TESE - Nilton Ota - Corrigido
TESE - Nilton Ota - Corrigido
TESE - Nilton Ota - Corrigido
São Paulo
2010
Nilton Ken Ota
São Paulo
2010
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Para o meu pai,
Tsuyoshi Ota,
minha inspiração
no céu
e na terra
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Agradecimentos
À minha orientadora, Irene Cardoso, interlocutora permanente nos últimos dez anos. Guardarei
desse tempo a sua correção e generosidade, a inteligência calorosa do pensamento crítico e dos
comentários inquietantes. Certamente, continuaremos a cultivar esse encontro.
Aos professores Christian Dunker e Paulo Silveira, pelas importantes observações no exame de
qualificação.
Ao professor Paulo Arantes, pelo convite para participar do seminário de quarta-feira, rica
discussão pela qual as idéias da minha tese ganharam novo fôlego na reta final da pesquisa.
Aos meus caríssimos amigos da USP e da vida, Luciano Pereira e Regina Magalhães. Com eles
aprendi que os assuntos sérios e sempre complexos podem ser compreendidos e analisados em
profundidade com leveza e bom humor.
Aos velhos companheiros Zé César e Tati, Paulo e Carina, pela amizade de sempre.
Aos bons de bar e de camaradagem do Sintoma Social, pelas várias discussões, muitas delas
incorporadas nesta tese.
Ao Hélder Greco e Alejandro Viviani, por terem mostrado o outro lado da psicanálise, menos
pretensiosa com o que importa pouco e mais comprometida com o que realmente interessa.
À Maria Fernanda, Flávio, Edson, Paulo, Cláudio, Jorge e Joeder, pelo apoio em condições
adversas. Em especial, à Lurdinha, por saber da importância de uma tese para quem a escreve.
Ao Ricardo que, além de cunhado, foi fundamental nos dias de fechamento da tese. Gostaria de
pedir um samba ao invés de fazê-lo ler meu texto. Seu samba tem razão, na sabedoria sarcástica e
humanista de suas letras. O dia termina como as cortinas que descem no fundo de um copo de
cerveja.
Não poderia esquecer os amigos para todas as horas, Marcelo, Émerson, Mari Raupp, Luíza e
Ricardo, Marcel e Patrícia.
Mais uma vez obrigado à Fernanda pelo pedido apressado. E ao meu fraterníssimo amigo Rodrigo,
pelo apoio dado e pela torcida verdadeira.
À minha mãe, Eiko, aos meus irmãos Roberto, Jaque e Mari, às queridas Eri e Juju, e ao Edson e
Elisa, não saberia como dizer o quanto me causa orgulho e felicidade tê-los como minha família.
Nosso último ano foi doloroso demais, mas soubemos dar à saudade a lembrança de que o pai está
aqui, como sempre esteve, no legado de nossas alegrias e na certeza de que estaremos juntos. À
minha tia Seiko, pela presença incondicional, e às famílias Hioki, Oba e Kawamura, pela
solidariedade doce e segura. Ao Sr. Hermeto e à Dona Zeni, pelas palavras nos momentos difíceis.
E para a Márcia, tudo, com o que tenho de melhor e com o mesmo amor que se anunciava no nosso
primeiro de maio.
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"Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira
impressão foi de extravagante felicidade. Todos se sentiram proprietários de um
tesouro intato e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloqüente
solução não existisse nalgum hexágono. O universo estava justificado, o universo
usurpou bruscamente as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo
falou-se muito das Vindicações: livros de apologia e profecia, que vindicavam
para sempre os atos de cada homem do universo e guardavam arcanos
prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce
hexágono natal e precipitaram-se escadas acima, movidos pelo oco propósito de
encontrar sua Vindicação. Esses romeiros disputavam os corredores estreitos,
proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, lançavam
os enganosos livros no interior dos túneis, morriam desempenhados pelos homens
de regiões longínquas. Outros enlouqueciam... As Vindicações existem (observei
duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginárias), mas
os investigadores não recordavam que a possibilidade de que um homem
encontre a sua, ou alguma pérfida variante da sua, é computável em zero."
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RESUMO
OTA, Nilton Ken. O poder como linguagem e vida: formalismo normativo e irrealidade social.
2010. 338 f. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Sociologia,
Universidade de São Paulo, 2010.
Resumo: Esta tese analisa a configuração do poder na atualidade, descrevendo seus princípios de
funcionamento e suas estratégias. Para tanto, investiga três contextos sociais distintos: o paradigma
teórico do primado da linguagem; a vertente hegemônica da psicanálise lacaniana e o novo campo
de tratamento da pobreza. Por meio dessa abordagem, a pesquisa identificou uma modalidade de
poder fundamentado na exacerbação simbólica e na perda de significações coletivas. Um poder
estruturado como uma linguagem.
ABSTRACT
Ota, Nilton Ken. The Power as language and life: normative formalism and social unreality.
2010. 338 f. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Sociologia,
Universidade de São Paulo, 2010.
Abstract: This thesis analyzes the present power configurations describing its principles and
strategies. In order to do this the research investigates three different social contexts: the theoretic
paradigm of the language primacy; the hegemonic line of lacanian psychoanalysis and the new
field of poverty treatment. Through this approach the research identified a power modality based
on a symbolic overflow and on the loss of collective meanings. A power structured as a language.
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INTRODUÇÃO ................................................................................................................................9
PARTE I
A FORMA TEÓRICA E O CURSO DO MUNDO
Introdução ..................................................................................................................................15
i. Por uma teoria da exceção permanente ............................................................................21
ii. Antropologia estrutural e as formas gramaticais da vida liberta .....................................24
I. A objetivação social da teoria .................................................................................................31
II. Linguagem e democracia .......................................................................................................41
i. A “ética do Discurso” .......................................................................................................46
ii. A geometria habermasiana ..............................................................................................52
III. A emergência da vida ...........................................................................................................58
i. A soberania biopolítica e seus formalismos .....................................................................61
ii. O baixo contínuo da vitalidade ........................................................................................71
PARTE II
O CONTEMPORÂNEO E SUAS VICISSITUDES NO LACANISMO HEGEMÔNICO
PARTE III
O NOVO CAMPO SOCIOASSISTENCIAL
Introdução ................................................................................................................................180
I. Uma programação para a juventude .....................................................................................193
i. A “ação multisetorial” ....................................................................................................202
ii. A “equipe” .....................................................................................................................210
iii. A seleção das “executoras” ..........................................................................................214
iv. Uma formação profissional para o consentimento político ..........................................221
v. A “matriz curricular” .....................................................................................................234
vi. A intervenção social dos jovens: os “projetos” ............................................................246
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vii. O prefeito e a comunidade ...........................................................................................250
II. Um capital social das oportunidades perdidas .....................................................................255
i. A virtude cidadã do mercado ..........................................................................................259
ii. A empresa e sua sociedade organizada .........................................................................268
iii. Os lances da regra e o jogo das oportunidades .............................................................275
III. Configurações da responsabilização punitiva em tempos de direitos sem justiça .............281
i. “Gosto mais é de assunto sério” .....................................................................................283
ii. “No final do mês chega a conta pra pagar” ...................................................................299
iii. “Despejaram um caminhão em cima da minha cabeça” ..............................................313
iv. “Tudo que eles me chamam eu concordo e vou.” ........................................................326
ANEXO 1 …...................................................................................................................................347
ANEXO 2 .......................................................................................................................................349
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INTRODUÇÃO
Nossa democracia deixará perplexo o viajante desavisado que por aqui desembarcar suas
expectativas de pesquisa e entendimento. Após conhecer o passado recente do país, o regime de
exceção e seu arbítrio, tomando nota do processo de ampla movimentação social que o derrogou e
que culminou na Constituição de 1988, ele concluirá, com poucas dúvidas e com toda razão, que,
embora a história seja contingente e ainda que ela envolva retrocessos, a cidadania alcançada
encontra-se em um nível muito superior ao anterior. Nosso viajante estará correto ao concluir que
as virtudes públicas de hoje são herdeiras da política e que, a despeito da transição lenta, gradativa
e sob a vigilância do governo militar, a democracia entre nós chegou pela ação cívica dos
movimentos sociais e de grupos organizados segundo o princípio da publicidade dos interesses. A
positivação dos direitos refletiria, assim, a coerência desse ciclo ascendente. Mas depois de
recolher os traços fortes dessa história, com a simples observação de campo o pesquisador deparar-
se-á facilmente com a irrealidade social dos direitos, fato que levará abaixo suas primeiras
hipóteses. Atento, notará que a inefetividade da lei exige uma compreensão mais complexa e
específica. Não só os direitos não são concretizados como também são inflacionados e orientam,
em sua dimensão formal, as reivindicações e a militância política setorizada. A perplexidade,
enfim, lhe custará a consciência republicana. Seu objeto, impondo o reconhecimento de uma
modalidade de dominação que pressupõe o ativismo civil, lhe apresenta um processo que se vale
dos ganhos democráticos, no plano jurídico, para converter a política em espaço simbólico,
esvaziado e materializado por um automatismo de deslizamentos constantes. O Direito torna-se
uma forma socialmente generalizada pelo discurso em defesa da justiça. Em nome da lei, a política
revigora-se em nova chave. Diferentemente do que sua primeira aparência pode levá-lo a acreditar,
a política democrática à brasileira não se deixa apreender pela reafirmação do caótico e da eterna
inconstância de sua cultura, mal atávico atribuído recorrentemente ao subdesenvolvimento. Seus
contornos são “autodeformantes” e seu exercício pode se assemelhar a uma “geometria móvel”
(DELEUZE, 2004), mas há por aqui, ao contrário do que indicou o diagnóstico parisiense, uma
regularidade sob os fluxos e conexões, um sujeito ativo que vela pelo seu próprio desaparecimento.
Ao final do tirocínio de pesquisa, o viajante provavelmente se indague sobre a validade do que viu
e ouviu. Provavelmente, também se questione sobre esse sujeito. Como concebê-lo nessa
conciliação oximora, nesse processo político entre afirmação dos direitos e sua suspensão social?
Fenômeno intelectual revelador da atualidade do poder, muito além de nossas fronteiras, a
indeterminação do sujeito político tem rendido uma ampla gama de estudos, nas diferentes áreas da
teoria social contemporânea, em uma configuração, com o tempo, mais evidente: à medida que se
distancia da ação concreta, mais a política se aproxima da pesquisa universitária, algo como uma
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transição do espaço contingente aberto por sua prática em direção a uma determinação científica de
seu sentido. Daí o inescapável dilema entre a objetivação teórica do sujeito ou a subjetivação
política do objeto. O militante o reconhecerá com facilidade. Talvez em forma de paradoxo, como
uma certa anti-filosofia quer fazer crer, a subjetivação da política possa instalar a partilha pelo
dissenso em torno das medidas da justiça. Ou, quem sabe, dirão os partidários de uma voga tardia -
embora sempre à mão-, trata-se, antes, de justificar a possibilidade do entendimento mútuo fundado
sobre uma espécie de entidade sócio-filosófica objetiva, uma quase transcendência imanente à
sociedade. O militante dispõe de um cardápio generoso de interpretações teóricas - e suas
expectativas correlatas – sobre o sujeito político contemporâneo e seus possíveis. Não convém,
aqui, mapeá-las, nem identificar as vias de importação e os termos de sua recepção entre nós. Nesta
tese, não haverá qualquer localização desse sujeito, com exceção de uma, mas de acordo com um
recorte específico: autores e teorias que mantiveram uma posição comum, a defesa do primado da
linguagem em relação ao trabalho e, conseqüentemente, a afirmação ou negação de um novo lugar
para o sujeito político.
As teorias orientadas pela idéia do primado da linguagem são diversas e sofrem influência
conforme a pronúncia e a locução idiomática de seu discurso. Por si só esse tema justificaria um
estudo específico, o que está longe de ser o caso desta tese. O “giro” ou a “virada” lingüística serve
como referência de um duplo movimento. Primeiramente, em relação à sua aderência ao curso do
mundo, pode o primado da linguagem responder às exigências de uma crítica das modalidades
contemporâneas de dominação? Segundo movimento, no refluxo dessa crítica: ele será capaz de
subtrair-se da identificação com a abstração socialmente vinculante dos atuais mecanismos de
controle? A “virada” constitui o discurso pelo qual a forma teórica pode se fundar em uma
gramática social, única capaz de articular o sujeito pleno de direitos com o estado de exceção
permanente. Somente um poder estruturado como uma linguagem pode concretizar as premissas da
“virada”. Por isso o valor metodológico do estruturalismo francês e da teoria do agir comunicativo.
Transformadas pela história em modelo de objetivação social, as teorias do primado da linguagem
extraem do poder a sua referência epistemológica, a saber, a reversibilidade entre sujeito e objeto.
É esse o estatuto gramatical da articulação entre democracia e suspensão dos direitos. Articulação
garantida por um dispositivo amplo e irrestrito, donde seu caráter totalitário, o formalismo
normativo. Embora sua expressão e fisionomia sejam teóricas, seu exercício não o é. Entretanto,
para que o discurso possa ser eficaz também na dimensão prática, a abstração não pode ficar
reclusa ao pensamento; ela deve objetivar-se. Os aspectos formais do conceito dessa objetivação já
foram descritos com maestria por Lévi-Strauss. O “pensamento objetivado” é “selvagem” no
sentido de que as categorias sensíveis estruturam um raciocínio lógico. As condições sociais para
que essa objetivação ocorra do lado “civilizado” pressupõem, portanto, uma sensibilidade das
qualidades lógicas, o inverso da descoberta do antropólogo. A emergência de uma sensibilidade
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como esta, a história do último século assim o demonstrou, teve sua concretização social nos
regimes de exceção, particularmente nas situações extremas em que o controle laboratorial do
experimento científico pôde ser aplicado aos humanos.
No plano estético, essa sensibilidade já se anunciava com as vanguardas do início do século
XX. A auto-referência de sua forma estética não identificava apenas um processo de
autonomização do campo artístico, mas, sobretudo, figurava um modo gramatical de
relacionamento. Sua presunção estética transpunha os limites da arte, mas assim o fazia recusando
todo cânone, posição peculiar de uma auto-referência que se afirmava a partir da relação
permanente com outras esferas sociais. Daí por que a vanguarda estética possa expressar a
racionalidade que procuraremos analisar. Sob um poder estruturado como uma linguagem, a
existência formal do sujeito se faz pela captura real do objeto. Em outras palavras, a enunciação do
sujeito no discurso somente pode encontrar base no único lugar vazio do simbólico, aquele
ocupado pela indicação da linguagem na linguagem ou, como formula Agamben (2008a), a
representação do fato dela “ter lugar”, prerrogativa dos testemunhos dos sobreviventes dos campos
de concentração. O real do objeto é, portanto, o vácuo da linguagem, a pura assunção da língua e
suas relações sintático-gramaticais na diacronia da fala. Muito diferente do “ritual de discurso” - a
“confissão” - do dispositivo da sexualidade analisado por Michel Foucault (1984), em que o
“sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado” (Idem: 61), a verdade não é o suporte do
discurso e sua “vontade de saber”. O sentido agônico do poder não diz mais respeito à disputa
pelos critérios de validação do discurso em um determinado “regime de verdade”. Disputa-se, de
acordo com o primado político da linguagem, o vazio semântico da língua, e não a verdade, donde
o realismo da percepção da irrealidade social movimentada e engendrada pelo formalismo
normativo. O saber que lhe é característico tem lastro nas estratégias de desreferencialização,
sendo, antes, uma prática de discurso mais do que um conhecimento sobre as regularidades sociais
e suas leis. Nenhuma arqueologia ou genealogia desse poder, portanto. No formalismo de que
estamos falando, se há saber ele se refere a uma pragmática do vazio da linguagem. É para ela que
a crítica deve voltar sua atenção e não para o cinismo que emana das estratégias de
desreferencialização.
Apesar de sua abordagem ser, em um primeiro momento, formulada em termos conceituais,
esta tese não será propriamente teórica. Verdade seja dita. Classificações sobre o tipo de pesquisa
são pertinentes para uma compreensão cronificada, estimulada a pensar pelos extremos. Nesse
aspecto, entre teóricas e empíricas, não haveria como classificar esta tese. De qualquer forma,
dadas as dificuldades enfrentadas para integrar as questões que serão trabalhadas ao longo dos
capítulos, importante expor o esquema geral imaginado para ela. Alguns capítulos soarão como
apenas teóricos; outros, ao contrário, como inteiramente empíricos e, quem sabe, os restantes com a
qualidade intermediária que deveria ser a de todos. O resultado talvez não agrade a leitura, por
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vezes convidada a um percurso que poderia ser menos sinuoso. Conceitos e contextos sociais
aparecerão, provavelmente, como se fossem instâncias divorciadas entre si. Mas, embora não sirva
como justificativa e nem tenha o intuito de minimizar falhas e irregularidades do texto, vale
ressaltar que o primeiro capítulo, o mais “teórico”, não se exime de indicar seu vínculo com os
outros, de conteúdo sociologicamente mais definido. Isto porque as teorias do primado da
linguagem são tomadas, aqui, como discursos sociais e, a partir da análise desenvolvida, enquanto
modelo de objetivação do poder. Certamente, não serão poucas as dificuldades em traçar um plano
de exposição e interpretação a partir do conceito hipoteticamente apresentado, o formalismo
normativo. Essas dificuldades se revelaram muito cedo, no início da pesquisa. A ausência de um
contexto empírico claramente delimitado ampliava a impressão de que o problema teórico não
estava suficientemente consolidado. Ainda que a reversibilidade gramatical da relação social entre
sujeito e objeto, princípio desse formalismo, não requeira o escrutínio de uma morfologia detalhada
dos discursos, sejam eles teóricos ou não, enquanto exercício de poder ela necessita ser analisada
no âmbito de sua eficácia prática. Mas onde encontrar uma esfera em que a reversibilidade seja
praticada e não apenas simbolizada? Se a forma teórica do primado da linguagem pode apresentar
as premissas da atualidade do poder, consistindo em um verdadeiro modelo de objetivação, esperar
o mesmo de outros campos sociais implicaria condicionar a problematização do estado de exceção
a configurações históricas muito distantes da democracia. Perderíamos de vista justamente a
prerrogativa do formalismo normativo.
Para acompanhar o funcionamento do primado da linguagem nas novas modalidades de
controle, a tese assumiu uma direção heterogênea no modo de abordar as esferas investigadas. Três
grupos temáticos foram definidos como parte da composição geral do texto. Ao lado das teorias da
“virada lingüística”, a vertente hegemônica da psicanálise lacaniana e o atual dispositivo de
tratamento da pobreza - o novo campo socioassistencial – constituem essas esferas, cada qual com
suas peculiaridades na configuração do formalismo normativo. No lacanismo hegemônico a
configuração centrou-se no discurso teórico como estratégia para uma interlocução da psicanálise
com o social, o que permitiu assentar o paradigma da linguagem em um universo concreto de atos,
palavras e conseqüências. No novo campo socioassistencial, por sua vez, as formas expressivas de
sua eficácia foram extraídas de três contextos institucionais. Para cada exercício prático do
formalismo, uma problematização diferente. No circuito socioeducativo para adolescentes autores
de ato infracional, primeiro contexto, a responsabilização do sujeito, tão propalada pelo “Terceiro
Setor”, assumiu sua face punitiva, explicitando, assim, o princípio subjacente às virtudes
empreendedoras defendidas pelos projetos sociais para a juventude, concebidos e implementados
pelo mosaico cidadão formado por empresas, Poder público e ONGs, tema do segundo contexto
analisado. O terceiro, que diz respeito à inserção no mercado e à qualificação profissional de jovens
em uma situação única de recursos abundantes e em escala nacional, expôs a gravitação da
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irrealidade – neste caso, do trabalho - por uma espécie de capital social das oportunidades perdidas,
ou seja, pela responsabilização de um estado negativo que, após essa experiência, provavelmente
acompanhará os que dela participaram. A crítica à dimensão totalitária do formalismo normativo
justifica, a nosso ver, essa heterogeneidade metodológica.
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PARTE I
_________________________________________________________________________
A FORMA TEÓRICA E O CURSO DO MUNDO
14
Introdução
Teses estéticas sob um clima de época. Entre nós, as vanguardas poéticas da passagem dos
50 aos 60 anunciaram, por meio da crítica da forma literária, as brumas de chumbo que ocupariam
os nossos próximos vinte anos. O afeto das vanguardas artísticas é marcado, dirá Badiou, pela
“paixão pelo real” (BADIOU, 2002). Sua aversão à linguagem ordinária ou ao cânone estético
estiliza um modo de repulsa. Certamente, as incidências do jugo militar foram radicalmente
distintas na esfera literária das que vigoraram no plano político-social. A radicalização
vanguardista foi capaz, no entanto, de explicitar a lógica política gestada durante o regime de
exceção. Na passagem da particularidade de uma esfera social para o lugar de uma hegemonia, a
forma do poema de vanguarda velou sua expressividade, mas de maneira a manter sua estrutura e
racionalidade. Inspirados pelo esforço de modernização do país, com doses significativas do
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receituário desenvolvimentista, as vanguardas deste período apontavam, ao menos nas suas
modalidades predominantes e mais organizadas, para um horizonte político. Vale destacar: político
e não somente estético. Contra aquilo que teria caracterizado o insulamento social do modernismo
de 22 e a regressão representada pela chamada geração de 45, em cujas formas se tentava resgatar
o verso e a métrica tradicionais praticados antes da Semana de Arte Moderna, os movimentos de
vanguarda pleiteavam a transposição das fronteiras da expressividade literária. A despeito das
diferenças de acento e elipse, de estilo e locução, entre a “instauração práxis” de Mário Chamie e o
“plano piloto” do trio concretista, tratava-se do anúncio de uma mesma problematização social. Em
seus manifestos, programáticos ou mesmo quando restritos a meros acenos de bravata, a autonomia
da arte colocava-se a serviço de intenções espraiadas à totalidade da sociedade, seja pela enfática
defesa da palavra, do “espaço em preto” e de sua potência semântica (CHAMIE, 1974: 21), seja
pela “estrutura-conteúdo” do poema concreto, um “objeto em e por si mesmo, não um intérprete de
objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas” (CAMPOS et ali, 2006: 216). Humor
típico das vanguardas, invariavelmente semelhante no tempo e espaço. Captada primeiramente nos
anos que antecederam à Primeira Grande Guerra na Europa de Marinetti e seus companheiros, a
recusa em se manter no plano da expressão define uma atitude estética orientada pela imagem de
uma violenta ruptura histórica. Daí o empréstimo tomado do conceito político de vanguarda.
Despojada de uma história que servisse de parâmetro prático, a versão artística do conceito
padeceria, já na sua origem, da abstração a que eram forçados os movimentos diante do vácuo
aberto por um discurso sem passado. A declinação do tempo da vanguarda revela-se na conjugação
de um futuro presentificado. A essa constante operação de antecipação corresponderia a
precedência da “metalinguagem em relação à criação”, do primado do “projeto sobre a obra”
(PERLOFF, 1993: 169), procedimento observável não só no Futurismo italiano, mas em todo pleito
artístico que reivindique, a partir de então, o pertencimento ao universo das vanguardas. Talvez
justamente por isso o “manifesto”, como destaca Perloff, tenha se tornado um gênero à parte,
liberto do compromisso em comunicar a obra por vir. A invenção de um gênero literário dessa
natureza define a vanguarda artística em uma de suas dimensões mais importantes, a da relação
com o mundo público.
Contemporânea da eclosão dos movimentos de vanguarda nas décadas de 10 e 20, a
linguagem romântico-simbolista, sobretudo em seu solipsismo e rejeição da civilização, expressava
uma profunda incongruência com a política. O “perfeccionismo moral” de seus principais
representantes não deixava esconder o impasse, cada vez mais dramático, que a imaginação poética
enfrentava em meio ao processo de intensa transformação social da passagem do XIX ao XX.
(HAMBURGUER, 2007: 123). Na opacidade desses novos tempos, a autonomia da arte, fruto do
esteticismo do final do XIX, teria sido confundida com a autonomia do artista. O poeta como
“homem representativo” ou “artista herói” (Idem: 133) juntava-se à percepção decadentista da
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época. Pela idealização do passado e sem prestar homenagem ao liberalismo, que lhes teria
garantido amplo universo de afirmação individual, os poetas do romantismo-simbolista, como os
primeiros vanguardistas, mantiveram afinidade com o pensamento autoritário, um “primitivismo de
direita” consoante à critica da prevalência econômica da vida burguesa (Ibidem: 121). Avesso ao
caráter abstrato das utopias socialistas, esse passado, mais concreto e com o mesmo potencial de
idealização, “repositório de fragmentos palpáveis à imaginação” (Ibidem: 150), transforma-se em
uma curiosa e contraditória preparação para o modernismo e as vanguardas. Esse “uso negativo da
modernidade” (Ibidem: 151) revela o esgotamento a que estavam submetidos os poetas face à
“politização da arte” em curso: “Só bem poucos poetas opostos à estética romântico-simbolista
(...) acharam possível ser poetas continuamente; muitos mais perderam o ímpeto não por causa
das pressões econômicas ou políticas, mas por causa da profunda desconfiança na imaginação
autônoma e em suas afinidades atávicas.” (Ibidem: 155). Agrupados em reserva de privacidade, a
despeito da simpatia mantida com ideologias extremas - mas sempre, importante lembrar, fora dos
seus poemas -, os poetas da imaginação simbólica abandonaram seu legado no trânsito da história.
Laçada pelo novo ímpeto estético das vanguardas, a modernidade agora ganha corpo em seu salto
em direção ao abstrato, o tempo do presente futuro.
No calor do renascimento, nos 60, das movimentações daquele “ímpeto” disruptivo, de
acordo com o clássico ensaio de Enzensberger sobre o tema (1971), a inegável associação com a
política faz da vanguarda artística um conceito contestável. Ao contrário de seu contexto político,
retirado, primeiramente, da estratégia bélica para depois ser deslocado à ação revolucionária, o
conceito padece, nas artes, da indeterminação sobre qual seria o oponente a ser combatido. Tanto
no teatro de operações de guerra quanto na política o conceito designa um “adiante” postado frente
ao antagonista interno ou externo, em relação ao qual o sentido e valor da ação encontram lastro.
Na ausência de “combate”, a temporalidade estética da vanguarda se enlaça na aporia de não poder
prescindir de um jogo infindável de auto-referências e de somente ser capaz de definir seu
antagonista no a posteriori. (Idem: 97-98). Ainda segundo o ensaísta alemão, “um movimento
semelhante conduz do conhecido em direção ao desconhecido e que, em conseqüência, só os
retardatários podem localizar sua posição.” (Ibidem: 98), o que explicaria o teor sectário dos
grupos de vanguarda. A definição dessa “posição” seria feita retórica e doutrinariamente,
estabelecendo “o que amanhã vai ter valor e ao mesmo tempo se sujeita, disciplinada e
passivamente, aos ditados de um futuro que ela mesma decreta.” (Ibidem: 101) A prevalência do
“projeto sobre a obra” (PERLOFF, 1993), concretizada nos manifestos do Futurismo italiano, pode
ser localizada em todas as propostas de arte de vanguarda. Isto porque sua temporalidade, firmada
em uma permanente antecipação do futuro, carrega em si um anacronismo inevitável, a se notar
pelo caráter a-histórico das polêmicas entre os movimentos de vanguarda. Herdeira da análise
benjaminiana, a idéia de que “o autor começa a perder a confiança na posteridade”
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(ENZENSBERGER, 1971: 94) se aproxima da tese sobre o fim da aura da obra de arte na época de
sua reprodutibilidade técnica. Haveria, pois, uma afinidade entre essa perda de confiança e a
retirada do objeto estético de seu “invólucro”, com a conseqüente destruição de sua aura,
“característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é
tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único.” (BENJAMIN,
1994: 170). Para Ezensberger, espécie de protótipo da mercantilização da arte, as vanguardas
teriam, no momento mesmo de sua aparição, uma “clientela”. Sua temporalidade converteria a
historicidade da arte em um “fenômeno econômico tangível” (ENZENSBERGER, 1971: 94), em
uma “especulação comercial, de modo que o futuro de uma obra se quotiza como se fosse um valor
da Bolsa.” (Idem: 95). No lugar da “rivalidade histórica para alcançar a posteridade”, finalidade
do artista no contexto da tradição, a “rivalidade comercial por alcançar o mundo contemporâneo.”
(Ibidem: 94).
Se, por um lado, a vanguarda estética fez surgir as aporias de sua temporalidade na
mercantilização da arte, a “estetização da política”, por outro, que Benjamin identificava como
qualidade fascista por excelência, realizou o afeto de ordem totalitária subjacente ao acossamento
da poética romântico-simbolista. O contraste entre as exigências do mundo e da imaginação não
desembocaria em um impasse estético. As vanguardas do início do século XX são coadjuvantes
dessa tensa relação com a “política absoluta” (HAMBURGUER, 2007). Nas margens do poema e,
sobretudo, sobre a consciência do poeta, a radicalização da história ganhou existência estética. É
nesse sentido que a aversão romântico-simbolista ao mundo público pôde balizar, pelas sombras de
uma desconfiança cada vez mais explícita, o caminho para a emergência e consolidação dos
movimentos de vanguarda. O “perfeccionismo moral”, traço que, para Hamburguer, teria
caracterizado essa aversão à civilização, foi certamente oposto à “imunidade moral” da crença
cientificista inscrita na defesa do “experimentalismo” vanguardista (ENZENSBERGER, 1971:
107). A “politização da arte”, que havia colocado a lírica romântico-simbolista em crise, tornaria
possível uma outra efetividade história, a “estetização da política”. O subjetivismo dos poetas da
imaginação foi aprisionado, às avessas e como matéria a ser destruída, pela linguagem futurista. Os
recursos de minimização da polissemia subjetiva dos “manifestos” se fizeram acompanhar, de uma
parte, pela destruição da sintaxe da poética tradicional e, de outra, por uma atitude performática que
impunha o reconhecimento do tempo e espaço reais, uma “estética situacional” animada pela tarefa
de incluir elementos do mundo extraliterário (PERLOFF, 1993: 203) em uma teatralização da
política (Idem: 157). O princípio “violência e precisão” dos “manifestos” estava conceitualmente
condicionado ao estabelecimento de uma cena na qual o artista conclama seu público a aderir ao
fluxo de suas idéias. Por isso a ênfase nos vazados em branco da página, em sua diagramação e
tipografia como forma de ataque à “integridade do verso”; na enumeração dos objetivos para
transmitir aos leitores o conteúdo prático em jogo; no improviso de ribalta e sua abertura à surpresa
18
(Ibidem: 170-177). Contundente confirmação da conhecida crítica benjaminiana (e ainda
atualíssima), tais recursos de composição estetizariam a política, tentariam cooptar o ânimo das
massas em favor de uma plena identificação com as cristalizações da realidade. A mudança da
função social da arte moderna, fundada na política e não mais no ritual, designaria a supremacia da
reprodutibilidade técnica na própria organização da percepção, acarretando o surgimento de um
anseio social de “fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’”, de “possuir o objeto, de tão perto
quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na reprodução.” (BENJAMIN, 1994: 170)1.
A conjunção histórica um tanto paradoxal entre um subjetivismo lírico exacerbado e
propositalmente alheio às mudanças na estrutura social, ao menos até onde conseguia reunir forças
para resistir, e a visada objetivista dos “manifestos” futuristas pode ser compreendida mediante os
processos de intensificação axiológica da política e da esfera artística. Na feliz expressão de
Hamburguer (2007), a equação “poesia absoluta e política absoluta” (Idem: 117) refletiria a
crescente “politização da arte”, contra a qual se punham poetas como Yeats, Rilke e Valéry2, o que
teria ajudado a desencadear, num segundo momento e com uma coerência contumaz, a “estetização
da política”, consagrada pelos primeiros grupos de vanguarda. Nesses termos, não há razão que
justifique a separação entre arte e política na análise dessa dupla intensificação, determinada, ao
que tudo indica, por um fenômeno histórico de maior amplitude. É o reconhecimento da
permanência desse fenômeno que nos autoriza a situar, no centro da crítica, a categoria de
totalidade social, projetar as contradições dessa história no plano de nossa atualidade. Trata-se,
portanto, de uma posição distinta do arcabouço teórico que professa a “doxa” científica – não
diletante e nem escolástica -, circunscrita pelo foco nas relações objetivas de um campo social
autonomizado, como seriam a arte e a política. Obviamente, não há, aqui, qualquer tentativa de
refutar por completo a validade desse arcabouço. Que a “estética pura” seja o resultado de um
processo de “des-historização” das obras e do “olhar”, isto é, da produção e recepção das formas
artísticas, nada a contestar. Sua “gênese histórica” certamente requer a análise da constituição de
um “campo” específico, com agentes, técnicas e conceitos determinados, uma “circularidade”
interna de produção e consumo das obras sujeita a objetivar uma “história da arte” dentro dos
1
Essa proximidade com o objeto somente pode ser reivindicada com a assimilação do desenvolvimento
técnico. No cinema, atenta Benjamin, modalidade que carrega todo o processo histórico de assimilação
técnica em sua linguagem e discurso, a atuação dos atores é radicalmente modificada. À frente de uma
câmera, o ator é capturado em seu instante de incerteza. Sua alienação se revela durante e depois da captura
de sua imagem. Durante, quando sua interpretação se dá diante de um aparelho e sem saber se ela constitui o
registro definitivo da cena, donde a leitura de que o cinema tornou “mostrável a execução do teste”
(BENJAMIN, 1994: 179). Depois, quando os processos de decupagem e montagem imprimem no material
um significado narrativo totalmente descontínuo em relação ao que poderia o ator ter desejado atribuir ao seu
personagem. O ápice da alienação seria alcançada pela “estetização da política”, que, por sua vez, exigiria a
guerra, único modo de unificar a totalidade do desenvolvimento técnico sem, com isso, transformar as
relações sociais de produção. Apenas a “politização da arte” poderia impor, segundo Benjamin, um
obstáculo à tendência moderna ao fascismo.
2
Novamente, é de Hamburguer (2007) a ressalva sobre as diferenças entre eles, sobretudo se as tradições
políticas nacionais desses poetas forem levadas em conta.
19
parâmetros de uma “cumulatividade”, perspectiva a partir da qual o discurso em defesa do primado
da forma – “esteticismo” – é entendido como expressão da autonomização do campo, de seu
“fechamento” a ingerência e influência de outros campos, sejam eles econômico ou político.
(BOURDIEU, 1996: 319-347). Embora posicionada na antípoda do que pretendemos trabalhar
nesta tese, essa sociologia do “habitus” oferece um contraponto crítico a análises exclusivamente
conceituais que, apesar das boas intenções e do engajamento intelectual de seus autores, incorrem,
muitas vezes, em equívocos primários, não raro enviesados pelo nominalismo de seu aparato
interpretativo. Todavia, se respeitados os postulados metodológicos da sociologia do “habitus”, não
haveria como dar tratamento ao problema, a nosso ver antecipado pelas vanguardas artísticas, do
“estado de exceção” como princípio normativo do fenômeno político contemporâneo. Essa
incongruência e incapacidade teóricas poderiam ser resumidas com a seguinte questão: de que
modo conciliar os conceitos de “campo” e “estado de exceção” se um preconiza a prioridade
analítica das regularidades instituídas e reproduzidas por agentes no bojo de relações objetivas,
exatamente o que o outro suspende? Daí o valor heurístico da problematização sobre as vanguardas
estéticas e suas relações com a política. Em seus “projetos”, “experimentos” e na forma de
“combate” que tentaram marcar em suas obras, elas evocam a emergência do “estado de exceção”,
indicam a dimensão totalizadora do poder.
Entretanto, em nome da prudência, convém fazer novo questionamento: como a linguagem
poética, justamente a mais polissêmica, pôde ter se transformado em paradigma político? A recusa
da mimesis, traço definidor da poética contemporânea (BADIOU, 2004), parece responder a um
dos principais pontos desta questão. A negação da representação e a intensiva auto-referência dos
conceitos da arte moderna remeteriam a um postulado crítico, o “desvelamento de seu processo de
produção” (SAFATLE, 2008: 181). A anulação deste postulado crítico consistiria em uma das
dimensões do cinismo enquanto “categoria” de análise da “dinâmica própria dos processos de
racionalização social que parecem constituir o fundamento de formas hegemônicas de vida na fase
atual do capitalismo.” (Idem: 201). Mas o cinismo está longe de explicar a razão por que ou os
processos mediante os quais a exacerbação da linguagem se converteu em paradigma do poder, tese
central do nosso estudo. Esclarecedora nos anos gloriosos do Welfare, atualmente a linguagem
parece representar a si mesma, no jogo circunstancial das incertezas políticas ao redor das
fundamentações liberais do discurso jurídico, como expressão direta do mundo social. Na condição
de última representante da história, à linguagem só restaria funcionar, colocar em operação as
modalidades de objetivação social segundo a lógica das variações formais de sua estrutura. Não é
sem propósito a adoção, aqui, da concepção estruturalista de linguagem para a compreensão do
fenômeno político contemporâneo. As coordenadas contidas nas premissas de base da análise
estrutural promovem uma descrição precisa da lógica dos mecanismos de sujeição atualmente
predominantes. Isto porque o dispositivo contemporâneo de governo tem exigido cada vez mais
20
abstrações socialmente vinculantes. O ambiente experimental do laboratório, as técnicas de
autocontrole das variáveis, presente em inúmeros campos de investigação, inclusive com
freqüência e de um modo camuflado também nas humanidades, constituem indício dessa lógica.
Para destacar ainda mais sua natureza e sem qualquer adesão aos exageros de uma crítica sem
medidas, por que não a hipótese de um “estado de exceção” permanente? A plena equiparação do
poder com a abstração do pensamento não reforçaria a validade dessa hipótese?
Sem dúvida, não são poucas as dificuldades em traçar um plano de exposição e análise que
permita trabalhar com o horizonte de um regime de suspensão da lei no Estado democrático de
direito. O controle centrado na forma, seja ela jurídica ou literária, seja política ou teórica,
configura o princípio estruturante desse regime. Sua reversibilidade discursiva e sua operação
permanente de inversão gramatical da relação social entre sujeito e objeto não impõe o
estabelecimento de uma morfologia exaustiva, posto que esse princípio é engendrado por uma
espécie de contorção incessante das formas. Não é à toa que a crítica da ideologia tenha se servido,
cada vez mais, do paradoxo (e se perdido nele, em resignação) para figurar os extremos da política,
tanto a emancipação quanto a servidão, a civilidade e a barbárie. Daí por que, em sua vocação de
presságio, o poema de vanguarda entre nós tenha reivindicado um estatuto de gramática. Da
fisionomia concreta da sintaxe à semântica práxis da palavra, conflitos programáticos entre os
movimentos não devem ocultar o diagnóstico que compartilharam e, sobretudo, o clima de época
que figuraram. Na ante-sala do regime militar, as vanguardas brasileiras deram forma ao que, em
pouco tempo, serviria de modelo aos dispositivos de repressão, à realização estatal de algo próximo
da “função poética” da linguagem, ou seja, à plena objetivação política da projeção do “princípio
de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação” (JAKOBSON, 1974: 130).
O ideal de um discurso habilitado a incluir, em seus enunciados (“eixo da combinação”),
todo um paradigma (“eixo da seleção”) somente é imaginável a partir de uma lógica específica, a
do poema, e seu princípio, o “estado de exceção” (AGAMBEN, 2002a), o que explica o valor
estratégico da problematização da vanguarda estética para a exposição das categorias que instituem
a racionalidade de governo da atualidade. O poema de vanguarda carrega em si a configuração do
estado de exceção, identifica uma topologia da linguagem pela construção de sua alteridade
absoluta, o real pré-simbólico. Como espaço de governo, o “estado de exceção” promove a
identidade do sujeito mediante uma aproximação com o objeto, suporte de sua afirmação
existencial. Nos termos de seu ideólogo, identidade instituída pela decisão sobre a suspensão da
21
lei3. Na tradução de Agamben do conceito schmittiano, o soberano dependeria, em uma espécie de
atribuição ontológica do Direto, de uma “vida” cuja morte não seria passível de responsabilização
ou de ser incorporada ritualisticamente em uma ordem de sentido. Por isso a designação
qualificada, a “vida nua”. Segundo a perspectiva que procuramos propor até agora, a soberania
pode ser compreendida como a extração de um modo de relacionamento puramente gramatical,
apreensível por um dispositivo teórico auto-referente, o formalismo. Sua crítica pede a análise da
objetivação social dos instrumentos de controle e dominação, a partir da hipótese da vigência de
um poder estruturado como uma linguagem.
Nesta perspectiva, o filósofo italiano é novamente quem melhor oferece uma articulação
entre forma literária e poder soberano. A característica primordial do discurso poético estaria no
fato de ele ser marcado pela “tensão e o afastamento (e, então, também na interferência virtual)
entre o som e o sentido, entre a série semiótica e a série semântica.” (AGAMBEN, 2002b: 131).
Em comparação à prosa, o único critério distintivo seria a possibilidade de “enjambement”4, figura
retórica por meio da qual a relação entre a série métrica e a série semântica se torna “indecidível”,
outra formulação para a função poética de Jakobson. O poema constitui-se como uma “organização
que se funda sobre a percepção dos limites e das terminações que definem, sem jamais coincidir
completamente e porque em luta diária, as unidades sonoras (ou gráficas) e as unidades
semânticas.”5 (Idem: 132). Na medida em que é a “última estrutura formal perceptível em um texto
poético” (Ibidem: 134), o “final do verso” ou o “fim do poema” ganha uma importância
fundamental. É ele que engaja o discurso em uma virtualidade indecidível, ao mesmo tempo em
que lhe invoca um “estado de urgência”, uma “saída em suspenso” (Ibidem: 136). A estrutura
formal do poema pode, nestes termos, ser associada ao “estado de exceção”. Agamben chega a
dizer que o projeto de um língua pura somente é concebível a partir da referência ao poder
soberano (AGAMBEN, 2002a). Acrescentaríamos: o poder soberano é a solução para o problema
da indecidibilidade do discurso poético do mesmo modo que a estrutura formal do poema se
equipara à positivação jurídica do estado de exceção.
Posto isto, fica claro que a problematização sobre o estado de exceção remete, em última
instância, à relação entre verdade e linguagem. Por força da tradição e de certos automatismos
universitários, é como matéria filosófica que esta relação é imediatamente formulada. Este vigor de
taxionomia acadêmica oculta a natureza histórica do problema. Não se trata apenas de resgatar a
verdade como categoria crítica, mas de realizar uma análise da configuração social em que ela
3
“É soberano quem decide o estado de exceção. Esta definição é a única que faz justiça ao conceito de
soberania como conceito limite.” (SCHMITT, 2001a: 23)
4
“Entende-se por enjabement o transbordamento sintático de um verso em outro: a pausa final do verso
atenua-se, a voz sustém-se, e a última palavra de uma linha conecta-se com a primeira da seguinte,
estabelecendo uma ruptura da cadência determinada pela simetria dos segmentos ou gerando a mudança
rítmica da estrofe.” (MOISÉS, 2004: 143).
5
Todas as traduções das citações que constam na tese são de minha autoria e responsabilidade.
22
cristaliza-se em paradoxo no ato de enunciação política do discurso, como se a ideologia se
objetivasse na teoria forjada para criticá-la. Daí por que muitos intelectuais recorram a um
raciocínio apoiado em uma espécie projeção de espelhos paralelos, no entanto preocupados em
interceptar angulações outras que representem, ainda que negativamente ou por meio de
incorreções lógicas, a autenticidade política que seria revelada de maneira sempre fugaz para-além
das imagens. Mais uma vez, a linguagem fornece a medida da gravitação desta configuração. Se o
poema moderno, como propõe Badiou (2004), “identifica a si mesmo como pensamento” (Idem:
34), e se a matemática, modelo racional para os antigos, “é atravessada por um princípio de
errância e de excesso que não consegue avaliar” (Ibidem: 34), então, estaríamos diante de uma
profunda inflexão das relações entre linguagem e verdade. Ainda segundo Badiou, tanto no poema
quanto no matema, a verdade é o efeito de uma operação, de um “procedimento” (Ibidem: 36). Para
a filosofia, importaria o ponto em que ambos encontram seu “inominável”. A “fidelidade dedutiva”
definiria a identidade matemática; seu inominável seria a consistência, ou seja, “uma teoria na qual
existem enunciados impossíveis” (Ibidem: 39). A “mostração das potências da própria língua”
caracterizaria o poema (Ibidem: 39); seu inominável, a capacidade de fixar a infinitude da língua.
Disso Badiou demarca o lugar da filosofia: “Entre a consistência do matema e a potência do
poema, esses dois inomináveis, a filosofia desiste de estabelecer os nomes que vedam o que se
subtrai. Ela é, nesse sentido, após o poema, após o matema, e sob a condição pensante deles, o
pensamento sempre lacunar do múltiplo dos pensamentos.” (Ibidem: 42).
Obviamente, não é objetivo deste texto discutir o lugar da filosofia como pensamento lacunar
do múltiplo. Aqui, interessa aproximar este problema filosófico da questão sobre o afeto das
vanguardas artísticas, também de Badiou, e sua relação com a política do “século” (BADIOU,
2002). Nesta aproximação, é possível afirmar que o afeto que teria caracterizado o “século” diz
respeito a uma espécie de investida, sempre motivada, sobre os “inomináveis”. Uma dimensão, por
assim dizer, puramente objetal que responderia à exigência de “fidelidade dedutiva”, própria da
linguagem matemática, pela fixação da infinitude da língua, prerrogativa do poema. Inversão da
tese de Badiou. A verdade já não seria mais um deparar-se com sua própria singularidade, encontro
onde se “enuncia, como impotência, que uma verdade existe” (BADIOU, 2004: 38). A teoria
enquanto operação de vinculação entre pensamento e verdade abandona seu distanciamento, como
se ela exercesse uma função de exteriorização do objeto. Seu reconhecimento pelo poder já não é
tão tácito e pouco massivo. Outrora preservada do baixo contínuo dos mecanismos de controle
social, a teoria torna-se, cada vez mais, modelo de objetivação do poder.
A relação entre teoria e poder consiste em uma temática que atravessa um extenso espectro,
cuja integração, no âmbito de uma compreensão interna aos conceitos, seria com certeza arbitrária.
Destacar o trânsito desta temática nas diferentes esferas sociais para, em um segundo momento,
propor uma unidade entre suas significações, não parece o recurso mais adequado a ser adotado.
23
Assim como o problema da estrutura formal do poema serve, inicialmente, para a compreensão da
lógica do estado de exceção, outras relações de contraste e vizinhança podem ser estabelecidas sem
que isto signifique, necessariamente, pressupor um fundamento objetivo comum. Por outro lado,
esta ausência de fundamento não aponta para uma desconsideração dos processos de mediação
entre as esferas sociais. São justamente estes processos que devem ser investigados. Nesta
perspectiva, a hipótese do discurso teórico transformado em modelo de objetivação do poder
designa um formalismo subjacente, ou seja, uma operação simbólica de formação do juízo fundada
em uma identificação com o objeto. Das correntes intelectuais do último século, o estruturalismo
francês representa claramente a lógica e os princípios desse formalismo.
6
“À medida que a nebulosa se expande, portanto, seu núcleo se condensa e se organiza. Filamentos esparsos
se soldam, lacunas se preenchem, conexões se estabelecem, algo que se assemelha a uma ordem transparece
sob o caos. Como numa molécula germinal, seqüências ordenadas em grupos de transformações vêm
agregar-se ao grupo inicial, reproduzindo-lhe a estrutura e as determinações. Nasce um corpo
24
Neste ponto, convém não seguir a justificativa presente no final da “abertura”. O argumento
é pouco convincente ao nos induzir a aceitar que a adoção de recursos de formalização matemática
deveu-se à extensão exaustiva dos mitos, que teria exigido uma “escrita abreviada, uma espécie de
estenografia” (Ibidem: 51). Ou seja, necessidades de comunicação e não imposições lógicas do
objeto. Se tomarmos as premissas contidas na exposição metodológica das Mitológicas, a direção
da relação entre teoria e objeto deve ser invertida: imposições lógicas do objeto projetam sobre a
teoria necessidades expressivas específicas, visto que, para continuarmos fiéis ao estruturalismo de
Lévi-Strauss, o “espírito humano”, finalidade última da antropologia, se revela em forma de um
“pensamento objetivado”. No método estrutural, como a “nebulosa”, as relações e regras sintáticas
das operações do pensamento ganham consistência à medida que se processam os conteúdos
semânticos dos eventos da história. Ao contrário do filósofo kantiano, o etnólogo não parte da
indagação sobre as condições a priori do pensamento, abre mão da universalidade para, ainda que
ela esteja em seu horizonte, deter-se nas condições locais da produção do entendimento coletivo.
Das representações empíricas, sensíveis ao entendimento e articuladas por uma lógica concreta, o
etnólogo destaca as mais contrastadas, inclusive em comparação ao seu próprio sistema
interpretativo, “na esperança de que as regras metodológicas que lhes serão impostas para
traduzir esses sistemas nos termos de seu próprio, e vice-versa, exponham uma rede de imperativos
fundamentais e comuns: ginástica suprema em que o exercício de reflexão, levado aos seus limites
objetivos (...) faz saltar cada músculo e as juntas do esqueleto, expondo assim os lineamentos de
uma estrutura anatômica geral.” (Ibidem: 30). O etnólogo e o nativo manteriam, entre si, relações
de alteridade e, deste modo, revelariam o substrato comum que permite a comunicação entre eles:
as leis da linguagem. Daí o elogio das Mitológicas à música sinfônica. Livre da representação, a
dimensão imediata da música não seria, como na pintura, a natureza, mas sim a ordem simbólica da
cultura. A música procederia como os mitos, articularia reciprocamente as duas dimensões da
linguagem (sincronia e diacronia) a partir de um lugar intermediário “entre o exercício do
pensamento lógico e a percepção estética” (Ibidem: 33). Toda a crítica de Lévi-Strauss às
vanguardas artísticas pode ser sintetizada no seu ataque à música serial e à música concreta. Ambas
responderiam à “utopia do século” de procurar reduzir, em uma única dimensão, a totalidade do
sistema de signos, uma pela matéria (concreta), outra pela forma (serial). (Ibidem: 44). Lévi-
Strauss não reconhece na arte moderna a qualidade que, a seu ver, só poderia ser revelada pelos
mitos e pela música sinfônica, o que seu amigo Jakobson definiu como a função poética da
linguagem. Seu conhecido desprezo pelas idéias dos movimentos de vanguarda não exclui,
entretanto, o objetivo de sintetizar, por meios expressivos, uma realidade heterogênea e
multidimensional. A diferença reside no fato de Lévi-Strauss deslocar a possibilidade de realização
multidimensional, cuja organização é revelada nas partes centrais, enquanto em sua periferia reinam ainda
a incerteza e a confusão.”(LÉVI-STRAUSS, 2004: 21).
25
da “utopia do século” para a teoria, esforço constatável na proposição da “relação canônica” dos
mitos, que expressaria, à maneira de uma equação matemática, algo como uma efetividade da
função poética jakobsoniana7. A reciprocidade entre as dimensões da linguagem serviria para dar
solução ao problema da contradição, objetivo último dos mitos. Seu “conjunto de regras destinadas
a tornar coerentes elementos inicialmente apresentados como incompatíveis ou até mesmo
contraditórios” (LÉVI-STRAUSS, 1986: 248) somente poderia ser capturado pela teoria por
intermédio de uma formalização, esquemática em um primeiro momento, como nos “mitemas” e na
“relação canônica”, mas com o propósito de acentuar seu potencial dedutivo através da expansão
da “nebulosa” estrutural.
O estruturalismo de Lévi-Strauss habita o campo da relação entre linguagem e pensamento e,
segundo o enquadramento interpretativo que tentamos introduzir neste texto, entre poder e
linguagem. Na antropologia estrutural, as relações de homologia, ao contrário das vanguardas
estéticas, não remetem ao mundo social, a título de doutrina ou performance. O etnólogo
providencia um processo empírico que, controlado pelas premissas do método estrutural,
evidenciaria sua identidade com o objeto pesquisado. A prevalência sintática do método diz
respeito a uma concepção que vê a teoria como uma aplicação da função simbólica. Da mesma
forma que o xamã ou o psicanalista, o etnólogo circunscreve simbolicamente uma instância objetal,
ainda não assimilada pelo seu sistema cultural, mediante uma constante “empresa de identificação”
(LÉVI-STRAUSS, 1974). Isto somente é possível pela incidência da linguagem, pela sua “eficácia
simbólica” (LÉVI-STRAUSS, 1975), que, no seu próprio exercício, objetiva as categorias e as
regras do pensamento. A teoria consistiria em mais um artefato cultural, tão verdadeiro quanto os
mitos analisados. A partir da existência de homologias estruturais entre elementos semanticamente
distantes, o método levi-straussiano processa uma operação conjuntiva. Sujeito e objeto tornam-se
indistintos como supostamente o eram no momento da passagem da ordem natural para a cultura,
cuja compreensão se dá apenas em termos lógico-estruturais, nunca pela narrativa histórica.
A sutileza do argumento, o fôlego enciclopédico da compilação dos dados e a elegância
humanista do estilo de Lévi-Strauss oferecem uma barreira de difícil transposição. A simples
atribuição de um idealismo ou formalismo ao antropólogo francês movimenta-se sobre um chão
frágil. Que a fusão entre sujeito e objeto revele um inegável idealismo, de forte reminiscência
7
“Enfim, se se chega a ordenar uma série completa de variantes sob a forma de um grupo de permutações,
pode-se esperar descobrir a lei do grupo. No estado atual das pesquisas, deveremos nos contentar aqui com
indicações bastantes aproximativas. Quaisquer que sejam as precisões e modificações carecidas pela
fórmula abaixo, estamos desde logo convencidos que todo mito (considerado como o conjunto de suas
variações) é redutível a uma relação canônica do tipo: Fx (a) : Fy (b) Fx (b) : Fa- x (y), na qual, dois
termos a e b sendo dados, simultaneamente do mesmo modo que duas funções, x e y, destes termos, afirma-se
que existe uma relação de equivalência entre duas situações, definidas respectivamente por uma inversão de
termos e de relações, sob duas condições: 1. que um dos termos seja substituído por seu contrário (na
expressão acima: a e a-i); 2. que uma inversão correlativa se produza entre o valor de função e o valor do
termos de dois elementos (acima: y e a)” (LÉVI-STRAUSS, 1975: 263)
26
eleatista (LEFEBVRE, 1968), nada a discordar. É preciso reconhecer, no entanto, a atualidade do
estruturalismo de Lévi-Strauss, aceitando, sobretudo, sua reivindicação materialista. Teve lugar
neste estruturalismo a formação de um discurso teórico amplamente instrumentalizado para a
pesquisa em diversas áreas disciplinares. Sua abrangência e pretensão teóricas de dar formas
científicas ao objeto da problematização mítica, à questão da passagem da natureza para a cultura,
caracterizam um discurso com a mesma organização funcional da ideologia na atualidade. Não
seria a antropologia um saber sobre as modalidades de exteriorização das categorias do espírito, o
“pensamento objetivado”? Por que, então, não compreender o estruturalismo como uma figuração
teórica dos mecanismos de objetivação social centrados na linguagem? O advento e a generalização
destes mecanismos seriam contemporâneos e, na análise de Perry Anderson (1984), também
responsáveis pela perda da hegemonia marxista na interpretação das relações entre sujeito e
estrutura. O declínio do marxismo teria propiciado a preponderância de diversas manifestações do
formalismo no centro da produção teórica, uma ruptura de paradigma logo batizada, a “virada
lingüística”.
O paradigma da linguagem, como contraposição crítica à tradição marxista, constituiu um
eixo de filiação de inúmeros autores, em contextos nacionais muito diferentes, o que, desde já,
desestimularia qualquer investimento cartográfico sobre a totalidade da sua produção teórica. No
plano político-social, o movimento de derrogação do materialismo histórico teve paralelo na
reestruturação do Estado, uma substancial transformação da correlação de forças entre as demandas
do Capital e dos trabalhadores. Nas palavras da terminologia mais utilizada para descrever este
processo, a crise do Estado Providência refletiu o retrocesso dos direitos sociais, o retorno da velha
doutrina liberal e a moralização das desigualdades de fato. Retorno que, ao contrário de
simplesmente reconstituir uma ordem antiga, acentuou determinados traços do ideário liberal
clássico, dando realidade a um novo liberalismo, a um neoliberalismo. A despeito do maciço
trabalho de autores que procuraram fundamentar a democracia liberal por meio da linguagem, este
paradigma, apoiado no descentramento do mundo do trabalho, parece configurar o campo atual das
práticas de poder. Mas justamente no ponto em que a “virada lingüística” se mostra teoricamente
ultrapassada é que ela passa a ter valor histórico-descritivo. Talvez a referência que expresse mais
intensamente esta atualidade anacrônica seja a teoria habermasiana, em particular, a linha que une
os pólos de seu percurso formativo, a passagem da tematização da constituição e mudança da esfera
pública burguesa para o enfoque na fundamentação normativa das democracias liberais. Vaticínio
sem vanguarda, a teoria do agir comunicativo antecipa as coordenadas do espaço político que se
seguiu após o desmonte do Direito social, novo espaço social da comunicação, onde se exerce o
uso público da razão pela distribuição das competências morais-cognitivas, mas, ao contrário da
universalização do estágio pós-convencional idealizada por Habermas, sem hierarquia ou escala de
valoração. Isto porque as “condições ideais de fala” retiram seu fundamento do vivente inscrito
27
ideologicamente no próprio nível da objetivação. O ponto geométrico da “ética do discurso”
habermasiana encontra sua extensão não em uma racionalidade dirigida pela busca do
“entendimento mútuo”, mas no substrato comum dos indivíduos, na “vida”. Agora, as
“competências”, sejam elas inatas ou adquiridas, pertencem ao repertório do poder. Colocadas em
discurso e operacionalizadas pelas “habilidades” que lhes seriam correlatas, as competências
compõem, em cada indivíduo, potenciais de aprendizado que, para usarmos a fraseologia da nova
tecnocracia do “desenvolvimento social”, dispõem o “capital humano” de uma nação, província ou
de qualquer instituição que em seus quadros conste algum vestígio útil do vivente. Da
racionalidade liberal validada intersubjetivamente ao “capital humano”, o poder encontrou na lisura
da linguagem o seu canal de transmissão com os atributos igualitários da espécie. Não haveria
homo, por menos sapiens que seja, sem qualidades concretas ou potenciais. O liberalismo que
ocupava ideologicamente o discurso ganha nova moradia sob o teto do vitalismo do indivíduo e das
populações. Para nos servirmos de Michel Foucault, trata-se de uma “biopolítica” do
“neoliberalismo” (FOUCAULT, 2004). A virtualidade abstrata da estrutura da linguagem, quando
deslocada pelo pragmatismo comunicativo, pôde encontrar na “vida” o seu sonho de objeto
Parte significativa das análises que acompanharam a transformação das modalidades de
acumulação capitalista nos últimos anos – afinal, não é disso que se trata? – tem a clara
preocupação em qualificá-las como acontecimento histórico sem precedentes. O caráter inédito
deste “novo capitalismo” (SENNETT, 2006) ganha discurso pelas interpretações que destacam o
aspecto “imaterial” (GORZ, 2005) da produção e, conseqüentemente, a indeterminação das
categorias que, na tradição marxista, fundamentavam a crítica ao capitalismo. Ou seja, a figuração
teórica do declínio do materialismo histórico encontra na linguagem o seu parâmetro, não mais
para justificar a racionalidade da democracia representativa, mas para descrever o ineditismo das
formas atuais de produção e acumulação. Este quadro diagnóstico é também beneficiário, de modo
mais direto, da vertente francesa da “virada”. A exacerbação da linguagem no estruturalismo
abriria caminho para um obscurantismo sem saída, presente nos privilégios dados à textualidade e
aos signos pós-estruturalistas desdobrados ao infinito. Segundo os seus principais representantes, a
linguagem serve como modo de repulsa generalizado. Parece, assim, adequada a interpretação que
reconhece nos pós-estruturalistas uma tematização dos dispositivos de poder da etapa atual do
capitalismo (SAFATLE, 2008: 18), ainda que seus autores tenham apostado na
“desterritorialização” permanente e, assim fazendo, não pudessem ter deixado de se aproximar das
“modulações” que, segundo eles mesmos constataram, definiriam a “geometria móvel” do
capitalismo contemporâneo (DELEUZE, 2004). Nesse sentido, a esquizoanálise de Deleuze e
Guattari é a contraparte clínica da objetivação da linguagem, de um formalismo radical identificado
com o poder. Nela se sedimenta a problematização mítica, os recursos de simbolização e a
gramática do método estrutural, mas agora a partir de operações sem lei, fluxos e cortes que dão a
28
direção de uma concepção totalizante e funcional da dominação, características facilmente
atribuíveis ao “estado de exceção” (AGAMBEN, 2002a). A esquizoanálise é a clínica afirmativa da
subjetividade do poder soberano e de seu correlato, a “vida nua”.
O paradoxo de uma crítica que se identifica com o seu objeto decorre do discurso teórico em
defesa do primado da linguagem. A partir dele, não há mais critério capaz de definir os agentes
sociais do conflito social. O anonimato e a nomeação difusa das relações de força que atravessam a
estrutura social são prerrogativas de um formalismo teórico que mimetiza os mecanismos de
sujeição opacos à consciência. Não raro, a natureza desse formalismo incita uma crítica sustentada
por uma ação classificatória, uma divisão de categorias com o propósito de estabelecer precisões
semânticas no plano conceitual e, deste modo, permitir a análise do paradoxo em que se instalou a
crítica8. Procedimento analítico que, a despeito de sua intenção, é capturado por uma mesma forma.
Investir sobre a forma lógica do paradoxo com o intuito de desmontar sua engrenagem não
implicaria reproduzi-lo? Sob os escombros da crítica, ainda há quem não meça esforços em
procurar a autenticidade política, com o recurso de uma espécie de sofística propositiva, um
detector de aporias com a finalidade de defini-las como a expressão evanescente do sujeito político.
O “dano” da “parcela dos sem parcela” da anti-filosofia de Jacques Rancière (1999) e o “real”
lacaniano, a impossibilidade da simbolização plena do inconsciente, somente para citar duas
referências entre tantos outras, não seriam ilustrações do aquartelamento da crítica na abstração da
linguagem? A compreensão da “virada lingüística” como discurso e ideário das modalidades
contemporâneas de dominação envolverá, no primeiro capítulo, a construção de uma articulação
entre seus principais representantes. Mas essa construção não pressupõe qualquer nominalismo
crítico (RABINOW, 2002), decorrente da aceitação do postulado da reflexividade total do mundo
8
Entre nós, um dos exemplos mais recentes pode ser observado em Safatle (2008). A seção que carrega essa
característica não à toa é intitulada “dividir em categorias”: “Mas para que este livro possa começar, faz-se
necessária uma precisão semântica. A pragmática da linguagem cotidiana usa o termo “cinismo” em
acepções diversas e nem sempre convergentes. O banqueiro que procura mascarar seus interesses
particulares de classe invocando valores universais é normalmente chamado de cínico, da mesma maneira
que o ex-diretor do Banco Central ao assumir abertamente que a universalização constitucional do acesso à
saúde é legítima e desejável, mas infelizmente deveria ser cortada da Constituição por ser racionalmente
impraticável nos próximos decênios. No entanto, no primeiro caso, o enunciado mascara a verdade presente
no nível da enunciação, enquanto no segundo não há operação alguma de mascaramento, nem precisaria,
pois o julgamento é absolutamente bem formado. Essas economias de discurso, por sua vez, não participam,
por exemplo, da lógica própria àquele que age legitimando ironicamente sua conduta a partir de valores que
ele mesmo julga falsos, porém, “necessários”, ou àquele que ostensivamente ridiculariza e ignora valores
consideramos fundamentais. Mas novamente, o uso cotidiano da fala não deixa de caracterizar tais posturas
como cínicas. Isso nos leva a uma necessidade prévia de sistematização daquilo que poderíamos chamar
atos de fala de duplo nível. Trata-se de atos de fala que tiram sua força performativa da distinção entre a
literalidade do enunciado e o sentido presente no nível da enunciação ou, ainda, de atos de fala que
conservam sua força performativa apesar dessa distinção entre letra e sentido. Podemos então propor,
como exercício de esclarecimento semântico, a constituição de uma taxionomia de atos de fala de duplo
nível. Taxionomia que visa dar conta das relações de literalidade do enunciado e sentido da enunciação nos
casos em que essas duas instâncias são diferentes.” (Idem: 27-28. Destaques do autor) A taxionomia
proposta prevê seis categorias, a saber: “a má-fé, a hipocrisia, a metáfora, os atos de fala indiretos, a ironia
e o cinismo”. (Ibidem: 28)
29
contemporâneo, a partir do qual todos os corolários caminham para a superação da diferença
epistemológica entre sujeito e objeto. Essa diferença é reiteradamente recusada pelas interpretações
dos fenômenos políticos ancoradas no paradigma da linguagem. Todo formalismo teórico está
incluído, ainda que virtualmente, nos padrões lógico-descritivos do exercício do poder. O primado
da linguagem não é apenas teórico, mas também normativo por engendrar a percepção, nem sempre
correta, da irrupção do objeto. Vale dizer, irrupção sob a égide do “estado de exceção”, este sim
factual e verdadeiro.
30
I. A objetivação social da teoria
T. W. Adorno
31
assertivas como esta tenham tomado mais força a partir da explicitação do estado de exceção
mundial imposto pela geopolítica – imperial, para alguns - norte-americana. Os confinamentos
arbitrários, a internacionalização do controle penal completamente indiferente à justificação
jurídica, o belicismo generalizado e sua desconsideração pelo princípio de autodeterminação
nacional parecem reforçar a idéia de que, ao contrário da perspectiva microfísica e relacional, como
a adotada por Michel Foucault, o exercício do poder teria se totalizado. Foucault também teria
reconhecido esta possibilidade no início dos 80, embora sem ter dado a ela maiores conseqüências
(AGAMBEN, 2002a). É relativamente recente o renascimento do interesse por uma abordagem
que, reconhecendo o aspecto totalitário do poder, promova, na teoria, uma adequação das
referências conceituais para permitir sua análise, devidamente prevenidas, diga-se, pela crítica ao
socialismo. Sobre as ruínas do discurso marxista e na maioria das vezes sem aceitar filiação ou
proximidade com ele, esse novo campo teórico-político ocupa a cena, iluminado pelo clarão de um
mundo que se desvela violentamente. “Paixão pelo real”, diria Badiou (2002) sobre este afeto
contemporâneo, cuja expressividade não se encerra na política. Afeto das vanguardas artísticas, de
seu ataque incessante à mimesis, da destruição da tradição como acesso ao real histórico (BADIOU,
2004). Mas também afeto que põe em discurso novos sintomas clínicos, a conversão dos “novos
movimentos sociais” em administração institucional do interesse público, a premissa do Estado
como animador social e não como representação do princípio da soberania. Agora, a fragmentação
cultural como orientação e resposta à dita ilusão das “grandes teorias” já não é tão hegemônica
como antes. Diriam alguns que o pós-modernismo perdeu a realidade histórica que o sustentava.
Provavelmente. Frente aos fatos que se mostram diariamente, difícil defender conclusão contrária a
de que, finalmente, as contradições tomam forma e que, portanto, o conteúdo da história pode ser
doravante apreendido. Feliz paráfrase hollywoodiana para marcar a entrada neste tempo em
alvorada: “bem-vindo ao deserto do real” (ZIZEK, 2003).
A despeito desta linha de problematização sugerir adequação e pertinência, convém não
partilhar o mesmo afeto que a anima, pois nos atuais meios de sujeição social fundados em
princípios formais, no controle assemelhado a uma “geometria móvel” (DELEUZE, 2004), a teoria
transforma-se em modelo de objetivação do poder. O diagnóstico dos novos tempos passa a ser
parte do problema diagnosticado. A teoria como modelo de objetivação do poder não se limita a
um fenômeno da “modernização reflexiva” de que fala Giddens (1997). Acompanhar o trajeto
histórico da teoria não significa projetar, sem maiores mediações, o conceito no objeto. A teoria é
tanto uma figuração social como a realidade figurada. Inversão adorniana. A “ciência fetichizada”
e “seus formalismos” são expressões da totalidade social, sua reprodução mimética. Cumprem,
portanto, a regra de uma teoria crítica que Adorno dirige contra a concepção popperiana de ciência,
expressariam a “configuração do objeto na configuração da teoria” (ADORNO, 1994b). Em um
mundo onde os obstáculos à emancipação sugerem uma consistência quase lógica, não seria preciso
32
dar razão a Popper? A própria totalidade social não teria se ajustado à objetividade constituída pelo
“método crítico”? Este tipo de equivalência entre forma teórica e objeto presume a existência de
um poder totalitário, anunciada, como já dito, também por Foucault e desenvolvida mais
recentemente pelo filósofo italiano, Giorgio Agamben (2002a). A associação entre Direito e vida, a
vinculação da forma pura da linguagem ao corpo biológico como princípio ontológico de todo
ordenamento jurídico, é tomada de Agamben como referência deste poder. Isto significa reconhecer
que, para-além da esfera jurídica, o instante lógico de fundação da lei se generaliza, fenômeno
somente concebível a partir da idéia de uma racionalidade abstrata universalizada, na qual se apóia
a hipótese sobre a transformação do discurso teórico em modelo de objetivação social, fenômeno
que, aqui, recebe o nome de formalismo normativo.
Não é possível ignorar a filiação deste tipo de problematização. Há no “marxismo ocidental”
o arcabouço conceitual para a crítica da relação de identidade entre a teoria e as formas de
objetivação do mundo social. Neste sentido, a polêmica entre Adorno e Popper pode ganhar uma
significação mais atual e incisiva se não for negligenciado o fato de que também a enunciação
adorniana mantém a guarda de seu arsenal crítico sobre um lugar sem história. Convencido pelo
projeto, iniciado por Lukács (2003), de integrar o conceito weberiano de racionalização com o
marxiano de reificação, para Adorno, a razão, totalmente instrumentalizada sob o capitalismo
tardio, teria esgotado seu momento emancipatório, cristalizando-se em sua imanência regressiva. O
esclarecimento alcançaria seu crepúsculo na formalização e anulação da faculdade de julgar: razão
instrumental ou abstrata, instância de cálculo e adequação esquemática entre meios e fins. Contra-
evidência literária, o estilo analógico da escrita da Dialética do esclarecimento, saturado de
imagens e metáforas, sem grandes preocupações com uma contextualização historiográfica, revela
seu teor de alegoria crítica. A história transformada em alegoria impõe uma nova necessidade
teórica. Daí por que estender para-além de Weber e Marx a busca do alicerce antropológico da tese
da dominação como postulado da razão. Não é por acaso que a Dialética o tenha encontrado nas
categorias extemporâneas da psicanálise.
A antropologia que permitiu a assunção dos regimes totalitários estaria intrinsecamente
ligada às modificações estruturais da ideologia, donde a importância em reposicionar o seu
conceito. A despeito do desgaste a que tem se submetido nas últimas décadas, a análise das
formações sociais da ideologia consiste neste arcaísmo teórico cujos efeitos são capazes de
objetivar o que, até então, se mostrava evasivo. Traço constitutivo da ideologia, a necessidade de
justificar-se, de insuflar na consciência a crença de sua adequação racional (ADORNO, 2004b:
434). Por isso o criticismo popperiano enuncia a nova configuração estrutural da ideologia. A
anulação da contradição e o constante esforço popperianos em verificar a validade dos enunciados
da ciência nada mais são do que sua expressão fisionômica. Nova não apenas porque diferente em
sua morfologia, mas, principalmente, em função da modificação de seu próprio referente. A crítica
33
adorniana a Popper deve ser compreendida neste campo. A ideologia sempre pressupôs a
consciência como o objeto da mediação entre poder e dominação. Para Adorno, não haveria por
que falar em “ideologia nacional-socialista”. Na Alemanha hitlerista, o exercício do poder se dava
diretamente, prescindindo da mediação da consciência. Trata-se de revelar o modo pelo qual as
disposições subjetivas dos indivíduos foram conclamadas a participar dos estímulos de massa
emanados pela liderança política da pessoa do Führer. A profunda transformação da ideologia após
os regimes totalitários requereria a análise das “transformações antropológicas” que lhe deram
sustentação. (Idem: 436) Sua atualidade pode ser localizada nos avatares da “falsa consciência”.
Até então, a ideologia era concebida como processo de autonomização de um “elemento
intelectual”, cuja “falsidade” é necessariamente lastreada nesta “separação”, na “negação do
fundamento social” (Ibidem, 443). Após a injunção disruptiva da realidade dos campos de
concentração, a “falsa consciência” ajusta-se à sociedade. A defesa e autonomia da existência de
cada indivíduo seriam o seu princípio, “modelo de uma conduta que se submete à prepotência das
circunstâncias” (Ibidem: 445). O fundamento social reverte-se, assim, em regra. “A ideologia já
não é nenhum véu encobridor, mas simplesmente o rosto ameaçador do mundo” (Ibidem: 446). A
própria existência pronuncia imediatamente a ideologia. Este desvelamento ideológico seria uma
prerrogativa, segundo Adorno, das democracias contemporâneas, notadamente a democracia norte-
americana. Sua forma de dominação seria totalitária porque atingiria diretamente os indivíduos na
esfera privada. Corresponde a este regime de direitos e de controle individual, uma modalidade de
comportamento de massa que expressa claramente o conteúdo ideológico que já não precisa mais
da mediação da consciência: a “crença descrente” dos indivíduos “aferrados à pura existência” ou,
nas palavras de Sloterdijk (2003), a “falsa consciência esclarecida”.
Ainda que filiações teóricas possam ser traçadas aqui (e certamente o serão), a crítica à
ideologia constitui uma dimensão preliminar da análise. Porque determinado por um processo
global na abrangência, regional na incidência e individual na eficácia, a generalização do
formalismo teórico e sua conversão em mecanismo de controle social requer uma caracterização
extensa, que dê conta de conceitos vistos, muitas vezes, como antagônicos entre si. Se for verdade
que as formações da ideologia contemporânea prescindem da dimensão representacional, um
realismo com pretensões de identidade entre discurso e poder, então, mais do que nunca, é sobre a
própria teoria que a crítica deve se deter inicialmente. Isto, no entanto, não implica uma “nova
consciência frente à objetividade” (Idem: 41), uma postura de fidelidade infiel ao esclarecimento,
sarcástica na sua relação de apoio e de recusa calculada da tradição da crítica à ideologia, pois, uma
vez nesta identificação distanciada, nada impediria a cristalização de uma intelecção integrada,
ocultamente, ao objeto, esta sim “cínica” ao denunciar o “cinismo” do poder. Ao problema ainda
impreciso sobre a transformação da teoria em modelo de objetivação do poder, associaremos as
discussões circunscritas, nas ciências sociais, à suposta derrocada da categoria trabalho como
34
parâmetro de regulação e interpretação da sociedade contemporânea, em especial o deslocamento
realizado pelas teses sobre o primado da linguagem, paradigma amplo e multidisciplinar que se
convencionou chamar de “virada lingüística”. Este deslocamento não significou tão-somente o
enfraquecimento de uma tradição teórica. Com ele ganhou evidência o declínio político do
marxismo. Não é à toa que sua derrocada tenha sido acompanhada pela emergência contundente do
estruturalismo justamente no terreno em que seu domínio analítico era, até então, incontestável: a
hegemonia sobre a explicação da “natureza das relações entre estrutura e sujeito na história e
sociedade humanas.” (ANDERSON, 1984: 39). O caráter proteiforme do estruturalismo explicaria
o motivo pelo qual suas coordenadas foram ocupadas também pelo pós-estruturalismo e, do outro
lado do Reno, pelo monumental empreendimento teórico de Jürgen Habernas. A unidade
epistemológica entre estruturalismo e pós-estruturalismo seria garantida por uma série de operações
partilhadas e reforçadas mutuamente. A produção das premissas que organizam e sustentam este
campo indicaria a prevalência, segundo Perry Anderson (1984), de três corolários, a saber, a
“exorbitação da linguagem” (operação fundadora e pressuposta em qualquer análise estrutural), a
“atenuação da verdade” (desvinculação de qualquer relação de correspondência com a realidade)
e, por fim, a “causalização da história” (transposição para a história da transformação das
“condições de possibilidade” da língua como se fossem causas dos fenômenos de fala). (Idem: 40-
55). Do lado germânico, a configuração seria diversa, chegando mesmo a inverter os sinais da
vertente francesa da “virada”. Porém, ainda assim, Habermas participaria da mesma empreitada de
esvaziamento da tradição marxista, a despeito do seu programa de pesquisa ter sido auto-
designado, no final dos anos 70, como uma “reconstrução do materialismo histórico”.
O panorama desenhado por Perry Anderson e sua pretensão em atravessar o arco autoral da
tradição marxista do século XX, mediante uma crítica endógena aos fatores teóricos que a teriam
enfraquecido, merecem destaque. A erudição de sua análise, ao mesmo tempo precisa e
circunstanciada, não deve constranger. Seria imprudente aceitá-la como referência definitiva para a
compreensão do processo histórico que culminou com o primado da linguagem sobre o trabalho, do
paradoxo sobre a contradição dialética, da fundamentação pragmática sobre a determinação
material. A substituição do trabalho pela linguagem envolveu uma substantiva conversão dos
pressupostos do materialismo histórico, muito mais disruptiva do que a travada pela corrente oeste
do marxismo. O percurso construído pela “virada lingüística” incidiu sobre o registro prático de
diversos campos sociais. Os efeitos da prevalência da linguagem são muito mais extensos do que o
declínio teórico do marxismo, ainda que eles estejam inegavelmente relacionados. Para que o
problema do formalismo normativo possa ser investigado, é necessário acompanhar, em um
primeiro momento, a continuidade existente entre as linhagens da “virada lingüística” e as que
vieram depois delas.
35
Com a finalidade de dar início a esta caracterização teórica, serão destacados os pontos
centrais da defesa do primado da linguagem sobre o trabalho, firmados, na teoria social
contemporânea, pelo rigor geométrico de seu principal expoente, Jürgen Habermas. A leitura
habermasiana da constituição da esfera pública burguesa e a fundamentação pragmática da
democracia configuram os impasses e os delineamentos típicos do problema liberal de governo.
Linguagem e democracia constituiriam uma relação fundante da política contemporânea. Para além
de Marx e respondendo ao diagnóstico weberiano da modernidade, Habermas atribui uma função
normativa para a linguagem. Ela garantiria a referência da resolução pragmática dos conflitos entre
as esferas de valor. Mas as condições ideais para o consenso, “quase-transcendentais”, seriam
extraídas da própria imanência social. Esta operação necessitaria de níveis de abstração
semelhantes aos existentes no pensamento teórico. Para Habermas, o sujeito “pós-convencional” da
democracia liberal deve orientar sua ação pela ponderação racional da possibilidade de
entendimento mútuo. A aplicação de um aprendizado moral pelas vias da razão, convertida em uma
estrutura de capacidades cognitivas, é convergente com a democracia moderna porque tanto uma
quanto outra não podem prescindir de um constante reconhecimento da alteridade no processo
comunicativo, única forma da solução racional negociada na ausência de fundamentos históricos
para uma eticidade universal. É nesta conciliação, cujo modelo pode ser observado na própria
construção teórica da filosofia do agir comunicativo, que a linguagem encontra justificação como
parâmetro analítico desta solução. Por intermédio de uma transcendência inscrita no mundo social,
a democracia liberal encontra uma fundamentação normativa no interior de sua reprodução, lógica
auto-referente que deve ser melhor compreendida. O sujeito concebido como operador de
capacidades cognitivo-morais é resultado de uma aplicação formal da lei, como propõe o próprio
Habermas ao assemelhá-la ao imperativo categórico de Kant. Habermas não compartilha
exatamente da mesma exacerbação francesa da linguagem, mas a teoria do agir comunicativo dela
se aproxima, com a diferença de que, ao contrário do estruturalismo e do pós-estruturalismo, a
autonomia simbólica é substituída pela construção de uma objetividade entre a língua e a fala numa
unidade em ato. Linguagem e democracia manteriam correspondências e afinidades pragmáticas.
Ao que tudo indica, a época de ouro da “virada lingüística” encontrou seu fim na brutal
transformação das formas de dominação e controle social, evidenciada a partir da década de 90 e
designada de diversas maneiras: “globalização econômica”, “sociedade em rede”, “financeirização
do capital”, “capitalismo cognitivo”, “sociedade do conhecimento” etc. A depender da variedade de
perspectivas interpretativas envolvidas, não haveria como compreender os laços de continuidade
(inegavelmente, hoje a ênfase recai sobre as rupturas) entre as teses sobre o primado da linguagem
e o novo paradigma, cuja formulação mais eloqüente pode ser encontrada nos trabalhos de Foucault
36
sobre a “biopolítica”9. A inclusão da vida no centro da tecnologia de poder subverteria, segundo
Foucault, a compreensão política, tradicionalmente centrada no “modelo jurídico”, na soberania de
uma decisão sobre a morte. A positividade do controle revela-se na própria reprodução do
indivíduo, em sua dimensão biológica e biográfica. Não se trata, portanto, de um poder afirmado
pela contraposição entre a lei e o fato, o indivíduo e o Estado. O modo de governar biopolítico
pressupõe a manutenção e ampliação da vida. Diante da crescente consolidação da vida como
idéia-força do novo paradigma de poder, restaria algo do paradigma da linguagem nesta perspectiva
interpretativa? Não seria este o momento de analisar a transição de um paradigma ao outro?
Diferenças epistemológicas não denunciariam mudanças das estratégias de dominação? A
associação entre a abstração do conceito e a materialidade do poder não constitui uma simples
analogia. A forma teórica como modelo da objetivação social não significa tão-somente uma
ocultação ideológica dos interesses presentes em sua própria configuração. Equiparados à dimensão
formal do conceito – e é preciso adiantar a hipótese de que quanto mais abstratos forem, mais
eficazes serão -, relações de reprodução social e dispositivos normativos ganham objetividade.
A tese, aparentemente contraditória, da vigência de uma objetivação formal tem recebido
tratamento privilegiado nas análises de Slavoj Zizek (1996). Sua aproximação conceitual entre
Marx e Freud, no esteio de um lacanismo de inspiração hegeliana, resgata a noção de “abstração
real”, originalmente trabalhada por Sohn-Rethel (1978). Condicionada pela estrutura da forma-
mercadoria, a “abstração real” seria a própria objetivação social do “sujeito transcendental” da
filosofia kantiana. A troca mercantil envolveria, como pressupostos, duas operações, uma dupla
abstração, primeiramente da dimensão mutável e depois do caráter empírico-sensorial da
mercadoria. Esta dupla operação dependeria do dinheiro, mercadoria cuja prerrogativa seria, como
já atestava Marx, a capacidade de transformar a esfera particular e qualitativa dos objetos em
matéria universalmente comensurável e, portanto, completamente submetida ao cálculo
quantitativo. O espaço homogêneo da física newtoniana teria sido antecipado pelo espaço social da
troca mercantil mediada pelo dinheiro e pela transferência de propriedade (ZIZEK, 1996: 302). A
9
Embora diferencie a mecânica de poder característica das sociedades disciplinares daquela regida pelos
dispositivos da biopolítica, Foucault sugere o sentido metodológico desta diferença. Princípios e práticas
disciplinares podem ser contemporâneas do controle sobre a vida, embora historicamente possuam datação
diversa: “Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas
principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados
por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece,
centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de
suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de
controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as
disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta
da metade do século XIX, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e
como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a
duração da vida, a longevidade, com todos as condições que podem fazê-los variar; tais processos são
assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da
população”. (FOUCAULT, 1984: 131)
37
“abstração real” de Sohn-Rethel seria, por homologia, “o inconsciente do sujeito transcendental,
o suporte do conhecimento científico objetivo-universal” (Idem: 303). Daí a concordância de Zizek
com o que Lacan havia dito sobre Marx. A descoberta da estrutura do sintoma não seria de autoria
freudiana, mas da análise marxista do fetiche. O sonho e a mercadoria seriam formas homólogas,
ofereceriam a via régia para a compreensão do sujeito transcendental do capitalismo. A análise de
Marx, no entanto, não teria solucionado o enigma do “caráter material do dinheiro”, isto é, do seu
“material sublime, daquele outro corpo `indestrutível e mutável´ que persiste para além da
degradação do corpo físico” (Ibidem: 303). A partir de Lacan, Zizek aproxima o núcleo da ilusão
fetichista do capitalismo do lugar ocupado pelo objeto na fantasia inconsciente. “Objeto sublime”,
este “corpo dentro do corpo” define uma “corporalidade imaterial” assemelhada ao “outro corpo
do dinheiro”, que seria “como o cadáver da vítima sádica, que suporta todas as torturas e
sobrevive com sua beleza imaculada.” (Ibidem: 303).
É sem dúvida muito ilustrativo o fato de Zizek propor uma homologia entre sonho e
mercadoria (e, portanto, entre Freud e Marx) e que ele tenha encontrado na fantasia inconsciente o
objeto da pura expressão da forma vazia (porque “indestrutível e mutável”) do sujeito
transcendental do capitalismo Daí a relação de identidade que Zizek estabelece entre a “paixão pelo
real” e a “paixão pelo semblante” (ZIZEK, 2003). O vigor semiótico do pós-estruturalismo seria
sintoma da produção “real” e “espetacular” da política. Acrescentaríamos: política equiparada a
uma pragmática comunicativa dirigida para a vida, como se as “condições ideais de fala”
ocupassem a superfície dos processos de interação social. Se a hipótese do formalismo normativo
estiver correta, é permitido observar, em Zizek, as marcas de uma transição paradigmática. Ocasião
para reforçar mais uma vez a proposta de pesquisa. Abordadas no que possuem de afinidades e
contrastes morfológicos, aqui as teorias serão, antes, sintomas sociais. Este tipo de composição
metodológica respalda-se na hipótese de que, nos atuais dispositivos de controle, a dominação se
exerce por meio da operação, tanto prática quanto discursiva, que produz a percepção e a doutrina
do fim da representação e da diferença entre sujeito e objeto. Operação de efeitos múltiplos, a se
destacar, a tese da explicitação da ideologia nos processos sociais imediatos à consciência e a
indistinção entre natureza e cultura, concepções que sustentam um discurso cultural no qual a
subjetividade é compreendida sob a ótica do objeto, isto é, do corpo e da violência enquanto
elementos regentes deste poder: a subjetividade como pura superfície de instituição da lei, a “vida
nua” (AGAMBEN, 2002a).
A hipótese de uma subjetividade totalmente objetivada remete à questão sobre o declínio da
autoridade paterna na psicanálise, um dos efeitos da substituição do primado da linguagem pela
emergência, sem a mediação da dimensão representacional, do real histórico. A aceitação do novo
paradigma envolve problemas cruciais e que, a depender do teor das soluções teóricas dadas,
implicará uma reformulação a tal ponto radical que o próprio questionamento da validade da
38
psicanálise não poderá deixar de ser aceito. Isto porque, de Freud a Lacan, a constituição da
subjetividade exige uma instância legislada. A menos que se aceite a idéia de que a sociedade
moderna seja majoritariamente esquizóide ou paranóica, deve ser refutada também a tese de que os
processos de formação psíquica encontrariam, hoje, referência na “vida nua”. Estamos longe de
uma “socialização pelos fantasmas” (SAFATLE, 2005), da verdade de todos os alertas sobre a
obsolescência da psicanálise, do imperativo de gozo enfim satisfeito socialmente. Exageros e
imprecisões conceituais à parte, é fundamental que se realize uma análise da construção
sociocultural deste argumento teórico. A ideologia que atravessa a política parece retornar na
crítica dos próprios autores deste argumento. Daí por que acionem uma curiosa silogística de auto-
referências, algo próximo da “crítica lógica” popperiana preocupada em rastear a contradição
formal, constatável, embora com sinal invertido, mas nem por isso distinta dela, em um amplo
espectro: no “litígio” ou “desentendimento” como princípio do sujeito em Jacques Rancière (1999);
na tematização dos “novos movimentos sociais” realizada por Ernesto Laclau (1986); na “lógica da
soberania” de Aganbem (2002a); na “invenção do presente” de Alberto Melucci (1997); na análise
laco-marxista de Zizek (1996, 2003) e em tantos outros que, de um modo ou de outro, imputam a
redução formal como recurso metodológico para apreender o fenômeno político contemporâneo.
Mas é necessário um esforço de ponderação crítica. Embora os autores mencionados compartilhem
um mesmo recurso de figuração teórica, diferenciam-se tanto no âmbito das filiações intelectuais
quanto em relação à posição política frente o presente histórico. O formalismo como modelo de
objetivação dos atuais mecanismos de dominação fundamenta-se, conceitualmente, na tese da
indistinção entre sujeito e objeto e, conseqüentemente, no discurso teórico como apresentação do
mundo, mimetização do referente.
Os problemas da identidade do sujeito político contemporâneo são de natureza
epistemológica mais ampla, encontram um equivalente – e, portanto, as vias conceituais para sua
abordagem e compreensão - no problema sobre a objetividade do inconsciente na psicanálise
freudiana. Se o nascedouro da sociologia teve na repressão social da subjetividade o critério
diferencial de demarcação científica e o lastro de sua autonomia10, a psicanálise, como seria fácil de
10
As qualidades do fato social total em Marcel Mauss e a transcendentalidade da sociedade em Durkheim
são os exemplos mais claros. A subordinação do indivíduo à dimensão societária foi a contrapartida da
objetividade científica que se desejava instituir. A autonomia das ciências da sociedade pressupõe uma
homogeneidade da subjetivação dos valores. Nas suas obras tardias, Durkheim defenderá que a moral não
deve apenas coagir, mas também ser portadora de uma autoridade que se reflita nos indivíduos pelo
sentimento de dever, consentimento pessoal que segue as normas sociais porque acredita nelas e as concebe
como boas. A coerção dos valores é “desejada”, pois ela convence a sensibilidade a subjugar suas
particularidades em favor do “bem”. É justamente nesta disposição individual em transcender a si próprio
que se identifica um ato moralmente motivado. A sociologia durkheimiana seria resultado de seu tempo.
Refratário ao socialismo e diante do quadro de profunda transformação da estrutura social, o pensamento
durkhiemiano representaria, segundo Adorno (2004), o positivismo sem o quadro crítico do racionalismo
metódico inaugurado por Descartes, pois, a despeito de sua tentativa em filiar-se a esta tradição filosófica,
Durkheim teria fundado uma teoria com base na certeza sensível, de fortes traços autoritários. As exigências
39
imaginar, adotou caminho oposto. A concepção freudiana de determinação inconsciente da
civilização não tem por finalidade atribuir objetividade à psicanálise, mas assegurar bases para uma
construção teórica menos dependente das evidências clínicas. Como a literatura e a mitologia, o
social serve mais como reserva metafórica para relações de analogia com o inconsciente. Este
modo de figurar o processo de constituição subjetiva incide sobre a dimensão dos fenômenos
coletivos como enunciação de uma instância que, para se revelar, necessita de formas expressivas
que lhes são exteriores.
