarte do primeiro CD estão
apresentados seus fundamentos tecidos pelo esteta e alaudista do grupo, José Eduardo Costa
Silva:

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Desde 1993, o Collegium Musicum de Minas trabalha segundo os parâmetros da interpretação


histórica, isto é, constrói sua linha de interpretação a partir da pesquisa de elementos musicais
inerentes à temporalidade das composições. A universalização das emoções como elemento
constituinte do universo de representação da música é para nós a percepção fundamental.
Exercitamos conceitos que privilegiam o emocional, para além dos aspectos técnicos presentes
em nossa abordagem. Quando interpretamos a música colonial brasileira nosso trabalho é de
reconstrução do passado, portanto, de construção da identidade que nele não se esgota.
Redescobrimos fragmentos de Minas, estilhaços de um Brasil Barroco, ecos de emoções
exaltadas. Para nós, o passado está em aberto. Amor, ódio, fé, profanidade, dor e alegria,
sentimentos conflitivos que ao serem revelados em experiência estética, funcionam como elos
que universalizam contextos distintos. Entendemos no ciúme um sentimento comum, síntese
emocional das relações sociais estabelecidas. Filho da convivência conflitiva entre branco e
negro, do colonizado e do colonizador, relações que deram o tom ao barroco brasileiro,
reveladas para nós em imagens microcósmicas, a Senhora que suplicava a negra que despertava
desejos no Senhor. Quando nos deparamos com a composição de Domingos Caldas Barbosa,
percebemos que nela eram evidentes elementos de inquietação e originalidade estéticos, típicos
da música colonial brasileira, que de outra maneira estavam colocados nas composições deste
CD e nas palavras do próprio compositor. (SILVA, 1997, sem número de página).

O site PQP Bach, assim se referiu ao Collegium Musium de Minas:

O Collegium Musicum de Minas foi um grupo de Belo Horizonte (Brasil) dedicado à pesquisa
e à execução da música colonial brasileira. Criado em 1993, sob a coordenação musical e de
pesquisa do musicólogo Domingos Sávio Lins Brandão [...]. O Collegium Musicum encerrou
suas atividades em 2003, deixando um legado de pessoas que se apaixonaram pela música
histórica graças ao trabalho realizado pelo grupo (PQP BACH, 2018).

Outro conjunto arrolado nos documentos em questão é o grupo de Música Antiga da


UEMG (2006-2014), que foi criado em 2006 dentro da Escola de Música da Universidade do
Estado de Minas Gerais como um projeto de extensão e pesquisa dirigido por Domingos
Sávio Lins Brandão. Assim, era formado por alunos e professores e contava com a
participação de músicos convidados como José Eduardo Costa Silva, Georges Vincent e Ana
Maria Vincent. Este foi o último grupo de música antiga que o casal Vincent participou. Seu
objetivo essencial era discutir a relação entre música antiga e linguagem, pesquisando e
interpretando a música dos períodos medieval, renascentista, barroco e, especialmente, do
barroco mineiro, a partir da reflexão sobre as especificidades de cada uma dessas épocas.
Obras do período colonial brasileiro pertencentes ao Acervo Maestro Chico Aniceto 39, do
Núcleo de Acervos da Escola de Música da UEMG, faziam parte de seu repertório.

Nesse trabalho de (re)criação e execução do repertório pesquisado, o Grupo de Música


Antiga da UEMG se baseava em fundamentos históricos, culturais e estéticos para a
interpretação, discutindo e considerando questões como subjetividade e normatividade,

39
Para mais informações sobre o Acervo Maestro Chico Aniceto, consultar: BRANDÃO, Domingos Sávio Lins;
AZEVEDO, Aline. Acervo Maestro Chico Aniceto: relato descritivo após incorporação de fundo documental
pertencente a Onofre Aniceto. In: Encontro de Musicologia Histórica do Campo das Vertentes, v. 1. São João
del-Rei: Universidade Federal de São João del-Rei, 2018, p. 98-111.

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intuição pessoal e autenticidade, idiossincrasia e fidelidade, circularidade e transculturalidade,


mestiçagem cultural e ressignificação estética, práticas culturais, práticas musicais e
representações. Para tanto, seus integrantes utilizavam cópias de instrumentos antigos, tanto
os mais conhecidos pelo público, como as flautas doces, o cravo e a percussão, quanto aqueles
cujos nomes soavam de maneira estranha aos ouvidos de muitas pessoas, como a viela de
roda, a trombeta marina, o monocórdio, entre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há música antiga. As partituras são antigas, mas quando são executadas elas se tornam
vivas (SAVALL).

Os documentos reunidos no Arquivo Georges e Ana Maria Vincent são de importância


sem igual para a pesquisa da prática da música antiga em Belo Horizonte. No entanto, o que
apresentamos no presente artigo foram informações e reflexões que ultrapassam o registro
documental, uma vez que o contato com essa fonte desencadeou as lembranças do autor-
memorialista, Domingos Sávio Lins Brandão, dada sua participação, juntamente com o casal
Vincent e outros importantes personagens, do incipiente movimento da música antiga na
capital mineira.