Na mesma condição dos estruturalistas, de partilha da linguagem como paradigma teórico e
ideário da inatualidade do marxismo, o problema da cientificidade da psicanálise teve, em Lacan,
um de seus mais significativos expoentes. Para seus discípulos, ele teria fundamentado
cientificamente a psicanálise com auxílio do arcabouço formal da antropologia lévi-straussiana, que
lhe teria permitido fazer o que Freud não pôde. Neste esforço de ciência, Lacan se distanciou da
perspectiva empiricista dos empreendimentos freudianos, retornou aos textos de fundação e os
interpretou como interpretará o inconsciente, como uma linguagem cifrada, uma ordem
significante. O estatuto do inconsciente lacaniano teria imposto a necessidade lógica de uma
formalização plena, muito além dos limites da concepção estruturalista da linguagem. Assim
compreendido, o registro psíquico perde definitivamente a proximidade com a subjetividade
trabalhada pelas tradicionais práticas terapêuticas, da psicologia à psiquiatria. Com Lacan, o
inconsciente se afasta de qualquer estatuto ontológico em favor de uma concepção formal,
desprovida de significados, ponto de inflexão que servirá de porto e mirante seguros para boa parte
da próxima geração de intelectuais franceses. A teoria lacaniana ganha atualidade em seu
formalismo. Os impasses da objetividade na psicanálise lacaniana dão contornos à problematização
sobre a totalização do poder e suas modalidades contemporâneas, ainda pouco compreendidas, de
controle social. Influenciada pelo uso althusseriano do conceito de “corte epistemológico”, é
corrente no lacanismo a organização da teoria de Lacan em um primeiro e segundo períodos ou em
uma “primeira clínica”, centrada no significante e de clara filiação estruturalista, e uma “segunda
clínica”, que privilegia o objeto pulsional da fantasia (MILNER, 2000). “Corte epistemológico”
este que revela uma figuração histórica na própria teoria do psicanalista francês. Isto significa
admitir a compreensão da teoria como expressão sintomática do social. Significa também destituir
a neutralidade do conceito e dedicar atenção especial ao seu traço objetivante.
No início da década de 70, a psicanálise foi objeto de crítica, inclusive a lacaniana, por parte
daquelas que, até então, compartilhavam com ela o mesmo terreno teórico do estruturalismo.
metodológicas que definiriam um “fato social” seriam, ao mesmo tempo, resposta reificada ao conflito de
classes e uma hipóstase da “consciência coletiva”. A sociologia durkheimiana absolutizaria o todo em
detrimento do particular, convertendo a alienação do indivíduo em socialização. Essa aderência nada mais
seria do que uma formação ideológica, sob a aparência de rigor e autonomia do método, cujas regras, por si
só, produziriam, na ausência de qualquer referência à categoria de sujeito, o objeto de sua ciência.
(ADORNO, 2004a)
40
Deleuze e Guattari, em Anti-Édipo, marcariam o tom canônico desta crítica com um contundente
ataque ao familiarismo de Freud e ao que seria a sua atualização em Lacan; propuseram a retomada
de um projeto materialista para a psicanálise, o que implicava introduzir o campo social e a
referência da economia política na clínica e na teoria. Desde então crescentes são as ressalvas ao
conceito de complexo edípico, a toda formulação freudinana sobre a função paterna e seu valor nas
relações familiares do paciente. Para parte significativa das ponderações por reforma da
psicanálise, a história teria apontado para uma ampla retificação das categorias criadas por Freud.
A estabilidade conceitual indicaria a vigência de condutas de crença sectária entre os analistas.
Manter a figura paterna no coração da teoria seria um equívoco inegável e armaria os críticos da
psicanálise com uma conclusão inescapável: em razão de seu sectarismo, ela estaria condenada à
obsolescência. Em resposta a este tipo de questionamento, a formalização lacaniana conduz a teoria
em direção a uma problematização sobre a constituição da subjetividade pelo princípio de exceção,
prerrogativa da função paterna entendida tanto como categoria lógica, quanto como operação
simbólica. No deslocamento dos significados da função paterna freudiana, a dimensão sócio-
histórica é introduzida, em Lacan, por uma espécie de extração das formas transcendentais do
inconsciente. A referência constante à matemática, por meio de recursos cada vez mais formais,
parece anunciar, como em outras figuras do estruturalismo francês, a primavera dos mecanismos de
poder centrados na vida. Qual o significado da conjunção entre história e estrutura no regime
lacaniano de discurso? Ele seria uma refutação ou uma expressão sintomática dos mecanismos
contemporâneos de dominação? Do primado da linguagem na teoria social e na psicanálise
lacaniana, será necessário extrair as configurações de poder anunciadas pelos seus formalismos.
Neste particular, a teoria é tanto um discurso cultural quanto uma forma sintomática.
J. Habermas
41
seu programa de pesquisa ter sido apresentado, no final dos 70, como sendo o de “reconstruir o
materialismo histórico” (HABERMAS, 1990). Mas “reconstruir”, vale a ressalva, no sentido de
uma recomposição conceitual com vistas a explicitar as potencialidades da teoria marxista, “a fim
de melhor atingir a meta que ela própria se fixou” (Idem: 11). A partir da perspectiva de uma
teoria da evolução social, Habermas defende a anterioridade da linguagem e do trabalho em relação
ao homem e à sociedade11. A atribuição de uma teoria da evolução social para o materialismo
histórico reordena a leitura sobre o desenvolvimento das forças produtivas, torcendo a significação
a ponto de inscrevê-la nas formas imateriais do conhecimento e da disposição prático-moral.
Realiza, assim, a universalização da linguagem em seu contexto prático na condição de parâmetro
da ontogênese da reprodução da vida social12. Desta proposta, que assumia explicitamente a
tradição marxista, Habermas se afastou e assumiu, paulatinamente, as mesmas coordenadas do
estruturalismo francês (ANDERSON, 1984). Sua crítica ao materialismo histórico centrara-se na
primazia dada por Marx ao âmbito da produção material em detrimento da dimensão interacional
das práticas humanas, teoricamente separadas pela distinção entre ação instrumental de dominação
da natureza exterior (“sistema”) e a ação comunicativa (“mundo da vida”), à qual pertenceria a
normatividade intersubjetiva, elemento central do arbítrio da sociabilidade (HABERMAS, 1989:
70-74).
Em função de seus fortes traços liberais, a “virada lingüística” de Habermas tem seus
antecedentes na análise histórico-social da formação da esfera pública burguesa, tema de sua
pesquisa de livre-docência. Presente no vocabulário de diversos atores sociais e contextos
institucionais, amplificado em sua variedade idiomática, o problema da esfera pública na
contemporaneidade requereria maior precisão conceitual. Constituiria, portanto, um equívoco
estabelecer uma continuidade semântica entre significados circunstanciados e determinados pelas
particularidades das formações socioculturais. Não há dúvida quanto à direção da crítica. Em 1958,
quatro anos antes de Mudança Estrutural, Hannah Arendt publica seu livro de maior estofo
filosófico de até então, A Condição Humana. Nele, Arendt incorpora como referência crítica e
prumo interpretativo a concepção grega de política e ação, particularmente a matriz aristotélica e a
paradigmática experiência da democracia ateniense. Segundo Habermas, embora a sociedade
moderna seja tributária da tradição greco-romana, defender a atualidade de seu conceito de esfera
11
“Podemos assumir que somente nas estruturas de trabalho e linguagem completaram-se os
desenvolvimentos que levaram à forma de reprodução da vida especificamente humana e, com isso, à
condição que serve como ponto de partida da evolução social. Trabalho e linguagem são anteriores ao
homem e à sociedade.” (HABERMAS, 1990: 118).
12
“Marx não julgou o desenvolvimento social segundo o metro dos aumentos de complexidade, mas de
acordo com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, por um lado, e da maturidade das formas
sociais de relação, por outro. O desenvolvimento das forças produtivas depende da utilização do saber
tecnicamente valorizável; as instituições-base de uma sociedade incorporam saber prático-moral. O
progresso em ambas essas dimensões se medem com base nas duas pretensões universais de validade, com
as quais medidos também os progressos da consciência empírica e da consciência prático-moral, ou seja,
com base na verdade das proposições e na justeza das normas.” (HABERMAS, 1990: 123)
42
pública, mesmo que criticamente, incorreria em uso e manipulação ideológicas. Para não acarretar
esta sorte de conseqüências, Mudança Estrutural propõe investigar, procedendo a uma abordagem
histórico-sociológica, o substrato estrutural que determina a variação semântica da noção de esfera
pública, pois, a despeito da fraseologia que a acompanha, ela "continua sendo, sempre ainda, um
princípio organizacional de nosso ordenamento político" (HABERMAS, 1984: 17).
Em Mudança Estrutural, a descrição da gênese e a construção do tipo de esfera pública
burguesa permitem configurar o jogo de forças que demarca o fundamento normativo liberal e seu
campo institucional. A gênese da esfera pública ganha inteligibilidade pela interdependência entre
os agentes econômicos privados que, além das relações de troca mercantil, encontram na
experiência da intimidade da pequena família burguesa o universo referencial do reconhecimento
da igualdade. Daí a caracterização do tipo de esfera pública burguesa como esfera de pessoas
privadas reunidas num público. Com a exposição dos pressupostos da esfera pública burguesa,
Habermas introduz uma nova ênfase analítica, o campo da configuração das correlações de forças
sociais e a produção de universos institucionais de reprodução e ruptura em relação ao Estado.
Nesta reconstrução histórica, é possível observar a afinidade com Weber. A singularidade das
transformações históricas é incorporada por uma abordagem analítica que faz eclodir pontos de
afinidade e continuidade entre elas. Em contrapartida, eventos que presumem reprodução e
linearidade recebem um tratamento que revela o teor disruptivo de sua formação. O tipo de esfera
pública burguesa obedece e é conseqüência deste método, haja vista a própria localização tanto
conceitual quanto histórica atribuída a ela. O lugar da esfera pública pertenceria ao ponto
intermediário entre Estado e mercado. É importante ressaltar que esta localidade não ganha
significado estrito no corpo dos eventos históricos per se; requer da análise a construção de uma
representação sintética de vantagens teóricas não desprezíveis, que permite, por exemplo, comparar
o desenvolvimento na França com o que vigorou na Alemanha ou Inglaterra e, ao mesmo tempo,
afirmar semelhanças históricas e delimitar conceitualmente uma tipologia. A explicitação desta
perspectiva teórico-metodológica pode ser observada na descrição da experiência inglesa,
concebida e nomeada por Habermas como "caso modelo" de desenvolvimento da esfera pública
burguesa. A utilização deste recurso merece atenção, visto que as outras experiências são
contextualizadas a partir da descrição deste caso em específico. A extração de tais características
do material empírico da história é possível na medida em que Habermas analisa a constelação da
formação e percorre os avatares das duas instituições centrais do mundo moderno, o Estado e o
mercado.
A constituição da esfera pública inglesa não é apenas modelar porque primeira. A
singularidade do tipo burguês encontrou seus traços mais significativos no processo formativo
inglês porque ali os conflitos encerrados no desenvolvimento capitalista receberam regulação
normativa pela figura tópica do público que, de instância destituída de função política, detém, na
43
virada do século XVIII, um lastro de legitimidade, seja no âmbito dos atores econômicos na luta
pela resolução de seus interesses, seja no universo das mediações institucionais que definem o
poder estatal. Ainda que recuse qualquer causalidade unilateral para justificar esta prodigalidade
inglesa, segundo a análise habermasiana a possibilidade de uma função política para as
experiências de mútuo reconhecimento entre as pessoas privadas é delimitada pelas fronteiras de
um espaço normativo, em última instância, definido pelas forças do Estado e do mercado. Mas a
correlação institucional e o jogo de forças entre poder estatal e representação legislativa, mediada
pela publicidade das questões em pauta, não são, por si mesmos, capazes de explicar o surgimento
da esfera pública política em sua complexidade histórica. Para Habermas, seria necessário atentar
para o momento do desenvolvimento capitalista em que ele ocorreu. A liberação do intercâmbio
entre mercadorias, sem a arbitrariedade da interferência estatal, seria um elemento central para a
transformação da esfera pública em princípio organizacional do Estado. As relações codificadas
juridicamente - os contratos - constituiriam necessidades de um sistema produtivo que requer cada
vez mais previsibilidade das ações entre os agentes econômicos privados. Referenciada pela
igualdade das relações de troca no mercado livre e pelo mundo experiencial da esfera pública
literária, a codificação jurídica teria garantido a autonomia da esfera privada, a liberação dos
encargos coorporativos e governamentais nos negócios capitalistas em expansão. Em outras
palavras, a sociedade civil burguesa nasce como autonomia da esfera privada, consolidação do
Direito Privado e liberalização do mercado em relação à interferência do Estado. A maior clareza
do sentido político da esfera pública na França está associado ao fato de que ali o ordenamento
estatal foi extraído e sancionado numa constituição legislativa. Diferente, portanto, da experiência
inglesa, onde o ordenamento institucional das funções políticas dentro do Estado foi decorrência de
uma extração fática, temporalizada pelos costumes e tradições.
Em Mudança Estrutural, as chamadas "variantes continentais européias" giram em torno do
caso - modelar - inglês e esta transitividade é estruturada como um recurso de produção de
equivalências e de particularidades, com clara primazia da primeira modalidade. Não se trata de
uma simples exposição dos nexos e das defasagens históricas que transformariam as "variantes
continentais" em experiências presumivelmente incompletas em relação ao modelo inglês. Sinal
disso, a maior articulação e conscientização da função e sentido políticos da esfera pública nos
países continentais, sobretudo na França. Novamente, é necessário lembrar que a caracterização
tipológica realizada por Habermas não se reduz a uma aproximação empírica dos eventos da
história. As vantagens deste método consistem justamente na explicitação desta distância
irredutível entre fato histórico e a construção teórica sobre ele. Este estilo de problematização e a
metodologia escolhida por Habermas não escondem, novamente, a sua forte influência weberiana.
É de Weber a tese de que o desenvolvimento ocidental tem como singularidade o seu sentido
universal. Estado e mercado seriam não apenas instituições do mundo ocidental moderno, mas,
44
sobretudo, forças configuradoras de uma lógica de desenvolvimento passível de ser transposta a
qualquer outra cultura. O Ocidente teria aprimorado instituições e um universo axiológico que
proporcionaram a plena realização da racionalidade formal e, assim, de uma medida pela qual graus
de equivalência entre ações díspares poderiam ser inferidos. A racionalidade de uma ação, seja qual
for a particularidade do agente ou do sentido reivindicado, pode ser mensurada. Ela seria avaliada
pela eficácia e coerência da escolha dos meios para a consecução de determinados fins. Na mesma
direção, para Habermas, a universalidade em questão não é a possibilidade de homogeneização
cultural, sendo, antes, a evolução de uma capacidade cognitiva cujo uso independe de contextos
históricos específicos. Mas para Weber os limites normativos das sociedades ocidentais modernas
dizem respeito ao que a razão não pode se deter. Quando o motivo da ação é um valor, não há nada
a mensurar, já que aqui adentraríamos o seu núcleo de irracionalidade13.
O recuo de Weber é o ponto de partida do projeto habermasiano. A possibilidade de
generalização de preceitos morais é tematizada como correlata ao seu conteúdo cognitivo. Em
Mudança Estrutural, esta correlação é implícita, talvez porque ainda muito referenciada a uma
abordagem histórica. Apenas com um grau maior de abstração será possível levar às últimas
conseqüências a polêmica posta pela implicação entre razão e moralidade, temática presente na
maioria dos trabalhos posteriores à Mudança Estrutural. De qualquer forma, é razoável observar
também, já neste livro, uma tentativa de problematizar a relação entre a fundamentação normativa e
a aplicação das normas. Para Habermas, o campo das correlações institucionais não é exterior à
necessidade de justificação racional da moral. A tensão aí encerrada deve ser analisada. O posterior
desafio em fundamentar racionalmente o campo da moralidade pode ser compreendido nesta chave
de leitura. Mesmo em Mudança Estrutural, a questão já é posta no momento em que Habermas
localiza no registro da institucionalização da esfera pública, que configura o Estado de Direito
burguês, uma contradição imanente. Imanente porque inscrita no próprio princípio regulativo do
Estado liberal. Se a presumida livre concorrência entre os agentes econômicos confere uma
estabilidade semântica à postulação da liberdade privada como fundamento do poder público,
então, já existiria na origem a sua própria negação. A vinculação entre lei e opinião pública como
suporte normativo do Estado de Direito burguês pode operar a previsibilidade necessária a
manutenção e desenvolvimento do sistema capitalista, mas não é capaz de impedir seu
antagonismo. A lei, no registro ideológico burguês, aparece como representação "popular" na luta
contra o poder público. Originalmente, sua luta é marcada como luta contra a dominação estatal.
No entanto, ao institucionalizar-se e ganhar função dentro do aparelho do Estado, o princípio
normativo burguês exige o aparato de dominação para vigorar. Existiria, portanto, uma
13
Tese desenvolvida, sobretudo, no monumental estudo sobre sociologia das religiões, no qual o conflito
entre as esferas de valor encontra seu momento mais explícito na obra weberiana. Ver especialmente
WEBER (2002).
45
ambivalência conflituosa no conceito burguês de legislação. De um lado, a dimensão da sua
fundamentação; do outro, a da aplicação e efetivação das leis. Daí a divisão de poderes,
incorporada pelo Estado burguês, ser uma manifestação desta ambivalência. O poder legislativo
aproximar-se-ia mais do princípio racional e normativo das leis, enquanto o executivo limitar-se-ia
à sua aplicação.
A possibilidade histórica da esfera pública como instância normativa das sociedades
ocidentais modernas é o problema central de Mudança Estrutural. Para compreendê-lo, Habermas
não se limita ao seu registro historiográfico. A tipologia da esfera pública burguesa já anuncia a
transposição deste âmbito. Se fosse apenas uma descrição dos eventos históricos, seria possível
interpretar Mudança Estrutural como uma produção estanque em relação aos estudos posteriores
do autor. Não é, certamente, o que acontece. Isto porque, em Mudança Estrutural, Estado e
mercado são concebidos como forças de configuração dos limites no interior dos quais se encerra
um espaço possível de reconhecimento entre pessoas, o que permite a Habermas acompanhar a
história sem recorrer a uma interpretação relativista ou mesmo determinista do desenvolvimento da
esfera pública burguesa. No entanto, a delimitação de características históricas, elevadas, num
segundo momento, a categorias tipológicas, tomadas como soluções para a análise de contextos
particulares, requerer maiores níveis de formalização, indício da conversão teórico-metodológica
que viria anos mais tarde. Manifestada claramente pela ruptura entre a construção sócio-histórica
da Mudança Estrutural e a dimensão pragmático-linguística da ética do Discurso, esta conversão
apresenta a fisionomia da “virada lingüística” habermasiana. Trata-se, de agora em diante, de
justificar a possibilidade do discurso produzir formas racionais de solução às questões de ordem
prático-moral. A extração dos pressupostos pragmáticos necessários aos discursos voltados ao
entendimento mútuo é o ponto de apoio da geometria habermasiana. Toda reconstrução teórica
destes pressupostos e qualquer tentativa de fundamentação normativa deveriam considerar o caráter
transcendental da comunicação intersubjetivamente válida. Transcendentalidade esta que não seria
a mesma da tradição metafísica em filosofia, já que imanente, ou seja, inscrita na estrutura
reprodutiva das relações sociais.
A ética do Discurso
A ética do Discurso é o recurso conceitual por meio do qual Habermas pensou uma
fundamentação normativa no próprio momento da interação social, justificada pelo processo
pragmático do discurso e não pela estrutura da linguagem. A pergunta, agora, é saber por que o
discurso pode reivindicar esta capacidade e finalidade. O que pareceria um dos indícios da erosão
cognitiva típica da modernidade, por muitos concebida como algo a ser superado, o descentramento
dos referenciais culturais, que tradicionalmente conferiam sentido às ações, em Habermas,
46
transforma-se no próprio fundamento da normatividade moderna. A apropriação das teses
neopiagetianas da psicologia de Kohlberg expressa a finalidade de seu projeto. Em Kohlberg, o
último estágio do desenvolvimento cognitivo e moral é definido como aquele no qual o indivíduo
possui a capacidade de formar juízos de valor segundo princípios éticos universais. O
correspondente social deste estágio consiste num ponto de vista moral a partir do qual derivam-se
acordos sociais e suas respectivas garantias, lugar onde se opera o reconhecimento racional da
alteridade como fim, e não como meio (HABERMAS, 1989: 154; 159). Habermas observa neste
último estágio a proposição de uma capacidade cognitiva para a ética do Discurso, sem, no entanto,
deixar de destacar as insuficiências da teoria de Kohlberg. Para Habermas, faltaria a ela uma maior
precisão na justificativa dos estágios segundo a perspectiva da lógica do desenvolvimento do juízo
moral, tarefa esta que a filosofia deveria tomar para si. Neste sentido, a ética do Discurso, por
intermédio da referência a postulados transcendentais, explicitaria a inevitabilidade dos
pressupostos embutidos em uma prática comunicativa.
A formalização habermasiana do princípio universal da ética do Discurso já é um modo de
fundamentação moral. Alinhado à tradição kantiana, Habermas preconiza a possibilidade de
fundamentar racionalmente questões de ordem prática. Como Kant, propõe um procedimento pelo
qual o sentido moral das ações pode ser apreendido. Na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, a moralidade se manifesta pelo preceito "age apenas segundo uma máxima tal que
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal", uma das versões do Imperativo
Categórico (KANT, 1974: 223) Ainda que cognitivista e muito circunscrito à temática kantiana,
Habermas não extrai o princípio de universalização da ética do Discurso pela dedução especulativa
e transcendental. A generalização da formalização habermasiana pede um outro tipo de
fundamento. Para isso, seria necessário inscrevê-la dentro de uma perspectiva histórico-
sociológica.
Na teoria do agir comunicativo, o diálogo com a Fundamentação é evidente não tanto pelas
inúmeras passagens em que Kant é citado e comentado, mas em razão do objetivo de justificar a
intuição kantiana presente na formulação do Imperativo Categórico, o que significará o mesmo que
substituir a monologia da filosofia do sujeito pela intersubjetividade propiciada pela linguagem no
seu contexto pragmático. Desse modo, a “virada lingüística” habermasiana requer a perspectiva do
agir comunicativo presente no reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez14. A
14
Segundo Habermas (1989), são três os tipos de pretensão de validez: a pretensão de verdade, (mundo
objetivo); pretensão de correção (mundo racional comum) e pretensão de sinceridade (mundo subjetivo
próprio). Habermas afirma que a realidade social está desde o começo “numa relação interna com pretensões
de validade normativas” (Idem: 82). Assim, o mundo das normas morais necessita de relações interpessoais
ordenadas de maneira a se reproduzirem, enquanto o estado das coisas existe a despeito de ser ou não
constatado por proposições. Nesse sentido, “as argumentações morais servem, pois, para dirimir
consensualmente os conflitos de ação” (Ibidem: 87). Daí, portanto, a exigência de uma abordagem sob a
47
superação da distância entre “observações singulares e hipóteses universais”, condição para
eficácia normativa, exige um “princípio ponte”, função, em Kant, exercida pelo Imperativo
Categórico. Para Habermas, a universalização proporcionada pelo Imperativo Categórico deu
margem a versões equivocadas de interpretação, sobretudo aquelas que exacerbaram a importância
de seu caráter formal. A Habermas não interessa saber qual a interpretação mais fidedigna, já que
não pretende realizar uma exegese do texto kantiano. Do Imperativo Categórico, deriva um
princípio de universalização passível de ser apropriado, em parte, pela ética do Discurso. O
princípio de universalização permite a formação imparcial do juízo se as normas manifestarem o
interesse comum de todos os envolvidos. Assim, toda norma possui como condição “que as
conseqüências e efeitos colaterais, que (presumivelmente) resultarem para a satisfação dos
interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos
por todos os concernidos (e preferidos a todas as conseqüências das possibilidades alternativas e
conhecidas de regragem)” (HABERMAS, 1989: 86). Este princípio (U), como regra de
argumentação, não é propriamente o da ética do Discurso. Uma norma, segundo o princípio da
ética do Discurso (D), “só pode pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por
ela cheguem (ou possam chegar) enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo
quanto à validez dessa norma.” (Idem: 86). Posto isto, temos como pressupostos da ética do
Discurso o sentido cognitivo das pretensões normativas e a necessidade de um discurso real para
fundamentação das normas. A partir destes pressupostos, Habermas desenvolve a tese de que a
fonte da validade deôntica encontra-se na autoridade “de uma vontade universal, partilhada por
todos os concernidos” (Ibidem: 95), cuja constatação se dá por meio da argumentação.
A ancoragem da validade deôntica junto a esta "vontade universal" compartilha com o
conceito kantiano de autonomia da vontade o atributo da auto-referencialidade. Todavia, Habermas
desloca o conceito de Kant para o universo pragmático do mundo da vida, ou seja, para as relações
sociais intersubjetivamente validadas. A idéia kantiana da "vontade de todo o ser racional
concebida como vontade legisladora universal" transforma-se em um interesse comum construído
discursivamente e sustentado pela estrutura do agir comunicativo. Para que exista argumentação e,
conseqüentemente, para que as pretensões de validez sejam resgatáveis cognitivamente, é
necessário que ocorram pressuposições pragmáticas, na ausência das quais o contexto
intersubjetivo do mundo da vida não existiria, e a partir das quais é possível derivar o princípio de
universalização. Daí a condição de que "todo aquele que aceita as pressuposições comunicacionais
universais e necessárias do discurso argumentativo e que sabe o que quer dizer justificar uma
norma de ação tem de presumir implicitamente a validade do princípio da universalização."
perspectiva intersubjetiva, no âmbito do discurso prático, uma vez que sem intersubjetividade inexiste
reconstrução de uma normatividade ou de uma “vontade comum”.
48
(Ibidem: 110) Dentro de um discurso argumentativo, os participantes encontram-se em uma
situação de fala isenta de desigualdades ou repressões, "uma forma de comunicação
suficientemente aproximada de condições ideais" (Ibidem: 111). Esta formalização é justificada
pela tentativa habermasiana de extrair das situações comunicativas das práticas cotidianas o
fundamento transcendental da moral. Portanto, Habermas compartilha com Kant o caráter analítico
da investigação. No entanto, a inferência não ocorre, como em Kant, a partir de alguma faculdade
da razão, mas sim dos processos de interação social, ou seja, do contexto pragmático do agir
comunicativo, no qual “as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de
ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das
pretensões de validez.” (Ibidem: 79) Por isso a necessidade de uma investigação que não assuma
uma “atitude objetivante”, uma posição exterior ao contexto intersubjetivo. A esta exigência
Habermas respondeu com a investigação dos pressupostos universais imanentes a toda situação de
fala voltada para o entendimento mútuo: a Pragmática Universal. Mantida a tese de que a
formalização do princípio da ética do Discurso (D) já é o próprio fundamento normativo da moral,
surge a exigência de uma qualificação histórico-sociológica desta ética. Daí a importância em saber
o que autoriza historicamente Habermas a defender a possibilidade de resolução racional dos
litígios de natureza valorativa, esclarecimento sem o qual o risco de uma metafísica revisitada
ganha força.
Toda a problemática habermasiana em torno da esfera pública, desde os seus estudos de
juventude, a se destacar Mudança Estrutural, até as pesquisas orientadas pela preocupação
pragmático-linguística, revela um substantivo esforço teórico em oferecer uma terceira perspectiva
de análise ao lado das centradas no Estado e no mercado. Se em Mudança Estrutural Habermas
realiza uma descrição histórica para, a partir dela, construir o tipo burguês de esfera pública, por
sua vez, nos estudos posteriores a preocupação em fundamentar a possibilidade da reprodução da
esfera pública está presente, com a diferença de que é a instância processual do discurso que deve
ser justificada. Ou seja, fundamentar não apenas o surgimento da esfera pública através da
explicitação de seus condicionantes históricos, mas, sobretudo, justificar a sua reprodutibilidade no
registro de seu funcionamento. São imprescindíveis, deste modo, tanto a perspectiva histórico-
sociológica quanto o viés pragmático-linguístico. Um dos equívocos mais comuns consiste em
considerar apenas uma das perspectivas e deste ponto de vista denunciar insuficiências ou
anacronismos na teoria habermasiana. Se for verdade que a temática da esfera pública sempre
esteve intimamente relacionada às preocupações de Habermas em fundamentar cognitivamente a
moral, seria recomendável situar os pontos sobre os quais esta proximidade se apóia. Neste
particular, Habermas manifesta algo de extremamente paradoxal. A formalização da ética do
Discurso representaria o que há de mais concreto nas sociedades modernas, possuiria a capacidade
de dar formas à normatividade que regula a reprodução das relações sociais, permitindo, deste
49
modo, analisar o contexto histórico da secularização ao mesmo tempo em que justifica
racionalmente questões de ordem prática colocadas por este mesmo contexto.
A Pragmática Universal produz um tipo de fundamentação não apenas a posteriori, ao modo
de uma explicitação dos pressupostos institucionais da esfera pública, mas uma outra, “quase
apriorística”, ressaltando sempre que as condições para o agir comunicativo são historicamente
determinadas. Seria, no entanto, um equívoco reduzir os pressupostos pragmáticos a condicionantes
particulares dos eventos históricos. A linguagem, apesar de moldada pela história, possui uma
dimensão transcendental. A dualidade dos fenômenos da linguagem assim entendida permite a
Habermas encaminhar um novo modo de fundamentação, mais ajustado às determinações
históricas das sociedades modernas. A abordagem pragmático-linguística curiosamente apresenta,
em seu acentuado nível de abstração, os instrumentais e os conceitos mais adequados à análise da
modernidade ocidental, cuja singularidade histórica, a saber, a possibilidade da noção de
universalidade possuir eficácia normativa, encontraria nesta forma de contradição a sua melhor
descrição. Na tematização da ética do Discurso, Habermas leva este aspecto às últimas
conseqüências. A dimensão transcendental do discurso passa a ser entendida como a principal
instância reguladora das sociedades ocidentais modernas. O fenômeno que Habermas nomeia por
"descentramento do mundo" designaria a passagem de uma sociabilidade centrada na eticidade para
a perspectiva da "moralização da sociedade". Não seria imprudente dizer que a "moralização da
sociedade" é contemporânea à racionalização do mundo da vida. Ou melhor, a racionalização do
mundo da vida é tanto o pressuposto histórico da moralização da sociedade quanto a condição da
ética do Discurso. Diante do processo de erosão da unidade das esferas sociais, Habermas
argumenta que o fundamento normativo que restou às sociedades modernas é fornecido por este
mesmo movimento erosivo. O desenvolvimento da racionalidade formal ofereceria a perspectiva
pela qual a resolução cognitiva dos impasses de ordem prático-moral pode ser alcançada.
Novamente, o sentido contraditório da modernidade ocidental ganha relevo: quanto maior o nível
de abstração da fundamentação normativa maior o seu grau de efetividade social e de adequação
histórica15.
A despeito do desenvolvimento sociocultural do Ocidente fornecer as condições para a
universalização da fundamentação racional da moral, a hipótese do discurso ser incapaz de
estabilizar minimamente os consensos é uma questão fora da alçada desta fundamentação. Retorna
neste ponto de brecha a diferenciação entre os contextos da fundamentação e da aplicação das
normas. Na esteira de Kant, Habermas, como antes mencionado, não confunde os dois registros. A
15
Por esse motivo, a crítica sobre uma suposta "abstração reificante" em Habermas não parece razoável.
Com uma astúcia admirável – ainda que contestável -, sua teoria é capaz de conciliar duas perspectivas
tradicionalmente distantes. A abordagem pragmático-linguístico não nega a análise histórico-sociológica dos
textos de juventude. Tanto em uma quanto na outra permanece a grande questão sobre a possibilidade da
eficácia normativa da razão na sociedade contemporânea.
50
noção de um discurso argumentativo tal como ele o entende promove a exposição das regras da
ética do Discurso, reconstrução das pressuposições inevitáveis a serem adotadas pelos participantes
em uma situação comunicativa. Ainda que se aceite as premissas da ética do Discurso, não convém
ignorar os problemas e as incongruências típicas de uma relação de implicação entre universalidade
dos princípios e a dimensão particular de sua aplicação. Neste particular, entre as críticas mais
incisivas a Habermas, as realizadas por Wellmer (1994) dirigem-se, sobretudo, para a
inconsistência da tese que infere o princípio moral universalista a partir das pressuposições do
conteúdo normativo da argumentação, idéia base da ética do Discurso. Afirma Wellmer que as
regras da argumentação, por não regularem a entrada ou o abandono dos participantes do contexto
argumentativo, não poderiam ser concebidas como normas morais:
"(...) se estas normas me dão liberdade para escolher se desejo participar ou não
de uma argumentação, se desejo interromper ou não os diálogos, então resulta
inverossímil a primeira vista entendê-las como se possuíssem um conteúdo
moral." (Idem: 127)
"Parece muito mais estar em jogo um tipo de "dever" relacionado com regras
constitutivas; em minha qualidade de argumentador, eu não posso questionar
este "dever", porque é constitutivo para a praxis da argumentação." (Ibidem:
129)
O peso das críticas à ética do Discurso exigirá resposta (HABERMAS, 2000). Em relação à
referida crítica wellmeriana, que contesta a analogia entre pretensões normativas de validez e
pretensões assertóricas, Habermas defende que os pressupostos pragmáticos universais não devem
ser reduzidos à dimensão da aplicação das normas, mas, antes, é necessário entendê-los como uma
espécie de "intimação transcendental" (Idem: 140). De fato, a este respeito, não há escolha na
práxis argumentativa, já que os participantes, na medida em que se posicionam enquanto tais, "não
podem menos do que praticar determinadas idealizações sob a forma de pressupostos da
comunicação" (Ibidem: 141). No entanto, isto não significa perda do sentido normativo dos
pressupostos da comunicação, pois as "idealizações tem um conteúdo normativo no sentido amplo"
(Ibidem: 141), isto é, não são responsáveis pela função de regulação da ação, mas "suposições
antecipantes" que impediriam o agir estratégico, isto é, a instrumentalização do contexto
intersubjetivo segundo interesses específicos. Dizer que a suposição de racionalidade é pressuposto
da argumentação não é o mesmo que atribuir-lhe a responsabilidade de regular um agir racional.
Corresponde a esta tarefa, lembra Habermas, dispositivos institucionais para que "condições
51
idealizantes, já desde sempre pressupostas pelos participantes da argumentação, possam ser
preenchidas pelo menos numa aproximação suficiente”. (HABERMAS, 1989: 115) Também em
relação à reconstrução do saber pré-teórico, Habermas reconhece a dimensão ideal das condições
da argumentação, implicando, deste modo, a consideração da falibilidade da sua fundamentação.
A noção de que as pressuposições pré-discursivas do agir comunicativo não são falíveis,
embora a reconstrução deste saber intuitivo o seja, ajusta-se às exigências de uma concepção pós-
metafísica. Em resposta a Wellmer, Habermas estabelece novamente uma separação entre a
fundamentação do princípio moral e o registro de sua aplicação. Ressalta que a falibilidade da
reconstrução proposta pela Pragmática Universal não se deve a um déficit de fundamentação. As
condições históricas do mundo social são diferentes do estado de coisas do mundo objetivo. Daí a
delimitação do campo das éticas deontológicas estar condicionado historicamente, ainda que
mantenha seu sentido transcendental, afinal, elas "supõem somente que o ponto de vista moral
permanece sendo idêntico, mas tanto nossa compreensão desta intuição fundamental como as
interpretações que damos às regras moralmente válidas ao aplicá-las a casos imprevisíveis estão
sujeitas à variação." (Idem.: 150) Habermas já alertara para o fato de que as éticas deontológicas
dependiam de contextos culturais secularizados onde a racionalização do mundo da vida estivesse
em estado avançado. Aqui, a tematização formulada é claramente de inspiração weberiana. A ética
do Discurso seria um esforço de explicitação das cisões e diferenciações entre as esferas de valor
para a garantia do terreno pertinente a argumentação e justificação moral. Se a modernidade é um
projeto inacabado e se o horizonte da reconciliação é uma regulação possível, saída proposta por
Habermas é moderna justamente porque reconciliatória, mas uma reconciliação que considera as
cisões que definem inexoravelmente a modernidade. A ética do Discurso responsabiliza-se por
carregar em seu bojo o universo histórico que a determina. Uma posição sagital que atualiza a
crítica imanente como atitude de efeitos sociais vinculantes.
A geometria habermasiana
52
transcendentais e às reivindicações de uma "fundamentação última" dos problemas prático-morais,
concepção que justifica a interlocução com a teoria psicológica neopiagetiana de Kohlberg.
Para a construção de seu modelo, Kohlberg teria partido de três noções fortes: a) "os estágios
do juízo moral formam uma seqüência de estruturas discretas que é invariante, irreversível e
consecutiva" (Idem: 156); b) esta seqüência submete-se à hierarquização entre estágios e, por fim,
c) que cada um deles é uma totalidade estruturada. Assim compreendido, o desenvolvimento moral
não admitiria regressões, "saltos" ou vias diversas aos estágios determinados. A passagem de um
estágio ao outro deve ser interpretada como ganho cognitivo na habilidade em solucionar
consensualmente conflitos postos à ação moralmente motivada. Analogamente, a passagem do agir
comunicativo à ética do Discurso pressupõe uma mudança de atitude, no sentido daquela que
tematiza moralmente questões de justiça e que surge mediante uma crise referencial cognitiva.
Nela, os parâmetros da ação até então vigentes perdem a sua capacidade de significação, ocasião
que exige a reconstrução de um novo patamar normativo conforme o rearranjo entre a estrutura
cognitiva existente e as habilidades adquiridas pelo aprendizado moral. A condição para a entrada
na ética do Discurso é o reconhecimento da argumentação como meio de resolução de conflitos, a
superação da predisposição a uma intersubjetividade sustentada por pretensões de validez intuitivas
que definem a prática comunicativa do cotidiano. Disso decorre a prerrogativa anti-natural da ética
do Discurso. No plano histórico, a desorientação referencial e a atitude da ética do Discurso seriam
figuras do "desencantamento do mundo". Para dar maior consistência a uma teoria do
desenvolvimento moral, seria preciso criticar o modelo Kohlberg. São duas as principais críticas
dirigidas ao seu modelo de desenvolvimento moral, a saber, a impossibilidade de falar em estágios
naturais no plano pós-convencional e a questão sobre qual o lugar reservado pelo modelo ao grupo
dos céticos e relativistas morais.
Em relação à primeira crítica, Habermas diferencia os estágios do plano pós-convencional
daqueles pertencentes às instâncias convencional e pré-convecional. Defende com isso a idéia de
que os estágios do plano pós-convencional não compartilham com os demais o sentido inevitável
de um desenvolvimento natural. O próprio Kohlberg, em suas pesquisas posteriores, abandonou a
hipótese da existência do último estágio. Habermas estende os limites desta reformulação e inclui
também o penúltimo estágio, ou seja, estágios que designavam o plano pós-convencional no
modelo kohlbergiano. A destruição da naturalidade dos estágios reflexivos do desenvolvimento
moral permite a Habermas aproximar os juízos morais orientados por princípios aos processos
epistemológicos das ciências reconstrutivas. Esta aproximação só é possível porque os juízos
morais conduzidos por princípios pressupõem a reconstrução das intuições valorativas, condição
que permite qualificá-los desde o início como juízos teórico-morais. Quanto à segunda crítica,
Habermas afirma que a teoria kohlbergiana não é capaz de explicar a hipótese de regressão e as
ambigüidades colocadas pelo cético ou pelo relativista moral. As pesquisas empíricas de Kohlberg
53
teriam, neste particular, produzido resultados que fragilizaram a força elucidativa do seu modelo.
As figuras do cético e do relativista moral seriam expressões das insuficiências teóricas do modelo,
pois, embora possuíssem características empíricas que exprimem um avançado desenvolvimento
cognitivo, não puderam ser classificados segundo as categorias especulativas de Kohlberg. Para
Habermas, estas incompatibilidades repõem o clássico problema da relação entre moralidade e
eticidade.
A relação entre eticidade e moralidade repõe o problema da distinção entre aplicação e
fundamentação das normas e, conseqüentemente, a questão da intensidade motivacional de uma
ética deontológica. Esta distinção é um dos postulados da ética do Discurso, uma vez que o
aprendizado moral que ela requer implica superação da crise cognitiva decorrente da disjunção
entre universo valorativo imediato ao mundo da vida e o mundo social ordenado por categorias
reflexivas. Assim, a moral pós-convencional responde aos dilemas de ordem valorativa mediante
soluções para as quais a única força motivacional advém da "motivação racional dos
discernimentos." (Ibidem: 213) A razão tomada a si mesma como motivo da ação não garante, no
entanto, a aplicação das normas conforme a sua fundamentação racional. Isto seria pensável se
fossem anuladas todas as demais variáveis, ambiente necessário à especulação engendrada pelas
categorias metafísicas. Por não se tratar de reavivá-las, a "motivação racional dos discernimentos",
para Habermas, indica apenas uma forte tendência à concordância entre fundamentação e aplicação
das normas. Não há como evitar um certo desvio. A falibilidade é condição de toda reconstrução
teórica. Ela diz respeito a dois registros, o da impossível totalização discursiva dos pressupostos
pragmáticos do entendimento mútuo e o da distância entre fundamentação e efetividade das
normas.
Se o problema da motivação das éticas deontológicas somente se estabiliza através deste
argumento auto-referencial, a solução dada não ultrapassa os limites encerrados pelo próprio
problema. Isto por si só, no entanto, não autoriza contestações mais incisivas à ética do Discurso. A
auto-referencialidade pode ser interpretada como um possível recurso de justificação. A extração
transcendental operada por Habermas para a fundamentação da ética do Discurso é um bom
exemplo disso. Pouco importa, levando-se em conta o aspecto específico deste problema, se ela
tenha sido dedutiva, à maneira de Kant, ou não, como realmente foi o caso, visto que o contexto
pragmático do qual foram extraídos os pressupostos da ética do Discurso é imanente a situações
intersubjetivas, ou seja, a uma estrutura efetiva do mundo social. O sentido auto-referencial tem
mais a indicar outro aspecto, este sim rico em contradições; ele designa antagonismos descritos e
analisados por Habermas tanto no registro histórico-sociológico da Mudança Estrutural, quanto no
pragmático-linguístico da ética do Discurso.
Em Mudança Estrutural, Habermas descreve o desenvolvimento contraditório da esfera
pública burguesa. Porque elevada à função política e incorporada como princípio de dominação do
54
Estado, ela enredou uma trama de conseqüências, já desde o seu princípio, antagônicas. Um
princípio normativo geneticamente contrário à dominação estatal, no momento em que caminha
para transformar-se na própria dominação, não pode isentar-se de contradições. A autonomia da
esfera pública, sua realidade positiva, engendra a sua própria negação. Nos estudos sobre a ética do
Discurso, por sua vez, o sentido da auto-referência é trabalhado de outra maneira. A formalização
necessária e que diferencia as éticas deontológicas das éticas do bem viver é o procedimento que
identifica a possibilidade de universalização engendrada por considerações racionais sobre
impasses de natureza valorativa. Aí reside a contradição incorporada pela ética do Discurso. À
medida que o mundo da vida deixa de oferecer os referenciais intuitivos para o sentido da ação, as
condições para o aprendizado moral são criadas. Isto, no entanto, com a conseqüência de que a
força motivacional das normas tenha que buscar a sua fonte na razão mesma ou neste universo
social racionalizado. A ética do Discurso fundamenta cognitivamente as normas pelo procedimento
racional deste resgate sem, no entanto, responsabilizar-se pelos efeitos de sua aplicação, âmbito do
qual não pode reivindicar controle. Foi exatamente neste aspecto que a mencionada crítica de
Wellmer se deteve. Como qualificar de normativo condições que são imanentes ao contexto
comunicativo? A resposta de Habermas pela "intimação transcendental" reforça o sentido auto-
referencial de sua ética. A falibilidade das reconstruções discursivas do fundamento normativo do
agir comunicativo é a força e a fraqueza da solução que apresenta. Em função da falibilidade
explícita de todo saber teórico no interior de uma sociedade pós-convecional, nada justificaria uma
fundamentação última. Mas a consideração da falibilidade das reconstruções teóricas não
impediria, pelo contrário, só fortaleceria a tese de uma universalidade transcendental pré-teórica
dos pressupostos pragmáticos da comunicação e da interação intersubjetiva. Não há saída. Ou se
aceita a existência de tais pressupostos ou então incorre-se em “contradição perfomativa”. É este o
modo como Habermas enfrenta o problema do ceticismo. A fundamentação pode ser criticada, já
que falível, mas não a vigência dos pressupostos da comunicação. Não existe outra alternativa ao
menos que a própria validade pragmática dos pressupostos de uma interação intersubjetiva seja
contestada. Isto é, não se trata mais de teoria, mas de eficácia prática do que está sendo especulado.
Não há mais sentido em negar argumentativamente a primazia da argumentação, traço dogmático
que merece investigação. Todavia, não teria sido o próprio Habermas quem primeiro vislumbrou o
risco de dogmatismo em toda fundamentação normativa? A exigência de verificação empírica da
fundamentação proposta pela filosofia não estaria procurando combatê-lo? Novamente, a figura da
auto-referência esclarece. Embora defenda a necessidade de recorrentes verificações daquilo que a
filosofia propôs como fundamentação, Habermas jamais coloca em dúvida a existência de um saber
pré-teórico como postulado do entendimento mútuo. Se a falibilidade é prerrogativa das
reconstruções teóricas e os pressupostos pragmáticos da comunicação são o seu fundamento, os
limites da cognição seguem assim uma expansão controlada. A falibilidade de suas reconstruções e
55
a capacidade da argumentação justificar perspectivas morais configuram a dimensão expansiva da
ética do Discurso. Deste atributo deriva-se a possibilidade de um princípio normativo
universalizável, cujo mérito residiria em sua capacidade de representar (e, assim, controlar) os
pressupostos pragmáticos do agir comunicativo. Representação de uma forma operacional, melhor
dizendo, representação de um procedimento cuja validade deve ser verificada pelo discurso prático,
o princípio da ética do Discurso produz uma montagem por elementos auto-referenciados, calcada
no pressuposto da existência de práticas intersubjetivas sem as quais a reprodução das relações
sociais não existiria. O corolário que se segue consiste na proposição da viabilidade do resgate
discursivo deste universo intuitivo. A afirmação da falibilidade destas reconstruções teóricas
garante uma solução metodologicamente controlada e historicamente circunstanciada.
Defender uma "fundamentação última" sem que isto implicasse a refiguração do pensamento
metafísico é, para Habermas, uma impossibilidade histórica. Se de fato o desenvolvimento
ocidental moderno assumiu a direção do crepúsculo da metafísica, então, seria uma inconseqüência
filosófica e histórica preconizar sentido oposto. Mas tão anacrônico quanto reavivar a velha
metafísica seria atribuir-lhe uma teoria e uma ética. A noção habermasiana de falibilidade põe em
movimento o proceduralismo da ética do Discurso e o vincula ao processo prático da
argumentação. Em outras palavras, ela permite uma fundamentação normativa auto-referencial sem
o agravante metafísico de uma ontologia ou convencionalismo ético. Para Habermas, apenas
quando o substrato dos costumes e tradições culturais se desloca para fora dos limites da
normatividade eficiente é que a problematização da fundamentação autônoma e racional da moral
passa a ser realmente reconhecida como um imperativo. Na historicidade pós-convencional, o
ponto de vista moral, ancorado nas estruturas do agir comunicativo, revela-se o mais adequado e
evoluído cognitivamente. Habermas atenta que a reciprocidade intersubjetiva já está presente nos
estágios precedentes: "Nesta medida, a moral fundamentada na ética do Discurso apóia-se num
modelo que é, por assim dizer, desde o início inerente à empresa do entendimento mútuo
lingüístico." (Ibidem: 197) Deste modo, a conciliação defendida, novamente, ganha forma pelo
imbricamento entre análise histórica e abordagem pragmático-linguística, pela transcendentalidade
do fundamento normativo da ética do Discurso e na reprodução da sociabilidade pós-metafísica.
A serviço do propósito de justificar racionalmente o fundamento normativo da democracia
liberal, a “virada lingüística” habermasiana indica uma transformação programática, da
“reconstrução do materialismo histórico” (HABERMAS, 1990) para a “teoria do agir
comunicativo” (HABERMAS, 1989). A fundamentação transcendental de Habermas precisa
reconhecer uma dimensão sincrônica nos processos de interação social. Para além de Weber e
contra Marx, a extração transcendental deste fundamento na contingência da sociedade moderna
evidencia o sentido do programa habermasiano de pesquisa. Como bem observou Anderson (1984),
a linguagem, aqui, é um meio de clarificação da razão, referência de justificação do fundamento e
56
não o próprio fundamento da moralidade democrática. A linguagem, depurada na forma das
“condições ideais de fala” (HABERMAS, 1989) e por intermédio de seu contexto pragmático, é
convertida em tópica do consenso. Sua idealização exige uma imanência historicamente inscrita no
social. Daí a falibilidade de toda fundamentação racional dos valores. Na ausência da suposição
desta instância transcendental, não há como contexto prático algum realizar racionalmente o
entendimento mútuo. É este o ponto cego da “virada lingüística” de Habermas, denunciado por
muitos de seus críticos.
Ir de encontro ao primado da linguagem em Habermas não acrescentaria muito ao conjunto
de críticas já realizadas exaustivamente durante as duas últimas décadas. O que o programa
habermasiano tem de atual não é propriamente a razão de seu sucesso ou fracasso, mas a figuração
social de que é expressão. A solução ao problema da conflituosidade irreversível da modernidade
fez uso da linguagem em sua dualidade constitutiva. Ao conferir valor normativo à dimensão
transcendental, deu forma discursiva ao esgotamento do ideário liberal de regulação social,
designou a impossibilidade epistemológica de seu próprio discurso, de intenções e orientação
liberais. A idéia de falibilidade da fundamentação racional dos valores é prova disso. Aberta ao
infinito, ela explicita sua significação. As condições de fala são, se aceitas, transcendentais, mas
não o ato comunicativo. É permitido validar apenas a idéia de que seja possível justificar e
legitimar racionalmente o consenso, mas nunca a garantia de que ele ocorrerá. Há “intimação
transcendental” para o entendimento mútuo, contudo ele depende, em grande medida, de
instituições que possam respaldá-lo (HABERMAS, 2000). Deste modo, Habermas restitui o
princípio de divisão dos poderes do Estado liberal entre as instâncias responsáveis pela justificação
e aplicação das leis (HABERMAS, 1984), recuando, portanto, diante da objetivação contida no
formalismo teórico da ética do Discurso. A falibilidade é o nome da insuficiência do formalismo
habermasiano. Daí por que ainda não se trate do formalismo revertido em modelo de objetivação
das estratégias de controle social. O anúncio do paradigma de poder centrado no corpo e na vida se
deixa ver na sua tentativa de extrair discursivamente o transcendental da linguagem e na
caracterização de uma subjetividade de capacidades cognitivo-morais como o sujeito da “vontade
comum” democrática. Ao reconhecer a falibilidade, Habermas revela que seu discurso não é
animado pelo afeto característico do novo paradigma. Seu formalismo não é portador dos
elementos de uma figuração totalitária do poder, do corpo e da vida como referências
organizadoras da dominação. É somente com a entrada destes elementos que o formalismo
normativo pode ganhar efetividade histórica no âmbito da teoria.
57
III. A emergência da vida
Embora seja precipitado ratificar imediatamente a afinidade, proposta por Perry Anderson
(1984), entre Habermas e uma vertente teórica aparentemente tão estranha ao seu programa de
pesquisa, como é o caso do estruturalismo francês, seria recomendável apreciar melhor esta
questão. Muito além de apenas localizar a primazia da linguagem como o fator que teria
determinado esta afinidade, mais adequado sugere ser compreender a modalidade de controle social
subjacente à tese da linguagem como elemento regente da sociabilidade. Não seria este o momento
para analisar as limitações e contradições do diagnóstico habermasiano de substituição do trabalho
pela ciência como “principal força produtiva” (HABERMAS: 1987), mais um dos seus
argumentos contrários a Marx? Levado ao extremo, o conhecimento como esfera de produção do
valor parece desautorizar o próprio dualismo estabelecido por Habermas. O atributo da
intangibilidade e a aversão à equivalência mercantil, prerrogativas do conhecimento, determinam a
diluição da fronteira entre ação instrumental e interação comunicativa. O capitalismo
contemporâneo, nestes termos, não teria encontrado no primado da linguagem a sua melhor
representação ideológica? Mais condizente seria, talvez, subverter o dualismo habermasiano com a
hipótese de que os atuais mecanismos de sujeição configuram-se como uma linguagem.
Esta hipótese encontra expressão nas análises sobre a imaterialidade do “capitalismo
cognitivo” ou “capitalismo do conhecimento” empreendidas por André Gorz (2005), ainda que de
modo genérico e restrita a uma concordância no que se refere à observação da natureza disruptiva
dos fenômenos indicados. Já no plano interpretativo, com o qual a hipótese não revela qualquer
aderência, Gorz afirma que trabalho e capital seriam cada vez mais caracterizados pela ausência de
uma medida em comum, antes ocupada pelo tempo socialmente necessário para a produção das
mercadorias. Em uma economia como esta, “toda a produção (...) se assemelha a uma prestação
de serviços”, o que significa que “os fatores que determinam a criação de valor são o ‘componente
comportamental’ e a motivação” (Idem: 9). Daí por que o trabalho também seja, ao mesmo tempo,
capital. A própria distinção entre capital e trabalho como categorias analíticas perde seu conteúdo
explicativo. Não se trata de negar a produção do valor pelo trabalho, mas a idéia de que o valor
seria objetivado pelo tempo de trabalho. Não sem motivo, Gorz recorre ao caráter contraditório do
conceito de “capital humano”, segundo ele, já presente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de
Marx (Ibidem: 16). “Inteligência”, “saber” e “imaginação” caracterizariam este capital paradoxal,
esta força produtiva desdobrada sobre si mesma, donde a conclusão de que “trabalhar é produzir-
se” (Ibidem: 17). A abordagem de Gorz é predominantemente econômica. Para explicar o
58
surgimento deste capitalismo ou mesmo de sua crise, recorre à análise das transformações
observadas nas últimas décadas nos países do centro do capitalismo, sobretudo nos Estados Unidos,
no que tange à acumulação do capital e ao seu escoamento para os mercados financeiros. Segundo
Gorz, até 2000, ano da quebra da bolsa de valores da “nova economia” (Nasdaq), as avaliações e
prognósticos dos operadores do mercado financeiro eram consensuais sobre a tese de valorização
permanente das ações do setor de informática, a despeito da tendência mundial de estagnação
econômica. Os “ativos imateriais”, alavancados pelo declínio do setor produtivo e pela
desregulamentação do mundo do trabalho, geraram interesse generalizado de investimento
especulativo justamente em razão de sua intangibilidade. As taxas exorbitantes de acumulação de
capital, proporcionadas pelos anos dourados da era Reagan, necessitavam de novo escoamento,
cujo volume mostrou-se impossível de ser assimilado pela “economia real”, encontrando
viabilidade na “nova economia”. De modo integrado à expansão do crédito interno para consumo e
de externo para os países do “terceiro mundo”, o investimento financeiro nos “ativos imateriais”
configurou um cenário sócio-econômico cuja manutenção supostamente não dependeria mais do
desenvolvimento do setor produtivo. Para manter a lucratividade, o capital financeiro teria
acentuado a política de crédito sob rígido monitoramento da insolvência. Lembra Gorz que, no
patamar que atingiu o setor financeiro na economia mundial, tornara-se imprescindível oferecer
crédito não apenas para o consumo, mas também para o próprio pagamento dos juros. A economia
financeirizada estaria vinculada cada vez mais a uma infinita espiral de imaterialidade do capital e
do trabalho, somente possível ao custo de um “êxtase de consumo”, propalada pela “indústria
publicitária”, e de uma expansão mercantil incessante, observáveis nos novos contextos e
dimensões de produção de mercadorias.
O conceito de capital humano remete ao curso ministrado por Michel Foucault no Collège de
France, no biênio 1978/1979 (FOUCAULT, 2004). Neste curso, único em que trata explicitamente
de uma temática contemporânea, Foucault questiona quais seriam as condições para a emergência
do “homo oeconomicus”, o “sujeito” do “neoliberalismo”. Na esfera da produção teórica, esta
reconfiguração epistêmica ganharia síntese e transparência na “teoria do capital humano”
desenvolvida pela Escola econômica de Chicago. Nota-se, logo aqui, que o capital humano de que
fala Gorz não é exatamente o mesmo trabalhado por Foucault, ao menos em sua datação histórica.
Gorz não cita diretamente a teoria do capital humano. Além disso, não utiliza a expressão
“neoliberalismo”. Este aspecto terminológico deve ser ressaltado. Se a tivesse utilizado, certamente
assumiria uma perspectiva interpretativa que bloquearia a indicação dos elementos emancipatórios
contidos no desenvolvimento descomunal do conhecimento, já que, para Gorz, o “capitalismo dito
cognitivo é a crise do capitalismo” (GORZ, 2005: 43). No entanto, as análises de Gorz e Foucault
podem ganhar convergência, embora a periodização histórica e o seu sentido, em Foucault, sejam
mais amplos e distantes no tempo do que os reconhecidos por Gorz. Em comparação ao
59
liberalismo, segundo Foucault, no neoliberalismo o exercício do mercado não seria mais um modo
de limitar a ação estatal, mas de ser “o princípio de regulação interna do Estado (…) um Estado
sob vigilância do mercado em vez de um mercado sob vigilância do Estado". (FOUCAULT, 2004:
120). Como Gorz, Foucault identifica a transformação da vida, no que se refere aos seus atributos
biológicos e biográficos, em objeto de controle social. Tanto o trabalhador obrigado a “produzir-
se" (GORZ, 2005: 17) como o “homo oeconomicus empreendedor de si mesmo" (FOUCAULT,
2004: 232) são expressões de uma reconfiguração histórica do poder, seja ele concebido como
poder econômico, seja como estratégia de generalização da economia enquanto princípio de
regulação social. Como já mencionado, o “neoliberalismo” operaria um deslocamento das
coordenadas do diagrama liberal, produzindo novas articulações, não tanto entre Estado e mercado,
mas entre economia e indivíduo, donde o “intervencionismo jurídico” que lhe é característico.
Afirma Foucault que “não se trata de prolongar o capitalismo, mas de inventar um novo
capitalismo”. Uma nova modalidade de controle ganha emergência, mediante a qual “o mercado
deve funcionar de tal modo que seus mecanismos puros sejam eles próprios reguladores do
conjunto. Conseqüentemente, não se intevêem sobre as leis de mercado, mas se faz com que as
instituições sejam tais que serão efetivamente essas leis, e apenas elas, que sejam o princípio da
regulação econômica geral e, deste modo, o princípio da regulação social. Portanto, nenhum
intervencionismo econômico ou o mínimo de intervencionismo econômico e o máximo de
intervencionismo jurídico.” (FOUCAULT, 2004: 172).
Na designação foucaultinana do neoliberalismo, a dimensão do vivente das populações e do
indivíduo é capturada pela esfera econômica, mas não no sentido weberiano do conflito politeísta
de valores, tampouco como uma colonização marcada pela invasão do “mundo da vida” pelo
“sistema”. Estado e mercado são diferentes designações de um mesmo dispositivo de poder, de um
modo de governo por meio do qual a vida é assimilada em sua positividade. Resultado de longo
processo histórico, tracejado por afinidades eletivas que impedem uma proposição teleológica, esta
modalidade de exercício do poder justifica-se e funciona pela defesa da sobrevivência das
populações e não em nome do princípio jurídico da soberania. Entre o “corpo-máquina”, adestrado,
docilizado, disciplinado, e o “corpo-espécie”, ser vivo e suporte biológico, se forjou o “biopoder”
(FOUCAULT, 1984 : 131-132). Nele, o sistema jurídico da lei curva-se à norma, submete-se cada
vez mais a ela. “Uma sociedade normalizada é o efeito histórico de uma tecnologia de poder
centrada na vida” (Idem: 135). É aqui que a sexualidade e o capitalismo neoliberal podem ganhar
encontro na análise da biopolítica foucaultinana. Como dispositvo normalizador, a sexualidade
engendra uma malha de controle social capaz, a um só tempo, de produzr a incidência
individualizada e demográfica do poder. Psicanálise e medicina social, entre tantos outros pares
disciplinares, fazem supor uma universalidade capturável pelos saberes. Por sua vez, “o novo
capitalismo” constitui um modo de governo carregado de aversão e fobia do Estado, uma crise
60
epistemológica circunscrita por uma crise de “governamentalidade”. Agora, não se trata mais do
“jogo de soma zero” dos economistas clássicos, do estudo dos mecanismos de produção, troca e
consumo, mas do saber sobre as formas como os indivíduos administram os recursos escassos na
consecução de suas satisfações, donde o problema neoliberal por excelência: compreeder como o
trabalho utiliza estes recursos. Novo estatuto para o trabalho. As medidas transformam-se em
qualidades, de valor potencialmente econômico e materializados na vida de cada indivíduo. Da
mesma forma que o dispoitivo da sexualidade, a economia neoliberal, sobretudo na teoria do
capital humano, dissemina os objetos de controle, ordena uma racionalidade estratégica, coloca em
discurso um mote e uma motivação, produz um sujeito e um saber, pela primeira vez, “do ponto de
vista do trabalhador ”, já que seu alicerce é tão-somente a vida, no bifronte de suas qualidades
“inatas” e “adquiridas” (FOUCAULT, 2004: 229).
A emergência da vida no centro da “governamentalidade” significa a imisção do mercado no
social, não para normalizá-lo, mas para libertá-lo. Se, como quer Habermas, o princípio de
publicidade do liberalismo constituiu-se como expressão ideológica dos pressupostos
instituicionais de formação da esfera pública burguesa, no neoliberalismo, dirá Foucault, trata-se,
antes, da fundação do Estado pelas exigênciais da economia (Idem : 223). É talvez por esta razão
que seja mesmo factível afirmar que, diante da constatação da captura neoliberal da vida, a
linguagem e os processos comunicativos, experimentados na intersubjetividade da sociabilidade
mais ordinária, se converteram no próprio paradigma da dominação. Hipótese que exige que as
premissas conceituais postas até agora sejam de alguma maneira relacionadas. Mais uma vez:
exigência irrealizável se mantida no registro original dos autores. Como estabelecer uma
continuidade entre trabalho, linguagem e vida sem incorrer em anacronismo? Uma continuidade
como esta impõe a presunção de um controle individual, socialmente universalizado, praticado por
um poder, ainda que difuso, de soberania sobre todos.
61
Ela não constitui um acontecimento único, divorciado no espaço e no tempo. O instante mítico do
ato fundador estabeleceria com a lei um laço de exterioridade íntima, para o qual Agamben propõe
uma topologia apoiada em um paradoxo da teoria dos conjuntos16, que se articula pela integração
disjuntiva de duas relações lógicas: a inclusão e o pertencimento. O ato fundador estaria despojado
da inclusão “no todo ao qual pertence” e apartado do “conjunto no qual está desde sempre
incluído”, formas lógicas de uma “crise radical de toda a possibilidade de distinguir com clareza
entre pertencimento e inclusão, entre o que está fora e o que está dentro, entre exceção e norma”.
(Ibidem: 32). O poder soberano não diz respeito à regulação da reprodução social; ele não sanciona
uma ordem disciplinar. A partir de um “indecidível”, institui a tópica jurídica. Sua lógica se revela
pelo retorno da indistinção fundante entre a lei e a violência, uma possibilidade permanente em
todo ordenamento. Esse retorno não implica o reconhecimento de um incontornável mal da
contingência, mas, pelo contrário, a atualização de sua ontologia.
O instante ontológico da soberania pressupõe uma pura afirmação existencial, donde a
violência mítica que o acompanha e a impossibilidade de inscrevê-lo em uma série temporal. A
dimensão pontual e evanescente do ato fundador exige, para a sua apreensão teórica, uma relação
figurativa apoiada na forma lógica do paradoxo. Isto porque somente ela seria capaz de indicar o
lugar da enunciação soberana, espaço semântico e temporalmente vazio, o “estado de exceção”.
Novamente, é por meio da referência à linguagem que Agamben retira a expressão topológica do
ato soberano. Diferentemente de Carl Schmitt (2001a), o soberano não é definido em função de
uma prerrogativa de poder - a decisão de suspensão da lei - e tampouco o conceito de político
depende de uma polarização ao modo da relação amigo-inimigo (SCHMITT, 2001b). Agamben
serve-se da aporia simbólica sobre a origem da linguagem para responder a estas duas teses. A
topologia do “estado de exceção” configuraria uma “pura forma de referir-se a alguma coisa em
geral, isto é, a simples colocação de uma relação com o irrelato” (AGAMBEN, 2002a: 36),
deslocaria o estatuto lógico do problema sobre a origem da linguagem, inscrevendo, por intermédio
de um “indecidível”, um lugar para o instante da fundação da ordem simbólica. A totalização da
alteridade da linguagem – o “irrelato” – serve como anteparo para afirmação de uma pura
existência, nesse caso, a existência da própria linguagem. Essa forma de polarização não identifica
os fenômenos sócio-históricos em sua determinação política, como professa Schmitt. A operação
que permite essa localização topológica do “estado de exceção” é estritamente formal. Todavia,
não nos termos de uma adequação teórico-metodológica. O estatuto da soberania designa uma
objetividade formal, a exemplo da linguagem. Para formalizar essa objetividade, Agamben recorre
16
A referência obrigatória sobre o assunto é o estudo de Bertrand Russell sobre os paradoxos de auto-
referência, um marco na história da lógica contemporânea. Ver RUSSELL (19-?). Para uma abordagem
técnica, mais circunscrita ao contexto intelectual e histórico dos debates, ver KNEALE & KNEALE (1991).
Em Agamben (2002a), o paradoxo da teoria dos conjuntos atravessa todo o texto, direta ou indiretamente,
servindo como recurso de figuração da “lógica da soberania”.
62
à engrenagem dos paradoxos de auto-referência da teoria dos conjuntos. Assim, o “irrelato” como
exterioridade da linguagem é designado pela estrutura da linguagem, de maneira a incluí-lo na
ordem simbólica, mas por sua exclusão. A linguagem dobra-se sobre si mesma e por uma torção
topológica pode figurar sua alteridade absoluta, o pré-simbólico. Seria justamente essa “inclusão
exclusiva” a forma de captura do vivente pela lei, a mesma instituída pelas democracias modernas,
mais acentuadamente, nas sociedades do Estado do bem-estar social. Nelas, o “corpo biopolítico”
serve de suporte da lei, a própria vida dos cidadãos transforma-se em objeto da decisão soberana.
Daí por que a democracia possa responder ao “desejo da lei de ter um corpo” com a obrigação da
“lei tomar sob seus cuidados este corpo” (Idem: 130) e a razão pela qual Agamben pode propor o
“campo de concentração como paradigma biopolítico do moderno” (Ibidem: 125). Ainda que em
seu momento de reprodução disciplinar, a democracia porta a lógica da soberania, que se atualiza
pela positivação jurídica dos direitos de cidadania, especialmente os que incidem sobre a
sobrevivência material dos indivíduos: “Se hoje não existe mais uma figura pré-determinável do
homem sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente homines sacri.” (Ibidem: 121)
Corresponde à generalização da “vida nua” pelo ordenamento jurídico do Estado
democrático a proliferação de técnicas de controle social, uma ampla malha prático-discursiva
voltada à objetivação da garantia dos direitos. Nesse sentido, os “campos” não configuraram uma
realidade paradigmática por terem explicitado (historicamente) a violência do instante (lógico) da
exceção soberana. Importaria extrair da experiência catastrófica do Lager o que ainda persiste, o
seu resto. Questionará Agamben sobre a figura do “muçulmano”17, o prisioneiro dos “campos” que
ocupou mais do que ninguém a “zona cinzenta” entre a vida e a morte: “o que significa ser sujeito
de uma dessubjetivação?” (AGAMBEN, 2008a: 144). Haveria uma fala a partir da qual a
expressão paradigmática do “indecidível” do Lager poderia se manifestar? Seria concebível um
sujeito em emergência na lógica da soberania? Ao que Foucault delimitou como universo no qual
deveria transitar sua arqueologia, Agamben atribui o núcleo de uma materialidade formal que
indica o “fato bruto” do lugar da linguagem:
17
“Ou como figura nosográfica, ou como categoria ética, ou alternadamente como limite político e conceito
antropológico, o muçulmano é um ser indefinido, no qual não só a humanidade e a não-humanidade, mas
também a vida vegetativa e a de relação, a fisiologia e a ética, a medicina e a política, a vida e a morte
transitam entre si sem solução de continuidade.” (AGAMBEN, 2008a: 56). Em outra passagem, Agamben
expõe com mais clareza a posição “indecidível” do “muçulmano”: “O muçulmano é o não-homem que se
apresenta obstinadamente como homem, e o humano que é impossível dissociar do inumano.” (Idem: 87).
63
como território próprio o puro fato de tais proposições e tais discursos terem
lugar, ou melhor, o fora da linguagem, o fato bruto da sua existência.”
(AGAMBEN, 2008a: 141)
64
direito e a linguagem. A sentença judicial é o resultado de um processo de vinculação de uma
proposição geral a um caso particular, assim como a “passagem da langue à parole”, ambas
mediante uma atividade prática. (Ibidem: 62). Operador da identidade do “povo” hitlerista, a raça
marca a relação de indistinção entre o fato e a norma, a exceção e a lei. A enunciação soberana
mantinha com o corpo judeu a mesma relação topológica de captura do vivente pelo Direito. Por
isso a palavra do Führer foi, antes de tudo, uma voz, plena aderência material à lei, “norma e
critério da sua aplicação”, do mesmo modo como a segregação do corpo dos judeus nos campos
era a produção imediata do corpo alemão. (AGAMBEN, 2004: 179-180). A impossibilidade
absoluta de decisão entre fato e direito não designa apenas um sujeito soberano na figura do líder
do governo. Nos campos, cada funcionário ou agente militar não se depara com um fato
extrajurídico, mas, contrariamente, “cada gesto, cada evento”, “do mais ordinário ao mais
excepcional, opera a decisão sobre a vida nua que efetiva o corpo biopolítico alemão.” (Idem:
180).
Todas as analogias históricas estabelecidas por Agamben refletem sua perspectiva
metodológica, em um sentido específico. Ao projetar a dimensão formal da linguagem sobre os
acontecimentos históricos e as configurações sociais, neles inscrevendo as marcas de uma
associação mais ampla, Agamben mimetiza, por intermédio de um formalismo extravagante, o
objeto de sua crítica. Do mesmo modo que o fenômeno político contemporâneo que analisa, seu
método é antes analógico do que qualquer outro, seja ele dedutivo ou indutivo, histórico-
compreensivo ou dialético. Não seria justamente essa a racionalidade da modulação do poder na
atualidade? Conduzidos por esse método, o “estado de exceção” e a “lógica da soberania”
participam da mesma racionalidade, em um aspecto talvez negligenciado pelo próprio Agamben,
embora ele o tenha abordado metodologicamente, a saber, o fato hipotético de que sua defesa
teórica estivesse em pleno acordo com os princípios funcionais do poder. Ao contrário das
regularidades das práticas de dominação em um espaço social contínuo, o fenômeno político
contemporâneo caracteriza-se por uma exigência epistemológica, uma disjunção absoluta extraída
de sua própria objetividade. O modo de governo centrado na vida segue, como Agamben qualifica
o seu programa de pesquisa e também os estudos realizados por Foucault18, a “forma de
conhecimento nem indutivo, nem dedutivo, mas analógico, que se move da singularidade a
singularidade”, o “paradigma”. (AGAMBEN, 2008b: 32). Seria como dizer que o exercício do
18
“Creio que agora torna-se claro o que significa, no meu caso como no de Foucault, trabalhar por meio de
paradigmas. O homo sacer e o campo de concentração, o Muselmann e o estado de exceção – como, mais
recentemente, a oikonomía trinitária ou a aclamação – não são hipóteses através das quais eu pretendo
explicar a modernidade, reconduzindo-a a qualquer coisa como uma causa ou uma origem histórica. Ao
contrário, como sua multiplicidade tem podido fazer entender, se trata de paradigma em cada caso; e seu
objetivo era tornar inteligível uma série de fenômenos, a que o parentesco era fugidio ou podia fugir ao
olhar do historiador.” (AGAMBEN, 2008b: 33)
65
poder se efetiva paradigmaticamente, isto é, sem mediação de uma relação vinculativa entre a lei
universal abstrata e o caso particular concreto. Como já havíamos destacado antes, não seria o
mesmo que uma realização social da função poética jakobsoniana da linguagem? Com o propósito
de apreender equivalências formais e, assim, identificar afinidades inapreensíveis pela estrita
observação historiográfica, o método de Agamben necessita reconhecer o traço objetivante do
conceito. Enquanto orientação teórica e disposição crítica, seu formalismo difere muito do esforço
habermasiano de fundamentação das condições ideais para o consenso democrático e também dos
princípios de formalização forjados pela Lingüística de Ferdinand de Saussure, disseminados no
interior das ciências sociais como o horizonte provável de uma metateoria. A disposição crítica
presente no formalismo que se atém à lógica da soberania não carrega qualquer presunção
transcendental; é, antes, a sua negação.
Uma comparação entre os formalismos teóricos se justifica em razão de três propósitos.
Primeiro, ela introduz a evidência de um paradoxo: o poder soberano não é uma estrutura, ainda
que sua incidência produza algo como efeitos de estrutura. Segundo propósito, de caráter
heurístico. O princípio de equivalência formal é especialmente útil à análise da passagem do
instante do ato de fundação da lei para a ordem social e suas normas e regras de integração.
Terceira e última finalidade, de significação teórica e política. A confrontação entre os formalismos
permite problematizar uma possível identificação da teoria com a forma lógica do objeto
investigado. Sob esta compreensão, o estruturalismo francês e a teoria da ação comunicativa são
tomados, aqui, como parte de um discurso cultural mais amplo. O estruturalismo francês configura
a principal referência epistemológica, para falar com Agamben, do poder soberano na perspectiva
dos fenômenos de linguagem. Apesar de compartilhar as mesmas coordenadas do agir
comunicativo, o estruturalismo francês dele se diferencia ao fundamentar, no limite, seu princípio
teórico a partir da mesma presunção de base do atual paradigma do poder: a indistinção entre a lei e
o social.
A extensão e o significado da adoção do método estrutural podem ser observados com
clareza em seu principal representante, na antropologia levi-straussiana. Não foram e não são
poucas as críticas dirigidas a ela, concentradas, sobretudo, na sua suposta desconsideração da
historicidade das sociedades estudadas. Não é finalidade retomar neste momento a vastíssima
bibliografia a respeito, produzida ao longo dos últimos quarenta anos. Ainda hoje, é possível dizer
que o teor das respostas de Lévi-Strauss aos seus críticos pode ser captado explicitamente no texto
“A eficácia simbólica” (LÉVI-STRAUSS, 1975), publicado originalmente em 1949 e que constitui
uma das mais contundentes defesas do ponto de vista sincrônico de análise. Neste artigo,
contrariando parte significativa das recomendações que fundaram a ciência antropológica, Lévi-
Strauss trabalha com dados secundários. O que o autorizaria a ignorar procedimentos canônicos e
meios de legitimação da análise e investigação etnológicas? Ao que parece, a própria noção de
66
estrutura justifica esta transgressão de método. São evidentes os esforços de Lévi-Strauss em
localizar empiricamente os efeitos de estrutura, defender a validade científica do método estrutural.
A prática xamanística dos Cuna, evocada para as complicações do parto, é o objeto empírico
escolhido para a exposição de seus pressupostos teóricos. Lévi-Strauss procura explicar o fato do
xamanismo ser bem-sucedido naquilo que propõe: curar. Não se trata de uma cena meramente
dramatizada, de uma boa ilustração retórica. A cura é real. A prática xamanística envolve
mediações psicológicas, relacionadas simbolicamente ao estado orgânico da parturiente. O xamã
evoca figuras e personagens, conclamadas a ocupar um lugar na cosmologia mítica dos Cuna. Os
elementos desta simbologia são associados a partes do corpo. O xamã opera, assim, uma criação
significante. O substrato biológico é elevado ao estatuto de artefato cultural. Pelo canto ritual, o
corpo é modulado, investido de um contorno simbólico que possibilita o manejo da patologia. A
cura ocorre porque existem homologias estruturais entre o mito narrado e o próprio corpo, tese
nuclear do artigo. A cura psíquica engendrada pela psicanálise é explicada com o mesmo
argumento. O xamã nomeia as dores para a parturiente, lhe restitui uma ordem simbólica que as
perturbações fisiológicas até então impediam, faz corresponder o registro dos signos ao mundo das
coisas. O psicanalista, que não fornece a narrativa ao paciente, mas sua escuta, alcançaria o mesmo
resultado. Regulada pelas leis estruturais da linguagem, a eficácia simbólica do xamanismo e da
psicanálise “consistiria precisamente nesta ´propriedade indutora´ que possuiriam, umas em
relação às outras, estruturas formalmente homólogas, que podem edificar, com materiais
diferentes, nos diferentes níveis do vivente: processos orgânicos, psiquismo inconsciente,
pensamento refletido.” (Idem: 233).
O conceito de estrutura e o formalismo que enseja são os fundamentos de uma produção
topológica. Segundo os pressupostos do método estrutural, os significados inexistiriam fora das
relações binárias de oposição. Elas são elementos de um sistema inapreensível pela experiência,
organizado por uma sintaxe que dispõe as variações combinatórias, permitindo homologias entre
elementos fenomenicamente diferentes. O método de Lévi-Strauss toma como objeto a forma
lógica e não os conteúdos culturais, o que não significa a exclusão da observação de campo e da
imersão na alteridade social enquanto princípios de pesquisa19. A operação de redução formal repõe
a lógica do objeto no próprio conceito, definindo a teoria ela mesma como uma aplicação da função
19
Segundo Lepine (1974), são três os níveis da análise estrutural. O primeiro, propriamente etnológico, se
atém à experiência da pesquisa de campo. É neste momento que a subjetividade do observador assume uma
postura de identificação crescente com a cultura estrangeira. Este movimento de subjetivação do outro e de
objetivação de si exige a mediação das operações lógicas universais da linguagem, que devem ser indicadas
por uma formalização estrutural, procedimento da segunda etapa. O último nível da análise prevê a
construção de modelos com a finalidade de testar as combinações possíveis no interior da estrutura
formalizada e aferir seu potencial explicativo dos fatos. O modelo não seria uma representação abstrata, mas
a interpretação de um sistema de relações lógicas construído pelo momento anterior de análise. Assim é que a
estrutura jamais poderá ser apreendida diretamente. Ela pode ser estimada, mas nunca observada, pois “seu
tipo de existência é o mesmo que o da língua; é algo que está presente apenas nos seus efeitos, e que inclui
entre seus efeitos a sua própria ausência” (Idem: 44).
67
simbólica. Por esta razão, a ciência, como modalidade específica do pensamento civilizado, foi
tomada, por Lévi-Strauss, como homóloga ao pensamento selvagem20. E a identificação com a
forma lógica do objeto teria feito da Antropologia de Lévi-Strauss a teoria de um “novo
humanismo” (LÉPINE, 1974), traduzida pela hipótese de que as leis da linguagem também
regulariam a ordem natural21. A unificação das ciências superaria seu último obstáculo, trilha aberta
para o retorno da cultura e do homem à natureza pela mesma instância que teria marcado sua
separação, ou seja, pela linguagem:
O postulado estruturalista de que “a linguagem só pode ter nascido de uma vez” (LÉVI-
STRAUSS, 1974: 32) aproxima-se da problematização da temporalidade do ato soberano que
funda o ordenamento jurídico. A perspicácia de Lévi-Strauss poderia ser observada, segundo
Agamben, na idéia de “significante excedente”, cujo sentido não seria outro além de “assinalar o
excesso da função significante sobre o significado” (AGAMBEN, 2002a: 88). Ao contrário de
muitos mitólogos e seus “mitologemas científicos”, produzidos pela incapacidade em dar resposta
ao problema da origem da soberania, ele não projetou sobre as noções de “tabu”, “sacer”, “mana”
a natureza de uma ambigüidade, mas se prontificou em designar o vazio semântico destas
categorias. É preciso dizer mais. Lévi-Strauss verificou também sua função nos sistemas de
classificação. Seriam significantes – segundo sua termologia, “significantes zero” - com a peculiar
capacidade de portar qualquer significado e justamente por isso serviriam à operação de rearranjo
do sistema. Este tipo de significante não mantém relação de oposição com nenhum outro
significante em específico, mas com a ausência de significação em geral (LÉPINE, 1974: 19).
Como a topologia da lógica soberana, o significante zero configuraria um duplo invertido da
20
“A exigência de ordem constitui a base do pensamento que denominamos primitivo, mas unicamente pelo
fato de que constitui a base de todo pensamento, pois é sob o ângulo das propriedades comuns que
chegamos mais facilmente às formas de pensamento que nos parecem muito estranhas” (LÉVI-STRAUSS,
1997: 25).
21
A Antropologia de Lévi-Strauss proporia, segundo Lépine, uma “ética da humildade”, uma “igualdade
fundamental de todos os homens, mas uma forma de igualdade, entretanto, que não desconhece a
diversidade nem a originalidade das culturas. Tal parece ser a última lição do trabalho de Lévi-Strauss que
consegue, paradoxalmente, reunir a frieza de um formalismo intelectual que desmascara todas as ilusões,
todos os pontos de apoio, e um sentimento profundo de fraternidade e de identidade do homem com o resto
da natureza”. (LÉPINE, 1974: 84).
68
linguagem – neste caso, do sistema de classificação –, como um significante da ausência de
significação, e assim definiria as fronteiras das categorias lógicas de uma determinada cultura. Por
isso a consistência do sistema de classificação seja possibilitada por ele. Como os nomes próprios,
o significante zero se aloja nas fronteiras da cultura, lugar tanto de um limite como de um
prolongamento possível, cuja determinação não é um fato de linguagem, mas diz respeito ao
“momento em que cada sociedade declara terminada sua obra de classificação”. (LÉVI-
STRAUSS, 1997: 240). Isto não quer dizer que o pensamento lógico tenha sua origem na
sociedade, mas que uma “relação dialética” regula o “sistema de categoriais” e a “estrutura
social”, pois ambos “traduzem, ao preço de laboriosos ajustamentos recíprocos, certas
modalidades históricas e locais de relações entre o homem e o mundo que formam seu substrato
comum”. (Idem: 239).
No plano da produção intelectual, o estruturalismo ocupou lugar central na crítica ao
humanismo existencialista, de filiação sartreana e agrupado nas fileiras do partido comunista
francês. De modo indireto e contraproducente, deu um sentido cientificista ao problema marxista
sobre as condições históricas impostas pelo liberalismo triunfante do pós-segunda guerra. A
interpretação lévi-straussiana da obra de Marcel Mauss é mais do que indicativa disso. Ela explicita
a operação mediante a qual a relação entre indivíduo e sociedade encontra, na linguagem, uma
objetividade passível de ser tomada pela ciência e na ausência de qualquer formulação política ou
referência histórica determinada. Mauss teria estabelecido uma vinculação não-causal, ainda que
assimétrica, entre as dimensões individual e social, o que lhe permitiu descobrir, para além das
evidências empíricas, “realidades mais profundas” (LÉVI-STRAUSS, 1974: 21). A objetividade
social só poderia advir pela via das mediações simbólicas, totalizadas em uma dimensão
transcendental, já que “o social só é real quando integrado em sistema” (Idem: 14) Seria este o
postulado fundador da antropologia, já em estado germinal na noção maussiana de “fato social
total”. A presença conjunta das dimensões sincrônica, histórica e fisio-psicológica não
caracterizariam um fato social total “pela simples reintegração dos aspectos descontínuos”.
Metodologicamente, o fato social total resulta de uma série de reduções dos fenômenos observados,
sintetizados em uma “significação global”. Em um segundo momento, a averiguação da adequação
teórica desta significação exige a experiência concreta:
69
Este duplo movimento de equiparação entre sujeito e objeto, como já mencionado, foi o
mesmo defendido por Lévi-Strauss como princípio epistemológico da antropologia. Entre o
etnólogo e o nativo, uma constante “empresa de identificação” garantiria a objetividade, pois, entre
eles, existiria uma mediação universal, onde o “subjetivo e o objetivo se encontram, isto é, o
inconsciente”, sempre fora da “apreensão subjetiva”, mas que determina “as modalidades desta
apreensão” (Ibidem: 18). Em outras palavras, a primazia do significante sobre o significado é, a um
só tempo, objeto e pressuposto teórico. É desta forma que o estruturalismo, a despeito das variações
de sua configuração histórica, soluciona o problema, sempre polêmico, da relação entre indivíduo e
sociedade. Sua formalização sistemática do caráter proteiforme da linguagem anuncia o princípio
epistemológico da política de controle focada na vida. A possibilidade histórica de um fato social
total na atualidade passa pela conversão da forma teórica, como pensada pelo estruturalismo, em
modelo de objetivação do poder.
Reavivar o estruturalismo francês, aclimatado pelas polêmicas que sempre o acompanharam,
põe à vista uma estranha marca de nosso presente histórico. Certamente, sua atualidade não decorre
dos trabalhos e debates entre especialistas alocados nos departamentos universitários. Como
referência de análise de contextos e dimensões estáveis e sistemáticas, a exemplo das mudanças da
língua, o paradigma da linguagem foi severamente criticado e desautorizado a orientar
investigações dos fenômenos sócio-históricos22. Mas no atual estágio do capitalismo, cuja
modalidade de dominação mais se assemelha ao que Deleuze chamou de “geometria variável”, o
formalismo teórico não seria o arcabouço conceitual mais adequado para uma compreensão da
consistência e estabilidade dos seus modos de governo? A se considerar esta perspectiva, o
estruturalismo de Lévi-Strauss retorna com inusitada força em função do teor arquiformalista de
sua antropologia. Contudo, importante lembrar: a formalização teórica jamais foi concebida por
Lévi-Strauss como expressão objetiva dos fenômenos culturais. Pelo contrário. O concreto e o
sensível predizem a lógica formal do pensamento humano, tese enunciada como um novo tipo de
adágio humanista: os homens pensam com as coisas. Daí sua pertinência e atualidade. A própria
teoria seria também uma aplicação simbólica para dizer metaforicamente o que não é possível
apreender pela experiência da razão moderna. Mostrar não “como os homens pensam nos mitos,
mas como os mitos se pensam nos homens, à sua revelia” (LÉVI-STRAUSS, 2004: 31).
Reincorporação do homem às estruturas originais da natureza, mas sob a égide de um retorno
redobrado da cultura sobre si mesma. A música, e não a pintura, seria o modelo para a análise
estrutural dos mitos porque única realmente liberta dos laços de representação do objeto natural.
Por assim dizer, tal como os mitos, a música metaforiza a natureza sem mimetizá-la, tarefa
impossível para outras formas de expressão estética (Idem: 42). Este “novo humanismo” pressupõe,
22
Ver os já citados Anderson (1984) e Lefebvre (1968), duas críticas semelhantes realizadas com um
intervalo de quase duas décadas entre si.
70
ainda que metodologicamente, a tópica da soberania, uma exclusão inclusiva da linguagem. Por
isso a reinvidicação materialista de Lévi-Strauss deve ser tomada ao pé da letra. Não haveria razão
para o antropólogo estruturalista ser rotulado de idealista, pois seu formalismo de inspiração
matemática seria, antes, algo como uma “estenografia”, muito distante da finalidade de emitir e
organizar demonstrações (Ibidem: 51). Sua teoria sobre os mitos seria – e não poderia deixar de ser
– um “mito da mitologia” (Ibidem: 31).
A “paixão pelo real” enunciada por Badiou (2004) e desdobrada por Zizek (2003) como o
afeto contemporâneo por excelência não seria a mesma que sustenta a enunciação teórica do
estruturalismo? Para reforçar esta possibilidade, a idéia de que a teoria lévi-straussiana do
significante excedente (“significante zero”) refletiria, segundo Agamben, uma abordagem sobre o
estado de exceção no âmbito da linguagem. A primazia do significante sobre o significado,
pressuposto estruturalista por excelência, designaria a tentativa de fazer corresponder, em uma
“zona de indistinção”, a denotação ao excesso de sentido. Correspondência sempre adiada e
concebível apenas segundo as reticências de um significado indecidível, em relação à qual o poder
soberano só poderia ocupar o lugar da autonomia de uma língua pura. (AGAMBEN, 2002a: 33). A
fundamentação habermasiana do agir comunicativo, a ética do Discurso, também não seria
tributária, apesar de seu sinal invertido, da localização teórica da tópica da soberania realizada por
Lévi-Strauss? A “comunidade ideal de fala” não seria também uma postulação mítica, uma
abstração convertida teoricamente em exigência prática do entendimento mútuo? Como imaginar
outra forma de compreender a afinidade proposta por Perry Anderson entre o estruturalismo
francês e a teoria da ação comunicativa de Habermas que não esta? A exacerbação da centralidade
da linguagem na análise do fenômeno político contemporâneo carrega em seu costado uma matéria
concreta, o vivente em estado puro, o corpo biológico como suporte da incidência soberana, seja
ela violenta ou não, mas certamente em grau máximo de objetivação, apoiada na razão e na lei.
71
(DELEUZE e GUATTARI, 1995). Fluxos sem estrutura, nacionalidade nômade da liberdade. Daí o
ataque contumaz à psicanálise, até mesmo à de Lacan e sua funcionalização do Édipo freudiano. A
despeito do vazio que faz girar os discursos, tudo nela conduziria, em razão de suas premissas
estruturalistas, ao “significante despótico”, ao falo, seja ele imaginário ou simbólico. Elemento
central para a psicanálise na definição da posição subjetiva do sujeito, o falo renderia um tributo ao
que seria o aprisionamento do desejo em uma codificação repressiva da multiplicidade histórica.
A análise esquizo de Deleuze e Guattari quer ranger o esqueleto do estruturalismo. Em
oposição à estabilidade sistêmica da noção de estrutura, formalizada pela esquematização de
inspiração matemática, a linguagem a-edípica prescindiria da língua. Livre da sincronia e de suas
conseqüências paralogísticas, a linguagem sem estrutura ocuparia o centro da problematização
sobre o poder. A primazia do significante teria dado à teoria tão-somente as rendas de um espólio
de regulação e um monumento ao homogêneo, extensão da repressão da máquina social sobre a
produção desejante. O erro fundamental da psicanálise poderia ser deduzido das conseqüências dos
postulados existentes no Édipo estruturalista: “a falta, a lei e o significante” (Idem: 116). Ainda
que o “retorno a Freud” realizado por Lacan tenha reinvidicado uma atualização crítica e inovadora
da psicanálise, os três postulados indicariam a mesma “concepção religiosa do inconsciente” de
seus antecessores, sendo “inútil interpretar estas noções nos termos de uma combinatória que faz
da falta, já não mais uma privação, mas um lugar vazio, da lei, já não uma ordem mas uma regra
do jogo, do significante, já não um sentido mas um distribuidor”, visto que esta mesma série
implica outra, de inegável pertinência teológica: “a insuficiência do ser, a culpabilidade, a
significação” (Ibidem: 116).
Em oposição ao que seria um idealismo da teoria psicanalítica e seus efeitos despóticos,
Deleuze e Guattari apregoam uma perspectiva materialista para a clínica. “Máquina desejante”, o
inconsciente deveria ser emancipado da psicanálise, uma vez que a constelação representacional do
complexo edípico, praticada pelos analistas, repõe a subordinação do esquizo aos moldes de uma
rígida codificação. Afinal, aos olhos deste dueto filosófico, “somos todos esquizo! Somos todos
perversos!” (Ibidem: 70). Única universalidade possível, a esquizofrenia como processo produtivo
de “fluxos desterritorializados” encontraria na psicanálise o seu obstáculo. Não o contrário. As três
estruturas clínicas da nosologia freudiana do inconsciente (neurose, perversão e psicose), moldadas
pela castração edípica, seriam produtos do controle e repressão de autoria analítica. Por outro lado,
as resistências ao tratamento não diriam respeito ao eu, mas ao “clamor imenso de toda produção
desejante” (Ibidem: 69). Se a esquizofrenia deve ser generalizada como parâmetro interpretativo e
político, haja vista que ela seria “o único universal” (Ibidem: 142), então, até mesmo o neurótico
encontraria nela o seu prumo: “Qual o verdadeiro neurótico que não está apoiado no rochedo da
esquizofrenia, neste rochedo móvel, aerólito?” (Ibidem: 70). O perverso, resistente à edipinização
e que inventa “territorialidades ainda mais artificiais”, pode ser, como a neurótico, uma espécie de
72
cristalização das “cadeias plurívocas” da produção desejante. Mas se a libido é conectiva, ela pode
investir sobre outro objeto parcial, muito além do Édipo da histeria ou do obsessivo. “Quem é que
não procura territorialidade perversas para lá dos jardins infantis do Édipo?” (Ibidem: 70).
Deleuze e Guattari tomam a esquizofrenia como apresentação dos “fluxos desterritorializados”. Ou
seja, processo produtivo constante e expansivo. As estruturas clínicas da psicanálise são
subvertidas e cedem lugar para as formas de relação com o processo desejante: “Territorialidade
neurótica do Édipo, territorialidades perversas do artifício, territorialidade psicótica do corpo sem
órgãos” (Ibidem: 142). Nesse sentido, a referência anti-edípica a Marx serve para desatar os pontos
que estancam os fluxos do campo social. A circulação da libido, seus investimentos e o trabalho da
qual emana não seriam prerrogativas do indivíduo e seus romances familiares. O inconsciente
existiria, mas não no palco e sob a luz do familiarismo que atravessaria a psicanálise de Freud a
Lacan. Noções fundamentais da economia do desejo estariam subordinadas a um “inconsciente
expressivo” no lugar de serem desenvolvidas a partir das “formações do inconsciente produtivo”
(Ibidem: 57). O Édipo seria uma operação de redução bi-unívoca da pluralidade sócio-histórica, um
modo de subjetivação da repressão. O que faz com que se deseje a repressão do desejo por parte de
quem deseja?, eis a pergunta a ser respondida pela esquizoanálise. Para tanto, importante que a
noção de ideologia seja descartada, pois o desejo pertenceria à infra-estrutura e, nesta posição,
exigiria uma compreensão da incidência segregativa do inconsciente no campo social. As
distinções que ele produz não coincidem com as divisões de classe. Desejo e interesse de classe não
estabeleceriam sequer uma relação de homologia porque os cortes e segregações seriam efetivados
pelos investimentos inconscientes, cuja sujeição não passaria pela pré-consciência dos sujeitos
individuais ou coletivos.
Desta localização diferenciada das forças que atravessam o campo social, as figurações do
poder sempre são circunscritas por um tipo de imagem-pêndulo de movimentos e pontos, de
vetores e nós. No Anti-Édipo, sempre haverá desejo “onde quer que haja algo a fluir e a correr”
(Ibidem: 109), donde a idéia de que “o único sujeito é o próprio desejo” (Ibidem: 75) ou “o próprio
inconsciente contido na forma circular da produção”, isto é, um “movimento circular através do
qual o inconsciente, permanecendo sempre sujeito, se produz a si próprio e se reproduz”, uma
“coextensão do homem e da natureza” (Ibidem: 112). O Édipo seria o ponto e o nó que se concebe
como realidade estruturante, quando, em verdade, constitui-se enquanto efeito e operação da
repressão do processo de produção desejante. O estatuto deste processo poderia ser definido como
uma linearidade binária, composta por formas conectivas e não por relações de oposição.
“Máquinas desejantes são máquinas binárias” (Ibidem: 11), cujos conectivos funcionam por fluxos
e cortes, objetos parciais investidos fragmentariamente pelo desejo, que “faz correr, corre e corta”
(Ibidem: 11). Deste “sistema linear-binário”, Deleuze e Guattari extraem um terceiro termo, o
“corpo sem órgãos”, anti-produção absoluta. Conseqüência e causa da produção, o corpo sem
73
órgãos está longe de ser a lei; é um todo que coexiste com as partes e lhes é contínuo, ao lado delas,
sem totalizá-las. Daí falar em “multiplicidade” para caracterizar a produção desejante. Nela, o
produto implica o ato de produzir, as máquinas são máquinas de outras máquinas, processo
contínuo que engendra um “enorme objeto não diferenciado” (Ibidem: 13), operador da
improdutividade. Esta pura superfície de registro, de avaria e em conflito com as máquinas, “não é
o testemunho de um nada original, nem o resto de uma totalidade perdida” (Ibidem: 14). Ela não
decorre de uma falta, tampouco é seu herdeiro. O corpo sem órgãos é, concomitantemente, o
“socius”, “superfície onde toda a produção se registra” (Ibidem: 14), e o Capital. A máquina
capitalista impõe um movimento de desterritorialização e descodificação dos fluxos como nenhuma
outra. A esquizofrenia é seu produto e limite. Por isso, nesta totalização social em movimento
permanente, o delírio esquizofrênico não seria uma tentativa de cura, uma metáfora suplementar
em substituição ao fracasso da função paterna. Não haveria “foraclusão”, mas “efeitos de
máquinas” (Ibidem: 7), um discurso real, sem faltas ou ausências, nenhum sujeito do desejo
regulado pela transcendência de uma falta. Somente a repressão criaria este sujeito do desejo. O
“ser objetivo do desejo é o Real <lacaniano> em si mesmo” (Ibidem: 31). Entretanto,
diferentemente de Lacan, “o real não é impossível, pelo contrário: no real tudo é possível, tudo se
torna possível” (Ibidem: 32). O delírio seria uma apresentação verdadeira do movimento que
desliza sobre a superfície de inscrição do socius, e não uma falsa consciência da ideologia. O
problema do fetiche capitalista deriva da diferença imanente entre duas dimensões da produção
desejante, a do registro e a da produção propriamente dita. Efeito da inscrição na superfície de
registro, o fetiche seria tipicamente capitalista na tomada do dinheiro e do Capital como corpo
pleno sem órgãos, que se desdobra sobre a produção desejante e dela se apropria.
Se estruturada ou não, a base social da dominação na atualidade tem nome e endereço, ainda
que em regime de inquilinato constante. Esta vocação de parasita – nem de toupeira, nem de
serpente – acelera o tempo místico e atribui ao sujeito político a luz ardente da epifania. Críticos do
poder, certamente Deleuze e Guattari o são, mas, antes de tudo, representantes do que se tornou,
em poucas décadas, o grande ideário de uma teoria dos conceitos sem objeto, a mesma
“excrescência” (BADIOU, 1998) que parece validar a hipótese da continuidade entre a “virada
lingüística” e a crítica do vitalismo biopolítico, entre a democracia neoliberal e a exceção
totalitária. Não há que se surpreender, portanto, diante do impasse teórico dos últimos tempos, da
interpretação incapaz de figurar a identidade do sujeito na política. Descentrado e evanescente, sem
dúvida, mas igualmente normatizado pela interpretação anti-edípica, este sujeito parece mimetizar
a gramática transcendental do estruturalismo e os enunciados sem língua do pós-estruturalismo.
Identificado ao fluxo incessante do desejo e da produção, não seria ele efeito do Capital e seu
fetiche? Resto da linguagem ou das máquinas, o sujeito não “nasce” e “renasce” constantemente
sob a condição de que “tudo é produção”? A natureza revertida em “processo de produção”
74
implica este totalitarismo de um universo puramente contínuo e funcional. A aplicação quase sem
mediações da determinação material marxiana, vertebrada por categorias ora analógicas, ora
“reais”, explicita uma ontologia próxima ao humanismo flagrado no estruturalismo lévi-
straussiano, com a diferença de que, no Anti-Édipo, não haveria para onde retornar, porque tudo
seria desde sempre natureza produtiva. Nenhuma nostalgia: “A essência humana da natureza e a
essência natural do homem identificam-se na natureza da produção ou indústria, isto é, afinal, na
vida genérica do homem” (DELEUZE e GUATTARI, 1995: 10). A emergência da “vida genérica”
designa uma história que, ao que sugere a rigidez das suas modalidades de dominação, incorpora a
teoria como discurso e modelo da objetivação social. Seu humor será o cinismo e seu horizonte, o
formalismo dos nomes sem sujeito.
O ideal esquizoanalítico de um universo deslizante e disruptivo é concebível apenas nos
termos de um processo totalitário de poder. Nele, a subjetividade torna-se reflexo comportamental
de uma dinâmica funcional-sistêmica ao libertar-se das amarraras disciplinares. Curiosa relação de
inclusão exclusiva entre a crítica anti-edípica à psicanálise e o diagnóstico deleuzeano, no início
dos 90, da vigência daquilo que Foucault haveria indicado nas pesquisas sobre a biopolítica, a
“sociedade de controle”, caracterizada, ao contrário dos “confinamentos”, que funcionavam como
“moldes” na sociedade disciplinar, pelo controle assemelhado a uma “moldagem auto-deformante”
(DELEUZE, 2004: 221). A saudação da falência das instituições de regulação da sociedade
moderna requer, por meio de sua subversão, uma outra ordem, inicialmente emancipatória e,
posteriormente, regressiva. Não é possível desmerecer o significado da ausência da
problematização de tipo anti-edípica na crítica à “sociedade do controle”. Qual o lugar da
esquizoanálise na crítica à “sociedade de controle”? Esta ausência é tanto mais reveladora quanto
mais os indícios de continuidade entre estruturalismo e pós-estruturalismo forem destacados. É
neste sentido que a correlação histórica proposta por Agamben entre biopoder e os regimes de
exceção pode ser lida como uma concretização das teses libertárias da esquizoanálise. A “vida nua”
como forma de captura do “ser puro”23 constitui uma relação de homologia porque na base de sua
efetividade histórica se processa uma objetivação social da abstração. É tão-somente reconhecendo
esta base que se deve inferir uma esfera de causalidade e determinação dos fenômenos sociais que
têm, nos últimos decênios, desconcertado a teoria crítica do capitalismo. A expressão mais
adequada deste entorpecimento do pensamento é dada pelo formalismo intensivo do paradigma em
defesa do primado da linguagem. Que tenha sido a psicanálise lacaniana a mais eloqüente
expressão deste formalismo, nada mais revelador dos impasses da identidade do sujeito político na
23
“(...) somente se soubermos decifrar o significado do ser puro poderemos conceder a vida nua que exprime
a nossa sujeição ao poder político, assim como, inversamente, somente se tivermos compreendido as
implicações teoréticas da vida nua poderemos solucionar o enigma da ontologia. Atingindo o limite do ser
puro, a metafísica (o pensamento) transmuta-se em política (em realidade), assim como é sobre o limiar da
vida que a política transgride-se em teoria.” (AGAMBEN, 2002a: 188).
75
atualidade. O esvaziamento da significação do discurso como estratégia de objetivação da
incidência do inconsciente no psiquismo parece figurar, no interior do campo cerrado da teoria de
Lacan, como funcionam os dispositivos hegemônicos de poder na atualidade. As formas de
dominação têm delegado ao lacanismo um lugar pouco confortável, na medida em que seu
formalismo teórico se confunde com os meios modelares de objetivação social. É nessa direção que
deve ser sublinhado o fato das principais instituições do lacanismo adotarem um discurso orientado
exatamente pela mesma lógica que caracteriza os principais instrumentos de controle social, tema
que trataremos a seguir.
76
PARTE II
_________________________________________________________________________
O CONTEMPORÂNEO E SUAS VICISSITUDES NO
LACANISMO HEGEMÔNICO
77
Introdução: Da estrutura ao vazio
78
aos avatares da história. Desde Freud até os dias de hoje, muitas transformações sociais teriam
ocorrido a ponto de justificar a revisão dos próprios fundamentos da psicanálise. Sustentar as
mesmas categorias de Freud em um contexto que parece pertencer a uma outra configuração
histórica conduziria a psicanálise em direção de uma anacronia teórica e prática.
Esse tipo de petição de princípio vem ampliando seu séqüito. Mas não só agora. Poder-se-ia,
em um contexto histórico mais amplo, retroceder a extensão de sua abrangência até os últimos anos
de vida de Freud. Já existiriam os primeiros indícios de um lento declínio cultural da psicanálise
antes mesmo do legado freudiano encontrar consenso entre seus primeiros discípulos, o que de fato
nunca aconteceu. Da perspectiva das ciências sociais, as denúncias do anacronismo da psicanálise
centram suas críticas, sobretudo, no conceito de complexo de Édipo. A recepção psicanalítica
desses questionamentos são claramente visíveis em um certo historicismo de viés reformista. Nos
argumentos de seus proponentes, o “pai” como operador da estruturação psíquica de todo indivíduo
teria sido fruto da época de Freud, de uma cultura que amarrava a manifestação sintomática a um
arranjo familiar historicamente determinado. A prática clínica e a elaboração teórica não são, ou
não deveriam ser, ato contínuo das categorias criadas por Freud, mas deveriam respeitar, antes de
tudo, o curso do tempo, amadurecer ou inovar o aparato clínico quando a realidade social assim
exigir. Segundo essa mesma disposição de adequar a teoria ao presente histórico, é corrente no
lacanismo a classificação que distingue a produção de Lacan em dois momentos. O primeiro
caracterizaria o período propriamente estruturalista, do primado do significante, ainda sob forte
influência da lingüística saussureana e da antropologia de Lévi-Strauss. Nesse momento, a
centralidade da sincronia da linguagem está diretamente relacionada à noção de falta ou vazio
estrutural. Da dimensão operativa dos conceitos, o falo assume importância no estruturalismo
psicanalítico em razão de seu potencial de sistematização. É ele que faz circular, no interior de uma
estrutura, todo o processo de significação. E o faz de modo ordenado e logicamente dedutível,
permitindo que as formulações discursivas das análises ganhem consistência sistêmica. Conceitos
equiparados ao falo seriam observáveis em todo o estruturalismo, algo como uma “casa vazia”,
conforme definição deleuzeana para um dos critérios de reconhecimento dessa corrente intelectual
(DELEUZE, 2006: 237). Ao modo de uma função matemática, o falo consistiria nesse lugar a ser
preenchido pelas diferenças individualizadas (argumentos), que encontrariam nele o operador de
convergência e ordenação das séries e cadeias significantes (valores). O falo objetivaria, na
psicanálise de Lacan, a “presença de uma ausência”, qualidade pela qual uma ordem pode se
articular com outras. Os efeitos de ordenação fálica seriam os mesmos do “significante flutuante”
de Lévi-Strauss ou do lugar atribuído ao rei por Foucault em As Palavras e as coisas. Dirá Deleuze
que a cada estrutura corresponde um operador como o falo, que, no interior de seu código de
validação, deve solucionar problemas relacionados a hierarquização e subordinação das ordens e
79
elementos nas articulações e comunicações estruturais em condições particulares de eficácia,
incluindo também o seu próprio lugar nesse processo de atualização (Idem: 243).
Elemento que institui a função paterna e, consequentemente, a função fálica, o “Nome-do-
Pai” foi qualificado por Lacan de modo auto-referencial, em uma formulação tipicamente
estruturalista: “significante do significante” ou “significante que significa que, no interior desse
significante, o significante existe”. (LACAN, 1999b: 153) Lacan teria compreendido o “Nome-do-
Pai” como um operador lógico da constituição do sujeito; um “instrumento”, não um “Ser”
(MILLER, 1999a). O "Outro no Outro”, variação vocabular desse operador, compartilha com a
definição anterior o caráter reflexivo, uma propriedade de auto-sanção que remete à idéia kantiana
de autonomia, estado suposto no qual o sujeito obedeceria a leis determinadas pela razão. (Idem). A
afinidade entre a filosofia kantiana e a psicanálise lacaniana, no que dizem respeito aos seus
aspectos formais, convém ser destacada. Para que a autonomia seja concebível em Kant, toda a
finalidade da ação deveria passar pelo crivo da razão, o imperativo categórico, procedimento por
meio do qual a racionalidade da ação moral poderia ser deduzida. De Kant, a psicanálise lacaniana
se aproxima pela formalização subjacente à noção de autonomia: uma ordem simbólica configurada
exclusivamente por significantes auto-referidos. Isto é, uma instância de significados recalcados
que seria homóloga à supressão kantiana da sensibilidade e dos sentimentos como motivos da ação.
Do ponto de vista da psicanálise lacaniana, a melhor linguagem para representar a homologia desta
autonomia no inconsciente seria a matemática e seu simbolismo totalmente reflexivo. O
pressuposto freudiano da determinação inconsciente do psiquismo poderia ser traduzido pela idéia
kantiana da autonomia, mas sem seu sujeito transcendental. Corolário disso, uma associação
inusitada: o inconsciente estruturado como uma matemática. A formalização matemática, nesse
momento estruturalista do desenvolvimento teórico de Lacan, ainda seria valorizada pelo alto grau
de sistematicidade que poderia garantir, característica que será revista anos mais tarde com o
advento do “objeto a”, cuja conseqüência teórica mais imediata foi a transformação do falo em uma
das modalidades de objeto pulsional.
A perda da centralidade do conceito de falo designaria uma nova prevalência, a emergência
do objeto “a” como elemento-chave da constituição subjetiva, configuração teórica que marcaria,
no quadro do corte epistemológico adotado no lacanismo, o segundo momento do “ensino” de
Lacan. Em razão da vinculação quase fusional entre os conceitos de falo e de estrutura, esse
declínio identificaria uma mudança significativa, a valorização da incidência clínica sobre o “real”.
Esta classificação em dois momentos epistemologicamente distintos foi responsável pela hesitação
da crítica de Deleuze e Guattari a Lacan, anotada em rodapé do Anti-Édipo:
80
de fantasma; o outro em relação ao “Outro” como significante, que reintroduz
uma certa idéia de falta.” (DELEUZE e GUATTARI, 1995: 31).
O objeto pulsional (“objeto a”) não exerceria, portanto, a função fálica de ser o efeito da lei
ou o terceiro simbólico a mediar os movimentos na estrutura. Essa distinção é exatamente a mesma
defendida pela Associação Mundial de Psicanálise (AMP), sede do lacanismo hegemônico,
evocada, curiosamente, contra as teses do Anti-Édipo. Não raro esse fenômeno de mimetização
teórica do objeto marca presença nos seus discursos em prol das retificações e atualizações dos
conceitos freudianos.
A revisão do legado de Freud pertence à história do movimento psicanalítico internacional,
com variações idiomáticas e um tom de unidade doutrinária que, a despeito desta multiplicidade
regional, parece caracterizar as polêmicas internas, seja a favor da corrente hegemônica de
interpretação, seja para relativizar alguns conceitos ou delimitar grupos e alinhamentos. Não há
dúvidas quanto ao valor das polêmicas teóricas, especialmente estratégicas para realizar o estudo de
um campo de saber. Uma análise dos arranjos institucionais e das filiações grupais existentes no
movimento psicanalítico, no entanto, deixaria em segundo plano os fatores exógenos ao campo,
esses sim de grande importância se o problema a se compreender for o controle social e suas
modalidades de sujeição. O entendimento da teoria como discurso cultural, existência simbólica
lastreada no chão da história, impõe a localização do saber, ao mesmo tempo em que força suas
categorias contra as formas de determinação social. O projeto genealógico de Michel Foucault está
todo nessa perspectiva de abordagem histórica dos saberes. Não foi circunstancial que a crítica ao
estruturalismo tenha partido de um de seus mais notáveis representantes. Uma contundente atitude
de desfiliação se seguiu após um período de entusiástica adesão. Não foram poucos a adotá-la entre
a eminência intelectual do estruturalismo francês. Certamente, Lacan foi uma das figuras mais
destacadas do movimento de negação da ontologia subjetivista que se instalou com o
existencialismo marxista do pós-guerra. Embora Foucault nunca tenha admitido a influência teórica
de Lacan, provavelmente para que pudesse se distanciar da sombra massacrante de Hegel, evocada
pelos célebres seminários de Kojève, e da onda fenomenológica conduzida por Sartre e Merleau-
Ponty, a psicanálise lhe tenha sido importante assim como a antropologia de Lévi-Strauss foi para o
conjunto do estruturalismo. Todavia, as afinidades entre Lacan e Foucault terminam por aí. Ao
contrário de Lacan, Foucault refutou veementemente a noção de sujeito. Os conceitos de Nome-do-
Pai ou de complexo edípico, tomados como elementos estruturais da constituição do sujeito do
inconsciente, ocultariam a natureza relacional e “microfísica” da dominação, reproduziriam a
tradicional “imagem jurídica do poder”. Dissidências como as de Foucault com Lacan pertencem a
um espírito de época e ao que o estruturalismo soube dar conteúdo de conceito: o corte, a
descontinuidade. Estranho pensamento dirigido ao novo, cujo método e horizonte fixam-se em
proposições estáticas, um novo transcendentalismo inscrito no presente histórico, referido às
81
ciências da sociedade, mas visado pelo devir de seu formalismo. Daí sua mensagem de naufrago. O
tempo que se anuncia dentro da bouteille dos 60 não é claro, embora prenhe de certeza:
“Os livros contra o estruturalismo (ou aqueles contra a nova novela) não tem
estritamente nenhuma importância; não podem impedir que o estruturalismo
tenha uma produtividade que é a da nossa época. Nenhum livro contra o que
seja tem nenhuma importância; somente contam os livros “para” algo novo, e
que sabem produzi-lo.” (DELEUZE, 2006: 247).
Passados apenas dois anos, o remetente desta mensagem ratificaria o mesmo tom doutrinário,
mas doravante sob um manto de recusa. Em favor de um materialismo funcional, qualquer
referência à lei passa a ser frontalmente negada. A linguagem desliza sobre o vazio de suas formas,
processadas em transformação constante nas modalidades sociais dos “fluxos”, “conexões”,
“disjunções” e “sínteses”. Da estrutura ao movimento, a teoria percorreu a via da anulação da
diferença entre sujeito e objeto, fez a exaltação da pragmática e das transmutações da história.
“Sem metáforas”, o curso do mundo possuiria a morfologia da conveniência produtiva do poder e
de suas resistências. A total reflexividade da teoria não seria um dado a ser controlado
metodologicamente. A teoria que aponta para a virtualidade incorre em uma prática teórica, sem
que isto envolva qualquer comprometimento com atores sociais engajados na luta política.
Nenhuma ação localizada poderia representar uma relação de forças capaz de transformar a
sociedade em sua totalidade. O funcionalismo generalizado necessita vislumbrar uma arquipolítica,
não um local ou sujeito concreto da ação, donde o efeito de continuidade indelével entre o
estruturalismo e sua “ruptura” pós-estruturalista. Entre eles, apenas diferenças de superfície, leve
trepidação em um terreno de sismologia caudalosa. A continuidade entre a crítica e o objeto que se
quer criticar designa um dos pontos fundamentais para se compreender o fenômeno político
contemporâneo. O fato de que a configuração teórica mais detida na crítica ao conceito de
ideologia tenha sido ela mesma objeto privilegiado de incubação ideológica não traz surpresa
alguma. É da natureza desta nova forma de dominação, a vigência da hesitação predicativa, da
heteronomia dos nomes, da declinação anônima. Que a identidade política do sujeito tenha cada
vez mais vestido o uniforme lógico pelo avesso, erigindo elogios ao paradoxo e aos curtos-circuitos
discursivos, nada mais afim à mimese teórica do poder.
Em 1969, Foucault daria uma conferência que marcaria seu definitivo afastamento do
estruturalismo. Intitulada de forma interrogativa, “O que é um autor?” (FOUCAULT, 1992)
constitui uma crítica incisiva aos postulados do estruturalismo e ao que seriam seus efeitos
contraproducentes, entre os quais, o retorno do sujeito, vislumbrado por Jacques Derrida, inclusive
nos estudos do próprio Foucault (DOSSE, 2007). Claramente destinada a Lacan e Althusser, a
conferência antecipa os princípios metodológicos da genealogia. Responsáveis, do mesmo modo
que Foucault, pela expansão do estruturalismo como paradigma hegemônico da intelectualidade
82
francesa dos 60, Lacan e Althusser tornam-se alvo porque neles o sujeito inscreve-se no coração de
um projeto com pretensões de cientificizar o que era até então justificado como objeto da crítica
anti-humanista. A despeito da ruptura que se anuncia, o estilo da conferência é o de precaução. O
confronto com a psicanálise lacaniana e o marxismo althusseriano não se dá abertamente. Foucault
vincula a idéia de sujeito com a construção histórica da figura do autor, deslocando a unificação
discursiva que ela realiza para fora do regime de validação científica. Categoria que incluiria o
marxismo e a psicanálise, uma “discursividade” não teria como princípio de regulação uma
intenção subjetiva. Um autor de um livro não seria, portanto, o indivíduo que o escreveu. Marx e
Freud não são designações de indivíduos, mas nomes de regimes discursivos particulares, funções
de sedimentações simbólicas que se distanciam da ciência na medida em que prescindem de
pressupostos, operadores de enunciados com princípios de jurisdição e não com regras de
regulação. Ao contrário da idéia freqüentemente aceita, Marx e Freud não foram cientistas e os
legados que deixaram tampouco podem ser classificados como ciência. Não criaram campos
científicos porque a ciência seria definida por um conjunto de leis e regras a partir das quais a
pesquisa deduz seus limites de interlocução e reconhecimento, a depender de um conjunto de
postulados que, posteriormente, engendraria mecanismos de demonstração e de experimentação das
hipóteses levantadas. Em oposição às “discursividades”, o desenvolvimento de uma ciência
manteria continuidade com o seu ato fundador.
Ainda que processe metodologicamente uma depuração formal, a análise foucaultiana não
perde de vista as distinções entre os discursos. Se a ciência apresenta as características acima
descritas, isto não significaria que a função autor funcione sempre do mesmo modo e produza
efeitos de extensão semântica semelhantes. Por ser um procedimento discursivo que produz
“objetos de apropriação”, ou seja, por determinar formas de propriedade, a função autor viabiliza
e confere diferenças entre os discursos sobre os quais incide. Se isso for verdade, então, a revisão
dos conceitos psicanalíticos não traz consigo a égide da dissolução ou renovação da doutrina
freudiana. Não possuindo postulados, a psicanálise livra-se das exigências de objetividade
científica, permitindo, para si mesma, a constante revisão do que originalmente apareceu como
fundamento intocável. As querelas entre suas diversas correntes não indicariam o esgarçamento
lento e contínuo de seu método e experiência. Caracterizadas justamente por não comportarem
postulações, as “discursividades” não possuem fundamentos aos quais recorrer nas situações de
litígio entre interpretações, transformando, assim, em questões inócuas os problemas sobre o
presumido declínio ou a necessária revitalização da psicanálise, donde seu aspecto tautológico.
Todo “retorno a” seria marcado por um “esquecimento essencial e constitutivo” do ato fundador,
porque regresso “a um certo vazio que o esquecimento tornou esquivo ou mascarou, que recobriu
com uma falsa ou defeituosa plenitude, e o retorno deve redescobrir essa lacuna e esse falta, daí o
jogo perpétuo que caracteriza os retornos à instauração discursiva.” (FOUCAULT, 1992: 65).
83
Todo “retorno a” assenta-se sobre uma posição-fissura. Segundo expressão empregada por
Foucault, uma “pluralidade de eus” emerge desta forma de “esquecimento”. Assim, os “retornos
a” “fazem-se na direção de uma espécie de costura enigmática da obra e do autor.” (Idem: 66).
Seriam, portanto, uma espécie de tentativa de suturar discursivamente esta separação constitutiva.
Lacan assistiu a conferência de Foucault e, posteriormente, teria lhe relatado a sua admiração
pelas teses sobre a figura do autor (ROUDINESCO, 1994). O clima de cordialidade moderada
sempre foi uma marca da interlocução entre os dois. A crítica de Foucault ao “retorno a Freud”
mereceu uma resposta indireta, porém imediata, no seminário que Lacan ministrava em 1969.
Conforme um mal-entendido induzido, a menção à conferência serve para ressaltar o
“acontecimento Freud” e não para impor ao desenvolvimento teórico da psicanálise, como
pretendeu Foucault, uma continuidade de discurso regulada por critérios de validação de um regime
de verdade determinado historicamente24. O aspecto central a ser refutado consistia na abertura
infinita que a função autor implicava. Intolerável para Lacan aceitar a equiparação de sua proposta
com a de outras correntes do freudismo. A sutura apontada por Foucault não diria respeito a uma
“costura enigmática da obra e do autor”, mas ao lugar residual do discurso. Do arranjo textual
movimentado pela função autor não decorreria a “pluralidade de eus”, mas o advento do sujeito do
inconsciente. Todo discurso engendra um sujeito, um resto impossível de se apreender pela
linguagem e um efeito que, em última instância, caracterizaria um tipo de laço social.
Embora a conferência sobre a função autor seja anterior ao desenvolvimento do método
genealógico, é possível destacar já nesse momento algumas indicações dele. Se, como defende
Foucault, o valor de verdade dos enunciados não encontra estabilidade semântica no interior de
uma imanência universal da linguagem, mas somente nos jogos significantes de regulação variável,
então, a possibilidade de que uma “discursividade” seja legislada por princípios exteriores a ela não
é uma hipótese que se possa desprezar. A autonomia do discurso seria antes uma autonomia
aparente. O que definiria o critério de pertencimento de um determinado corpo de enunciados a
uma “discursividade” não seria a produção auto-regulada de princípios sintáticos e sim uma
determinação de natureza histórica. A análise diferencial dos discursos requer muito mais do que
uma redução formal metodologicamete processada25. Ao lado da etnologia levi-staraussiana, a
24
“Foucault encontrou meios de destacar a ordenação dessa função <autor> no nível de uma interrogação
semântica, atendo-se a sua situação estreitamente interna ao discurso e mostrando então que decorre daí um
questionamento, um efeito de cisão, um rompimento da relação com o discurso que prevalece na chamada
Sociedade dos Seres Pensantes, ou República das Letras.” (LACAN, 2008: 184)
25
“De fato, pareceu-me, pelo menos numa primeira aproximação, que essa tipologia não poderia ser feita
somente a partir dos caracteres gramaticais do discurso, das suas estruturas formais, ou mesmo de seus
objetos, sem dúvida que existem propriedades discursivas (irredutíveis às regras da gramática e da lógica,
como às leis do objeto) e é a elas que importa dirigirmo-nos para distinguir as grandes categorias de
discurso. Creio, por outro lado, que se poderia encontrar aí uma introdução à análise histórica dos
discursos. Talvez seja tempo de estudar os discursos não somente pelo seu valor expressivo ou pelas suas
transformações formais, mas nas modalidades da sua existência: os modos de circulação, de valorização, de
atribuição, de apropriação dos discursos variam com cada cultura e modificam-se no interior de cada uma;
84
psicanálise lacaniana, defendida, em As palavras e as coisas, na condição de um saber
diferenciado, que “interroga não o homem, ele próprio tal como pode surgir nas ciências humanas,
mas a região que torna possível em geral um saber acerca do homem” (FOUCAULT, 1970: 490),
ganhará outro lugar na genealogia. Em Vontade de saber, a psicanálise passa a responder por uma
“teoria da mútua implicação essencial entre lei e o desejo e, ao mesmo tempo, técnica para
eliminar os efeitos da interdição lá onde o seu rigor a torne patogênica” (FOUCAULT, 1984:
121), donde a crítica voraz de Foucault, agora centrada nas afinidades históricas entre Freud e a
“Pastoral cristã”. De modelo do saber anti-humanista, alocado em uma análise da finitude, a
psicanálise passa a exercer uma função de poder no “dispositivo de sexualidade”26. Em Foucault, o
esgotamento das formas arqueológicas engendra o programa da genealogia (DREYFUS, &
RABINOW, 1995), assim como é pela via da exacerbação formal que, em Lacan, a dimensão
sócio-histórica é incorporada na teoria. Ponto de chegada de um, ponto de partida de outro.
O formalismo com vistas à fundamentação teórica do sujeito do inconsciente tem, em
Ciência e Verdade (LACAN, 1998b), uma referência central na psicanálise lacaniana. Neste texto,
Lacan descreve o surgimento da ciência moderna como correlato à primeira manifestação das
condições epistemológicas do sujeito do inconsciente, caracterizado pela operação de redução
formal que constituiria o próprio objeto científico, a certeza do conhecimento. Seu instante de
alvorada estaria nas Meditações cartesianas, particularmente nas duas primeiras, nas quais a
negação de todo saber reduz o sujeito a um enunciado, o cogito. O sujeito da ciência adviria da
disjunção que o cogito realiza. O eu do “penso” não seria o mesmo que o eu do “existo”27. Lacan
observou na dúvida cartesiana a divisão subjetiva constatável pela experiência clínica, destacando-a
como uma ruptura inaugural entre verdade e saber. A psicanálise ratificaria, desse modo, a
impossibilidade do conhecimento? Dirá Lacan que a ciência moderna teria deslocado o foco desse
questionamento, delegando a possibilidade do conhecimento ao homem ontologicamente
concebido. Ao lado de todos estruturalistas de sua geração, Lacan se contrapunha ao que seria um
a maneira como se articulam sobre relações sociais decifra-se de forma mais direta, parece-me, no jogo da
função autor e nas modificações do que nos temas ou nos conceitos que empregam.” (FOUCAULT, 1992:
68)
26
“Não se deve esquecer que a descoberta do Édipo foi contemporânea da organização jurídica da perda do
poder paternos (na França, através das leis de 1889 e 1898). No momento em que Freud descobria qual era
o desejo de Dora, e permitia-lhe manifestar-se, havia quem se armasse para desatar, em outras camadas
sociais, todas essas proximidades condenáveis; o pai, por um lado, era erigido em objeto de amor
obrigatório; mas por outro lado, se fosse amante, era proscrito pela lei. Assim, a psicanálise, como prática
terapêutica reservada, desempenhava em relação a outros procedimentos, um papel diferenciador, num
dispositivo de sexualidade agora generalizado.” (FOUCAULT, 1984: 122)
27
A unidade de correspondência entre eles somente pode ser garantida pela fé no Deus da religião. Nisto
recai todo o esforço cartesiano da Terceira Meditação. Após realizar a negação absoluta por meio da hipótese
da existência do “Gênio Maligno”, resta a Descartes provar a existência de Deus, objetivo cujo fracasso
significaria a ruína de todo o seu projeto filosófico. Sem a benevolência divina, a cisão entre as
representações e as coisas, entre o pensamento e o mundo, jamais seria solucionada. A verdade cartesiana
seria, pois, a verdade como correspondência entre as coisas e suas representações, problema que inaugura a
modernidade filosófica. Lacan toma essa estrutura do sujeito cartesiano cindido pela dúvida hiperbólica.
85
humanismo fundado em bases metafísicas, atentando para o fato do sujeito da ciência não ser o
homem, mas a divisão operada pela fala, tal qual no cogito28. Descartes teria inaugurado um sujeito
dividido pelo próprio ato da enunciação. Não haveria anterioridade ontológica nesse sujeito. Lacan
atribuiu a essa estrutura a própria formalização do sujeito do inconsciente, dessubjetivação do
sujeito que autoriza a crítica lacaniana ao humanismo: “Não há ciência do homem porque o homem
da ciência não existe, mas apenas seu sujeito.” (Idem: 884).
Na medida em que a psicanálise recusa a solução cartesiana à hiância aberta pela dúvida
hiperbólica e pela hipótese do “Gênio Maligno”, ou seja, se ela nega a crença como resposta à falta
no Outro, então, deve sustentar o sujeito extraído do lugar da verdade, do recalque originário
(Urverdrängung). É para responder a esta aporia da relação entre sujeito e objeto que a psicanálise
recorreria ao sujeito da ciência inventado pelo cogito cartesiano. A ciência teria originalmente
prescindido de objetos, posição refutada pelo seu posterior desenvolvimento. Se ela atribuiu aos
objetos a definição de seu campo e de sua práxis, isso somente a teria feito entrar em um
esquecimento atualizado a cada etapa de seu progresso. A psicanálise teria se divorciado do
desenvolvimento científico, retornando àquilo que a ciência subtraiu de si mesma, o seu sujeito.
Trata-se, para Lacan, de tomar a verdade como causa de um jogo de efeitos descontínuos e,
portanto, sem relação logicamente consistente entre causa e efeito. Como no momento inaugural da
ciência moderna, nada seria falado na psicanálise senão a partir desta ordem de causalidade. Seria,
então, a psicanálise uma ciência como a inaugurada pelo ato cartesiano?
O problema sobre a cientificidade da psicanálise revela a estratégia lacaniana do “retorno a
Freud”. Ao invés de tomar a perspectiva do objeto, Lacan recorre ao racionalismo cartesiano,
identificando o sujeito na dúvida metódica das Meditações. A partir desta localização conceitual,
apoiada em noções da lingüística estrutural e na analogia matemática, Lacan procura dar um novo
significado à cientificidade psicanalítica. Seu estatuto científico seria garantido pelo sujeito e não
pela objetividade dos fenômenos determinados pelo inconsciente: “Eis por que era importante
promover, antes de mais nada, e como um fato a ser distinguido da questão de saber se a
psicanálise é uma ciência (se seu campo é científico) , exatamente o fato de que sua práxis não
implica outro sujeito senão o da ciência.” (Ibidem: 878). Freud teria evocado a exigência desse
sujeito advir, sob o risco de que, caso assim não procedesse, a psicanálise poderia assumir o
percurso de uma interrogação sem fim, como a solução religiosa, que “entrega a Deus a
incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à verdade” (Ibidem: 887). A psicanálise
também não deveria recorrer ao modo como a ciência moderna se relaciona com a verdade, pois ali
vigoraria uma relação estrutural de ignorância, um progresso do esquecimento e suspensão do
28
A certeza do conhecimento, em Descartes, seria produzida mediante a fala, a enunciação do “penso, logo
existo”. A duração da emissão do enunciado define o tempo da garantia da verdade do conhecimento. O
cogito seria uma montagem discursiva que sustentaria um ponto de apoio para a certeza. Enquanto “penso”
tenho certeza de que “existo”, ao menos na duração da locução do enunciado “penso”.
86
sujeito, uma preocupação com a transmissão do saber e não com a sua verdade. Qual seria o objeto
da psicanálise senão aquilo que causa a própria divisão do sujeito, mediante a qual o desejo se
manifesta e ganha existência? Não seria, portanto, da fissura esquecida que o discurso psicanalítico
retiraria a sua força, mas da causa desta fissura, que impede o seu livre deslizar em forma de
reticências. Se o “Outro” não existe, isso não significaria, como sugere Foucault, que o infinito seja
a única faceta do desejo. A psicanálise não seria uma ciência, tampouco uma “discursividade”. Ela
designaria, antes de tudo, uma ética. Daí o imperativo lacaniano de retornar à causa psicanalítica,
ao seu vazio fundador, ao desejo de Freud.
87
I. O retorno ao “resto não analisado de Freud”
88
decisivo para o sujeito, em que o falo seria configurado como elemento regente de uma relação
trinária que, de acordo com Lacan, definiria a condição fundamental do desejo:
29
“Marca-se aqui o gume da faca entre o gozo de Deus e o que, nessa tradição, presentifica-se como seu
desejo. Aquilo que se trata de provocar a queda é a origem biológica. Aí está a chave do mistério, em que se
lê a aversão da tradição judaica a respeito do que existe por todo o lado. O hebraico odeia a prática dos
ritos metafísico-sexuais que, na festa, unem a comunidade ao gozo de Deus. Valoriza, ao contrário, a
hiância que separa desejo e gozo.” (LACAN, 2005b: 85).
89
Na sessão de abertura do seminário seguinte, Lacan retoma a história de sua saída da IPA. O
que poderia parecer um inventário dos conflitos e meandros institucionais revela-se, antes de tudo,
uma fala fortemente dirigida à clínica: "Creio - e vocês verão - que não só pelos ecos que evoca,
mas pela estrutura que implica, este fato introduz algo que está no princípio de nossa interrogação
concernente à práxis psicanalítica." (LACAN, 1979: 11). Esse seminário será uma forma de
reabordar a questão sobre a transmissão da psicanálise. As pequenas negociatas, as minúcias de
jogo experimentadas no interior da IPA indicariam o lugar ocupado por Lacan nesta instituição
antes de sua saída. Entre os que colaboraram para sua “excomunhão”, estariam muitos dos seus
próprios alunos30. Transformado em objeto de negociação, na medida em que entre seus alunos
teria vigorado uma conciliação dos imperativos institucionais da IPA com uma adesão ao seu
ensino, Lacan defende a idéia de que ele teria ocupado o mesmo lugar da verdade do inconsciente,
cuja negação seria dada pela instituição fundada a partir do ideal do pai da psicanálise. O fracasso
da IPA na transmissão do saber analítico, expressado pela "excomunhão", teria revelado o desejo
inconsciente de Freud. Contrário ao que seria a irmandade em torno do ideal freudiano, Lacan
diferencia os lugares de maestria daquele reservado ao analista. A teorização desse argumento
ganhou aos poucos corpo nos seminários seguintes, sendo conceitualizado, em 1970, com a
formalização de uma teoria dos discursos (LACAN, 1999a). Até então, a despeito da constante
interlocução com as ciências humanas, especialmente com suas vertentes estruturalistas, a relação
do sujeito com o Outro, no processo de constituição subjetiva, sempre foi pensada por Lacan
segundo os parâmetros da filiação e parentesco. Por isso, a insistente reinvidicação, dentro do
lacanismo, de que o seminário de 1970 representaria a primeira formulação sistemática, no campo
intelectual francês, de um “mais além do Édipo”. De fato, no seminário de 1969 (LACAN, 2008),
Lacan anuncia a fundamentação psicanalítica do laço social que não submetesse, como fez Freud, a
compreensão da vida coletiva ao psiquismo individual. Nessa direção, o desenvolvimento
conceitual para analisar a estrutura da fantasia permitiu a Lacan preparar as bases de sua teoria dos
discursos. Isto porque a fantasia constituiria uma articulação entre o corpo e a linguagem, o
significante e a pulsão.
Articulação de termos heterogêneos, forma gramatical que modelaria a posição inconsciente
de satisfação pulsional, a fantasia seria, portanto, o dispositivo de vinculação do sujeito ao objeto.
Diferentemente do complexo edípico, ela não pressuporia categorias ligadas à sexuação e, portanto,
não adotaria o falo como operador simbólico. A leitura lacaniana do mal-estar da civilização
procura respaldo nesta estrutura da fantasia, não o compreende apenas como conseqüência das
injunções superegóicas. O “amar ao próximo como a si mesmo” que, para Freud, resumiria o
imperativo da vida civilizada, implicaria a mesma gramática da fantasia inconsciente. O preceito
30
Os alunos a que Lacan, por diversas vezes, se referia em seus seminários eram os então jovens
psicanalistas Jean Berthand Pontalis e Jean Laplanche.
90
impõe uma barreira instransponível. Formação do retorno do recalcado, ele ordena o sujeito a amar
justamente o que o angustia, a deparar-se com o “objeto causa do desejo”. Daí por que, para Lacan,
a estrutura da fantasia seja a mesma que da angústia. Mas isto não significa, como tem se tornado
moda no lacanismo de modo geral, destituir a castração do sujeito enquanto agente do mal estar.
Não se trata, portanto, de um laço social regulado pelo gozo ou pela socialização por objetos
fantasmáticos31. O Supereu é “imperativo de gozo”. Entretanto, seu enunciado (“Goza!”) sempre
será remetido à castração. O gozo nunca será mais do que parcial, fálico. A sexuação pressupõe
uma perda fundamental no campo pulsional. Jamais se chega a gozar do corpo por inteiro, pois a
satisfação somente pode ser “gozo do órgão”, de um objeto destacado do corpo e nunca da sua
totalidade (LACAN, 1972: 15). O imperativo de gozo seria, assim, o “correlato da castração, que é
o signo com que se paramenta a confissão de que o gozo do Outro, do corpo do Outro, só se
promove pela infinitude.” (Idem: 16). Em relação à vida em sociedade, o sujeito experimentaria “a
miséria, o desamparo, a solidão” para não angustiar. Nesse sentido, ao incluir a dimensão pulsional
da sexuação no “mal estar”, Lacan integra a fantasia e o Supereu, mantendo, desse modo, a
problematização freudiana. Diante da insatisfação pulsional, o sujeito não poderia demandar da
vida social “nada senão aquilo que produz sua consistência e sua ingênua confiança em que ele é
como eu” (LACAN, 2008: 24). Da mesma maneira que o “eu”, o laço social fundamenta-se em
uma ilusão imaginária.
Esse posicionamento lacaniano da fantasia terá impacto sobre a clínica e o transcurso das
interpretações feitas no lacanismo. Por designar o enlaçamento mínimo do sujeito ao seu objeto de
satisfação, a fantasia não seria interpretável (MILLER, 1990). Diferentemente da construção
simbólica que é o sintoma, ela possuiria o mesmo estatuto lógico do “real” na sua fixação de uma
posição imaginária de satisfação para o sujeito; não seria uma “solução de compromisso”, um
substituto para um conflito inconsciente. A função significante, seja da interpretação analítica, seja
da função paterna, não agiria sobre a fantasia da mesma forma como sobre o sintoma. É por
intermédio desta qualidade que o conceito de sujeito recebe nova formulação. A definição
estruturalista (“o sujeito é aquilo que representa um significante para outro significante”) ganha
complemento. Concebido como uma extração do “real”, o sujeito preserva a primeira posição
inconsciente (fantasmática) como objeto do “desejo do Outro”. A relação entre sujeito e objeto é
modulada, portanto, por uma gramática pura, disso decorrendo uma equiparação entre o “objeto a”,
31
Os partidários da tese do gozo como instância reguladora da sociabilidade contemporânea servem-se do
Lacan tardio, da “segunda clínica”, mas a partir de uma estratégia de ocultação. Para garantirem uma
interpretação específica do texto de Freud, procedem a uma classificação rígida do desenvolvimento teórico
da psicanálise lacaniana, o que lhes permite objetivar conceitos e distribuí-los conforme as orientações mais
convenientes. Essa reificação da teoria expõe principalmente uma prática de discurso. Seu modo de
funcionamento assenta-se na identificação com a forma auto-referente da teoria, sem objeto porque calcada
na defesa contra o sujeito. Fisionomia que faz lembrar o pedantismo positivista de que fala Adorno,
“mentalidade realista-conceitual em estado de nominalismo; fetichiza a ciência e a modela cada vez mais
segundo sua própria caricatura.” (ADORNO, 2004a: 251).
91
o “real” e a estrutura32. A lógica que preside a fantasia só poderia ser a do paradoxo, uma vez que a
estrutura seria “real” porque “se determina pela convergência para uma impossibilidade”
(LACAN, 2008: 30). O objeto da fantasia seria “o furo que se designa no nível do Outro como tal,
quando ele é questionado em sua relação com o sujeito” (Idem: 59). Daí a operação de extração
“real” do sujeito pelas inúmeras referências à teoria matemática dos conjuntos33. Na fantasia, o
sujeito seria imaginariamente o próprio objeto de satisfação do Outro. Sua inscrição na linguagem
pauta-se pela identificação com uma posição de alienação absoluta. Mas não apenas. A segunda
operação que compõe a lógica da fantasia é a da “separação”, que caracteriza a incidência da
linguagem e seus efeitos sobre o sujeito. Pela alienação, o sujeito estaria incluído como elemento
no Outro; mediante a separação, seria dele uma parte, um subconjunto. Operações estas que
envolveriam as posições do sujeito na sua relação com o Outro. As quatro operações estão
presentes nos paradoxos de auto-referência, sistematizados e analisados por Bertrand Russell (19-
?). A forma lógica da fantasia seria o paradoxo, pois somente ele poderia modelar uma articulação
da pulsão com a linguagem, donde a tese de que “a essência da teoria psicanalítica é um discurso
sem fala” (Ibidem: 11). Na sua teoria dos discursos, Lacan formaliza esta tese com um esquema
construído a partir de quatro notações (“a”, “S1”, “S2”, “S/”) e quatro lugares (“produção”,
“verdade”, “agente”, “outro”) (LACAN, 1999a). As variações discursivas dependem de um
quarto de volta no esquema, que distribui os elementos pelos lugares, segundo o sentido horário e
sem interpolações. A cada giro um discurso diferente seria formalizado, correspondendo a um tipo
de laço social: o discurso do mestre, da histeria, da universidade e o analítico, este último
colocando na posição de agente do discurso a “causa do desejo”, o “objeto a”. O analista ocuparia
esse lugar com o seu corpo, não podendo fazer mais do que estilizar sua presença, já que a “causa
do desejo” seria regida pelo “real”, pela dimensão da impossibilidade simbólica. Caberia ao
analista servir-se desse lugar, da atribuição ofertada pelo paciente que, embora inicialmente
imaginária, geraria efeitos na fantasia. O manejo da transferência, se bem conduzido, pontuaria a
dimensão imaginária da suposição de saber no analista, pressuposto da entrada em análise,
colocando o sujeito frente ao seu desejo e à sua modulação pelo impossível aí implicado. Já no
seminário sobre a angústia, de 1962, Lacan caracterizou o analista dessa forma, como “aquele que,
minimamente, não importa por qual vertente, por qual borda, tenha feito seu desejo entrar
suficientemente nesse “a” irredutível para oferecer à questão do conceito de angústia uma
garantia real”. (LACAN, 2005a: 366).
32
“A estrutura deve ser tomada no sentido em que é mais real, em que é o próprio real.” (LACAN, 2008: 30)
Ou “o que se evidencia é que essa estrutura (...) não é outra coisa senão o objeto a”. (Idem: 59).
33
“Procuraremos extrair o S, significante que representa o sujeito, do conjunto constituído pelo par
ordenado. Nisso, será muito fácil vocês recaírem em terreno conhecido. Que fazemos ao pegar os S, senão
extrair do conjunto A <Outro> aqueles dentre os significantes que podemos dizer que contém a si mesmos?
Esse é o paradoxo de Russell.” (LACAN, 2008: 59).
92
Se comparado aos três tipos de identificação trabalhados pela Psicologia de Massas, é
possível afirmar que o "retorno a Freud" propiciaria um quarto tempo e uma nova forma de laço
social. Eles não seriam estruturais, isto é, não consistiriam em postulados do sujeito. Se na
Psicologia de Massas Freud vislumbra a possibilidade de três modos de identificação a partir da
identificação com o pai, o objeto ou um traço, Lacan situa a exigência da práxis analítica confrontar
o desejo de Freud, pois a identificação com o seu ideal teria produzido irmandades institucionais
como a IPA. Ao contrário da ciência, em se tratando de psicanálise o problema sobre o sujeito é
fundamental, sem a qual não haveria clínica nem teoria. Para Lacan, na ciência existiriam dois
domínios, "aquele em que se procura" e "aquele em que se acha" (LACAN, 1979: 15), com
inegável afinidade entre o primeiro domínio e a atividade religiosa, já que ambas realizariam a
procura de um objeto imaginário, cujas evidências são significadas ao infinito. Esta investigação
exaustiva poderia ser encontrada na concepção hermenêutica do inconsciente34. Uma aproximação
entre a significação hermenêutica e a interpretação analítica seria, portanto, um equívoco
inaceitável. Para Lacan, não se trata de um problema epistemológico, mas ético. É por essa razão
que o desejo de Freud deve ser questionado, para saber em que ponto de ruptura a psicanálise
encontra seus limites. Pertinente, portanto, requalificar a pergunta sobre qual a justificativa para os
conceitos psicanalíticos permanecerem os mesmos que os inventados por Freud, se for fato que a
simples constância dos significantes teóricos em nada garanta a correção da interpretação do
inconsciente. Se o aparato analítico retira sua eficiência da clínica, por que o apreço tão grande
pelos significantes freudianos? Que as vias da descoberta do inconsciente tenham se orientado pela
clínica, isso parece não ser novidade alguma. Freud sempre reconheceu e soube atribuir o valor de
seu trabalho a seus pacientes (melhor seria dizer a elas, as histéricas). O novo consistiria em
localizar o próprio desejo de Freud no curso do movimento psicanalítico, marcado, segundo Lacan,
por um "pecado original" (Idem: 19), o seu ideal. Problematizar o desejo de Freud implica
questionar o desenvolvimento da psicanálise e seus fundamentos. Mas não para derrogá-los
simplesmente ou para propor solução conciliatória35. Se os significantes teóricos são fundamentais
34
O principal representante dessa concepção, ao qual Lacan indiretamente se refere, é Paul Ricouer. Ver
RICOUER (1978).
35
Entre nós, a defesa de soluções conciliatórias tem encontrado respaldo em uma certa conduta de
iconoclastia velada. Maria Rita Kehl apresenta, em uma publicação que reúne os primeiros resultados
coletivos de uma proposta de revisão do lugar paterno, a relevância e a possibilidade da noção de “função
fraterna” em psicanálise (KEHL, 2000). Em breve artigo, de natureza e objetivo introdutórios, defende este
conceito "para examinar os outros modos de operação da relação do sujeito com os semelhantes, presentes
no nosso cotidiano mas cujo entendimento fica obscurecido pela nossa adesão à palavra forte, patriarcal, do
fundador da Psicanálise" (Idem: 37). Sem negar a necessidade de renúncia das injunções pulsionais, na
ausência da qual a vida social não poderia existir, Kehl substitui o operador lógico dos princípios de
igualdade e justiça de Freud, a função paterna, pelo "socius", a sociabilidade irmanada. A alteridade do outro
permitiria a "objetivação do eu". (Ibidem: 38). A identificação “fraterna” produziria, assim, a substituição de
"uma ilusão identitária, que vai sempre produzir a fantasia do duplo perseguidor, por um campo identitário
diversificado, no qual o sujeito pode se mover, livre da exigência narcísica de ser sempre 'idêntico a si
mesmo'" (Idem: 40). Em outras palavras, a fratria exerceria a função de introduzir a lei mediante um discurso
93
porque estabelecem fronteiras discursivas, o problema sobre a pertinência de sua manutenção
sugere ser um problema superdimensionado. A psicanálise não é sustentada exclusivamente por
pressupostos teóricos, mas igualmente pelo sujeito que dela advém e pela causalidade inconsciente
de seu objeto. Mas é justamente nesse ponto, alicerce da “ética da psicanálise”, que a teoria
lacaniana pode converter-se em objetivação formal de disposições subjetivas e de práticas de
validação do discurso. A atualidade do lacanismo passa por esta modalidade de reversão da teoria,
espólio político do primado da linguagem e seus declínios.
partilhado, função que Freud atribuíra a um lugar de exceção: a autoridade paterna. Embora a exigência de
renúncia ao narcisismo primário se mantenha, a guinada subjacente à modesta complexidade teórica da
função fraterna não é pequena. Trata-se de derrogar, sob uma conciliação palatável de noções vacilantes, o
princípio lógico que, para Freud, fundamentaria a estruturação psíquica do sujeito e a própria vida civilizada.
O que vem no lugar antes ocupado pela noção de função paterna é uma questão que mereceria mais atenção,
pois excluir uma lógica implica criar outra. É o que propõe Jurandir Freire Costa (2000). No prefácio ao
conjunto de ensaios reunidos por Kehl sob a rubrica “função fraterna”, Costa assume claramente a
perspectiva do pragmatismo filosófico, empenhado-se em defender, como critério de avaliação
epistemológica, a capacidade do conceito “sobreviver às diferenças de interesses, compromisso e empenhos
teóricos dos analistas”. (Idem: 8). Atualmente, este critério revelaria com mais contundência a sua
importância em psicanálise. Estaríamos diante de um “novo perfil clínico dos sujeitos”, fato que exigiria,
portanto, o questionamento do aporte teórico utilizado classicamente para orientar a intervenção clínica. A
crítica de Costa é contundente. Não apenas a psicanálise estaria se esquecendo do cerne de sua prática, mas a
própria fundamentação freudiana seria, atualmente, comprometida por uma espécie de arcaísmo de efeitos
deletérios para a clínica. O clássico “modelo teórico do recalque” demonstraria sua incapacidade em
responder satisfatoriamente às transformações sintomáticas de hoje. De nada serviria uma fidelidade
conceitual se ela não proporcionar a finalidade prática da psicanálise: “(...) o que dizer de formações
subjetivas nas quais o ‘recalcado’ – se é que ainda é ‘o recalcado’ – pouco tem em comum com o ‘recalcado
das histerias, das fobias ou das obsessões?” (Ibidem: 9). Se o importante é garantir a eficácia clínica, por
que então manter as mesmas “imagens teóricas” no interior de mudanças sociais que, por sua vez,
transformam o próprio sujeito que demanda tratamento, já que o “sujeito da clínica psicanalítica é o sujeito
do dia-a-dia da cultura”? Costa circunscreve o panorama histórico a partir do qual a centralidade do “pai”
foi assimilada pela psicanálise. Sua tese é a de que essa centralidade conceitual só pôde surgir porque
culturalmente a figura paterna também ocupava lugar de centro. Por isso a elevação da função a uma “função
abstrata”, interpretada como um “tipo lógico”. Se há algumas décadas comprovamos o declínio do pai,
sustentar o mesmo conceito com o objetivo de explicar as formas sintomáticas incongruentes à explicação
freudiana (elas não seriam efeitos da injunção do gozo não regulado pela função paterna) constitui uma
recomendação sem sentido. “Preservar o pai em cartaz é, de fato, uma necessidade teórico-clínica ou uma
prova de que não estamos conseguindo inventar metáforas mais ricas para a realidade psíquica dos tempos
de hoje?” (Ibidem: 14). Seria, neste aspecto, o pai uma “categoria congelada do que foi o pai do nosso pai
ou o pai da tradição cristã e ocidental?” O artigo retira o sentido interrogativo da pergunta, de modo a
encaminhar nova questão: “por que a função paterna e não a fraterna?” (Ibidem: 15). A crítica revisionista
embutida na noção de função fraterna apropria-se da problematização foucaultina, assumindo as mesmas
linhas de argumento e um modo semelhante de construir o objeto da crítica. Curioso notar que, no entanto,
em contraste à análise de Foucault, Kehl e Costa não reconhecem as vantagens teórico-metodológicas da
formalização do discurso, justamente aquilo que criou condições para a análise foucaultiana identificar
afinidades entre sabres historicamente descontínuos entre si. É bem verdade que Foucault criticou o
formalismo metodológico em favor de uma investigação historicamente orientada, novo recorte analítico que
alguns chamaram de “estruturalismo histórico” (ERIBON, 1991). Mas isto nunca significou a negação a
priori da redução formal como método. Seria estranho se fosse diferente, visto que mesmo na genealogia,
Foucault procede formalizações e reduções discursivas, ainda que sempre remetidas à história. Como
justificar a afinidade, por exemplo, entre a confissão católica e o dispositivo da clínica psiquiátrica e
psicanalítica a não ser por meio de referências a isomorfias e deslocamentos de princípios de regulação
discursiva? Ao desconsiderarem a importância de recursos de redução formal para o procedimento da
construção do objeto e dos instrumentais de análise e investigação, os partidários da função fraterna
atualizam a crítica foucaultiana sem, no entanto, munição suficiente para ela. Na ausência dessa apropriação
de método, não lhes restou mais do que a reivindicação historicista.
94
II. Declinar a lei e conjugar seus sintomas
95
Lembra Cottet que o Anti-Édipo não teria considerado a angústia, conceito freudiano que mereceu
substantiva reintrepretação por parte de Lacan no seu seminário de 1962. Essa desconsideração
comprometeria a esquizoanálise, pois, ao contrário de Freud, a angústia lacaniana “não seria sem
objeto”. Para Lacan, o objeto da angústia seria a “falta da falta” e não simplesmente o vazio da
castração, como havia entendido Freud nas suas formulações sobre a “angústia de castração” e,
conseqüentemente, sobre o “rochedo da castração”, limite da clínica. A doutrina lacaniana das
psicoses também seria tributária de uma subversão conceitual. Da mesma forma como Deleuze e
Guattari, todavia por caminhos completamente distintos, Lacan teria elevado a estrutura psicótica a
modelo da formação da subjetividade. Mas não para erigir, como eles, um elogio à esquizofrenia,
um elogio “a fazer mais-valia de gozo com qualquer órgão, tal como se faz dinheiro com qualquer
objeto” (COTTET, 2005: 77). A dívida deleuzeana com Lacan teria sido explicitada pela exclusão
de todas as referências aos conceitos psicanalíticos no texto de introdução à primeira edição da
obra de Louis Wolfson. Nessa introdução, Deleuze teria se servido do conceito de foraclusão do
Nome-do-Pai, posteriormente eliminado da segunda edição da obra. Mas esse “lacanismo
aproximativo”, anterior ao Anti-Édipo, sugere uma posição semelhante à crítica deleuzeana de
Cottet contra Deleuze. Esse ponto de indistinção entre a crítica e o seu objeto revela o tipo de
contradição a que tem que se submeter a teoria quando seus pressupostos interpretativos
confundem-se com os processos formais da linguagem. Uma zona de abstração e de plena
equivalência induz uma reversibilidade discursiva e, por conseqüência não controlada, também
uma afinidade teórico-conceitual. Contudo, no momento e na disposição da crítica, esta
continuidade não constitui um problema óbvio. Pelo contrário, ela fortalece e dá formas
consistentes ao argumento. Nesse sentido, estão corretos e são formações sintomáticas tanto
Deleuze quanto Cottet. A idéia deleuzeana do “procedimento lingüístico variável” das psicoses,
“linguagem fora do simbólico”, encontra seu objeto no “corpo sem órgãos”. A crítica de Cottet à
desconsideração do conceito lacaniano de angústia indica que também ele encontrou o seu objeto
em um ponto de concordância com Deleuze. A “falta da falta”, definição lacaniana da angústia,
permite uma positivação do vazio da castração, a partir da qual Cottet é autorizado a diferenciar, a
despeito das semelhanças, a superação lacaniana do Édipo da empreendida por Deleuze:“Enquanto
o para além do Édipo tornou-se necessário a Lacan para melhor correlacionar o gozo com a
angústia, o anti-Édipo de Deleuze é, antes, um estandarte político que consagra o mito sexo-
gauchista de um gozo sem entraves.” (COTTET, 2005: 78)
Com a referência à angústia, Cottet reproduz o discurso da AMP dos últimos anos, efeito da
torção engendrada no lacanismo em direção a um alinhamento mais próximo das demandas que
partem do campo social. Nesse movimento, fenômenos psicóticos não seriam meras disposições
subjetivas da falência da função paterna. Em tese, não haveria função plenamente eficaz, mesmo
entre os neuróticos Em todas as estruturas clínicas, seria possível observar a falha da incidência
96
paterna e as conseqüentes formas de suplência, diferenciadas pelas intensidades com que são
instituídas e não por um atributo distintivo, como a existência de um representante da lei nos
neuróticos e sua “foraclusão” ou negação, nos psicóticos e perversos, respectivamente. Na AMP,
esta nova significação conceitual foi nomeada e tem assimilado cada vez mais ares de conceito:
“foraclusão generalizada” (MILLER, 1999b), “psicose ordinária” (MILLER et ali, 2006a),
“pluralização do Nome-do-Pai” (MILLER, 2003). Nesta mesma onda teórico-institucional, noções
psiquiátricas são resgatadas, renomeadas e reposicionadas. Casos clínicos “inclassificáveis” (Idem),
para falarmos com a terminologia que ganhou voga nesse diapasão reformista, revelam
inegavelmente seu parentesco com os “borderlines” da velha psiquiatria. O diagnóstico estrutural
perde sua hegemonia, chegando mesmo a não ser mais recomendado para esses casos, o que ilustra
com clareza o surgimento de uma nova ordem de exigências conceituais. O debate sobre os
“inclassificáveis” não se resume a um ponto modesto no lacanismo. Ele tem forçado, no interior da
AMP, a consolidação de uma orientação institucional cujos impactos sobre a prática clínica estão
longe de serem irrelevantes. Uma outra perspectiva clínica, mais pragmática, lança luz sobre temas
e objetos a serem incluídos na agenda da AMP. Esta orientação tende a destituir o enquadre
estrutural e seus principais referenciais teóricos, entre os quais, a função paterna, redirecionando a
produção para outros campos, notadamente a área socioassistencial, donde a valorização das
discussões sobre a psicanálise aplicada, os dispositivos clínicos não-tradicionais e os novos
sintomas. Não sem motivo, a temática sobre o familiarismo da psicanálise serve novamente de
arena para que disposições de reforma sejam perfiladas.
Figura eminente do lacanismo hegemônico, delegado geral da AMP com mandato de
2008/2010, Eric Laurent (1999), um dos mais envolvidos com a questão do declínio do “pai”,
desenvolve argumento em defesa da revisão de sua função, sem, no entanto, denunciar seus
supostos anacronismos em Freud. A partir de Lacan, indica a existência de um novo fenômeno
cultural, o “racismo de discurso”, afirmando que a garantia do reconhecimento social não ocorreria
mais por meio das grandes categorias significantes (nacionalidade, família, religião), mas,
sobretudo, por "uma comunidade de discurso muito mais profunda que põe de manifesto o que
podemos chamar de modos de gozar”. (Idem: 54). Laurent repõe o problema da função paterna,
extrai disso uma nova questão: qual crença existiria hoje, quando a ciência deslocou os "processos
de certeza", "deixando a crença fora de seu campo"? (Ibidem: 56) A afinidade entre Wittgenstein e
Lacan poderia apontar a resposta a esta pergunta. A máxima wittgensteiniana "o significado é o
uso" designaria a determinação do sentido dos enunciados pelas "formas de vida" circunscritas nas
práticas intersubjetivas experimentadas no interior da comunidade de discurso. "Para entendermos
há que compartilhar uma prática e uma forma de vida. Se trata de mostrar que o discurso é um
modo de tratamento do gozo, tão edificante como o foi a crença religiosa no passado” (Ibidem:
59). Defende Laurent, a função de atamento das falas é atribuição das comunidades de discurso,
97
pois, atualmente, "o que importa é a promoção da insígnia de gozo de uma comunidade” (Ibidem:
59).
Uma comunidade de discurso não porta necessariamente o lugar propício para as práticas
sublimatórias mais virtuosas. Em vez de uma tomada explícita de posição, Laurent diferencia os
espaços destas comunidades e os das instituições. As amarrações de sentido e gozo seriam
estabelecidas pelas instituições a partir dos impossíveis epistemológicos que designam. Haveria
mecanismos, no interior das instituições, que "declinam os nomes dos restos impossíveis de tratar."
(Ibidem: 61). Assim, "o incurável caracteriza as instituições sanitárias, o irreducável o Ministério
da Educação, o incivilizado o Ministério da Justiça." (Ibidem: 61). Já as comunidades de discurso
não se cristalizam pela nomeação de seus “impossíveis” e também não são definidas a partir deles.
Nesse aspecto, a intervenção psicanalítica justificar-se-ia por colaborar com a pontuação dos
“impossíveis” nos diferentes discursos, "além da impotência generalizada ao redor das quais as
coisas giram em círculo” (Ibidem: 61). A "clínica dos sintomas na língua" pressupõe o apoio ao
"estabelecimento de comunidades de discurso ali onde reina o silêncio como resposta à violência
ou à passagem ao ato.” (Ibidem: 61). Se a função paterna não faz mais a história e os antigos
significantes do Direito não engendram mais o atamento simbólico do sujeito, "responder à
separação com o restabelecimento de uma conversação marca a ruptura do sujeito com o Outro
do direito comum. Falar do sujeito com outros já é preparar o lugar que poderá ocupar." (Ibidem:
61). Esta espécie de clínica social não é antagônica à constatação do declínio da função paterna. A
datação histórica subjacente ao seu argumento segue a exposta por Lacan, que havia localizado no
cristianismo o ponto de partida para a perda da efetividade da função paterna, muito antes,
portanto, do advento da psicanálise. Ou seja, o trabalho de Freud seria expressão do próprio
declínio cultural da função paterna. No lugar da referência à imago do pai, a idéia de impossível
epistemológico vem exercer a função correspondente à função paterna freudiana. Quais as
conseqüências em substituir o conceito de função paterna pela idéia de “impossível”? Embora tenha
lançado a questão, Laurent não especifica conceitualmente o que sustenta esta substituição. Para
tanto, novamente apóia-se em Lacan e sua diferenciação dos três registros de incidência psíquica
do inconsciente (“o simbólico, o real e imaginário”). Trata-se da referência à metapsicologia
lacaniana, reformulada ao longo dos anos, mas que manteve, sob o pano de fundo das redefinições
teóricas, a idéia de registros interdependentes que configurariam o psiquismo. No lacanismo
hegemônico, o fenômeno da reversibilidade discursiva entre teoria e objeto não se restringe ao
investimento no social e, consequentemente, aos problemas adjuntos a esta iniciativa, tais como a
problematização sobre os novos sintomas e os dispositivos clínicos que seriam necessários para o
seu tratamento. É nesse sentido que a formalização lacaniana da metapsicologia pode aproximar-se
das investidas, cada vez maiores, da clínica do social.
98
Ao contrário de Laurent, mas também figura célebre do lacanismo francês, embora em
contraste com a direção imposta pela AMP, Phillipe Julien (1997) aborda a temática do declínio da
função paterna pela referência explícita aos três registros da metapsicologia lacaniana. Sua análise
remete ao uso socialmente difundido do significante "pai". Mesmo entre os psicanalistas, esse
significante pode ser tomado apenas pela aparente unidade imaginária que carrega. Antes de supor
uma totalidade de sentido subjacente ao significante "pai", a análise deveria medrar mais cautela.
Não é porque existe um significante capaz de evocar a dimensão imaginária da paternidade que a
psicanálise deva assumi-lo. Limitados a esta dimensão, os psicanalistas não abandonariam a relação
especular com o significante. Para não incorrer nesta via de equívocos, Julien propõe a
diferenciação dos registros metapsicológicos a partir do significante “pai”. Sua escolha
metodológica faz lembrar a escuta clínica, destacando os significantes repetidos em contextos
diferentes. Os três registros metapsicológicos pontuam a determinação significante das variações
semânticas sobre o “pai”, criando, assim, as condições para a sua análise ao colocá-las em série: o
“pai como nome” (ou Nome-do-Pai), o “pai como imagem” e o “homem de uma mulher”
(JULIEN, 1997). “Nome”, “imagem” e “homem”, três significantes deduzidos de um, “pai”. Julien
percorre a trilha de cada um deles, investiga os três tempos de constituição subjetiva da lei e de seu
atamento ao desejo. Em outras palavras, acompanha as condições de formação do sujeito do
inconsciente propriamente dito. É verdade que também se detém à questão do declínio cultural do
"pai", mas assim procede para destacar que esse declínio incide sobre a imagem do pai concebido
ontologicamente. Abordado em sua dimensão de significante, o "pai" passa, em Julien, a atravessar
não apenas o imaginário, mas os três registros da metapsicologia lacaniana. O “pai como nome”,
que corresponde ao primeiro tempo da subjetivação da lei, consiste na própria condição para a
inscrição da criança na ordem simbólica. Presa à relação especular com o Outro materno, a criança
necessitaria de uma mediação que a situe diante de uma falta, de uma distorção na imagem
primordial que sustenta seu narcisismo e que só poderá advir se esse Outro designar um
significante de sua própria insuficiência, o “Nome-do-Pai”.
O segundo tempo de constituição da lei e do sujeito refere-se à dimensão mais visível e
aparente de todas: o “imaginário”. Diferentemente do Nome-do-Pai, o pai como imagem é
elaborado pela própria criança como solução para o desamparo que surge após o declínio do Édipo.
A criança identifica-se com esse pai imaginário, processo que origina o Supereu, a subjetivação da
instância moral. A criança, diz Julien, faz filosofia, pois pensa em termos do Ser, concebendo o pai
imaginário como seu criador e fundador da lei a qual ela obedece. Todavia, a imagem, em sua
condição especular, não pode durar para sempre. Em um determinado momento, sua falta estrutural
aparece, mas agora pelo questionamento dirigido ao “pai”. O suporte do ideal subjetivo, o pai
imaginário, sofre abalos sem que isso signifique derrogar o ideal em si mesmo. A criança deve, a
partir de agora, deparar-se com o "real do pai". Adentrar o terceiro tempo da constituição subjetiva
99
implica aceitar a sexuação dos pais. O real em questão não é a realidade genética e o “pai real”
tampouco se reduz ao genitor da criança; ele "é aquilo que introduz o impossível”. (JULIEN, 1997:
59) Impossível de ser demonstrado, "o pai real é o real do pai, seja o que é esperado, muito pouco,
como o impossível de saber relativo a verdade da paternidade”. (Ibidem: 59) Essa impossibilidade
intrínseca ao “pai real” o transforma em agente da castração, isto é, naquele que instaura uma
mediação entre a mãe e a criança, que impede um saber sobre o gozo materno. O “real do pai”
permite a entrada do sujeito no percurso de seu próprio modo particular de gozar. Um saber sobre o
gozo do Outro, seja, em um primeiro momento, o da mãe, seja, posteriormente, o do pai, anularia a
emergência de um desejo atado à lei.
Frente à suposta inatualidade da psicanálise, manifestada pelo declínio da função paterna, a
clínica do social e a abordagem metapsicológica delimitam os dois extremos teóricos das respostas
que partem do campo lacaniano, aqui representados pelos trabalhos de Phillipe Julien e Eric
Laurent. Julien atualiza o conceito de função paterna como condição para a constituição do sujeito
do inconsciente. Mantém, assim, a referência freudiana, extraindo o significante "pai" da
metapsicologia, um conceito operatório capaz de pontuar o agente desse corte e o princípio de
exceção que funda o sujeito. Laurent, partidário do lacanismo da AMP, investiga o processo de
constituição do laço social e o associa à formação da subjetividade em um jogo de sedimentação
pragmática do discurso, sem referência ao significante "pai". Embora experimentem as mesmas
contradições da teorização lacaniana, Julien e Laurent representam duas posições extremas. No
entanto, sustentar conceitualmente a validade da referência paterna não significa excluir a
perspectiva que tem tomado o social como esfera de intervenção e pesquisa psicanalíticas. A
integração entre essas perspectivas se dá pela problematização sobre as conseqüências da anacronia
do “pai”, sejam elas clínicas ou sociais.
O mais conhecido e hábil expoente da corrente hegemônica do lacanismo, Jacques-Alain
Miller, propõe uma conciliação entre a clínica social e a abordagem metapsicológica na resposta ao
declínio da função paterna. Responsável pela edição da obra de Lacan, incluindo a decisão sobre a
ordem de publicação e a edição dos seminários, Miller ocupa o lugar de líder da AMP, posição que
necessariamente revela seus sintomas, a exemplo da hipótese, aventada pelos seus parceiros de
Escola, da existência de um campo milleriano. Se ela for aceita, o nome de Miller seria alçado a
uma relação de reinvenção do texto lacaniano36, assim como Lacan sempre pleiteou para si o posto
36
O apreço pela literalidade da fala de Miller nos trabalhos de tradução de suas conferências indica
claramente esse significado: “Quando, como analistas, somos levados à tarefa da tradução é preciso assumir
para nós esse resto da tradução, pois aqui não há, como no caso da análise, alguém para sustentá-lo. Há o
autor com seu texto e o tradutor com sua tradução, que a princípio não é um texto em si, mas um derivado.
O resto da tradução, porém, é inteiramente obra do tradutor, depende dele e de seu sintoma. Por isso a arte
é assumi-lo sem deixá-lo entrar em cena senão prejudica a leitura do original. Por essa razão é preciso
assinar. No nosso caso somos três, pois o autor, no nosso caso, não é qualquer um, mas Jacques-Alain
Miller. Já fomos muitos mais. Em minha gestão como Diretor da EBP <Escola Brasileira de Psicanálise,
100
de único leitor da letra freudiana. Em sua origem e na sua constância, essa reinvidicação esteve
atrelada ao movimento psicanalítico coordenado pela IPA, e a suas disputas internas, nas quais
Lacan tomou lugar de dissidente radical. Mas os efeitos da ruptura lacaniana podem ser percebidos
em todas as instituições fundadas por Lacan e, sobretudo, entre seus discípulos. A AMP não
poderia estar imune a esta herança. O lacanismo hegemônico tem em Miller seu procurador oficial,
constituído, importante recordar, pela vontade de Lacan37. O millerismo é um fenômeno típico do
lacanismo. Investigá-lo, entretanto, significaria desviarmos do problema principal. Para as
finalidades de pesquisa que propomos, a interpretação milleriana do texto de Lacan será destacada
das demais em razão do lugar que sua produção ocupa no lacanismo. Não é à toa, portanto, que seu
trabalho apresente um valor de conciliação e norte institucional na AMP. Esta qualidade ganha
força pela sua preocupação em transmitir com exatidão, pela via do “matema”, o “ensino de
Lacan”.
Miller organiza uma modalidade de transmissão da psicanálise, enfatizando aspectos
morfológicos da teoria de Lacan. Seu investimento conceitual muitas vezes se confunde com uma
simbolização da teoria. Que isso seja uma das conseqüências da formalização milleriana, nenhuma
novidade. Lacan sempre teve por finalidade objetivar o discurso, esvaziá-lo de sentido a ponto de
isolar unidades, procurando estabelecer relações lógicas entre elas, desdobradas ou passíveis de
serem desdobradas topologicamente. Não há de se supor inventividade radical no vigor formalista
de Lacan e seu séqüito. Projetos de axiomatização percorrem a história da matemática desde o
século XIX. Diríamos apenas que existe uma adoção muito particular de referências matemáticas
em Lacan. O procedimento lacaniano de assimilação de outras disciplinas científicas caracterizou-
se, segundo a própria visão de Miller, “pelo avesso” (MILLER, 1997). Paráfrase prática da teoria.
O conceito do “inconsciente estruturado como uma linguagem” não seria homólogo a esse
procedimento de torção de um saber já inscrito, a partir do qual se produz um novo discurso? Não
seria esta uma das principais qualidades que Lacan observou na concepção estruturalista da
linguagem? O lacanismo parece se apoiar em uma espécie de mimetização do objeto da psicanálise.
associada da AMP>, porém, decidimos reduzir os tradutores a este pequeno número e assumi a tarefa de me
responsabilizar pelo resultado final. Pareceu-me a melhor maneira de mantermo-nos à altura da confiança
de Miller, que nos entrega sua fala contando com o fato de que saberemos torná-la legível para aqueles a
quem esta tradução se endereça. Os de nossa comunidade que trabalham o curso de Miller em nossos
seminários de leitura da orientação lacaniana (onze na EBP). Cada um assume uma tarefa específica. Não é
uma questão de capacidade ou de conhecimentos, mas de posições diferentes e distintos restos sintomáticos
a colocar em funcionamento. A que me cabe é a responsabilidade pela versão final. Vera garante a primeira
versão da tradução, que só é "primeira" porque assim decidimos já que é uma tradução em si de primeira,
nada falha ou deficiente. Nicéas fica com as modificações de um segundo olhar, menos preso ao todo
exatamente porque segundo, atento aos pontos espinhosos e mais subjetivos. E eu, com o fechamento do
texto, a definição do que valerá pelo original, busco, nos pequenos detalhes que modifico ou incorporo,
verter o máximo do estilo, tornar presente no português o Miller que ouço quando leio o original.”
Entrevista com Marcus André, In: Boletim Informativo, n. 34, Centro de Investigação da Ansiedade (Clin-a),
janeiro de 2010.
37
Existem inúmeras controvérsias quanto à veracidade dessa vontade. Sobre as disputas em torno do espólio
de Lacan, ver Roudinesco (1994).
101
O elevado nível de abstração da construção teórica remete diretamente à qualidade inevitável, para
Lacan, de um projeto de objetivação científica do inconsciente. De um lado, esta objetivação
formal faz lembrar o subjetivismo oculto do positivismo, sua reificação dos conceitos e a
autonomia tautológica de seu método. Do outro lado, remete também a uma problematização social
e a uma figuração histórica. Ao contrário da maioria dos seus parceiros de estruturalismo, o
caminho escolhido por Lacan nos anos 70 seguiu a direção de uma crescente formalização.
Fiel ao sentido lacaniano de fornecer recursos controlados para a transmissão da psicanálise,
Jacques-Alain Miller (1999b) universaliza o conceito de “foraclusão do Nome-do-Pai”,
destituindo seu valor diagnóstico de localização da estrutura clínica da psicose. A “foraclusão
generalizada” proposta por Miller expõe a aplicação de um formalismo com a intenção de produzir
novos significados para os conceitos lacanianos. Se todas as estruturas, em maior ou menor grau,
apresentam carência da função paterna, então, por que manter a idéia de estrutura e mesmo de
diagnóstico estrutural? A resposta milleriana revela, como já mencionado, o caráter conciliador e
diretivo de seu trabalho teórico. Os três registros metapsicológicos seriam não apenas articulados e
heterogêneos, mas também assimétricos, o que justificaria uma clínica voltada para o “real”, um
passo adiante da clínica estrutural e sua “primazia do simbólico”. A “clínica do real” reconheceria
esta assimetria, fundamentada, segundo Miller, pela apropriação lacaniana do conceito de função
da teoria matemática dos conjuntos. Esse conceito designaria um “modo de enlace”, característica
ideal para formalizar a assimetria entre o imaginário, o simbólico e o real. Uma função implicaria
uma “aplicação”, a produção de uma relação assimétrica. Daí por que o sintoma seria uma
“formulação funcional”. Dispositivo simbólico, ele é eficaz porque substitui um conflito
inconsciente, metaforiza uma injunção pulsional. Esta natureza de metáfora explica sua
metamorfose. Como uma função matemática, seu valor se altera conforme os atributos, mantendo,
no entanto, a mesma relação de assimetria. A partir disso, Miller conclui que o primado do
significante, postulado estruturalista dos textos da “primeira clínica”, baseava-se em uma
“passagem funcional do significante ao significado”, assimetria em que o significante consiste em
ser o fundador do sentido (Idem: 402). Miller procede à produção de uma distinção no interior dos
textos de referência da “clínica do simbólico”, entre metáfora e metonímia, hierarquizando, pelo
critério da eficácia, a primeira em detrimento da segunda. Em interpretação palimpsesta do texto de
Lacan, afirma Miller que a “metonímia sempre fracassa” porque ela nunca alcançaria o significado.
Em contrapartida, a metáfora pode incidir sobre ele porque seria uma função significante pura, uma
“substituição significante cujo efeito é a emergência do efeito de significação.” (Ibidem: 406).
Instância especular e, portanto, de uma simetria suposta, o imaginário sofreria a ação do simbólico
que, metaforicamente, estabeleceria uma “relação foraclusiva em que o significante reaparece no
nível do significado” (Ibidem: 406). Na “segunda clínica”, essa incidência significante não teria
102
sido mais compreendida por Lacan como uma ação sobre o imaginário, mas sobre o real. A
natureza metafórica do sintoma passaria a ser vista como um efeito simbólico no real.
A referência direta de Miller à terminologia da lingüística estrutural utilizada por Lacan tem
um objetivo preciso, defender uma “clínica do real” em substituição à “clínica do simbólico”. A
idéia de “relação foraclusiva” já denuncia e dá nome ao projeto de deslocar o centro de gravitação
do discurso lacaniano: substituir a clínica da falta, sintoma da época de Freud, por uma
problematização sobre os excessos pulsionais experimentados pelos pacientes de hoje. Uma nova
sintomatologia deveria ser acompanhada por uma prática orientada pelo “mais além do Édipo”. A
substituição fantasística da perda de realidade na psicose seria, segundo Miller, um princípio
observável também entre neuróticos e perversos. Em outras palavras, seria generalizada a suplência
“real” do “simbólico”, operação tipicamente psicótica38. A ciência também funcionaria segundo
esse princípio, com o agravante de que ela pressuporia a extração dos objetos diretamente do real,
isto é, não envolveria efeitos de significação. É esta concepção que autoriza Miller a dizer que a
“natureza está escrita na linguagem matemática” (Ibidem: 412). A tese da “foraclusão
generalizada” torna-se complementar ao valor de metáfora da “linguagem funcional”. O aspecto
assimétrico da metapsicologia lacaniana indicaria novas questões, muito mais complexas do que
antes:
O problema sobre o laço social deveria, portanto, igualmente ser retificado. Agora, não se
trata mais de pontuar a repetição por meio da tematização da insatisfação do desejo, mas pela
emergência do gozo.39 Emergência esta não restrita ao interior da vida psíquica do indivíduo. A
regulação da subjetividade pelos modos particularizados de gozo é desdobrada, por Miller, para a
compreensão da realidade cultural.
38
Veremos esse ponto mais para frente.
39
É verdade que exceções existem, não são todos os psicanalistas lacanianos a compartilhar de diagnósticos
como os de Miller. Entretanto, as exceções não podem evitar a hegemonia deste discurso, pois a equiparação
entre teoria e objeto perpassa a obra de Lacan e a constitui como um regime de objetivação formal, cujos
efeitos manifestam com clareza sua afinidade normativa com outros dispositivos sociais calcados no primado
da linguagem. Anti-milleriano conhecido, Charles Melman adere a este mesmo tipo de argumentação. “O que
se torna o suporte do eu não é mais a referência ao ideal, é a referência objetal. E o objeto, contrariamente
ao ideal, para ser convencido, exige que não se pare de satisfazê-lo.” (MELMAN, 2003: 40-41). Daí
Melman concluir que a perversão, e não mais a neurose, seja o modelo clínico da contemporaneidade: “A
perversão se torna norma social. Não falo aqui de perversão com sua conotação moral, de modo nenhum é
isso que está em questão, mas a perversão com uma conotação clínica fundada na economia libidinal que
acabamos de descrever. Ela está hoje no princípio das relações sociais, através da forma de se servir do
parceiro como objeto que se descarta quando se avalia que é insuficiente. A sociedade, inevitavelmente, vai
ser levada a tratar seus membros desse modo, não apenas no quadro das relações de trabalho, mas em todas
as circunstâncias. Pois sua própria constituição dependerá disso.” (Idem: 54)
103
III. A “clínica do real” na época do “Outro que não existe”
40
“Esclarecerei com uma palavra a relação do direito com o gozo. O usufruto – é uma noção de direito, não
é? – reúne numa palavra o que já evoquei em meu seminário sobre a ética, isto é, a diferença que há entre o
útil e o gozo. O útil serve para quê? É o que não foi jamais definido, por razão do respeito prodigioso que,
pelo fato da linguagem, o ser falante tem pelo que é meio. O usufruto quer dizer que podemos gozar de
nossos meios, mas que não devemos enxovalhá-los. Quando temos usufruto de uma herança, podemos gozar
dela, com a condição de não gastá-la demais. É nisso mesmo que está a essência do direito – repartir,
distribuir, retribuir o que diz respeito ao gozo.” (LACAN, 1972: 11)
104
apresentar a forma de um investimento libidinal direto sobre o corpo, algo, diríamos, semelhante às
neuroses traumáticas observadas por Freud entre os combatentes que retornavam do front da
Primeira Guerra Mundial. Esse investimento explicaria sintomas contemporâneos como a bulimia e
a anorexia. No mesmo passo que identifica que “nossa época vê se inscrever-se em seu horizonte
(...) a sentença de que não há mais que o semblante” (MILLER, 2006: 15), Miller preconiza a
necessidade de uma nova clínica psicanalítica, orientada pelo real da experiência do inconsciente.
A “clínica do real” constituiria resposta a esse tempo de hegemonia do semblante e de declínio dos
ideais que antes serviam de apoio às injunções superegoicas. A época de Freud teria sido
determinada pelo controle social baseado na autoridade idealizada, enquanto que a atualidade,
tempo de Lacan, estaria toda na esfera da regulação a partir da dimensão pulsional. Os próprios
operadores da ordenação subjetiva seriam retirados do que anteriormente servia de contraponto ou
dimensão a ser reprimida, donde a idéia de que o supereu lacaniano seria um “supereu pulsional”, a
despeito de Miller sublinhar que, strito sensu, ele seria, antes de tudo, freudiano, já que “para
Freud a pulsão sempre se satisfaz, mais além de seus avatares, seus deslocamentos.” (MILLER,
2006: 84).
Manter a filiação freudiana do imperativo de gozo parece, em um primeiro momento,
contradizer o significado disruptivo da formulação lacaniana sobre a nova forma de subjetivação do
controle na civilização. Algo como afirmar que Lacan teria tão somente prolongado o sentido
original concebido por Freud. Miller está muito distante de aceitar essa continuidade. Se reconhece
a filiação freudiana é justamente para atribuir uma subversão radical a Lacan, reforçando o seu
argumento em prol de uma nova clínica. A repressão das transgressões e do gozo nelas aprisionado
constituiria a base da clínica freudiana, que teve eco no “primeiro ensino”, apesar da formalização
imprimida por Lacan através da prevalência dos conceitos de função paterna, falo e estrutura, isto
é, do simbólico. Na “época do Outro que não existe”, o simbólico manteria uma relação de
indistinção com a instância especular do “eu”, o imaginário. O “eu” não teria mais a ancoragem
simbólica (“Outro”) existente nos tempos da descoberta do inconsciente. O ideal do eu teria cedido
essa função aos “modos de gozo”, aos discursos sociais que, como afirma Laurent (1999),
configuram, sob a “insígnia de gozo”, a forma contemporânea da sociabilidade. O “ideal do eu”
estaria soterrado pela assunção social, em estado hegemônico, do objeto “a”. E novamente
lançando mão da operação de viragem, Miller diz ser a psicanálise uma das principais responsáveis,
no plano cultural, por essa assunção. Ao balançar as certezas dos ideais de sua época e, sobretudo,
ao problematizar os efeitos patológicos da repressão da pulsão sobre a vida psíquica, a psicanálise
teria nascido sob o signo de uma contestação contundente de todas as identificações.
Conseqüentemente, o declínio do ideal consistiria em um traço constitutivo da psicanálise. A
experiência clínica teria detectado os efeitos da acentuação desse declínio pela crescente entrada de
pacientes com novos sintomas, que não apenas indicariam mudanças de superfície derivadas das
105
transformações culturais, mas, principalmente, sinalizariam uma ruptura em relação ao psiquismo
analisado por Freud. Com a predominância social do imperativo de gozo, os sintomas são outros
porque os elementos estruturantes da subjetividade são muito diferentes, em dois níveis: no plano
histórico, a centralidade paterna não caracterizaria mais a autoridade que incide sobre o sujeito, que
lhe conferia uma ordenação pela articulação entre lei e desejo; no plano psíquico, o dinamismo
pulsional não seria mais regulado por um operador (Nome-do-Pai), a partir do qual poderia ser
definida uma classificação diferencial de três estruturas clínicas (neurose, psicose e perversão).