Para encerrar este texto, apresentamos mais uma explanação de Jordi Savall que
acreditamos epilogar nosso discurso:

Uma das características de qualquer civilização é a sua capacidade de recordar, uma vez que é
impossível imaginar o futuro sem memória. No entanto, a memória e o esquecimento são
indissociáveis, o que já sabiam os antigos. Perto do oráculo de Trofhonios, na cidade de
Lebadeia, na Boécia, existiam duas fontes das quais bebiam os que procuravam conselho:
Léthé, a Fonte do Esquecimento, e Mnémosyné, a Fonte da Memória. Ambas eram
indispensáveis, o qual é tão certo como que, sem certa capacidade de esquecimento, a vida
seria inviável, mas também não seria possível a vida humana sem memória. Contudo, é
possível que o nosso passado apenas exista na nossa memória pessoal, como afirma Tiziano
Terzani? “O passado não existe: são as recordações que acumulamos, que arranjamos e que
falsificamos” As obras de arte tangíveis de outros tempos [...] falam-nos sempre, por si
próprias, através de sua simples presença. Mas as artes intangíveis, tal como a música,
precisam sempre de artistas de hoje para existirem verdadeiramente. [...] (SAVALL, 2008, sem
número de página).

Segundo Marilene Chauí, “[...] lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir com
imagens e ideias de hoje, as experiências do passado” (CHAUÍ, 1987, p. 20). Em se tratando
de histórias de vida, são muitas as tarefas do musicólogo: alertar para os elementos de
invenção, de aproximação ou de fantasia que ronda toda narrativa, mesmo que fundamentada
em documentação, pois na memória se entrelaçam passado e presente, temporalidades e
espacialidades, o pessoal e o coletivo, registro e invenção, dado e construção, história e

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ficção, as recordações que acumulamos, que arranjamos e que falsificamos, o indivíduo e sua
rede de sociabilidade.

REFERÊNCIAS

AGUILAR, Patricia Michelini. A flauta doce no Brasil: da chegada dos jesuítas até 1970.
2017. 258f. Tese de doutorado. Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes.
São Paulo: Universidade de São Paulo, 2017.

ARCANJO, Loque. O ritmo da mistura e o compasso da história: o modernismo musical


nas bachianas brasileiras de Heitor Villa-Lobos. Rio de Janeiro: E-papers, 2008.

AUGUSTIN, Kristina. Um olhar sobre a Música Antiga: 50 anos de história no Brasil.


Rio de Janeiro: K. Augustin, 1999.

BERIO, Luciano. Entrevista sobre a música contemporânea. Realizada por Rosana


Dalmonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, sem data.

BRANDÃO, Domingos Sávio Lins; AZEVEDO, Aline. Acervo Maestro Chico Aniceto:
relato descritivo após incorporação de fundo documental pertencente a Onofre Aniceto.
Encontro de Musicologia Histórica do Campo das Vertentes, v. 1. São João del-Rei:
Universidade Federal de São João del-Rei, 2018, p. 98-111.

CAVAZOTTI, André; BREDEL, Pierre Guedes. Entrevista com o violinista barroco Luis
Otávio Santos. Per Musi, no. 8. Belo Horizonte, jul-dez, 2003, p. 152-156.

CHAUÍ, Marilena de S. Apresentação: Os Trabalhos da Memória. In: BOSI, Ecléa. Memória


e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: EDUSP, 1987, p. 20.

DUFFIN, Ross W. Performance Practice: Que me veux-tu? What do you want from me?
Early Music America, v. 1, no. 1, 1995, p. 27-36. Tradução não publicada de Paulo César
Martins Rabelo, sem data, p. 1-12.

FARGE, Arlete. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2009.

FOLHA DE SÃO PAULO – Ilustrada p. 5, 25/05/1993. In: BRANDÃO, Domingos Sávio


Lins. O sentido social da Música em Minas colonial. Dissertação de Mestrado. Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1993.

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GANDELMAN, Saloméa. Uniformidade e diversidade na execução musical. Texto não


publicado.

GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1979.

GOMES, Amanda et al. Grupo de Música Antiga da UFMG: levantamento documental a


partir do Arquivo Georges e Ana Maria Vincent. Nas Nuvens... Congresso de Música, v. 2.
Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2016.

GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio de Frederico Richter: uma abordagem de


interpretação. Per Musi, no. 16, p. 67-79. Belo Horizonte, 2007.

O‟DEA, Jane. Virtue or virtuosity?: explorations in the ethics of musical performance.


Westport: Greenwood Press, 2000.

OLIVEVIRA, Alecsandra Matias de. Arte como lugar da memória. Travessias, v. 3, no. 1,
2009

PQP BACH. Collegium Musicum de Minas: Ninguém morra de ciúme – 1997 (Acervo
PQPBach) – P.Q.P. Bach.

PRÓ-MÚSICA, Centro Cultural. Centro Cultural Pró-Música: uma contribuição de 25


anos à história da Música Antiga no Brasil. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2000.

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