A tese sobre a preponderância do objeto “a” parte conceitualmente da pulsão e, nesse sentido,
por mais que filiações freudianas sejam estabelecidas ou que, nos textos tardios, Lacan tenha dado
indicações a respeito, ela não pode ocultar o teor diretivo da leitura milleriana. Diretivo porque
estabelece uma linha clara de restrição da polissemia teórica. A civilização transforma-se, assim,
em “um sistema de distribuição de gozo a partir de semblantes”, “um modo de gozo”, “uma
repartição sistematizada dos meios e maneiras de gozar” (MILLER, 2006: 18). Civilização e
Direito, este último nos termos da interpretação lacaniana do usufruto, tornam-se equivalentes. Não
é a toa que essa equivalência seja trabalhada por Miller a partir da ideologia política norte-
americana e seja associada também à democracia. A ideologia política norte-americana é
apreendida como uma espécie de julgamento de existência sobre uma sociedade fundada no
declínio dos ideais e na identificação horizontal. Se tal sociabilidade é possível, torna-se
igualmente possível vislumbrar a centralidade e positividade da pulsão nas formas normativas da
vida social. É desse modo que o conceito matriz da Constituição norte-americana, a felicidade,
pode ser equiparado ao usufruto41 e, por extensão, ao que Miller propõe, ao conceito de civilização
como “modo de gozo”. No modo de gozo norte-americano, o “Outro não existe”, mas isto não
implica uma cultura em estado de falta. Muito pelo contrário. A “civilização norte-americana”
seria pródiga em prescindir da universalidade do “Outro” em favor de um deslocamento e
atualização ad hoc da ordem simbólica. Daí o valor paradigmático dos “comitês de ética” nos
Estados Unido; eles sustentariam o “Outro” a partir de regras locais, circunscritas pelo uso. Muito
distinta é a referência milleriana à democracia. Em razão da erosão dos ideais e costumes pela qual
foi responsável, a democracia é evocada como uma espécie de garantia social da associação livre:
“a psicanálise não existe se não for permitido ironizar, pôr em questão os ideais da cidade sem ter
de beber cicuta” (MILLER, 2004: 15). As referências à ideologia política norte-americana e a uma
noção genérica de democracia ganham importância porque esclarecem o argumento milleriano em
defesa da “clínica do real”. Não fosse isso, estariam limitadas a uma presunção sociológica
rudimentar.
41
O próprio Lacan já havia feito a analogia entre gozo e felicidade. Ver LACAN (1972).
106
Ao invés de manter o “Outro” como contraponto do “eu” imaginário, concepção que
permitiu, entre outras significações teóricas, a definição de um operador da alteridade na
constituição do sujeito, essencial para a crítica lacaniana à concepção de um inconsciente
ontológico e semantizado, Miller assume a perspectiva do discurso compreendido como laço social,
o que significaria assumir a mesma direção do “ensino” de Lacan, em seu translado do “primado
do simbólico” à “promoção do objeto a”. Em linguagem estruturalista, o “Outro” seria o campo da
produção de sentido, ao mesmo tempo instrumento e fiador da significação da mensagem. Como
instrumento, a figura de sua auto-referência (o “Outro do Outro” que, como vimos, é uma das
primeiras formulações no Nome do Pai) exerce a função de “ponto de basta”, realiza, por retroação
à cadeia significante, um fechamento sintagmático que permite uma articulação entre o significante
e o significado, ou seja, a significação. Enquanto fiador (ou, para dizer com Lacan, “tesouro do
significante”), é a instância à qual a mensagem se dirige para validar-se e encontrar sentido. A tese
lacaniana de que o “Outro não existe” teria imposto uma nova teorização. Nesse particular, a
conversão do “Outro” em categoria constitutiva do discurso permite potencializar a “promoção do
objeto a” tanto no registro da teoria psicanalítica, como na interpretação da atualidade histórica.
Daí o valor estratégico da referência milleriana aos Estados Unidos, “civilização” cujo princípio
normativo reside na funcionalização do gozo e não na injunção simbólica enunciada a partir do
“Outro”. O “objeto a” exerceria a função produtiva de extração de “mais gozo”, respondendo,
desse modo, ao dinamismo necessário às exigências da “sociedade de consumo”. Trata-se, na
construção milleriana, de localizar a psicanálise contemporânea junto a um pragmatismo. Mas não
ao de origem filosófica norte-americana, aliás, ele mesmo foco da crítica milleriana. O
pragmatismo subjacente à interpretação milleriana recai sobre o âmbito clínico, recorrendo à
tradição política dos Estados Unidos porque ali teria se processado historicamente o que seria a
forma atual de constituição do sujeito. Nas “comunidades”, que ao lado dos indivíduos compõem a
unidade política básica da cultura norte-americana, não haveria “ponto de basta”. O gozo seria
regulado pela sua própria insígnia e modulado pelo discurso. O “Outro”, uma ficção construída
pelos sujeitos, mecanismo modelar da suplência psicótica do Nome do Pai. Aqui compreendemos
por que a “foraclusão generalizada” está estreitamente articulada à “promoção do objeto a”.
Não há dúvida de que a perspectiva da “clínica do real” defendida por Miller soube
incorporar a visibilidade dos avanços da biogenética dos meados da década de 90. Antes disso,
Miller tomava como paradigma da ciência a escrita matemática em sua condição de signo do real.
Com a biogenética, cujo desenvolvimento levou à reprodução laboratorial de um ser complexo e
mediante um saber que incide diretamente sobre o código genético, ele passa a incluir a
modificação do real da ciência nas teorizações sobre a clínica psicanalítica. Desde então, trata-se de
divulgar a tese de que a acentuação dos processos históricos de descentramento dos ideais teria
atingido seu auge com a erosão do referente da escrita matemática, o real da ciência, antigo
107
horizonte da formalização lacaniana. Para Miller, Lacan anteviu essa erosão na última parte de seu
“ensino”. A “clínica do real” pertenceria a essa etapa. Se a indeterminação do real da ciência
implica desarranjo das coordenadas da própria objetividade social, à psicanálise não restaria nada
mais do que convocar o núcleo de sua experiência, uma dimensão de saber e sentido inapreensíveis
pelo dispositivo de fala, ao menos tal como o proposto originariamente por Freud. Confrontar-se
com o real do inconsciente passa a ser o mote milleriano do discurso em defesa da “clínica do
real”. Ao contrário de todos os outros discursos sociais, a psicanálise seria o único capaz de
estabilizar a contingência absoluta do real (“o que não cessa de não se escrever”), sendo esse o
aspecto definidor do mencionado confronto na clínica:
A “relação unívoca” que a psicanálise estabelece com o real deve pressupor uma eficácia do
simbólico no manejo clínico da transferência. Lacan já havia se pronunciado a respeito. O real é
tocado pelo simbólico, condição de toda análise. Nesse sentido, é preciso compreender com mais
atenção o jogo de aproximações e distanciamentos realizados por Miller. Quando se põe do lado de
uma clínica que prioriza o real, Miller introduz uma assimetria na relação entre os registros
metapsicológicos para que uma hierarquização teórica oriente os fundamentos da prática analítica.
Nem sempre evidente, esse procedimento reveste-se de um estilo que, muito mais do que
consolidar conceitos, descontextualiza-os em relação à sua origem, em uma operação muito
semelhante aos princípios da função poética jakbsoniana, seus efeitos são parecidos com os de uma
metalinguagem. A autonomia significante, no estilo milleriano, se forja sem a criação de uma
codificação ou formalização plena. Ela se cristaliza do lado da interpretação do leitor ou da
audiência e não em sua expressão operativa. A esfera enunciativa do discurso milleriano incita uma
identificação de outra natureza, esta sim desencarnada em sua liderança na AMP. Não porque aqui
vigoraria um laço entre iguais e sem “Outro”, mas porque a autonomia significante é concretizada
pela identificação com a própria representação da incidência do discurso no real. Daí a semelhança
com a função poética. O real seria representado por uma apresentação simbólica, deslizando nos
interstícios de um discurso que extrai uma topologia fundacional a cada relação com outros
discursos. Maquinismo simbólico com efeitos no real, sem dúvida, mas ao modo de um realismo
108
retórico que não pode deixar de exigir sua contraparte, a conversão da teoria em sintoma social. A
prerrogativa desse fenômeno no lacanismo milleriano consiste na constante adequação da teoria às
exigências de um discurso que se autonomiza em seu mimetismo do poder. Por isso não se trata de
compreender a AMP como reflexo da liderança de Miller. Seu personalismo tem sido denunciado
com freqüência ao longo dos anos, não cabendo, nesta tese, nenhuma avaliação sobre a veracidade
de quaisquer dos argumentos em pauta, sejam eles favoráveis ou não. Se há condução carismática
da AMP, ela se deixa enquadrar pela normatividade imposta pelo discurso milleriano e não
simplesmente pela pessoa de Jacques-Alain Miller.
Afirmada a necessidade de uma delimitação clara do foco da crítica ao discurso milleriano, é
preciso também dimensionar e analisar sua transformação interna. Sem dúvida, haveria como
explicitar algumas temáticas que, antes de caírem no ostracismo, ocupavam o centro dos debates da
Escola. A importância da clínica das psicoses, por exemplo, abordada pela diferenciação estrutural
em comparação à neurose, não desapareceu por completo, mas certamente já não se encontra entre
as prioridades dos debates da AMP. O inverso pode ser dito sobre a temática das perversões que,
quase inexistente nas principais publicações da Escola da década de 80, passa a ganhar mais
visibilidade a partir de meados dos 90, tendo, nos últimos anos, tomado de vez assento nas
discussões sobre a subjetividade contemporânea. Todavia, seria muito pouco recomendável
acompanhar o desenvolvimento das temáticas mais proeminentes na instituição coordenada por
Miller. A despeito do valor metodológico que uma análise longitudinal da agenda da AMP possa
oferecer, não adotaremos essa perspectiva em razão dos desdobramentos que parecem inevitáveis,
entre os quais, a exigência de uma investigação dos grupos que a compõem, da interdependência
entre eles e das táticas específicas que definem a direção dos trabalhos e o conseqüente
favorecimento de alguns temas em prejuízo de outros. A análise da produção teórica, nessa
perspectiva, estaria subordinada ao reconhecimento de um “campo de relações objetivas”
(BOURDIEU, 1998), o que não seria adequado para os propósitos de nossa pesquisa.
Diferentemente dos estudos que pretendem demarcar as fronteiras de uma autonomia disciplinar,
fundada e legitimada pela objetividade de uma esfera social particular, esta pesquisa assume
posição oposta. A ela interessa compreender as modalidades de franqueamento dessas fronteiras,
determinadas que estão por outros dispositivos sociais muito além das configurações práticas
específicas, analisadas tradicionalmente pelas sociologias relacionais. Franqueamento que pode ser
apreendido por meio de investigação de contextos empíricos ou pelo recurso de uma construção
inteiramente teórica. Se, para compreendermos o lacanismo milleriano, escolhemos o segundo
caminho, mesmo que em relação complementar com o primeiro, é porque o fenômeno do
formalismo normativo se exerce, nessa vertente do movimento psicanalítico, pela eficácia
simbólica da teoria.
109
O processo que respalda essa eficácia não se limita, obviamente, às posições teóricas dos
psicanalistas da AMP. O âmbito das práticas institucionais também constitui universo em que se
opera a força discursiva da teoria, no sentido que até esse momento problematizamos. A integração
entre teoria e prática psicanalíticas tem sido proposta pela AMP, na última década, por intermédio,
sobretudo, dos debates sobre a psicanálise aplicada. Iniciativas de aplicação do método
psicanalítico em universos exteriores ao setting clássico existiram quase que nas margens e sempre
no contexto já bem conhecido da clínica com grupos específicos, a se destacar, as crianças,
principalmente as autistas, e os psicóticos, ambos pensados a partir do atendimento em instituições
de saúde. Em relação a essa modalidade clínica, a diferença reside na ampliação e diversificação do
escopo de aplicação da psicanálise, implicando, desse modo, menos especialização e mais
unificação teórica, características que contrariam, a princípio, o viés da singularidade do sujeito em
tratamento. Não são poucos os ajustes conceituais para dar conta das novas modalidades clínicas
formuladas pelo lacanismo milleriano. Um significativo movimento institucional tem sido
coordenado por Miller, envolvendo extensa publicação dos debates e contribuições autorais que
orientam as iniciativas de psicanálise aplicada desenvolvidas entre as associadas da AMP nas
diferentes partes do mundo. O centro dessa irradiação internacional emana, naturalmente, de Paris,
tendo em Miller o seu ponto de totalização. O discurso da AMP reflete, assim, a mesma estrutura
de uma Psicologia de massas. Mas, ao contrário do modelo interpretativo de Freud, a identificação
se processa por meio de um automatismo discursivo que captura e funcionaliza a produção teórica.
Por isso não é correto atribuir a Miller um personalismo de líder carismático, como já dito. O
automatismo em questão inscreve a repetição no interior das modificações discursivas, funcionaliza
a teorização milleriana para que uma mesma gramática possa ser colocada em ato. É a partir da
normatização resultante que o lacanismo, em sua interlocução com o social, reivindica sua
atualidade. Para que essa gramática possa produzir conseqüências de acordo com a reprodução
institucional, sua normatividade, que surge, primeiramente, pela circulação do discurso teórico, é
instrumentalizada pela linguagem das auto-reversões, mutações e toda sorte de paradoxos
apresentados como sinalizações do real, sua “orografia”, o que tem transformado a própria AMP
em um laboratório da eficácia da teoria milleriana.
Em seu fracassado projeto de fundar uma Escola radicalmente distinta da IPA, sobretudo no
que diz respeito à transferência do analista, Lacan inventou o dispositivo do “passe”42, garantia de
uma transmissão da psicanálise sem qualquer saber instituído no posto de fiador do ato analítico, a
não ser aquele exposto a partir do inconsciente. O “passe” atualizaria a experiência do
42
Sobre esse dispositivo, ver Lacan (1964) e (2003b). Uma ampla bibliografia a respeito pode ser listada.
Importante ressaltar a necessidade de se reconhecer o viés das disputas entre os grupos no lacanismo para se
compreender, com mais propriedade, as teorizações sobre o dispositivo, historicamente motivo de rupturas e
impasses institucionais. Para um panorama geral das discussões, ver RIBEIRO (1998); DUMEZIL (2005);
MILLER et ali (2002); AMP (1995); QUINET (2009); FORBES (1992); JIMENEZ (1994); SOLER (1998).
110
inconsciente, configurando um espaço de formalização do saber produzido em análise. A
ratificação desse saber seria dada pelos “passadores”, responsáveis pelo suporte transferencial do
trabalho de transmissão dessa experiência, finalidade do “passe”. Com esse dispositivo, Lacan
tentou destituir o lugar de autoridade institucional do analista em favor da experiência clínica. O
resto de uma análise não deveria sustentar o analista, homologar o poder da transferência, mas tão-
somente colocar em causa o desejo de fazer-se objeto para que o desejo do sujeito em análise possa
advir, função fundamental que Lacan chamou de “desejo do analista”. Existiriam fenômenos
transferenciais fora da psicanálise, assim como a eficácia simbólica do discurso, modulada pelo
binômio escuta-interpretação, e a manifestação das formações do inconsciente. Contudo, a
prerrogativa de um tratamento psicanalítico envolveria nessa função que, para operar clinicamente,
não exigiria, em última instância, qualquer enquadre específico. É justamente aqui que se apóia a
defesa milleriana da psicanálise aplicada, justificada em razão do que seriam as transformações das
demandas por análise, determinadas pelas transformações profundas por que estaria passando a
sociedade contemporânea. Também aqui se desenvolve, pelas movimentações das massas instáveis
da linguagem revertida em paradigma do poder, o terreno onde o social ganha colina na cordilheira
psicanalítica. A “aplicação” veio substituir o “passe” e tem significado, na AMP, a desvalorização
da dimensão simbólica da linguagem para que a representação da pura contingência do real se
objetive em um novo terreno de expansão institucional, o social e suas vicissitudes.
No início dos 80, ainda em relação muito próxima com o espólio lacaniano, Miller propõe
uma redução da clínica em duas dimensões, a fantasia e o sintoma, que tornar-se-á canônica entre
os membros da Escola da Causa. Nas “duas dimensões da clínica”, como ficou conhecida a
conferência pronunciada em Buenos Aires, evento em que pela primeira vez essa redução foi
apresentada, a prática analítica é decomposta e diferenciada conforme a divisão entre fantasia e
sintoma. Ainda que nessa conferência Miller tenha trabalhado a dimensão do sintoma, a ênfase
recaiu sobre a fantasia, não tanto por ser um contraponto estrito, mas porque adequada para
diminuir a centralidade dos conceitos e categorias deduzidos do simbólico. Já naquele tempo,
constituía um objetivo inegável do trabalho milleriano a redução da heterogeneidade fenomênica da
clínica pela referência ao real da experiência do inconsciente, ao “impossível” inscrito na fantasia.
Na leitura milleriana, Lacan teria solucionado o problema freudiano sobre o fim da análise por
meio desse recurso. Se é pelo sintoma que o paciente adentra o tratamento, seria pela fantasia que
ele a concluiria. Como solução de compromisso, o sintoma condensa a representação de uma
111
injunção pulsional, deslocando seus efeitos de gozo, cuja intensificação geraria ainda mais
desprazer ao sujeito. Regido como uma metáfora, o sintoma obedece às leis do significante, seu
funcionamento pressupõe a metamorfose. As duas dimensões da clínica podem, assim, ganhar
outra formulação, a contraposição entre significante e objeto, desdobrada segundo a orientação que
privilegia o “segundo ensino”. Dessa perspectiva em que “nem tudo é significante” no inconsciente
(MILLER, 1990: 94), abre-se espaço para a introdução do objeto “a”, conceituado, por Lacan,
como resto impossível de ser simbolizado, sendo esse o atributo que permitiria ao analista ser
acolhido no psiquismo do paciente como “causa do desejo”. Fazer-se de objeto “a”, ocupar seu
semblante constituiria a prerrogativa da prática analítica por definição. Para Miller, o enunciado
lacaniano “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” refletiria o momento instituinte do
“retorno a Freud”. Para que a psicanálise pudesse sair das desvirtuações dos pós-freudianos, Lacan
teria lançado mão de uma aproximação com o estruturalismo de Lévi-Strauss, na esperança de que
o campo da linguagem, inicialmente desbravado pela lingüística contemporânea, pudesse fornecer
um parâmetro seguro de objetividade. Esse enunciado deveria, portanto, ser lido como marca de
um momento específico do desenvolvimento teórico da psicanálise lacaniana.
Como já falado, a divisão da teoria lacaniana em momentos distintos, separados por cortes
epistemológicos, é assumida por Miller para definir uma estratégia de localização de seu discurso
no lacanismo. Longe de ser um fato meramente motivado pelo jogo de interesses existente na
AMP, essa divisão expressa também uma política na interlocução com atores exteriores à
psicanálise. Mas na época das “duas dimensões da clínica”, o social não era o foco da política da
Escola. Tratava-se, antes, de consolidar uma direção que não fosse vulnerável ao arsenal crítico
gestado no interior das ciências sociais e da filosofia francesas após o levante do primado da
linguagem das décadas de 60 e 70. Inegavelmente, conceitos centrais da psicanálise foram, para
dizer com Foucault, constituídos a partir de um “modelo jurídico do poder”. Lacan, em seu
momento estruturalista, homologou essa referência, desfigurando, para tanto, as analogias presentes
nos textos de Freud, na tentativa de tematizar os conceitos com o recurso do quadro formal da
lingüística. Na metapsicologia lacaniana, essa formalização tem, no registro do simbólico, a sua
nacionalidade. É precisamente essa aderência dos principais conceitos ao simbólico que deve, para
Miller, ser questionada, sob o risco, caso isso não seja feito, do lacanismo ratificar a obsolescência
da psicanálise e seu desprestígio em relação a outras disciplinas. É nesse movimento de
posicionamento estratégico dos conceitos lacanianos que Miller processa a prevalência teórica do
objeto “a”.
No plano clínico, o primado do objeto envolveria uma dificuldade prática. O psicanalista
deparar-se-ia com o problema de saber como escutar a fantasia, ou seja, quais seriam as
possibilidades da interpretação no âmbito do objeto “a”. O sintoma estaria exposto aos poderes da
palavra. Situado na demanda do “Outro”, ele seria passível, em sua natureza de metáfora, de
112
responder à interpretação do analista. Essa demanda pressuporia também as outras formas de
intervenção do analista e a transferência, ambas afiançadas pelo simbólico, características que não
poderiam ser atribuídas à fantasia. Em relação ao sintoma, tudo se diz; quanto à fantasia, talvez,
lembra Miller, por ser semelhante à estrutura da perversão, nenhuma palavra, apenas a vergonha.
Haveria na fantasia uma espécie de ideal invertido que dividiria subjetivamente o paciente. O
conflito inconsciente, nó freudiano de toda a neurose, passa a ser entendido como resultado da
incongruência inercial do objeto “a”. Não que essa concepção estivesse ausente em Freud. Miller
reconhece sua autoria, diz que seus textos apontam para a dimensão do gozo também no sintoma,
idéia que teria surgido com a observação da “reação terapêutica negativa” de alguns de seus
pacientes. Contudo, ao enfatizar essa incongruência sem, em contrapartida, ressaltar os dualismos
pulsionais que acompanharam toda a obra freudiana, a leitura milleriana dissocia a tensão presente
na problematização sobre a resistência ao tratamento, favorecendo, dessa forma, a compreensão da
fantasia como responsável por uma inversão qualitativa, a transformação do gozo em prazer.
“Articulação significante” para “domar o gozo”, a fantasia não seria interpretável. Seu caráter
inercial poderia ser explicado pelo objeto “causa do desejo”. A repetição decorreria do movimento
em busca de satisfação, já impedida pela estrutura. A resistência ao tratamento estaria vinculada à
própria “consistência estrutural” (Idem: 131), cuja inércia vincula-se à “máquina de domar o gozo”
(Idem: 102), à fantasia. A fixação pulsional propiciada pela fantasia denota a forma privilegiada de
prazer do sujeito. A radicalidade da formulação lacaniana residiria nessa integração de registros
opostos, o simbólico e o real, a pulsão e a linguagem na fantasia: “Como pode ser que dois
elementos de estruturas diferentes <gozo e desejo> se vinculem entre si? Ainda por cima, essa
vinculação é forte, muito resistente, a mais resistente das que aparecem na direção da cura
analítica.” (Ibidem: 133). Em função dessa natureza de integração dos contrários, Lacan teria
utilizado a topologia, na medida em que “não é suficiente pensar a prática analítica com o campo
do significante.” (Ibidem: 133). A fantasia, e não o sintoma, revelaria um mais além da linguagem
necessário para que a psicanálise se desenvolvesse, pois, “se o sujeito é, por um lado, efeito da
cadeia significante, não se deve esquecer que, por outro, se apresenta na experiência analítica
com uma inércia, uma resistência proveniente da sua estreita vinculação, através da fantasia, com
o objeto.” (Ibidem: 133)
Com o objeto “a”, a psicanálise teria, enfim, encontrado solução ao dilema freudiano sobre o
final de análise. Por não ser um significante, o objeto “a”, ainda que seja um termo da estrutura,
não estabelece relação com nenhum significante. Vimos como essa formulação não é nova, algo
semelhante pode ser antevisto no lugar e na função atribuídas aos “nomes próprios” nos sistemas
de classificação, em “O Pensamento Selvagem”. Sem destituir seu estatuto simbólico, Lévi-Strauss
concede ao “nome próprio” a função de expansão e fechamento de um sistema de classificação (ou
do pensamento). Híbrido, por se tratar do único significante a não estabelecer par na estrutura, o
113
“nome próprio” indicaria as fronteiras do sentido e prospectaria, ao firmar relação com o conjunto
da ausência de significação, o avanço da linguagem sobre a ordem natural. Lévi-Strauss, ele
próprio, já havia reconhecido em Marcel Mauss a paternidade dessa descoberta. Difusor de
segunda mão, Miller repete o que Lacan havia feito ao não dar o crédito a Lévi-Strauss. Foi noção
corrente no estruturalismo a exigência de um termo apartado das relações binárias que compõem a
estrutura para que uma dinâmica pudesse ser pensada no interior de sua estabilidade formal. A
defesa de um Lacan pós-estruturalista pela proposição daquilo que se revela regra básica da coesão
do paradigma estruturalista identifica muito mais do que uma contradição. Ao seu modo e com a
influência dos interesses da Escola à época das “duas dimensões da clínica”, Miller integra a
resposta ao fim da análise com o diagnóstico sobre a direção adotada pelo movimento psicanalítico
desde Freud, concluindo que as resistências do paciente ao tratamento seriam “resultado do próprio
discurso analítico”, a “obra coletiva” dos psicanalistas (MILLER, 1990: 109). O caráter inercial
desse objeto seria reforçado pela cultura contemporânea que, por sua vez, teria sido fortemente
influenciada pelas idéias da psicanálise. Na conferência sobre as “duas dimensões da clínica”, o
social ainda não é chamado a construir o panorama sobre o qual o lacanismo milleriano veio
semear sua vontade de poder. Miller restringia-se a dizer que a difusão da psicanálise teria
contribuído para a promoção social do objeto “a”.
Na problematização sobre as “duas dimensões da clínica”, o círculo argumentativo de Miller
é tautológico e não faz avançar qualquer nova hipótese sobre a relação entre psicanálise e
sociedade; limita-se a apresentar noções genéricas que, sob uma análise mais detida, demonstram
sua subjacente intenção de vulgata. Como o valor da posterior referência à ideologia política norte-
americana, aqui o efeito a se criar consiste em evocar a alteridade, seja teórica ou social, para
incitar uma forma de recepção intuitiva do discurso, processo no qual se apóia a identificação entre
os iguais da comunidade analítica da AMP. Revestida com a fraseologia em defesa da
“transferência de trabalho”43, essa identificação consolida a unidade da Escola. Embora possa ser
verdadeira a idéia de que Lacan, em sua grandiosa e variada interlocução, nunca tenha pensado em
sair do campo da psicanálise, torna-se pouco plausível não reconhecer nessa interlocução uma
estratégia teórica clara. Discípulo dessa estratégia e mestre em ampliá-la ao nível de sua perversão,
Miller organiza e ressignifica a teoria lacaniana nos moldes de uma inserção da psicanálise em
contextos tradicionalmente alheios a ela. Com o tempo, organização e ressignificação foram
acentuadas até o paroxismo dos dias atuais. Por exemplo, aos questionamentos já bem conhecidos
sobre um suposto conteúdo politicamente alienante da psicanálise, Miller responde com a
afirmação de que a política seria imanente ao método inventado por Freud. Ao desidealizar as
paixões do sujeito, o que implica modificar seu modo de satisfação fantasmático, a psicanálise seria
desde sempre política e democrática, visto ser ela adequada para os cidadãos em seu pleito de
43
Sobre esse conceito polêmico e problemático, ver JIMENEZ (1994).
114
igualdade: “A desidealização não é um infortúnio da democracia, mas seu destino, sua lógica, e, se
assim posso dizer, seu desejo.” (MILLER, 2004: 14). Daí a associação mal camuflada entre final
de análise e política, ou seja, entre psicanálise e sociedade. A “travessia do fantasma”, que marca o
final do tratamento, corresponderia a uma política sem identificação aos ideais. O enunciado
lacaniano “o inconsciente é a política” passa a ser lido como uma equivalência estrutural com o
“discurso do mestre”, cujo agente consiste em ser um significante que “captura o sujeito e o atrela
a um trabalho cujo gozo lhe é roubado” (Idem: 13). O “significante-mestre” seria esse agente e
definiria tanto o inconsciente quanto a política. O final de análise envolveria, portanto, uma
transposição da política e, por que não dizer, também do inconsciente:
O “novo ponto de partida” aberto pela “travessia do fantasma” pressupõe a marcha dos
conceitos segundo o andamento imposto pelo lacanismo hegemônico. Para se chegar ao
diagnóstico da “época do Outro que não existe”, a fantasia precisa ser cominada conceitualmente
ao sintoma, o que apenas em parte havia sido trabalhado nas “duas dimensões da clínica”. Mas
para que essa articulação se tornasse possível, antes seria necessário definir os termos da “direção
da cura” a partir da classificação das dimensões da clínica. A “travessia” exige um fundamento
clínico, somente possível se existir incompletude da linguagem ou, em termos lacanianos, na
presença de um significante da falta do “Outro”, uma vez que é justamente, como constantemente
aponta Lacan, desse lugar vazio que o paciente endereçará sua demanda ao analista. Toda
transferência está fundada no vazio ocupado pela demanda de ser o objeto que preenche a falta do
“Outro”. Lacan caracteriza esse movimento não apenas em relação à transferência, mas à própria
constituição do sujeito. Em um primeiro momento, portanto, o analista é o “Outro” para, no
segundo, tomar a forma de objeto “causa do desejo” do paciente. Por se recusar a responder à
demanda, que é sempre de satisfação pulsional, o analista lacaniano não experimentaria, segundo
Miller, o problema da contratransferência: “o desejo do analista é exatamente o que apaga a
questão da contratransferência” (MILLER, 1990: 111). Ao contrário dos pós-freudianos,
aprisionados em uma perspectiva dualista que reduzia a transferência aos efeitos do binário
analista-paciente44, Lacan analisou os fenômenos clínicos pelo enquadre formal da linguagem, da
escrita lógico-matemática e, por fim, da topologia. Seu formalismo produziu um efeito heurístico,
despersonalizando o setting ao introduzir uma transcendência, ainda que metodológica, no encontro
44
A crítica é voltada, principalmente, a Melanie Klein e seus discípulos.
115
entre um analista e seu paciente. Transcendência, é importante que se diga, sempre funcional, tanto
na atribuição de objetividade aos conceitos e categorias, quanto na prática clínica propriamente
dita. Essa transcendência foi celebrada como indício inquestionável da cientificidade que teria sido
alcançada pela psicanálise lacaniana. Não à toa que foi o decano de Miller dos tempos de sua
militância maoísta, Louis Althusser, um dos mais enfáticos a reconhecê-la. A psicanálise teria
recebido de Lacan “a definição formal da essência de seu objeto, condição de possibilidade de
toda aplicação prática, técnica, aos seus próprios objetos concretos.” (ALTHUSSER, 2000: 68).
Diferentemente de outras tentativas de aproximar psicanálise e marxismo, o materialismo do
método freudiano poderia ser apreendido pela sua teoria, e não por uma psicologia comportamental
de forte inspiração biologicista:
Althusser projeta a grade estruturalista sobre a teoria lacaniana e assinala com facilidade
todos os requisitos e traços de identidade do paradigma da linguagem, concluindo por idéia
semelhante à leitura milleriana, ao primado do simbólico sobre o imaginário, diretriz do “primeiro
ensino”:
“Em qualquer caso, quer seja no momento do fascínio dual do Imaginário, quer
seja no momento (Édipo) do reconhecimento vivido da inserção na Ordem
simbólica, toda a dialética da passagem é marcada, em sua essência última, pelo
selo da Ordem humana, do Simbólico, cujas leis formais, ou seja, o conceito
formal, são-nos fornecidos pela Lingüística.” (Ibidem: 68).
Do ponto de vista da “clínica do real” milleriana, é possível dizer que o elogio althusseriano
a Lacan não refletiu o aspecto mais importante de sua teoria. Ainda restrito ao universo da
linguagem, o comentário seria incapaz de capturar o movimento teórico lacaniano em sua
subversão não só do estruturalismo, mas, principalmente, do legado freudiano. O objeto da
psicanálise estaria muito distante de ser simplesmente o inconsciente, mesmo aquele regido pelas
leis da linguagem. Nenhuma “definição formal” do objeto seria suficiente para circunscrever o
campo específico da psicanálise. A prática clínica também não teria como meta a “cura”, como
afirma Althusser. Os benefícios marginais de uma análise seriam observados no apaziguamento dos
sintomas, mas o final de um tratamento não deveria ser compreendido fora da dimensão da
fantasia: “O fim de análise tem por objeto uma modificação muito mais profunda que a do nível do
sintoma, pois o que se busca é uma certa modificação da posição subjetiva na fantasia
fundamental. Isso não é uma questão de cura.” (MILLER, 1990: 111). Daí a importância,
116
defendida nos 80, em diferenciar sintoma e fantasia como dimensões organizadoras dos fenômenos
clínicos. Um tratamento que situa a dimensão do sintoma no seu final define-se como uma
“terapêutica” e não uma psicanálise. O sintoma seria objeto da “cura”, um dos efeitos esperados de
uma análise, mas sua resolução não modificaria o real da fantasia, a forma de fixação pulsional
privilegiada pelo sujeito. A “clínica do real” somente seria viável pela prática psicanalítica
entendida como uma ética, único modo de enfrentamento da posição subjetiva que extrai prazer do
gozo. (Idem: 96).
Na esfera da ética, a fantasia poderia ser construída por intermédio do encontro com o real,
sessão após sessão. Esse aspecto ficcional da fantasia não denuncia uma ordem narrativa, o que a
transformaria em objeto de uma interpretação hermenêutica. Lacan sempre deixou claro que a
psicanálise deveria atentar para o necessário distanciamento em relação à hermenêutica, ou seja, ao
viés do sentido que, em sua essência, não encontraria termo de conclusão. (LACAN, 1979). O
deslizamento semântico em um tratamento focado no sentido seria interminável e conduziria o
sujeito, cedo ou tarde, ao impasse. Nesse particular, Miller segue Lacan ao pé da letra. A fantasia
seria “um resíduo da interpretação do sintoma” (Ibidem: 111), resto que indica o limite do trabalho
significante em uma análise e que, nas “duas dimensões da clínica”, foi concebido a partir de uma
associação com a lógica enunciada por Lacan, como um axioma. A fantasia seria uma “pura
criação significante” (Ibidem: 137) em que o real é posto em causa, donde a premissa de que “há
um real do simbólico” (Ibidem: 125). Seria precisamente essa qualidade de ser uma “conjunção
disjuntiva” que faria da fantasia um axioma:
“E isso me parece ser exatamente compatível com a frase de Freud que li, essa
frase extraordinária: ‘O analista tem que admitir que essa fantasias subsistem
apartadas do resto do conteúdo de uma neurose e, no fundo, não encontram um
lugar apropriado na sua estrutura’. Creio que quando Lacan diz ‘ a fantasia é um
axioma’ , trata-se da formalização dessa intuição freudiana, da maneira de poder
ver como uma articulação simbólica pode estar ao mesmo tempo no lugar real,
de algo que não muda.” (Ibidem: 125).
117
imagens”, a fantasia estava limitada ao binário especular do eu (moi) e sua imago, totalizada pelo
reconhecimento do “Outro”. A ênfase no registro imaginário caracterizou o momento que
antecedeu a referência do estruturalismo, quando as “leis da língua” foram conclamadas a adentrar
o centro da teoria lacaniana. Especificamente na análise da fantasia, esse momento correspondeu à
retomada da interpretação freudiana, que identificava uma gramática em operação. O simbólico da
fantasia seria, para Miller, produto de uma decantação da fala, estado no qual tornava-se possível
pontuar as “variações gramaticais” entre sujeito e objeto, fenômeno típico da pulsão. Lacan, ao
contrário da tese contida em Bate-se, teria deduzido dessas “variações” a necessidade de se atribuir
à fantasia fundamental um estatuto lógico, e não gramatical. A decantação da fala engendrada
durante a análise configuraria a redução formal da fantasia em um nível “cada vez mais puro e
trágico” (Ibidem: 113). O psicanalista deveria tomar a seu favor o caráter inercial do objeto “a”,
como “um instrumento da interpretação analítica” (Ibidem: 114); o real a serviço do simbólico.
Nesse projeto de dar hegemonia ao real em detrimento dos outros registros metapsicológicos,
o lacanismo milleriano enfatizou a fantasia. Da mesma forma como procedeu em relação aos
registros metapsicológicos, hierarquizou as “duas dimensões” da clínica. A “travessia” é expressão
dessa reorganização dos conceitos. Do significante ao objeto, o percurso milleriano é revelador,
mas não o único. Protagonistas da cena intelectual francesa dos últimos quarenta anos, Lacan e o
lacanismo compuseram, como muitos de seus contemporâneos, o mesmo balanço pendular
movimentado pelo paradigma da linguagem. A “promoção do objeto a” propalada por Miller e
seus companheiros de Escola reflete, sem grandes diferenças, as contradições e dilemas
enfrentados por outros grupos e autores que também haviam aderido ao paradigma nos 60. O
formalismo do projeto lacaniano, inicialmente com o intuito de fornecer uma garantia científica ao
método da psicanálise, transitou em direção à figuração teórica de uma nova transcendência, não
mais lingüística, embora inscrita na imanência dos fenômenos da fala. Em Lacan, tratava-se de
reafirmar a descoberta freudiana, deslocando seus termos e sua instrumentação conceitual na
prática analítica. A insistente utilização das superfícies topológicas nos últimos seminários não
sugere uma “busca do absoluto” (ROUDINESCO, 1994), o que a credenciaria como um indício
subjetivo estilizado em público. O objeto “a” não é um “absoluto” e qualquer associação nesse
sentido ignora o conteúdo coletivo dessa típica herdeira do estruturalismo, uma conduta intelectual
que buscava, após adesão completa à linguagem, um novo transcendental. Em diversos momentos
de sua teoria, Lacan havia situado o objeto “a” na órbita dessa transcendência. Antes de fazê-lo em
relação à fantasia, foi por meio do lugar que ocupou na temática da angústia que o objeto “a”
ganhou existência, embora, importante lembrar, ele tenha sido largamente trabalhado, sem esse
nome, no seminário sobre a “ética da psicanálise”. Ratificado conceitualmente em 1964, no
seminário sobre os “quatro conceitos fundamentais”, o objeto “a” desenha o horizonte da teoria
lacaniana desde então. Ainda que sob o novo primado do objeto, Lacan reforçou seu propósito de
118
formalizar a psicanálise. O recurso à linguagem não foi, certamente, descartado por inteiro, mas sua
antiga centralidade cedeu espaço para uma perspectiva focada na heterogeneidade das formas de
operatividade da subjetividade. Conceitos anteriores passaram a ser recontextualizados nessa
perspectiva.
O estilo de Lacan não denuncia, necessariamente, uma vontade de poder; ele é peça ativa de
um mosaico em que as diferenças conceituais são planificadas, como em uma composição cubista,
e não ao modo de sedimentações e linearidades ou módulos epistemologicamente distintos. Os
conceitos são dispostos em um mesmo plano, cuja recomposição depende exclusivamente da
interpretação do texto, concepção esta muito distante daqueles que defendem o “ensino de Lacan”.
Não parece, no entanto, inadvertida nem leviana a idéia de que, em grande medida, o estilo de
Lacan seja responsável pelos efeitos de dogma entre seus discípulos. O lacanismo milleriano é
prova disso. Sua leitura da fantasia é defendida como uma instrução para uma clínica modelada
pelo objeto “a”, orientação por meio da qual as esferas da teoria e da clínica são sobrepostas. O
processo que fundamenta essa sobreposição não é de fácil percepção. E nisso o estilo e, sobretudo,
as estratégias nele carreadas influenciam a ocultação da unidade que ganha força pelas teses da
“clínica do real”. Constituem a temporalidade da enunciação teórica de Lacan o momento da
extração do conceito de seu contexto de origem e sua respectiva torção pela aplicação no campo da
psicanálise, mas sem a identificação clara de suas variações ou rupturas em comparação ao
significado original. A “mais valia” marxiana transforma-se, desse modo, em antecipação do objeto
“a” em sua função de aparato de gozo; a lógica modal serve como codificação da lógica da
sexuação; os paradoxos de auto-referência de Russell, entre tantas aplicações, em formalização da
fantasia e do Nome do Pai. Os exemplos são inúmeros. Os riscos a que se expôs Lacan ao adotar
essa estratégia não foram poucos e, de certa maneira, encontraram acolhida entre seus
contemporâneos de estruturalismo. Sua intenção de mimetizar as formações do inconsciente, em
particular o chiste, é reveladora. Segundo Lacan, único caso bem sucedido de significação plena, o
chiste consiste na expressão, para dizer com Lévi-Strauss, do “pensamento objetivado”. Não seria
apenas esta a formação do inconsciente que, como o mito e a música lévi-straussianas, teria como
singularidade representar a própria ordem da representação? Daí por que o chiste faça signo com a
verdade lacaniana: pura representação sem referente que não o simbólico, marca do real. “Não-
toda”, a verdade seria inapreensível pelo discurso, negatividade absoluta da linguagem. Na
metapsicologia, o chiste incidiria sobre o lugar do objeto “a”, podendo exercer a função de nó dos
três registros45.
Claramente, não é pela vertente do chiste que o lacanismo milleriano estabelece seu discurso.
Embora tenha respondido, pela retórica que se auto-intitula irônica46, à polêmica com Daniel
45
Para uma primorosa abordagem do chiste como nó metapsicológico, ver Didier-Weill (1997).
46
Ver Miller (2002; 2005).
119
Lindenberg, que o havia classificado como representante da nova direita francesa em artigo
publicado pelo Le Monde47, Miller filia-se, antes, à presunção típica do positivismo, com o
agravante de que a experiência clínica, aqui, não procura validar a teoria, no máximo a ilustra.
Vinhetas clínicas respaldam, quase como pretextos, a proposição de novas categorias e conceitos.
Comumente, é sob a forma das “conversações” que a produção milleriana é divulgada e legitimada,
o que explica a importância dos eventos na AMP. Essa modalidade de produção do discurso será
investigada mais adiante. Por ora, importa sublinhar a presunção positivista do lacanismo
milleriano presente na interpretação dada à fantasia e na condução de uma nova clínica, ambas
pautadas pelo objeto “a”. A empiria é substituída por uma espécie de concreação fantasmática, um
formalismo com reivindicações materialistas. Muitos anos antes, Lévi-Strauss havia realizado a
junção entre categorias empíricas e abstratas na descoberta de uma “lógica das qualidades
sensíveis”, o “pensamento objetivado”. No entanto, em nenhum momento propôs algo na linha do
que Miller defende. O formalismo lévi-straussiano procede a uma redução da temporalidade para
que a “arquitetura lógica” dos “desenvolvimentos históricos” e o seu “inventário de possibilidades
inconscientes” possam ser apreendidos teoricamente (LÉVI-STRAUSS, 1975: 39). O objeto a ser
compreendido pela análise estrutural é formal em um duplo sentido: na definição de seu estatuto e
na construção metodológica do seu modo de expressão. Os dois sentidos não se excluem e
necessitam um do outro para que os conceitos tenham conteúdo explicativo. Miller, por seu turno,
projeta seu formalismo sobre uma teoria preexistente, a psicanálise lacaniana, incitando uma
sedimentação de discursos, em relação ao qual a atribuição de autoria aos extratos de texto torna-se
extremamente arbitrária. Um sujeito-signo ganha proeminência e autonomia, movendo-se pela
constante produção de mais sedimentos. Nessa movimentação, nenhuma “pluralidade de eus” vem
acompanhar os efeitos do autor enquanto função histórico-semântica. A “discursividade”
foucaultiana não pode explicar o constante reposicionamento da totalidade da linguagem em cada
prática do regime de verdade milleriano. O sujeito em questão é signo porque emerge dos
sedimentos que ele mesmo dispersa e recompõe. Mas não como um operador do sentido. Nesse
lacanismo, o sujeito sinaliza a totalidade da linguagem figurada em seu momento mítico, do mesmo
modo como o tempo da passagem da natureza para a cultura, apreensível, segundo Lévi-Strauss,
apenas pela construção lógica que, regressivamente, se impõe no lugar de pressuposto do
pensamento. Nesse traço essencial do lacanismo milleriano, a linguagem é totalidade e, na forma
de signo, sujeito, premissas que subvertem por completo a teoria criada por Freud.
Pouco mais de uma década depois da conferência sobre as “duas dimensões da clínica”,
Miller praticará um jogo de lances conciliatórios no interior da “clínica do real”. Se nessa
conferência tratava-se de organizar a clínica e sua variedade fenomênica por meio da fantasia e do
sintoma, a orientação milleriana, nos meados dos 90, passa adotar uma nova movimentação em
47
Em 21 de novembro de 2002.
120
direção ao social e, consequentemente, à defesa da aplicação da psicanálise em contextos não-
tradicionais. A estratégia para tanto manteve o enfoque no objeto. O “real” da fantasia permanece
sendo o seu ponto euclidiano, mas sob uma outra perspectiva. A fixação pulsional produzida pela
fantasia ganha rebatimento no sintoma. Na conferência sobre as “duas dimensões da clínica”, o
sintoma estava associado ao sentido e, portanto, à interpretação. O analista encontraria no
simbólico o fundamento de sua eficácia. A despeito da mera dissolução do sintoma não ser
entendida, por Miller, como finalidade de um tratamento psicanalítico, a intervenção do analista
estaria garantida pelo próprio estatuto do sintoma. A leitura milleriana, nesse aspecto, é
estritamente freudiana. A perlaboração de que fala Freud poderia explicar essa dissolução de uma
formação do inconsciente pelo simbólico da interpretação e do consentimento do paciente,
sustentados pela transferência. Em comparação à fantasia, o sintoma tem a particularidade de
possuir um conteúdo latente que, durante o tratamento, seria transformado em processo de
significação. É essa passagem do sintoma em “sintoma analítico” que qualifica o estabelecimento
da transferência ou, nas palavras de Freud, da “neurose de transferência”. Miller reconhece esses
postulados freudianos sobre os limites da prática analítica. Todavia, ao contrário da direção
imprimida nos 80, procura diferenciar dimensões internas ao sintoma, a partir da metapsicologia
lacaniana. Haveria no sintoma um “real” em relação ao qual a interpretação não produziria nenhum
efeito, um “fora do sentido” que modularia a repetição inconsciente. Desse modo, Miller recorta e
exclui dos processos de significação do trabalho transferencial parte do sintoma, sua dimensão
“real”. Submetidas a uma “intenção de significação” (MILLER, 2006: 221), todas as outras
formações do inconsciente não teriam essa prerrogativa. Não é sem motivo, portanto, que a
exigência freudiana de uma “neurose de transferência” torna-se, na tradução milleriana, um
recurso formal. Teria Freud assinalado que “o sintoma se formaliza na análise, donde adquire sua
envoltura formal e pode admitir ao Outro, isto é, constituir-se como mensagem e ser objeto da
pergunta pelo que quer dizer.” (Idem: 221). Contudo, justamente em função da inércia do “real” do
sintoma, não haveria “evidência interna desse querer dizer”, o que explicaria a iniciativa freudiana
de atribuir-lhe um significado a ser decifrado.Desse modo, o sentido do sintoma não teria
fundamento a não ser o instituído e mantido pela transferência, fenômeno clínico, segundo Miller,
que fez com que Lacan o aproximasse da crença. O sintoma seria “o que se crê nele”, mas de
maneira repetitiva, pois “quando as formações do inconsciente se repetem elas se sintomatizam”
(Ibidem: 222). Agora, também o sintoma estaria sob a égide do “real”:
121
Incluir o sintoma sob transferência (“sintoma analítico”) na “classe do que não cessa de
escrever-se” implicaria, se tomarmos a linha de condução milleriana, atualizar a aporia freudiana
do final de análise, mas pela via da profusão semântica, traço constitutivo do simbólico. Nesses
termos, mesmo a concepção lacaniana da transferência como suposição de saber estaria
comprometida com a sobredeterminação dos significados em constante processo de deslocamento e
condensação. A aporia freudiana não seria mais explicada pelo “rochedo da castração”. Se, como
defende Miller, o próprio Freud havia, em “Inibição, sintoma e angústia”, vinculado ao sintoma a
compulsão à repetição, então, existiria algo como um “saber no real” (Ibidem: 223), razão para o
impasse freudiano do final de análise. O aparato conceitual retirado do simbólico não seria capaz
de manejar a dimensão “real” do sintoma. E se o “saber no real” pressupõe a expulsão de todo
sentido, como a psicanálise seria possível? É esse o impasse freudiano traduzido lacanianamente
por Miller. Não haveria como comprovar a existência de um “saber no real”. Sempre suposto, esse
saber necessitaria de uma garantia transcendental, donde seu estatuto simbólico. Todavia, na
ausência do Outro, pressuposto lacaniano do fim do tratamento (ao menos para a clínica com os
neuróticos), a premissa de uma saber no real seria inadequada. Haveria que se supor o sentido no
real, não o saber. O “último ensino” teria se dedicado ao problema da relação entre o “real” e o
sentido, conjugando-os pela idéia do sintoma como uma “verdade variável” (Ibidem: 224).
Diferentemente da ciência, a psicanálise não projetaria seu saber no real, visto ser ele sempre uma
suposição. No real, identificaria apenas a “fixação de gozo”, a “letra” (Ibidem: 225), única
modalidade de significante que faria signo com a pulsão, possuindo, portanto, um valor inercial
permanente e irredutível simbolicamente. A repetição inscrita no sintoma adviria da “letra”, da
junção entre o sentido e o real, sendo esta o fato do inconsciente a fundamentar a possibilidade da
psicanálise, muito além da comprovação de seus benefícios imediatos e meramente terapêuticos.
Na condição de pressuposto da psicanálise, a existência de um sentido no real do
inconsciente diferenciaria, de acordo com Miller, a prática clínica do lacanismo do discurso da
ciência contemporânea. Centrado na linguagem enquanto efeito da indeterminação social do real,
esse discurso teria procurado fundamentar uma retórica, uma “arte de semblantes” (Ibidem: 252).
A linguagem revertida em retórica teria como objetivo “eliminar o real” (Ibidem: 252), donde seu
lugar antípoda em relação à psicanálise do “último ensino” que, ao integrar verdade, linguagem e
pulsão, apresentaria a dimensão da ética como aquela que enfrentaria os impasses freudianos sobre
o final da análise. A psicanálise como ética implicaria também uma ponderação ao projeto
lacaniano de “retorno a Freud”. Em sua tentativa de objetivar cientificamente a psicanálise, o
“retorno” teria na interpretação clínica um ponto de sustentação importante. O “real” seria, no
primeiro momento do “ensino”, algo a ser anulado durante a análise, tendo a interpretação uma
função central nessa finalidade. Semelhante a uma “operação retórica”, a interpretação do analista
122
reduziria o real ao verdadeiro, persuadindo o paciente a “renunciar ao sintoma” (Ibidem: 254-255).
O “último ensino”, por sua vez, teria deslocado o próprio estatuto do Nome do Pai. Reduzido a uma
função de nominação, o Nome do pai seria mais um entre os inúmeros operadores da passagem do
simbólico ao real. Daí a formulação final de Lacan, que o igualou ao sintoma, instância
contingencial no “primeiro ensino”, mas que cada vez mais teria encontrado amarração em uma
estabilidade borromeana. No Lacan tardio, o sintoma exigiria, portanto, uma nova concepção sobre
o saber no real, contudo necessariamente diverso do apregoado pelo discurso da ciência. A
contrapartida da instância contingencial do sintoma seria justamente a impossibilidade de um saber
sobre a sexualidade do ser falante no real. A linguagem seria responsável por essa impossibilidade.
A suposição desse saber, articulada pelo significante, envolveria sempre e ao mesmo tempo um
questionamento demandante e um sintoma. Mas, dirá Miller em mais uma estratégia textual cujo
brilho não pode ser negado, se existe sintoma deve existir também “um saber que não cesse de não
se escrever” (Ibidem: 257). Ou seja, uma instância constante no psiquismo, ao lado da contingência
do sintoma. Para solucionar esse hiato sem lançar mão da noção de uma significação fálica,
operador teórico modelar no estruturalismo (DELEUZE, 2006), Miller acentua a contingência, que
não mais se restringe ao sintoma, elevada que está à característica imanente do saber no
inconsciente:
Certamente, a tese sobre a contingência radical tem como função indicar uma ausência de
saber. Mas como seria possível demonstrá-la? Pergunta realizada primeiramente por Lacan e
retomada, com significados e finalidades variadas, pelos seus discípulos. Da parte de Miller, a
solução investe sobre a prática clínica, a insondável privacidade do encontro do analista com seu
paciente. A contingência seria atualizada a cada momento da prática, o que testemunharia, pela
comprovação empírica, a lógica “real” do impossível. A despeito das inegáveis fragilidades
epistemológicas constatáveis nesse argumento, ele é revelador dos problemas experimentados pelo
lacanismo hegemônico ao tentar consolidar uma dimensão “real” junto ao sintoma, ao que era até
então, a exemplo do que proposto na conferência sobre as “duas dimensões”, visto como superfície
móvel, fenomênica, de um texto palimpsesto, esse sim merecedor de atenção teórica e clínica. Ao
contrário da tão defendida transmissão da psicanálise pelo “matema”, a analogia, quando não a
pura fraseologia, regressa com ares de conhecimento formalizado. A redundância empírica pode,
123
em Miller, se transformar em um tipo singular de lógica, como se ela fosse capaz de ser, “de
alguma maneira”, “uma demonstração do impossível pela contingência.”48 (Idem: 258).
A importância de se “demonstrar” o “impossível pela contingência” encontra explicação no
momento em que o estatuto do sintoma é redefinido. Se nas “duas dimensões” o intuito era de
decompor a clínica, agora, trata-se de organizar o sintoma em duas vertentes, localizando-o entre o
“real” e o sentido. Diante da impossibilidade de um saber sobre a sexualidade inscrito no real, o
sintoma torna-se, na interpretação milleriana, um elemento inescapável da civilização, uma solução
de compromisso com efeitos socialmente vinculantes. Toda relação social seria uma formação
sintomática, sendo esta muito mais uma “mediação” do que um “obstáculo” (Ibidem: 326-327).
Para Miller, Lacan teria identificado o sintoma ao parceiro sexual. Essa inversão do sinal do
sintoma (lembremos que Lacan o havia definido como “o que atrapalha” o sujeito) indicaria uma
nova abordagem clínica, implicando, portanto, uma outra direção do tratamento. O “parceiro
sintomatizado” seria o indivíduo com quem uma pessoa estaria mais próxima do saber impossível
sobre a sexualidade. Na sua dupla vertente, o sintoma carregaria tanto a repetição quanto a
significação, tanto o real quanto o simbólico. No “último ensino”, Lacan teria dado a explicação
para o fracasso civilizatório da repressão social da fala, entendida como veículo de expressão e
incitação do desejo. Se a contemporaneidade é marcada pelo imperativo de gozo, logo, toda a
repressão ao estilo dos tempos freudianos mostra-se inútil, pois “a vontade de gozo passa cada vez
mais pela permissão – e quase pela exigência – social do falar” (Ibidem: 341). Corresponderia ao
imperativo de gozo um “direito a dizer tudo”, “democracia de dizer do gozo” (Ibidem: 342-343).
Injunção ao falar, todavia desprovido de qualquer referência ao universal da lei simbólica. Na
época do “Outro que não existe”, o sujeito suposto saber teria se generalizado, mas sem nenhum
vínculo com qualquer presunção de verdade. “O Outro somos nós mesmos em nossa patética
ignorância sobre o que há que se fazer, é o reino do debate.” (Ibidem: 342). Daí a
proporcionalidade direta estabelecida diversas vezes por Miller entre a disseminação social dos
semblantes e o real: quanto mais se tenta escapar do objeto pela intensificação da representação,
mais a vertente do real ganharia manifestação no sintoma. Na medida em que o laço social deslizou
em direção ao objeto, a “democracia de dizer do gozo” incorreria em novos sintomas clínicos. A
plenitude pulsional do gozo veio substituir todos os outros ideais anteriormente calcados nas
noções de falta e infração. É nesse diagnóstico que o argumento de Miller firma base. Efeitos do
impulso cultural à satisfação pulsional e da destituição da função simbólica no controle da
subjetividade, vemos a perversão ser alçada à condição de “norma social” e a depressão, ao “mal
48
É sintomático que Miller esquematize uma representação rudimentar da tese que acabara de defender. Um
triângulo invertido distribui, nos seus vértices, os saberes no real (o que não cessa de escrever-se e o que não
cessão de não se escrever) ao lado das modalidades lógicas (impossível, contingente e necessário). Essa
representação gráfica é didática, mas está longe de significar qualquer formalização no sentido que a lógica e
a matemática costumam trabalhar.
124
paradigmático da civilização” (Ibidem: 343). Um substantivo campo de possibilidades
interpretativas e de proposições práticas pode, no esteio desse diagnóstico, ganhar abertura. Não foi
sem propósito, portanto, que a Escola da Causa tenha investido seus capitais, principalmente a
partir dos meados de 90, na temática da psicanálise aplicada. Mas antes de reforçar esse
investimento, era fundamental consolidar a integração teórica entre pulsão e linguagem no contexto
dos fenômenos que modulam a demanda por análise. A redefinição do sintoma por meio da
qualificação de duas vertentes cumpre essa função tática. Miller aproxima, em uma relação de
equivalência formal, a fantasia e o sintoma para qualificá-los como “aparelho de mais gozar”
(Ibidem 383), inserindo, assim, o social na problematização sobre o objeto “a”:
“(...) a <objeto “a”> é essa parte de gozo, esse mais de gozo apreendido pelos
artifícios sociais – entre eles a língua -, que às vezes são muito resistentes ou
também podem desgastar-se. Quando o semblante social não alcança, quando os
sintomas como modos de gozar que lhes oferece a cultura não bastam, nos
interstícios há lugar para os sintomas individuais, que, no entanto, são da
mesma essência que os sociais. Se trata em todos os casos de aparatos para
rodear e situar o mais de gozar. Considero desse modo o sintoma como uma
prótese, um aparato do mais de gozar.” (Ibidem: 383).
Pouco mais de uma década após a conferência sobre as “duas dimensões”, o sintoma deixa
seu posto de contraponto da fantasia e passa a dividir com ela a atenção do lacanismo milleriano.
Tornara-se fundamental incluí-la no centro da atualidade da psicanálise para que uma “clínica do
real” pudesse ser formulada. Na junção do “Outro que não existe” com o “real”, foi possível
articular, a um só lance, linguagem, pulsão e sociedade, proeza insinuada por Lacan, sem dúvida,
mas realizada de fato por Miller. Nesse dispositivo da corrente dominate do lacanismo, a clínica
deve adequar-se à duplicidade do sintoma, isto é, ser permeável às mudanças sociais e orientada
pela constância inercial da fantasia. Nenhum “Outro” social pode satisfazer a pulsão, mas o
simbólico e o real devem ser articulados. Para tanto, a pulsão, enquadrada em um trajeto circular,
que parte da atividade (e não do binário freudiano atividade-passividade), alcança o “Outro” na
busca do objeto que lhe foi negado, retornando ao início em um movimento trilhado pelas bordas
de um vazio constitutivo, donde seu caráter paradoxal de “circuito auto-erótico que somente se
realiza por meio do objeto e do Outro. Em um sentido, é um autoerotismo e no outro, um
heterotismo.” (Ibidem: 385). Da falta instaurada pelo “objeto perdido”, noção freudiana, até o
“objeto mais de gozar”, invenção lacaniana, Miller soube como ninguém tomar posse do conteúdo
subjacente ao desenvolvimento teórico da psicanálise sob a diligência francesa da “virada
lingüística”, servir-se do formalismo lacaniano para retirar a referência discursiva de um modelo de
identificação entre sujeito e objeto. “Quando falamos do prazer ou da pulsão, os articulamos ao
objeto perdido. Não é possível utilizar esses conceitos sem deslizar de uma maneira ou outra ao
objeto perdido que há que ir buscar no Outro. Esta é a dupla cara do objeto “a”, seu caráter
jânico: é a uma só vez o que falta à pulsão auto-erótica e o que deve buscar-se no Outro.” (Ibidem:
125
382). Esse modelo, pelo qual se realiza a conciliação entre a estrutura e o objeto, será largamente
utilizado pelo lacanismo hegemônico. Trata-se, nesse mesmo processo de reforma, de fundamentar
a expansão do seu campo, constituindo novos nichos de atuação e influência.
O “neodesencadeamento”
Em resposta à convocação da AMP para uma revisão teórica da psicanálise no contexto das
supostas modificações das demandas por tratamento, para a seção de Aix-Marseille, trabalho de
abertura da publicação, tratava-se de uma “atualização” da obra de Lacan, no sentido da superação
do rígido critério fundado no Nome-do-Pai para o diagnóstico diferencial das estruturas clínicas. A
“Convenção” teria essa finalidade ao apostar no desenvolvimento do conceito de “psicose
ordinária”. O “neodesencadeamento” constituiu uma das estratégias para que se transcorresse essa
“atualização”. A noção de “desencadeamento”, criada por Lacan em “De uma questão preliminar”
49
“À noite me perguntava como se chamará o livro que resulte dessa jornada. Não poderemos
neodesencademanto, neoconversão, neotransferência. Poderemos chamar de As neopsicoses? Teremos
realmente ganhos de unir nossa elaboração com a neopsicose? Não me agrada em absoluto a neopsicose. E
me disse: finalmente, falamos da psicose ordinária.” (MILLER et ali, 2006a: 201)
126
para identificar estruturalmente os “fenômenos elementares” da psicose, designava a articulação
entre os efeitos desagregadores no psiquismo do paciente e o encontro com a figura do “Um-pai”.
Comentário da análise freudiana da autobiografia de Daniel Schreber, “De uma questão preliminar”
localiza na nomeação do autor a um elevado cargo na magistratura o episódio que teria precipitado
sua produção delirante. Diante das exigências e da importância do cargo, acontecimento que o teria
conduzido ao encontro com o “Um-pai”, Schreber nada pôde fazer a não ser delirar. Por isso a idéia
de que a ausência do Nome-do-Pai colocaria o sujeito psicótico frente a uma exposição direta com
o Outro, sem mediação simbólica, de forma a sobrepor o registro do imaginário à realidade. O
“Um-pai” não seria o pai do sujeito, mas a figura “real” de uma pura presença, ao contrário da
ausência presentificada, atributo por excelência do simbólico. No lugar da significação, o psicótico
colocaria um “furo”, “carência do efeito metafórico”50 (LACAN, 1998b: 564).
A “atualização” defendida pelo grupo responsável pela primeira seção clínica da
“Convenção” procurou reformar o conceito de “desencadeamento”, retirando-lhe, no entanto, seu
elemento mais importante. A “foraclusão” deixava de ser o único critério diagnóstico da psicose.
Existiriam outras “formas clínicas” de fenômenos psicóticos, muito diferentes da exacerbação
schrebereana, típicos de uma “psicose extraordinária”. Mais amenos e, portanto, imperceptíveis ao
método clássico, esses fenômenos deveriam ser analisados segundo uma concepção pragmática,
focada no processo clínico, que levaria em consideração a temporalidade e a estrutura, a
“diacronia” e a “sincronia” do caso. Justamente por não apresentarem um momento de eclosão
pelo encontro com o “Um-pai”, as outras manifestações psicóticas não-desencadeadas, as “psicoses
ordinárias”, imporiam essa transformação dos parâmetros diagnósticos. Dentro dessa nova
categoria classificatória no interior da psicose estariam alguns fenômenos velados pela
toxicomania. A suspensão do consumo manifestaria, em alguns pacientes, a função de suplência
das substâncias toxicológicas, um “tampão” da divisão subjetiva e uma identificação social como
“toxicômano”, o que evitaria a assunção dos “fenômenos elementares”. A prática toxicomaníaca
poderia revelar, desse modo, uma “psicose ordinária”. A perspectiva estrutural não poderia mais
ser assumida como a única disponível para os psicanalistas. Conseqüentemente, o arcabouço
teórico da “clínica do simbólico” sofreria a moção constante de um movimento de ressignificação
de grande parte dos conceitos desenvolvidos por Lacan. Uma “psicose ordinária” poderia ser
definida após a compreensão do histórico de “desenganche do Outro”, processo pelo qual se
conclui quais os fenômenos não desencadeados configuram a psicose em questão. A diacrônica da
nova clínica incorpora aspectos que a clínica estrutural não seria capaz de apreender.
50
“A verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de
que maneira, é chamado Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela
carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica.” (LACAN,
1998b: 564)
127
Da perspectiva sincrônica, o grupo de Aix-Marseille retoma as “formas clínicas” trabalhadas
em “De uma questão preliminar”, mas para restringi-las à condição de hipótese. A concepção
lacaniana de que haveria uma correspondência entre a foraclusão do Nome-do-Pai e a abolição da
significação fálica é circunscrita a casos específicos. Os delírios de Schreber não são mais
reveladores da psicose em geral; transformam-se em manifestações de um tipo apenas, as chamadas
“psicoses extraordiárias”. Daí o cuidado em falar em “desencadeamentos”, eles próprios
compreendidos, a partir de agora, segundo a hipótese de que seriam derivados da “desnodulação da
estrutura ocasionada pela insuficiência da relação imaginária com o corpo” (MILLER et ali,
2006a: 22). A função de suplência exercida pelo quarto nó declina (sinthome), expondo o sujeito à
invasão sem controle do gozo. Note-se, aqui, que o conceito de “foraclusão” é substituído em favor
da idéia de suplência propiciada por uma articulação contingente (quarto nó), valorizando, assim, a
positividade da resposta psicótica, em contrapartida ao que seria uma estática do Nome-do-Pai.
Nesse esforço de reforma e, de acordo com seus proponentes, respeitando os princípios da “clínica
borromeana”, a ênfase desloca-se para as “psicoses ordinárias” e incide sobre os “transtornos da
relação com o simbólico”, ainda que a filiação teórica com o caso Schreber seja reconhecida pelo
grupo.
128
hesitação teórica é subsumida, em um segundo momento, pelo consenso nominalista, facilmente
detectável na produção das escolas associadas e, em menor grau, nas universidades onde os
millerianos possuem assento como docentes ou pesquisadores. Em relação ao grupo de Aix-
Marseille, os casos clínicos foram organizados segundo a classificação dos fenômenos apontados
no início da exposição como reveladores das “psicoses ordinárias”. Assim, ao invés dos
“desencadeamentos” clássicos, os “desenganches sucessivos” com o Outro. As primeiras “vinhetas
clínicas” descrevem essa substituição, doravante qualificada sob o nome em vias de consenso e, na
linha das pretensões do evento, como parte de uma “convenção”:
129
identificação dos “desenganches sucessivos” como modalidade fenomênica da “psicose ordinária”.
Todavia, o fazem de modo vacilante e alusivo, estilo que atravessará toda a “Convenção”. Ainda
que a tese da inaplicabilidade do conceito de foraclusão sustente a leitura proposta, um critério
subjacente sugere uma direção unificadora. Mas não no sentido de uma unidade diagnóstica. A
plena aderência ao que seria o “segundo ensino” implica uma priorização da positividade psicótica,
da função de suplência paterna exercida pelo quarto nó, solução contingente instituída pelo sujeito,
donde o binário enganche-desenganche servir como eixo para descrição dos fenômenos clínicos.
Com efeito, a ênfase lacaniana na invenção psicótica enquanto “defesa contra o ‘real’” dispersa a
apreensão desses fenômenos no momento da aplicação de uma formulação mais pragmática. O que
o grupo de Aix-Marseille poderia concluir do caso senão que “a intenção” do paciente de “resistir à
captação do olhar materno cedeu posteriormente ante o desmoronamento da chamada ao pai”?
(Ibidem: 23). Sobre qual base se edifica o diagnóstico face à eventualidade heterogênea e
“ordinária” da psicose? Pela “Convenção”, o campo de investigação teórica se abre generosamente
para a propositura de inúmeros nichos de intervenção institucional, ao passo que a clínica parece
regredir às incertezas de um conhecimento em constante convite à fundamentação quase intuitiva
de sua prática. A indeterminação clínica é ainda mais evidente pela exposição do segundo caso
atendido pelo grupo de Aix-Marseille, que relata o deslizamento do sintoma em uma anoréxica.
Nessa paciente, a prática cleptomaníaca veio ocupar o lugar da falta de vontade para comer, o
“comer nada” pelo “roubar substitutos de comida” (Ibidem: 24). Tanto no sintoma antigo como no
atual, trata-se da “falta de simbolização” na demanda ao Outro, de que algo “se desenganchou”
(Ibidem: 24). A paciente recorda situações de “provocação”, de afronta à lei e, conseqüentemente,
aos seus riscos:
De acordo com o grupo, essa subtração da lei (“desenganche do laço social”) se relaciona a
um modo de “enganche com a pulsão”. O fascínio que a imagem da violência sobre inocentes
exercia sobre a paciente constataria essa relação. No seu ato cleptomaníaco, uma identificação com
esses inocentes se estabelecia. Olhar as cenas de violência servia para, nas palavras da paciente,
“exorcizar a <sua> própria violência” (Ibidem: 25). Na interpretação do grupo, a repetição
anoréxica de “comer nada” deslocou-se para a compulsão cleptomaníaca. O “enganche com a
pulsão” permitiu, assim, uma “relação entre sintoma e delírio” (e não, como na neurose, entre
sintoma e fantasia), prerrogativa da psicose. (Ibidem: 26). Pelo fascínio da violência e pela
identificação com as vítimas, um “delírio” não desencadeado teria estabilizado a psicose dessa
paciente. A função de suplência paterna poderia, portanto, ser exercida inclusive por uma
130
aproximação com a pulsão, um “enganche” com o gozo após um “desenganche” do laço social. A
noção de que existem benefícios auferidos pelo deslizamento do sintoma não traz novidade alguma,
observável em inúmeras passagens dos textos de Freud. A abordagem que configura algo realmente
diferente reside na fundamentação de uma clínica pragmática que se apóia no deslizamento do
sintoma como recurso de tratamento e de teorização. O que desde Freud constituía uma das classes
fenomênicas do próprio processo de análise, muitas vezes tomadas como ponto de resistência ao
tratamento, no lacanismo milleriano ganha uma significação verdadeiramente subversiva. O
sintoma passa a ser, como demonstra o grupo de Aix-Marseille, uma função normativa de
adequação à realidade social. Que Lacan tenha proposto no momento final de sua obra o quarto nó,
pluralizando, assim, a função paterna, isso não oferece garantia alguma de que o sinthome não seja
incorporado, sob a densidade vocabular da teoria, tão-somente como um sintoma. As indefinições
não são poucas, mas também não impedem o anúncio de hipóteses clínicas por meio das
“vinhetas”. O grupo se serve de indicações clínicas sumárias para respaldar hipóteses dirigidas a
uma relativização da noção clássica de “desencadeamento”. Ao invés do encontro com o “Um-pai”
como evento explicativo para a assunção dos fenômenos psicóticos elementares, propõe o encontro
com o “gozo enigmático”, que seria capaz de engendrar, idéia presente em “De uma questão
preliminar”, o efeito da foraclusão do Nome-do-Pai (Π0), ou seja, a falta de significação fálica ( ).
Seria essa falta que produziria no sujeito as “formas atípicas” de desencadeamento. Como os
próprios integrantes do grupo afirmam, essa hipótese não introduz nada de novo em relação ao
desencadeamento do delírio (lembram que a psiquiatria já havia tomado ciência disso), contudo ela
tem a vantagem de colocar no centro da problematização clínica da psicanálise o “modo
generalizado do tratamento do gozo pelo ‘falasser’.” (Ibidem: 31). Em outras palavras, todo
sujeito, independente de sua estrutura, manteria uma forma de “defesa contra o real”, sendo a
existência dessa resposta o atributo geral do psiquismo e não a posse ou a destituição do
significante do Nome-do-Pai. Daí a idéia de que um “prejuízo no imaginário” pode ser o fator
desencadeante de uma psicose, afetando o simbólico e incidindo sobre o real. (Ibidem: 42). Torna-
se permitido, portanto, que o analista invista na reconstituição de soluções imaginárias, algo
tradicionalmente condenável, em “identificações de objeto”51 que amenizem a injunção pulsional
do encontro com o gozo. A clínica que asseguraria a validade do conceito de
“neodesencadeamento” corresponderia termo a termo ao “último ensino”, convidaria os analistas
“a estudar sem hierarquização a função de cada um dos três registros (R,S e I <real, simbólico e
imaginário>) para o sujeito e a parte que corresponde a cada um no enodamento sintomático.”
(Ibidem: 43)
51
São identificações com traços sociais e não uma “identificação simbólica que implica um valor diferencial
do significante.” (Ibidem: 42)
131
A importância que a topologia dos nós teve na “Convenção” foi evidente. Todos os grupos
de trabalho a incluíram em suas apresentações, sempre em oposição ao que seria o primado do
simbólico conferido pelo Lacan dos anos 50. A “seção clínica de Clermont-Ferrand” seguiu a
orientação já exposta pelo grupo de Aix-Marseille. Primeiramente, localizou a filiação freudiana de
Lacan em “De uma questão preliminar”. Teria esse texto adotado a constelação em torno do mito
do Édipo, ainda que de modo formalizado, mediante a aplicação dos recursos desenvolvidos pelo
movimento estruturalista em Lingüística e sua expansão nas ciências humanas. O Nome-do-Pai
conflagrava a função simbólica a assumir a garantia da lei no Outro, permitindo que categorias a
princípio antagônicas (como a de sujeito e de estrutura) fossem articuladas em um mesmo
arcabouço conceitual. O enunciado lacaniano o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”
constituiria um “ponto de Arquimedes” do “primeiro ensino”, uma verdadeira “volta ao Édipo
freudiano, um ordenamento da distinção neurose-psicose em relação à norma edípica.” (Ibidem:
45). Todavia - indica o grupo de Clermont-Ferrand, sendo esse o mote do argumento que merece
ser retido -, o “primeiro ensino” teria excluído a “causalidade sexual”, ou seja, “a eleição do modo
de gozo” em favor de um modelo da normalidade e da patologia construído a partir do Nome-do-
Pai52. O Lacan estruturalista teria elevado a paranóia a paradigma, nos moldes da interpretação
freudiana que a tomava como uma psicose de defesa. A metáfora delirante do sujeito paranóico
configuraria uma tentativa de reconstrução simbólica diante da ausência do significante no Outro,
ou seja, da foraclusão do Nome-do-Pai. O delírio acentuaria a figura normativa do pai,
52
Há muito o que questionar nessa hipótese. Citemos apenas a idéia de que a questão edípica e os conceitos
forjados pela leitura estruturalista de Lacan, notadamente o Nome-do-Pai, não tenham nenhuma relação com
a “causalidade sexual”. Um Édipo sem “eleição do modo de gozo”? Ao que indicam a ênfase e a urgência em
afirmar contundentemente uma distinção entre os “ensinos”, os responsáveis pela apresentação desejam
ratificar a tese, corrente no interior da AMP, de que um deslocamento poderia ser observado no
desenvolvimento teórico de Lacan, da temática edípica para a logicização da sexuação. Ver MILLER et ali
(2005). Durante a “conversação”, o assunto retornou em forma de questionamento: “O único que não entendi
no informe de Clemont é por que nossos colegas consideraram que o Édipo não tratava a causa sexual. É o
primeiro parágrafo do informe. Uma oposição entre o primeiro e segundo Lacan atravessa todo o informe.
Se diz que a metáfora paterna retoma o Édipo freudiano, e, ao final, dizem que a “questão da causa sexual
não está incluída nesta lógica”, a lógica de “De uma questão preliminar”. Gostaria de perguntar se, ao seu
entender, o Édipo não era de todos os modos um tratamento da causa sexual.” (MILLER et ali, 2006a: 219).
A resposta, longa para um debate, foi dispersiva, embora seguisse uma mesma orientação, a saber, a oposição
entre os “ensinos” representada pela oposição entre a linguagem e a “letra”, a articulação simbólica e a
inscrição unária do “real”. Mas, importante lembrar novamente, essa contraposição conceitual está a serviço
de uma continuidade diagnóstica. Lacan, em “De uma questão preliminar”, teria pautado sua classificação
dos fenômenos psicóticos a partir do arcabouço da psiquiatria, tradicionalmente preocupada em definir os
limites que separam o normal do patológico. Seria nesse sentido que “De uma questão preliminar”
constituiria um retorno ao Édipo freudiano e seu eixo normativo. De acordo com os responsáveis pelo
informe de Clermont-Ferrand, haveria um ponto da “causalidade sexual” não abordado pelo Édipo
freudiano, que estaria relacionado com a configuração histórica atual, a “inexistência do Outro”. O equívoco
em excluir a “causalidade sexual” do Édipo parece ter sido influenciado pela preocupação em acentuar
demasiadamente os princípios da “segunda clínica”: “É mais fecundo tomar a questão a partir das teses que
as psicoses de hoje provam muito bem, que são psicoses onde a relação com o Outro não está constituída, ou
reconstituída, pelo delírio, mas que segue sendo problemática. Então, pode se mostrar que a partir de um
tratamento da língua como tal, do S1 da língua, algo do laço social pode reconstituir-se; e não o contrário.”
(Idem: 220)
132
radicalizando a consistência do Outro, o que implicaria privilegiar a “vertente real do pai antes que
sua dimensão de semblante e de uso.” (Ibidem: 46). Após esse mapeamento conceitual, os
expositores qualificam o aspecto supostamente inovador do conceito de “neodesencadeamento”. Se
o paranóico de fato pratica essa forma de acentuação do pai e do Outro, quais seriam as
conseqüências sobre a solução psicótica do “discurso dominante”, da “passagem do discurso do
mestre para o discurso da ciência”? (Ibidem: 46):
Pode dizer-se que o “neo” de que se trata concerne primeiro a nossa época ou a
uma simples mudança conceitual no ensino de Lacan? Sem dúvida as duas
coisas, porque nós pensamos que a última axiomática lacaniana – que se centra
na inexistência do Outro – permite justamente circunscrever com mais rigor os
fenômenos clínicos atuais e a expressão contemporânea do sintoma. Ao
discurso do mestre responde a prevalência de certa solução psicótica pela
metáfora e delírio; ao discurso da ciência, que divide as figuras do Outro em
uma multiplicidade de insígnias, corresponderia outro tratamento do gozo, mais
pela letra que pela significação. (Ibidem: 46-47)
Esse diagnóstico pretende circunscrever o espaço de uma clínica voltada para o tempo
presente, “mais pela letra que pela significação”, mais pelo real que pelo simbólico, hierarquização
teórica também defendida para a análise dos novos sintomas organizados pelo “discurso da
ciência”53. Daí as limitações da “teoria “clássica” do desencadeamento”. A “extrema variedade
dos fenômenos corporais ou imaginários” seria assolada pela lógica do Nome-do-Pai. A clínica do
simbólico estaria aprisionada aos resultados da “legalização” do gozo por meio da transmissão
geracional do pai, da possibilidade da significação via função fálica. O gozo não fálico não seria
apreendido por esse paradigma clínico. Na leitura do grupo de Clermont-Ferrand, isso explicaria as
limitações do conceito de desencadeamento e dos “fenômenos elementares” pensados como
substitutos da metáfora paterna. O psicótico como “aquele que rechaça trocar o gozo pela
significação” (Ibidem: 48) servir-se-ia de um “aparelhamento” singular, uma articulação entre real
e simbólico que prescindiria do Nome-do-Pai. Apesar de pertencer à “segunda clínica”, essa idéia
poderia ser vislumbrada já em “De uma questão preliminar”, em uma passagem na qual Lacan teria
reconhecido a existência de significantes isolados, não articulados54, abrindo caminho para a
posterior noção de “significante no real”, cerne da clínica borromeana. Seria essa a concepção que
autorizaria uma posição menos passiva do analista no tratamento dos sujeitos psicóticos. A antiga
precaução do analista de “fazer-se de morto” estaria fundada na compreensão de que a
transferência poderia estimular um desencadeamento. A esse risco se contrapunha uma intervenção
53
O “discurso da ciência” não consta como um dos quatro discursos elaborados por Lacan, no início dos 70,
apesar de sua considerável presença na produção recente da AMP. Alguns o aproximam do discurso
universitário, o que nos parece um equívoco.
54
“Esse exemplo é aqui destacado apenas para captar no ponto essencial que a função de irrealização não é
tudo no símbolo. Pois, para que sua irrupção no real seja indubitável, basta que ele se apresente, como é
comum, sob a forma da cadeia rompida.” (LACAN, 1998b: 542)
133
calcada no simbólico, um modo de domesticar a “efervescência imaginária do psicótico”. (Ibidem:
50). Entretanto, na “segunda clínica”, o diagnóstico, deixando de ser operacionalizado a partir do
Nome-do-Pai, passa a abarcar os novos fenômenos psicóticos, as “neopsicoses”. De agora em
diante, trata-se de priorizar a dimensão do gozo e as modalidades singulares de defesa inventadas
pelos pacientes. A valorização da produção psicótica se faz acompanhar pelo esvaziamento dos
critérios diagnósticos que podem proporcionar delimitações mais claras dos sintomas, associando-
os às estruturas clínicas. Com efeito, a dispersão dos parâmetros avaliativos pode conduzir, se o
programa milleriano de reforma de fato for realizado, a prática analítica para o terreno movediço da
eficácia mais imediata da intervenção terapêutica. Não à toa que o horizonte dessa clínica seja
imaginado como uma conciliação entre a vida e o mundo e que, em sua teorização, os casos sejam
acomodados descritivamente enquanto expressões da singularidade psicótica contra a padronização
do modelo do “desencadeamento”:
134
“neodesencadeamento”, um conjunto significativo de mudanças incide sobre a teoria lacaniana.
Nesse movimento, a posição do analista frente às “neopsicoses” tem se aproximado bastante da
praticada com os neuróticos. Não haveria entre elas uma ruptura epistemológica, mas uma
diferença de grau, donde a idéia de uma “clínica da continuidade”. Se “o psicótico tem, como o
neurótico, uma relação com o sintoma como modalidade de tratamento do real pelo simbólico”
(Ibidem: 62), então, a noção de “aparelhamento” do gozo pode objetivar uma posição do analista
na perspectiva do acolhimento da criatividade sintomática do sujeito, seja ele neurótico ou
psicótico:
55
O grupo não chama de caso clínico a breve descrição de um atendimento, postura que demonstra o caráter
mais cuidadoso e teoricamente mais preciso do trabalho apresentado.
135
a tese de que a estrutura psicótica possui como pressuposto a foraclusão do Nome-do-Pai. A
ponderação reside no modo de particularizar a seriação lacaniana da entrada, proposta em “De uma
questão preliminar”, destituindo-a de valor de modelo. A entrada na psicose pelo encontro com o
“Um-pai” teria caracterizado o primado do simbólico sobre o imaginário e o real estabelecido no
quadro da teoria lacaniana dos anos 50. As entradas definidas pela falta de significação fálica
indicariam outra forma de abordar a clínica das psicoses, principalmente por destacar a importância
da relação do gozo com o imaginário, possibilidade aberta pelo “último ensino”. A noção de
desencadeamento por perde a centralidade diagnóstica e vê ganhar importância a planificação dos
registros pela proposição do sinthome como função articuladora, antes exercida, soberanamente,
pelo Nome-do-Pai. Uma das conseqüências mais imediatas dessa reformulação teórica consiste no
deslizamento da idéia de “desencadeamento” (na leitura feita pelo grupo, ela seria uma prerrogativa
da interpretação lacaniana e não uma categoria psiquiátrica importada) para a de “desenganche”
como critério diagnóstico da crise psicótica.
Na “conversação” sobre o “neodesencadeamento”, ocorrida ao final da apresentação dos três
grupos, a indeterminação dos parâmetros do diagnóstico a partir das mudanças propostas saltou aos
olhos. A evidente dificuldade em definir a especificidade dos fenômenos clínicos é reveladora do
programa milleriano de expansão da psicanálise no sentido de uma aproximação com as temáticas
da atualidade cultural. De que maneira, por exemplo, a noção de “transtornos de linguagem”
serviria para o diagnóstico de uma psicose? Melhor ainda, como indagou Serge Cottet em relação
ao trabalho do grupo de Lille, o que definiria um “transtorno” dessa natureza?56 Ao franquear os
limites dos fenômenos psicóticos não desencadeados, as “seções” expuseram suas hipóteses a um
custo elevado, a clínica a todo instante evocada não raro como mero apoio para ilustração dos
novos conceitos. Daí a coerência das pontuações de Jacques-Alain Miller, a ousadia de seu lance de
desvio e conciliação:
56
“Não há motivos para oferecer hoje precisões sobre o que entendemos por transtornos de linguagem?
Podemos distinguir por um lado a decomposição clássica do significante, como no O seminário 3 <sobre as
psicoses> e, por outro, os fenômenos de despedaçamento do significante? Se poderia precisar o que se
entenderia por esses transtornos de significação ou, inclusive, a relação normal do sujeito com a linguagem
enquanto sintoma?” (Ibidem: 206)
136
foi capaz de responder a questões concretas dos analistas que se dispuseram a verificar a validade
do “neodesencadeamento” na clínica57. Isto porque a trajetória a ser percorrida nessa
“conversação” deveria subverter a patologia psicótica até o ponto em que fosse revertida em
normalidade. A noção de “foraclusão generalizada”, enunciada por Miller cerca de uma década
antes, já não denunciaria a repetição como temporalidade desse direcionamento institucional? A
“Convenção” explicitou claramente quais são as conseqüências envolvidas no movimento de
reforma teórica emanado das demandas institucionais da AMP. Devido à sua estrutura hierárquica,
as associadas são convocadas a responder à pauta definida pelo alto escalão da Escola da Causa.
Haveria razão para defender o princípio de que os impasses clínicos seriam os propulsores da
produção teórica dos psicanalistas da Escola, como quer fazer crer o discurso milleriano? A crítica
ao ordenamento estrutural da clínica psicanalítica data de muito antes que a “Convenção de
Antibes”. A contribuição milleriana para o lacanismo passa em muito pelas suas reformulações
conceituais no sentido de uma amenização dos parâmetros estruturalistas em psicanálise. Na
“conversação” sobre os “neodesencadeamentos”, tratava-se de inscrever nos resultados das
exposições uma outra modalidade de classificação dos fenômenos da psicose que não a “bipartição
Π0 − ” estabelecida em “De uma questão preliminar”. Se o Lacan dos anos 50 opunha a linguagem
ao gozo, o “último ensino”, por sua vez, realiza sua junção por meio do reconhecimento de que a
própria articulação entre os três registros seria de autoria do sujeito. Não conviria, portanto, opor
simbólico e imaginário. De um lado, o Outro, o Nome-do-Pai, a linguagem; do outro lado, a
imagem, o corpo, o gozo. A nomeação dessa nova abordagem não poderia ser mais coerente com a
57
Como descreve um dos membros do grupo de Lille em relação à dificuldade para classificar os fenômenos
clínicos da psicose não desencadeada: “O ponto de vista adequado na primeira parte do informe de Lille
corresponde ao que Jacques-Alain Miller disse sobre a clínica aproximativa; ou seja, não considerar as
diferentes partes do ensino de Lacan como pontos de vista exclusivos. Em outras palavras, é melhor ter em
conta o todo, em um caso se pode trabalhar tanto com “De uma questão preliminar”, a função fálica dos
anos 70, e a função sintoma de 1975. Esse ponto de vista explica nossa classificação dos casos. Me parece
que em “De uma questão preliminar” se encontram muitíssimas coisas que podem entender-se em todos os
sentidos, com elas se pode inclusive superar o marco estrito que parece ter o que teve para nós. Para os
transtornos de linguagem e os delírios, me embasei nesse texto <”De uma questão preliminar”>: tomei o
que Lacan chamou de os abismos Π0 ε . Distingui o abismo Π0 e a foraclusão do Nome-do-Pai. No abismo
Π0 classifiquei todo o que é alucinatório, e os transtornos de linguagem. Lacan mesmo põe aos pássaros que
aparecem no parque <referência a uma das alucinações de Schreber> do lado do abismoc Π0 ,c quando é
puramente visual. Mas ali há uma dificuldade. No meu entender, as alucinações visuais e sinestésicas têm
um estatuto difícil de determinar na prática: quando alguém diz que lhe dói a perna, é muito difícil saber se
é ou não uma alucinação, mas quando diz que ouve vozes, o assunto está concluído. Esta é uma diferença
prática que se apresentou a mim.” (Ibidem: 207). Indagado se um “lapsus” seria um transtorno de
linguagem, esse mesmo psicanalista atenta para os limites da própria ordenação que seu grupo clínico havia
acabado de propor: “Psiquiatricamente não, e em minha prática não o considero como um transtorno de
linguagem. Me parece que clinicamente se chegam a diferenciar essa palavras que tem valor especial para o
sujeito como “ não tenho energia”, a maneira em que são ditas, a enunciação que joga, e o “lapsus”, já se
cometa em um caso de neurose ou psicose, porque isso também ocorre. Me parece que aqui se trata mais de
interrogar a prática que de fazer uma classificação. Se fazemos uma classificação, me parece que
necessariamente vamos nos equivocar.” (Ibidem: 211)
137
orientação milleriana, a “clínica da continuidade”, outra designação para a “clínica borromeana”
ou “clínica do real”:
O gozo pela linguagem também seria, segundo Miller, uma possibilidade aberta aos
psicóticos. Mas essa satisfação seria diferente da experimentada pelos neuróticos em um aspecto
fundamental. O “aparelhamento” que articularia o real, simbólico e imaginário, disso extraindo o
gozo, não diz respeito a uma construção de linguagem, ao modo de uma cadeia significante. Como
ressaltou a “seção clínica de Clermont-Ferrand”, a suplência paterna da psicose configuraria uma
invenção que retiraria da materialidade da linguagem, e não de sua dimensão simbólica, a resposta
à injunção pulsional. Para o psicótico, com exceção do momento em que recorre à metáfora
delirante, a articulação estabilizadora não seria significante, mas sim um nó “real” produzido a
partir da “letra”, isto é, do significante desvinculado de qualquer relação binária (S1) de
significação, perspectiva assumida pela “segunda clínica” no tratamento das psicoses. A
permanente indicação de um “corte epistemológico” entre os “ensinos” certamente possui um
significado de disputa entre aqueles que foram os discípulos mais próximos de Lacan. No entanto,
a idéia de que o desenvolvimento da teoria lacaniana pode ser dividido em etapas não serve apenas
à política institucional orquestrada por Miller. Se assim fosse, não haveria por que investigar a
normatividade formal das investidas do lacanismo hegemônico sobre o social. É esse modo de
interlocução com o contexto cultural subsumido por um processo de abstração social sem
precedentes que justifica a inclusão, aqui, das propostas clínico-teóricas da vertente milleriana do
lacanismo. Ora, tem sido o próprio Miller a explicitar que os novos conceitos lacanianos filiam-se
ao curso hodierno da história: “(...) a partir do momento em que as normas se diversificam, se está
evidentemente na época em que as normas se diversificam, se está evidentemente na época da
psicose ordinária. A psicose ordinária é coerente com a época do Outro que não existe.” (Ibidem:
225). Dar atualidade à psicanálise e livrá-la dos riscos da obsolescência implicam um acerto das
coordenadas do pensamento para torná-lo mais sensível à intensa labilidade das demandas sociais
da atualidade. Mas como alcançar esse objetivo senão por meio de uma constante metamorfose, de
um processo de esfacelamento referencial?
Jacques-Alain Miller: Não estamos obrigados a ter uma clínica homogênea. Há,
pelo contrário, certos momentos das diferentes clínicas de Lacan ou de outros
clínicos que se adaptam melhor que outros a um caso. Por isso se fala, por
138
exemplo, de “psicose schreberiana”, de “psicose lacaniana”, de “psicose
joyceana”. Às vezes ocorre que o particular do caso está em especial
consonância com uma construção teórica, ou também com uma parte de uma
construção. (Ibidem: 238)
Contei uma vez que havia curado uma paralisia histérica. A senhora chegava
com suas muletas, e dois anos depois não as tinha mais. (...) O que fiz foi mais
da ordem metonímica. Não lhe disse: “Tu és isso”, e as muletas caíram, e ela se
pôs a saltar. Foi pouco a pouco recuperando o sentido do equilíbrio. Era fio por
58
Uma das poucas intervenções sobre o tema, feita por Marie-Hélène Brousse, foi simplesmente ignorada:
“A fórmula “psicose ordinária”, com a que começou Jacques-Alain Miller, gosto dela porque os textos dessa
recompilação apresentam efetivamente variações sobre a psicose ordinária. Eles dão testemunho de um
duplo esforço: um esforço de classificação (um exemplo disto é o informe de Lille) e um esforço que
desenvolve em sentido contrário, para ir até certo “tudo está em tudo”. Essas duas orientações têm o mesmo
embasamento, que está constituído pela lógica do discurso analítico. A transferência é a condição de
produção de todos os enunciados reunidos por esses textos. Daí a pergunta: qual o lugar damos à
transferência, que é também um fenômeno de linguagem, em nossa abordagem da psicose ordinária?”
(Ibidem: 231-232)
139
fio: se seguia um fio, se encontrava algo, depois outro fio, e havia como bandas
que caiam uma atrás da outra. Pouco a pouco a paralisia se tornou inútil, poderia
se dizer que deixou de valer-se dela. Pode valer-se de outras coisa, de coisas de
que justamente não havia falado até então. Pouco a pouco não necessitou mais
de muletas, ainda quando esta história durava desde os dez anos, e havia
mobilizado ao redor dela uma quantidade fabulosa de gente. Era funcionária, e a
assistia um monte de gente paga pela Seguridade Social. Renunciou a uma vida
de rainha. Não houve uma grande interpretação de minha parte, nem da dela,
que a levantaria da paralisia, o processo foi contínuo. (Ibidem: 250-251)
A “neoconversão”
59
Como o leitor pôde perceber, trabalhamos nesta tese aspectos importantes desse seminário durante a
comparação entre as primeiras formulações de Miller nos anos 80 e as realizadas no final dos 90.
140
interpretados a partir do estatuto do simbólico. O sintoma como “solução de compromisso” ou, nos
termos de Lacan, como uma metáfora deixam de ser a única referência para a investigação dos
fenômenos somáticos na histeria. A emergência de outras modalidades sintomáticas forçaria a
psicanálise em direção a práticas clínicas heterodoxas, cuja operacionalidade abandonaria por
completo o primado da linguagem. Por isso a validade dos instrumentais teóricos fornecidos pelo
“segundo ensino” para o diagnóstico da sintomatologia contemporânea.
De todas as seções clínicas, talvez o grupo de Bordeaux tenha sido o mais enfático na
descrição de casos conforme a intenção de justificação de um novo conceito. Três casos clínicos,
mais extensos se comparados aos seus congêneres de “Convenção”, estruturaram a argumentação
do grupo em favor do conceito de “neoconversão”. O primeiro caso relatado, de uma jovem de
vinte oito anos com inúmeras tentativas de suicídio, identificaria um tipo de fenômeno somático
que se caracteriza pela não inscrição cifrada do gozo no corpo, como ocorreria nas conversões
tradicionais. As constantes escoriações e marcas auto-imputadas, muitas vezes seguidas de
tentativa de suicídio, demarcariam um “uso do corpo” que em nada lembraria uma formação
metafórica. A paciente demonstraria pouco envolvimento com o seu sintoma, com dificuldades em
reconhecê-lo e falar mais detidamente sobre ele, limitando-se a algumas especificações a respeito
das circunstâncias das primeiras passagens ao ato, entre as quais, o fracasso em um exame
universitário, que teria se feito acompanhar por comentários maledicentes de outros alunos. O
olhar de reprovação dos outros seria, segundo o relato, central para a ocorrência do ato. Outro
episódio comprovaria a função das marcações no corpo. Convicta de que seus colegas de trabalho a
tinham como objeto de chacota, a paciente dirige-se ao espelho, cortando seu rosto com um
aparelho de barbear. Uma “máscara” se forma com os “cortes oblíquos” e o sangue que escorre
para que o “mal suma”. A angústia é aliviada com a prática de automutilação, que permite a essa
paciente “olhar-se e suportar o olhar dos outros: tem um corpo, é o seu.” (Ibidem: 87) O
tratamento prossegue e assume um caminho que, segundo o grupo Bordeaux, seria melhor ilustrado
pelo “segundo ensino” e sua noção de sinthome. A paciente desloca cada vez mais o uso do corpo
pela automutilação, passando a dirigir cartas e diários para o analista, escritos durante os períodos
de hospitalização. A transferência revelaria um caráter “erotomaníaco”, ritualizada sempre da
mesma forma. A paciente escreve suas cartas em um bar, sentada na frente de um espelho, e as
envia logo em seguida pelo correio. Teme que as cartas não cheguem ao destino, motivo de uma
angústia semelhante à que antecede os cortes no rosto. Na agência, no exato momento do depósito,
a angústia atinge seu ápice para imediatamente ser aliviada com a postagem do envelope.
Importante que o destinatário-analista confirme o recebimento para que o ciclo criado pela paciente
possa ter eficácia. O deslocamento do sintoma indicaria uma amarração entre os registros. Se antes
as escoriações exerciam uma função estabilizadora, mas ao preço de uma incidência “real” no
corpo, agora, a solução inventada inclui o simbólico, sem descartar o imaginário, mantido no ritual
141
do espelho. A transferência operou uma divisão do sintoma em duas dimensões, uma imaginária e
outra simbólica, atreladas por meio da escrita. Aqui, o analista teria ocupado o lugar de “Outro
real”, isto é, “real no sentido do que retorna sempre ao mesmo lugar, ao redor do qual ela
<paciente> fará girar sua agenda, seus movimentos, inclusive suas viagens, a rede de amizades.”
(Ibidem: 89). Uma centralidade tão grande do analista só poderia vigorar na psicose, o que não é
negado pelo grupo de Bordeaux, que qualifica de “delirante” a transferência em jogo. A primeira
etapa do tratamento seria configurada, desse modo, pela substituição da antiga prática
“masoquista” por essa transferência postada no registro do “real”. Embora tenham afirmado a
pertinência lacaniana dessa abordagem, é em Miller que os responsáveis pelo caso identificam a
base teórica para a direção estabelecida no tratamento:
O segundo caso clínico do grupo apresenta um uso corporal que se refere à imagem, como o
anterior, mas nos termos de uma manipulação próxima da conversão tradicional, diferindo em um
aspecto fundamental, o de que o sintoma não se encontra cifrado simbolicamente. Também aqui
142
trata-se de uma jovem psicótica, cujo diagnóstico prescinde do Nome-do-Pai e, mais ainda, revela
atributos indistintos se cotejados à estrutura da neurose. Essa continuidade entre as estruturas
constitui um dos principais pontos da “Convenção”. No caso em questão, a paciente relata a
possibilidade de ter sido seduzida pelo pai severo, como destacam os responsáveis pelo informe,
naquilo que sugere ser uma “versão delirante do Édipo” (Ibidem: 91). O relato da paciente é
acompanhado por uma teatralidade gestual. Da histeria, permanece, todavia, apenas essa
teatralidade. Não há qualquer discurso reivindicativo, somente uma mímica sem palavras. Em uma
sessão, recorda da figura da avó paterna, que era cega, passando a partir de então a encenar uma
gestualidade que tem nos olhos o centro da representação. Posteriormente, lembra de um filme que
assistira quando criança. Após sofrer um grave acidente, a personagem tem seu rosto desfigurado,
restando somente seus olhos. O pai da personagem era um cirurgião que assassinava mulheres para
retirar-lhes partes da face e transferi-las ao rosto reconstituído da filha. Com essa lembrança, a
paciente contrapunha o “olhar morto” da avó e o rosto criado pelo personagem do pai-cirurgião.
No curso do tratamento, ela repete o gesto do cirurgião do filme, desenhando um rosto sobre seu
rosto. O gesto é repetido sessão após sessão, sem qualquer discurso explicativo ou remetido a essa
cena. De acordo com a interpretação dada pelo grupo de Bordeaux, com essa imitação a paciente
transforma-se em um “quadro vivo que domina o olhar do Outro” (Ibidem: 92), uma solução
sintomática que, por meio de uma teatralidade do corpo, retira da imagem a função estabilizadora.
Daí a razão para a cena imitada exercer a função de quarto nó60. A “neoconversão” reuniria
aspectos antes isolados na neurose e na psicose. O corpo, nesse caso, não assume a posição de
suporte expressivo dos “significantes reprimidos pelo sujeito”, o que seria de se esperar em uma
conversão histérica. A prática imaginária da imitação, ao contrário, recompôs um corpo para a
paciente:
60
Durante a “conversação”, essa interpretação foi questionada: “Jacques-Alain Miller: Mas é um “fenômeno
do corpo? Imitar os gestos de um cirurgião praticando a operação pode se classificar verdadeiramente
como um ‘fenômeno do corpo’?” Solicitações de esclarecimento como esta, que dizem respeito a uma
precisão diagnóstica, marcaram a discussão clínica das “conversações”. Nesse caso em específico, a resposta
dada não recorreu à teoria ou à “transferência erotomaníaca” da paciente, como havia alegado a seção de
Bordeaux no momento da exposição, mas a um argumento sustentado pela apresentação do que seria o ponto
de vista do próprio sujeito, o que somente o analista responsável poderia desenvolver. “Philippe La Sagna
<responsável pelo caso>: O observador o define como uma mímica. Para a paciente, era um fenômeno
como uma paralisia agitante, isto é, que ela não poderia evitar, e não sabia por quê. Para ela, era algo real.
Por isso haviam lhe tomado por uma histérica. O apresentava como um fenômeno que lhe fugia totalmente
das mãos, o que por outra parte era certo, no sentido em que não estava subjetivado. Jacques-Alain Miller:
Era um ‘tique imitador’.” (Ibidem: 257-258). Que a discussão clínica utilize essa modalidade de argumento
de autoridade não implica, necessariamente, uma desvirtuação teórica. Mas o fato da prática analítica ter sido
dessa forma problematizada na maioria das vezes, na “Convenção”, indica a importância de se questionar, ao
modo de uma espécie de recurso de ponderação metodológica, a tendência privatista da produção conceitual
em psicanálise. O risco da garantia teórica pela afirmação da singularidade do sujeito e, portanto, pela
exclusividade que o analista teria a partir do laço transferencial não sugere ser um tema irrelevante. Os
analistas passam por ele ao descrever e interpretar seu ofício. Que a agenda da AMP seja debatida quase que
apenas por seus membros, a exemplo do que ocorre com a temática da “psicose ordinária”, constitui um sinal
de que esse risco tornou-se regra e que as movimentações da teoria passam a responder a outros princípios
que não mais o da necessária reinvenção do inconsciente a cada sessão, como havia postulado Freud.
143
Esse corpo é a imagem e o breve relato que o anima. Serve-lhe de égide à
paciente para retornar ao discurso e, dali, à vida. Como sublinhou Jacques-Alain
Miller em seu curso de 11 de junho de 1997, há duas coisas com as quais
qualquer um se emaranha: o imaginário – sua imagem, portanto – e o real. O
uso do sintoma é aprender, a partir disso, a desemaranhar-se do destino que
estabelecem os discursos precedentes, o que realiza a senhorita Anita <a
paciente> na cura. Ela utiliza o que a emaranha para converter as palavras
discordantes de sua história familiar em uma “cena de família”, reduzida e
aceitável. (Ibidem: 94)
O pai “em realidade” é quem se esforçou, com atos cotidianos repetidos, por
“fazer-lhe um corpo”, mediante o ajuste do corpete. Assim, com a construção
desse corpo-caparazão, o gozo está contido, o que, por outra parte, não é sem
dor. Não é uma evidente que um sujeito se atribua um corpo. Murielle <a
paciente> nos indica mais de uma maneira. Aos quinze anos, apesar de sua
“prótese” corporal, perde em alguns meses mais de dez quilos, que recuperará
muito rapidamente sem que nem ela nem seu entorno familiar possam descobrir
a causa. (Ibidem: 98)
Aos dezoito anos, o médico ordena a retirada do aparelho ortopédico, decisão que contrariava
a vontade da paciente, que reconhecia nele uma forma de sustentação subjetiva. Três meses depois
da retirada, a paciente apresenta fenômenos persecutórios. Com exclusão da localização do gozo
pelo uso do corpete, restou a ela deslocá-lo ao olhar do Outro. No episódio de desencadeamento
que a havia levado ao hospital, o gozo invadiu o corpo, incidindo justamente sobre os membros que
não eram cobertos pelo corpete. Esse retorno se dá, segundo o grupo, no marco de uma
hipocondria, com dores lancinantes e sem nenhuma justificativa orgânica. Também o diagnóstico
de uma conversão histérica estava longe de uma explicação adequada para as dores. Isto porque, na
144
avaliação dos psicanalistas de Bordeaux, a dor da paciente era a dor do pai, já que ela estava
completamente aprisionada em uma relação especular, uma identificação imaginária. Não haveria,
aqui, a “dialética simbólica da constituição do sintoma”, a manifestação do inconsciente pelo
corpo (Ibidem: 98). Daí o sintoma da paciente ser uma “neoconversão” e não uma simples
conversão histérica:
145
funções orgânicas ou simplesmente pela teatralidade corporal, sendo o sintoma, em ambas as
situações, uma mensagem dirigida ao Outro. O enquadramento lacaniano teria permitido a
compreensão da conversão histérica sem reduzi-la a um acontecimento do corpo. A satisfação
histérica diria respeito à estruturação neurótica da linguagem e não simplesmente à disfunção
biológica, o que não é possível afirmar dos fenômenos propriamente psicossomáticos. Para os
membros da seção clínica de Bordeaux, a diferença não reside tanto na dimensão da linguagem (já
que eles também sofreriam a “ação do significante”), mas, sobretudo, a um modo distinto de
organização simbólica, que implica a linguagem ao mesmo tempo em que prescinde de sua
estrutura, algo como manter sua materialidade significante sem os efeitos de significação. Uma
reificação do simbólico, que manteria suas propriedades, mas em estado de coisa. No corpo, essa
organização seria processada por uma espécie de escrita de significantes isolados, “letras” que
marcariam o orgânico, envelopes vazios de mensagem. Daí a dificuldade em trazer esses
fenômenos para o campo da psicanálise: “O sujeito é responsável por esse tipo de gozo? Em que
nos apoiamos, se não para deslocar, ao menos para questionar o gozo em jogo nesses fenômenos
psicossomáticos, pelo efeito da palavra?” (Ibidem: 101)
Com essa diferenciação, atribuída a Lacan, entre a conversão histérica e os fenômenos
psicossomáticos, fica clara a posição dos responsáveis pela exposição clínica do grupo de
Bordeaux. Apenas os fenômenos psicossomáticos representariam uma modalidade sintomática
nova, uma “neoconversão”. Um dos aspectos que definiriam uma “neoconversão” seria a
continuidade em relação às estruturas clínicas. A função do sintoma variaria conforme a estrutura,
podendo ser, na neurose, uma defesa contra uma circunstância específica, potencialmente
traumática para o sujeito, ou, na psicose, um meio de circunscrição do corpo sem o recurso do
Nome-do-Pai, mediante uma solução como a observada nos três casos relatados pelo grupo. Na
estrutura neurótica, haveria a possibilidade de um uso do sintoma assemelhado à perversão, visto
que a “escritura psicossomática” seria uma indexação de “um modo ilícito de gozo que escapa à
castração <e, portanto, à lei paterna>” (Ibidem: 101), donde a importância do manejo clínico do
analista. Sem polemizar com as outras exposições que ignoraram a discussão sobre a transferência,
o grupo de Bordeaux conclui seu trabalho, retomando o princípio básico de todo o tratamento
analítico:
146
O fato de uma obviedade como esta merecer destaque por ser tão diferente do tom
predominante do encontro explicita ainda mais o sentido que o alto escalão da AMP desejou
imprimir à “Convenção”. Tal como as pacientes dos casos relatados, a instituição milleriana parece
destinada a “fazer um corpo” para si e dele extrair a unidade sem fim de um discurso em constante
mudança. Um inconfessável espelhamento entre teoria e objeto tem estimulado a conversão da
Escola da Causa em sintoma social, com o agravante de que, ao contrário dos defensores do
primado da linguagem dos 60 e 70, o lacanismo hegemônico de hoje não só possui o benefício da
passagem do tempo, como também tem em mãos a produção dos sujeitos em análise, fonte
potencial de uma crítica contumaz ao presente histórico. O sofrimento individual não diria algo
sobre nossa sociabilidade? A tão aclamada “experiência do inconsciente” não seria justamente a
mais municiada de força expressiva de uma disposição anacrônica e, portanto, radicalmente
divorciada dos ditames de uma “realidade” imposta? Manter com o inconsciente uma “experiência”
não implicaria um deparar-se com essa dimensão fora do tempo, sendo ela mais central, talvez por
isso mesmo, para a compreensão do atual curso do mundo? De todas estas questões e de tantas
outras que têm respaldado uma problematização global da psicanálise, o millerianismo retém
apenas o seu sinal de ameaça. Em nome da possibilidade da psicanálise, propõe um modelo de
produção discursiva que seja capaz de uma plena adaptação ao objeto a que se dirige,
independentemente de suas variações e singularidades. Mais ainda. Que esse modelo seja bem
sucedido em conformar-se a qualquer transitividade apresentada pelo objeto. É nesse sentido que a
mobilidade “auto-deformante” de que fala Deleuze pode ser perfeitamente aplicada à AMP e que,
mesmo no contexto de ataques ao “Anti-Édipo”, os millerianos não possam fazer mais do que
demonstrar a validade do que elegeram como alvo da crítica, efeito contraproducente da função de
ajuste à transitividade do objeto. Daí a razão por que, diante de um objeto que se comporta segundo
a mesma lógica e operacionalidade que as suas, a iniciativa da AMP em favor dos novos conceitos
padeça de um tipo específico de transtorno simbólico, sintoma de um formalismo subjacente à sua
política institucional. Tem sido a própria psicanálise a indicar desde Freud a estreita dependência
por parte da ordem da representação pelo universo da causalidade, inevitavelmente ocupado por
uma forma de objetividade potencial, a exemplo do que o “retorno do recalcado” exprime enquanto
conceito da articulação entre representação e pulsão, linguagem e objeto. Ora, como pode então o
millerianismo pleitear com tamanha tranqüilidade a equiparação entre a “experiência do
inconsciente” e o imperativo de ajustamento à “realidade”? Uma identificação com a natureza
mortificante da pulsão como essa não pode deixar de ser refém de suas aporias. Por esse motivo,
devemos continuar acompanhando exposição por exposição a “Convenção” e suas incidências nos
modos de compreender e criticar a clínica psicanalítica, haja vista que nenhum formalismo
prescinde de um objeto, ainda que este se manifeste no vazio de uma auto-referência permanente.
147
A exposição da seção clínica de Chauny-Prémontré não só parece confirmar a vinculação
entre uma abstração discursiva e uma prática de objetivação normativa, como também se dispõe a
sublinhar o sentido epocal reivindicado pela “Convenção”. Sintético a ponto de desconsiderar o
relato de caso, com exceção de uma modestíssima “ilustração” que, verdade seja dita, sequer é
capaz de introduzir qualquer discussão clínica mais consistente, o trabalho dessa seção limita-se a
ressaltar uma hipótese que, bem ou mal, atravessa, de diferentes maneiras, a “Convenção” em sua
totalidade. Trata-se da hipótese sobre a primazia do discurso da ciência no mundo contemporâneo,
que tem respaldado, não apenas nesse lacanismo, a defesa de atualização teórica da psicanálise em
face de uma nova subjetividade emergente. Diferentemente de Freud, Lacan teria estabelecido uma
correspondência entre “conversão” e desejo. Não existiria, portanto, distorção metafórica no corpo,
como entendia inicialmente Freud. Ele próprio haveria de relatizar essa noção, a partir de 1910, ao
retirar da histeria a exclusividade dos fenômenos de conversão. Daí em diante, a psicanálise
deixaria de compreender a conversão como indicador preciso do diagnóstico diferencial. Nenhuma
correspondência mais entre conversão e neurose. Essa significação do sintoma de conversão
explicaria a escassez de referências sobre o tema em Lacan. Uma das poucas menções, realizada no
seminário de 1958, apontaria para uma idéia de “continuidade entre o psíquico e o somático”. O
desejo teria expressão no sintoma de conversão, ainda que eles sejam “um o reverso do outro”.
Essa correspondência, no entanto, somente teria vigência com um “Outro marcado ele mesmo pela
falta”, como o sujeito. Na equação lacaniana dos 50 entre o desejo e a conversão, operava-se a
integração entre o objeto “a” (causa do desejo) e a “inscrição corporal de uma falta”, a castração.
(Ibidem: 106). Em contrapartida, na “neoconversão”, sintoma social da atualidade, o Outro não se
divide mais como antes, não está marcado por uma falta, a se constatar pelo “Outro da ciência” e
seu “saber sem limites”. A anorexia e a toxicomania configurariam suas manifestações
sintomáticas típicas. Na condição de “neoconversões”, elas fariam um uso – e não uma leitura – do
corpo que “já não está marcado pela castração do Outro.” (Ibidem: 107). A “ilustração” clínica ao
final da exposição é reveladora. Os impasses no diagnóstico diferencial servem para ratificar a
validade do conceito de “neoconversão”. A história de um paciente que tem, durante vinte anos,
manifestado um sintoma de enrijecimento muscular, iniciado após uma cirurgia pela qual passara
por uma anestesia geral, é apresentada a título de um “modo de ilustração” de um caso fronteiriço
entre as estruturas clínicas da neurose e da psicose, colocando o problema de saber qual alternativa
seguir, se a “análise do sintoma em direção ao real da pulsão” ou o “tratamento pelo sintoma”, à
maneira da conversão histérica. (Ibidem: 110). O conceito de “neoconversão” responderia a esse
problema, acolhendo toda sorte de “fenômenos do corpo”, não apenas os da velha somatização
histérica. Por isso “as mudanças na teoria das psicoses que dão acesso ao “tratamento possível”,
e, tendo em conta as experiências e elaborações dos alunos de Lacan, permitem receber
numerosas demandas de sujeitos psicóticos.” (Ibidem: 108-109). No trabalho do grupo de Chauny-
148
Prémontré, seguindo a orientação e o espírito da “Convenção”, não há constrangimento algum em
inverter o sinal da avaliação do atendimento clínico do sujeito, em transformar o impasse prático
em uma validação teórica. A livre transitividade e reversibilidade gramatical do lacanismo da AMP
autorizam qualquer iniciativa que proceda a essa modalidade prático-discursiva. O cinismo
facilmente constatável na corrente milleriana não pode existir sem o regramento concreto de um
processo de abstração, que requer agentes reais e medidas efetivas, por mais que as aparências
digam o contrário. O formalismo como dispositivo de controle social não se deixa apreender por
suas palavras apenas, inflacionadas, discriminadas e renomeadas ao infinito. A irrealidade que
incita impõe uma objetividade ordenada por uma pura subjetividade em fluxo permanente, donde a
simpatia, entre os millerianos (mas não só entre eles), pela psicose como modelo quase descritivo
da subjetividade contemporânea, ao mesmo tempo em que refutam o elogio deleuzeano à
esquizofrenia.
A última seção do bloco temático “neoconversões”, formada por psicanalistas de Nantes,
reforçou a direção geral das conclusões clínicas expostas pelas outros grupos, com a diferença de
que elas foram antecedidas por um mapeamento histórico das indeterminações e problemas no
diagnóstico psiquiátrico próximos aos propostos pela “Convenção”. Embora essa localização
histórica relativize o sentido disruptivo da “neoconversão” atribuído pela maioria dos trabalhos
apresentados durante o evento, as variáveis assumidas pelo grupo de Nantes que organizaram a
avaliação dos casos e identificaram as questões clínicas foram as mesmas que as demais seções.
Das indeterminações da nosologia psiquiátrica, não se extraiu uma problematização de cunho
epistemológico. O mapeamento estabeleceu uma linha seriada de autores, entre os quais foram
indicadas relações de continuidade e ruptura. As influências psiquiátricas de Freud e Lacan
ganharam visibilidade com essa abordagem, o mesmo para o contexto dialógico de alguns
conceitos-chave na discussão sobre as psicoses. Essa maior contextualização não serviu, no
entanto, aos propósitos de uma interpretação que oferecesse uma perspectiva comparativa entre
psiquiatria e psicanálise, ainda que seja de amplo conhecimento, aventado inclusive pelo próprio
grupo, a permeabilidade constitutiva e histórica da segunda face à primeira. Aproximações teóricas
entre esses dois campos foram rapidamente anuladas pela codificação sobreposta da grade
conceitual do lacanismo:
O diagnóstico diferencial histeria/catatonia é uma questão clássica que foi, a
partir de 1898, objeto especial de um debate ao redor da síndrome de Ganser. A
fixação dos transtornos, seu caráter no mobilizável, sua aparição inesperada
segundo um “processo” são classicamente referidas como características da
catatonia, mas os autores variam consideravelmente sobre a durabilidade dos
transtornos. Lacan dá conta disso em 1959 em termos de regressão tópica no
estádio do espelho; o termo “abandono” também foi mencionado. Tais sintomas
marcam que a cadeia significante quase não diminui o gozo. No entanto, esta
ausência de enodamento “neurótico” entre S <simbólico> e I <imaginário> não
impede que sejam possíveis modos particulares de suplência.
Fenomenologicamente, isso vai desde o “está tudo bem”, característico da
149
paciente descrita por Karl Landauer, até as personalidades as if de Helene
Deutsch, donde as identificações não encontram nenhuma lugar da ordem do
fantasma, passando pela equivalência esquizofrênica entre representações de
coisas e representações de palavras em Freud. (Ibidem: 126-127)
61
“Jacques-Alain Miller: O que referimos como fenômeno do corpo não se apresenta da mesma maneira
segundo afete a imagem do corpo, a substância gozante do corpo ao simbólico do corpo. Não podemos
conservar em todos os casos esse conceito único de corpo, é algo que não se adapta à experiência da que
damos conta. Ali temos casos convincentes, bem descritos, e nos esforçamos para organizá-los. Merecem
uma língua melhor. Sem dúvida, devemos enriquecer nosso vocabulário. (...)” (Ibidem: 274)
150
psicanálise precisa dessa estratégia, o que veremos no avanço da AMP sobre o social. Por ora, nos
deteremos na “Convenção de Antibes”, quando o lacanismo milleriano ainda ensaiava os
fundamentos discursivos da expansão da psicanálise aplicada. A importância da reforma teórica
embutida no conceito de “psicose ordinária” não designou, portanto, uma preocupação
exclusivamente clínica. Alguns momentos da “conversação” expressaram claramente os recursos
de conformação mobilizados para que a terminologia e os conceitos em jogo ganhassem, por meio
da “estrutura discursiva” da AMP, a objetividade tão almejada pelo lacanismo hegemônico:
A regularidade das entidades clínicas almejada pela “conversação” em nada faz lembrar a
objetividade científica racionalmente construída pela condução metódica do pensamento. Daí
batizar a “estrutura discursiva” da AMP de “convenção” e não com os nomes da ciência. Se
estabilizar um exercício específico da linguagem caracteriza a imposição de uma dogmática,
prática típica das agremiações centradas na fé e na liturgia, como chamar o lacanismo da AMP?
Novamente, são os casos clínicos a explicitar a forma com que a prática discursiva da “Convenção”
ganha consistência pelo trânsito indefinido de noções, expressões e conceitos. A referência ao caso
exposto pela seção de Nantes, intitulado “homem dos cem mil pêlos”, apresenta a outra face do
processo de construção da objetividade clínica pela “convenção” de conceitos e classificações.
Trata-se de um paciente cujo sintoma consistia na perda significativa de cabelos assim que,
segundo suas próprias palavras, “não fazia o que correspondia ao que era verdadeiramente”
(Ibidem: 114). Autor de uma “teoria sobre a calvície”, esse sujeito descrevia em detalhes e
explicava, igualmente em pormenores, o seu sintoma. Haveria um sistema muscular que manteria,
individualmente, os cabelos, em número de cem mil, fixados junto ao couro capilar. Quando o
paciente desviava do caminho que acreditava ser o de sua vida, cedendo à pressão ou à vontade dos
outros, os músculos eram forçados, os cabelos arrepiavam, enfraquecendo as raízes, o que
justificava a calvície. Para os responsáveis pelo tratamento, esse caso não refletiria uma conversão
histérica, mas uma “neoconversão”, pois o paciente sintomatizaria “o real à sua maneira”,
151
respondendo ao “terror que experimenta frente ao enigma do desejo do Outro e a sua vontade de
gozo dando corpo a esta angústia.” (Ibidem: 114) De acordo com Miller, o “cabelo sustenta uma
significação fálica”, mas não da mesma forma que no neurótico. A calvície desse paciente diria
respeito a uma “significação fálica delirante” e a uma responsabilização punitiva, de caráter
supergoico, todavia no quadro de uma psicose não desencadeada, dado que convertida em sintoma
no corpo. A possibilidade de sujeitos psicóticos também possuírem manifestações sintomáticas
dessa natureza, sem a correspondente ocorrência de mutilação corporal, como a verificada no
transexualismo (MILLOT, 1983), circunscreveria o universo fenomênico que a “Convenção”
procurou delimitar para a “neoconversão”62:
62
Momentos antes, o próprio Miller havia destacado a diferença entre as problematizações teóricas dos
conceitos de “neodesencadeamento” e “neoconversão”. O primeiro estaria relacionado a uma distinção
interna à psicose, enquanto o segundo procuraria definir os critérios diagnósticos para a separação dos
“fenômenos do corpo” na neurose e na psicose: “Jacques-Alain Miller: “Neodesencadeamento” aponta a
isolar na psicose uma evolução ou desenganches, que não são de tipo canônico, schreberiano, de
desencadeamento psicótico. “Neoconversão” foi feito para opor psicose e histeria. É então uma falsa
simetria: em “neodesencadeamento”, o “neo” não tem o mesmo valor que em “neoconversão”. Em
“neodesencadeamento” se trata de uma oposição interna na psicose, enquanto que em “neoconversão” a
idéia é opor os fenômenos do corpo na histeria e na psicose.” (Ibidem: 249)
152
característica constatável no novo campo socioassistencial, esfera do tratamento da pobreza e
intermediação entre mercado e política - nossa proeza da mais pura estirpe. Por mais que a corrente
hegemônica do lacanismo assuma a via – nem um pouco francesa - dos mecanismos mais eficazes
de controle social, há um claro limite para que ela de fato produza ou que seja assimilada em escala
socialmente significativa. Falta-lhe o objeto que suportaria sua reprodução prática. A estratégia da
AMP dedicada a consolidar uma expansão institucional mediante as inúmeras iniciativas de
psicanálise aplicada sinaliza esse objeto, mas ainda se limita a figurá-lo e não em realizá-lo. Daí a
teoria vicejada na vertente dominante do lacanismo ser antes um modelo de objetivação do poder
do que o seu dispositivo de concretização. Diríamos, em chave psicanalítica, que o lacanismo
milleriano mantém-se, ao menos por enquanto, como sintoma social. E aprisionado nessa condição,
não pode deixar de evocar suas formas poetizadas, no melhor sentido jakobsoniano, da exceção
política permanente. Que, assim, o conceito de “neoconversão” tenha expressado sua identidade
com o princípio da suspensão da lei, nada mais ratificador da presença do formalismo normativo na
teoria. O que dizer de um sintoma que se aloja em outro sintoma, um social em simbiose com outro
clínico?
153
esforço de derrogação dos conceitos lacanianos influenciados pelo estruturalismo, mesmo aqueles
mais atrelados à concepção estruturalista da psicanálise são afastados de seu pertencimento ao
simbólico. É o que pode ser verificado pelos nomes escolhidos para designar esse giro reformista
no interior da principal corrente do lacanismo. Não seria esse o sentido subjacente aos nomes
“neofalo” e “neocastração” dados por Miller? Por que manter a idéia de castração também para os
casos clínicos que, segundo os próprios proponentes e a leitura predominante na “conversação”,
foram classificados como psicose? Chega a ser um truísmo entre os psicanalistas a consideração da
castração simbólica sobre o sujeito ser uma contradição em termos se pensada para um paciente
psicótico tal qual para os neuróticos. Então, o que justificaria a manutenção dos significantes
teóricos que se quer destituir?
Em nenhum momento a “Convenção” quis paralisar o desenvolvimento dos debates por meio
de uma rígida organização classificatória. Muito pelo contrário. Quanto maior a
desreferencialização de noções antes canônicas, mais estimulada e valorizada era a interpretação
proposta. A indeterminação diagnóstica, ela própria em grande medida resultante dessa
desreferencialização, mobilizava o trabalho das seções e incitava os comentários e as avaliações no
curso das “conversações”. Mas a grande movimentação discursiva, que definiu o sentido da
“Convenção” e a pragmática das propostas, estabelecia um fluxo em círculo, marcado por retornos
e pela permanente imposição de ruptura. Estática sob o dinamismo das formas vocabulares, essa
totalidade em rotação tem dado identidade à política milleriana e, a partir de suas práticas de
discurso, objetivado um processo peculiar de validação teórica entre os membros e escolas
associadas à AMP. Parece ser essa a tradução milleriana para o postulado lacaniano de que a
Escola constituiria a garantia da transmissão do saber analítico63. Os novos conceitos delineados
pela “Convenção” diriam respeito a essa modalidade de reprodução institucional. O uso recorrente
do prefixo “neo” pode ser apreendido pelo argumento, já anunciado pela seção de Aix-Marseille,
de que na “Convenção” a “comunidade analítica” teria sido “convocada” a um “aggiornamento de
sua elaboração teórica da clínica” (Ibidem: 17). Uma verdadeira “atualização” da teoria lacaniana
seria empreendida pelos novos conceitos sistematizados pelo encontro. Daí a presença do prefixo e
a manutenção dos significantes teóricos, uma conciliação pela nominação institucional ou
convencionalização da prática analítica. O problema da indeterminação diagnóstica e estatutária
dos novos sintomas, todavia, permanece. Ele se impõe contra as categorias classificatórias e os
conceitos que a “Convenção” procurou definir. Isto porque o princípio regente daquilo que estamos
chamando de formalismo normativo e que, de acordo com a nossa tese, organiza e fundamenta a
reprodução do lacanismo milleriano implica, por exigência funcional de seu dispositivo correlato,
uma intensa mobilidade intercambiante dos seus elementos, o que somente uma representação
sistêmica da “comunidade analítica” e um exercício metódico de descontextualização pelo discurso
63
Esta idéia está indicada, mas não trabalhada, em Lacan (1968).
154
podem propiciar. Enquanto proposta de conceito, a “neoconversão” pôde exprimir com exatidão o
rebatimento desse processo institucional sobre as formulações teóricas desenvolvidas durante a
“Convenção”:
Por que afirmar essa universalidade do significante se, em outra frente do mesmo argumento,
o primado do simbólico é fortemente contestado? A resposta não tardou a aparecer e, como de
costume, foi Miller quem a enunciou, em uma análise contundente dos textos do “primeiro ensino”.
A competência da análise milleriana não deve jamais ser menosprezada. Conhecedor como
pouquíssimos da obra de Lacan, Miller é capaz de ressignificar, sempre de acordo com suas
estratégias políticas no âmbito da Escola da Causa, algumas passagens canônicas de “O estádio do
espelho” e “De uma questão preliminar”, justamente dois textos que, para muitos comentadores de
Lacan, expressam, respectivamente, a prevalência do imaginário e do simbólico no pensamento do
psicanalista francês.
155
sujeito. A metáfora paterna resolveria esta hiância do estádio do espelho pela
significação fálica. E quando a metáfora paterna não funciona, haveria elisão da
significação fálica e retorno à hiância mortífera.” (Ibidem: 267-268)
Essa leitura dos textos sublinhou, mais uma vez, a crítica milleriana à centralidade do Nome-
do-Pai. Ao contrário da perspectiva freudiana, que tomava a neurose como modelo de normalidade
e, conseqüentemente, conferia à função paterna o lugar tenente de toda constituição subjetiva, o
“último ensino” generalizaria a “foraclusão”, o que significaria o mesmo que pluralizar o Nome-
do-Pai. Por isso, para Miller, já em “De uma questão preliminar” Lacan teria compreendido a
psicose como o “estado natural do sujeito”. Em relação aos novos sintomas, o diagnóstico
dificilmente seria adequado se restrito à constatação da presença do Nome-do-Pai. Em uma
“neoconversão”, importaria, antes, saber qual a localização da libido por meio do significante e, em
caso de sua inexistência, como o sujeito responde ao retorno imperativo da pulsão. Uma
somatização de um órgão ou parte específica do corpo poderia exercer a função de suplência
paterna. Essa possibilidade coloca a questão sobre como diferenciar os sintomas, ou melhor, os
usos do sintoma pelo sujeito. A localização da libido no corpo envolveria um procedimento
diagnóstico que poderia substituir a lógica binária de presença-ausência do Nome-do-Pai e, desse
modo, dar conta das modalidades de resposta inventadas pelo sujeito à “regressão tópica” do
estádio do espelho, à sua “hiância mortífera”. A problemática sobre a causalidade do sintoma foi
transformada em uma questão sobre a eficácia da suplência paterna que, levando-se em conta a tese
da “foraclusão generalizada”, deixa de ser entendida como prerrogativa da psicose. Essa
perspectiva que valoriza a continuidade entre as estruturas clínicas permite a sobredeterminação do
sintoma. Uma “neoconversão” pode ser, por exemplo, um “neodesencadeamento” nas “psicoses
ordinárias”. De que maneira a prática analítica deve se transformar para ser capaz de acompanhar
os novos sintomas? Com o conceito de “neotransferência”, o grupo milleriano projeta-se sobre o
núcleo da eficácia do tratamento psicanalítico e, por que não dizer com Lacan, do “desejo do
analista”. Ao contrário dos dois outros blocos temáticos da “Convenção”, que discorreram sobre a
dimensão da sintomatologia, com a “neotransferência” tratava-se de abordar o princípio material
da psicanálise. Ainda que a transferência não seja um fenômeno exclusivo a uma sessão com um
analista, o que Freud já atentara desde as suas primeiras investigações do inconsciente, foi a
psicanálise, mais do que qualquer outro saber, que a situou no centro de sua prática e
fundamentação teórica. Trazer à toa a necessidade de retificar sua conceitualização não pode deixar
de gerar conseqüências. A “neotransferência” talvez possa esclarecer, tanto em função de suas
contradições quanto no corpo de sua expectativa institucional, os limites práticos da política do
lacanismo hegemônico.
156
A “neotransferência”
Três seções clínicas ficaram responsáveis por esse tema, último da sistematização dos
trabalhos da “Convenção”. Como bem salientou Miller durante a discussão sobre as exposições, as
seções apresentaram trabalhos com intensidades clínicas e níveis de generalização teórica muito
diferentes, ainda que, em seu conjunto, tenham estabilizado uma relação de equilíbrio entre si. Da
parte do grupo de Angers, o trabalho firmou-se junto a uma ampla discussão sobre a hipótese de
uma “lalíngua da transferência”, expressão mais precisa do que seria uma “neotransferência” nas
psicoses. Diferentemente das exposições de todas as outras seções, incluindo aquelas agrupadas nos
dois outros blocos temáticos, o trabalho de Angers inventariou e analisou as referências em Freud e
Lacan, que, ao lado do material clínico apresentado durante o encontro, compuseram as bases
interpretativas para comprovação ou refutação da hipótese. A “neotransferência” nas psicoses teria
como prerrogativa o reconhecimento do saber do lado do paciente (e não um “suposto saber” no
analista, como faz o neurótico), o que implicaria uma mudança significativa no tratamento. Com
um neurótico, a análise teria início pela “precipitação do sintoma, com enganche do sujeito suposto
saber ao desejo do analista”. Já com os psicóticos, o movimento seria justamente o inverso, na
direção de uma “cristalização do sintoma, com entrelaçamento do gozo pela lalíngua da
transferência” (Ibidem: 151). Enquanto instrumento clínico de enquadre dos sintomas neuróticos, a
transferência aponta para a sua liquidação ao final do tratamento, idéia imprescindível para a
concepção lacaniana da ética da psicanálise. Por sua vez, como alegam os responsáveis pela seção
de Angers, a eficácia do tratamento com psicóticos estaria atrelada a uma estabilização no real da
linguagem, que não seria alcançada ao fim da retroação da cadeia significante mediante a
associação livre, sessão após sessão, até o reposicionamento fantasmático do sujeito. A estabilidade
na psicose somente seria possível por meio de um uso material da linguagem, a exemplo do que
teria propiciado a intervenção de um analista da seção de Angers, que acolheu esse uso, a
“lalíngua” de uma paciente:
157
com psicóticos pressuporia um “saber fazer com a lalíngua” e não um “saber sobre a lalíngua”
(Ibidem: 137). Por isso a importância da materialidade da linguagem. Na forma de onomatopéias,
seriações sonoras entre as palavras ou sinalizações indiciais, a assunção da “lalíngua” pode
estabilizar o sujeito, não desencadear nele um surto psicótico. Haveria, no entanto, que se ponderar.
Em psicanálise, todo o sujeito, independentemente se psicótico, perverso ou neurótico, estaria
frente à questão da “travessia da língua única” (Ibidem: 134), da “lalíngua” de cada um. As
diferenças entre as estruturas clínicas manteriam relação com os limites de como e por quais meios
isso poderia ser realizado. O manejo da transferência com o sujeito psicótico precisaria levar em
conta que ele detém um saber sobre a “lalíngua”, posto que a habita. Aqui, o grupo de Angers
destaca a distinção entre inconsciente e linguagem proposta por Lacan. O primeiro consistiria em
um “saber fazer com lalíngua”; o segundo, uma “elucubração de saber sobre lalíngua.” (Ibidem:
144) Na clínica da psicose, o analista teria a função de “aprender” com o paciente as modalidades
desse “saber fazer”, permitindo que esse “saber já aí” possa ser elaborado como experiência do
inconsciente, uma “elucubração de saber sobre lalíngua” (Ibidem: 145). Essa passagem ganharia
sustentação pela transferência, mas por uma que se apóia em um processo de aprendizagem da
“lalíngua” do paciente, isto é, na “lalíngua da transferência”, e não no “sujeito suposto saber”. No
caso clínico em questão, teria sido a “língua Donald” que permitiu “à criança e ao terapeuta
forjar, sessão após sessão, os encadeamentos que faltam da cadeia significante, e que permitiriam
talvez enganchar aqui o simbólico com o real, cristalizando o atamento em nó que a criança havia
fabricado sozinha, a partir da imposição do círculo imaginário repregado.” (Ibidem: 156)
Enquanto “lalíngua da transferência”, a “língua Donald” configuraria o quarto nó, exerceria a
função de suplência paterna. Solução sempre instável, todavia aberta a novos atamentos, uma vez
que a “aprendizagem da lalíngua da transferência, como aparelhamento de gozo, se converte em
um verdadeiro tear para tecer o laço social” (Ibidem: 149), donde a diferença em relação às
psicoses “extraordinárias” a la Schreber, nas quais “o sentido é remetido ao Outro do delírio via o
imaginário” (Ibidem: 156), enquanto nas “ordinárias”, acompanhadas pela “neotransferência”, o
“sentido é remetido ao Outro do laço social via o semblante” (Ibidem: 156).
O princípio da “lalíngua da transferência”, delimitado às psicoses pelo grupo de Angers, foi
generalizado pela seção clínica de Toulouse. Com outra formulação, mas reconhecendo o mesmo
princípio de que o “fora do sentido” do discurso constituiria a nova base da prática analítica, a
seção de Toulouse defende a validade dessa perspectiva também para a neurose. Esse movimento
poderia ser observado no desenvolvimento do pensamento de Lacan. Inicialmente, a idéia de que a
função do analista estaria lastreada em um saber que complementaria a verdade do sintoma do
paciente. Essa complementação articularia sintoma e transferência. Nesse momento, Lacan ainda
não havia desenvolvido o conceito de sinthome, que teria lhe permitido propor uma orientação mais
pragmática à clínica e que, nos temos do grupo de Toulouse, significaria acolher o “fora de
158
sentido”. A passagem de uma perspectiva clínica a outra presumiria declinar a centralidade da
transferência. Em outras palavras, o percurso entre o sintoma ao sinthome envolveria um
“esvaziamento do sentido” e o deslizamento do gozo metaforizado como uma “solução de
compromisso”, à maneira freudiana, para o gozo escrito pela “letra”, viés lacaniano do “segundo
ensino”. (Ibidem: 174) Apesar do trabalho de Toulouse identificar diferenças no tratamento de
neuróticos e psicóticos, a psicose é tomada como modelo para a psicanálise calcada no “segundo
ensino”, da mesma forma que fizeram todas as outras seções participantes da “Convenção”. Em
ambos os tratamentos, o analista deveria ocupar o lugar de sinthome. Para a clínica da neurose, esse
posicionamento implicaria a “resolução da transferência” mediante o deciframento do sintoma e
seu correspondente “esvaziamento de sentido”. (Ibidem: 174). Em relação à psicose, o sintoma não
seria interpretável, uma vez que ele não se completa pela função do sujeito suposto saber, como
ocorreria com o neurótico. O analista seria chamado a ser o sinthome do paciente, posto que, na
psicose, “não há deciframento do sintoma, nem construção do fantasma, nem resolução da
transferência, nem interpretação” (Ibidem: 176). Note-se que, para o grupo de Toulouse, as
diferenças são, sobretudo, clínicas e não teóricas. Enquanto modelo, a psicose derroga o critério
diagnóstico estruturalista do Nome-do-Pai:
“Há que assinalar que essa posição do analista sinthome que Lacan define nessa
lição de 13 de abril de 1976 não está especificamente reservada à análise do
sujeito psicótico. No entanto, não pode surpreender menos o fato de que sua
lógica não a contradiga, mas, pelo contrário, como se Lacan se tivera servido da
psicose em seus últimos seminários para redefinir os conceitos da psicanálise.
Assim, a posição do analista sinthome vale tanto para as neuroses como para as
psicoses. Ali está a continuidade, não das neuroses a psicoses, mas na posição
do analista, que se funda a partir das psicoses tomada como modelo da relação
do sujeito com o Outro e o gozo.” (Ibidem: 176)
A seção clínica de Bruxelas, com uma longa e reconhecida atuação no campo da psicanálise
aplicada64, restringiu sua exposição aos relatos clínicos. Não houve de sua parte grandes aderências
às teses mais contundentes sobre a “neotransferência”, priorizando nos relatos a questão sobre os
limites da transferência no tratamento de sujeitos psicóticos. O caso clínico mais significativo e,
não por acaso, o mais debatido nas “conversações”, refere-se ao atendimento de uma mulher
psicótica, submetida a uma longa análise. Seria, no dizer dos responsáveis pelo caso, de um “típico
caso que os outros chamariam estado limite.” (Ibidem: 160) No curso do tratamento dessa
paciente, que “leva a análise de surpresa em surpresa”, em um determinado momento se insere
uma mudança na forma como ela trata tais surpresas. Após uma cirurgia para retirada de um tumor
no cérebro e a indicação médica de que o problema seria totalmente sanado em cinco anos, a
paciente experimenta recorrentes episódios de angústia. Encaminhada por um psiquiatra ao
64
Refiro-me à experiência do espaço conhecido como Courtil.
159
analista, a paciente enuncia claramente uma demanda, aguarda do tratamento a confirmação da
“origem psicológica de seu tumor” (Ibidem: 165) Para que sob essa demanda se pudesse observar
uma dimensão delirante, muitos anos se fizeram necessários de acompanhamento clínico. A
história será reconstruída a partir do significante “tumor” e essa estratégia mostrará seu valor ao
discriminar, no tempo, qual a função exercida desse significante e seu esgotamento, momento que
marca o início da assunção de fenômenos elementares. O “tumor” como ponto de estabilização do
gozo, como observado no desenvolvimento das manifestações sintomáticas, articula-se pela
linguagem, mesmo aqui, na psicose, mas segundo um uso peculiar. Portador de um conteúdo
assemântico para a paciente, o significante “tumor” “se inscreve em uma série infinita donde ‘tu
morres, tu mentes, eu me minto, eu me mato, tu me matas [tu meurs, tu mens, je me mens, je me
tue, tu me tues]’ somente valem por sua materialidade sonora como restos não simbolizados de
uma língua materna.” (Ibidem: 164). A descoberta do câncer foi consecutiva ao suicídio de um de
seus irmãos, acontecimento pelo qual se sentia culpada, do mesmo modo como havia se sentido
quando da morte de outro irmão, também por suicídio. O diagnóstico médico deu origem a uma
procura dos “determinantes simbólicos” da doença, processo investigativo que teria cessado com
uma conclusão, a certeza de que a causa do seu tumor seria o lugar de “morto” que a sua mãe teria
lhe dado. A paciente recebe, ao nascer, um nome composto, formado pelos nomes dos gêmeos que
sua mãe havia perdido dez meses antes do seu nascimento. Com essa certeza, o tumor não
configuraria um “enigma” para paciente, não haveria, portanto, um sintoma a ser decifrado, donde
o diagnóstico de psicose.
O quadro clínico da paciente até então era estável. O tumor parece exercer a mesma função
de uma “metáfora delirante”, mas, ao contrário desta, inscreve-se no “real do corpo” (Ibidem:
167). “O tumor lhe assegurava uma ancoragem no campo do Outro” (Ibidem: 167). Mas com o
nascimento de seu filho, a morte de sua mãe e, principalmente, o anúncio da cura de seu tumor, a
paciente perde a estabilidade do sintoma, passando a manifestar fenômenos característicos de uma
psicose desencadeada: persecução paranóica, vozes imperativas e outros indícios de que seu mundo
se dá pela “intrusão do Outro”. Essa onipresença do Outro faz com que toda a indicação de
conclusão ou corte seja desconsiderada pela paciente. Seu tratamento requereria do analista uma
posição de reconhecimento de sua crença, “nem demasiado, nem muito pouco” (Ibidem: 168). O
analista deveria manter uma “posição de abstenção” na clínica da psicose, de “descompletar o
Outro” (Ibidem: 168), “introduzir uma divisão no real” (Ibidem: 169), donde a idéia de que “não
dirigir-se diretamente ao psicótico pode ser uma maneira concreta de introduzir no real uma falta
no Outro.” (Ibidem: 169) Em relação aos psicóticos, todos os recursos que se fundamentam na
dimensão do simbólico devem ser excluídos da intervenção clínica do analista, visto que serviriam
de fonte para reafirmação do Outro perseguidor:
160
“Ao nível do significante, ali onde o psicótico solicita o Outro que sabe, um
Outro desde então perseguidor, o psicanalista poderia ver-se tentado a assumir a
incompletude do Outro. Poderia ver-se tentado, como alguns sustentaram, a
operar sobre a falta no Outro, apresentando ele mesmo como faltante.
Imediatamente parece que tal manobra não pode fazer-se nem pensar-se senão a
partir de um lugar de exceção, de um lugar onde o Outro não seria justamente
faltante. Somente pode assumir sobre si a falta a partir de um lugar em que o
Outro sabe, porque é precisamente o que resulta patogênico para o psicótico.”
(Ibidem: 168)
Trata-se, assim, de estabelecer uma estratégia de limitação do gozo, cuja eficiência diz
respeito a soluções concretas ad hoc. Ao assumir uma “posição de abstenção”, o analista pode se
oferecer ao paciente como sinthome, em substituição ao sintoma persecutório. No caso da paciente
do “tumor”, o delírio foi construído a partir da idéia de que um Outro desejaria a sua morte. A
direção da “cura” consistiu em “destituir o Outro do gozo” por meio de uma “lenta restauração do
Outro da alienação a partir da localização dos signos e marcas que esse Outro deixou na história
do sujeito” (Ibidem: 169). Daí a importância da demanda inicial de ratificação de uma certeza sobre
a causa do sintoma. Pouco a pouco a paciente instituía a passagem do sintoma ao sinthome, sempre
se apoiando nessa certeza. O tratamento, focado no gozo e não no significante, incluía o
acolhimento das práticas desenvolvidas pela paciente em defesa contra o Outro perseguidor, como,
por exemplo, assuar o nariz para silenciá-lo, dar função a cada objeto da casa ou trocar de aparelho
telefônico com a justificativa de que um portátil dificultaria a invasão das vozes, donde a conclusão
dos analistas da seção de Bruxelas de que “uma maneira de destituir o Outro poderia ser aqui
levado ao terreno dos jogos para criança” (Ibidem: 169), uma psicanálise mais pragmática do que
simbólica. Para Alexandre Stevens, um dos psicanalistas da AMP mais reconhecidos no trabalho
em instituições, expositor do grupo de Bruxelas, esse caso revela um novo lugar para a
transferência no tratamento de psicóticos. Em uma primeira etapa, o analista assumia uma posição
passiva em relação ao significante “tumor”, sustentando o “saber suposto” dado pela paciente à
palavra que nomeava a sua doença. Até então, respeitou-se o entendimento canônico de que a
função do analista diante de um sujeito psicótico residiria em limitar ou localizar o gozo. Com o
desencadeamento, uma mudança de posição teria se mostrado necessária, apontando para o uso do
sintoma e não para a sua decifração. A transferência que proporcionaria essa guinada clínica seria
ela própria um uso do “fora do sentido” do real do sintoma. Stevens identifica essa perspectiva no
trabalho da seção de Angers. Seu conceito de “lalíngua da transferência” circunscreveria um novo
horizonte para a clínica da psicose ao reconhecer a possibilidade da função de suplência paterna
que, ao contrário do que propicia a ênfase no critério diagnóstico da “foraclusão do Nome-do-Pai”,
pode ser compreendida como exercível por um arranjo prático e contingente inventado pelo sujeito,
um uso material da linguagem, como observado na “língua Donald”. O reconhecimento dessa
possibilidade poderia ser realizado no marco do que o encontro convencionou chamar de
“neotransferência” e que a seção de Angers especificou com o nome “lalíngua da transferência”.
161
Não houve, entretanto, consenso em relação ao valor de inovação atribuído por Stevens à
formulação de Angers. E foi novamente Jacques-Alain Miller quem deu o tom das críticas e
encaminhou uma formulação retificadora, sem, contudo, deixar de ser oximora. O aspecto mais
importante de sua crítica consistia na proposta de substituição do conceito de “sujeito suposto
saber” pelo de “lalíngua da transferência” como operador clínico. Assim propondo, o grupo de
Angers tornaria equivalentes realidades bem distintas. Há que se considerar, ressalta Miller, que a
“lalíngua” no novo conceito não pertenceria ao paciente, se ela, como defendem seus postulantes,
funcionar como “saber suposto”; ela operaria, antes, junto ao analista, uma vez que é ele que “tem
que apreendê-la”. (Ibidem: 279). Vale lembrar que substituir o conceito de “sujeito suposto saber”
pelo de “lalíngua da transferência” na clínica das psicoses envolveria uma substancial mudança
que, se aceita, conferiria a autoria de uma virada de paradigma a alguém que não Miller. A
“Convenção” previa e estimulava a movimentação teórica engendrada pelos debates, mas
certamente não a ponto de cristalizar um consenso em torno de um novo conceito65 de autoria tão
localizada como o de “lalíngua da transferência”, donde a importância de um pontificado
conciliatório, função inalienável de Miller:
65
Para reforçar essa afirmação, citemos a última passagem publicada da “Convenção”, que termina na fala de
Philippe de Georges: “Chegou o momento de nos separarmos. Me perguntei o que havia sido o nosso
encontro. Seguramente não um concílio: não decidimos sobre dogmas, nem sobre o sexo dos anjos, nem
sobre a infalibilidade pontificial. Não, em absoluto, uma verdadeira convenção, apesar de prepararmos um
pouco o terreno. (...)” (MILLER et ali, 2006a: 314)
162
deriva psicológica ou de sua desvirtuação em um reaparecimento
do discurso do Mestre. Esse foi o destino da obra de Freud até
que Lacan lhe restituísse a “lâmina cortante de sua verdade”.
Esses foram também os desafios da dissolução da École
freudienne de Paris em 1980 e é disso que se trata ainda nas
crises que abalam periodicamente as Escolas da AMP. Cada crise
permitiu recolocar no primeiro plano os fundamentos mesmos da
psicanálise e de sua ética.”
(SKRIABINE, 2001: 7).
163
psicanálise. A direção milleriana é, no entanto, a de estabelecer diferenciações no corpo dos
enunciados, identificando e classificando estratos teóricos que permitam a proposição de novas
formas de incidência do “discurso analítico”. Nessa direção, o foco não está na ética, apesar das
inúmeras menções a ela. A dimensão que tem servido de base para esse trabalho é definida por uma
demarcação epistemológica e, nos momentos de indeterminação face às impossibilidades de
validação do seu estatuto, do recurso da defesa da eficácia clínica, independentemente de qualquer
controle metodológico, posicionamento que, no interior da AMP, ganhou nome, o “pragmatismo
psicanalítico”66, uma prática “sem standards, mas com princípios”. Desconcertante à primeira
vista, a junção entre uma reflexão epistemológica e um pragmatismo clínico começa a esclarecer
seu significado à luz da valorização da psicanálise aplicada. No contexto da prospecção de áreas
em que o lacanismo pode adentrar, o debate sobre a especificidade da psicanálise aplicada revela
sua função estratégica na AMP, especialmente quando chamada à comparação com o universo
heterogêneo da psicoterapia.
Na AMP, todo “rigor” será dado primeiramente por Miller. Seus textos servem de guia para
os associados. Suas conferências e artigos, os cursos ministrados na Universidade de Paris são
reunidos e indiciados, nas publicações da Escola da Causa, pela rubrica “orientação lacaniana”.
Não seria diferente com a psicanálise aplicada. No meio da intensa polêmica gerada pelo projeto de
lei, encaminhado pelo Governo Sarkozy, de regulamentar todas as práticas terapêuticas,
subordinando-as ao saber médico67, a psicanálise aplicada assume uma função institucional antes
inexistente. Trata-se, para Miller, de divulgar a eficácia terapêutica da psicanálise, diversificando
suas aplicações de modo a torná-la menos vulnerável à crítica dirigida pelos partidários da
regulamentação pública. Estratégias reativas como essa não são uma exclusividade do grupo
milleriano. No contexto do debate francês sobre a regulamentação, diversas são as iniciativas que
adotam estratégia semelhante. Todavia, poucas demonstram ter a força doutrinária da AMP, ainda
que o seu suposto “rigor” tenha que ser muitas vezes suspenso. A “orientação” mantém seu norte
por uma intensa produtividade discursiva, que se faz acompanhar por uma constante mutação da
terminologia posta em circulação. Nos trabalhos sobre psicanálise aplicada, essa dinâmica pode ser
visualizada por meio de dois processos concomitantes. Uma inflação simbólica é incitada entre as
associadas, sendo normatizada, em um segundo momento, pelos textos de Miller. Uma vez
estabilizada, a produção institucional passa a ser alvo de ajustes e novas interpretações. Noções e
conceitos são definidos pela “orientação” a partir da invalidação parcial das teses antes defendidas.
O ciclo simbólico da teoria lacaniana na AMP exige, portanto, um tipo de reprodução peculiar, uma
propagação de significantes dentro de uma constância organizacional. Por isso a total liberdade em
se apartar a transferência das formulações sobre a expansão da psicanálise. Dada como certa a
66
Como veremos adiante.
67
Também conhecida como reforma ou projeto Accoyer.
164
partilha do mesmo estatuto entre as diferentes modalidades da prática analítica, a discussão recai
sobre as diferenças em relação ao conjunto das psicoterapias. Miller gira o eixo dos critérios que
definiriam o método psicanalítico, afastando-o da abordagem clássica. Caso contrário, não seriam
poucos os obstáculos em positivar o objeto da psicanálise, temática constitutiva em Freud (e em
Lacan). Ao situar um opositor, sintetizando-o em uma generalidade abstrata, a “psicoterapia”,
Miller reverte um problema epistemológico central da psicanálise em uma questão institucional da
AMP. Estão assentadas, desse modo, as bases para que o investimento expansionista da vertente
milleriana reivindique a posse da “letra” da psicanálise. Daí por que essa expansão, aos olhos de
seus proponentes, possa obrigar os seus adversários a “evoluir”. Ilustração cabal da estratégia do
grupo milleriano, a gestão institucional pelo discurso teórico consiste em uma de suas principais
contribuições ao legado de Lacan, um dispositivo pelo qual tudo é passível de ser assimilado e
revertido, permanentemente, em seu contrário:
165
fraseado sobre a “orientação”, como se fosse possível preservá-la da política institucional. A
“orientação” assume a posição de fiador da “ética”. Apoiada no “bom lado da razão” (Ibidem: 13),
ela evoca o nome de Lacan e dele retira um fundamento de autoridade. A interpretação milleriana,
embora seja funcionalizada na Escola da Causa, não se apresenta como tal, mas na condição de
efeito-continuidade do “ensino”. É nessa condição e seguindo um trajeto sobre uma superfície
propositadamente contorcida em reviravoltas que o lacanismo hegemônico se reproduz. Nos termos
de Miller, “não é à instituição que se deve dirigir para montar não sei que tipo de filtro onde
reteríamos o joio para liberar o trigo. O que nós precisamos é de uma orientação de estrutura
para traçar o caminho.” (Ibidem: 13).
Na “clínica do simbólico”, etapa preliminar, para Miller, da prática contemporânea da
psicanálise - a “clínica do real” -, o diagnóstico diferencial designa um recurso fundamental para o
tratamento. É ele que permitirá ao analista localizar a posição assumida pelo paciente em relação ao
gozo, o que implica a adoção da hipótese sobre uma das estruturas clínicas: neurose, psicose ou
perversão. Assim, o diagnóstico diferencial não pode ser dissociado da noção de estrutura, um dos
pontos teóricos mais fragilizados pelo grupo milleriano. É nesse sentido que a aparente estranheza
da proposta de uma “orientação de estrutura” para a AMP expõe a estratégia posta em ação
durante o debate sobre a psicanálise aplicada. Atribuir uma qualidade sincrônica à “orientação” se
contrapõe claramente aos resultados clínicos das iniciativas em ampliar o campo de influência da
AMP. Resultados de teorização improvável. Isto porque a psicanálise aplicada, no dispositivo
milleriano, precisa desdobra-se sobre si mesma para encontrar a regularidade inexistente nas
formações sócio-históricas. Em outras palavras, aplicada ao social, a psicanálise é obrigada a
reconhecer sua impotência em postular a determinação inconsciente dos fenômenos e,
conseqüentemente, a inconsistência de seu campo epistemológico nessa circunstância híbrida, entre
a história e a estrutura. Daí o significado da valorização da psicanálise aplicada. A profusão de um
formalismo teórico que a acompanha e descortina seu sentido não se dá apenas pelos modos de
expressão tradicionais no lacanismo: os esquemas, o matema, as figuras topológicas e outras
analogias matemáticas. No lugar desses recursos sabidamente formais, um movimento de projeções
auto-referentes, uma caça interna à procura de ajustes possíveis e renomeações necessárias de
conceitos, noções e categorias, no plano teórico, e de objetos, relações e processos, no âmbito
prático.
Esse movimento de intensa rotação (sem, contudo, translação condizente) pode ser
identificado nas formulações sobre os “efeitos terapêuticos rápidos”, uma das frentes abertas pela
AMP após o projeto de lei sobre a regulamentação de todas as práticas “psis”. No evento mais
importante sobre os “efeitos”, realizado em 2005, as indefinições que dão esteio à posição
formalista da AMP foram expostas e posteriormente publicadas. Nas sessões clínicas, ocasião em
que a formalização dos casos deveria objetivar os trabalhos para transmissão rigorosa da
166
“orientação”, o tom foi de impasse e de justificativas quanto à ausência de critérios para definição
dos princípios definidores da eficácia da aplicação da psicanálise a outros contextos que não a
relação estabelecida pela associação livre e pela transferência. Os esforços do grupo milleriano se
dirigem à determinação dos ganhos terapêuticos específicos, que não devem ser confundidos com
os ofertados pelos saberes dispersos no campo da psicologia e setores afins. A temática dos “efeitos
terapêuticos rápidos” proposta por Miller impõe, entretanto, sérias dificuldades às experiências de
psicanálise aplicada difundidas pela AMP entre suas escolas associadas. Não haveria elementos
clínicos capazes de fundamentar uma teorização da especificidade da eficácia analítica nos
primeiros momentos de um tratamento, seja no setting clássico, seja nas situações institucionais da
“psicanálise em extensão”.
“Juan Carlos Tazedján: Sim, Jacques-Alain Miller, você disse que esta questão
dos efeitos terapêuticos rápidos não os havíamos conceitualizado e que graças à
pressão política os conceitualizamos agora. Bem, em primeiro lugar, para mim,
todavia, não estão conceitualizados, os estamos dando atenção.
Jacques-Alain Miller: Correto.
Juan Carlos Tazedján: Já, mas é que antes não é que não dávamos atenção (...);
Freud lhes havia posto um nome, ele os chamava: fuga para a saúde. Não
encontrei se Lacan disse algo a respeito. E então, quando nos encontramos com
estes efeitos – quase todos os dias, não somente na terceira, na primeira
entrevista, é mais, talvez na metade de uma primeira entrevista, o paciente nos
fala de um alívio que não havia sentido nunca -, o que temos pensado até agora?
É uma fuga para a saúde. Então, eu creio que o que nos falta é conceitualizá-lo,
porque se não poderíamos pensar, como pode ser que a pressão política nos
produz uma mudança epistemológica? Seria tomar os políticos
demasiadamente, me parece (...).
Jacques-Alain Miller: Não se vê que vanidade ou orgulho tem Tazedján para
não poder suportar que a pressão política o faça algo, que nos faça a todos nós a
vida impossível na França durante meses. Isso existe. Não digo que o tenhamos
conceitualizado, estes dados nunca havíamos recompilado. Os conhecemos
bem, estou de acordo, vivemos dentro disso e para nós uma análise será sempre
algo de duração e estes dados serão secundários. Mas para a nossa proteção e
para a proteção da análise verdadeira, há que pôr mais em evidência estes
dados. E não é somente propaganda senão que nos ajuda a entender melhor a
coisa de que se trata, e não digo que os tenhamos conceitualizado. A questão é
saber se pode indepentizar a cura breve ou somente falar de efeitos rápidos de
uma cura de vocação longa. Gosto destas curas, não quero criticá-las como se
fossem somente um pequeno jogo, algo que não tem importância. Me parece
capital porque Freud pode falar de fuga para saúde, porque para ele a análise
era interminável. Casos de curas terminadas lhe pareciam horríveis, lhe
pareciam que não eram análise. Mas para Lacan, que tem a idéia de que as
análises se terminam, estas são coisas preciosas porque demonstram o caráter
finito da experiência, ainda que seja somente de um ciclo. Sempre se podem
refazer ciclos, mas cada ciclo na experiência tem sua completude. Esta seria
uma nova tese: a análise é tão terminável que se termina várias vezes (risos),
que lhe apraz terminar e que termina de maneira repetitiva. Isto é algo que
segue de perto a experiência. Há uma vez que é o final final, mas às vezes é o
final final e como a análise lhe apraz terminar volta a terminar, isto é, que
obriga a iniciar novamente, mas para terminar. Isto eu estou inventando agora
para argumentar com Tazedján, nunca o pensei assim, mas me parece
interessante.” (MILLER et ali, 2006b: 93-96)
167
Seria razoável atribuir uma prerrogativa clínica e uma formulação teórica autônoma ao
caráter quase imediato – e também breve – dos benefícios terapêuticos propiciados pelo
acolhimento da demanda de um paciente por um analista? Devido à freqüência com que surgiram,
questões como esta tornaram-se obrigatórias nas sessões e supervisões promovidas pela AMP em
seus eventos sobre psicanálise aplicada. Todavia, não raro os debates descartam deliberadamente a
problematização da relação entre analista e paciente. Para usar expressão criada por Serge Cottet e
que se transformou rapidamente em moeda corrente na AMP, seria preciso “jogar um balde de água
fria na transferência”68. A duração de um tratamento consiste na aporia diante da qual se deparou a
formalização dos “efeitos terapêuticos breves”. A idéia de um “final final” de uma análise, que se
diferencia de um final não terminado, embora exposta com as ressalvas de uma invenção
instantânea, faz dessa aporia a circunstância de um novo desenvolvimento discursivo. Fiel ao
fascínio da descontinuidade, tão cara à intelectualidade francesa do segundo pós-guerra, Miller,
entretanto, subtrai a força trágica da problematização freudiana sobre o fim de análise, excluindo o
campo da ética, que Lacan vislumbrou para o final do tratamento. Se o objetivo de uma análise não
é “curar” o paciente, a conclusão de um tratamento aponta para a superação da transferência e,
conseqüentemente, para a dimensão contingencial do inconsciente, esfera da ética para Lacan. Ao
recusar essa dimensão e a transferência, Miller se vê obrigado a enfatizar a repetição e os oximoros
da linguagem em detrimento do ato, donde seu formalismo, não apenas teórico, mas também
estreitamente identificado com aquele que, segundo a tese que aqui defendemos, caracteriza as
modalidades contemporâneas de dominação.
A política em favor de uma maior visibilidade social do lacanismo teve repercussões internas
à AMP. Uma identidade de grupo, firmada para além da comunidade de analistas, tornara-se uma
necessidade institucional, sem a qual a interlocução com setores externos seria enfraquecida. O
lacanismo hegemônico deveria, conseqüentemente, revelar suas prerrogativas e o campo específico
de seu conhecimento, sobretudo em relação à “psicoterapia”. Por outro lado, a estratégia de
expansão pela via da psicanálise aplicada incorria numa incorporação de muitos problemas que,
antes dessa política, não pertenciam ao escopo das preocupações teóricas e clínicas da Escola da
Causa, qualificados que eram como típicos dos tratamentos terapêuticos ministrados pelos
profissionais da psicologia. A prática lacaniana não experimentaria os impasses acarretados pelos
fenômenos da contratransferência, pela situação institucional de grupo e, principalmente, pela
perenidade ou intermitência do tempo de tratamento. O tempo da clínica, que havia merecido
grande atenção de Lacan, passa a sofrer, com a centralidade política da psicanálise aplicada, as
mesmas restrições que as demais terapias submetidas às urgências e normas da organização onde
68
A primeira vez que escutei a expressão foi do próprio Cottet, nas Jornadas da Escola Brasileira de
Psicanálise, evento intitulado Psicanálise pura e aplicada: as variedades do tratamento, realizado no
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em
14 e 15 de novembro de 2003.
168
são exercidas. Não sem motivo, a política milleriana se vê frente à questão, cada vez mais
candente, de diferenciar a psicanálise aplicada da “psicoterapia”, com o cuidado de não destituir o
espaço aberto de intervenção (e de oportunidades), a terapêutica dos tratamentos breves, em grupo
e gratuitos.
Novamente, a solução milleriana adota o formalismo, decantado com maestria em uma
teorização vinculada a pontos inconclusos da obra de Lacan. O “último ensino” teria aberto
possíveis desenvolvimentos do método psicanalítico. A direção dessas possibilidades estaria
fundada na crítica feita por Lacan aos processos de significação durante o tratamento. Uma análise
deveria ser orientada pelo “fora do sentido”, sendo esse o ponto capital do “último ensino”. Miller
atenta para a transição teórica percorrida por Lacan até chegar a essa formulação. Apesar de sempre
ter recusado a hipótese mediante a qual uma análise pode ser concebida como estruturalmente
interminável, Lacan teria, com o conceito de “desejo do analista”, ofertado uma resposta a Freud
sobre o final do tratamento. O acolhimento da fala caracterizaria todas as práticas terapêuticas,
inclusive a psicanálise. Nesse lugar de acolhida, o terapeuta ocuparia a função de Outro do
paciente, reforçando suas identificações. Responderia, desse modo, à demanda de reconhecimento
social. O psicanalista, em contrapartida, “se funda sobre a recusa do auditor-intérprete em utilizar
o instrumento de sua potência suposta, identificatória”, posição que definiria o “desejo do
analista” (MILLER, 2001: 15). Ao introduzir o conceito do “desejo do analista” como operador
clínico, Lacan teria processado uma disjunção entre palavra e pulsão (acrescentaríamos: entre
demanda de satisfação e demanda de análise). De acordo com Miller, essa disjunção estaria
assentada em uma separação rígida entre fantasia e sintoma, que teria fornecido elementos para a
distinção, igualmente rígida, entre psicanálise pura e psicanálise aplicada. Esse movimento de
classificação de instâncias e dimensões seria uma das conseqüências do projeto lacaniano dos 50 e
60 de retificar a psicanálise da época, profundamente desvirtuada pelos pós-freudianos e
enfraquecida pela perda de sua singularidade. Esse projeto justificaria a abordagem de Lacan nesse
período, sua ênfase no sentido, ao contrário da orientação predominante no “último ensino”. Para
reforçar essa participação de Lacan na via do sentido, Miller faz referência a dois textos dos anos
50, publicados nos Escritos (“A agressividade em psicanálise” e o “Relatório de Roma”), e ao
arcabouço estruturalista mobilizado na mesma época:
“(...) quando ele rejeita o sentido do lado da psicoterapia, em 1973, ele já fez
muito para ressituar a instância do sentido no curso de vinte anos de seu ensino.
Certamente, ele ressituou o sentido como efeito significante, ele deslocou a
definição do sujeito rumo ao significante, ele separou o significante e o sentido,
ele convidou a isolar no sintoma os significantes sem nenhum sentido que estão
nele capturados. (...) Ele passou, ou parece ter passado, da semantofilia à
semantofobia. Se percebeu muito bem que ele abandonava esse valor levitatório
que ele atribuía ao sentido em benefício do significante e especialmente em
benefício do matema como vetor do ensino da psicanálise, de uma transmissão
integral fora-do-sentido, que é precisamente o que ele desenvolve no seu escrito
169
“L’Étourdit”. Mas o que não se percebeu, e que nós podemos agora apreender a
partir disso, desse quase nada, é que Lacan disse o sentido, que ele não disse
outras coisas muito mais interessantes que ele podia dizer, que ele lançou essa
pequena pedra. Quanto a mim, eu digo que sobre essa pedra nós podemos
construir, não uma igreja, mas uma saída.” (MILLER, 2001: 20).
A despeito do que deseja a interpretação dada por Miller, um dos traços mais marcantes do
estruturalismo foi justamente a crítica contumaz ao primado do sentido. “Ressituar a instância do
sentido” no âmbito da voga estruturalista torna-se um contra-senso ao tentar estabelecer uma
equivalência com a perspectiva dos trabalhos anteriores de Lacan, claramente influenciados pela
fenomenologia. É fundamental não esquecer o fato, já discutido aqui, de que o próprio Miller havia
estabelecido, no início dos 80, a distinção entre sintoma e fantasia para propor uma teorização cujo
objetivo consistia na redução da heterogeneidade dos fenômenos clínicos. Essa distinção parece ser
adotada, ainda hoje, para o esclarecimento das conversações clínicas na AMP, excetuando-se
aquelas detidas nos casos relatados a partir das experiências de psicanálise aplicada. Nos debates
que avaliam tais experiências, não raro as duas dimensões são aproximadas, quando não unificadas
sob a alegação de que no “último ensino” Lacan teria concebido uma única entidade clínica pela
junção do sintoma com a fantasia, o “sinthoma”, sobre o qual trabalharia a “psicanálise fora-do-
sentido”, outra designação para a “clínica do real”. A “rejeição do sentido” presente no “último
ensino” implicaria uma amenização da importância do fim de análise (na medida em que não há um
processo de significação que deva ser subsumido), mas, ao contrário da “psicoterapia”, ela
colocaria em causa o gozo experimentado pelo sujeito. Desta forma, argumenta Miller, a diferença
a ser compreendida não é mais entre psicanálise aplicada e psicanálise pura. Por se tratar, em
última instância, da incidência sobre o sintoma, isto é, do que define o próprio campo da
terapêutica, é em relação à “psicoterapia” que a psicanálise, em todas as suas modalidades, deve ser
distinta:
“O valor que nos damos à representação da análise como uma trajetória tendo
etapas e um fim mostra bem que, para nós, é um valor que a experiência
analítica seja regida por uma lógica do mais além. Isso está, aliás, na
psicanálise: para mais além do princípio do prazer, para mais além do Outro
rumo à falta do Outro - s(%), para mais além da demanda e da identificação
rumo ao desejo. O acesso ao gozo supõe uma transgressão, uma passagem ao
mais além, protegido. O acesso ao gozo é protegido e barrado pelo princípio do
prazer, e em troca, para o analisante, é preciso ir mais além do sintoma rumo ao
fantasma, onde jaz o que move no seu desejo. Nós vemos bem aqui como se
correspondem e são homólogas a transgressão do gozo e a travessia do
fantasma. É a mesma conceitualização que sustenta a noção de que é preciso
ultrapassar uma barreira para ter acesso ao gozo e que, na análise, é preciso ir
mais além do sintoma para tocar e atravessar o fantasma. São termos que se
correspondem, e com a noção de um: até o final.” (Idem: 24-25)
170
distinção entre fantasia e sintoma diz respeito ao “primeiro ensino” e a uma separação clara entre
psicanálise pura e aplicada, no “último ensino”, trata-se de definir uma continuidade entre essas
categorias, amenizando, assim, as filiações teóricas que haviam fundamentado os conceitos
lacanianos dos 50 e 60. Daí a relativização do final de análise, no âmbito da clínica, e do “passe”,
no contexto institucional. Também nessa transição, o Nome do Pai converte-se em um entre tantos
“atos de nomeação” que dão suporte à vinculação, agora temporária e suposta, entre o real e o
simbólico. “A nomeação é uma suposição” (Ibidem: 37), o que significa incluir, no campo de todas
as estruturas clínicas, o caráter suplementar do Nome do Pai na psicose, generalizando, desse
modo, a contingência do enodamento dos registros da metapsicologia lacaniana. A necessidade de
um quarto elemento, desse nó suplementar, o “sinthoma”, que Lacan havia destacado da escrita de
James Joyce para problematizar a topologia e sua relação com a formalização da prática analítica, é
apreendido pela interpretação milleriana como um requisito universal do funcionamento psíquico,
implicando uma infinitização do tratamento, fato que justificaria a alteração profunda da clínica:
“A psicanálise pura é a noção de uma psicanálise como de uma prática que toma
seu ponto de partida da transferência, e que Lacan apresentou como um
algoritmo, um algoritmo de saber, e que, sendo levada às últimas
conseqüências, encontra um princípio de parada. Trata-se do caráter finito da
experiência colocado por Lacan, diferentemente de Freud, e como sendo
deduzido, concluído, a partir de um algoritmo do saber, funcionando, portanto,
automaticamente. Essa parada é uma iluminação, ou um relâmpago, uma vista –
insight – uma verdade. Cada uma daqueles que pensam ter experimentado, ter
testado nessa experiência, têm uma maneira própria de reconhecê-lo – isso pode
ser em um sonho, ou a repercussão de um sonho, de uma interpretação do
analista, de um encontro, de um pensamento. Essa parada é que se produz
sempre o que o que eu chamaria um acontecimento de saber. O último Lacan
coloca em questão – isso é um nada – a validade desse acontecimento de saber,
à condição de especificar: com relação ao real. É preciso aqui, ainda, tomar esse
real na sua categoria lacaniana, na sua categoria in fine. O que demanda
desaprender um pouquinho o que nós acreditávamos do real, justamente por ter
sido ensinado por Lacan. O que vale esse acontecimento de saber com relação
ao real – a apreender como se deve?” (Ibidem: 32-33)
Mudanças desse porte exigem uma teorização capaz de dar aos novos conceitos uma força
elucidativa superior ao quadro interpretativo dominante. Mas na revisão teórica empreendida na
AMP, essa exigência é marginal. Ajustada ao funcionamento do discurso milleriano, a prioridade
da defesa do “último Lacan” consiste em uma adequação à realidade social (e às suas regularidades
de poder), ainda que a conduta de linguagem mais freqüente entre seus adeptos reivindique a todo
instante o “real” do projeto, a “ética” na vida ordinária da “Escola”. A pronúncia dessa fraseologia
mostra sua pertinência ideológica. Não porque a ideologia esteja oculta sob as iniciativas da AMP
ou no centro obscuro dos casos clínicos relatados pelos praticantes da psicanálise aplicada. Pelo
contrário. Ela se inscreve em uma espécie de deriva metodológica consciente e se objetiva no
reconhecimento explícito de um impasse epistemológico, cuja resolução encontrar-se-ia
171
necessariamente fora da teoria. É esse o verdadeiro significado do “primado do objeto” e de todas
as noções millerianas que se servem dessa deriva e reconhecimento. A idéia de infinitização da
análise caracteriza o desdobramento de uma estratégia com forte conteúdo institucional. A opção
pelo social para a expansão da AMP pressupõe a negação da tese freudiana sobre a determinação
inconsciente dos fenômenos coletivos. O problema da determinação é substituído, como já
mencionado, por uma indagação sobre a possibilidade de um “saber no real”. A psicanálise da
“clínica do real” ou do “fora-do-sentido” pressupõe esse saber. Todavia, justamente o “último
Lacan” teria apontado para a sua ausência. Daí a formulação de que o “saber no real” seria, antes,
uma crença, condição da transferência e da eficácia analítica. Miller destaca esse ponto em Lacan,
priorizando sua abordagem construtivista da fantasia. Desde Freud, a partir de “O homem dos
lobos”, a fantasia fora compreendida como uma construção ficcional sem inscrição no inconsciente,
não sendo, portando, um “saber no real”. A fantasia seria a suposição de saber que, na condição de
crença, colocaria em função o objeto “a”, engendrando efeitos no real. Ou melhor, o próprio real
trabalhado por meio da fantasia constitui uma outra construção, recortada pelo objeto, que permite
ser alterada pelo simbólico. É somente esse o real passível de ser tocado por uma análise, posto que
“se há real, é um real que resulta de uma construção”. (Ibidem: 35) E possui essa qualidade devido
à crença em um saber no real, a transferência. Ao subestimar a transferência na fundamentação da
eficácia clínica, Miller consegue realizar uma bem sucedida inclusão do campo social nas
problematizações da AMP. Mais ainda, fortalece a vertente da expansão institucional pela
centralidade dada à psicanálise aplicada. O lacanismo hegemônico forja, assim, a modelagem de
sua plena cooptação pelos mecanismos de poder da atualidade.
172
Nota sobre a irrealidade: tortura, clínica do real e política do objeto
69
Não estamos, com isso, afirmando que a obra zizekiana em sua totalidade promova ou tenha as
características aqui criticadas. Interessa, aqui, indicar um procedimento teórico para, paradigmaticamente, o
leitor possa situá-lo junto a outras configurações sociais. A defesa da performance do que se assemelha a uma
prática masoquista condiz com as premissas de um discurso teórico que dirige-se para o objeto, mantendo,
assim, afinidade, justamente no bojo da crítica, com o formalismo normativo. Para uma apreensão mais
global da obra de Zizek, ver Dunker e Prado (2005). Uma compreensão não alinhada ao formalismo, sem,
contudo, abandonar a problematização da importância terapêutica do “real”, ver Dunker (2006).
173
próprio!>” (Idem: 72). Daí a sua homenagem ao masoquismo, ainda que ou justamente porque “a
um nível puramente formal”:
Essa violência é senhorial tanto quanto a infligida pelo mestre-carrasco. Há nela o mesmo
sentido religioso do sacrifício e da emancipação dos homens pela dívida com o Deus-pai. Ao seu
gosto e estilo, Zizek nada mais propõe do que reativar, inversamente, a culpabilidade pela
emergência disruptiva do “real” lacaniano. Como pondera, nenhuma mudança significativa se faz
sem sofrimento. Necessitaríamos, sobretudo hoje, “dessa consciência de que as verdadeiras
mudanças são dolorosas” (ZIZEK, 2006a: 150), saber que, “quando se está em certo impasse
simbólico ideológico, é preciso explodir numa violenta passagem ao ato, e, depois, numa segunda
ocasião, isso dá acesso a certa perspectiva emancipatória de praticar o ato propriamente dito.”
(Idem: 149). Algum indício sobre o “ato propriamente dito”? Nenhum. O fato a causar surpresa
consiste na grande audiência com que argumentos como o de Zizek são expostos e aceitos no
interior do lacanismo. A psicanálise, sempre desconfiada da violência, passa cada vez mais a
consentir com a pulsão na defesa do que seriam as formas não listadas pelo catálogo freudiano das
sublimações. Exemplo cabal desse consentimento, das notas esboçadas sobre o fenômeno da
“criança generalizada”, qualificadas pelo próprio Lacan como uma “alocução improvisada” e sem
“nenhum compromisso” que pudesse “justificar sua transcrição literal” (LACAN 2003a: 367), o
lacanismo extrai um diagnóstico de época. A “criança” de que se trata não designaria um indivíduo
em etapa inicial de desenvolvimento, mas a posição de fixação pulsional do sujeito na fantasia. A
sua generalização indicaria a normalização deste modo de gozo, ou seja, a satisfação pulsional
como princípio de regulação da sociabilidade e da vida mental, implicando, assim, a floração de
novos sintomas e, no limite, de subjetividades estruturadas pelo excesso e não mais pela restrição
ao prazer, como havia concebido Freud. A clínica capaz de responder aos desafios colocados por
este diagnóstico seria bem diferente da proposta pela teoria lacaniana dos anos 50 e 60, fortemente
inspirada no estruturalismo lévi-straussiano. Para os tempos da falta imposta pela lei, a “clínica do
simbólico”; para os tempos do excesso, a “clínica do real” (MILLER, 1999b)70. A “clínica do
70
Da mesma forma que a leitura do lacanismo hegemônico, a psicanálise de Lacan é dividida por Zizek em
dois momentos, cada qual com um tipo de clínica. A ética do “Lacan estruturalista (...) me pede para ousar a
174
real” concentra as sedimentações do paradigma de defesa do primado da linguagem. Apesar de se
afirmar como diametralmente avessa à esquizoanálise, ela transita em um mesmo espaço
normativo, na abstração reificante das categorias e processos lingüísticos. A constatação do
declínio da referência paterna e a centralidade clínica com enfoque no objeto da fantasia mantêm
afinidades não declaradas com a crítica anti-edípica de Deleuze e Guattari. No plano político-
social, os pressupostos que sustentam estas modalidades clínicas podem ser associados à instituição
do estado de exceção. A realização social de tais pressupostos implicaria uma situação extrema,
com antecedentes históricos que remontam aos regimes totalitários do século passado. Em relação a
esses regimes, a dificuldade do pensamento em compreendê-los diz respeito, alertava Hannah
Arendt, ao seu aspecto de irrealidade, ao poder que transgrediu os limites que o senso comum
estabelece para circunscrever a condição humana (ARENDT, 2001: 158). No que se refere à
perspectiva subjetiva, os campos de concentração “constituíram os meios sabidamente calculados
para reduzir os homens a conjuntos de reações que se podem, não importa em qual momento,
substituir por outros que se comportam exatamente da mesma maneira, isto é, de modo a ser
totalmente previsível.” (ARENDT, 2006: 143). Os campos foram fábricas no sentido preciso do
termo, produziram uma previsibilidade laboratorial e, portanto, um saber naturalista sobre o
homem. O químico Levi, sobrevivente e célebre narrador dos campos, ofereceu a mais inquietante
e esclarecedora descrição desse saber e aprendizado:
“(...) com meu ofício <químico>, contraí um hábito que pode ser julgado de
modos diferentes e definido à vontade como humano e desumano, o de não
permanecer jamais indiferente aos personagens que o acaso me apresenta. São
seres humanos, mas também ‘amostras’, exemplares de um catálogo, a serem
reconhecidos, analisados e sopesados. Ora, a amostragem que Auschwitz me
descortinara era abundante, variada e estranha; composta de amigos, de neutros
e de inimigos, ou seja, alimento para minha curiosidade, que alguns, então e
depois, julgaram distanciada. Um alimento que certamente contribuiu para
manter viva uma parte de mim e que, posteriormente, me forneceu matéria para
pensar e para construir livros. Como disse, não sei se era intelectual lá: talvez o
fosse episodicamente, quando a pressão arrefecia; e se depois me tornei um, a
experiência alcançada por certo me deu uma contribuição. Esta atitude
‘naturalista’, eu o sei, não provém só nem necessariamente da química, mas
para mim proveio da química. Ademais, que não pareça cínico afirmar: para
mim, como para Lídia Rolfi e para muitos outros sobreviventes ‘afortunados’, o
Lager foi uma universidade; ensinou-nos a olhar em redor e medir os homens.”
(LEVI, 2004: 120-121)
Em termos menos radicais, mas nem por isso pouco bárbaros, na tortura, prática largamente
adotada pelos agentes dos serviços de “segurança nacional”, o carrasco domina um saber sobre o
verdade, para assumir subjetivamente a verdade do meu desejo inscrita no grande Outro”; a da “clínica do
real”, o “desafio” de “confrontar-se com o núcleo fantasmático (com o Real) do seu gozo.” (ZIZEK, 2006b:
68). A ousadia do “desafio” mais se parece com uma injunção de gozo, produto de um juízo teórico, cujo
afeto só poderia ser mesmo a identificação com o poder.
175
indivíduo torturado, na sua condição de puro objeto, e dele retira a eficácia da violência psíquica.
Psicanálise aplicada perversamente (VIÑAR & VIÑAR, 1992). Esse saber, cujo domínio se
concretiza pela redução do sujeito ao “real” do seu corpo, é muito próximo do saber inscrito na
fantasia inconsciente. Com esta aproximação – perigosa, sem dúvida -, não estamos defendendo
uma equivalência ou homologia, sejam quais forem os níveis de proximidade analógicas para tanto,
entre o carrasco e o psicanalista, uma idéia leviana, absurda e que colocaria em risco todo esforço
interpretativo aqui realizado. O saber na fantasia inconsciente configura um saber na fixação
pulsional, ou seja, na forma privilegiada pelo sujeito de obter satisfação. O carrasco não tem posse
deste saber. Seu campo de domínio concerne à mimetização, via a sujeição extrema do indivíduo,
da cena fantasmática. A tecnologia da tortura destitui o caráter ficcional da fantasia, ou seja,
procura objetivar, em uma relação concreta, o que o sujeito elaboraria inconscientemente como
uma posição imaginária de satisfação. Qualquer estratégia de “levar à cena o conteúdo do fantasma
secreto” (ZIZEK, 2006b: 72) para que o dominador se veja constrangido com a sua própria fantasia
parece fazer sentido apenas na elucubração de seu proponente. O doloroso tirocínio da dominação
totalitária nos ensina que não é possível subjetivar o corpo do outro. A estratégia masoquista de
traumatizar o dominador pelo auto-flagelo da vítima é, portanto, uma enteléquia retórica, frágil à
prova dos testemunhos sobre a experiência de tortura ou de submissão a situações extremas.
Fragilidade muito peculiar a Zizek, que vincula trauma e fantasma como se entre eles vigorasse
uma relação logicamente necessária. Diante dos traumatismos coletivos, o sujeito poderia vê-los
ressoar na sua fantasia subjetiva, “o que explica por que motivo o sujeito, depois de ter sido
forçado a suportar uma prova tão horrível, sente, de modo geral, uma culpabilidade <irracional>,
ou sente-se, pelo menos, conspurcado, o que é a prova definitiva de um gozo insuportável.” (Idem:
68).
A despeito da possibilidade de vinculações entre eventos coletivos e experiência pessoal, não
convém tomar como regra o que é contingente. Que a culpa tenha sido experimentada e
freqüentemente indicada nos relatos dos sobreviventes, isto não significa a existência de um
fenômeno subjetivo homogêneo. A incidência da violência foi concreta e partilhada, de modo
relativamente padronizado, entre as suas vítimas. No entanto, as formas de subjetivação desta
ordem factual foram diversas e certamente singularizadas, ainda que, a partir da objetividade do
jugo, seja possível postular um universo comum de experiências. A escolha ética a que o sujeito
submetido à tortura tem que se ater explicita o enquadramento moral dentro do qual ele foi
enclausurado e a partir do qual deve dar uma resposta:
176
transforma, sob a ação dos torturadores, em objeto de temor e rejeição. (...)
Como e com o que se reorganiza o universo destruído? Ao nível da demolição
existem duas posições éticas irredutíveis e antagônicas: a do torturador, com sua
lógica de sobrevida, de recuperação de uma integridade física e de um modo de
equilíbrio psíquico; a do torturado, que tende a reinvestir sobre a identidade
anterior. Uma é presente, invasora. Tem para si a vantagem de estar encarnada
em uma presença. A outra, distante e ausente, representa a possibilidade de uma
coerência com o que o torturado foi e amou, mas sua não presença conota a
morte. É a esse nível que se opera a escolha.” (VIÑAR & VIÑAR, 1992: 47-
48).
“(...) na maior parte dos casos, o suicídio nasce de um sentimento de culpa que
nenhuma punição conseguiu atenuar; ora, a dureza do cativeiro era percebida
como uma punição, e o sentimento de culpa (se há punição, uma culpa deve ter
havido) estava relegado ao segundo plano, ressurgindo após a libertação: em
outras palavras, não era preciso punir-se com o suicídio por uma culpa
(verdadeira ou suposta) que já se expiava com o sofrimento de todos os diais”
(LEVI, 2004: 66).
177
a concretização dos mecanismos totalitários de dominação. É a pureza formal de práticas como a
tortura que permite, a contrapelo, averiguar a validade das proposições da “clínica do real” ou de
estratégias políticas inspiradas no “real” lacaniano. A possibilidade histórica de ambas diz respeito
a um plano de “irrealidade” social. Obviamente, para os defensores da “clínica do real”, por mais
que o sujeito esteja acossado pelo gozo, jamais ele será um “conjunto de reações” (ARENDT,
2006: 143) ou uma “desintegração da personalidade”, “redução dos seres humanos ao
denominador comum mais baixo possível das <reações idênticas>” (ARENDT, 2001: 157).
Entretanto, na mesma linha argumentativa que utilizam para justificar a atualidade do tratamento
dirigido ao confronto com o real da fantasia, não seria vedado dizer que o objeto desta clínica tem
correspondente nessa “irrealidade”, isto é, no poder já não assimilável pelo senso comum, porque a
destruição dos parâmetros do entendimento por ele gerada determina a apreensão de um mundo
sem mundanidade71.
71
Neste aspecto, estamos de acordo com a análise de Zizek. Os traumatismos coletivos possuem a mesma
consistência “real” que o objeto da fantasia inconsciente. O que não nos concerne é o sinal positivo dado à
confrontação com o “real”, que se vê isenta, deste modo, de qualquer problematização sobre o sujeito.
178
PARTE III
_________________________________________________________________________
O NOVO CAMPO SOCIOASSISTENCIAL
179
Introdução
A celebração do discurso é, verdade seja dita, razoável e coerente. Mas não pelos motivos
alegados pelo então debutante político, o secretário Floriano. Os números apresentados
surpreendem apenas aos pouco iniciados na área social. No mesmo ano de 2007, a pasta estadual
responsável pela gestão da contenção dos adolescentes autores de ato infracional consumiu 501
milhões de reais para atender a 21 mil indivíduos, sendo 5.400 em regime de privação de liberdade.
Se a rede conveniada da Secretaria municipal dispunha, no mesmo ano, de 7.000 profissionais que,
somados aos 1.000 servidores públicos, executavam a política de assistência da capital do Estado, o
sistema de contenção juvenil, por sua vez, também cada vez mais aberto à “parceria” com as
organizações sociais por meio de sua autarquia estadual, a Fundação CASA (ex-FEBEM),
180
mantinha em seus quadros 12 mil servidores públicos72. No mesmo ano, o orçamento da Fundação
correspondia a quase dois terços do orçamento da Secretaria municipal. Há que se admitir: essas
são cifras e números incertos. Com freqüência, dados oficiais e levantamentos paralelos indicam
proporções distintas. Entretanto, a despeito dessa imprecisão, não há como recusar algumas
invariâncias da área social. A quantidade de organizações conveniadas com a Secretaria municipal
está longe de ser uma novidade. Benfeitoria laica ou religiosa subvencionada pelo Poder público,
mediante convênios com as “obras assistenciais”, a tradição do salvacionismo filantrópico persiste
e cobra seus dividendos. Sua presença espelha a imagem invertida da identidade da assistência
social como um direito de cidadania instituído pela Constituição Federal de 1988. A participação
das antigas “obras assistenciais” se revela, todavia, em nova chave semântica. As “organizações
sociais”, “instituições privadas com finalidades públicas”, agrupadas em “rede” no chamado setor
“público não estatal” (PEREIRA, 1998), resgatam essa forte tradição, mas sob a aparência de uma
modernidade virtuosa (TELES, 2001). Daí por que a celebração do “dia histórico” seja solene na
forma e coloquial no conteúdo. O discurso do secretário faz jus ao novo espaço onde se processa o
tratamento da pobreza. De um lado, designa a expansão da “repactuação” dos “convênios”, uma
estratégia eficiente para pulverizar a execução dos “serviços”, distribuindo-os pelos “parceiros”,
gerando, assim, um verdadeiro mercado social, esfera de produção e circulação da carência e das
técnicas de gerenciamento de grupos e indivíduos. Por outro lado, a solenidade oculta, sob densa
camuflagem, os largos corredores de escoamento orçamentário que deságuam no sistema estadual
de contenção da criminalidade juvenil. Duplo processo acolhido e pavimentado por um novo
espaço prático de controle social.
Pesquisadores da assistência social são, sem dúvida, suficientemente capacitados e dispostos
a compreender o desenvolvimento desse novo espaço. Sobretudo a partir do advento do marco
legal específico, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e, mais recentemente, pelos debates
sobre a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), analisam o campo prático
da assistência segundo a concepção de direitos de cidadania. Seus estudos cada vez mais têm
observado as contradições a que estão sujeitas as políticas públicas no momento em que se põem a
executar o que consta no texto da lei73. Entretanto, por focarem em demasia a pobreza pela ótica
dos direitos de assistência social, atitude plenamente justificável em função da disputa que travam
pela definição da identidade profissional da área, ainda bem próxima da tradição filantrópica, esses
estudos apreendem apenas parcialmente o novo espaço prático e teórico de intervenção sobre a
pobreza. Mais heterogêneo e com uma história bem menos delineada do que a do serviço social, o
72
Dados sobre o quadro de funcionários foram oferecidos pela presidência da Fundação Casa em setembro
de 2008. As demais informações foram repassadas por um Promotor Público, de longa atuação na justiça
juvenil do Estado de São Paulo, e por um antigo conselheiro municipal de direitos, na época consultor da
Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal.
73
Para um panorama das disputas, elaborações legislativas e da montagem institucional das políticas publicas
no âmbito da assistência social desde a década de 30, ver Mestriner (2000).
181
campo socioassistencial – de agora em diante nomearemos assim esse espaço – apresenta-se como
um universo especialmente propício para o desenvolvimento das tecnologias de controle.
Essas novas tecnologias que vicejam no campo socioassistencial configuram as práticas
destinadas ao cuidado e atenção dos grupos localizados à margem das formas mais eficazes de
apropriação da riqueza social. Tecnologias novas porque adaptadas aos imperativos de uma
regulação transitiva, que opera a porosidade entre as esferas da economia e da política, o que faz
desse campo um dispositivo muito diverso do “social”. Inúmeras são as incidências dessas
tecnologias, mais evidentes onde maior for a permeabilidade entre mercado e Estado, dirão alguns,
no próprio núcleo do neoliberalismo, investigado pela mesma tradição intelectual que já havia
descortinado a genealogia do “social” (DONZELOT, 1986; 2004; EWALD, 1984; 2000;
PROCACCI, 1992; BEC, 1996; TOPALOV, 1994). De qual novidade estamos falando quando
identificamos, de forma propositalmente distinta, a vigência desse campo no qual o controle social
encontra o ambiente experimental propício para suas futuras aplicações? Não há resposta simples e
satisfatória para esta pergunta. O conhecimento das linhas ordenadoras do seu processo constitutivo
é recente e, portanto, ainda muito preliminar. Para tomarmos os mesmos termos da análise
genealógica, a própria problematização do tempo presente mostra-se vacilante, situação de um
pensamento incapaz de qualquer movimentação em direção do estabelecimento crítico de uma
diferença histórica. Sem genealogia ou simples historicização desse campo, por que insistir em
investigá-lo e em afirmar a vigência de tais tecnologias? Afinal, o que são essas tecnologias e qual
a razão para iniciarmos sua crítica sem ao menos uma descrição, introdutória que seja, de sua
eficácia e funcionamento?
Essas interrogações exigem a análise de configurações sociais da pobreza e seus dispositivos
de controle, dos mecanismos normativos empregados para o enfrentamento da questão social. Não
se trata de propor, aqui, uma reconstrução da formação histórica do campo socioassistencial, mas
de problematizar a atualidade de seu exercício. É por essa razão que compreendemos o problema
da justiça social como objeto de discussão e resolução práticas. Ao contrário da perspectiva dos
estudos que o pressupõem como uma temática de resolução teórica possível, adotamos a premissa
de que sua objetividade diz respeito a um universo prático e que, portanto, não constitui um ramo
disciplinar específico do conhecimento. Esta premissa não implica desconsiderar a produção
teórica que tem na justiça social o seu terreno de conceituação. Na mesma linha do que sugeriu
Ewald (2000), uma primeira idéia deve ser retida a partir de agora até o final deste texto: toda
comunidade política constrói um modo de representar e objetivar a equivalência entre grupos e
indivíduos, uma medida comum que regula a reprodução social. Daí o estatuto sempre polêmico
dessa medida e a impossibilidade de definir de antemão os critérios teóricos de sua objetividade,
resultado exclusivo de uma construção prática. É nesse sentido que a questão social configura um
quadro histórico que revela, a um só tempo, a reprodução e a transformação da sociedade. Nesse
182
particular, as condições de existência de um conhecimento sobre a questão social sugerem ser
muito próximas das observadas por Gerard Lebrun em relação ao “surgimento da epistemologia
como disciplina bem fundamentada”:
“A primeira <condição>, que cada ciência deve ser considerada antes de tudo
naquilo que ela tem de diferente e único, que deve ser encarada como um objeto
dotado de um funcionamento singular. A segunda, que nenhuma ciência deve
apresentar-se como uma constelação de “verdades”, mas se oferecer como tema
possível de um exame histórico ou filológico: a) histórico: as ciências são
aventuras contingentes (...) e suas proposições podem ser tratadas enquanto
acontecimentos (...) b) filológico: é possível conferir-lhes o estatuto de um texto
e considerar cada uma delas <ciências> como um corpus de fórmulas (...) no
qual se deposita um trabalho coletivo, cujas articulações exprimem escolhas ou
decisões.” (LEBRUN, 2006: 137-138).
Acrescentaríamos a estas duas condições uma terceira, a consideração das relações de força
que atravessam a produção teórica, mais necessária ainda na reconstrução dos processos
epistemológicos do campo socioassistencial. A ciência é uma “aventura contingente”, um
“acontecimento”, mas também componente de dispositivos normativos, dos quais extrai suas
formas estáveis e regularizadas de objetivação, operação que se revela com clareza no universo do
cuidado dos pobres e desassistidos. Não seria essa regularidade a garantir a tese de que, em todos
os tempos e lugares, a despeito das variações regionais, seria possível identificar um espaço prático
como o campo socioassistencial? Mas isso não significaria justamente a exclusão da idéia de
“acontecimento”, de “aventura contingente”? Foi essa qualidade quase extemporânea que
justificou o recorte interpretativo das “metamorfoses da questão social”, de Robert Castel:
183
será o conjunto dos dispositivos montados para promover sua integração.”
(Idem: 31)
Com essa conceitualização, chegamos a uma primeira comparação com o que seria o campo
socioassistencial. Como o “social”, ele seria uma esfera prática que articula economia e política.
Dessa delimitação, poderíamos conceber uma história específica das práticas sociais voltadas ao
segmento infanto-juvenil? Inúmeras pesquisas, no âmbito nacional e internacional, já foram
realizadas tendo em vista a reconstrução histórica dessas práticas, estudos que abriram áreas de
investigação, permitiram o aprofundamento de perspectivas críticas de análise. Não são poucos os
avanços em matéria de conhecimento que pesquisas como essas proporcionaram. Mas a existência
de uma bibliografia não sinaliza necessariamente uma especificidade histórica. Práticas de controle
que incidem sobre o público infanto-juvenil são afins a outras, dirigidas a segmentos populacionais
distintos. Aqui, nos encontramos quase na mesma situação descrita por Castel. Não há
propriamente uma história particular e sim variações morfológicas, que são, obviamente,
significativas, mas que não representam a ocorrência de um “acontecimento”. Haverá quem
responda, com razão, pela referência obrigatória de Michel Foucault. Todavia, a partir de “Vigiar e
Punir”, seria possível incluir o fenômeno da criminalidade juvenil na “vertente social-assistencial
da questão social”? Seria adequado identificar as variações das “práticas judiciárias”74 no
tratamento dispensado ao segmento infanto-juvenil ao longo dos tempos ou talvez até mesmo
reconhecer, como desejam os militantes da área da infância e juventude, as transformações
normativas do Direito como marco histórico de mudança de paradigma político na abordagem
dessa temática? As mudanças legislativas não seriam, antes, leves trepidações de superfície,
alterações que não atingem as camadas profundas de nossa geologia social? A história da
movimentação política em prol dos direitos de crianças e adolescentes revela a inadequação da
legislação, por mais progressistas e emancipatórios que sejam seus princípios e conteúdos, em
servir como expressão da dimensão disruptiva da questão social. Há um outro problema em
assumir a perspectiva de “Vigiar e Punir”. Por não incluir a problemática do trabalho, Foucault
desconsidera o núcleo do campo da atenção destinada à pobreza, não reconhece e, portanto, deixa
de analisar o conflito estruturante entre as esferas da economia e da política, cerne da ameaça
inscrita na questão social.
Provavelmente, a ciência que mais intensamente expressou a coloração, no final do XIX, dos
impasses e dilemas da questão social, a sociologia durkheimiana construiu uma espécie de canônica
da modernidade. Nos termos do pai fundador da sociologia francesa, a vida social seria uma
instituição objetiva, embora inapreensível diretamente pela observação. Seria necessário algo como
74
“As práticas judiciárias (...) me parecem um das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de
subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser
estudadas.” (FOUCAULT, 1999b: 11).
184
um equivalente às “Regras para direção do espírito” (Descartes: “a finalidade dos estudos deve
ser a orientação do espírito para emitir juízos sólidos e evidentes sobre tudo o que se lhe depara”),
mas sob a chancela de uma aplicação real, isto é, de uma construção científica do objeto (“Regras
do método sociológico”)75. Para Durkheim, a sociologia decorreria de uma constituição metódica e
sistemática, orientada pela ciência, que deveria transpor os limites da filosofia e sua razão
especulativa. Nascimento do problema da objetividade social e descoberta da sociedade. A
constelação conceitual da sociologia durkheimiana procurou oferecer, no jogo cerrado do contexto
político de sua época, uma alternativa teórica ao socialismo e ao liberalismo, uma ciência política
contra os riscos da anomia social promovida pelas transformações estruturais da sociedade. É
inegável a influência de Durkheim nas análises contemporâneas da questão social, sobretudo nos
estudos sobre o pauperismo de massa. Sinal revelador dessa filiação, para Castel “a questão social
é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e
tenta conjurar o risco de sua fratura.” (CASTEL, 1999: 30) Ainda que não exatamente com os
mesmos termos e sem os propósitos políticos originais, é o tema da anomia durkheimiana que se
atualiza nos estudos de Castel.
O liberalismo do XIX contra o qual Durkheim se dirigia imputava à esfera pública as
mesmas características da circulação mercantil. Tratava-se de evitar o questionamento sobre a
desigualdade da produção e distribuição da riqueza social. O liberalismo exigia, desse modo, uma
antropologia calcada na igualdade abstrata, tal qual a existente na troca mercantil de equivalentes.
O corpo disciplinado segundo uma modalidade de dominação ampla, parcimoniosa na violência e
eficaz na normalização do comportamento individual, expressaria, para dizer com Foucault, sua
“governamentalidade”. No plano do Direito, corresponde a esse “corpo dócil” uma representação
metafísica do homem. Na forma de convenção ou carta de princípios, os direitos humanos
encontraram sua expressividade em uma espécie de sujeito literário, representação emanada de um
discurso jurídico que situa a questão social nas margens da positivação da lei, donde a correlação
liberal entre moral privada e assistência aos pobres, a diferença intransponível entre o bem e o
justo.
A emergência moderna do campo socioassistencial constituiu um modo de enfrentamento da
questão social. De um lado, na condição de dispositivo liberal de resposta ao problema da ameaça à
coesão social, gerada pelos processos de expropriação material e destituição cultural de grandes
contingentes populacionais, o campo socioassistencial foi fundamental como agente de
moralização da pobreza. Sede da responsabilidade pelos pobres, a filantropia laica afirmava-se
enquanto uma obrigação exclusivamente moral e, portanto, privada. De outro lado, o campo
75
Neste particular, Comte já havia defendido a impossibilidade de uma abordagem meta-metodológica, uma
vez que nenhum método científico poderia ser estudado separadamente das pesquisas que o utilizaram. Ver
BOURDIEU, CHAMBORENDON e PASSERON (1999).
185
socioassistencial recebeu da politização do mundo do trabalho uma lógica distinta do ideário
liberal. Em meio à intensa conflitualidade social, profundas transformações resultantes da
industrialização foram problematizadas. Um novo paradigma jurídico ganhava existência, o Direito
social, cujo princípio apoiava-se na responsabilização do Estado pelas conseqüências societárias do
desenvolvimento capitalista. Os direitos sociais têm sua matriz histórica nesse universo político,
notadamente avesso aos valores que regem o mercado76.
As transformações sociais pelas quais se justificou, nas últimas décadas, a insuficiência do
modelo do Estado-Providência indicam um novo quadro de regulação e problematização da
questão social, caracterizado pela reestruturação do Estado, crescentemente com mais funções de
mediação do que de execução direta das políticas públicas, e pelas modificações dos processos
econômicos de produção. Figuras canônicas do Estado-Providência, os trabalhadores assalariados
são cada vez mais substituídos pelos funcionários “empreendedores”, os direitos trabalhistas pelo
contrato entre pessoas jurídicas, a hierárquica linha de produção fabril pelas células e grupos
funcionais horizontalmente organizados na empresa. A erosão das categorias e instituições que
estruturavam a relação entre direitos e trabalho e que a tornavam socialmente inteligível sugere
uma brutal mudança da esfera produtiva, com repercussões nos níveis social e cultural, evidenciada
e nomeada de diversas maneiras: “globalização econômica”, “financeirização do capital”,
“sociedade do conhecimento”, “capitalismo cognitivo”, “sociedade de consumo”, “sociedade
globalizada” etc. Nesse tipo de diagnóstico, algumas concepções sintetizam o ideário político dos
dispositivos de controle social que acompanharam as transformações econômicas. O “capital
humano” é uma delas, expressão dessa reconfiguração histórica do poder, seja ele concebido como
poder econômico, seja como estratégia de generalização da economia enquanto princípio de
regulação social.
No contexto dessa reconfiguração, a política de direitos humanos tem se deparado com o
risco de ser capturada pela pragmática da “teoria do capital humano”. Risco compreensível. Os
fundamentos sócio-históricos dos direitos humanos estão diretamente relacionados à formação do
Estado nacional moderno, correspondendo, ainda que com diferenças regionais, à monopolização
estatal dos instrumentos de coerção social e, de um modo geral, à pacificação da sociedade77. A
ampla positivação jurídica dos direitos humanos ocorrida no pós-segunda guerra, no chamado anos
76
“Direitos do antivalor”, na acepção de Oliveira (2000).
77
No plano dos costumes, a esse processo vincula-se a centralidade de um comportamento pessoal orientado
pelo autocontrole das emoções. Os direitos humanos como princípio político e jurídico do Estado
democrático seriam tributários do que Norbert Elias chamou de “processo civilizador” (ELIAS, 1994).
Apesar de inexistir fundamento natural para esse processo, sua antropologia pressuporia, ao menos, um
“potencial de civilização biológico” (ELIAS, 2006: 21). Nos estágios mais intensos do processo civilizador, a
simples natalidade garantiria o reconhecimento de direitos. O próprio “potencial de civilização biológico” é
colocado como base de sustentação racional desses direitos, o que não afasta a necessidade de instituições e
agências públicas que, a um só tempo, influenciem a arbitragem dos conflitos sociais e a dimensão auto-
regulada das condutas de cada cidadão.
186
gloriosos do Estado providência, contrariou a perspectiva liberal ao projetar a responsabilização
pública também sobre as questões acerca da desigualdade social. É verdade que, entre nós, nunca
existiu de fato a plenitude do Direito social. Nesse sentido, é revelador o lugar reservado aos
direitos humanos pelo retorno ao liberalismo ou, melhor ainda, pelo diapasão de um novo
liberalismo, de um neoliberalismo. No atual contexto histórico, somos reconhecidos, em nossa
condição de expansão civilizatória “desigual e combinada”, como vanguarda78 no modo de
efetivação da política de direitos. Vanguarda de um movimento global de “brasilianização”
(BECK, 1999). A resposta brasileira aponta para a consolidação de direitos sem justiça, cuja
natureza de conciliação dos contrários se deixa transparecer na integração entre pobreza e mercado,
donde a captura da política pela pragmática do capital humano. Apartada dos pressupostos sociais
da igualdade liberal e sem ter passado pelo processo de universalização da regulação estatal da
relação entre capital e trabalho, a cultura política brasileira parece destinada à condição de uma
incompletude histórica resignada, um modelo social de adaptação darwiniana perfeita (OLIVEIRA,
2003). Aos olhos de seus co-irmãos do velho continente, os estertores desse moribundo são
consultorias em ato. Sua vocação carnavalesca já foi detectada como uma especificidade nacional
pelos sociólogos da globalização, sejam os que a observam à direita, sejam os que o fazem à
esquerda. Não raro, o fascínio eurocentrista dá conceito a essa vocação, a “mestiçagem”79. A
passagem da dimensão racial ao universo cultural é o foco dessa visão. Os nomes e as teorias a
respeito são irrelevantes. Pouco importa se a mistura racial tenha se revertido em parâmetro da
heterogeneidade da cultura. O fundamento do novo espaço do tratamento da questão social – ou do
conflito social - é um fato político por excelência. Qualquer tentativa em conferir autonomia aos
fenômenos simbólicos nesse espaço incorrerá, portanto, em desvio de análise e turvação da crítica.
Embora o conflito cultural esteja candente e mesmo que se considere a legitimidade das disputas
por reconhecimento político de identidades de grupos específicos, a tese sobre o declínio das
“grandes teorias” mais expõe um modo hegemônico de exercício do poder do que propriamente
indica uma necessária adequação analítica face aos novos tempos.
A emergência de segmentos sociais autônomos ou de grupos de filiação horizontal como
objeto privilegiado das ciências sociais data do final da década de 70 do século passado. A
depender do nicho ocupado dentro do campo acadêmico, ela pode receber uma periodização
diferente. A existência de temáticas de pesquisa relacionadas a agrupamentos sociais ou
subculturas não contradiz o significado anódino dessa emergência. Investigações sobre a
especificidade social de diferentes grupos culturais foram largamente desenvolvidas pela sociologia
americana (Escola de Chicago). Desenvolvimentos similares podem ser identificados em outros
78
“Vanguarda do atraso”, na arguta formulação de Oliveira (2000).
79
Sobre a filosofia da mestiçagem e suas afinidades com os teóricos das redes pós-estruturalistas, ver Serres
(1991).
187
países muito antes dos anos 70. Com intensa utilização dos métodos investigativos consagrados
pela Antropologia, especialmente a descrição etnográfica, esse tipo de abordagem teórica não está
apartada das referências clássicas da sociologia. Pesquisas sobre comunidades étnicas ou grupos
juvenis resultam da especialização do campo acadêmico e, nesse aspecto, em nada contrariam o
cânone sociológico. Entretanto, afirmar a emergência de grupos sociais equiparáveis à
“comunidade” no centro da problematização sociológica significa sugerir uma perspectiva de
análise muito distinta dos clássicos da disciplina. Desde a sua fundação, a sociologia tem no
antagonismo com a noção de “comunidade” o seu momento constitutivo. Foi por intermédio dessa
alteridade conceitual que o objeto sociológico ganhou consistência e identidade.
Diagnósticos como esse são cada vez mais freqüentes, acompanhados, não por acaso, pelas
hipóteses sobre o fim da sociedade e, conseqüentemente, das ciências sociais. As transformações
dos modos de tratamento da pobreza ganham importância nesse terreno movediço, em que as
antigas certezas teóricas, políticas e culturais são anunciadas como inúteis. Aqui, é possível
novamente localizar alguns antecedentes. Nos estudos sobre as formas políticas do pós-segunda
guerra, a ênfase recaía sobre a pluralidade da atuação desvinculada do sistema representativo da
classe trabalhadora. Uma “sociologia da ação”80 nasce nos meados dos anos 60, preocupada em
demarcar os limites e a criação de uma área de pesquisa, produto do próprio processo histórico de
invenção de novos sujeitos políticos. Compreensível, portanto, a insistência dessa sociologia em
analisar as relações entre ação e sistema em defesa de pluralismo da prática política. Nesse
esquadrinhamento teórico do conflito social, a ação transformadora pode ser atribuída aos que, no
quadro de análise materialista, eram despojados de publicidade e sentido político. Os “novos
movimentos sociais” seriam, sobretudo, sujeitos políticos cuja ação tem fundamento na reprodução
social e não na esfera da produção econômica. Daí a possibilidade em se reconhecer o sentido
público das reivindicações de grupos que pleiteiam melhorias de sua condição de vida. Em tese, da
pobreza, por exemplo, passou a ser permitido extrair a política. Não se tratava mais de uma
modificação da estrutura social, mas da relação pela qual a particularidade do ator se inscrevia na
totalidade social ou, melhor dizendo, como a ação questionava sua relação com o sistema. Por isso
a necessidade de comunicação mesmo para o conflito social, que tem “um jogo e se coloca em um
campo”, como se “os adversários” falassem “sempre a mesma linguagem, sem o que não
poderiam debater-se nem se combater.” (TOURAINE, 1978: 345) A ação política confunde-se,
assim, com uma performática comunicativa, forma lapidar do consenso democrático. O conflito
social normaliza-se e se apóia na dinâmica do próprio sistema. Demandas sociais díspares podem
ser incorporadas, com a condição de partilharem a mesma linguagem. Um dos principais
80
Sociologie de l’action (TOURAINE, 1965) é o livro de referência dessa reinvenção sociológica da ação no
contexto da heterogeneidade social do pós-segunda guerra e, não sem motivo, serviu como plataforma teórica
para o conceito de novos movimentos sociais.
188
sociólogos da juventude na atualidade compreendeu e se filou a essa concepção ao definir o
estatuto político da participação juvenil:
Não foi aleatória a identidade que essa sociologia manteve com a temática da juventude, já
assentada em gravitação longínqua dos debates em torno das classes sociais. Essa temática tem
acompanhado os humores e as formas assumidas pela doutrina neoliberal das reformas político-
administrativas do Estado. Por adesão ideológica ou em razão de suas limitações interpretativas, a
linguagem reificada em instrumento comunicativo modelou essa aproximação entre doutrina
política e teoria. Daí não ser estranha a presença da semântica da “rede” na fala cerimonial de um
de nossos administradores públicos da pobreza. Como não reconhecer o aprendizado ideológico do
secretário Floriano? A necessária integração dos “serviços” e da “rede nas suas localidades,
conversando com os diversos órgãos públicos”, depende do “principal instrumento de gestão para
o enfrentamento da pobreza”, a saber, a “unificação dos cadastros junto às organizações
<sociais>.” Seu discurso foi preciso e essa qualidade não deve ser menosprezada. Ele soube
sintetizar os meios e fins do Poder público nesse campo político descortinado pelos sociólogos da
política como comunicação.
A discussão sobre as “redes sociais” consiste em um tema corrente na assistência social.
Muito antes das análises e das técnicas de mapeamento das redes sociais terem virado moda
acadêmica entre os cientistas sociais brasileiros, essa discussão está atrelada a uma exigência
prática. Entre os profissionais da assistência social, a necessidade de “articular” os serviços é real.
Para parte significativa desses profissionais, exceção feita aos intelectuais orgânicos alocados nas
universidades, sua funcionalidade e identidade de trabalho exigem o conhecimento das vias de
acesso a essa “rede de serviços”, o que explica a importância dos “parceiros” e das “organizações
sociais”. Por isso a palavra de ordem: “articulação”. Seja sob a responsabilidade do Poder público
ou não, é ela que expressa a direção da nova normatividade do campo socioassistencial. Suas
transformações indicam as modalidades de controle em curso e não novas demandas políticas
processadas por formas heterodoxas de atuação pública. As “comunidades” ascendem, ao que tudo
indica globalmente, à condição de operador de uma “re-configuração do território de governo”
(MILLER e ROSE, 2008), cuja racionalidade se despojou da centralidade da regularidade dos
grandes processos sociais, chão histórico que fundou, no XIX, as bases epistemológicas da
sociologia e das demais ciências sociais. Mas transposta para a realidade brasileira, a hipótese da
189
“re-configuração do território de governo” seria antes uma descrição do constante ao invés de ser a
marcação da mudança. Nossa singularidade teria sido enfim descoberta na destituição dos direitos
ocorrida a partir do final dos 70 nos países centrais do capitalismo. A “brasilianização” (BECK,
1999) nos concederia a prerrogativa de sermos, de fato, os únicos cidadãos do mundo.
Sob o imperativo dessa nova configuração histórica, o campo socioassistencial passa a ser
compreendido não somente como dispositivo de gestão das desigualdades, mas também enquanto
instrumento e esfera de expansão das novas formas de acumulação capitalista. Se a educação foi a
instituição liberal por excelência, o heterogêneo campo socioassistencial, na ausência de políticas
públicas efetivas, sugere ser, atualmente, a mais neoliberal de todas. A pobreza, tradicionalmente
compreendida como puro negativo da mercadoria, signo supremo das insuficiências históricas por
justiça, transforma-se em matéria virtuosa e estratégica da “cultura do novo capitalismo”
(SENNETT, 2006). É nesse rearranjo, a um só tempo, econômico e político, que ganham
visibilidade e consenso idéias como “responsabilidade social”, “terceiro setor”, “desenvolvimento
sustentável” etc. Objeto prioritário das ações do campo socioassistencial, o segmento infanto-
juvenil das classes populares é particularmente afetado pelo discurso da responsabilidade social do
mercado, partilhado tanto pelo mundo empresarial quanto pelos agentes públicos. Especificamente,
a juventude, categoria polissêmica, ora sociológica ou política, ora demográfica ou cultural, é
tomada como “público alvo” dos investimentos do novo campo socioassistencial. A própria
trajetória temática da juventude no interior das ciências sociais anuncia esse sentido. As principais
referências bibliográficas da produção acadêmica brasileira sobre a juventude nos últimos 40 anos
podem ser ordenadas a partir de uma composição de três blocos conceituais e narrativos, nucleados
em três idéias-força: trabalho, cultura e vida81. O primeiro, centrado no mundo do trabalho,
demarca a produção dos anos 60 e 70 sobre a ruptura geracional nas sociedades contemporâneas.
Enfatizava-se, nesse período, os aspectos de transformação social potencialmente existentes no
segmento juvenil. O segundo bloco, hegemônico, sobretudo, nas décadas de 80 e 90, caracterizava-
se pela crescente valorização da dimensão cultural dos diferentes grupos juvenis, em detrimento de
uma compreensão mais unificada e totalizante dos processos sociais. O terceiro identifica o período
mais recente, marcado pela assunção, com significativos níveis de violência, do corpo como arena
de disputa política e meio de interlocução social. A transição de paradigmas revelada por esta
periodização apresenta os termos pelos quais se dá a atual aproximação e integração entre o campo
socioassistencial e a esfera econômica do mercado. De sujeito de uma revolução possível
(FORACCHI, 1972), passando pela ribalta performática das práticas culturais (ABRAMO, 1994)
até chegar ao corpo como canal de interlocução social (VICENTIN, 2005), a juventude encontra-se
81
Vale ressaltar que os três blocos são construções teóricas e a eles não deve ser atribuída uma
correspondência factual termo a termo; pertencem a uma estratégia metodológica cuja finalidade consiste em
ressaltar os elementos diferenciais, a morfologia e o potencial de generalização social dos discursos.
190
nos limites da significação política. Forma normativa mais do que categoria social, ao mesmo
tempo princípio e objeto de regulação, ela declina seu nome no plural – juventudes -, atualidade
transbordante a recobrir o mundo como um todo: “juvenização da sociedade” (MELUCCI, 1997)
ou “juventude como modelo cultural” (PERALVA, 1997). Daí a força pulsante, junto aos jovens,
do imperativo pela “motivação” e “empreendedorismo”, pelo “protagonismo juvenil” (SOUZA,
2008).
No novo campo socioassistencial, a virtude não tem nacionalidade e qualquer impregnação
classista que insinue imobilismo contra a liberdade do discurso em favor do combate às mazelas
sociais serão mal vistas, prontamente refutadas. Incessante e heterogênea, a somatória de esforços
nesse combate franqueia qualquer limite. Ações populares, moções sindicais e fundações
empresariais agrupam-se em consenso sob um mesmo vocabulário, submetido constantemente a
revisões e ajustes de léxico. Obviamente, a notável defesa dos direitos que aí se realiza não altera a
fundo as correlações de força entre os grupos encerrados no campo. A gramática que declina as
categorias cognitivas e expressa a verdade do jugo continua a mesma. A cidadania evocada nos
jogos de linguagem não assinala nenhuma miragem; seu horizonte é preenchido por um oásis real,
sem delírio. Há presentificação do futuro, como haveria se a cidadania fosse propalada em um
“manifesto” literário de vanguarda, pois é o mundo que se coloca, em sua abstração efetiva, na
condição de murada a ser transposta. Os contornos do campo socioassistencial ganham figura por
essa projeção em direção ao vazio. Trata-se, com todas as letras, de uma verdadeira irrealidade real
movida a substantivas doses de simbolismo. Entretanto, a política do tratamento e atenção aos
desfavorecidos não caracteriza um ritual pós-moderno, uma espécie de antropologia aplicada de
vulgatas entrecruzadas em chave transcendental (AUGÉ, 1994). Seu princípio normativo prescinde
da mediação ritual porque fundado na materialidade do consenso lingüístico, vale dizer, há muito
conhecida, ao menos desde os primeiros estudos durkheimianos. A “sociedade”, totalidade social
subsumida por uma categoria teórica, revela o aspecto simbólico desse princípio, mas não a
dimensão de sua objetividade. Ao que indicam as novas modalidades de controle, explicitadas e,
em diversos momentos, utilizadas primeiramente no campo socioassistencial, a conversão dessa
subsunção teórica em outra, na menção politicamente aflita das “condições ideais de fala”, nada
mais pode fazer do que reforçar a opacidade do poder. A crítica apoiada na linguagem, seja
comunicativa ou não, se fecha em clausura e equívoco, notadamente no âmbito do trânsito
sistemático entre a esfera econômica e a política. No novo campo socioassistencial, o consenso das
virtudes e responsabilidades sociais se congrega em ato e palavras.
A relação entre campo socioassistencial e esse trânsito se expressa em diferentes escalas e
dimensões, desde a produção teórica nas Ciências Sociais até o âmbito prático das ações estatais.
Uma análise das políticas públicas reconheceria a importância de uma perspectiva longitudinal da
transferência da responsabilidade estatal pela execução de serviços públicos para as organizações
191
sociais nas últimas duas décadas. Uma pesquisa com essa abordagem poderia indicar os graus de
institucionalização da integração entre “sociedade civil” e Estado. Ou, no nível do mercado, de
muito valor seria uma investigação das estratégias de agregação de valor econômico de uma
imagem corporativa dada pela associação, conduzida pelos profissionais do marketing, com o
discurso do novo campo socioassistencial. A heterogeneidade da relação simbiótica entre mercado
e política abre espaço para pesquisas tão diversas como essas. Aos exemplos mencionados, parece
faltar, no entanto, uma unidade que dê consistência à análise do fenômeno da permeabilidade entre
política e economia nos novos dispositivos de controle social da injustiça. A lógica e os
mecanismos regulatórios instituídos no novo campo socioassistencial sugerem ser mais pertinente
investigar contextos práticos delimitados, de maneira a revelar seus princípios de funcionamento. É
nesse registro interpretativo que se faz possível propor uma relação paradigmática entre contextos
empíricos e históricos bem distintos, como entre o lacanismo hegemônico e sua interlocução com o
social, as teorias do primado da linguagem convertidas em modelo de objetivação do poder e a
configuração normativa do novo campo socioassistencial, tema das próximas seções. A partir de
agora, três contextos serão analisados: um programa de formação cultural para jovens, um
programa de aprendizagem profissional e configurações da responsabilidade punitiva de
adolescentes autores de ato infracional sentenciados pela justiça82.
82
O anonimato dos lugares, instituições e indivíduos indicados nos três contextos analisados se justifica por
dois motivos. Primeiro motivo: para proteger os entrevistados e colaboradores, profissionais que continuam
trabalhando nessa área instável e sujeita aos humores das coordenações e gerências, como ocorre, aliás, em
qualquer ambiente de mercado e a despeito da fraseologia terceiro-setorista dos direitos e da defesa da
cidadania. O segundo motivo diz respeito à natureza da pesquisa. Interessa a ela dar condições para que a
compreensão do formalismo normativo seja mais aprofundada e consistente. Não se trata de denunciar as
instituições analisadas, mas de oferecer uma crítica teórica e metodologicamente fundamentada. Se, para
tanto, a orientação mais adequada mostrou ser a delimitação de contextos institucionais específicos, isso não
implica atribuir às organizações pesquisadas a exclusividade das questões criticadas.
192
I. Uma programação para a juventude83
A idéia de um programa voltado para a “juventude” era uma novidade no Instituto que, na sua
origem, havia sido fundado com a perspectiva de trabalhar junto à rede de ensino público.
Gradativamente, sobretudo a partir dos últimos dez anos, ampliou e diversificou seu escopo,
incluindo projetos que desenvolviam atividades fora do horário escolar, seguindo a orientação dada
pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a de ações educativas complementares
à escola, dentro do âmbito do que o órgão internacional chamava de “educação integral”. Sob forte
chancela do UNICEF, os projetos de “educação complementar” do Instituto padeciam de uma
identidade negativa, dificultando em muito a afirmação de uma esfera pedagógica sobre a qual
fosse possível intervir de uma maneira independente, requisito indispensável para a consolidação
institucional em um novo nicho de atuação. A despeito de convênios firmados com o Governo
Federal e de outros projetos educativos desenvolvidos fora do âmbito escolar, não havia no interior
do Instituto uma clara faixa de negócios que transpusesse os limites dados pelo UNICEF. Era
preciso diversificar o alcance e o nicho dos projetos, incluí-los nas generosas correntes de
financiamento que se anunciavam com a tematização política da “juventude”. Velha conhecida das
ciências sociais, a “juventude” tem se tornado a temática que melhor representa o futuro do campo
socioassistencial. Estatísticas públicas se especializam em alardear a condição de vulnerabilidade
dos “jovens”, o público mais afetado pelas mudanças estruturais no mercado de trabalho. Daí o
83
A pesquisa de campo compreendeu o período de desenvolvimento das atividades da primeira edição do
Programa, com duração de um ano, de junho de 2004 a maio de 2005. Embora em um primeiro momento
houvesse autorização para que a pesquisa fosse realizada, com o tempo ela tornou-se inviável em razão dos
empecilhos colocados pela coordenação. Para que a pesquisa pudesse prosseguir, analisei o material
levantado até então e contei com o generoso apoio de alguns profissionais e pessoas envolvidas com o
Programa, que se prontificaram a colaborar com entrevistas ou relatos mais informais. Somam-se a esse
conjunto as informações geradas pelo meu trabalho, à época, como prestador de serviços de pesquisa no
campo socioassistencial.
193
sentido paradigmático que começavam a ter a partir da segunda metade dos anos 90. A pressão
social pela entrada em um mercado já saturado, somada a outras transformações nas esferas da
família e da cultura, colocou o segmento juvenil no centro do imaginário político e, portanto, como
um dos principais demandantes de ações focalizadas em seus problemas. Essa politização era, no
entanto, muito diferente. Não havia a mesma problematização sobre a desigualdade e justiça que
costumava abalar a dita opinião pública nos idos da modernização brasileira, entre os anos 50 e 70
do século passado. Com a “juventude”, não se tratava, portanto, da “questão social” rediviva.
Longe disso. Principalmente para organizações como o Instituto, circunstâncias sociais instáveis
constituem boas oportunidades de negócio.
Na virada do milênio, a “questão” não era “social”, mas apenas um problema que dizia
respeito ao modo como viabilizar um saber e um público que supostamente necessitaria dele, o que
não fez produtoras de “tecnologia intelectual” (MARZOCHI, 2009) instituições semelhantes ao
Instituto. A politização da juventude refletia a disposição do novo campo socioassistencial em
proceder a um maior atrelamento com a esfera econômica, abrindo mão de sua autonomia relativa
em favor de uma maior permeabilidade com o mercado. É nesse sentido que a entrada do Instituto
em um novo território temático revela, a um só tempo, um modo de tratamento da pobreza e uma
prática política, por intermédio da qual grupos e indivíduos são adestrados não apenas para
consentirem moralmente com as injustiças, mas para dela se servirem como mote para a defesa da
cidadania. Reversibilidade pouco constrangida como essa somente nos volteios lógicos de um
paradoxo. O segundo tempo da diversificação dos nichos institucionais do Instituto se deu com o
substantivo investimento da Fundação Banco em dois novos programas, cujos objetivos não
pertenciam ao âmbito escolar propriamente dito e que, portanto, cumpriam os requisitos para
prospecção de novas áreas de negócio, ausentes na “educação complementar”. Destes dois, o
Programa, que analisaremos nesta seção, se destacava em razão do volume de recursos envolvidos
e do valor estratégico que possuía em habilitar o Instituto e a Fundação Banco entre os portadores
de “expertise” na temática da juventude. Apoiado pelos Governos estadual e municipal, o que
implicava, do primeiro, o repasse de bolsas de estudo para os jovens e, do segundo, a alimentação
dos participantes, o Programa foi ampliado, em 2005, para a cidade do Rio de Janeiro. Após as suas
primeiras edições, ele já se encontrava entre as principais referências nacionais, concorrendo com
organizações que detinham muito mais experiência no desenvolvimento de metodologias
específicas para a temática juvenil.
Aprovada a criação de um programa de formação de jovens junto à Fundação Banco,
iniciava-se, no Instituto, a etapa de planejamento das atividades e da concepção de sua
metodologia, que daria forma e conteúdo às intenções pactuadas com o financiador. Esse período
seria marcado pela composição dos profissionais da equipe da coordenação do programa,
subordinada ao conselho gestor a ser constituído pelos financiadores e pelas instituições
194
“parceiras”, incluindo representantes do poder público estadual e municipal das secretarias
envolvidas. O público atendido seria formado por aproximadamente 500 jovens da faixa etária de
16 a 24 anos, residentes em dois distritos de São Paulo, um da zona norte e outro da zona sul,
“clusters” escolhidos em razão de baixíssimo desempenho de seus indicadores sociais. Para o
Instituto, o programa responderia diferentemente ao problema estrutural da “vulnerabilidade” a que
está sujeito o segmento juvenil. Ao contrário do que ocorre nas políticas públicas, os jovens não
receberiam formação técnica ou qualificação profissional que procurassem garantir a inserção
rápida no mercado de trabalho, estratégia, segundo os gestores do Programa, com evidente
histórico de fracasso, pois a desigualdade social estaria muito mais condicionada pelos anos
completos de estudo do que pela variável idade. Daí a “necessidade de investimentos em
programas para a juventude que tenham como efeito o aumento de anos de estudo, buscando
interromper o ciclo da desigualdade que empurra os jovens para o trabalho precário e
desqualificado.” (ref.1)84 O Programa procura marcar seu “diferencial” ao assumir o princípio da
“busca da qualidade de vida na cidade como fio condutor da formação dos jovens e a participação
em ações coletivas como base para o desenvolvimento de suas competências.” (ref.1). Esse
princípio orientaria com mais eficácia as ações educativas porque respeitaria as características da
juventude, como a “transitoriedade” e a “fase de experimentação”, prerrogativas que chegariam a
explicar as elevadas taxas de desemprego juvenil no Brasil e no resto do mundo. Se os próprios
atributos dos jovens contribuem para a sua “vulnerabilidade”, condicionada pelas dificuldades de
entrada no mundo do trabalho, então, por que não convertê-los em fatores favoráveis? Os novos
tempos seriam os tempos da “sociedade informacional”, excludente com aqueles que “não
dominam seus códigos”. Nessa sociedade, a escolaridade é necessária, mas não suficiente, impondo
ao jovem a aquisição de “outras capacidades”, muito distintas das aprendidas no ensino
tradicional. “Capacidades” que incidem “no plano da sociabilidade, da ampliação de seu
repertório cultural, da participação da vida pública, da fluência comunicativa e domínio de outras
linguagens” para que o jovem se sinta “competente para acessar as riquezas societárias e obter
ganhos de pertencimento e inclusão social.” (ref.1) Para dar conta dos “desafios” colocados pelos
novos tempos, o Programa tem por objetivos o “aumento da escolaridade por meio do estímulo à
freqüência ou à reintegração no ensino regular”, o “desenvolvimento de competências e
habilidades básicas para a vida pública e pessoal, a ampliação do repertório artístico, esportivo,
tecnológico, social e o acesso ao novo mundo do trabalho”, “a realização de projetos de melhoria
da qualidade de vida no microterritório”. Objetivos estes possíveis se alcançado um último, de
caráter institucional, “fortalecer as ONGs nos microterritórios em seu compromisso com o
desenvolvimento sustentável.” (ref.1)
84
Para garantir o anonimato das fontes consultadas, um quadro explicativo dos documentos citados e das
informações utilizadas sobre o Programa consta no anexo 1 desta tese.
195
Definidos os objetivos e a base discursiva de sustentação do Programa, o segundo passo foi
destinado à seleção das ONGs que teriam a responsabilidade de realizar as atividades com os
jovens. Por costume e conveniência, o Instituto jamais trabalha diretamente com o público de
jovens, focando sua atuação nos educadores das ONGs. Portanto, a formação é, em primeiro lugar,
formação dos profissionais que posteriormente aplicarão a metodologia com os jovens. Esse
modelo explica a razão para que as organizações locais sejam incorporadas não apenas nesse
Programa, mas em quase todos os desenvolvidos pelo Instituto. Nesse caso em específico, as
“ONGs executoras” constituem os “centros aglutinadores de atendimento dos jovens”. O desenho
pedagógico prevê que as atividades utilizem o espaço urbano em substituição ao modelo de sala de
aula das escolas, o que significa que o espaço físico das “executoras” deve se resumir a servir de
lugar de encontro e ponto de partida para as “experimentações” e “explorações” pela cidade. Por
intermédio das oficinas ministradas pelos “parceiros tecnológicos”, os jovens podem
“experimentar” e “explorar” os recursos e conhecimentos durante os deslocamentos urbanos da
“investigação cartográfica”85, ferramenta utilizada para identificar, nos “territórios”,
“potencialidades ou dificuldades para o desenvolvimento das pessoas.” (ref.1) Ao final de dez
meses de formação, os jovens são reunidos em grupos, cada qual com a tarefa de elaborar e
implementar um “projeto de intervenção social de interesse da localidade onde residem.” (ref.1)
Com essa metodologia, o Programa pretende habilitar e capacitar os participantes nas dimensões
propostas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), largamente difundidas na área da educação e, principalmente, no Terceiro Setor, os
chamados “quatros pilares da educação”86: “aprender a conhecer”, “aprender a fazer”, “aprender
a conviver” e “aprender a ser”. Tais “pilares” sustentam as “aprendizagens socioeducativas”
oferecidas pelo Programa. O jovem que concluir o ciclo inteiro terá percorrido as quatro dimensões
e, portanto, assimilado aprendizagens relativas aos “valores éticos”, à “vida profissional”, aos
“valores estéticos” e ao “exercício da vida pública”. A escala dos objetivos educativos é variada,
mas sempre descomprometida com a consecução de conteúdos concretos, donde sua pronúncia
genérica: “estimular a expressão e o reconhecimento dos diferentes padrões de beleza”,
“estimular a participação em organizações sociais do bairro”, “ressaltar a importância do estudo
para a vida pessoal e profissional”, “propiciar vivência de construção de regras e definição de
responsabilidades”. (ref.1) Ao contrário da rigidez curricular do ensino formal, o Programa
85
Segundo o documento de elaboração do Programa, esse processo pedagógico teria sido tomado de “outra
área do conhecimento – o urbanismo.” Também chamada de “cartografia”, esse processo consiste na
“produção de conhecimento, expresso por um conjunto de informações objetivas e subjetivas. Tem por
finalidade reconhecer os territórios dos jovens como lugares em que se reside, circula, se diverte, aprende,
namora, produz, consome e convive. Opera de forma a mapear as potencialidades do local, de seus
habitantes, assim como seus interesses.” (ref.1). Veremos mais adiante como essa ferramenta é
fundamentada e a maneira pela qual as oficinas são realizadas por meio de sua utilização.
86
Ver DELORS et ali (2003).
196
vangloria-se por oferecer o que seria um amplo leque temático interdisciplinar, com finalidade
prática e, portanto, atinente com os imperativos dos novos tempos.
Embora tenha mantido uma postura de contraponto ao ensino formal, o Programa, no seu
período de planejamento, ainda refletiria a influência do paradigma escolar. Nas primeiras
negociações com a Fundação Banco, o Instituto propôs como uma das alternativas para as
“unidades de execução”, isto é, para os atores institucionais responsáveis pelo acompanhamento
direto dos jovens nas “comunidades”, os grêmios das escolas municipais e estaduais. Mas não
foram essas as “unidades” escolhidas, vingando a primeira alternativa, as organizações não-
governamentais locais. Alternativa que respondia e era inegavelmente mais adequada à natureza do
Programa e às estratégias desenhadas pela Fundação Banco e pelo Instituto para entrada na
temática da juventude, de crescente visibilidade social desde os meados da década de 90. Em
relação ao nome de batismo do Programa, as discussões preliminares também revelam finalidades
estratégicas, que não escondem seus objetivos de posicionamento mercadológico. O primeiro nome
aventado era excessivamente genérico: “Cidade e Civilidade”87. A segunda versão, “Morar e
Participar”, já expressava a tentativa de aproximar o Programa junto à moderna gestão social, às
categorias de um saber sobre o governo dos “jovens”. “Morar” e “participar” do “território”, não da
“comunidade”, noção ambígua – e perigosa – que, dentre os significados e contextos, remetia aos
anos de politização da Igreja Católica e sua “opção pelos pobres”, às “comunidades eclesiais de
base”. Em pouco tempo, já com o rápido acúmulo de trabalho simbólico no quadro da fraseologia
terceiro-setorista e após um processo de consulta que, bem ao modo “protagônico” das pedagogias
do novo campo socioassistencial, envolveu os próprios jovens, consensualmente a coordenação do
Instituto e os financiadores do Programa decidem por um nome capaz de conjugar as propriedades
do público a ser atendido e da proposta educativa desenhada. Um público foi criado de modo a lhe
atribuir a autonomia da ação em um universo delimitado, abstrato no início (a cidade), mas
progressivamente concreto (o distrito, a viela, a rua, a praça etc.). Nessa gramática subjacente a
essa nomeação, inexiste a função de cópula ou qualquer outra que faça a conjugação do sujeito com
seu predicado, indicativo da excentricidade do novo campo. São suas funcionalidades que realizam
essa conjugação, contudo na elipse do discurso, mal flagrada pela crítica. Daí o estilo dos
documentos de atores como o Instituto. Segundo o mesmo padrão vanguardista dos “manifestos”, o
uso dos infinitivos chega a ser abusivo em sua retórica pragmática. A proeza do estilo não se revela
pela certeza do entendimento, mas pela sintaxe dos tópicos e pelo palavreado quase técnico. Lado a
lado, espaços em moldura retangular são preenchidos por conteúdos pretensamente conceituais. Em
cada um, definições das noções utilizadas no texto de referência adotado durante a fase de
elaboração do Programa. Com redação sucinta e em boa parte distribuída em blocos de tópicos e
87
O nome é fictício, mas é analogicamente semelhante ao original. O mesmo procedimento foi adotado para
designar a segunda versão do nome.
197
enumerações, esse tipo de documento almeja a objetividade dos fins pela expressão protocolar de
seus meios, sua disposição comunica mais do que uma intenção e estratégia. O Programa
configura, na significação de sua produção textual, os princípios gramaticais de seus efeitos
práticos. Em outros termos, o conteúdo de seu discurso exerce uma função de redução semântica.
Já é possível adiantar alguns traços constitutivos da pedagogia criada pelo Instituto. Primeiro traço:
ela se ancora nessa função gramatical. Sujeito e predicado são encarnados em seu estado de
categoria e abstração por intermédio de procedimentos empíricos, algo como uma relação lévi-
straussiana invertida. Diante desse fenômeno, não cabe demonstrar “a existência de uma lógica das
qualidades sensíveis” (LÉVI-STRAUSS, 2004: 19), mas sim revelar os processos práticos que
engendram uma sensibilidade das qualidades lógicas, donde a presença efetiva, no novo campo
socioassistencial, do que temos chamado de formalismo normativo. Essa indicação pode ser
constatada na movimentação simbólica do Programa, nos seus recursos de entorpecimento
cognitivo e nas dinâmicas de ressignificação acelerada. Disso são exemplos as definições forjadas
nos documentos da fase de elaboração. O “desenvolvimento de competência e habilidades” e os
“projetos de melhoria da qualidade de vida no microterritório” emergem e se dispersam no espaço
brevíssimo de algumas linhas. Após a enumeração dos objetivos do Programa, o esclarecimento de
algumas noções se faz necessário:
Ainda que uma vontade teórica atravesse a tentativa de agrupar os cacos espalhados do
discurso, a exatidão almejada resume-se, no entanto, a indexações sumárias, ora de referências
bibliográficas, ora de mimetizações técnicas, arremedadas em exposições curtas e diagramadas
com o claro propósito de facilitar a leitura rápida de um leitor desatento88. O conceito de
“tecnologias intermediárias”, emprestado da economia das soluções baratas, procura responder a
um dos objetivos do Programa, o da “realização de projetos de melhoria da qualidade de vida”.
“Tecnologias” laureadas pelo sentido de responsabilidade social, incorporáveis que são pelas
“comunidades populares”. A vida e sua qualidade pertenceriam ao mundo dos laços interpessoais e
de reconhecimento imediato. Nisso, o imaginário profissional, apesar da pompa do seu vocabulário,
88
Em muitas instituições do Terceiro Setor, o texto foi substituído pela apresentação em slides digitais, o
Powerpoint.
198
é igual à mais arcaica representação do que seriam os laços de proximidade afetiva e de pertinência
comunitária. De diferente, o “microterritório” propõe a “formação de um novo sujeito de direito”,
ou seja, de uma nova impessoalidade, pactuada pela relação formal com o Estado, mas, ao
contrário da tradição iluminista que pensou o Direito natural em termos modernos, concretizada no
espaço da vitalidade de tipo comunitário. Isto tudo levando em conta o acompanhamento e
testemunho das “transformações das novas práticas e representações”. A polêmica teórica entre
comunitaristas e universalistas, que tem envolvido, há pelo menos duas décadas, os mais
importantes representantes da Filosofia do pós-guerra, encontrou solução, vejam só, na zona oeste
da capital paulista, especificamente no “microterritório” - não tão popular – onde fica a sede do
Instituto.
A terminologia do Programa corre velozmente no escoadouro cujo destino consiste ser a
unificação dos fragmentos de discurso a partir de um único agente de enunciação. Todos os
documentos, extratos de fala registrados nas inúmeras anotações em arquivo, textos de “assessores
técnicos” - profissionais que concedem palavras e, por vezes, idéias – são aglomerados,
transfigurados por essa unificação. Tomemos como ilustração a mencionada definição de
“tecnologias intermediárias”. No documento citado, ela refletia o caráter tateante e iniciático do
Programa em seu momento de gestação. Não demoraria muito, seria modelada por esse processo de
constituição discursiva. Da referência direta ao economista Schumacher, o conceito transmuta-se
na noção de “tecnologias apropriadas”, releitura retirada da interpretação dada pelo renomado
físico brasileiro, José Goldemberg. Para o físico, que teria imposto uma correção de rota ao uso
excessivamente elástico do economista, “tecnologia apropriada” seria “um processo de
estabelecimento dos efeitos sociais e ambientais de uma tecnologia proposta antes que ela seja
desenvolvida, e a tentativa de incorporar elementos benéficos, nas várias fases de seu
desenvolvimento e utilização.” Há, nessa acepção de “tecnologia”, a idéia de que o sentido da
apropriação deve ser dado pelas características do contexto em que ela ocorrerá. Ou seja, a
apropriação é definida socialmente, em uma perspectiva ecológica, considerando as variáveis do
meio e seus efeitos de mão dupla. Na leitura do Programa, no entanto, essa “tecnologia” obedece
prioritariamente aos princípios e exigências operacionais, desvinculados dos aspectos relacionais
envolvidos em sua intervenção educativa. O primado administrativo da coerência instrumental
presente nessa leitura explicita a amarração entre o estilo do discurso e a finalidade prática do
Programa. Essa recontextualização respondeu a um dos pontos nevrálgicos do Programa. Um
“assessor técnico” fora contratado exclusivamente para dar essa justificativa e desenvolver as
noções operacionais do discurso do Programa com vistas a delinear um território de intervenção
educativa que não fosse complementar ou subordinado ao paradigma escolar. Por isso a
importância da noção de “tecnologia”. Aplicada ao social, é ela que permite a defesa da proposta
no quadro das dificuldades de inserção do segmento juvenil pobre no mercado de trabalho,
199
segundo, é claro, o respeito às regras da reestruturação produtiva e suas conseqüências, nem um
pouco virtuosas, para a classe trabalhadora. Assim, a qualificação para o novo mercado de trabalho
torna-se um mote do Programa. Flexível, o mundo do trabalho exigiria profissionais com a mesma
qualidade de abertura à transformação constante e de pronto dinamismo face às incertezas geradas
por ela. A “tecnologia apropriada” pode, então, ser definida como “todas as formas de
conhecimento que possam ser utilizadas na criação, no planejamento e na implantação do projeto”
ou como “aquela <tecnologia> de que uma equipe se apropriou durante a realização de um
projeto.” Ora, com prerrogativas tão abstratas, não haveria meio mais adequado de adaptação aos
novos tempos do que a forma “projeto”, haja vista que ela é descrita como “voltada à resolução de
um problema”, tendo por características definidoras: “(1) seus objetivos são definidos em função da
solução a ser dada ao problema que deu origem ao projeto; (2) projetos têm início com a definição
do problema e terminam quando as ações previstas para resolvê-lo foram cumpridas, de acordo
com o cronograma estabelecido no planejamento; (3) a qualidade de um projeto depende do grau
de solução do problema que o originou.” Fica fácil compreender o “duplo sentido” da “tecnologia
apropriada”, que pode ser tanto a “utilizada em um projeto” como a dirigida para aqueles que “se
apropriam não somente dos aspectos puramente técnicos, mas também de conhecimentos
científicos que orientam o desenvolvimento e a utilização dessa tecnologia.” (ref. 2)
No Programa, o conceito de “tecnologia” é auto-aplicado, indício inconfessável de seu
formalismo. Nas justificativas criadas pelo “assessor” e incorporadas posteriormente pelas
atividades educativas, a “tecnologia apropriada” seria o próprio “projeto” elaborado pelos jovens
durante sua participação no Programa e cuja formação para tanto receberiam dos profissionais do
Instituto. Os recursos educativos utilizados – e que serão detalhados mais adiante – devem,
portanto, procurar “desenvolver nos participantes a capacidade de criar, planejar e implementar
um projeto, por meio de uma experiência vivida de criação, planejamento e implementação”,
sendo essa a razão para se considerar “o conceito de projeto em si como uma tecnologia
apropriada.” O “projeto” perde, assim, a sua condição de meio para tornar-se um fim em si
mesmo. Novamente, não há como deixar de reconhecer o espírito de vanguarda tardia que inspira a
concepção pedagógica de um “projeto” que ensina a fazer “projetos”. (ref. 2) Aqui, a interpretação
literal e, desse modo, bem sucedida do “aprender a aprender”89. Nesse aspecto, inevitável
89
Para uma análise contumaz do ideário do “aprender e aprender” e sua repercussão na escola pública, Ver
SOUZA (2003). Muito antes e longe daqui, as primeiras conseqüências desse aprendizado foram apreendidas
por Claude Lefort: “Quanto mais se proclama o imperativo de aprender e de obter, como se diz, a faculdade
de “aprender a aprender”, mais se mascara a questão do Sujeito e a questão da Cidade – questão da
finalidade do aprender como atividade constitutiva do ser do homem. Eis por que me arriscarei a aventar o
conceito de “ideologia”, restituindo seu primeiro sentido, que designa um modo de representação feito para
mascarar as contradições sociais e justificar uma ordem estabelecida. Equivocadamente, com efeito, existe
contentamento em fala de uma crise da educação, em imputar as causas desta crise a fatores objetivos, ou
então, em trazer a análise para o amortecimento da autoridade, para a omissão daqueles que deveriam se
ocupar em seu exercício ou para a ineficácia das instituições tradicionais. Essa linguagem parece-me
200
perguntar: de que maneira escapar do risco de transferir uma forma esvaziada, algo como um
engenheiro que sabe desenhar uma planta baixa de um edifício, mas não o reconhece quando
pronto? O que essa “tecnologia de projetos” tem a ensinar aos jovens? Questionamentos como
estes constavam no documento do “assessor” e em diversos outros do Programa, sem que tenham
gerado maiores polêmicas. Há uma espécie de consenso oculto no Programa quanto ao valor do
princípio do “aprender a aprender” ou a qualquer outra versão formalista de educação. Daí a adesão
imediata aos “conteúdos” procedurais da “tecnologia de projetos”, que, segundo o esquema
metodológico das oficinas de formação dos jovens, deve trabalhar os seguintes pontos:
“expectativas e avaliação iniciais; objetivos e metas; plano de ação; atividades preparatórias e
ações; cronograma; avaliação permanente.” A equipe de formadores é responsável pela
observação e correção de problemas pedagógicos, conforme o princípio de coerência instrumental
da “tecnologia de projetos”. Com simplicidade assertiva, o “assessor” expõe quais seriam esses
problemas e como a equipe deveria abordá-los. Muitos podem ser os obstáculos. Para enfrentá-los,
é preciso atenção e, sobretudo, o fetiche gestionário por excelência, o planejamento. Regras de
administração da expectativa e dos questionamentos – a didática das oficinas de projeto – devem
ocupar o centro da formação. O resultado educativo será alcançado quando essas regras e o
princípio cognitivo que as orienta forem subjetivados pelo jovem, no momento em que ele
incorporar a conduta motivada a “aprender a aprender”:
“Algumas questões e temas que podem nos auxiliar a definir o que é preciso
aprender para se apropriar da tecnologia de projetos.
- Como transformar expectativas em perguntas para se realizar uma boa
avaliação inicial das condições de realização de um projeto?
- Como passar das expectativas aos objetivos do projeto? O que queremos com
este projeto?
- Em um projeto, o cronograma é feito “de trás para diante”, ou seja, a primeira
data que se determina é aquela que marca o final do projeto, que é o dia de “ver a
coisa pronta”. A partir daí, volta-se no calendário até o dia presente. Essa forma
de organizar o cronograma ajuda muito a evitar um planejamento impossível de
ser realizado.
- A produção do cronograma deve ser acompanhada de decisões sobre as
atividades preparatórias e as ações. Lembrar sempre que cada uma delas precisa
pelo menos de um responsável que vai garantir que a atividade ou ação
realmente ocorra.
- A cada atividade ou ação prevista no cronograma, alguém tem, ainda, que se
responsabilizar pela avaliação de sua realização, para saber se o projeto está
realmente caminhando, ou se está “patinando sem sair do lugar”. A existência de
um coordenador é importante, entre outras coisas, para isso.” (ref.2)
inadequada, na melhor dos casos, descritiva. É mais importante, a meu ver, discernir a função do discurso
modernista sobre a educação que serve a um poder que se reforça em prol de uma crescente sujeição dos
indivíduos.” (LEFORT, 1999: 222).
201
metodologia do Programa, mas também para municiar seu mosaico discursivo. Do “small is
beautiful”90 até “tecnologia de projetos”, o percurso foi de gestação e a certidão, de nascimento,
não de cidadania. No artesanato terceiro-setorista, o enredo é sempre igual: de cacos e restos
sempre se tira algo (de preferência um projeto). A operação que toma emprestado um conceito
como peça descontextualizada para, mediante uma economia das inflações simbólicas, expropriar
sua autoria não é a mesma, no entanto, que dá identidade às montagens pós-modernas, aos artefatos
multifacetados do bricoleur. Isto porque, bem diferente dele, o gestor da juventude ganha
enunciação pelo estilo protocolar dos documentos, cuja finalidade consiste em pontilhar o
Programa em todos os seus elementos e dimensões. A descontextualização produzida não recorre à
paráfrase nem à ironia. Pelo contrário. No discurso terceiro-setorista, as fontes são silenciadas e
seus índices, apagados. Metáforas são arruinadas em um mutirão de realidade. Não há qualquer
presunção literária ou estética, como a insinuada pela bricolagem. A recepção que o texto do
Instituto espera gerar tem seu modelo na frase de efeito, no slogan. “Manifesto” sem vanguarda,
esse discurso toma por oponente a própria atualidade em sua posição sagital. Nenhuma
solidariedade política com a questão social ou com alguma problematização que coloque em
suspenso o juízo hegemônico sobre as desigualdades entre os formalmente iguais. Nenhum sujeito
social capaz de desvelar, por sua condição de classe, as formações ideológicas fincadas no atual
debate democrático sobre a pobreza.
A “ação multisetorial”
A afirmação dos mesmos objetivos por atores diferentes revela um dos princípios políticos
do Programa, a necessidade de congregar o maior número (e quanto mais diversificado melhor) de
organizações, lideranças regionais ou do “microterritório”, secretarias e órgãos do Estado, grupos e
representantes de partidos políticos do governo e da oposição. A intensidade da “articulação de
parceiros”, ainda que muitas vezes restrita à esfera discursiva, impõe um permanente agenciamento
de interesses e um acolhimento das demandas, igualmente constante e suficientemente maleável a
ponto de não melindrar uma parte na satisfação de outra. O sentido da “ação multisetorial”, uma
das mais importantes prerrogativas do Programa, distribui responsabilidades diferenciadas entre os
“parceiros”. O difícil equilíbrio decorre da habilidade de implicar a todos sem que os respectivos
interesses sejam questionados ou ameaçados, o que, como era de se esperar, não foi possível em
muitas situações. Na idéia original, o “Setor Governamental” incluía os níveis municipal e
estadual. No primeiro documento que descrevia as responsabilidades deste “parceiro”, constavam a
de “participar da operacionalização do Programa”, participando da “escolha das ONGs e na
definição dos territórios de origem dos jovens”; a oferta de bolsas e alimentação para os jovens; a
90
SCHUMACHER (1983).
202
garantia da matrícula escolar em unidades da rede de ensino regular ou supletivo; e, por fim,
caberia ao “Setor Governamental”, “no âmbito da proteção social e da educação”, “potencializar
os projetos sociais disponíveis nas instâncias governamentais para os jovens participantes do
Programa e suas famílias.”
Logo nas primeiras tratativas para o anúncio público do Programa, essas responsabilidades
tiveram que ser ponderadas. Nada, no entanto, que demonstrasse a incapacidade da “ação
multisetorial”. Nas semanas que antecederam o lançamento oficial, o “Setor Governamental” já
apresentava suas baixas. O nível municipal, em especial a Secretaria de Trabalho, que havia se
comprometido a participar do Programa com subsídios concretos, entre os quais, uma verba para o
transporte dos jovens, recuou, passando a colocar empecilhos de toda ordem até, por fim, deixar de
constar, paulatinamente, na lista das “parcerias”. Também no âmbito do Poder público do
município, a Secretaria de Assistência Social, presença importante na indicação e seleção das
ONGs, diminuiu o ritmo de seu envolvimento, questionando, inclusive, o que seria de sua
responsabilidade, o fornecimento de alimentação para os jovens durante as atividades educativas na
organização social. Após a seleção, a Secretaria condicionou esse fornecimento ao conveniamento
de cada organização (e não simples cadastramento na prefeitura), exigência que, segundo a
coordenação do Programa, teria significado uma mudança em relação ao acordo inicial. Entre as
hipóteses aventadas para a mudança de comportamento por parte das secretarias municipais, a mais
forte recaia sobre a idéia de que o governo estadual estaria tentando capitalizar politicamente em
cima do Programa. Poucos dias antes, a assessoria do partido governista havia contatado uma das
organizações sociais para registro de imagens com o suposto propósito de divulgação do Programa.
Contudo, no dia agendado, os profissionais da organização depararam-se com uma equipe de
filmagem ligada ao partido do governador, fato que, embora tenha sido contornado, exigia soluções
urgentes. Sem criar constrangimentos para os “parceiros” do “Setor Governamental”, a
coordenação do Instituto, em ação planejada com a Fundação Banco para defesa da “autonomia da
imagem” do Programa, propôs um lançamento desvinculado do evento organizado pelo Poder
público estadual para divulgação de seus programas sociais.
Assim procedendo na defesa de sua “autonomia da imagem”, o Programa garantiria, ao
mesmo tempo, o valor extraído da rede de parcerias e as condições políticas de sua
“replicabilidade”, um dos objetivos não declarados pelos documentos da fase de elaboração,
redigidos durante a negociação com o financiador, todavia muito freqüente no dia-a-dia da cúpula
composta pelos gestores do Instituto e da Fundação Banco. O risco da imagem do Programa
merecia prioridade se comparado aos problemas de execução das atividades. Incongruências que
não afetassem a exposição pública do Programa e a estabilidade das relações com os “parceiros”
não exigiam a pronta resposta como a dada contra a tentativa de cooptação pelo Governo estadual.
Diante da morosidade da Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social em
203
operacionalizar, junto à Secretaria Estadual de Transporte, a concessão de transporte público para
os jovens91, a despeito do decreto de regulamentação do Programa assinado pelo Governador, fato
que lhe garantiria essa prerrogativa, a Fundação Banco assumiu esses custos adicionais. O
descumprimento do acordo estabelecido e, sobretudo, do tipo que envolve recursos financeiros
seria, para grande parte das organizações sociais, um fator debilitante, quando não o simples
encerramento de suas atividades. É verdade que o alcance institucional proposto pelo Programa é
de difícil comparação com outras iniciativas na área da juventude. Todavia, ele apresenta um traço
fundamental do novo campo socioassistencial. Mesmo que em sua maioria resumidas à
manifestação de intenções e compromissos, as “parcerias” ganham importância porque constituem
um efeito-demonstração do consenso idealizado pelo discurso terceiro-setorista. Circunscritas pelos
“termos de cooperação técnica e financeira”, modalidade utilizada pelo Programa para todos os
atores de sua “ação multisetorial”, as “parcerias” não devem ser reguladas como uma oferta de
prestação de serviços. “Parceiros” são aqueles que firmam uma responsabilidade comum, sem a
mediação do lucro e da mercadoria, apenas o universo das convicções da virtude pública. Mas,
talvez em razão de um atavismo cultural inscrito em um ou dois de seus atores, a rede pela qual se
processa a “ação multisetorial” pode falhar, expor seus desvios e fraquezas. Daí a função dos
“termos de cooperação”, cujas cláusulas nada mais fazem do que repetir os principais conteúdos –
e as formas – dos documentos de referência, com exceção das que versam sobre a “autoria,
propriedade e divulgação”92 da produção do Programa e sobre a “desvinculação trabalhista”93, no
caso das organizações sociais locais. Em todos os “termos”, os mesmos enunciados do consenso,
vulgata em louvor à integração entre Estado e mercado: “Investir no capital social das
comunidades e fortalecer as ONGs locais são estratégias de implementação do projeto e
fundamentam–se na crença de que a gestão compartilhada é um caminho seguro para execução de
projetos sociais.” (ref.4) Muito mais do que dar garantias jurídicas, os “termos” são instrumentos
do formalismo praticado pelo Programa. O que pode um “termo de cooperação” exigir do “Setor
Governamental” a não ser a ética do cumprimento moral do que foi indicado? O descumprimento
de alguma atribuição está longe de implicar qualquer forma de responsabilização. Primeiro porque
nenhum litígio condiz com as estratégias institucionais da Fundação, Instituto e dos setores do
Poder público envolvidos no Programa; segundo porque o “termo” em nada faz lembrar um
91
Por meio do cartão de isenção de tarifa para os residentes a mais de três quilômetros e meio de distância do
local onde são desenvolvidas as atividades educativas, benefício já concedido em outros programas sociais
do Estado.
92
“Toda produção intelectual derivada do presente acordo será de propriedade comum entre as partes
quanto aos direitos patrimoniais e poderá ser divulgada, por ambas as partes, respeitada a indicação
expressa de autoria e dos parceiros financiadores, no momento da divulgação por meio de meio de
mídia escrita e eletrônica.” (ref.4)
93
“Não se estabelece, por força deste termo, qualquer vínculo empregatício entre as partes, correndo
por conta exclusiva do PARCEIRO os encargos decorrentes da legislação vigente, seja trabalhista,
previdenciária, securitária, tributária ou qualquer outra.” (ref.4)
204
instrumento contratual, com descrição detalhada das atribuições e das retificações no curso do
desenvolvimento da atividade pactuada. Nesse sentido, é justamente por extrair do Direito a forma
expressiva do seu processo de redução semântica que o Programa assume a enunciação típica do
novo campo socioassistencial. Controle com parâmetro no Direito, mas cuja intencionalidade e
efetividade não pertencem à ordem jurídico-normativa, os “termos de cooperação” designam um
modo de governar pelo discurso.
Coerente com a lógica socioassistencial de governo, para a responsável operacional pela
Fundação, a decisão pelo lançamento independente seria resultado de uma “comunicação aberta”,
com a exposição das “preocupações e inseguranças, e do ato de compartilhar o sucesso das
ações”, donde a importância da “sintonia” no “desenvolvimento de um projeto como esse, que tem
tantas articulações.” Dirigindo-se diretamente à representante do Instituto na coordenação do
Programa, solicita colaboração para que o evento não seja apenas um “oba-oba, mas em efetiva
afirmação (..) das crenças e propósitos”. (ref. 3) Com boa cobertura da grande imprensa e do
jornalismo especializado nos negócios do Terceiro Setor, o Programa foi lançado separadamente,
como previsto pelas coordenações da Fundação e do Instituto. Na ocasião, a fala do então vice-
presidente de marketing do Banco inaugurou os trabalhos e deu aos que ali estavam presentes uma
límpida demonstração das mais significativas dimensões da ideologia socioassistencial:
205
O discurso que levou às lágrimas parte do auditório não foi o do vice-presidente do Banco,
mas o depoimento de duas jovens, previamente redigido e lido na ocasião, pelo qual palavras foram
colocadas no consentimento em dar à experiência pessoal de participação no Programa a fala da
defesa das oportunidades e da responsabilidade de quem as recebe. Ora, não teria dito o vice-
presidente que os jovens “estão se dando a oportunidade de mostrar que valem tanto e de se
colocar à prova”? Por que, então, desmenti-lo se, ao invés de apenas “ajudar”, agora o financiador
quer se comprometer? No saber da sobrevida, diante do nada, migalhas são tudo. Daí a tranquila e
desconstrangida idéia de que o Programa não tem por objetivo a inserção dos jovens no mercado de
trabalho ao final da formação recebida, mas sim de que sua “condição de empregabilidade
aumente”. Uma “cidade repleta de desafios” exigiria uma “criação coletiva” capaz de “acreditar”
nos jovens, estas pessoas que “precisam ter seu potencial despertado”, que estão na “faixa” etária
na qual “a realidade é mais dramática”. Por essas boas razões, “natural” que o banco invista nesse
Programa, “criação coletiva” que “vai oferecer condições para que as pessoas possam fazer a sua
história”. No elevado discurso do altíssimo executivo, a irrigação ideológica do princípio de
responsabilização é reticular e de fluxo contínuo, desafoga os gargalos morais e providencia a
inversão política das resistências. “Desafios”, “oportunidades” e “potencialidades” são palavras-
valise da irrealidade social que se objetiva pelos excessos da linguagem. Com esse Programa, a
identidade pedagógica enfim se liberta da referência escolar. Escolas e ONGs podem fazer união,
comprometidas com o ideário da “formação integral”. É nesse movimento permanente de um
conluio sem fim que o banco cimenta seu “tijolo” na cidadania-em-obras, e “para que sirva de
referência para os outros”. Afinal de contas, “se todos se considerarem responsáveis por esses
desafios, nós podemos encontrar o caminho.”
Ao término da primeira edição do Programa, o “caminho” sofreu desvios, reformas e rotas
vicinais foram abertas para desafogar a pressão do investidor, já um tanto impaciente e desconfiado
com o impacto gerado. Categoria que costuma fazer mágica nas negociações para aprovação de um
“projeto” e estragos ao seu final, o “impacto”94 não se revelou tão contundente quanto o anunciado.
Bem verdade que os documentos do Programa foram suficientemente vagos na indicação dos
parâmetros pelos quais deveria ser feita a avaliação. Aos verbos no infinitivo que conjugam seus
objetivos não houve nenhuma medida ou valoração quantitativa correspondente, ausência curiosa
se for observado o fato de que a Fundação Banco dispunha de um economista, professor de uma
renomada universidade pública, para realização de estudo sobre o impacto do Programa95. No
94
Sobre as principais e mais disseminadas metodologias de avaliação de projetos sociais, ver BID (1995);
BROWNE. e WILDAVSKY (1983); CASTRO (1999); MARTINIC (2004); MINAYO et ali (2005).
95
Para que esse estudo fosse viabilizado, a Fundação estabeleceu como uma das condições para o repasse de
recursos para as organizações locais o levantamento de dados dos jovens no momento de entrada no
Programa. Por meio do cadastro em banco de dados do Governo do Estado, essas informações seriam
206
novo campo socioassistencial, quando os dividendos são ralos, a emissão da moeda discursiva tenta
corrigir os efeitos do mundo sobre os seus “projetos”. Não foi diferente no Instituto. O
descontentamento do banco se tornou manifesto diante da elevada taxa de evasão dos jovens
(48,9%). Sob pressão, a coordenação realizou breve investigação junto aos jovens que haviam
abandonado o Programa e entre os que permaneciam nele. No relatório apresentado ao conselho
gestor, os resultados da investigação receberam o verniz da competência e habilidade discursivas
que fazem do Instituto uma organização de ponta no Terceiro Setor. A justificativa para que cerca
de metade dos inscritos tenha abandonado o Programa foi transformada em considerações sobre os
“desafios” e as “oportunidades”. Não há muita novidade em operações como essa. No ambiente
corporativo e nos bancos escolares dos futuros administradores de empresa, a lição a se aprender é
a mesma: administrar com o foco nas “oportunidades” e saber usar o instrumento primaz dessa
forma de gestão, o “planejamento estratégico”. Planejar estrategicamente um negócio significa
definir cenários, projetar os riscos, conhecer as variáveis dependentes e independentes do seu
mercado, objetivar as probabilidades para que suas “atividades-fim” sejam orientadas com maior
previsibilidade pelas “atividades-meio”. No entanto, esse planejamento é, na “discursividade” do
Instituto, constante e acompanha todos os momentos de decisão, variando de diagnóstico – e,
portanto, eliminando sua função de redução de incerteza - a cada alteração significativa do contexto
da ação, um sacrilégio para os teólogos do marketing. A orientação pelos princípios do markentig,
que significa literalmente adequar-se às demandas do mercado, é bem diferente no novo campo
socioassistencial. Trata-se, especificamente em relação ao Instituto, de uma adaptação ao
financiador e, por ventura, a outros atores que possam, em razão do poder de influência que
possuem, colocar sob ameaça a manutenção do Programa.
Na “primeira aproximação avaliativa da implementação” da primeira edição do Programa,
as variáveis que teriam determinado a elevada taxa de evasão foram reunidas em três categorias: 1)
“conjuntura”, que agrupa “saídas motivadas por acontecimentos de vulnerabilidade impostos pela
vida urbana”; 2) “evasão”, definida pelas “saídas motivadas por questões relativas à qualificação
do processo e da relação educativa, somadas ao baixo valor da bolsa” e, por fim, 3) “escolha”,
grupo formado pelas “saídas impulsionadas por decisões dos jovens em acessar outras
experienciais ou empreender projetos pessoais.”96 Ao desmembrar dessa forma os motivos de
comparadas com as tomadas no momento de saída, segundo uma metodologia econométrica de avaliação de
“impacto”. Paralelamente, um curso de avaliação econômica de projetos sociais foi oferecido pela Fundação
Banco para as organizações locais.
96
O quadro completo das categorias apresentava um terceiro nível, mais prosaico (ref.5):
Doença da mãe
Saídas motivadas por Demanda de ampliação de renda
Conjuntura acontecimentos de Casamento
vulnerabilidade impostos pela Cuidar dos filhos
vida urbana Mudança de localidade
Situações de conflito com a lei
207
saída, a “primeira aproximação avaliativa” ameniza o peso da evasão, permitindo a tradução do
dado bruto em virtualidade. Após expor o quadro com as categorias e seus respectivos percentuais
de participação na evasão total (“conjuntura”, com 21,2%; “escolha”, 23,6% e “evasão”, 44%), a
“primeira aproximação” pondera o quinhão da “governabilidade” do Instituto, traz enfim a justiça
à avaliação do “desempenho” do Programa:
208
suas partes para que, totalizada, possa solucioná-lo. Singela, funcional e sem conflitos, essa
marcação caracteriza a estrutura mínima do discurso do Instituto. Daí o significado da
“oportunidade” detectada no setor de serviços. Obviamente, não se trata do setor em geral, mas de
um nicho específico, que reverte os fatores de “vulnerabilidade” do público em positividade
econômica, como é possível observar no documento elaborado pela superintendente que servia
como uma espécie de parecer interno para coordenação do Programa e que seria incorporado nas
apresentações ao financiador:
209
atividades contraria todo o embasamento defendido pelo Instituto até então. Isto porque as etapas
estabelecidas pela “matriz curricular” do Programa estão vinculadas à “investigação cartográfica”
e aos deslocamentos urbanos propiciados pelas oficinas, após os quais os jovens poderiam formular
com maior clareza quais as demandas da localidade onde residem e qual o “projeto” mais adequado
para atendê-las. Colocado já no início, o “projeto” força ao extremo o seu caráter abstrato,
chegando a tornar-se nada conveniente à instrumentalidade gestionária tão propalada como
conteúdo primaz da formação. De que maneira compreender uma formação que advoga a
antecipação do produto final em relação ao próprio processo de “desenvolvimento de competências
e habilidades”, cujas “aprendizagens socioeducativas” deveriam encontrar materialização na
elaboração e execução do “projeto de ação na comunidade”? As pressões do principal investidor
parecem ter alterado a percepção do tempo da superintendente que, nessa mimetização da “ânsia de
velocidade programática dos jovens”, termina por agenciar, até mesmo no âmbito das atividades de
formação, a permeabilidade e os fluxos de troca entre o campo socioassistencial e o mundo
corporativo das empresas.
A “equipe”
210
duras provas97. Ao mesmo tempo em que deveria organizar os fluxos de informação para que a
tomada de decisão fosse ágil, por outro lado, também passava rapidamente a ser indicada a
subsidiar a formação das ONGs. Rapidamente, as funções de “suporte” ganhariam novo
significado, abandonando de vez a perspectiva inicial que concentrava em um grupo a
responsabilidade por seu exercício. O “suporte” tornou-se a própria função do Instituto, exigindo a
extinção do antigo nome e o reordenamento das pessoas a partir de outra designação, ainda que as
funções tenham se mantido, fenômeno administrativo que, ao que sugerem os benefícios
experimentados na gestão dos seus recursos humanos, acompanhará o Programa enquanto ele
existir.
A alocação dos profissionais que compunham a equipe do Instituto seguia o ritmo de
mudanças do Programa. Em permanente movimento, os ajustes no interior da equipe eram
adotados conforme as facilidades demonstradas por cada membro na realização das atividades.
Assim, alguém que antes era responsável por tarefas meramente administrativas poderia exercer a
função de formador das ONGs. Para que esse tipo de deslocamento ocorresse, uma “habilidade”
escondida deveria ser detectada pela coordenação. Essa garimpagem permitia, de um lado,
promover pessoas e, do outro, tornar a equipe mais versátil. A depender do deslocamento e de sua
freqüência, o profissional poderia sofrer alterações no contrato de trabalho, com acréscimo de mais
horas e, em alguns casos, reajuste na remuneração. Como o restante do Instituto, o Programa
adotava cada vez mais o procedimento de não estabelecer vínculo trabalhista com seus
profissionais, exigindo de cada um a emissão de notas fiscais. Ou seja, não havia empregados na
equipe, mas pessoas jurídicas, clara prática de ocultação da relação de trabalho e sua presunção de
subordinação. A conversão de empregados e prestadores de serviço em empresas resultou de
intensa discussão interna no Instituto. Com o parecer de uma assessoria jurídica especializada em
questões do Terceiro Setor, que havia identificado problemas na modalidade anterior de
contratação, a coordenação do Instituto foi aconselhada a tomar providências urgentes, sob o risco
de perder na Justiça processos trabalhistas movidos por seus prestadores de serviço. A mudança da
modalidade de contratação foi implementada na mesma época da primeira edição do Programa.
Entre os profissionais da equipe, nenhum questionamento evidente, provavelmente porque o
Instituto era conhecido pela alta remuneração que oferecia se comparada com a praticada pela
maioria das organizações do campo. Independentemente desse aspecto, a transformação de
prestadores de serviço em empresas reflete bem o dinamismo e a lógica que orientam as práticas
educativas e o funcionamento global do Programa. Assim como as empresas, esses profissionais se
viam obrigados a capitalizar seus recursos, fossem eles de ordem técnica ou pessoal: uma
97
Veremos que é desse lugar que o Instituto estabiliza sua autoridade sobre as ONGs e os “parceiros”, que
justifica seu saber e isenção, mesmo em meio às freqüentes turbulências nas relações institucionais que
compõem o Programa.
211
disposição peculiar em enfrentar os “desafios” do Programa, uma vocação em mobilizar a atenção
e liderar um grupo, uma adesão mais apaixonada aos ideais e princípios da metodologia de
formação, um traquejo intelectual mais acentuado nas justificativas “teóricas” das atividades, um
molejo lingüístico em acalantar a palavra certa para o interlocutor indeciso ou simplesmente o dom
da escrita livre dos entraves e dentro dos prazos. Exceção feita a um comportamento que pudesse
ser avaliado como apático e descompromissado, os demais ganham utilidade na maquinaria do
Instituto. Todas as personalidades (ou seriam personagens?) são aceitas, passíveis de serem
enquadradas em alguma “habilidade” e “competência”. Militantes desiludidos, ex-servidores
públicos, recém-graduados, gestores contumazes, assistentes eloqüentes, todos atuavam no
Programa, em harmonia funcional. Justiça seja feita. Até mesmo o mutismo anti-social poderia ser
aproveitado se assumisse as tarefas invisíveis, como eram a manipulação paciente das planilhas
eletrônicas, a inserção e tabulação dos dados, a organização dos documentos98. O Programa era
espelho de seus objetivos, a verdadeira eficácia estava no funcionamento de seus quadros, “efeito-
demonstração” que, apesar de pecar pela auto-referência, não deixa de ser real, de portar a
“replicabilidade” tão almejada pelo Banco e pela coordenação do Instituto.
Talvez seja muito cedo para observarmos a amplitude dessa replicação, já apreendida pelo
faro aguçado dos inspetores de tendências de mercado99, que não deixou passar despercebida a
tecnologia político-organizacional que era desenvolvida, sem grandes alardes, no Terceiro Setor.
Daí o equivoco do diagnóstico, consensual nos tempos da “comunidade solidária”100, que
identificava e propagava a tese de que a administração de recursos e a “sustentabilidade”
institucional constituíam os principais problemas das organizações sociais que compunham a rede
da virtude cidadã. Com esse equívoco, o diagnóstico invertia o sinal da potencialidade do Terceiro
Setor. Incorporadas cada vez mais ao mundo empresarial, instigando a chamada “responsabilidade
social corporativa”, as práticas de controle desenvolvidas pelas organizações terceiro-setoristas,
sobretudo as de ponta e que detêm porções significativas de capital financeiro e político, passam a
transmitir ao mercado a tecnologia institucional forjada em décadas de trabalho e atuação. São
recentes as investidas mais incisivas da administração das empresas sobre os saberes
98
Aos que aceitaram essas tarefas sem reservas, muitas vezes porque preferiram o silêncio a pactuar com o
teatro do cinismo terceiro-setorista, aos que vieram a experimentar a ironia dos demais, a certeza de que não
foram capitalizados, de que seu humor esteve longe da entrega à animação voluntariosa dos “desafios” e
“oportunidades” para si a partir da “cartografia” das mazelas e desesperos dos outros.
99
O Instituto poderia transformar-se, em pouco tempo, naquilo que Fontenelle (2004) chamou de empresa
“coolhunting”, ou seja, “empresas ‘caçadoras do cool’, daquilo que pode ser gerador de tendências de
consumo. O que essas empresas buscam é fazer uma mediação ainda mais direta entre uma forma de
expressão cultural – especialmente da cultura jovem – e uma prática de consumo. Em outras palavras,
transformar cultura em mercadoria.” (Idem: 166). Obviamente, seria necessário adaptar o foco, mediar os
pólos entre uma forma profissional de consentimento moral e as situações de injustiça social. Veremos essa
mediação em funcionamento daqui a pouco.
100
Sobre a política social coordenada e engendrada pelo Programa Comunidade Solidária no mandado do
presidente Fernando Henrique Cardoso, ver Cunha (2010); SILVA et ali (2001).
212
socioassistenciais. Os processos e as formas operacionais variam e ainda não apresentam uma
fisionomia clara. A própria disputa para se fundar um campo da “responsabilidade social
empresarial” distinto do “investimento social privado”101, a esfera da tradicional filantropia,
demonstra a existência de um espaço a ser ocupado entre o mercado e o socioassistencial. A
dificuldade de mensuração do universo institucional dedicado a promover “ações de interesse
público” reforça a incerteza sobre os sentidos da disputa. Essa zona intermediária tem sido
anunciada por diversos pesquisadores, em diferentes âmbitos da teoria social, preocupados em
desvendar a atual estruturação da política, seus impasses e, principalmente, os aspectos
contraproducentes da movimentação civil da passagem dos 70 aos 80, sem precedentes na história
recente do país102. Se, à época, mostrava-se indispensável compreender a eclosão política
representada pelos movimentos sociais urbanos e pelo novo sindicalismo, oferecendo uma
interpretação que relacionasse as esferas da produção e reprodução103, hoje, em contrapartida, trata-
se de desvendar os liames que conectam o mercado aos outros campos sociais, notadamente à
política. Nenhuma surpresa parece justificável frente à constatação de que o novo campo
socioassistencial seja o mais apto a explicitar os mecanismos que transformam a pobreza e a
desigualdade social em objetos economicamente assimiláveis pelo mercado. Não seria justamente a
101
O Instituo Ethos, entidade fundada por empresários paulistas para disseminar o conceito de
“responsabilidade social empresarial” assim o define: “Responsabilidade social empresarial é a forma de
gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se
relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento sustentável da
sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade
e promovendo a redução das desigualdades sociais.” Ver, http://www1.ethos.org.br. Também proveniente da
mesma ambiência de mercado, mas sem a conotação endógena de mudança cultural dos negócios do Ethos, o
GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), criado, em 1995, pela reunião de 25 organizações ligadas
à filantropia empresarial, define o “investimento social privado”, natureza de sua ação, como “o repasse
voluntário de recursos privados de forma planejada, monitorada e sistemática para projetos sociais,
ambientais e culturais de interesse público. Incluem-se neste universo as ações sociais protagonizadas por
empresas, fundações e institutos de origem empresarial ou instituídos por famílias, comunidades ou
indivíduos. Os elementos fundamentais - intrínsecos ao conceito de investimento social privado – que
diferenciam essa prática das ações assistencialistas são:
• preocupação com planejamento, monitoramento e avaliação dos projetos;
• estratégia voltada para resultados sustentáveis de impacto e transformação social;
• envolvimento da comunidade no desenvolvimento da ação.
O Investimento Social Privado pode ser alavancado por meio de incentivos fiscais concedidos pelo poder
público e também pela alocação de recursos não-financeiros e intangíveis.” Ver http://site.gife.org.br.
102
Para captar o diapasão das mudanças e o que está em jogo, ver CABANES e TELLES (2006).
103
De modo preciso, Kowarick (1994) indaga, na introdução aos ensaios escritos no calor da hora por então
jovens sociólogos de São Paulo, o sentido das movimentações sociais da passagem dos 70 aos 80: “Essa
temática <greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo em 1980> abre luz para outra questão
discutida em vários ensaios: a ligação entre as reivindicações do mundo do trabalho com aquelas que dizem
respeito às melhorias urbanas. Esta separação decorre do fato de serem raros os movimentos que
conseguem articular, de modo amplo e permanente, demandas originárias do local de moradia e do
trabalho. Mas o simples fato de haver como regra geral esta segmentação de reivindicações já levanta o
crucial problema de se perguntar: por que trabalhadores explorados, que são também moradores
espoliados, não se unem num esforço para atacar de forma integrada as várias facetas da exclusão sócio-
econômica?” (Idem: 47). Inevitável não comparar esses estudos com os desenvolvidos e coordenados hoje
pelos antigos pesquisadores do grupo formado por Kowarick. Para iniciar essa comparação, ver CABANES e
TELLES (2006).
213
emergência da mercadoria o fenômeno aí explicitado, a “acumulação primitiva” em termos
contemporâneos?
A definição das regiões de atuação da “edição piloto”104 do Programa foi justificada pelo
linguajar característico do Terceiro Setor. Com expressões sempre bem situadas na argumentação
coalhada de referências, uma decisão com pretensões técnicas pode ser enunciada. O local da
intervenção, como já dito, é o “microterritório”, situado em uma circunscrição mais ampla, as
“Subprefeituras” e seus “distritos”, sem perder de vista, no entanto, que “o contexto das ações
iniciais é a cidade de São Paulo”. Faltou mencionar que nessa escala deslocante uma variável era
fixa porque não poderia ser menosprezada: a organização social do instituto empresarial que,
embora minoritário, respondia, ao lado do banco, pelas fontes diretas de financiamento. Localizada
a sudoeste do município, a ONG empresarial não pertence às regiões escolhidas, mas foi
incorporada sem transtornos e com as mesmas alegações pelos gestores do Programa. Importante
destacar, para que nenhuma suspeita venha sobrevoar as boas intenções depositadas por todos, que
as regiões foram definidas “devido às suas peculiaridades”, quais sejam, aquelas expressas pelo
lugar que ocupam na tabela do Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) criado pela Fundação
SEADE. A escolha das “ONGs executoras” contou com os auspícios da Secretaria Municipal de
Assistência Social. Pela consulta ao banco de dados da Secretaria, a equipe do Instituto teve acesso
a informações sobre o cadastro e conveniamento das organizações locais com a Prefeitura. Não que
esse tenha sido o critério de corte da seleção. “Executoras” não conveniadas foram selecionadas
posteriormente. Por não deter um saber especializado sobre regiões e em razão da ausência de
tradição em trabalhos “comunitários”, o Instituto desconhecia o trabalho desenvolvido pelas
instituições socioassistenciais locais e, conseqüentemente, não estava em condições de indicar
quais deveriam compor o Programa, ao menos não tecnicamente, como deseja comunicar seu
discurso. Esse caráter tateante transparece nos documentos de referência. Uma “breve pesquisa
realizada nos arquivos da Folha de São Paulo” identificou nove organizações com o perfil do
Programa na região sul e quatro na região norte. O número de notícias veiculadas pelo jornal foi o
parâmetro utilizado para a determinação preliminar das estratégias focalizadas. Em relação à região
norte, os “arquivos” indicam que “foram noticiadas apenas quatro ações de intervenções junto a
adolescentes e jovens”. Portanto, para essa região, “a força da ação estará na mobilização de
esforços e investimentos para realizar a formação dos jovens.” Em contrapartida, na zona sul, os
104
Foi dessa forma que o Programa passou a ser chamado após as críticas e ameaças de fechamento. Como
justificativa amenizadora dos fracassos, tratava-se de uma edição “piloto” e, portanto, isenta de
responsabilidades em relação ao “impacto”.
214
“arquivos” registram uma região onde não se observa a mesma baixa “institucionalidade” -
palavra-valise muito utilizada pela “equipe”- verificada nas organizações da zona norte. Daí por
que “o investimento da ação estará na articulação” das ONGs e não diretamente no público. São
esses os dois “contextos de implementação” nos quais o Programa “possibilitará ao jovem
estabelecer relações, além de compreender e construir projetos de vida e de pertencimento ao
território urbano”, por meio da metodologia educativa do Instituto, que trata de “envolver os
jovens num exercício de rever a história, o cotidiano, o universo cultural, o trabalho, as condições
de vida e a trama de relações entre os moradores a partir do seu próprio microterritório.” (ref.1)
Definidas as regiões e as estratégias locais do Programa, a composição das organizações
dependia de uma avaliação mais aprofundada do que a consulta aos “arquivos” de um periódico. As
informações fornecidas pela Secretaria de Assistência Social cumpriam parcialmente a função,
limitando-se a fornecer uma lista mais extensa de instituições atuantes nos distritos das zonas norte
e sul. A partir dela, convites para reunião de apresentação do Programa foram encaminhados para
os representantes de algumas organizações, ocasião em que seriam acertadas as primeiras “visitas
técnicas” da “equipe” aos que manifestaram interesse em participar. Uma semana depois, o
Instituto promoveria quinze “visitas”, cada qual sob a responsabilidade de uma “dupla” de
profissionais da “equipe”. Na linha dos que professam os melhores manuais de avaliação de
projetos sociais, o Instituto conciliava os resultados quantitativos da aplicação de um indicador
estatístico (IVJ) com a utilização, nas “visitas”, de um recurso radicalmente qualitativo. Seu roteiro
recebia batismo coerente: “registro das impressões”. Nas “visitas”, a dicção impressionista da
“dupla” registrava as “potencialidades” das ONGs. Instrumento revelador de um estilo pueril105, o
roteiro para o “registro das impressões” estimulava a linguagem alusiva e sentimental no lugar de
um texto descritivo, mantendo, mesmo assim, o propósito de subsidiar a seleção das “executoras”
pela coordenação do Programa:
“1. O que poderia ser descrito sobre a primeira impressão que a visita lhe
causou?
Fale sobre:
• Como fomos acolhidos.
• Algo que tenha lhe chamado a atenção: uma cena, uma frase, um olhar.
3. O que poderia ser descrito olhando para a atividade que estava sendo
desenvolvida?
Fale sobre:
• A relação com o educador.
• O envolvimento do jovem na atividade desenvolvida.
105
Puerilidade que revela também o sentido e a função das oficinas. Veremos isso mais para frente.
215
• As características da atividade: produção individual ou em grupo,
material utilizado etc.
Os “registros de impressões” não são fatos insignificantes. Eles materializam o regime lúdico
pelo qual o controle pode ser exercido de forma despretensiosa e pedagógica. Se, no IVJ, as
“peculiaridades” das regiões se resumiam à reunião de variáveis retiradas das estatísticas públicas,
nos “registros”, por sua vez, é a subjetividade do relato que assume o primeiro plano. A exposição
pessoal da “dupla” procede a uma passagem da impressão à avaliação, da descrição quase lírica ao
normativo sem qualquer problematização do caráter motivado do relato e da situação relatada.
Trata-se, aqui, de uma clara prática de “ocultação da regra” (SOUZA, 2008), vigente já na etapa
de recrutamento das instituições. Seja por meio da “cena”, “olhar” ou do modo como foram
“acolhidos”, seja do “sorriso”, “felicidade” ou do “contato” com a dupla, tudo torna-se indício da
instituição a ser inspecionada. Suas características físicas e de infraestrutura, indicadores objetivos
de “adequação do espaço para a realização das atividades”, são secundárias perto da importância
dada à manifestação idiossincrática do relato, este muito mais autorizado em detectar as
“potencialidades” da ONG do que a aplicação impessoal de um questionário ou uma avaliação
metodologicamente conduzida. Não sem motivo, a única variável categórica do roteiro, a
visibilidade da produção dos jovens, é facilmente assimilada por essa propensão impressionista de
efeitos avaliativos. “Duplas” mais experientes ou voluntariosas atentam mais fielmente ao roteiro,
ordenando cada momento em uma seqüência linear, que parte do acolhimento recebido até a
descrição da “organização do espaço” da instituição. Uma evidente tendência em idealizar o
público e a ONG, os atores e a cena, atravessa o relato de ponta a ponta. Orientada pela economia
moral do Terceiro Setor, esse relato transfere uma carga emocional da “dupla” ao que é relatado. A
unidade criada por essa transferência constitui o produto da “visita”. Traduzido pela moralização da
prática socioassistencial, um consentimento em relação às desigualdades vem se juntar à isenção
técnica da profissão. O pressuposto dessa operação pode ser observado na equação que se deseja
encontrar, sintetizada pelo critério de que uma “executora” deve dar livre trânsito aos jovens, estes
seres, por definição, comunicativos e em constante movimentação; deve possuir, portanto, as
mesmas características atribuídas ao seu público:
216
jovens, a maioria delas relacionadas a esportes (fotos de campeonatos, de jogos
na própria Associação etc.).
(...)
Conversamos rapidamente com a monitora do programa “Começar de Novo”.
Havia apenas alguns alunos, adultos, que ficaram um pouco intimidados com
nossa presença. Depois conhecemos a sala do “Telecentro” e onde acontecem os
cursos do programa “Bolsa-escola”. Pudemos conversar com a monitora deste
programa e visualizar os jovens que estavam participando do módulo
introdutório de cidadania. Pelo pouco que foi possível perceber, apesar da
timidez de alguns, eles pareciam com bastante energia e foram muito
simpáticos. Estavam interagindo em atividade de conhecimento de grupo, de
socialização. O grupo começara há pouco tempo no projeto, portanto, a timidez
de alguns era bastante compreensível. A educadora nos apareceu muito
entrosada com o grupo, fazendo algumas brincadeiras para descontrair os jovens
em nossa rápida visita. Os jovens permitiram que tirássemos algumas fotos e
então nos despedimos.
(...)
Como já descrito anteriormente, estivemos rapidamente nas salas onde se
realizavam atividades com os jovens. Na sala do programa “Bolsa-escola” os
jovens estavam trabalhando coletivamente em atividades de conhecimento de
grupo e sensibilização. Pareciam envolvidos e o clima era agradável, sereno,
respeitoso. Na ONG B. nos pareceu, à primeira vista, que as relações humanas
se pautam pelo reconhecimento no outro: as pessoas se conhecem, se
cumprimentam e se chamam pelo nome ou apelido, estabelecem laços de
identidade de grupo, de pertencimento. Os jovens se reconhecem nas fotos
expostas em toda a associação, existe a sala dos troféus dos campeonatos,
enfim, conquistas da comunidade como a própria associação.” (ref.8)
217
A celebração do encontro entre o setor financeiro e os baixios urbanos, mobilizados pela
economia moral do Terceiro Setor, também faz pacto nas edificações, modestas que sejam, das
“executoras”. Mas, no Programa, sempre importará mais a colaboração dos nativos. A percepção
de sua natureza servil deve aparecer nas fotos concedidas. Daí o julgamento de existência extraído
da expressividade do público atendido, objetivada – e devidamente incluída no “registro” - em
cartazes fixados nas paredes como uma espécie de reclame comunitário. A visibilidade dos jovens
torna-se, nesse reconhecimento, paisagem da pactuação política engendrada pelos mercadores da
boa esperança, donde a possibilidade de julgar pela existência, de modo inquestionável e sensível,
dos valores virtuosos do encontro entre extremos da estrutura social, verdadeiro contrato social que
se apresenta pelo lirismo sincero de um “olhar”, um “sorriso”, da “felicidade”. A cada nova visita,
o mesmo roteiro e a mesma conclusão. A produtividade do discurso requer a matéria bruta. Suas
imagens não nascem de enteléquias puras, importadas diretamente do pensamento, não se apóiam
sobre outras representações, à maneira de um palimpsesto infinito. É preciso um deparar-se
sensível, uma “experiência” que só o “contato” pode dar. As “visitas” são, antes de qualquer coisa,
viagens pedagógicas ao centro da ideologia, batismo, treinamento ou reciclagem profissional da
“equipe”– a depender do tempo de cada um no novo campo socioassistencial. Por isso não há,
nessa viagem, passagem para a consciência. É o mundo periférico da pobreza e suas desigualdades,
os objetos rudimentares de sua subordinação social, que são visados e que se faz necessário
adentrar:
218
respondiam com naturalidade. A impressão é que as pessoas realmente se
conhecem, se falam, que há uma integração e uma preocupação em que as
relações ali sejam de acolhimento, de seriedade, mas não uma seriedade sisuda,
fria, mas calorosa e alegre. Vimos os jovens na oficina de informática e também
nas oficinas de reciclagem de papel e de marcenaria (que se divide em duas
partes: pedagógica e de produção), crianças nas creches e, também, outros
jovens jogando basquete no espaço livre onde se localiza o Centro Cultural.
(...)
Passamos rapidamente por todas as oficinas, a relação que foi possível
visualizar entre os jovens e os educadores foi de perfeita harmonia. Os
educadores, assim como a maioria das pessoas que trabalham na ONG D. são
moradores da comunidade. (...) Todos os cursos oferecidos pela ONG D. são
gratuitos. Na informática, os jovens aprendem a operar todo o pacote Windows
e também Internet. A sala estava cheia, praticamente todos os computadores
ocupados. As professoras nos acolheram com gentileza. Passamos os olhos por
tudo e saímos depressa, para não atrapalharmos mais a atividade. Depois
visitamos a sala de reciclagem de papel onde os jovens confeccionavam porta-
retratos com papel reciclado por eles. O educador foi extremamente simpático,
nos mostrou os produtos e a sala, que era ampla, agradável. Os jovens
trabalhavam. Pedimos licença para uma foto, eles concordaram e sorriram para
a nossa câmera.
(...)
Devido ao tamanho da ONG D. olhamos tudo, mas de maneira rápida. O espaço
físico, entre móveis e edificações é muito simples. Muitos dos utensílios e
móveis são feitos de materiais reutilizados, reciclados, doados, etc. Parece que
tudo ali é muito bem aproveitado: não percebemos nada exagerado, ostensivo
ou supérfluo. Vimos, em alguns corredores, quadros pintados pelas crianças do
centro terapêutico. Tudo na ONG D. foi construído pelos moradores e nisso
incluem-se os jovens. Também na padaria, nos cursos de padaria, nas oficinas,
os jovens produzem e em toda parte é visível o resultado desse trabalho.” (ref.9)
De que maneira resistir ao tom de diário antropológico de campo? Como negar a visibilidade
de grupos freqüentemente alijados de direitos e dignidade, alcançada pelo trabalho histórico da
ONG visitada? “Portadores de necessidades especiais” desfilam pelas ruas do entorno sob o olhar
festivo dos vizinhos e familiares. Que “cena” pode ser mais eloqüente do reconhecimento social
dos apartados, do “clima de respeito e amabilidade entre todos”? Não teria uma das coordenadoras
de área do Instituto tentado explicar a razão de ser do Programa a partir da perspectiva do sujeito?
Em poucas palavras, ela reuniu o repertório terminológico desenvolvido até então e deu a ele o tom
cerimonioso de uma urgência social de reconhecimento do sujeito. “Capacidades desejantes”
vinculadas a “potencialidades imanentes”, eis a fórmula da moralidade terceiro-setorista em estado
de cartografia: “É urgente reconhecer as potencialidades imanentes nas trajetórias e territórios de
todos que buscam realizar suas capacidades desejantes de desenvolvimento humano. Reconhecer
potencialidades para ativá-las em processos de formação política e de construção coletiva de
conhecimentos sobre as realidades locais buscando enfrentar as transformações em curso”106. Que
106
Reservada para ser a epigrafe do relatório de “sistematização” da “edição-piloto” do Programa, essa
chamada aos princípios é sintomática porque revela a construção autoral do discurso veiculado pelo
Programa. Subtraída do material preparado pelos urbanistas contratados como “assessores tecnológicos” para
estruturarem as “oficinas de investigação cartográfica”, essa passagem foi incluída em um texto de
divulgação institucional, assinado pelas pessoas que então ocupavam funções de coordenação no Instituto.
219
sejam, portanto, os jovens os primeiros e os últimos desse trajeto que liga a potência ao ato. Na
língua do Programa, quem pratica a gramática deve servir-se dela, para a vida. E tanto melhor será
se a prática for iniciada nas “oficinas”, lugar do consentimento politicamente responsável. A letra
de seu aprendizado pode prescindir da música, mas o compasso será de espera, sempre.
“O Programa
(...)
A Favela:
A princípio parece um lugar sujo, onde todos são feios e mal educados.
É só aparência, condições precárias./
Mas favela é um lugar onde o que se planta nasce, onde todas as
pessoas se conhecem, se falam, são amigos.
Parece difícil acreditar, mas se você não acredita, apareça para conhecer
algumas dessas pessoas.
As aparências enganam...
Se permitam: Acreditar/
na Juventude da favela
Nossa turma é ótima e interessante, por aqui podemos conhecer um
pessoal que nem você, nem nós,
fazíamos idéia...
E conhecer gente nova é bastante legal! /
A galera é legal! /
O Jovem não pensa só em sexo, drogas, rap e rock’n roll.
O jovem pensa em mudar o mundo, seja de um jeito ou de outro. / Ainda mais
quando esse jovem tem uma oportunidade, oportunidade essa / que encontramos
em um projeto completamente diferente. / Diferente porque nele: podemos
opinar, concordar ou discordar, expressar nossas idéias. /
Oportunidade, algo difícil de se obter... /
Será que a palavra esperança existe? Esperança...
Uma palavra tão bonita e tão pouco vivida!/ Será que podemos chamar
o amanhã de esperança para nosso futuro? /
Projetos são criados, mas muitos ficam no papel, promessas são feitas,
mas ficam suspensas no ar...
Temos:
A ‘esperança’ neste projeto... para uma vida melhor...
Que possamos cumprir com nosso desempenho
um futuro melhor para nossa nação./
O que não depende somente de projetos....
(Mesmo que sejam essenciais)
Mas depende de nossa força de vontade,
de acima de tudo...
Acreditarmos em nossa estrela/
Na ‘Esperança para viver’/
Achamos que:
‘o jovem do Programa tem tudo para ter tudo...’
Jovens conquistando seus objetivos, / jovens não fugindo da realidade,
jovens que dedicam seu tempo para
discutirem... opinarem... conviverem... tudo em comunidade;
Não há conquista sem luta, e sem união
e os jovens do Programa estão lutando para conquistar algo que não
será pouca coisa... /
Embora constasse na bibliografia do texto, o material, do qual este e demais trechos foram extraídos, foi
reproduzido palavra por palavra, sem aspas e identificação de autoria, um descuido estranho em se tratando
de uma organização que se vê como referência na área educacional.
220
...Iremos muito além.
Cada jovem respeitando o outro, o jeito de cada um
se expressar, a sua opinião, o jeito de ser./
Mantendo a humildade./
O Programa:
Um projeto grande, não só por seus 10 meses, e sim por uma
eternidade... / Programa crescendo dia após dia...
Mesmo que muitos não acreditem no seu potencial, não se achem
capazes...
Programa crescendo dia após dia...
Mesmo que muitos discriminem, aí estão, aí estamos./
As nossas expectativas são grandes...
Acreditamos em um futuro promissor, para nossa comunidade, para a
juventude, para o mundo./ Apostamos no crescimento pessoal, intelectual,
profissional e social./
Mesmo que muitos duvidem, aí estão, aí estamos./
Vivemos uma nova era...
E já iniciam as mudanças em alguns de nós...
O respeito ao próximo está sendo aplicado, o nível de conhecimento já
está sendo ampliado, o interesse no estudo aumentado, já começamos a pensar
melhor e planejar o futuro. /
Só em pensar...
Ou melhor, em colocar a mão na massa...
Pensar e Mudar
nossa comunidade, é muito bom /
Isso nos faz sentir úteis. Pelo menos essa sociedade careta jamais
poderá dizer que não fizemos nada. /
Saberemos que sabemos
lutar por melhores condições de vida,
melhorar a qualidade de vida./
Não temos chefe nesse curso,
é sempre uma conversa diferente,
...muito da vida... do que é errado, do que é certo.
Muito para ajudar...
para pensar e refletir,
Motivar,/ reconhecer,/ valorizar,/ sonhar/ e realizar.” (ref.10)
Após o período de “visitas”, dez ONGs foram selecionadas e, já nas semanas seguintes,
participariam do “workshop de apresentação das oficinas”. Segundo o planejamento da
coordenação, o workshop deveria funcionar como uma “vitrine das tecnologias” a serem
oferecidas pelos “assessores” para as, a partir de agora, “executoras” do Programa. Expostas as
alternativas, era de se presumir que os representantes das “executoras” fossem capazes de, junto
com o Instituto, decidirem quais “tecnologias” seriam mais adequadas para a região e o contexto
específico de atuação da ONG. Mas intenções coesas no pensamento costumam não resistir ao
cautério da realidade. No caso do Programa, era comum a realidade promover o trabalho de gestão
ao confinamento de seus planejamentos e protocolos. A complexidade envolvida no Programa,
motivo de orgulho da coordenação, ganhou novo sentido com o início das atividades. A “ação
multisetorial” não se revelou tão fácil de controlar. Insígnias institucionais por si só não garantem o
221
valor agregado ao marketing social do Programa. Elas cobram a contrapartida de um mínimo de
realização do que foi prometido, sem o qual o arcabouço simbólico construído volta-se contra os
seus proponentes, um risco que o banco não estava – e nunca esteve – disposto a assumir. Como já
mencionado, a apropriação da imagem e a alta taxa de evasão dos jovens constituíam o cerne desse
risco. O primeiro fator de risco foi prontamente afastado pela antecipação do lançamento oficial
das atividades. Quanto ao segundo, a “expertise” do Instituto de manejo da linguagem no registro
moral e político do Terceiro Setor foi acionada, respondendo com eficácia, após o recurso de outros
subterfúgios complementares107, às ameaças de fechamento do Programa.
A consistência do atrelamento entre os “parceiros” poderia ser meramente discursiva, não
haveria problemas. Nenhum gestor seria pressionado a dar explicações quanto a isso. Autorizar a
insígnia institucional junto à imagem do Programa significava partilhar o acordo subjacente à
“ação multisetorial”. Isto não quer dizer que, independentemente do desenvolvimento das
atividades educativas, a imagem do Programa e a conjugação dos interesses permaneceriam
incólumes. Na esfera concreta do trabalho, os personagens, embora relativamente enquadrados nos
papéis que lhes são destinados, são reais e podem, em função de “externalidades” outras, pleitear o
que não consta ou não deveria constar na “cooperação técnica”. Por isso a permanente mensagem,
emitida pela “equipe” do Instituto, de que esse Programa seria diferente dos demais porque todos
os seus atores mantêm entre si laços de reciprocidade, pelos quais cada um deve ser responsável.
Na fase de desenho do Programa, a superintendente do Instituto havia manifestado sua preocupação
quanto a algumas partes vulneráveis, as ONGs da periferia urbana, não à toa tradicionalmente
dependentes de convênios com o Poder público e do financiamento privado, instituições que, por
sua natureza ainda anacrônica, não apresentam a “sustentabilidade” devida no quadro modernizante
do Terceiro Setor. Como evitar que elas mantivessem no Programa um engajamento simulado,
meramente formal, o mesmo que costumavam estabelecer em seus convênios com a Prefeitura e o
Governo estadual? Os repasses de recursos financeiros por meio da porosa regulação jurídica dos
“termos de cooperação técnica e financeira” foram uma das estratégias adotadas para definir o
trabalho das ONGs de acordo com os princípios normativos do novo campo socioassistencial. Os
“termos de cooperação” moralizam a responsabilidade que, em um convênio, seria juridicamente
circunscrita. A passagem da regulação jurídica para o controle discursivo não configura um
fenômeno de observação fácil. A generalização do modo de governo centrado na linguagem
necessita manter a racionalidade do Direito, mas sem dispor de sua institucionalidade. Nesse
sentido, nunca houve tanto reconhecimento social por meio da inflação jurídica dos direitos
humanos (OTA, 2005). O segmento juvenil, embora em considerável atraso se comparado ao
107
Reza a história, contada pelos membros da “equipe”, de que a superintendente do Instituto foi levada a
fazer, ela mesma e não a coordenadora do Programa, uma apresentação para a Fundação Banco em razão de
seus laços de amizade com uma das representantes do financiador, presente na reunião. Laços cultivados em
viagens conjuntas ao estrangeiro, com estilo e para poucos.
222
contexto dos direitos de crianças e adolescentes, é parte subordinada dessa generalização. Aqui, no
capitalismo da “vanguarda do atraso” (OLIVEIRA, 2000), se efetivou um “Direito sem justiça”
(EWALD, 2000), anunciado pelos pesquisadores da genealogia francesa da “governamentalidade”
como a realização limite da tendência regressiva do Welfare State. A forma jurídica desliza
livremente por diferentes extensões comunitárias, contemplando inúmeras parcelas da sociedade,
antes sobrepujadas pela seletividade legislativa de inegável recorte classista. Entretanto, assim o faz
sem a garantia de efetivação dos direitos. É esse o cenário político a partir do qual o novo campo
socioassistencial acolhe e impulsiona iniciativas como a da Fundação Banco. Que seus recursos
humanos sejam sua imagem e semelhança, nenhuma surpresa, portanto. Daí a possível formação
profissional de um consentimento político. Possibilidade não apenas concretizada no Programa,
como também incitada inovadoramente pelo aporte recebido da tecnologia de gestão de pessoas
que ele desenvolveu durante as oficinas destinadas aos educadores e dirigentes das “executoras”.
A “equipe” foi notável na formação dos quadros das ONGs. Não em seus objetivos gerais,
fartamente indicados nos documentos do Programa. Foram suas finalidades de curto prazo as
alcançadas, metas pedagógicas de uma inconfessável metodologia de adestramento político. Por
intermédio dos “encontros de formação”, o Instituto, sob o pretexto do “alinhamento conceitual e
de princípios” do Programa, mobilizava os profissionais das “executoras” na direção de uma
autêntica “experimentação” do consentimento político, mas não mais daquele resultante da
amortização do conflito social pela contrapartida do bem-estar coletivo regulado pelo Estado ou
das benesses pontuais promovidas pelas classes abastadas. É novo esse consentimento porque ele
não firma, necessariamente, sua fé junto aos valores da integração social defendida pelo Terceiro
Setor e tampouco é extorquido em sua consciência de classe. Desvinculado da crença e despojado
da razão, trata-se de um consentir performático, encenado às claras para que a adesão aos jargões e
lugares comuns do discurso do Instituto seja a mais explícita possível. Quanto mais irreais em sua
pretensão e rudimentares em sua formulação, mais efetivos eles se tornam para a expressão dessa
subordinação voluntariosa e motivada. Os “encontros de formação” dos profissionais das
“executoras” manifestam a suma prática desse dispositivo.
Os “encontros” possuíam uma única estrutura, com variações temáticas conforme a etapa em
que se encontravam as atividades educativas. No primeiro de uma série que acompanhou todos os
momentos do Programa, o objetivo era apresentar aos dirigentes e educadores das “executoras”
selecionadas “os conceitos da ação socioeducativa” e os princípios que definem a metodologia
adotada. Esse “alinhamento conceitual” transcorreu pelo período de três dias consecutivos, dois
períodos cada, em um hotel no centro da capital paulista, sem o luxo visto no lançamento na
Avenida Paulista, mas em condições de surpreender os menos afeitos aos eventos do porte da
223
Fundação Banco108. O início dos trabalhos requeria uma abertura condizente com a importância
daquele primeiro “encontro”, donde a fala de abertura ser concedida à superintendente, que versou
sobre a “condição da juventude” no país, apresentando dados sobre o desemprego juvenil, as taxas
de escolaridade por faixa etária e sua relação com os rendimentos, entre outras estatísticas citadas
com o propósito de tematizar a situação alarmante dos jovens em geral e os dos distritos em que o
Programa atuava, em particular. As “vulnerabilidades” juvenis transporiam a determinação de
classe, específicas que são, donde a importância de princípios diferenciados e heterogêneos para o
tratamento dessa parcela da população. A exposição concluía em favor desses princípios, que eram
os mesmos assumidos pelo discurso oficial do Programa:
108
O coordenador de uma das ONGs da zona norte descreveu sua surpresa:
“Pesquisador: O que você acha do Programa?
- Eu sou meio suspeito para falar do Programa, porque é um projeto que a gente começou. Quando a gente
começou, quando a gente entrou na sala do hotel e viu aquele monte de gente graduada lá, puts, ferrou!
Acho que babou o sistema.
Pesquisador: Graduada do quê? Educadores?
- É, educadores e coordenadores, a maioria tem faculdade. Faculdade é uma coisa que assusta, dá um
“tcham”. De repente, quando eu vi aquilo lá e tal, eu falei: “caramba, ferrou, não vou dar conta.” E foi
totalmente ao contrário, contou mais a experiência que a gente teve dentro da comunidade, o trabalho que a
gente teve dentro da comunidade. O Programa para mim, agora, é a coisa principal da minha vida. Gosto
muito do Programa. Faço tudo para que ele dê certo, entendeu? Eu ganhei muito como Programa. Espero
que o Programa tenha ganhado muito comigo também.” Antes que a primeira edição terminasse, esse
coordenador já estava desempregado, demitido por razões desconhecidas, mas comentadas entre os seus
pares de Programa. Ele não se adequara bem ao perfil exigido para as boas relações entre a ONG e o
Instituto.
224
terceiro-setorista. O princípio de que “a juventude, como segmento da população, demanda ações
articuladas entre as várias políticas” serve como justificativa para a “ação multisetorial” e a rede
de “parcerias” do Programa; o de que “os jovens compõem diversos grupos (juventudes),
caracterizados por suas condições de vida, seus interesses e escolhas” para o desenho
diversificado das oficinas; “a ação junto aos jovens deve fortalecer o sentido de pertencimento ao
mundo público e de compromisso com o bem coletivo”, para outro princípio, aquele que professa
que “a ação junto aos jovens deve estar articulada a um projeto de desenvolvimento sustentável da
cidade”, sendo este, na verdade, o próprio objetivo dos “projetos de intervenção” a serem
elaborados pelos grupos ao final do ciclo de formação do Programa. Princípios transformados em
objetivos, metas em meios, fins em propedêuticas caracterizam a reversibilidade discursiva dos
mecanismos de controle engendrados e exercidos no novo campo socioassistencial. A indicação de
que se trata, antes, de um campo vicário pode ser apreendida nos tópicos diagnóstico-propositivos
da superintendente, pelo princípio de que “os centros urbanos concentram oportunidades e
desafios peculiares que precisam compor o processo de inclusão dos jovens.” Ora, esse “processo”
não seria a própria realização da capacidade dos jovens de “formular questões significativas,
propor ações relevantes e contribuir para o bem comum”? Os “projetos de intervenção” não
responderiam às “oportunidades” existentes nos “centros urbanos”, após o “aprendizado, a
experimentação e a produção” proporcionados pelas “oficinas tecnológicas”? Tudo isso não
deveria comprovar a validade cidadã da metodologia e discurso do Instituto e da Fundação Banco?
Após a determinação da realidade dos jovens no Brasil pela autoridade da “professora
superintendente”, o protocolo do “encontro” previa a apresentação do Programa e de sua “equipe”
pela coordenadora do Instituto. Os educadores e dirigentes das ONGs também se apresentaram
logo em seguida, dentro da mesma formalidade adotada até então. O clima não poderia continuar a
ser esse, os profissionais não estavam lá para “vivenciar” os ares de cerimônia institucional, uma
interrupção pedagógica se fazia necessária para a continuidade do “encontro”. Obviamente, uma
interrupção prevista e planejada. Para que o registro passasse a ser coloquial, mais íntimo e pessoal,
uma “dinâmica” foi proposta por um dos membros da “equipe”. Reuniram-se todos no centro do
salão de convenções do hotel, formando uma “fila de quadrilha” e em grupos separados por faixa
etária. Assim dispostos, cumprimentaram-se de acordo com as regras de um jogo de criança:
225
Desfeita a “fila” e os grupos funcionais de “educadores”, “dirigentes” e “coordenadores”, o
mestre das cerimônias lúdicas reagrupou aleatoriamente os participantes, solicitando de cada um ali
presente, uma palavra ou uma frase breve sobre suas expectativas em relação ao Programa. Nessa
“dinâmica”, as tarjetas coloridas, famigerado recurso pedagógico do Terceiro Setor, não foram
utilizadas. Rapidamente, cada participante conjugou, muitas vezes no infinitivo, o verbo de sua
expectativa em pronúncia para o centro do círculo e para todos a sua volta: “aproximar”, “construir
junto”, “ampliar”, “conhecer”, “libertar”, “ter mais informação”. Há quem tenha participado da
“dinâmica” e, no foro pessoal, tenha condenado essa tecnologia do consentir em cena, mas, entre
um sorriso constrangido e outro, manteve-se no jogo109. A puerilidade do “encontro” espanta os
incautos. Seria estranho se fosse diferente. Tanto como a “oficina” com os jovens, o “encontro”
funciona do mesmo modo lúdico, produz o mesmo tipo de acordo prático, uma intersubjetividade
ad hoc. Os concernidos na performance não têm em mente um interesse camuflado, ao qual devem
prestar toda forma de assistência e estratégia. A comunicação entre os pares ocorre enquanto esse
ato grupal vigorar, sem o pressuposto da objetivação de um “terceiro”. Por isso falamos em acordo
e consentimento entre sujeitos com capacidades comunicativas. Mas, importante lembrar sempre,
capacidades que só existem em ato partilhado com o “outro”, acordo intersubjetivo que tem por
fundamento não um social transcendental e sim um exercício específico de linguagem. Para
insistirmos um pouco mais na singularidade desse exercício, diríamos que ele constitui uma pura
prática gramatical capaz de mobilizar o sujeito em conformidade com o seu interlocutor-parceiro.
O acordo intersubjetivo também se revelou meta da aplicação de um instrumento de
constituição da audição pela participação grupal na discussão de temas sociais relacionados
diretamente com o Programa. O conteúdo lúdico do “encontro” passou da “dinâmica” para a
palestra. Delegada a uma especialista da área de educação, seu tema versava sobre a “importância
da escolarização na vida dos jovens”. Como uma espécie de “aquecimento” dentro da exposição, a
palestrante projetou o primeiro slide eletrônico com algumas questões gerais para que todos os
participantes manifestassem suas opiniões: “Explicar a atitude de resistência à escola
109
Atriz e arte-educadora com longa experiência, M. C., profissional de uma das ONGs executoras, foi polida
nas palavras, mas pelos gestos e pela ênfase irônica que a transcrição do áudio da entrevista não pode
transmitir, deu sua opinião sobre a formação dada pelo Instituto: “M.C.: Uma critica que a gente faz muito
em relação à formação do Instituto - acho interessante a metodologia de fazer, a gente vivenciar para poder
aplicar. Mas isso num primeiro momento e de uma forma mais direcionada, uma metodologia que vai ser
aplicada para educador, e não colocar gente na situação do jovem para vivenciar toooodoooo processo.
Pesquisador: Vivenciar que você diz é...
M.C.: As próprias dinâmicas, maneiras de encaminhar. Se faz dos encontros como se fosse encontros com
jovens. A gente precisa produzir mais, está emperrando o processo. Eu acho que emperra demais. Têm
educadores que são muito jovens e inexperientes. Entendo por um lado, mas tem uma hora que <dizem>
“vamos fazer uma dinâmica?” Não! A gente precisa de respostas, de coisas. Tiveram momentos que dava
vontade de ir embora, não é possível que vou ficar mais um dia aqui, tanta coisa para ser resolvida,
encaminhada. É um processo muito atropelado. Agora estamos começando a fazer as oficinas de elaboração
de projeto. Já sai em maio, tinha que ter começado em novembro. Está terminando o processo, já começa
pensar na formação de outro processo. Porque ficava um hiato de um processo para o outro, ficava num
buraco.”
226
desenvolvida por muitos jovens”; “indicar características de um indivíduo escolarizado”;
“construir um argumento para convencer um jovem a retornar para a escola ou continuar os
estudos.” As discussões que se seguiram foram breves e a manifestação das opiniões, superficial. O
tempo da exposição não permitia maiores aprofundamentos e nem polêmicas. A finalidade e a
eficácia do instrumento palestra-dinâmica tampouco tinham essa intenção. Do lado dos
participantes, devia partir uma argumentação concreta de convencimento para o regresso à escola.
Didaticamente, os “argumentos” eram registrados e deixados à espera. A opinião exteriorizada no
momento “dinâmico” da palestra serviria de suporte dos conteúdos do restante dos slides, ao modo
de uma investigação preliminar do grupo, cujas opiniões sobre o tema seriam retificadas ou
reforçadas no momento da exposição do palestrante.
Os slides seguintes revelaram que o contraponto ao “dinâmico” só poderia mesmo ser a
estática dos lugares comuns sobre o “mundo atual”, suas “tensões” (“desequilíbrio ente as nações
ricas e pobres”; “utilização irracional dos recursos naturais”; “contraposição entre modo de vida
e padrões de consumo”) e, conseqüentemente, a necessária atuação da educação sobre “a formação
ética dos indivíduos”, sem esquecer sua fundamental contribuição para o “desenvolvimento dos
referenciais constitutivos da cidadania”, a promoção da “dignidade humana do ser humano, a
igualdade dos direitos, a recusa às discriminações, a solidariedade.” Daí a pertinência de uma
educação que se apóie nos “quatro pilares”, enunciados pelos infinitivos em dupla, o “aprender a
conhecer”, “aprender a fazer”, “aprender a conviver com os outros” e o “aprender a ser”. A
“educação no mundo atual” incorpora a escolarização nesse registro. No “mundo atual”, a escola
teria como problema premente o desenvolvimento de “novas capacidades” “em função dos novos
saberes que se produzem” para a inserção no novo mercado de trabalho. Isto porque “hoje em dia
não basta visar a capacitação para futuras habilitações nas especializações tradicionais.” Nesse
sentido, a agenda da “aprendizagem escolar”, tal como constava no último slide da palestra,
deveria tratar das “capacidades” que caracterizam o “aprender a aprender”, a “iniciativa e a
inovação”, princípio central da educação ajustada às transformações da realidade social. Ao lado
desta, outras “capacidades” deveriam compor o repertório mínimo para a inserção em um mercado
tão competitivo e mutante como o atual. Aos jovens, tornar-se-ia imperativa a “capacidade” de
“construir estratégias de verificação e comprovação de conhecimentos”, em um movimento de
elaboração de “argumentos para controlar resultados do processo”, desenvolvendo o “espírito
critico” e compreendendo os “alcances e limites das explicações”, tanto as de sua autoria como as
de outros. “Capacidades” de ordem emocional também são imprescindíveis. Por isso a inclusão do
desenvolvimento da “autonomia e sentimento de segurança”, a “capacidade” de “interagir de
modo orgânico e integrado no trabalho em equipe” e de “atuar em níveis de interlocução cada vez
mais complexos e diferenciados”. De posse desse repertório instalado no “ser” como
“potencialidade” que se aprende, a indeterminação de uma injunção exclusivamente prática toma o
227
centro de gravitação do discurso educativo. O nome dado à regra geral desse discurso é retirado,
não à toa, de uma repetição, o “aprender a aprender”. É esse o ato que se quer cravar no “ser” do
jovem, a “motivação”. Sob a superfície de seu formalismo discursivo o processo que se ativa não se
restringe ao público atendido pelas metodologias do “aprender a aprender”. A verdadeira
“motivação” tem o hálito e o sotaque do consentimento profissional. É dele que o processo de
objetivação pela linguagem vem extrair sua matéria; dele que o formalismo normativo ganha, no
campo socioassistencial, as feições de uma desrealização subjetiva do trabalho.
O “encontro” encerrou suas atividades do período da manhã com a palestra sobre a
“importância da escolarização”. Intervalo para o almoço no restaurante do hotel, ocasião para
reforçar as impressões e trocá-las na mesa. Retorno e nova “dinâmica”. Desta vez, iremos ignorar a
tarefa de descrevê-la. Ela manteve a mesma finalidade e o mesmo estilo infantil de todas as outras.
Importa prosseguir. As atividades foram muitas. Terminada a “dinâmica”, novo círculo formado ao
redor das expectativas de cada um, já expressas no primeiro período, mas agora retomadas com um
foco mais preciso. Cada participante foi convocado a resumir em uma frase ou brevíssima fala
(com o tempo, alguns serão capazes de fazê-lo em duas palavras) quais seriam o “sucesso” e o
“desafio” do Programa. Consolidadas as expectativas, proposta de pauta do dia para ratificação de
todos. Nenhum obséquio. A representante da Fundação Banco tem vinte minutos para suas
considerações e apresentação. Imediatamente após a fala da Fundação, segue-se uma
“dramatização” de um aspecto do trabalho realizado pela ONG. Nos “encontros”, toda e qualquer
forma discursiva que não seja a construída pela “equipe” é suspeita. Isto para evitar conflitos
desnecessários, que poderiam surgir com os ruídos de uma conversação. A função das “dinâmicas”
e dos inúmeros “aquecimentos” consiste nessa redução da interação no lúdico de um jogo pueril ou
de uma encenação. Um dos poucos momentos em que as regras dessa redução foram suspensas foi
o da apresentação das ONGs, atividade seguinte à “dramatização”. Um a um, dirigentes e
coordenadores das “executoras” responderam ao roteiro distribuído pela “equipe”, sintético e
limitado a três informações (“característica do local”, “número de crianças, adolescentes e jovens
que atende” e “um ponto forte das atividades que realiza”), devidamente registradas em cartazes
separados, pregados na parede do salão. Foram reservados cinco minutos para cada ONG. Quarenta
minutos depois, todas já haviam se apresentado. Mais oito minutos para comentários e vinte para
considerações e pedidos de alteração dos horários das “oficinas de formação”. Pausa para o café.
No último quartel do “encontro”, deu-se a “oficina de portfólio”. Por meio de colagens de figuras e
palavras, recortadas de revistas espalhadas no chão, os participantes deveriam transmitir os
conteúdos trabalhados ao longo do dia. “Portfólio” na mão, cada pessoa fez sua exposição para a
“visitação” dos demais. Essas “produções na parede” foram objetos de breves comentários.
Nenhum aprofundamento, apenas a integração pelo uso de mais um recurso lúdico. Avaliações
228
gerais em cinco minutos, novamente anotadas pela “equipe”, e conclusão do primeiro dia do
“encontro” com um “tchau coletivo”.
Os segundo e terceiro dias foram dedicados à vivência das oficinas que seriam desenvolvidas
com os jovens. Tratava-se de colocar aos profissionais das “executoras” a possibilidade de
“experimentar” as situações de “aprendizagem socioeducativa” que, em breve, seriam
proporcionadas ao grupo de jovens. Os trabalhos dos dois últimos dias assumiram a mesma ordem
do dia anterior. As atividades foram iniciadas com um “aquecimento”. No segundo dia, a
“dinâmica” previa a separação dos participantes em subgrupos definidos pela estatura. No terceiro,
o uso de “bolinhas”, em mais um jogo que provavelmente impressionará qualquer observador
externo pela sua infantilidade. Nessa “dinâmica”, cada dirigente, educador ou coordenador, maior
de idade que seja, “joga com seu nome, joga com o nome do outro, joga e faz estátua”. É vasto o
arsenal da “equipe”, acessado em diversos momentos do “encontro”. Houve também o recurso à
visualização das “produções” do grupo. “Diários de bordo”, ou seja, anotações de uma dupla
designada entre os participantes para registrar os acontecimentos do dia receberam leitura coletiva;
frases, expressões e palavras colhidas do grupo eram escritas e fixadas nas paredes, bem como todo
produto das atividades propostas. A forma de terminar um período ou dia foi a mesma. Por meio de
avaliações rápidas e fragmentadas, dava-se por encerrado os trabalhos, sem antes deixar de fechar
os “combinados”. Intercalando essas etapas, falas da “equipe” ou palestrante. Nada foi diferente em
todo o “encontro”, com exceção das “experimentações” dos dois últimos dias. Na primeira delas,
dois grupos foram divididos para “exploração” de dois locais públicos, o Pavilhão da OCA, no
Parque do Ibirapuera, e o Museu de Tecnologia de São Paulo, no Jaguaré. No Pavilhão, o grupo
ficou encarregado de visitar a exposição do pintor Pablo Picasso; no Museu, suas instalações e
acervo. Os dois grupos receberam um roteiro com “questões orientadoras” para a visita110. No
retorno ao hotel, esses dados deveriam subsidiar a oficina de “exploração”. Organizados em seis
subgrupos, os participantes formaram fila, como já adiantado, pelo critério da estatura. Cada
subgrupo deveria contar como havia sido a visita para os outros. A “dinâmica” incluía que os
110
Foram “questões orientadoras” da visita ao Pavilhão da OCA:
“- O que caracteriza a obra de Picasso? Destaque o ponto mais forte.
- O que torna Picasso o maior representante do cubismo?
- Que pontos podem ser destacados como características do cubismo?
- Quais obras expressam preocupações sociais da época?
- Quais obras retratam a vida pessoal de Picasso?
- É possível caracterizar a trajetória artística de Picasso?”(ref.13)
E as da visita ao Museu de Tecnologia:
“- Identificar o processo de manuseio de metais no tempo e qual o impacto na vida moderna?
- De onde vem a energia do vapor? Qual razão dela não ser utilizada hoje?
- Quais suas expectativas antes de utilizar o caleidoscópio? Quais imagens você pode vislumbrar?
- Depois de visualizar o caleidoscópio, o que você constatou? Corresponde às expectativas anteriores?”
(ref.14)
229
participantes compusessem “manchetes” de jornal a partir dos dados da discussão e os registrados
durante a visita. Passados quinze minutos, dava-se a apresentação das “manchetes”:
“Picasso: a arte não é a verdade (é uma mentira que nos ensina a ver a verdade)
Picasso: prepare-se para gostar, transformar-se ou não gostar
Picasso na Oca traz: encantamento e curiosidade, indignação e revolta
O jogo foi levado a sério pelo grupo. As “manchetes”, discutidas. Os comentários refletiam
impressões, opiniões sobre as instalações e a forma como foram recebidos, o conteúdo da
exposição. Mas nenhuma observação relacionada diretamente com as “questões orientadoras” do
roteiro previamente distribuído. Da impaciência gerada em alguns diante das obras de Picasso até a
frustração com a ausência de tecnologias modernas no Museu, passando pela idéia de respeito à
individualidade do artista e de quem aprecia sua arte, os comentários deslizaram de um lado ao
outro, um balanço à deriva e à espera de norte. O jogo previa esse funcionamento das falas,
estimuladas a esse deslizamento. Primeiro, todos falam, trocam informações e emitem julgamentos.
Talvez uma polêmica se instaure. Pouco importa, pois, no segundo momento, alguém autorizado,
de preferência alguma das coordenadoras do Instituto presente na oficina, assumirá a fala, dando
diretriz e cristalizando a semântica da “troca”:
“Onde está o conhecimento? Não só no museu, mas também <no museu>. Nas
trocas entre nós. Quando podemos ir fazendo conexões. Não tem problema a
gente se frustrar. O problema é não ter espaços para realizar e compartilhar
tanto as expectativas quanto as decepções. O espaço onde compartilhamos esses
sentimentos é que é essencial!” (ref.15)
Pelo acolhimento das “expectativas” e “decepções” que propicia aos participantes, o grupo é,
concomitantemente, autor e local de produção do saber. A simples interação social em uma oficina
atualiza a potência dos saberes. O conhecimento estaria, portanto, no grupo constituído pela
metodologia do Programa. Daí o valor das técnicas de modelação de situações coletivas,
intencionalmente artificiais para que uma desreferencialização estimule, em cada indivíduo, a
percepção unívoca do contexto do jogo. As “dinâmicas” e todos os aparatos que as acompanham
possuem essa finalidade. A irrealidade tem, aqui, uma função prática muito clara. Como abstração
máxima de um contexto social, ela obedece aos princípios de redução formal do controle centrado
na linguagem. Sua função consiste em duplicar essa univocidade na intersubjetividade ad hoc do
jogo, que ganha consistência comportamental não pela consciência e bom uso das regras. O
consentimento resultante é expressão da irrealidade em ato, a grande proeza das “oficinas”. Um
comportamento coletivo tornava-se possível sem que os componentes do grupo percebessem ou se
230
incomodassem com ele, na medida em que o processo formativo revelou-se descomprometido,
lúdico e livre das regras institucionais, freqüentemente responsabilizadas pela restrição da liberdade
profissional. Na pior das hipóteses, esse processo foi criticado a partir do aspecto infantil das
“oficinas” ou de suas superficialidades pedagógicas. A razão de sua eficácia pertence a uma
jurisdição do espaço vazio aberto pelos procedimentos práticos de redução formal do contexto
social e suas respectivas significações, acordadas na interação simbólica entre os concernidos. Essa
mesma jurisdição vigora em outras áreas do novo campo socioassistencial. Veremos mais para
frente as suas diferenças em relação a outras áreas do campo e de que modo elas incorre na mesma
lógica de objetivação observada no Programa. Ocasião para sublinhar generalizações e
regularidades, mas também para definir particularidades e limitações interpretativas. Por ora,
prossigamos com o “encontro”.
Ainda no segundo dia, imediatamente após os comentários sobre a natureza do
conhecimento, os participantes foram convocados a responder, tendo como referência a visita ao
Museu e ao Pavilhão OCA, qual a definição para essa atividade de “exploração” e o que
consideravam importante desenvolver antes, durante e depois dela, imaginando-a com os jovens. O
objetivo era apresentar a segunda fase das “oficinas de formação”, a “experimentação”. Em poucos
minutos, os subgrupos já dispunham de tarjetas com as respostas escritas, de modo sintético e de
acordo com o esquema passado pela “equipe”. A “questão orientadora” dirigida aos participantes,
divididos em seis subgrupos, consistia em saber o que deveria ser aproveitado das “explorações”
realizadas na parte da manhã para uma proposta de “experimentação”, instrumento de aprendizado
pela prática e mobilização dos afetos e sensibilidades. Cada um deveria vivenciar essa “oficina”
para saber o que estaria por vir com as atividades de formação dos jovens. No “encontro”, os
educadores e coordenadores das “executoras” ocuparam o mesmo lugar destinado aos jovens. Nos
termos da metodologia do Programa, não há melhor modo de transmitir um saber do que pela via
da modelação comportamental111, mesmo que em condições totalmente artificiais. Dessa
perspectiva, um conhecimento é mais adequadamente reproduzido se estiver atrelado ao
consentimento moral dos profissionais. Assim, em um mesmo processo prático, objetivos
educativos e políticos são conciliados, sem desvios ou constrangimentos, e em perfeita simbiose.
Por isso a necessidade de “explorar” e “experimentar” para que a “aprendizagem” seja sólida e
111
Por intermédio de algumas propostas da “equipe”, o grau de controle atribuído a essa modelação chega ao
exagero. É o caso das “dicas de frase para avaliação”. Voltado para os participantes das “oficinas”, tais dicas
consistem em frases incompletas a serem completadas, tudo a título de “avaliação”. Alguns exemplos:
“Depois desses encontros não vou mais esquecer de...”; “Gostei muito de ouvir...”; “Relacionar-se com a
juventude significa...”; “Reencontrar o grupo foi...”; “Nas reuniões de formação gosto quando...”; “Nas
próximas reuniões espero que...”; “Sinto falta quando o grupo...”; “A idéia que me marcou nesses dias
foi...”; “O que mais contribuiu com minha formação nesses dias foi...”; “Nesses dias a presença da(do)
____ foi muito importante para...”; “Contribuí com o grupo nesses dias quando...”; “Nesses encontros pude
compreender melhor o conceito de...”; “Nas próximas reuniões gostaria que se repetisse...”; “A equipe do
Instituto é...”; “Amanhã” vou sentir falta de...”; “Vou levar para a prática com os jovens a idéia de...”
(ref.16)
231
produtiva, coerente e adaptada às mudanças sociais em curso. Que ela seja, portanto,
“socioeducativa”112. Após a “apresentação das produções” dos subgrupos, discussões pontuadas
pela coordenadora do Instituto e, ao final, aplausos para todos. Intervalo para o lanche. No
regresso, leitura de um texto sobre “o que é ser jovem”, extraído do material produzido por um
outro projeto do Instituto. Separação por subgrupos e nova solicitação para cada um deles, para
destacar uma frase do texto e justificar essa escolha. Mais quinze minutos para apresentação e fim
do segundo dia do “encontro”.
Início do último dia, com vinte minutos de “aquecimento” e mais cinco para listagem rápida
de tudo o que havia ocorrido no dia anterior, com o auxílio da memória de cada um e em fala
dirigida para todos: “passeio, leitura do diário de bordo, abraços, café, atividade experimentação
e exploração, manchetes, dança do índio, texto “o que é ser jovem”, vestido da formadora do
Instituto (que estava muito bonito), elaboração e exposição dos cartazes dos processos, palmas de
escoteiro, sumiço da coordenadora da ONG.” (ref.15) Quinze minutos para leitura do “diário de
bordo”. Após quarenta minutos desde a abertura dos trabalhos, a oficina sobre “jogos
cooperativos” enfim poderia ser iniciada. Sob coordenação de um “assessor” de uma instituição
especializada em desenvolver projetos de “cooperação”, a oficina serviu-se dos mesmos recursos
que as anteriores, mudando apenas sua temática. Uma dança do Vale do Jequitinhonha foi tocada e
os participantes, dispostos em roda, acompanharam o ritmo do canto popular. “Aquecimento”
concluído, o grupo partiu para o “jogo de travessia das cadeiras”, que consistia em oferecer
obstáculos físicos a serem superados pela organização coletiva113, já que nos “jogos cooperativos”
“os participantes jogam uns COM os outros e não contra. JUNTOS superaram desafios e
compartilham o sucesso.” Os “jogos” deram ensejo a falas sobre “liderança compartilhada” e a
“dificuldade de sair da competitividade”. Nas anotações da “equipe”, consta a síntese dos
princípios da “cooperação”: “Competição- (eu – indivíduo) Solidariedade (outro – vós)
Cooperação (eu + outro = nós)”. Não seriam esses os “benefícios” prometidos pelo instituto
contratado?
“BENEFÍCIOS DA COOPERAÇÃO
Cooperando:
Diminuímos a pressão para competir.
112
Um documento do Programa, cuja finalidade não foi possível identificar, define em outro registro o que
seriam “ações socioeducativas”: “São consideradas ações socioeducativas aquelas que têm como objetivo o
desenvolvimento integral das crianças e adolescentes e são voltadas para a ampliação do repertório
cultural, o desenvolvimento da sociabilidade, conhecimentos, fazeres, valores, habilidades e competências
exigidos na vida cotidiana (pública e privada). São oferecidas de forma sistemática, gratuita, em períodos
alternados ao escolar e compreendem atividades pedagógicas como esportes, artes, cultura, leitura e escrita,
recreação, educação ambiental, entre outras.” Não foi essa a concepção adotada.
113
“Quatro grupos sentados em um quadrado de cadeiras – Todos ficam em pé nas cadeiras e ninguém pode
pisar no chão. Os grupos que estão na frente um do outro, tem que atravessar o quadrado e chegar do outro
lado, sem pisar no chão!” (ref.18)
232
Permitimos a união e a participação de todos.
Compartilhamos o sucesso.
Melhoramos a comunicação.
Eliminamos o medo e o sentimento de fracasso.
Reforçamos a confiança em nós mesmos e nos outros.
Libertamos a criatividade para superarmos limites.
Promovemos o COMPROMETIMENTO com o grupo.
Ganhamos TODOS, ninguém perde.” (ref.19)
233
pueril configurado por elas que o consentimento profissional com a injustiça pode ser incitado sob
a ótica da cidadania e seus direitos.
A “matriz curricular”
234
formação, a “matriz” produz um esquema pelo qual as significações são esvaziadas pela profusão
de categorias e definições, supostamente teóricas, de uma pedagogia da “experimentação”,
voluntária aceitação da injustiça social. Um dos efeitos mais reveladores dessa funcionalidade da
“matriz” pode ser observado nos inúmeros conflitos dentro da “equipe”. O texto sobre as
“referências conceituais” foi concebido por uma assessora técnica especialmente contratada para
redigi-lo. A tensão ao redor da “matriz” se manteve sem, no entanto, que as categorias e nomeações
criadas fossem desacreditadas em conjunto. Um estranho fenômeno de recepção do texto se fazia
cada vez mais presente à medida que o Programa avançava. As justificativas e interpretações eram
criticadas com veemência por boa parte dos membros da “equipe”. Todavia, as formas nominativas
não deixaram de ser largamente utilizadas para descrição do trabalho desenvolvido durante as
“oficinas” com os educadores e jovens. Aqui, outra característica que é preciso compreender. A
manutenção dessas formas certamente aponta para um nominalismo, cuja expressão, fundamental
sublinhar, é prática e não teórica. Um nominalismo funcionalizado por meio de um fluxo contínuo
de conexões e deslizamentos do discurso. Por vezes, como no caso da “matriz”, ele recebe o verniz
da teoria. Exercido como uma função institucional, a abstração do discurso, resultado de uma
prática de desreferencialização constante, é espelhada nesse nominalismo. Do mesmo modo que a
irrealidade produzida pelos “jogos” e “dinâmicas”, o uso das formas nominativas da “matriz”
artificializa uma relação. Seu propósito não é outro senão a completa desreferencialização da
dimensão teórica no Programa, mediante uma disputa cenográfica em torno de supostos conceitos e
de improváveis linhagens de pensamento. Com exceção de alguns inadaptados ou desavisados que
serão, cedo ou tarde, descartados da “equipe”, não há ressentimento intelectual nesse Instituto do
altíssimo escalão do Terceiro Setor paulista. O reconhecimento profissional pleiteado passa ao
largo dos critérios acadêmicos de validação do conhecimento produzido, ainda que muitas
sumidades da universidade e de grandes institutos de pesquisa tenham aceitado o convite de colocar
seu nome ao lado do logotipo do Instituto, nos inúmeros eventos, matérias e materiais de
divulgação do Programa.
O texto com as “referências conceituais da matriz curricular” não é somente teoricamente
extravagante. Seu conteúdo quer a compreensão do leitor. Suas definições, ilustrações e a
diagramação esquemática são sinais disso. Mas a necessidade do jargão teórico denuncia o seu
verdadeiro funcionamento. Diferentemente dos documentos redigidos durante a elaboração do
Programa, cuja finalidade era de prospecção de recursos junto ao financiador, a “matriz” é
carregada de referências a tradições e correntes de pensamento freqüentemente alheias às
apropriações pelo campo socioassistencial. Deleuze, deleuzeanos e os discípulos da
“esquizoanálise” foram os mais acionados, sem esquecer as incorporações de elementos teóricos
outros, como a noção de “território”, extraída supostamente da área do planejamento urbano. Que a
fonte conceitual que municia o jargão mantenha com ele uma continuidade, isso não significa,
235
obviamente, que o autor seja responsável pelos usos e abusos de seus comentadores. Contudo,
difícil imaginar, por exemplo, uma apropriação que situasse o conceito de classe social na
engrenagem discursiva do Instituto. Existem limites para a paráfrase, por mais desvirtuante que ela
seja. No Programa, a abstração ganha força normativa se a referência teórica for passível de ser tão
ou mais abstrata do que as práticas de discurso inventadas e vigentes nas “oficinas” e seu aparato
experimental. Não foi por acaso a escolha da “matriz” em favor dos pós-estruturalistas, fato
destoante no Instituto, habituado a textos educativos sem qualquer referência teórica mais explícita.
Como explicar, então, essa conjunção entre uma presunção teórica – mesmo que sua concretização
tenha sido nula – e o fato da disputa em torno da “matriz” ocorrer segundo os termos ordinários das
relações de trabalho, muito longe de qualquer ressentimento intelectual?
Os profissionais da “equipe” e dos demais setores do Instituto que compõem o Programa
alimentam um sentimento fortemente anti-acadêmico. Recusam, sobretudo, o seu habitus, embora
todos fossem graduados e alguns tenham concluído cursos de mestrado. Muitos dos “assessores”
também detinham alguma titulação em nível de pós-graduação. Mas para o conjunto dos
profissionais do Programa e do Instituto de modo geral a universidade representava o tipo de
anacronismo do conhecimento que era preciso combater. O habitus universitário, calcado no
“tempo livre, liberado das urgências da vida” (BOURDIEU, 2001), era com freqüência criticado
por uma convicção profissional que, para a ele se contrapor, reivindicava um modo de trabalho
orientado pelo que seria o próprio estatuto do campo socioassistencial, marcado pela
heterogeneidade e dinamismo sociais, como se as propriedades do objeto fossem transmitidas
diretamente aos que se colocassem junto a ele, em atitude de solidária identificação. Essa valoração
se revela, no trabalho da “equipe”, pela repetida desconsideração de procedimentos básicos de
pesquisa, principalmente no que diz respeito à interlocução com a produção da comunidade
científica, como a revisão bibliográfica e, no momento de exposição dos resultados da investigação,
a adoção de normas de reconhecimento da autoria e de localização das fontes consultadas. No lugar
disso, o registro incessante e a exposição imediata das “produções” dos jovens e educadores,
coletadas no curso das “oficinas”; o “relato das impressões” durante as “visitas técnicas”; o “diário
de bordo” escrito em tom pessoal e lido para o grupo. O estilo do texto da “matriz” é em tudo
diferente da forma impressionista dos registros em primeira pessoa (do singular e do plural), tão
presentes nas “oficinas” e demais atividades educativas do Programa. Sua organização reflete uma
mal fadada tentativa de ser um instrumento de regularização dos conceitos junto às práticas
cotidianas dos educadores. Tornou-se um guia vocabular do Programa, um sumário corretivo de
sua fraseologia.
A “matriz” toma como epígrafe uma passagem do comentarista deleuzeno da “vida capital”,
Peter Pál Pelbart: “Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa,
nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de
236
cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da
ciência, ela é a potência do homem comum.” Despojada de cerimônias, a seleção da passagem não
esconde o foco do que virá a seguir. Por meio da intenção desvelada em epígrafe, o saber
generalizado a que ela faz menção seria o próprio campo de intervenção do Programa. Junto à
“potência do homem comum”, as ações educativas podem se espraiar na “densidade social da
cidade” pelos novos modos de “associação” e “cooperação”. A citação não deseja, assim, insinuar
um presságio teórico da programação da juventude proposta pela Fundação Banco? Em tom de
súmula doutrinal, a “matriz” apresenta, sem circunlóquios, mas com feições de caricatura teórica,
os seus “princípios”, que se fazem acompanhar, na parte final do documento, pela descrição dos
“processos” mediante os quais seriam realizados. Ao primeiro “princípio” de “valorização de
campos culturais coletivos e variados na vida da cidade” corresponde a defesa da existência
pulsante, nas “práticas sociais da cidade”, de “múltiplas formações culturais” as quais seria
fundamental o Programa atentar, pois são elas que inscrevem “marcas nos modos de vida das
pessoas”. A formação dos jovens atrelada à confecção de “projetos de intervenção urbana”
responderia à necessidade de dar visibilidade social a uma dessas “múltiplas formações”, à
produção juvenil em um “campo cultural” específico. Enunciado o primeiro princípio, segue a
definição de “campo cultural” como “conjunto dessas formações culturais, seus significados e
variabilidades”. Para autorizar o “conceito”, três citações de Stuart Hall em seqüência:
Uma demanda que surge do interior de uma cultura específica se expande, e seu
elo com a cultura de origem se transforma ao ser obrigada a negociar seu
significado com outras tradições dentro de um “horizonte” mais amplo que
agora inclui ambas” (ref.20)
Na “matriz”, o antigo editor da New Left Review é convertido em teórico dos “campos
culturais”. Antes de ser risível, trata-se, aqui, de mais uma desreferencialização, com a conseqüente
extração de categorias e fragmentos de outros discursos ou teorias, procedimento típico do
formalismo normativo. A “matriz” admite os conflitos e assimetrias culturais, propondo, em
paralelo, uma via alternativa pelo incentivo à criação de “novos arranjos de sentidos nas relações
urbanas”. Cidade como linguagem e vida, pressuposto do segundo “princípio”, o de que “todo
saber é já desde sua origem uma composição cultural”. O saber seria múltiplo porque, na
“origem”, “comprometido com arranjos e entrecruzamentos culturais”, todos inscritos nos
“espaços da cidade” que, em sua organização, dispõem os significados sociais de forma
indissociada. A “matriz” compreende como “cultura” os “campos de significações discursivas”,
237
concepção que lhe permite propor um “processo de formação com os jovens que distenda as
supostas “fronteiras” que separam as formas de produção de conhecimentos, bem como promova
a quebra de hierarquias, por vezes, estabelecidas entre as formas de saberes sociais.” A
“composição cultural” tomada na condição de um saber indica claramente uma idéia simples,
plataforma de lançamento das iniciativas do Programa. Todo esforço envolvido na expansão
vocabular da “matriz” se resume a afirmar repetidamente a “possibilidade de composições e
implicações múltiplas entre os campos culturais”, uma das supostas garantias da idéia de
“indissociação” e “entrecruzamentos culturais” na cidade. Como argumentou a “assessora” que
redigiu a “matriz”, na primeira reunião com a “equipe” para avaliação da “edição-piloto” do
Programa, mais de um ano depois de sua implantação, o jovem participante é “efeito de um
conjunto de forças ou de significados sociais.” Com o auxílio de Foucault, Guattari e Deleuze, a
“assessora” tentava convencer os incrédulos da “equipe” de que esse jovem “não é sujeito
autônomo que vai produzir cultura”, sendo, antes, esse “efeito”. Famigerada crítica ao sujeito, mas,
agora, com a necessária positividade dos fins do Programa. O questionamento que se vislumbrava
não pôde ser ignorado: criticar “para pôr o que no lugar?” As imposições do posicionamento do
Instituto no mercado socioassistencial foram a resposta, e para que ela fosse tão ou mais produtiva
do que a pergunta à “matriz”, as querelas à sua volta instrumentalizaram o formalismo do
Programa. Daí a facilidade com que o sujeito-efeito se irmanou com uma responsabilidade de
feições existencialistas. A reversibilidade discursiva, mecanismo fundamental de controle do
campo, não excluía a conciliação teórica entre opostos. Um debate sobre conceitos pôde, a partir da
“matriz”, ser forjado tranquilamente segundo a mesma artificialidade experimental das “oficinas”:
“Assessora: Para pôr o que no lugar? Para pôr quem? A maior luta é com aquilo
que fizeram. A maior luta é lidar com o significado subjetivo do que foi falado.
Então cria um outro tipo de luta a partir dessa perspectiva. E não é lutar contra o
Estado, essas coisas. Não que a gente não tenha que lutar contra o Estado,
contra as lógicas estatais, mas eu também tenho que lutar com aquilo que eu
sou. Muito do que eu sou passa por uma coordenada codificante (...). Afinal de
contas, o que eu faço com o que fizeram de mim? É uma pergunta difícil de
formular. Por princípio eu me formo como sujeito autônomo, sujeito capaz de
agir, sujeito transformador, e eu não ponho a minha subjetividade em cheque
para análise. Eu vou me analisar, vou fazer terapia. Aí é o campo da psicologia.
Vou analisar minha interioridade, vou me conhecer. Não. O campo discursivo e
prático <é> que me funda. É essa a grande referência para o Programa. Quais
são as coordenadas?” (ref.21)
114
O que, mais uma vez, foi exposto com clareza pela discussão entre a “assessora” e a “equipe” ocorrida na
referida reunião de avaliação:
238
pela crescente visibilidade acadêmica e política das chamadas “práticas culturais” de grupos
juvenis, o Programa adere à defesa do “caráter interdisciplinar no processo de produção de idéias
e práticas”, terceiro “princípio” exposto pela “matriz”. De modo mais direto, o texto vincula esse
“princípio” aos “projetos de intervenção urbana” dos jovens do Programa. Os “complexos
problemas” da cidade exigiriam “uma atitude intervencionista interdisciplinar”, característica da
formação oferecida pelas “oficinas”, composta por “assessores tecnológicos” de diversas
procedências disciplinares. Os três “princípios” convergem e são ativados por uma subjetividade
que seria distinta da tradicional. A proposição dessa nova subjetividade constitui o quarto e último
“princípio”. Como “força comunitária”, essa subjetividade seria uma “forma aberta” “altamente
investida pelas culturas as quais nos perpassam e nos constituem incessantemente.” Daí a sua
proximidade, diríamos, com o ideário político-educativo do “aprender a aprender”. Essa relação é
traçada pelo próprio documento, a subjetividade como um “eterno ‘tornar-se’.”: “(...) a
subjetividade seria um eterno “tornar-se” – um composto sempre provisório e instável de acordo
com os entrecruzamentos culturais que nos atingem em determinado tempo de nossas vidas –
nunca algo em definitivo que se somaria a outros “definitivos” sociais.” Ao Programa cabe
“promover entrecruzamentos culturais inéditos em nossos modos de ser e ocupar os espaços
urbanos.” No contexto das atividades de formação, o jovem inventa-se com os outros e seu entorno
social, visto ser no “no próprio meio comunitário-cultural que encontramos nossas possibilidades
subjetivas, nossa possibilidade de vir a ser diferente.” Proeza pedagógica de reconciliação do
individuo com a sociedade, a “matriz” não é apenas um inventário da fraseologia do Programa.
“Membro 1: (...) eu começo <a> questionar as afirmações do tipo assim: “vamos aumentar o repertório de
jovens.” Têm algumas afirmações no Programa de uma escala, de uma amplitude que eu acho que não dá.
Eu acho que toda essa discussão conceitual nesse sentido ela talvez provoque um redimensionamento das
coisas. Se for essa a história, se for este o caminho de redimensionar, de recolocar uma outra escala, como
fazer para o desinfeliz do financiador entender essa nossa escala? Na verdade, como a gente afirma
determinadas mudanças sociais nos jovens? Isso significa mudar o sujeito. Como mudar demora um tempo,
se é que eu vou conseguir, imagina provocar uma mudança numa pessoa num espaço de dez meses? Então, é
tomar consciência do tempo do Programa, do que está envolvido, para você na realidade ter coragem de
afirmar o que você quer, ou o que você acha que pode conseguir no meio dessa sua história.
Membro 2: A verdade é que em dez meses não dá tempo de fazer nada. (...)
Membro 1: Esse raciocínio de colocar a pessoa na intervenção social não é uma perspectiva do programa, é
uma perspectiva lógica. Intervenção social é um produto deste governo <do Estado de São Paulo> numa
perspectiva de metodologia pedagógica e de diferentes programas. Ela não apareceu por acaso. Por que a
necessidade dessa intervenção social? Eu estou querendo tomar um pouco a perspectiva de dois objetivos do
programa dessa vertente da interabilidade, de novo ganho de repertório que vai passar por esses
cruzamentos culturais pela tecnologia, pelo que você falou do uso dos saberes, das potencialidades
inexistentes de maneira diferente.
Membro 2: Pra mim, se for consenso dessa linha para o programa é a produção do diferente. É a
continuidade de se produzir o diferente. É também a possibilidade de você fazer essa mistura. Se esses
jovens vão vivenciar um conjunto de experiências é bom colocar essas experiências em ação para fazer
outra coisa com elas. Agora inicialmente o que está lá no texto <da matriz> é essa parte toda. Mas por que
eu usei interdisciplinar se a matriz não tem disciplina como a gente está acostumada usar? A gente trabalha
com uma série de disciplinas, e depois essas disciplinas vão ser articuladas. Eu acho que o termo está
equivocado. (...) porque eu acho que isso já foi determinado de início. Eu acho que já tinha um acordo aí.
Membro 3: Eu acho que é uma questão também de como o Instituto, <que> não trabalha com juventude,
tentar se interar também em como trabalhar com a juventude. (...)” ( ref.21)
239
Justamente em função de sua eficácia simbólica, ela pode dar aos profissionais o que um
ressentimento intelectual não pode fazer, estimular uma polêmica no interior das divergências
abstratas, protegidas pela rígida couraça de uma linguagem líquida e parafraseada do discurso
teórico. O “eterno tornar-se” não é tanto um atributo de uma “força comunitária” subjetivada, mas,
sobretudo, o “novo” entendido como forma de reorganização do “mesmo”. Por isso o deslocamento
permanente das disputas vocalizadas pela presunção teórica e a razão por que a “equipe” tenha sido
pouco receptiva à “matriz”. Sua “discursividade” impôs esse tipo de confronto, pelas palavras e
enclausurado no resguardado das salas do Instituto. Mas é preciso fazer justiça aos seus
idealizadores. Suas “referências conceituais” mimetizam o funcionamento do Programa no que
compreende o núcleo de sua eficácia. Nisso a “matriz” soube ser realista e cirúrgica por intermédio
de sua abstração, em ato na divergência de seus operadores:
240
necessariamente é dual essa linha pós-estruturalista. E nesse Programa teria
deixas que poderiam contemplar melhor principalmente do ponto de vista de
diálogo dos significados. Eu acho que o pós-estruturalismo ele aponta também a
possibilidade de você tentar conversar com o significado do “outro” para
construir novos significados. E não apenas através de novas perspectivas que o
“outro” muitas vezes não tem nem capacidade de dialogar. Então, só para
apontar o pós-estruturalismo pelo menos na leitura que eu faço. E uma segunda
coisa só para a gente colocar é que a gente precisa definir então a diferença
entre cultura e sociedade. Porque fica um pouco a impressão de que tudo é
cultura. E aí se tudo é cultura, nada é cultura. E aí a gente perde o sentido do
que pode ser essa cultura, da força que ela tem, e da intensidade que ela tem. Eu
acho então que são só dois pontos para a gente pensar para desdobramento das
maiores contribuições possíveis. A gente conseguir perceber que nem tudo é
cultura, embora muita coisa no mundo em que a gente vive pode ter sido
construída culturalmente.” (ref 21)
241
existe. Por outro lado, você tem uma série de referências culturais que são
inversas a isso. Então o que acontece? Com essa chance, muitas vezes com essa
possibilidade, o tempo todo com a ampliação de repertório, outras explorações,
as pessoas estão tão atravessadas por campos que são contrários a isso que as
pessoas simplesmente não conseguem pensar nessa possibilidade. Não porque
elas são melhores ou piores que ninguém, mas elas não conseguem dialogar
com essa possibilidade. E esses campos que a gente tem que construir, campos,
linhas de significação entrando nesse campo super fechado, criar relações para
que dentro desses campos a gente possa conseguir propor essa diferença.
Assessora: Eu concordo e acho assim que o não conceito, a idéia de verdade ela
está muito solidificada. Então, assim o projeto seria o tempo todo deslocar o
sujeito de onde ele está para que ele possa viver outra experiência e desconstruir
um pouco alguma verdade. Porque para produzir o diferente eu tenho que me
deslocar. O diferente não é algo mágico. E isso eu acho que é uma dificuldade
concreta, quer dizer, isso mostra como a gente está, a ponto de que a
experiência...
Membro 1: Foi você que foi comigo naquele bate-papo?
Assessora: Na zona norte?
Membro 1: O susto que ela <Ismênia, coordenadora de uma ONG que
participava da formação> tomou. “Nós estamos super felizes porque o programa
está promovendo harmonia nos jovens”. Eu falei: “Nós não estamos aqui para
provocar harmonia entre os jovens.” Ela tomou um susto como se ela tivesse
sido fisicamente afetada. E nós não estamos falando de uma coordenadora que
não se envolveu com o Programa. Ela foi a que mais se envolveu com o
Programa. Nem de uma coordenadora que não saiu do lugar. Porque a Ismênia,
ela é uma ótima coordenadora, mas ainda assim ela não reconhece um
problema. Por quê? Porque a cristalização, a blindagem é tal que esse conjunto
de experiências é tão importante, mas não para essa mudança.
Membro 2: A idéia do movimento eu acho que fica muito mais clara do ponto
de vista de como essas mudanças se operam numa simples afirmativa do tipo:
“Não queremos criar harmonia entre os jovens.” Porque assim, como é que eu
faço isso? Se eu chegasse para minha mãe, abrisse a porta e falasse assim:
“Mãe, Deus não existe”. Ela não ia concordar. (...) Porque a Ismênia, ela
trabalha numa instituição, ela é assistente social. Além disso, ela tem feito aula
de filosofia, ela tem conversado outras coisas. Quer dizer, eu acho assim:
“Como é que a gente capta essas coisas já que a gente tem um interesse que a
gente quer que mude? (...)
Membro 1: Aí tudo bem. Só que nós temos que pensar que nós trabalhamos
com educadores de ONGs em um programa institucional e que a gente não tem
garantia de permanecer com as instituições educadoras. Então eu concordo que
se a gente tivesse essa idéia do Programa a gente ia conseguir dar essa
mensagem muito melhor para a Ismênia. Agora, nós temos um programa de oito
meses e que nós precisamos obter respostas. O ritmo de mudança que a gente
está conseguindo imprimir não está sendo suficiente. Eu acho que a gente
começa receber, o Gabriel <membro da “equipe”> teve uma fala aqui em algum
momento, assim: “toda história nossa em relação às ONGs tem mudança.”
Agora, o que está acontecendo aqui foram as mudanças novas em relação a
essas próprias ONGs. Então, reconhecer isso, isso significa modificar.
Membro 3: A gente não consegue perceber as mudanças nas ONGs. A gente
não se debruçou sobre essa questão. Elas construíram um espaço com recurso
que não era do Programa. Até a roupa dos meninos eles tiveram que trazer.
Você pega a ONG F. Eles pegam um núcleo para trabalhar só com a juventude.
É imaginável pensar que a ONG F. teria essa concepção. Porque eu falo da
gente conversar com o “outro”, quer dizer, por isso que <precisamos>
estabelecer mais canais de comunicação para a gente dialogar numa mesma
expectativa. Porque é o que você falou, o que para o cara foi uma puta mudança,
para a gente não. Então, a gente tem que compartilhar o significado das
expectativas que se tem.
242
Membro 4: E também porque essa instituição trabalha muito com a idéia de
micro resistência, micro mudança. E essa mudança é claro que o Programa tem
que ter assim a questão da empregabilidade, mas do ponto de vista dessas
experiências de freqüentar outros lugares que não o mesmo de sempre, isso é
muito difícil mapear. E porque também não é nenhuma revolução, não é uma
explosão expansiva. São pequenas explosões. E para a gente ver isso a gente
tem que olhar de uma outra maneira. Só para dar um exemplo, porque eu estou
pensando isso, então, às vezes, parece uma forma rápida e não é. Por exemplo,
vivências grupais <uma das estratégias educativas das oficinas com os jovens>.
Na minha cabeça já é o momento de tratar, é uma cartografia <em> que eu vou
tratar quais são as forças dominantes naquele grupo. Porque sem isso eu não
atuo com a administração. Por exemplo, na escola. O jovem na escola. O
Foucault fala assim <inaudível> e o que quer dizer na fala dele isso: que têm
reduzidas linhas de forças atuando. Duas ou três linhas de forças ali
coordenando a minha atitude, a minha ação, quer dizer, precisa remontar e
trazer mais força porque senão eu vou repetir, eu vou ser um mau aluno. E a
gente não consegue ver, a gente não consegue mesmo ver esse obstáculo de ser
“outro” senão aquele que está sempre ocupando lugar de mau aluno, por
exemplo. Ser uma outra coisa que não é ser o bom aluno, mas é produzir uma
outra possibilidade de ação, por exemplo, no domínio escolar. Enfim, mais as
vivências grupais, trabalhar <mais> em muitos, no sentido de harmonizar o
grupo. Harmonizar, vincular o grupo afetivamente. Porque levantando essa
linha de força você vincula também. (...)” (ref 21)
115
Sobre esse nomadismo generalizado atribuído à juventude, ver Almeida e Tracy (2003); Maffesoli (2001);
Pais (2001), Peralva (1997), Melucci (1997).
243
conteúdo, essa campanha de idéias, de mais ferramentas que fazem a gente
pensar do que um repertório longo de verdades. São ferramentas que nos
possibilitam pensar, criar ferramentas. Eu morava em <uma pequena cidade da
grande São Paulo>, dá uma hora e meia até aqui de trem. P. é uma cidadezinha
como qualquer outra que parece interior, mas não é, enfim, não dá nem para
designar. E aí o que acontece? O que a gente tinha para fazer lá? A gente tinha
para fazer lá <eram> a praça e as boates. Só isso tem para fazer lá. Não tem a
prefeitura, e nem nos municípios mais próximos também tem essas histórias.
Quando eu comecei a vir para a cidade a gente fazia o seguinte: comprava o
jornal de domingo e via no guia o que tinha para fazer de graça porque a gente
quase nunca tinha dinheiro. Então tinha lançamento de livro no MIS, a gente
vinha. Não sabia quem era o autor, nem lia, mas eu vinha para tomar vinho. Eu
fui numa palestra também de graça, eu não entendi nada porque era todo mundo
da França. Mas eu fui. Então o que acontece? Essa coisa de vir para a cidade, de
olhar para este lugar, entrar no Centro Cultural, entrar no Vergueiro, olhar as
pessoas, tudo isso fazia com que eu e meus amigos, era um grupo, a gente
falava: “a vida é mais do que aquela cidade, a vida é mais do que isso. As
pessoas estão fazendo coisas, existe isso, existe um monte de coisas.” Então,
foram algumas experiências que foram determinantes na minha formação. 90%
das minhas amigas, isso não é nenhum julgamento de valor, mas enfim, 90%
das minhas amigas estão com um pouco de ressentimento, de frustração porque
casaram cedo, porque tiveram filhos cedo e não conseguiram fazer faculdade.
Não conseguiram chegar nem metade perto dos sonhos que nós tivemos.
Enquanto que eu não realizei todos os meus sonhos, mas eu estou tendo
oportunidade de correr atrás deles. Então isso para o jovem, a capacidade de
experiências diversas, diferentes e múltiplas que coloquem eles <inaudível>,
que façam com que eles vejam coisas que não entendem.” (ref 21)
244
explicações em lista de tópicos, ilustradas de modo apressado. É disso exemplo toda a parte do
texto destinada à apresentação e à justificativa dos recursos operacionais da metodologia do
Programa. Segundo a “matriz”, as atividades com os jovens seriam estruturadas pelo “eixo
formativo” dos cinco “aportes culturais” (“campo escolar, campo artístico, campo corporal,
campo científico e campo de intervenção social”), definidos como “espaços físicos, materiais e
simbólicos onde concentram-se ou circulam saberes e práticas relativos à vida social”116. Os
participantes receberiam uma formação para “imersão ativa” nos “modos de funcionamento,
saberes e práticas” desses “aportes”. “Imersão” garantida por quatro “processos” específicos, cuja
finalidade consistiria em “viabilizar, por diferentes situações, aproximações qualitativas/múltiplas
com os Aportes”. Constituiriam tais “processos”, os “grupos urbanos” (posteriormente chamado de
“vivências grupais”, ação para o “aprender a conviver e a ser”), “investigação cartográfica”,
“tecnologias da cidade” (também conhecido por “exploração” e “experimentação”, exercício do
“aprender a conhecer”) e “implementação de projeto” (foco para o “aprender a fazer”),
desenvolvidos em momentos seqüenciados, mas com a ressalva de que no “decorrer do programa
formativo espera-se que em cada processo sejam desenvolvidas atividades que favoreçam o
entrecruzamento dos Aportes Culturais, de maneira a levar os jovens a perceberem que suas
práticas e saberes não circulam isoladamente na vida urbana.” Todos os “Aportes” confluem para
o produto final da formação, a elaboração do “projeto de intervenção social”, cujo registro deve ser
realizado no “portfólio” (materialização do “aprender a ser: comunicar”), espécie de currículo em
evolução da participação de cada jovem. A “matriz” nomeia uma “dimensão da cultura” e a
relaciona a um “Aporte”, projetando, desse modo, uma suposta realidade social sobre as categorias
inventadas por ela. O passo seguinte expressa o princípio de redução e desreferencialização na
forma de quadros ilustrativos, sínteses de cartilha para o leitor-educador:
“Aporte Corporal
Exemplos de Tipos de práticas: Caminhada - Musculação
Exemplos de Tipos de saberes:
Caminhar aumenta a capacidade cárdio-vascular das pessoas;
Fazer uso de complexos vitamínicos produz maior resistência e
desenvolvimento muscular;
Caminhar é uma forma de conhecer os espaços da cidade;
Outros...
Exemplos de Tipos de objetos:
Aparelhos de exercícios musculares, relógios de medição de temperatura e
batimentos cardíacos, vestimentas específicas, protetores solares, outros...”
(ref.20)
116
O texto é generoso em definições. Acrescenta, logo após essa definição inicial, mais duas: “subsídio de
natureza moral, social, literária ou científica, usado para atingir algum fim” e outra, retirada do dicionário,
“1- conduzir ao porto; 2- chegar ao porto, entrar no porto; 3- desembarcar; 4-encaminhar a algum lugar.”
245
Com a metodologia de formação apoiada nos “Aportes” e nos “processos”, o Programa
espera “investir diretamente na construção de Campos de Intervenção Cultural, que se expressaria
por meio do propósito de Intervenção social, exacerbando uma vontade pelo diferente.” (ref. 20).
Haveria como citar inúmeras outras passagens em que essa “vontade pelo diferente” é enunciada
em tom de estranha liberdade imperativa e de acordo com a idéia fixa de reafirmar a todo instante a
movimentação dos “Aportes”, seu “efeito de conjunto”. A estática defesa do movimento leva ao
extremo da reificação discursiva, quando as próprias nomeações da “matriz” passam a ser descritas
como entidades autônomas, autocontroladas: “Ao serem tratados pela idéia de conjunto, os
próprios aportes sofreriam como que uma modificação em seus movimentos, o que quer dizer que
o próprio aporte é ampliado segundo toda uma nova rede de correlações com outros contextos e
demandas culturais, transbordando sua própria moldura para entrar em outros ciclos e
desenhos.” (ref. 20). O sonho de máquina do Programa não se deixa desviar por distorções. Afinal,
como consta em uma das citações mais destacadas da “matriz”, não teria Deleuze dito que “gritar
‘viva o múltiplo’ ainda não é fazê-lo, é preciso fazer o múltiplo”? As atividades de formação com
os jovens se prontificam a produzir a heterogeneidade discursiva necessária para tanto. O
“múltiplo” se faz pelas variações das formas nominativas criadas pelo Instituto para designar os
produtos educacionais do Programa. Daí a coerência funcional dos “projetos de intervenção social”
dos jovens. São eles o verdadeiro “efeito de conjunto” do discurso institucional. Pela via da
indeterminação semântica, o ato perfomático do jovem pode ser “empreendedor” e portar, a um só
tempo, os valores da “força comunitária” e as “habilidades” e “competências” da comunicação e
da convivência em grupo, requisitos imprescindíveis, segundo o mesmo discurso, da
empregabilidade no atual mercado de trabalho117.
117
Como declarou a superintendente, em defesa pública do enfoque cultural do Programa, em um evento de
apresentação do Programa na zona norte, com acolhimento da Subprefeitura e na presença de autoridades
locais: “Não adianta apenas oferecer capacitação profissional ou oportunidades de trabalho, porque, sem
uma formação escolar e sociocultural densa, o jovem pode até entrar no mercado, mas acaba não
conseguindo se manter e evoluir”.
246
não poderia apresentar a fisionomia irreal e lúdica como a observada naqueles. As regras do
“projeto” deveriam levar a crer na efetividade da metodologia e do discurso do Programa. O estilo
passa a ser administrativo. Daí o cuidado em modelar a “vontade pelo diferente”. “Encontros de
sistematização dos projetos” foram programados para serem ministrados junto aos jovens, com o
objetivo de que o produto final da formação incorporasse sua “participação” na “transformação da
realidade local”, uma das “singularidades” anunciadas desde o primeiro documento referencial do
Programa. Mediante “projetos desenhados, implementados, executados e avaliados pelos próprios
grupos de jovens em suas comunidades”, essa “participação” deveria se adaptar, todavia, aos
termos e à lógica de um enquadramento formal, matéria desses “encontros de sistematização”.
Também neles, as “dinâmicas” e os “aquecimentos” se fizeram notar, mas, dessa vez, sem a
centralidade que ocupavam nas outras “oficinas”.
Divididos em três “módulos”, os “encontros” eram, em verdade, ocasiões para um
direcionamento da redação dos “projetos” segundo os instrumentos de gestão há muito
disseminados pelos organismos internacionais para medição e fiscalização do uso dos recursos
repassados aos programas humanitários ou assistenciais dos países ditos, na época,
subdesenvolvidos118. Mas, em razão dos princípios e propósitos do Programa, as “oficinas” foram
ajustadas para que, ao término dos módulos, elas extraíssem indicações precisas sobre os conteúdos
e a viabilidade dos “projetos”. Se nas formações tradicionais em técnicas de avaliação e
monitoramento de projetos é comum a utilização de um diagrama, com a discriminação dos
objetivos, ações e recursos disponíveis, com a definição dos indicadores e as fontes e tempos da
avaliação, categorias relacionadas dentro de uma totalidade, cuja visualização também é conhecida
como “árvore lógica”, com os jovens essa representação tornou-se literal, embora sua função
continuasse a mesma. Ao percurso de cada um nos “processos” foi solicitado que desenhos ou
palavras fossem associados. Desse modo, as “impressões pessoais” foram trocadas. Escritas em
tarjetas coloridas, transformam-se em partes de uma árvore: “raiz, caule e copa”. A cada parte
deveria corresponder um dos “processos” de formação. Toda “oficina” foi previamente organizada
para uma condução quase cronométrica, com indicação do tempo a ser destinado para cada tarefa.
Concluído esse primeiro momento, uma representação gráfica do conjunto da formação
comunicava, em poucas palavras e de uma maneira perceptivelmente imediata, as significações da
aprendizagem a partir da perspectiva dos próprios jovens.
118
Ver BID (1995). No campo socioassistencial, esse direcionamento também é objeto de um mercado
específico, onde transitam pesquisadores autônomos e organizações especializadas em avaliação e
monitoramento de projetos sociais. Um nicho profissional instável para uma maioria composta por
prestadores de serviço precarizados, temporários e recém egressos da universidade, à margem dos direitos
trabalhistas.
247
“9:40 - Árvore do realizado (1:15’)
Objetivo: atividade de retomada do percurso e da definição do foco/tema do
projeto.
(5’) 1º momento: Construção de árvore com o percurso do curso com palavras
ou grafia que representem o que ficou/marcou para o grupo da:
- Vivência de Grupo
- Investigação Cartográfica
- Experimentação / Exploração
Cada membro do grupo de projeto irá escrever ou desenhar o que simbolizou
cada uma das etapas.
(30’) 2º momento: Em seguida, socializa-se as impressões pessoais e se define a
Árvore do realizado pelo grupo com a associação das partes da árvore (raiz,
caule e copa) a um dos momentos do processo de formação. Importante: uma
única significação por etapa!
(20’) 3º momento: Um grupo de projeto apresenta para o outro e comenta-se
diferenças e aproximações. Reflexão coletiva sobre o processo de formação
vivenciado.
(20’) 4º momento: Levantamento do foco definido por projeto e reconhecimento
do foco como fruto da Árvore do realizado (tarjeta posta sobre a copa das
árvores).” (ref.23)
A elaboração e implementação dos “projetos” foram, sem dúvida, a etapa que mais exigiu
esforços e concentração por parte da “equipe” e de todos os educadores das ONGs. Dessa vez, ao
248
contrário dos outros momentos da formação, o resultado ou o processo preparatório deveria ser
apresentado publicamente e não apenas para os pares de “dinâmica”, o que envolvia a exposição
em eventos organizados para as autoridades locais: dirigentes das ONGs, representantes das
secretarias públicas do Estado e município, subprefeitos e seus séquitos, lideranças comunitárias,
outros jovens e educadores das “executoras”, além da superintendente do Instituto e da gerente da
Fundação Banco. Nesses eventos, a materialização do aprendizado deveria ser mostrada, em sua
proativa coerência administrativa. Daí a força da forma “projeto”. A “intervenção social” dos
jovens em suas “comunidades” certamente experimentaria grandes dificuldades, previsão que seria
confirmada com o início da “implementação”. No entanto, independentemente dos obstáculos, que
não eram apenas vividos pelos jovens119, a garantia da objetivação da “aprendizagem
socioeducativa” e, portanto, dos objetivos do Programa, dependia da boa modelação do “projeto”.
Nesse sentido, a “sistematização dos projetos” constituiu o próprio conteúdo educativo do último
“processo” planejado. Ela foi, ao mesmo tempo, “atividade-meio” e “atividade-fim”. Seu propósito
consistia justamente em instituir essa forma bifronte no produto final. Enquanto meio, a
“sistematização” procurava consolidar o esquema pelo qual os “projetos” deveriam ser
“desenhados”; como fim, ela já configurava a concretização de um dos objetivos do Programa,
incutir nos jovens o senso de planejamento e, conseqüentemente, da gestão dos recursos escassos e
do tempo futuro. Nos “projetos”, esse bifronte manifestou a eficácia do formalismo elevado a
dispositivo de poder; variaram quanto aos temas, mas mantiveram a propriedade comum da baixa
complexidade técnica, tal qual previsto pela idéia de “tecnologias intermediárias” ou
“apropriadas”. Nada mais coerente. Em uma metodologia que preferiu a “experimentação” ao
conhecimento escolar, as “vivências grupais” à qualificação profissional, à irrealidade lúdica ao
ambiente laborativo, não há por que se surpreender com a superficialidade dos “projetos”, a
desreferencialização de qualquer conteúdo educativo tomada como objetivo último – e
inconfessável - da formação. Tudo em nome da “capacidade desejante” dos jovens e da “aposta na
potência dos compromissos coletivos”, idéias que a abertura do vídeo de divulgação da “edição-
piloto” quis transmitir aos corações e mentes dos espectadores, a “marca” do Programa:
119
Como ressaltou a representante da Fundação Banco, em um desses eventos: “Quero dizer aos jovens que
para nós também não foi fácil costurar tudo, mas para nós valeu a pena. Insistam! não deixem ninguém de
fora! Costurem! Tentem olhar para cada um como potencial para transformar essa comunidade.”
249
empresariais, assessores tecnológicos e voluntários. Com certeza, sem esses
encontros, o Programa não teria sido possível.
Durante dez meses os jovens moradores de distritos da zona norte e da zona sul
se encontraram durante um processo de formação que privilegiou: o
reconhecimento das potencialidades locais, a diferença como riqueza humana, a
composição e construção coletiva, a apropriação e o manejo de tecnologias
apropriadas e o desenvolvimento de competências e habilidades para o mundo
do trabalho. O produto dessa formação são projetos de intervenção social
desenvolvidos pelos grupos de jovens. Ao todo, são dezenove projetos de
intervenção social idealizados, desenhados e implementados pelos jovens.
Muitas conquistas e resultados desses belos e produtivos encontros podem ser
vislumbrados nestes projetos que serão aqui apresentados. São resultados de
trabalho intenso, de empenho, persistência e dedicação de todos os envolvidos
e, especialmente, dos jovens. E são os jovens – suas narrativas, seus sonhos e
suas realizações - que fortalecem ainda mais a nossa aposta na potência dos
compromissos coletivos e dos projetos partilhados.
O Programa é uma iniciativa da Fundação Banco, com a coordenação técnica do
Instituto, em parceria com ONGs locais e articulação com órgãos púbicos -
Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social – SEADS e
Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social – SMDAS.”
(ref.22)
O prefeito e a comunidade
No extremo norte da cidade de São Paulo, a “comunidade” do Morro se viu, pela primeira
vez, dignatária da atenção pessoal do prefeito. Isso – para dar crédito à fonte em epígrafe - graças
ao Programa, iniciativa da Fundação Banco, com supervisão da Secretaria Municipal do então
gestor Floriano, e em parceria com organizações sociais dos distritos das zonas norte e sul. O
conteúdo integral do texto da assessoria de imprensa do Programa é mais explícito do que o trecho
selecionado. Ela destaca a importância da visita do Prefeito para os moradores da comunidade,
naquilo que qualquer profissional de comunicação não vacilaria em chamar de marketing social.
Como uma crônica apressada, o texto monta a cena e conduz os personagens ao palco: “jovens,
250
crianças, aposentados, donas-de-casa, desempregados”. E o faz de uma forma despojada de
metáfora. O palco é real, “improvisado”, mas pleno de sentido e revelação. Segue a crônica:
“Pensei que o prefeito não viesse. Senti orgulho por fazer parte do projeto e por
termos trazido ele aqui”, conta W., um dos jovens do Programa. O coordenador
da ONG G., K., confirma: “O pessoal não achava que fôssemos trazer o prefeito
aqui. Nenhum prefeito nunca havia entrado no Morro e com o Programa
conseguimos trazer o Serra para cá. Como isso é política, a comunidade
aproveitou para pedir o que acha que falta.”
Logo em seguida, um complemento explicativo ao leitor pouco habituado à fala dos nativos:
Sem dúvida, para compreendermos o novo campo socioassistencial, fatos como o noticiado
devem ganhar prioridade. O “beco” foi “revitalizado”, razão da alegria desta gente e justificativa
para a presença do Prefeito. Compensados de madeira, devidamente coloridos e adornados com
flores em vasos de garrafa pet, foram confeccionados e distribuídos pelos jovens ao longo do
caminho que leva o visitante ao “beco”. Mal se vê o esgoto a céu aberto por trás da parede de
compensados. Talvez ela minimize a cheia das águas no período das chuvas. Não sabemos. Do
“beco revitalizado” é permitida apenas uma evidência crítica, a constatação de um discurso
revigorado e invertido no encaminhamento da reivindicação. Nada de palavras de ordem, nem
sequer os velhos recursos de constrangimento e pressão sobre o Prefeito, que se transforma,
doravante, em convidado da comunidade. Para alguns, astúcia dos oprimidos; para outros, signo de
uma inegável metamorfose política. Comportamento que, nas palavras da tecnocracia do Banco
Mundial, expressaria os ares democráticos pós-88. “Do confronto à colaboração”120, eis o nome do
suposto deslocamento político em direção à maturidade democrática da Nação.
O mesmo evento recebeu versão oficial no Portal da Prefeitura de São Paulo. Mais descritivo
do que sua congênere terceiro-setorista e sem a imagem do prefeito cercado em abraços pelos
jovens da comunidade, o texto segue a mesma linha de apresentação das informações contidas no
texto da assessoria de imprensa do Programa. É arcaico, no entanto, ao desconhecer o estilo exigido
pelo novo campo socioassistencial. Sobre falas e depoimentos, apenas os do Prefeito e de seu
secretário. Mas, ainda que o estilo seja arcaico, o discurso é atual e mantém sintonia com suas
“parceiras” da sociedade civil. No dizer do secretário Floriano, não existe propriamente escassez
desta virtude cidadã em assumir a responsabilidade estatal. O problema reside em assumi-la sem
120
Refiro-me a Garrison (2000).
251
um devido reconhecimento do lugar a ser ocupado pelo gestor público. A cooperação das
“parceiras” é fundamental se elas aceitarem a Secretaria como supervisor da “rede”: “Parcerias
não faltam, mas o desafio é conseguir que as fundações e organizações não-governamentais
trabalhem sob a supervisão técnica da Prefeitura, como neste caso do Morro, em locais onde
realmente a violência e a falta de assistência aos jovens imperam”. Puro exercício do poder. Não
se trata mais de ocultar-se sob a representação política extorquida, de processá-la pela cooptação
das lideranças locais.
O secretário Floriano, jovem na política partidária, mas já iniciado no tirocínio do novo
campo socioassistencial, conhece bem as regras do trânsito entre mercado e política. Tão bem que,
no Morro, na mesma visita do Prefeito, teve que agenciar os servidores públicos da sua Secretaria
para recepcionar, de modo adequado e segundo as exigências rituais da ocasião, outro ilustre
visitante, o dono do Banco e principal financiador do Programa. Agenciamento complicado. Ao
lado dos “supervisores regionais” de sua Secretaria, teve que dispô-los em articulação com os
profissionais da Fundação Banco, da ONG local e do Instituto. Desse lado do Programa, em todos
os envolvidos o sentimento não era de satisfação e reconhecimento. O nervosismo era proporcional
ao peso do encontro. Na visita ao “beco” e na circulação pelas vielas da comunidade, o Prefeito e o
banqueiro compartilhavam uma mesma aparição. Aos que estiveram perto das conversas trocadas
entre eles, não havia nada que denunciasse assuntos que não pudessem vir a público. Cada
deslocamento pela comunidade era acompanhado pelos moradores, em tom festivo e celebratório.
Redenção coletiva, atestada pela mais alta autoridade do município e pelo dono de uma das maiores
empresas do setor financeiro do país.
Entretanto, o evento reflete apenas em parte as percepções geradas pela entrada da
comunidade do Morro nos fluxos dos bens e capitais políticos gerados pelo Programa. Por muito
menos, o sentimento de dignidade comunitária pode aflorar entre os participantes do Programa.
Morador da comunidade e tão jovem quanto o público atendido, um dos educadores da ONG local
não deixava de reconhecer, na época em que o projeto de revitalização do “beco” estava em curso,
a importância da presença dos agentes públicos propiciada pelo Programa:
252
Reconhecimento da importância do Programa para a comunidade, sem dúvida, mas também
identificação do fator responsável pela atenção constante dos servidores públicos, tradicionalmente
ausentes da região. Durante alguns meses, a superintendente do Instituto assumiu interinamente o
cargo de secretária municipal. Como relataram os profissionais das ONGs, nesse período foram
maiores os recursos humanos destinados pela Secretaria às regiões de atuação do Programa. A
motivação para esta focalização da política pública é opaca e, mesmo que fosse enunciada pela
própria secretária interina, seria pouco explicativa. A configuração política do campo
socioassistencial da cidade de São Paulo nunca se mostrou tão obscura. Certamente, inúmeros são
os níveis em que se trafica a influência no poder público, prática imemorial de nossa história. Para
os entusiastas da sociologia relacional aplicada à ciência política, redes sociais incrustadas no
Estado revelariam os atores e relações deste tráfico. Também aqui o discurso hegemônico do novo
campo socioassistencial poderia ser adotado. Indicadores estatísticos e marcadores de
conectividades construiriam uma representação gráfica das redes sociais. Um mapa político seria
flagrado a partir da própria relação social em ato. Essa tecnologia de processamento de dados não
seria capaz, no entanto, de explicar a função exercida por uma secretária interina como foi a
superintendente do Instituto.
Era de conhecimento de todos os profissionais diretamente envolvidos na coordenação do
Programa o desinteresse da superintendente em permanecer no cargo público. Entre esses
profissionais, diversas foram as justificativas aventadas para o desinteresse, com conteúdos e
intensidades diferentes, desde a baixa remuneração em comparação ao de superintendente de uma
organização como o Instituto até a ausência de um apoio político consistente dentro do partido
governista. Em função de sua longa experiência de trabalho na área, a superintendente teria sido
convocada pela cúpula do governo municipal para preparar a secretaria para o próximo ocupante.
Na gestão anterior, a Secretaria teria passado por profunda transformação de sua estrutura. Novos
programas foram criados, procedimentos e meios de implantação e avaliação das políticas públicas
assumiram ou foram estimuladas a assumir uma direção sistêmica. Herdar este conjunto de
modificações, levadas a cabo até os últimos dias do mandato anterior, exigia uma postura política
que, ao mesmo tempo, não descartasse totalmente o que havia sido feito e que, aos poucos,
construísse para a Secretaria uma identidade própria.
A trajetória profissional da secretária interina permite qualificar sua entrada na rede em que
se tem operado o encontro entre agentes do mercado e dirigentes do poder público. Por isso não
causa estranhamento que foi sob sua gestão que ilustres figuras do Estado e do empresariado
tenham visitado juntos a comunidade do Morro. Haverá quem diga que, levando em consideração o
porte econômico do empresário em questão, esse encontro ocorreria de qualquer forma, a despeito
de quem fosse o secretário. Não há como discordar desse argumento, apenas acrescentar a
informação de que o encontro entre as partes, mais abstrato do que o ocorrido no Morro, já havia
253
sido concretizado, sob os cuidados da lei e com a fiscalização do Poder Judiciário, na doação do
Banco à campanha do então candidato José Serra. Segundo a declaração do candidato ao Tribunal
Regional Eleitoral, a doação do Banco representou cerca de 7% do total arrecadado.
A significativa participação do Banco nos fundos da campanha do candidato veio à tona nos
principais veículos da imprensa paulistana, motivada pela licitação dos serviços bancários das
contas de aproximadamente 210 mil servidores municipais ativos e inativos, um negócio que
movimentaria anualmente cerca de R$ 15 bilhões. A contestação por parte do sindicato dos
bancários de São Paulo e dos antigos bancos detentores deste negócio, antes respaldados por
acordo com a administração anterior, colocou o resultado em suspenso, via liminar judicial.
Realizada em 9 de setembro do mesmo ano de 2005 e após suspensão de liminar que impedia o
leilão das contas, a licitação foi vencida pelo Banco e por outra empresa do setor financeiro. Ao
Banco caberia a administração das contas-salários dos servidores municipais e a essa empresa o
gerenciamento das contas dos fornecedores da Prefeitura. Concluída a licitação, quatro dias depois
nova liminar foi concedida em resposta à ação movida por um dos concorrentes, suspendendo os
resultados do pregão. Com a liminar contrária, a Prefeitura e os vencedores da licitação tiveram que
aguardar decisão judicial autorizando o resultado, o que ocorreria dias depois e que daria condições
jurídicas para a assinatura do contrato, em 16 de setembro. Cinco dias depois, a visita no Morro.
Mas neste dia 21, embora com alarde entre os moradores e com divulgação no Portal da Prefeitura
e do Programa, a presença do banqueiro não foi registrada pela imprensa paulistana. Caminharam
lado a lado pelas vielas, o prefeito e o banqueiro, e chegaram ao mesmo beco; movimentaram-se e
foram apresentados aos gentis; decolaram do Morro juntos, no helicóptero do empresário, todavia
sem que esse encontro pudesse ser registrado por nenhuma lente ou gravador, tamanho o zelo dos
seus assessores e devido ao estrito respeito às regras da permeabilidade entre mercado e política.
No novo campo socioassistencial, o problema da invisibilidade social deixou de ser, portanto,
prerrogativa dos excluídos e pauperizados.
254
II. Um capital social das oportunidades perdidas121
Coerente com o espírito que tem animado as questões sobre a infância, sobretudo após a
Constituição de 1988, a juridificação da política alcançou a temática da inserção dos jovens no
mercado de trabalho. A Lei do Aprendiz122, de 2000, e o decreto presidencial sancionado em 2005,
regulamentado-a, configuram essa juridificação de modo a circunscrevê-la no espaço intervalar
entre mercado e Estado, lugar propício para o novo exercício socioassistencial de governo. Pela
“Lei do Aprendiz”, toda a empresa (exceto micro e pequenas empresas e entidades sem fins
lucrativos com objetivo de formação profissional) deve destinar o equivalente a de 5 a 15% do
número de seus postos de trabalho para jovens em formação profissional, oferecendo qualificação
técnica por meio de atividades teóricas e práticas que podem ser desenvolvidas em instituições
especializadas (“Serviços Nacionais de Aprendizagem”123 ou organizações sociais credenciadas no
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente como habilitadas a desenvolver
ações de preparação para a entrada no mercado) ou no interior da empresa. O desenvolvimento das
ações com os aprendizes é fiscalizado pelo Ministério Público do Trabalho e pelas Delegacias
Regionais do Ministério do Trabalho. Em relação ao contexto prático delimitado pela Lei do
Aprendiz, o Terceiro setor, com sua linha de frente ocupada pelas fundações empresariais e ONGs,
é confrontado pelas entidades tradicionalmente pertencentes ao mundo do trabalho (órgãos
públicos de fiscalização, Serviços Nacionais de Aprendizagem, centros e escolas técnicas,
sindicatos etc.). Duas lógicas sociais em um mesmo universo institucional, conflito ainda mais forte
121
A análise do Programa de aprendizagem profissional foi realizada a partir de uma outra pesquisa que
coordenei, fora do âmbito da universidade. A base de dados e o material levantado, no entanto, receberam
nesta tese tratamento diferenciado. O campo ficou a cargo de uma equipe de três pesquisadores, que
entrevistaram cinco grupos diferentes (educadores, orientadores, coordenadores e atores da rede de proteção
social, além dos jovens participantes) em seis cidades previamente escolhidas. A metodologia e a formação
desta equipe foram de minha responsabilidade. A decisão sobre quais localidades seriam visitadas foi tomada
após a construção de um modelo estatístico de agrupamento, resultante de uma análise fatorial. Seis
agrupamentos de municípios foram classificados por essa análise, segundo duas dimensões, designadas como
educacional (variáveis relacionadas à escolaridade da população) e socioeconômica (variáveis relacionadas
às características demográficas e da estrutura produtiva da cidade). De cada agrupamento do modelo, uma
cidade foi escolhida para receber os pesquisadores. Apesar de dispor das entrevistas realizadas nas seis
cidades, visitadas a cada quatro meses do ano de 2007, esta tese analisa três contextos municipais por
considerar que eles sintetizam a configuração do formalismo socioassistencial no Programa.
122
Lei 10.097, de 19 de dezembro de 2000, regulamentada pelo Decreto 5.598, de 1 de dezembro de 2005.
123
“Art. 8 da Lei do Aprendiz - Consideram-se entidades qualificadas em formação técnico-profissional
metódica:
I - os Serviços Nacionais de Aprendizagem, assim identificados:
a) Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SENAI;
b) Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAC;
c) Serviço Nacional de Aprendizagem Rural SENAR;
d) Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte SENAT; e
e) Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo – SESCOOP”
255
de se imaginar em uma empresa com o histórico de intensa movimentação sindical, como é o caso
da que analisaremos agora.
Estatal sem precedentes no que se refere ao simbolismo político de sua história, a Empresa
iniciou seu Programa para aprendizes em 2006, com o objetivo de “promover a inclusão social de
jovens em situação de pobreza e miséria, por meio de sua qualificação social e profissional,
contribuindo assim para sua melhor inserção no mercado de trabalho”. A coordenação nacional
deste Programa era feita por um colegiado de instituições: uma fundação de centros de formação
em tecnologia; uma organização do Terceiro Setor criada por empresários paulistas para defesa de
direitos de crianças e adolescentes, a Fundação Lúdico124, e o SENAI, além da direção da própria
Empresa. Todas elas com atuação regular em todo o território brasileiro. Com orçamento estimado
de R$ 51.420.000 para o biênio 2006/2007, período de contratação da primeira turma de
aprendizes, o Programa atendeu a 2550 jovens, com idades entre 15 e 18 anos no processo
seletivo125, número que correspondia ao teto de 15 % dos funcionários estipulado pela Lei.
Distribuídos entre 54 unidades da Empresa nas cinco regiões do país, segundo a
proporcionalidade determinada pela Lei, os aprendizes eram acompanhados e estavam sob a
responsabilidade de um conjunto de atores institucionais, reunidos nos comitês locais do Programa.
Subordinados à direção nacional, esses comitês constituíam o pólo administrativo mais
importante126, formados sempre por uma ONG127, por unidades regionalizadas do SENAI e da
Empresa, por instituições locais vinculadas à área da infância e juventude (tais como os conselhos
tutelares, conselho de direitos) e outras, como as delegacias regionais do trabalho, secretarias e
órgãos do poder público. À fundação dos centros de formação em tecnologia cabia coordenar o
repasse das bolsas aos jovens e todas as tarefas relacionadas às 32 organizações sociais, além da
assessoria na produção de material didático.
Os jovens assinaram um contrato de dois anos128, período no qual participariam das
atividades educativas estruturadas em três etapas. A “formação básica”, primeira do ciclo, era
atribuição da organização social. A partir do material didático previamente fornecido pela direção
124
Nome fictício.
125
Os critérios de seleção, além da faixa etária indicada, eram os seguintes: 1) Freqüência escolar no sistema
de ensino regular ou na educação de jovens e adultos, priorizando os que estivessem matriculados no ensino
fundamental; 2) Situação de “vulnerabilidade econômica e social”, com prioridade aos moradores da cidade
onde esteja instalada a unidade da Empresa. No relatório anual de 2007, em que a Empresa presta contas
públicas de seu investimento social, constava a informação de que na seleção “buscou-se um equilíbrio de
gênero, raça, etnia, jovens com deficiências, moradores de locais com grande vulnerabilidade social e
priorização de jovens que cumprem medidas socioeducativas em regime aberto.”
126
Na primeira edição do Programa, foram criados 42 comitês no total. No final, foram reconhecidos 32
como comitês consolidados.
127
No total, participaram do Programa 32 ONGs.
128
As carteiras de trabalho dos aprendizes eram assinadas pelas organizações sociais, com previsão de férias
remuneradas, que coincidiam com as férias escolares, salário mínimo hora, 13º salário, vale transporte, FGTS
e assistência previdenciária, como determinava a legislação. A Empresa estendeu os benefícios,
estabelecendo jornada de trabalho de quatro horas diárias no máximo, salário mínimo integral e alimentação.
256
nacional do Programa, os educadores da ONG trabalhavam conteúdos relacionados a sete módulos
temáticos129, durante cinco meses. A segunda etapa dizia respeito à preparação mais especializada
(“formação técnico-profissional”), focada em uma ocupação que seria definida conforme as
demandas do mercado de trabalho de cada localidade. A última etapa (“vivência profissional”)
envolvia o “orientador”, profissional responsável pelo acompanhamento do aprendiz no próprio
ambiente da Empresa. Ao lado dos professores do SENAI, os cerca de 300 orientadores e 175
educadores das ONGs locais compunham o grupo responsável pela formação dos jovens.
De acordo com o “projeto político-pedagógico” do Programa, constituem os fundamentos de
sua ação educativa, “o protagonismo juvenil, o combate ao trabalho infantil e precarização do
trabalho, a formação profissional integrada à Educação básica, o trabalho como princípio
educativo na formação da juventude, a qualificação dos jovens comprometida com a inclusão
social e a construção da cidadania, a consideração da potencialidade do jovem vinculada com as
demandas e potencialidades de trabalho local e a integração teoria-prática na ação educativa.”
Esse “projeto” reproduz as linhas ideológicas do Terceiro Setor, mas está longe de incorporar o
“protagonismo” segundo os mesmos termos que os professados pela doutrina da autogestão dos
pobres, o empreendedorismo econômico da solidariedade consigo mesmo. Pudemos observar
alguns de seus traços e códigos na proposta de programação da juventude, iniciativa financiada
pelo Banco e seus parceiros. No Programa da Empresa, diferentemente, o “discurso do
protagonismo” (SOUZA, 2008) foi obrigado a um comedimento ao qual não está habituado, ainda
que o fraseado que permeia os documentos de referência, submetidos ao parecer do Ministério
Público do Trabalho, os manuais e o material didático tenham sido de autoria da Fundação Lúdico.
As razões para essa restrição são fáceis de entender. Em se tratando de Lei do Aprendiz, a
regulação jurídica é externa à lógica formalista da política de direitos da área da infância, já que
feita pela Justiça do Trabalho; a pertinência do Programa não é a mesma das centenas de projetos
sociais apoiados pela Empresa, sendo, antes, uma realidade programática ligada à dinâmica dos
negócios – por mais que o sentido predominante, entre os seus profissionais, esteja marcado pela
idéia da “responsabilidade social da empresa”. Soma-se a estes dois fatores a longa tradição de
organização sindical de seus funcionários. Investimentos maciços do discurso terceiro-setorista não
podem alterar o parâmetro que dá a gravidade aos corpos e às palavras no Programa, o mundo do
trabalho, embora eles tenham sido assimilados pelos materiais didáticos e documentos oficiais130. O
129
São eles, segundo material didático do Programa: “1. Preparação: afirmação da identidade (quem sou,
onde moro, o que faço, meu futuro); 2. Conhecendo a Empresa; 3. Educação e Cidadania; 4. Tecnologia e
Qualidade de Vida; 5. O Mundo do Trabalho; 6. Responsabilidade Social; 7. Organização Social.”
130
“A metodologia de trabalho irá privilegiar a participação dos envolvidos no programa, estimulando a
tomada de iniciativa pelos jovens, que devem assumir a condução de seu projeto de vida. Trabalharemos
com a concepção de protagonismo juvenil da Fundação Lúdico, que considera o adolescente um ser capaz,
acreditando em sua possibilidade de participação ativa nas decisões e ações de seu grupo e comunidade;
isso significa conceber o jovem como um ser de direitos e, como tal, com direito a voz e participação. Nesse
257
“protagonismo juvenil” pode ser defendido nos textos, seus princípios resistem facilmente na
atmosfera terceiro-setorista, protegida das injunções, concretas em excesso, da realidade social do
trabalho, mas os atributos desenvolvidos pela formação oferecida pelo Programa não configuram o
“trabalhador requerido pela economia do conhecimento”, ou seja, uma “realista e autêntica
Cultura da Trabalhabilidade”, “visão inovadora de como ver, viver e conviver com o novo mundo
do trabalho”131. A eficácia do novo campo socioassistencial não se revela, aqui, pelas práticas de
sentido, devem ser criados mais espaços de participação dos jovens nos processos decisórios nos projetos e
programas. Trata-se de um projeto transformador e inovador, que cria uma perspectiva de aprendizagem
onde o jovem passa a ser o centro da ação e sujeito da sua história. Através da formação promovida neste
programa se espera que o jovem adquira um conjunto de competências e habilidades que possibilitem sua
inserção no mundo do trabalho, isto é, consoante com a atual redução das oportunidades de emprego, lhes
dêem trabalhabilidade. Segundo a Fundação Lúdico, esse termo se refere ao conjunto de saberes
imprescindíveis para sua inserção na maioria das áreas do mundo do trabalho” Projeto político-pedagógico
do Programa, 1º semestre de 2005.
131
O discurso merece transcrição mais detalhada. Intitulada “Protagonismo e mercado de trabalho”, a seção
da apostila redigida pela expertise da Fundação Lúdico na qual consta a idéia de “trabalhabilidade” é notável,
um céu de brigadeiro da ideologia terceiro-setorista. Deixemos sua voz ecoar, sem pressa e com espaço,
nesse singelo rodapé:
“O mundo do trabalho, em nossos dias, vem se transformando com uma rapidez inédita ao longo de toda a
evolução histórica da humanidade. Os dinamismos apontados como os responsáveis por estas
transformações são muitos, gerando novas e revolucionárias tecnologias e formas de organização do
trabalho. Esse novo quadro demanda um novo tipo de trabalhador que a educação precisa aprender a
formar. O trabalhador requerido pela economia do conhecimento deve ter como traços básicos do seu perfil
a polivalência, flexibilidade, criatividade, automotivação, autonomia e responsabilidade. A formação desse
novo trabalhador exige o desenvolvimento equilibrado de habilidades básicas, específicas e de gestão.
As chamadas habilidades básicas duram a vida inteira e possibilitam a construção de ferramentas
funcionais para os desafios do cotidiano, são elas: a leitura, a escrita, a expressão oral, a capacidade de
resolver problemas, de planejar, de criar, de se relacionar consigo e com o outro de forma produtiva e ética.
As habilidades específicas estão condenadas a um ciclo de vida cada vez mais curto, pois as formas de
participação nos processos de produção se modificam a cada inovação tecnológica, exigindo do trabalhador
atualização e formação permanente.
As habilidades de gestão têm uma duração média, uma vez que as formas de organização do trabalho
mudam tão rapidamente quanto as tecnologias. Essas habilidades passam por três aspectos:
• Auto-gestão – cuidar de suas próprias demandas, organizar-se e planejar suas ações, avaliar-se
constantemente para novas condutas, buscar conhecimentos constantemente e administrar seu
desenvolvimento pessoal e profissional.
• Co-gestão – saber relacionar-se, propor idéias, analisar situações, planejar e resolver problemas
conjuntamente, conviver em grupo, avaliar e ser avaliado, criticar e ser criticado, orientar e ser
orientado, aprender e ensinar em situações de grupo
• Heterogestão – capacidade de coordenação de um trabalho coletivo, incentivar, motivar, capacitar e
desenvolver o potencial de liderados.
O protagonismo permite ao adolescente desenvolver habilidades básicas e de gestão que mais tarde serão
fundamentais apara o seu desempenho no mundo do trabalho, como:
- Analisar uma situação em seus diversos ângulos
- Propor soluções e avaliar soluções propostas por outras pessoas
- Comunicar-se com pessoas e instituições fora de seu mundo cotidiano
- Tomar decisões fundamentadas sobre qual o curso de ação a seguir em uma determinada situação real
- Planejar e aprender a lidar com pessoas, tempos, materiais e recursos financeiros
- Administrar o próprio tempo, aprendendo a dividir-se entre atividades de natureza distinta
- Dar e receber instruções, ordens e orientações
- Liderar e deixar-se liderar
- Criticar e ser criticado
- Coordenar atividades grupais
- Conversar com diferenças de pontos de vista e interesses
258
discurso que têm caracterizado o Terceiro Setor, sobretudo nos nichos não diretamente
relacionados ao mundo do trabalho e suas regras. Em condições materiais favoráveis como as do
Programa, o formalismo socioassistencial também pode instalar morada pelo uso de outras
estratégias. A irrealidade gerada no altíssimo escalão do Terceiro Setor, mediante as ações de
desreferencialização cognitiva, é extraída da tensão entre concepções dos atores tradicionais do
mundo do trabalho e dos agentes do novo campo socioassistencial. Contextos muito diferentes do
Programa em sua circunscrição municipal são assolados por essa variante do formalismo, como
veremos a seguir.
Para qualquer um dos cerca de dez mil moradores de G., tomar conhecimento de uma ação
socioassistencial da Empresa não é um acontecimento indiferente. Diante do baixo desempenho
dos indicadores educacionais e socioeconômicos do município, é de se presumir que todo morador
dedique especial atenção para oportunidades de trabalho e profissionalização, sobretudo quando
dirigidas ao público jovem. A grandeza do impacto que uma ação como essa pode gerar no jovem e
sua família não exige, certamente, muita imaginação, e foi explicitada nos relatos sobre as
primeiras notícias da chegada do Programa, uma novidade ainda incerta e cheia de expectativas
tanto para os jovens quanto para os próprios profissionais da Empresa. Para os jovens, antes da
entrada no Programa, a real possibilidade de trabalho ganhava representação por meio de
ocupações enclausuradas na duração do tempo presente: “catar mato” ou “cavar buraco”, ser
- Improvisar diante de situações imprevistas, agindo de acordo com os princípios, valores e interesses de
seu grupo
- Discernir os valores implicados e vividos em uma determinada situação
- Buscar coerência entre teoria e prática
- Praticar o exercício da transparência no uso dos recursos grupais
- Prestar conta de seus atos ao grupo, aos destinatários de suas ações e a seus educadores
- Assumir as conseqüências de suas ações positivas e negativas
- Desenvolver a tolerância para com a falhas e limitações humanas
- Aprender a lidar com êxitos e fracassos
- Decidir em grupo e de forma democrática
- Desenvolver espírito solidário e ação cooperativa
O protagonismo juvenil não é uma educação profissional, mas por meio do estímulo dele podemos introduzir
o jovem numa realista e autêntica Cultura de Trabalhabilidade, ou seja, numa visão inovadora de como ver,
viver e conviver com o novo mundo do trabalho. Ser jovem, além de representar um momento de crise, é
também, e muito mais, o momento em que escolhas são feitas e projetos começam a serem construídos. Esses
projetos contêm a visão que o adolescente tem de si mesmo, de suas qualidades e do que almeja alcançar.
Muitas vezes o jovem é pressionado a escolher baseando-se em critérios materiais, acreditando que a partir
disso será garantida a sua satisfação. Um tema muito relevante na construção do projeto de vida é a questão
do trabalho. Discutir trabalho é ir além da escolha profissional e da obtenção do emprego. É importante
abrir espaço para que o adolescente e jovem expresse suas inquietações, temores, anseios e expectativas e
partir daí, possibilitar-se a percepção de que o trabalho pode ser o meio de realização pessoal e de
participação no mundo.” - Fundação Lúdico, Apostila de formação: Protagonismo e empreendedorismo
juvenil – maio de 2006.
259
empacotador ou lavar louça por meia centena de reais ao mês. E quando a oportunidade de
participar do Programa passou a ser concreta, com poucas dúvidas quanto à veracidade do fato e
livre das especulações, nem por isso um julgamento feito a posteriori deixou de reproduzir o
esquema de destinação trágica, mas agora aplicado aos outros, colegas de escola ou gente próxima,
no espaço e no afeto. Um acaso é representado nessa chance de mudar de vida, controlado e
racionalizado, diga-se, pois tornava-se necessário produzir uma justificativa, sem a qual a
experiência vira refém das contingências, uma ameaça de que o acaso retorne com sinal invertido.
Equivoca-se, no entanto, quem aventou a hipótese de afirmação individual, nessa
justificativa, pela via do mérito e da moral. Os jovens entrevistados negaram-na com veemência. O
mérito foi de mudar no decorrer da participação e não aquilo que justificou a seleção e entrada no
Programa132. Esse foi um dos pontos mais tensos e que reapareceu em diversos momentos dos
relatos dos jovens, orientadores, educadores e gestores entrevistados. A exigência mais forte no
Programa sempre é atravessada pelos imperativos da qualificação e formação profissional, ao passo
que a assistência social ganha centro no momento em que esta exigência encontra seus limites na
impossibilidade de exclusão dos aprendizes que não apresentaram o desempenho mínimo esperado
pelo SENAI. Ou seja, a assistência ganha conteúdo a partir das necessidades de auxílio do jovem e
sua família, mas sua centralidade passa a ser questionada à medida que o mérito da qualificação e
formação profissionais não pode ser incorporado como princípio prático de funcionamento do
Programa. Esse conflito gerou situações de desconforto em todos. Da parte dos educadores ligados
ao campo da formação profissional, o desajuste dos parâmetros pelos quais as atividades do
Programa foram executadas pôde acarretar uma percepção de desalinhamento funcional, com
distorções na própria imagem que o profissional possuía de si e de seu ofício. Os pedidos, pelos
formadores do SENAI, de aproximação com os demais atores do Programa, principalmente com os
responsáveis na organização social pelo acompanhamento sócio-familiar dos jovens, tiveram a
finalidade de evitar sua sensação de impotência e desamparo. Isso porque esse mesmo profissional
encontrava-se, no Programa, obrigado a lidar com um público até então desconhecido e a partir de
um novo critério de avaliação do trabalho. Deveria ele se orientar pela preparação disciplinar para o
mercado ou permanecer com o mesmo princípio meritocrático de desempenho técnico? Qual dos
dois caminhos seguir se sua própria identidade funcional e o reconhecimento de seu valor
profissional contrariavam a realidade cotidiana do Programa? O encontro entre a assistência social
e as exigências da formação técnica não se resume, no entanto, ao conflito ou impasse.
Profissionais do mesmo SENAI também mostraram disposição para assumir novas
responsabilidades, mesmo que, em tese, isto implicasse um certo desvio em relação ao que é
132
“Acho que eles quiseram me dar uma boa vida, para eu sair da vida que eu vivia de bagunçar no colégio.
Eu estava mal no colégio, depois que o curso começou, eu fui mudando, entendeu? Eu passei no colégio por
mérito.” (Grupo focal com jovens).
260
freqüentemente esperado de um educador dessa instituição. Mas para que este “desvio” ocorresse,
outras referências deveriam ser resgatadas, muitas vezes estritamente pessoais, outras regiões de
interesse e domínio, repertório que fornece um sentido de resposta aos problemas colocados pelo
trabalho.
É fundamental problematizar os riscos envolvidos nesse tipo de investimento educativo, tão
focado nos atributos pessoais do professor. Estratégias de aproximação apoiadas na pessoa não são
por si mesmas prejudiciais. As condições e circunstâncias desta ocorrência é que devem ser
compreendidas e analisadas. A tentativa de conciliação entre as dimensões da assistência social e
do mundo do trabalho mostrou-se responsável pela exacerbação subjetiva de muitos profissionais
no enfrentamento dos problemas que a configuração híbrida e conflituosa do Programa gerava.
Seria esta uma das conseqüências não esperadas, mas, de certa forma, inevitáveis ao trabalho de
educação desenvolvido com os aprendizes?
“O maior desafio foi chegar aqui porque quando eu cheguei, eu reparei que o
pessoal não tinha noção nenhuma de informática e o SENAI disse para mim:
“você vai formar técnico em informática”. E quando eu cheguei aqui o pessoal...
mas eu consegui, eu estou vendo que eu estou conseguindo. Inclusive eu falo,
acho que só por mim, estou muito feliz, muito realizado porque eu estou
conseguindo mudar isso e estou conseguindo botar dentro deles o interesse pela
informática. Porque eu sou formado em letras, sou apaixonado por gramática,
adoro língua portuguesa, eu gosto, eu sou apaixonado por informática, adoro
mexer e quando eu vou descobrindo as coisas... Um pega uma forma, pega
outra... e a galera pega. Eu gosto de vibrar, da minha vibração e eu tenho certeza
que muitos deles conseguiram canalizar essa minha vibração, eles vibram
comigo .... para mim, desde o início, o grande desafio é trabalhar a família,
trazer a família para as responsabilidades...”
(Grupo focal com educadores)
A postura de responsabilização profissional pela motivação dos jovens não raro atravessa o
terreno idiossincrático do educador ou técnico. Munido de uma subjetividade transbordante, que
deseja aos aprendizes a mesma tomada de entusiasmo experimentada no trabalho, o educador do
Programa se vê rivalizando com o círculo social mais próximo do jovem. É de chamar atenção a
ausência dos familiares dos jovens nos relatos destes profissionais. Personagem vicinal, a família é,
principalmente, representada como um provável obstáculo para o desenvolvimento do aprendiz.
Entre os profissionais do Programa, há também a corrente que, identificando a importância de
acompanhamento das famílias, realiza uma espécie de substituição simbólica, por meio da qual a
suposta virtude contida no Programa exclui a participação dos pais ou responsáveis. Não é à toa,
portanto, que alguns orientadores tenham associado sua responsabilidade com os jovens como
“papel de pai”133. Para além da simples alusão metafórica, o “papel de pai” revela que a constelação
133
Essa forma de designar a função de acompanhar o aprendiz na empresa foi observada nos seis comitês
pesquisados: “Quando eu fui convidado achei que eu ia ser o paizão, o tutor, estar do lado, mais próximo”.
(Grupo focal com orientadores) Em alguns casos, motivou e deu nome à frustração: “Eu esperava essa
261
de afetos das pessoas envolvidas no Programa demarca lugares, acomodados segundo o atributo
funcional de cada um. O orientador, sujeito modelar para o jovem; o educador, elo entre os
momentos diferenciados da formação profissional e agente de assistência social. Orientador e
educador são figuras centrais no Programa, cada qual com um universo correspondente, que
compartilha e organiza valores e disposições práticas134. Orientadores falam pela empresa, de
dentro dela, o que lhes permite ocupar o lugar de ideal a ser alcançado. Esse lugar facilmente
transforma-se em mote para o discurso da maestria sobre o controle da aparência no mundo do
trabalho. Saber como comportar-se bem tem o sentido de convencer a todos na empresa da
conversão das oportunidades em ato, ajustando os gestos, o tom e a profusão da fala, oferecendo
aos olhos um espetáculo da motivação controlada. Mas é fundamental, antes e para isto acontecer,
introduzir os jovens na ambiência disciplinar exigida pelo mercado, função dos educadores. E se,
para tanto for preciso lançar mão de estratégias de aproximação e identificação pessoais, nada, a
princípio, oferecerá resistência.
“A gente conversa com a turma jovem e a gente tenta dar um pouco de injeção
de ânimo para eles. Ele que vai mostrar para a empresa que a empresa está
interessada nele. Então, ele vai almejar aquele patamar (...) A gente como
orientador, como coordenador, temos que dar direção, dar uma chamada neles.”
“Passar a experiência que a gente tem para eles, postura... estou sempre
conversando sobre estudo, drogas, eu conto o que passei para entrar aqui, pois
muitos querem entrar aqui na Empresa.”
(Grupo focal com orientadores)
vivência mais próxima deles, uma coisa mais dinâmica. Eu, particularmente, acho que eles estão na escola,
mas estão na empresa. ‘Está indo tudo bem? Está indo tudo bem’. E como no dia a dia a gente tem um
acesso muito distante deles, fica difícil.” (Grupo focal com orientadores)
134
Isto não significa que os profissionais sejam todos iguais dentro do grupo de educadores ou orientadores,
com as mesmas opiniões e percepções sobre a experiência. Trata-se, aqui, de um expediente para garantir o
manejo das informações, localizá-las e reconstruí-las nos discursos, distribuindo-os, hipoteticamente, a
grupos de locutores, igualmente hipotéticos.
135
“Ele não é mais um jovem, agora é um cidadão. É uma pessoa que criou responsabilidade, deixou de ser
adolescente arruaceiro... para ser uma pessoa para o mercado.” (grupo focal com orientadores)
136
“Acho que o principal desafio era mostrar a eles o que é ser cidadão. (...) Mostrar a eles como é que
deveria ser o comportamento deles fora, na rua, dentro de casa, na rua, na escola, a responsabilidade dele.
Esse aí foi o principal objetivo: transformá-lo no que é ser alguém responsável.” (grupo focal com
orientadores)
137
“Eles, quando entraram, entraram como um bicho acuado e hoje não, hoje são cidadãos, aonde chegam
falam com todo mundo.” (Grupo focal com orientadores da Empresa).
262
é composta por um agregado de disciplinamento e técnicas de motivação individual. O resultado
esperado pode ser traduzido pela “responsabilidade” do jovem, idéia que prescinde de maiores
precisões conceituais, mas que é fortemente incorporada no cotidiano das atividades do Programa.
Haverá sempre o risco de tomar esta responsabilidade pela via moral. Um envolvimento e
implicação subjetivas caracterizariam isto que surge nos depoimentos como um conhecimento e
respeito às regras. Aí um dos fatores que podem levar a uma espécie de moralização dos resultados
educativos. Na preparação para o mundo do trabalho, pressupõe-se um conjunto de atitudes, ou
melhor, de disposições práticas reguladas por regras implícitas da reprodução da ordem necessária
à esfera profissional. Mas uma centralidade da “formação pessoal” pode afastar educadores e
orientadores das expectativas dos jovens. O interesse de qualificação profissional e as perspectivas
abertas por ela, inúmeras vezes reafirmados pelos jovens, seriam deslocados para as margens do
Programa na presença desta moralização. Não seria esta a situação e o risco das iniciativas como as
“pré-vivências” nas Secretarias municipais, aventada pelos educadores na tentativa de incluir o
“trabalho voluntário” dos jovens como uma nova atividade do Programa? Não estaria em curso um
processo de subversão dos parâmetros do Programa, que transformaria o “voluntário” em modelo
para o aprendiz e não mais o trabalhador tecnicamente qualificado? Em outras palavras, saber
motivado de como se comportar e não mais saber profissional de como fazer?
263
No SENAI, dá-se o início da formação profissional propriamente dita, mesmo que o curso de
informática, único a ser ministrado devido à falta de infraestrutura do município, tenha sido
adaptado em razão dos sérios problemas de escolaridade dos jovens. Nesta etapa, o risco de
desligamento do Programa por baixo aproveitamento é bem maior em função da aplicação das
provas de avaliação da aprendizagem. O último módulo de formação, a vivência na empresa,
ocorreria, em G., na Prefeitura ou em uma das terceirizadas da cadeia produtiva da Empresa. Neste
módulo, segundo a percepção dos jovens e, com variações de medida, também de orientadores e
educadores, não haverá mais o “direito de errar”, a cobrança será muito mais rígida. A ameaça de
desligamento e o rigor da avaliação acompanham os jovens desde o início das atividades e estavam
presentes até mesmo nas informações que circulavam antes do período de seleção. Entretanto, não
houve nenhum fato que comprovasse o cumprimento da ameaça de desligamento por baixo
aproveitamento. Ao que parece, a imagem de cobrança e rigor são recursos disciplinares e, em
alguns casos, de motivação e valorização da participação, mesmo que eles não expressem, por parte
dos educadores e orientadores, um uso consciente e metódico. Os receios e incertezas que este tom
geral de ameaça causa nos aprendizes estão longe de aproximar os princípios da profissionalização
e os da assistência social. Diante da distância que parece separar de maneira implacável estas duas
dimensões, um esforço pedagógico de antecipação do que será o mundo real atravessa todo
Programa138. A força do conflito entre os princípios de inserção social e os de qualificação
profissional leva a crer que, no contexto prático do Programa, “ser um bom cidadão é ser um bom
profissional”. Os jovens são formados em uma ética, não há dúvida. Entretanto, caso não sejam
inseridos concretamente no mercado, resta saber se esta ética poderá garantir algo além de um
adestramento ideológico, já que apenas a título de resignação será possível acompanhar a conclusão
de um dos educadores entrevistados: “Na pior das hipóteses nós formamos cidadãos”. Daí a
preocupação generalizada com o que ocorrerá com os aprendizes após o Programa.
138
“Nunca fizeram um concurso. (...) Coloquei duas pessoas aqui fora, de fiscais, como um concurso mesmo
com eles: “Está vendo como é que <é> o concurso? Está vendo como vocês têm que se preparar para a
vida?” (Grupo focal com educadores).
264
que no final das contas eles vão para casa, estão com o diploma e aí: “onde é que
nós vamos trabalhar?”
(Grupo focal com orientadores)
“Eu acho que alguns daqueles jovens alunos querem ser mecânicos,
instrumentistas. A base já está feita, já foi feito a base. (...) Como já foi feita uma
base, é só deixar ele escolher o caminho dele.(...) Quando foi colocada a
informática aqui eu percebi que a informática tem muita informação para escolher
a profissão deles. E é uma ferramenta universal. Ele pode ser um consultor de
ações da bolsa de valores através da informática daquilo que ele aprendeu aqui.
Há vários cursos pelo computador da própria internet.”
(Grupo focal com orientadores)
265
faz do que compartilhar este espírito, sem, no entanto, possuir uma base prática, reconhecida
socialmente em razão do valor de utilidade do ofício aprendido, que preserve sua individualidade.
Aqui, a máxima do “vestir a camisa da empresa” ganha representação em um ato literal, como foi
possível constatar nas diversas idas a campo: os jovens ganham uniforme com o logotipo do
Programa.
A valorização da imagem da empresa entre os jovens não é, obviamente, resultado isolado e
exclusivo das ações do Programa. A presença da Empresa é maciça no município. A oportunidade
de participar de uma de suas ações socioassistenciais, ainda mais uma voltada à formação
profissional, deve ter reforçado essa presença para os jovens antes da seleção. Receber para
estudar, a carga horária reduzida e o valor da bolsa, somados aos benefícios agregados, tudo isso
chegou a gerar pequenas desconfianças entre os jovens. Por que a Empresa estaria pagando para
que eles estudassem? Incertezas deste tipo acentuam a imagem positiva que a Empresa possui. Os
jovens entrevistados chegaram a afirmar que somente ela fornece formação pessoal e profissional
conjuntamente, o que ajuda a sustentar a idéia de que os selecionados foram agraciados, tiveram
sorte e devem, a todo esforço, aproveitar esta oportunidade. A intensidade da cobrança imposta por
esta condição pode, na visão de alguns profissionais, atrapalhar o desenvolvimento do jovem, uma
situação paradoxal onde os recursos ideais estão disponíveis e, por isso mesmo, podem gerar
conseqüência oposta ao desejado. Ao que tudo indica, a percepção dessa contradição foi residual,
não apresentou problemas com características incontornáveis ao trabalho educativo139.
139
“Fui conversar com ele e mostrar o valor do dinheiro. O valor daquilo que estavam conseguindo e o
prazo também. As coisas boas que podiam fazer realmente com o dinheiro.” (Grupo focal com orientadores).
266
novo nó de contradições ganha força. Baixa qualidade na escolaridade é um critério educacional,
mas, em um município como G., provavelmente essa seja a realidade da maioria dos jovens.
Mantido, portanto, o critério de seleção focado neste quesito, uma outra prática classificatória deve
ser adotada. Aí reside o início da contradição. O enfoque proposto no educacional visa delimitar
uma prioridade. Contudo, quando estes critérios são referidos à quase totalidade da população
juvenil, ou seja, quando eles não produzem a separação e classificação dos inscritos, o problema
passa a ser outro. Agora, um novo parâmetro discriminante se mostra necessário. Este mesmo tipo
de contradição existe quando os critérios são “sociais”. Como selecionar os mais vulneráveis se
grande parte da população se encontra em situação de extrema “vulnerabilidade”? Dilemas que
lembram o óbvio. Toda seleção é, por natureza, excludente, ainda que os critérios sejam de
“inserção social”. Em contrapartida, é preciso interrogar aqueles que defendem um fundamento
meritocrático para a seleção dos jovens. Se ela for baseada na avaliação dos mais aptos a ter melhor
desempenho, novamente, cabe perguntar qual o sentido do Programa. Como se chegou a aventar
em entrevista, por que não selecionar os filhos e parentes dos funcionários da Empresa? A
avaliação do “impacto” gerado pelo Programa sobre a escolaridade dos aprendizes e da população
juvenil do município deve ser objeto de parcimônia. Não há como assegurar que o Programa tenha
influenciado o conjunto da população, embora, devido o tamanho da cidade, seja factível
reconhecer a validade das opiniões dos atores locais, sobretudo dos agentes educacionais e da rede
de proteção social, que confirmam essa idéia pela observação propiciada pelo seu trabalho, muitas
vezes apoiada em relações interpessoais com os jovens.
A proximidade entre estes atores foi ressaltada pela pesquisa de campo. Conselheiros
tutelares, secretários municipais, representantes da escola e de outras organizações sociais
compareceram aos grupos focais e concederam entrevistas em todos os momentos de investigação.
Verificou-se uma afinidade de opiniões a respeito do valor e “impacto” do Programa na cidade em
geral e nos jovens, em específico. Esta mesma percepção é refletida no interior do Programa, ainda
que críticas mútuas tenham ocorrido entre seus atores institucionais. Em razão da pouca
flexibilidade em oferecer mais de um curso, o SENAI foi objeto de crítica por parte do coordenador
do comitê, assim como o distante e pouco participativo coordenador da ONG. A Prefeitura, por sua
vez, foi responsabilizada pelos problemas de estadia e transporte do monitor do SENAI. De modo
geral, é possível falar em um ofuscamento das atribuições funcionais ou uma dificuldade em
assumi-las, a despeito dessa integração. Colaboram para isto os problemas de infraestrutura (não há
transporte público, por exemplo) e as características próprias de uma cidade do tamanho de G. A
Empresa não interfere nesses problemas, ao contrário do que se pôde constatar em outros
municípios. Toda a infraestrutura para as atividades foi cedida pela Prefeitura. Existe o
reconhecimento de que sem o Poder público municipal o Programa não teria condições de ser
implantado. E isto apesar da crise política pela qual passava a Prefeitura, com a destituição do
267
prefeito. Foi consenso entre os entrevistados que os agentes da rede de proteção social tomaram o
Programa como uma ação benéfica para o município, pleiteando, junto ao Poder público, recursos e
apoio para o bom desenrolar das atividades de formação. O Programa ganhou, portanto, uma
dimensão pública, a partir da qual todos se sentem implicados e no direito de participar, de uma
maneira ou de outra, conversão do privado em interesse coletivo, do mercado em justiça.
No seu setor econômico, a Empresa opera uma ampla cadeia produtiva formada por
instituições de diversas procedências e de variados níveis de complexidade tecnológica e
organizacional, cujas relações entre si são de interdependência e necessária colaboração sistêmica.
Sua posição impõe uma coordenação dessa heterogeneidade, levando em conta as peculiaridades de
cada ator em relação ao funcionamento de toda a produção. A escala econômica dos negócios
pressupõe uma gestão igualmente heterogênea e especializada, em diferentes dimensões no espaço
e no tempo. Esse caráter sistêmico e todos os atributos correlacionados poderiam ser, com as
devidas proporções, modeladores das ações socioassistenciais da Empresa. Nesse sentido, impasses
experimentados no Programa seriam semelhantes àqueles envolvidos na atribuição de funções no
ambiente corporativo dos negócios? O desenho do Programa permite esta interrogação. A gestão
partilhada com as organizações sociais da região, inspirada certamente na legislação sobre os
direitos de crianças e adolescentes, ilumina questões aparentemente muito diferentes das
observadas no relacionamento da Empresa com as instituições que compõem a sua cadeia
produtiva. O conceito de rede de ações integradas e disseminadas por diferentes atores locais não
parece ser o mesmo da representação sistêmica da cadeia produtiva, a se notar pela polêmica
gerada pela sugestão de inserção dos jovens egressos do Programa em postos abertos pelas
“terceirizadas” ou pelos fornecedores da Empresa. Ingerência para alguns, participação e
colaboração institucionais para outros, a verdade é que, em se tratando da racionalidade do
mercado, a “inserção” dos jovens não pode ser a mesma apregoada pelo ideário socioassistencial.
Na cidade A., bem ao modo do que seria, na cadeia produtiva, a transferência da execução de
uma atividade específica a quem possui a expertise para tanto, a Empresa delegou toda a execução
do Programa à organização social. É possível sugerir que essa transferência indica uma
impermeabilidade da Empresa ao Programa, ainda que essa hipótese tenha sido recusada pelos seus
representantes no comitê local. A centralidade da organização social foi tamanha que as queixas
sobre aspectos administrativos ganharam significação de reivindicação por autonomia, o que, se
acatada, excluiria o Programa do interior da dinâmica da empresa, transformando-o em mais um
projeto social, entre tantos outros, apoiado financeiramente por ela. No início, a participação dos
atores locais era um dos mais importantes objetivos a ser alcançado. Ao longo do desenvolvimento
268
do Programa, no entanto, a coordenação do comitê local não se pronunciou concretamente a
respeito. A preocupação em não envolver a Empresa em disputas políticas foi dada como
justificativa para esse comportamento. O gestor da ONG chegou a afirmar que a Empresa não havia
permitido a participação da Secretaria de Educação, a despeito de manifesto interesse do prefeito.
O argumento em defesa do caráter suprapartidário já é bem conhecido. Em outras cidades, ele foi
repetido diversas vezes. Mas nessa cidade o suprapartidarismo constituiu elemento revelador da
forma como a Empresa acolheu o Programa e o incorporou à sua rotina de trabalho. A escolha de
uma organização com infraestrutura adequada e com histórico de apoio da Empresa reforçou seu
insulamento. As conseqüências dessa delegação de atribuições para a ONG não tardaram a revelar
seu peso.
No município A., a delegação das funções e atribuições prevaleceu no processo de
implantação do Programa. Como já dito, a organização social tomou o centro das atividades e
participou intensamente dos momentos posteriores em que a formação seria desenvolvida no
SENAI e na Empresa. Em outras localidades, suas congêneres de Programa ou diminuíram ou
simplesmente deixaram o trabalho de acompanhamento dos jovens nessas etapas. A formação no
SENAI foi acompanhada de perto e a própria relação com essa instituição, de lógica e critérios
muito distintos aos praticados pela ONG, foi de proximidade e nítida afinidade. O trabalho de
formação técnica não prescindiu dos educadores e seu saber sobre o público de jovens. Exemplo
disso, a indefinição sobre a certificação da aprendizagem recebeu solução conciliatória, que
contemplou tanto critérios de inserção social quanto de desempenho técnico. Para os que não
alcançaram o aproveitamento mínimo, o Programa emitiria uma declaração com os créditos
concluídos e, além disso, permitiria que retornassem às disciplinas em que foram reprovados para
nova tentativa de certificação. Para os outros jovens, o SENAI emitiria a “certificação de
aprendizagem”. Soluções como esta materializam a integração entre estes dois atores. Do lado da
ONG, vigorou a valorização da motivação pessoal e da sensibilização para uma conduta
disciplinada; do lado do SENAI, a aprendizagem técnica que, apesar de lenta e adaptada ao nível de
escolaridade dos aprendizes, encontrou respostas paliativas para realizar o que é sua função no
Programa: preparar o jovem para a entrada no mundo do trabalho. Essa postura foi mantida e
tornou-se ainda mais visível nos impasses e dilemas causados pela substituição do estágio na
empresa por mais um período no SENAI, como determinou a coordenação do comitê local.
269
querendo. Por exemplo: há poucos instantes eu recebi um aluno, o Bruno. Ele
veio me perguntar sobre o curso técnico. Veja a mentalidade dele:
“Professor, eu posso fazer um curso técnico?
“Pode, não. Você deve fazer um curso técnico”.
“Mas eu posso fazer somente a disciplina do curso técnico?”
“Isso é possível, mas em um primeiro momento é você entrar no curso técnico”
E a gente percebe que ele já tem esse intuito, esse pensamento. Não só ele como
outros alunos também já vêm falando a respeito disso.”
(Grupo focal com educadores)
270
quanto a essa função e aos objetivos do Programa em geral, não havia reconhecimento, por parte da
gerência da unidade, da necessidade de liberar o funcionário de suas tarefas para realizar ações do
Programa. Tudo isso reforçava a compreensão de que, longe de ser uma oportunidade de
aprendizado institucional, o Programa foi apreendido, concretamente, como elemento estranho e,
muitas vezes, incômodo na rotina de trabalho da empresa. Não há dúvida de que ela garantiu
condições materiais para a implantação do Programa, mas a despeito disso evidencia-se uma cisão
no centro da concepção do trabalho com aprendizes, que exige a participação dos profissionais da
empresa. Questões de ordem administrativa, na ausência de um posicionamento claro da direção da
unidade, incidiram diretamente sobre a formação dos aprendizes, a exemplo do que ocorreu nas
hesitações quanto ao desligamento de jovens por desinteresse ou baixa freqüência. A ONG e o
SENAI, responsáveis técnicos pela formação, não eram autorizados a desligar ninguém. Por sua
vez, o comitê local não estabeleceu com a direção nacional meios para solucionar questões como
esta. O resultado disso se revelou pela idéia, emitida pelo gestor da organização social, de que a
total autonomia administrativa de sua instituição garantiria o exercício da ação educativa.
271
dizer o seguinte: “Vamos tentar”. (...) E eu sei como as coisas são difíceis. Aí
você está com um programa tendo uma condição na mão de ajudar o jovem, a
menina olha pra você e diz: “Tia, deixa eu continuar”. Vamos tentar ver se a
gente resgata.”
(Entrevista com coordenador do comitê local)
272
- O programa deveria definir como vai ser para não ficar mudando.
- Falaram que o povo do interior não recebia ticket porque não tinha como usar,
recebia dinheiro e agora recebe em almoço. Mesmo assim o pessoal estuda na
escola e sempre chega 13:05, 13:30, às 13:30 tem que estar na sala e não dá
tempo de comer. Aí pronto, fica interferindo porque a professor fica esperando
um, fica esperando outro. Agora tem que soltar mais cedo porque a pessoa não
janta porque estuda à noite. Então, não dá tempo de ir embora e jantar porque
vai para a escola. E com o ticket ou dinheiro estava mais vantajoso.
(...)
- Tinha uns “prefiro almoço”. Agora que começou o almoço: “preferia o ticket,
preferia o dinheiro”. No começo não, muitos na reunião quiseram o almoço.
Também foi mais culpa do pessoal que vinha do interior para cá, eles não
tinham como ir para casa almoçar, não dava tempo de chegar na escola. Muitos
dizem que ainda assim está complicado, chega mais tarde.
Pesquisador – Houve uma reunião para discutir essa questão?
- Falaram isso. Os jovens decidiram almoço, o “pessoal do interior”, porque não
dava tempo.
- Dizem que foi para o conselho da Empresa e decidiram.
- Tinha jovens que diziam “não comi”, aí a Empresa “a gente está dando ticket,
dinheiro, mas não estão se alimentando”...
- Estava deixando de comer para pagar dívidas.
- Não é nem isso, porque o almoço está atrapalhando no horário. A gente tem
que estar às 13:30 para começar o assunto.
- Fica sem saber o que fazer, se dá ticket é besteira, se dá dinheiro paga dívida...
- Tinham muitos jovens que estavam vendendo os tickets, por isso também.
- A maioria quando chega perto de 13:30... Se eu chegar esse horário, eu não
quero nem comer porque tem que comer apressado.”
(Grupo focal com jovens)
273
por nordestinos. Então, a dificuldade maior é convencer essas empresas, na qual
esses jovens estão inseridos, de que eles têm capacidade. Por isso que eu disse
que o SENAI tem que se adequar, os meninos têm que se adequar, a parte
técnica tem que existir porque o SENAI é uma instituição séria. Quando fala
que vem do SENAI o pessoal vê de outra forma. Vem do SENAI, vem do
SENAC, tem algumas instituições que quando fala que vem dessa instituição já
é bem aceito. Então, tem uma metodologia e por isso que é bem aceito. Então,
tem que ter adequação dos jovens na instituição e a instituição também tem que
entender que são jovens que não tiveram oportunidade a vida toda.”
(Grupo focal com orientadores)
274
- Disseram que vai ser aquele professor de novo em física. Eu acho que se o
SENAI pensasse um pouquinho mais ia ver que o negócio não foi os alunos, foi
o professor. Tudo bem, três passa e cinco reprova, acho que a culpa não é dos
alunos e sim do professor.
Pesquisador – Vocês acham que tem diferença entre os educadores da ONG e
educadores do SENAI?
- Tem. Eu digo lá do SENAI da matéria, entendeu?
- Não são todos.
- Esse todo mundo fala.
- Se a turma se der bem continua com aquele professor, se não der pede para
trocar. A gente adorou uma professora, a gente pediu que ela continuasse com
essa matéria, mas disseram que não podia.
- A gente teve professores ótimos.
- A gente se apega.
- É.
- Teve um professor <que disse> “sucesso meus jovens, sucesso meus jovens”.
Isso estimula muito a pessoa.
- Ele dá aula e sempre faz uma dinâmica para pensar mesmo em tudo.
- Dá muito incentivo mesmo.
- E as palestras dele são sensacionais, chega dar gosto de assistir.”
(Grupo focal com jovens)
275
manuais do Programa, distribuídos pela direção nacional. A cargo dos comitês locais, a
implementação dependia de acordos e arranjos específicos, que contemplassem os atores
envolvidos, fossem os externos, fossem os internos. Dada a amplitude e importância da Empresa no
município, colocava-se com mais intensidade a questão sobre qual grupo priorizar na seleção, se
dos jovens “mais necessitados” ou se dos mais dispostos e voluntariosos. Retomada no final das
atividades de formação, essa questão ganhava outro sentido, de conteúdo claramente avaliativo. A
observação da baixa qualidade da escolaridade dos jovens impunha problemas para todos os
responsáveis pelas atividades de formação. A seleção passou a ser objeto de avaliação. Se o comitê
local, dentro das margens permitidas pela direção nacional, houvesse estabelecido um único
parâmetro para a seleção, a compreensão das dificuldades teria sido marcada pela mesma
heterogeneidade de opiniões e julgamentos, como a revelada pelos entrevistados?
“Então, o perfil do Programa são os jovens que não tem visão de futuro. Eles
vivem por viver. Amanhã vai ser igual hoje, igual a ontem”.
(Grupo focal com educadores)
“Tem jovens que têm uma condição melhor do que imaginávamos, mas em
compensação são jovens perdidos na área social. Eles têm uma condição melhor
financeira, mas estavam perdidos também.”
(Grupo focal com orientadores)
A diversidade de opiniões a respeito do “perfil” ideal dos aprendizes diz respeito a uma
associação valorativa que o Programa estimula entre os seus participantes. Embora o Programa seja
resultado do cumprimento de uma determinação legal, a idéia de que a Empresa estaria
promovendo a justiça social parece ser um de seus traços definitivos. A discussão sobre qual seria o
“perfil” de jovens que responderia de forma mais efetiva aos princípios de justiça do Programa não
excluiu, no entanto, posicionamentos pragmáticos. Como em outras localidades, em M., a
possibilidade da seleção dos próximos aprendizes limitar-se ao desempenho nas provas e não mais
na condição socioeconômica ganhava força à medida que a inserção no mercado de trabalho
tornava-se um tema dramático, em relação ao qual o prestígio dos profissionais da formação era
questionado ou submetido à avaliação. Daí o argumento e a defesa correspondente: jovens com
276
melhor escolaridade garantiriam maior aproveitamento das atividades. Provavelmente, também
encontrariam ocupação no mercado de trabalho com mais facilidade. Por outro lado, se a ênfase
recaía menos na dimensão da qualificação profissional e mais nos aspectos socioassistenciais a
questão sobre o “perfil” deslocava-se para a subjetividade do candidato, sua disposição e vontade
em participar do Programa. Ambos os enfoques amenizavam a centralidade dos critérios
meramente econômicos de seleção, mesmo porque eles não seriam capazes de, sozinhos, definirem
os jovens escolhidos para receber formação e auxílio financeiro da Empresa, entre um grande
número de inscritos. Outros critérios se mostraram necessários para que o processo seletivo fosse
concluído. Por isso a constante desconfiança sobre esse processo. A situação que solaparia as
críticas e daria termo final ao debate sobre a seleção somente poderia ser alcançada pela
improvável existência de um grupo de jovens, ao mesmo tempo, motivado, de boa escolarização e
sob condições sociais precárias. Com essa idealização dos aprendizes, os profissionais do Programa
antecipavam o espaço possível das justificativas e julgamentos sobre o trabalho, recurso de redução
da tão temida e combatida incerteza. Isto porque a nova razão socioassistencial necessita eliminar
os riscos anunciados pela indeterminação dos resultados de sua ação. Indeterminação expressa nos
inúmeros problemas experimentados durante a formação dos aprendizes, sobretudo na passagem
para as aulas promovidas pelo SENAI, como falta de material didático, infraestrutura precária e
repetição de conteúdos ministrados pela organização social.
As solicitações e as permanentes sugestões para que o SENAI participasse mais ativamente
da gestão, inclusive no momento de preparação de todos os momentos de formação (e não apenas
da etapa pela qual era responsável), reproduziam a representação do conflito entre os princípios da
Empresa e do campo socioassistencial. Ainda que a pouca flexibilidade do SENAI em adaptar os
seus cursos para o público do Programa tenha sido um dos pontos mais criticados pelas
organizações sociais, havia também grandes dificuldades em definir os processos que permitiriam
uma transição, sem perda da continuidade pedagógica, entre as etapas de formação dos aprendizes.
Do ponto de vista do SENAI, essas dificuldades diriam respeito à exclusão de seus profissionais do
momento de elaboração da metodologia educativa do Programa. Acostumados a produzir seus
materiais a partir da concepção pedagógica centrada na qualificação técnica para o
desenvolvimento de uma função específica, regulamentada e com claro mercado de trabalho, os
profissionais do SENAI ressentiam-se de terem que adotar uma orientação externa, criada pela
Fundação Lúdico e pelo centro federal de formação tecnológica com os quais a Empresa mantinha
contratos de assessoria, fato agravado pela falta de conhecimento mais aprofundado sobre o público
e contexto do Programa. Todavia, a representação desse conflito teve um lugar diferenciado em M.;
ela serviu como mote da defesa de integração entre os agentes educacionais, o que, em outros
comitês, embora tenha surgido, não ganhou o mesmo peso e significado. Respostas pontuais foram
dadas a questões de ordem estrutural do Programa. Assim, uma das organizações sociais ofereceu
277
mais um período de formação para os jovens como maneira de suprir as deficiências das atividades
desenvolvidas até então. Outra simulou um espaço, dentro de suas instalações, para que a etapa da
“vivência profissional”, que deveria ocorrer no ambiente da empresa, pudesse acontecer. Antes, nas
atividades de formação “técnico-profissional” a cargo do SENAI, muitos jovens já haviam
manifestado seu descontentamento e decepção com os conteúdos recebidos e o modo pelo qual as
aulas eram ministradas140. Reclamações das mais diversas procedências ganharam publicidade e
foram vocalizadas pelo imperativo da conciliação entre as demandas de qualificação e de inclusão
social, ou seja, entre a lógica supostamente meritocrática da competição e a da equalização das
oportunidades por parâmetros de justiça social.
“Eu estou respondendo como uma pessoa que tem uma vivência dentro do
sistema S, mas não posso e nem tenho autonomia para <falar por todo sistema>.
Dentro desse maquinário, dentro dessas oficinas, nós poderíamos, juntos,
desempenhar esse trabalho: ‘Qual é a necessidade do jovem que vai entrar com
a escolaridade defasada?’ Ele está no estado e não tem aula, está no município e
não tem aula. Vai entrar com reforço para que ele possa de alguma forma estar
tendo uma aula de lógica, de estruturação do pensamento, o que for (...)”
(Entrevista com gestores das organizações sociais)
140
“- Teve um abandono do aprendizado, não foi como muitos achavam que ia ser. Eu e meus amigos
achávamos que íamos crescer muito com o ensino do SENAI.
- Pelo nome que tem o SENAI, não foi aquilo que a gente estava esperando.
- Na matéria, foi montagem e manutenção e nós só temos dois computadores. Ele pediu material e veio na
minha aula agora. E mesmo assim veio faltando, vieram dois HDs <discos rígidos>...
- O único material que foi passado para o curso de administração foi uma apostila de matemática e nem foi
muito usada.
- Chegou <apostila> no final do curso”. (Grupo focal com jovens)
141
“Embora a questão da escolaridade, do preparo seja essencial, eu vejo essa situação dentro de um
projeto macro. Se hoje a Empresa opta: ‘nós vamos trabalhar com os jovens que não têm nenhuma base’,
vamos desenhar juntos um trabalho a ser realizado. Não dá para estar encaixando como um quebra-cabeça.
‘Quais são os títulos que eu tenho aqui? Eu tenho elétrica, encanador industrial’. ‘É o que oferece, vamos
encaixar’. Não. Acho que nós temos que estar vendo o processo juntos. ‘É esse? Quais são os títulos que nós
todos, juntos - ONGs, Terceiro Setor, Empresa - vamos escolher para esses jovens dentro de segmento que o
SENAI oferece? Aí iremos desenhar todo esse projeto, entendeu?” (Entrevista com gestores das organizações
sociais)
278
empecilhos no cotidiano do Programa. As impossibilidades operacionais ocasionadas pela
precariedade do Poder público precisam assumir outras vias, bem mais longas se comparadas a
outros nichos da área da infância e juventude, até atingir o discurso politizado pelo primado formal
dos direitos, mas não só porque os atores internos à Empresa estejam pouco habituados às regras do
novo campo socioassistencial. A prerrogativa do Programa em relação ao que tem caracterizado o
Terceiro Setor como um dispositivo de controle social pode ser explicada a partir de dois
elementos. O primeiro e mais evidente deles refere-se ao potencial de resolutividade dos problemas
práticos que o Programa possui. Situação comum nos comitês locais, impasses gerados pela falta de
recursos foram sanados com amplo apoio da unidade regional da Empresa. O segundo elemento diz
respeito ao próprio objeto descrito pela Lei do Aprendiz. Embora a legislação não determine a
inserção no mercado após o período de qualificação profissional – o que significaria tornar
obrigatória a contratação do aprendiz pela empresa -, a problematização sobre a validade da
experiência no Programa constitui uma inquietação permanente, mais compreensível se o histórico
de luta sindical como o que tem a Empresa for considerado. Não à toa, portanto, que o
desligamento do jovem por baixo desempenho nas atividades de formação consiste em um assunto
polêmico. Quesito insubstituível para uma certificação técnica, a avaliação do aprendiz deveria
contemplar a possibilidade de reprovação e, conseqüentemente, suspensão do vínculo com o
Programa. Mas o desligamento em função da avaliação negativa nunca foi adotado de fato. Havia
um certo consenso e expectativa de que, por mais dificuldades que o jovem tivesse passado na
formação, a simples participação já lhe daria condições de usufruir a “oportunidade” dada pela
Empresa ou de conseguir uma ocupação no mercado de trabalho.
“A Maria entrou para o curso de manutenção de micros. Eu falei: ‘como ela foi
escolhida para esse curso?’ <resposta>: ‘ela fez uma prova e foi muito bem
nessa prova’. Mas ela é uma das que vieram do interior da Bahia, nunca tinha
visto um computador e ela começou a ter dificuldades. Ela começou a se
desesperar. (...) Eu conversei com ela: ‘Maria, volta para o curso’ e pedi para os
meninos da turma ajudarem ela, porque ela ficou um mês fora. Ela voltou e com
a ajuda da turma começou a entender. Parece que o negócio entrou na cabeça
dela. Mudou o professor também, porque não houve empatia com aquele
professor. Veio um outro que conquistou a garota e hoje ela está super feliz.
Está reprovada, mas continua”.
(Entrevista com gestores das organizações sociais)
Por se tratar de uma realidade concreta demais para ser assimilada e manejada pelas práticas
de discurso do formalismo socioassistencial - que costumam, como vimos, definir o modo de
eficácia terceiro-setorista -, o tema do desligamento pontuava um circunlóquio sem fim, que girava
em torno da razão de existir do Programa e, com efeito, do sentido do trabalho que os profissionais
realizavam. Por meio da representação do conflito entre o mérito e a justiça social, a temática da
responsabilidade do jovem ganha problematização. Em M., ao contrário de outras cidades, o
279
discurso dos educadores da ONG está mais próximo de uma responsabilização punitiva pela perda
das “oportunidades” abertas pela Empresa. Se condições ideais existem no município, desperdiçá-
las sinalizaria um comportamento que deve merecer reação. Seu valor estaria em adequar o jovem à
verdade de sua vontade e motivação, colocando-o para “sofrer pelos seus atos”. Por isso a
necessidade de “saber separar” os aprendizes, discriminar suas potências e expô-las ao mundo e
sua justiça. Livre das cobranças de desempenho e dos riscos de desligamento, o jovem se vê
amarrado ao pacto com o único protagonismo reconhecido pelo Programa, aproveitar as
“oportunidades”, aceitando o jogo da competição e sua suposta gratificação.
“Eu estou falando como administrador, como gestor. Estou até fugindo um
pouco do educador e procurando a figura do gestor. Eu, quando era
administrador, eu procurava ao máximo mudar a cultura daquele meu
profissional. Mas se aquele profissional está contaminando a minha equipe e
destruindo a minha equipe, a gente chega nele ‘se você não modificar, você não
vai fazer parte da equipe’. Você está entendendo aonde quero chegar com isso?
Vamos dar uma outra oportunidade, quantas mil oportunidades deverão ser
dadas? Ele tem que entender que ele tem que sofrer pelos seus atos, até para
numa próxima oportunidade que ele tiver: ‘se eu errar, acho que vou perder a
oportunidade’. (...) ‘ Se eu não estiver satisfeito com o que eu estou fazendo, eu
vou atrás do que vai me satisfazer’. É isso que temos que colocar na cabeça dos
jovens, porque é isso que ele vai encontrar lá na frente. Se nós não fizermos isso
agora, nós estaremos nos omitindo, ‘vamos dar mais uma oportunidade!’”.
(Grupo focal com educadores)
“Eu como educadora, isso seria um ponto positivo para mim, porque os outros
que estão querendo alguma coisa sempre questionam ‘estou fazendo, estou
correndo atrás, fulano não vem, fulano faz não sei o que, chega no final do mês
e vai ganhar igual a mim’, entendeu? Como educadora, esses pontos teriam que
ser revistos. Essa seleção dos jovens: quem são esses jovens? Como são esses
jovens? Como é a vida deles lá fora? Como ele anda? Com quem ele anda?
Como se procede a vida dele? Chega aqui dentro, se mistura e fica aquela
negócio do joio e o trigo que nós temos que saber separar”.
(Grupo focal com educadores)
280
III. Configurações da responsabilização punitiva em tempos de direitos sem justiça142
A responsabilização pelo proveito das “oportunidades” não é uma injunção moral exclusiva
de configurações socioassistenciais como a do Programa para aprendizes. A vultosa soma de
recursos investidos pela Empresa e as grandes expectativas geradas nos jovens e seus familiares,
extensiva aos demais moradores da cidade, sobretudo as de menor porte, certamente intensificaram
a força desse processo de responsabilização. Mas a dramaticidade que atravessou a experiência dos
aprendizes somente em parte se deixou expressar nos depoimentos dados para a pesquisa. Isto
porque a responsabilidade, nesse caso, se revela, ao observador, em sua dimensão negativa.
Haveria como determinar uma objetividade social do não aproveitamento das “oportunidades”? É
provável que sim. Contudo, os ganhos na interpretação, a nosso ver, seriam de tal modo suspeitos
que justificariam o abandono da temática da responsabilidade no contexto do chamado
“desemprego juvenil”. A perda das “oportunidades” diz respeito a um capital do novo campo
socioassistencial e não a uma modalidade concreta do processo de responsabilização dos sujeitos.
A positividade de uma responsabilidade dessa natureza caracteriza um grupo muito específico e,
não por acaso, localizado no oposto da estratificação social, os executivos de grandes corporações
empresariais (LOPES-RUIZ, 2007). Todavia, no campo socioassistencial, é possível vislumbrar o
mesmo processo, afinidades podem ser detectadas nos discursos produzidos ou utilizados pelos
adolescentes autores de ato infracional em relação às suas trajetórias pelo sistema de justiça. Da
perspectiva dos sujeitos, as mobilizações valorativas, seja do mercado, seja do campo
socioassistencial, ganham dramaticidade e são, portanto, mais abertas aos depoimentos. Tanto o
mundo do trabalho como o contexto punitivo do sistema de justiça propiciam formas de
individualização e, conseqüentemente, discursos sobre trajetórias sociais, que ordenam descrições,
julgamentos e percepções pessoais.
Supor uma interdependência entre esferas sociais tão distintas, também na perspectiva do
sujeito, levanta a questão sobre os termos pelos quais ela ganha expressão e fundamento. Nos
novos processos de organização do trabalho, cada vez mais a sociabilidade conduz os trabalhadores
ao enfraquecimento de uma representação coletiva e a uma política velada de esquecimento da
experiência e da construção do ofício, donde o medo da inutilidade e a valorização de atributos
142
As entrevistas com os profissionais dos programas de liberdade assistida, os adolescentes acompanhados e
seus familiares foram realizadas no segundo semestre de 2003 e início de 2004 com o apoio de um grupo de
pesquisadores, sob a minha coordenação, como complemento voluntário de um trabalho para qual fui
contratado. As entrevistas analisadas nesta seção compõem meu arquivo pessoal de pesquisa. Desde 1998,
tenho coletado e organizado dados primários e secundários sobre o novo campo socioassistencial. Parte desse
arquivo refere-se às atividades que desenvolvi como trabalhador desse campo (geralmente como
pesquisador). Para composição desse arquivo, também tenho recebido ajuda de colegas e pessoas que,
cordialmente, cedem documentos e materiais associados às suas respectivas trajetórias profissionais. Há
quem, por diversas vezes, me tenha tomado como estranho. Afinal, o que justificaria arquivar até bilhetes e
anotações rascunhadas, inúmeras versões do mesmo documento digital durante tantos anos?
281
potenciais do indivíduo (SENNETT, 2006). A insensibilidade com o sofrimento alheio torna-se
uma conduta generalizada, uma virilidade transformada em valor e que, em um ambiente
extremamente concorrencial, reverte o medo em indiferença e colaboração com a injustiça
(DEJOURS, 2000), algo muito próximo da “cultura viril” (ZALUAR, 1992) observada nos jovens
envolvidos com práticas delitivas. Na criminalidade juvenil, como no ambiente concorrencial dos
altos cargos executivos das empresas, o individualismo é acentuado, podendo se afirmar mediante
condutas de risco (PERALVA, 2000). A apreensão cognitiva do mundo se dá, sobretudo, por meio
de um esquema representações “hiper-realistas”, notadamente entre os jovens sob custódia do
Estado (VICENTIN, 2005). A experiência punitiva e os dispositivos de controle que incitam uma
subjetividade masculinizante, que se responsabiliza por toda sorte de infortúnios, a despeito da
violência sofrida e das condições reais de existência, revelaria, com coordenadas invertidas, o
empreendedorismo como disposição triunfante, o culto à performance corporal (EHRENBERG,
1991) tão defendidos pelo “novo capitalismo” (SENNETT, 2006) e a juventude como ideal para
todos os estilos e tempos de vida.
A atualidade da juventude tem na responsabilização punitiva o espaço de sua realização
plena. Para além das querelas sobre a natureza da política, o novo campo socioassistencial demarca
com clareza esse espaço por suas práticas de controle, os “acompanhamentos” e “atendimentos”
dos adolescentes autores de ato infracional143. A configuração da responsabilidade proveniente da
permeabilidade entre Estado e mercado ganha expressão pelas modalidades narrativas assumidas
pelos adolescentes – e seus familiares - sentenciados pela justiça. O discurso do controle
socioassistencial, seja na versão terceiro-setorista do “protagonismo”, seja na demonstração
corporal da rebelião nas unidades de internação, encontra seu objeto nesse sujeito inevitavelmente
motivado. Aqui, a eficácia do formalismo pode se pronunciar no costado da vida acossada pela
linguagem, sob as palavras de quem expõe sua história para mantê-la digna.
143
Adolescentes submetidos a uma das medidas socioeducativas dispostas pela legislação: Art. 112 do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Verificada a prática de ato infracional, a autoridade
competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – Advertência; II – Obrigação de reparar
o dano; III – Prestação de Serviço à Comunidade; IV – Liberdade Assistida; V – Inserção em regime de
Semiliberdade; VI – Internação em estabelecimento educacional; VII – Qualquer uma das previstas no art.
101, I a VI”. Para uma apreensão geral do circuito socioeducativo, ver fluxograma do sistema de justiça
(Anexo 2).
282
“Gosto mais é de assunto sério”
Orientadora: Ele me contou que na escola todo mundo fala de sexo: “Eu
fiz; eu aconteci; eu isso, eu aquilo outro”. E ele nada. Quer dizer, isso eu
estou traduzindo, tá? Não querendo...
Pesquisador: Exagerar.
Orientadora: Exato. E aí, poxa, por que ele não? Até porque nessa faixa
da adolescência ninguém fez nada, mas todo mundo fala que fez tudo.
Todo mundo fala tudo (risos). Não que, necessariamente, ninguém tenha
feito nada, mas é muito mais fala do que prática. E aí ele tentou. Como é
que ele poderia ter uma relação sexual? Ele colocou um cortador de
unha dentro do bolso e ele foi pra escola.
Pesquisador: Com um cortador de unha! (risos)
Orientadora: Pôs o cortador de unha dentro do bolso e foi pra escola.
Pesquisador: Pode se dizer que estava mal intencionado.
Orientadora: Exatamente (risos). Uma coisa planejada, assim: “Se eu
chego na escola um pouco mais tarde, eu sei que eles não vão me deixar
entra; se eles não deixarem eu entrar, se eu voltar pra casa, minha mãe
vai me comer a alma se eu cheguei um pouco atrasado na escola”. Então
isso tava meio que pensado, tava mal intencionado realmente. Ele foi pra
escola. De fato, ele chegou lá um pouco mais tarde, o portão já estava
fechado. Então ele não pôde entrar. E aí ele pensou: “Se eu for pra
minha casa, minha mãe vai me comer, vai me picar”. E aí o que ele fez?
Foi andar. Ele andou, andou, andou e tal e, segundo ele (pensou): “Não,
não quero isso. Vou embora pra casa. Mas se eu chegar em casa....”.
Acho que a preocupação maior era: “A minha mãe!”. Castradora, não
é? “E aí minha mãe vai brigar e mandar pau”. Passando uma moça na
rua, ele viu que tava próximo de um local onde tinha...
283
contumaz de sua própria violação. A linha narrativa dos depoimentos dessa primeira configuração
reflete essa cadência. As falas ganham consistência menos por uma articulação discursiva e mais
pela recorrência dos temas e justificativas, das menções alusivas que foram, muitas vezes, meros
estratagemas de desvio. Sua temporalidade não poderia ser outra, a repetição. Os conluios e os
acordos tácitos para que as circunstâncias e detalhes do ato infracional não fossem discutidos e
apresentados, acontecimento sem o qual não haveria nenhuma responsabilização punitiva, deram
sustentação a essa temporalidade. Presença em espectro, o ato infracional retornava, a despeito de
todos os esforços em não colocá-lo em palavras. Ora em meio às hesitações do profissional do
programa socioeducativo, ora na fala exacerbada da mãe do adolescente, esse retorno não se fazia,
contudo, sem divergências. As versões do ato suplantavam a possibilidade em descrevê-lo. Saber
antropológico pervertido em redundância de discurso. A cada perspectiva diferente sobre o ato
infracional e sempre a partir da validação da versão do entrevistado, uma mesma reposição
gramatical. As regras que colocam em trânsito a verdade do acontecimento foram as que
estruturam uma relação prática entre sujeito e objeto.
Decidido, segundo a sua orientadora social, a praticar a infração, André sai cedo de casa em
direção à escola, munido da arma que garantirá sua entrada à vida dos adultos, que lhe permitirá
colocar literalmente em ato a potência de sua “condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento”144: o cortador de unhas de sua mãe. Já “mal intencionado”, André teria
acreditado nos exageros típicos da adolescência, fase da vida em que “ninguém fez nada, mas todo
mundo fala que fez tudo”. Após solicitar ao pesquisador para excluir da entrevista o tema do ato
praticado por André, prossegue a orientadora social a descrever as características do adolescente.
Sem antecedentes, ele não manifestaria o uso de “gírias”, indicador de comportamento delinqüente
largamente adotado pelos profissionais dos programas socioeducativos. A noite em que passou na
unidade de atendimento inicial da FEBEM (UAI) não teria sido suficiente para incutir-lhe essa
marca. É preciso que se diga. André teve muita sorte e contou com uma rara compreensão do juiz.
Por muito menos, adolescentes são internados nas unidades da FEBEM. Se internado, ele seria
confinado no “seguro”, ala reservada a adolescentes ameaçados, sobretudo quando autores de
crimes sexuais. Nas unidades de internação, como no sistema prisional de adultos, vale o mesmo
tabu. A pena do crime de estupro (ou de tentativa) se paga com o próprio corpo ou, no limite, com
a própria vida. A gravidade do risco a que estava exposto André, no entanto, não teve lugar nas
entrevistas. Em especial, com o adolescente, a entrevista sequer abordou o ato. O pesquisador
respeitava, assim, o acordo firmado com a orientadora social145.
144
Art. 6º do ECA: “Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as
exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e
do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.
145
“Pesquisador: Há quanto tempo você atende o André?
284
Ao que sugerem as entrevistas realizadas com os profissionais do acompanhamento
socioeducativo em meio aberto, a ocultação do ato infracional constitui uma condição para a
diferenciação em relação ao tratamento que os adolescentes recebem nas unidades de internação.
Explicitar a infração também estaria muito mais associado à expiação vexatória experimentada nas
instâncias policiais e judiciais, como a delegacia e o Fórum. No “meio aberto”, o adolescente e sua
família seriam atendidos por profissionais que, ainda que sejam responsáveis pela emissão de
relatórios ao juiz, não pertenceriam a esse sistema punitivo. A natureza de seu trabalho seria, antes
de tudo, educativa. O ato não constitui um episódio ao qual fosse necessário vincular uma ação
educativa específica. Ao contrário do Direito penal, a execução das medidas em meio aberto
tomaria a pessoa do adolescente e não o ato praticado como referência. Isso não significa pleno
funcionamento do princípio jurídico do respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, tal qual previsto pela legislação da área da infância e adolescência. No
acompanhamento “em meio aberto”, a regulação é de outra ordem. A infração serve para indicar
qual a área do saber socioassistencial deve ser acionada, donde o encaminhamento de André ao
“grupo de saúde”, em que os adolescentes participam de “oficinas de sexualidade”. Também houve
todo um esforço de sensibilização para o atendimento terapêutico, determinado pelo juiz. No “meio
aberto”, explicitar a infração implicaria uma restrição do campo de intervenção. Como sensibilizar
para um tratamento terapêutico, que pressuporia a concessão do sujeito, se ele é de pronto
associado a uma infração penal? No “Plano personalizado de atendimento” (PPA), o orientador
social indaga sobre os interesses do adolescente, procurando dispor de serviços e recursos para
viabilizar as atividades de acordo com o que foi levantado. Obviamente, nem sempre isso é
possível. Por isso a existência de um instrumento como o PPA indica o sentido do “meio aberto”.
Ele registra as supostas particularidades do sujeito, atrelando-os a interesses e à freqüência a
serviços ou oficinas. Também estabelece objetivos e metas. O vocabulário e a racionalidade da
gestão social são incorporados à rotina de trabalho, mas, embora as intenções possam ser
objetivadas em linguagem administrativa, não há qualquer garantia de sua realização. No quadro
estrutural de completa precariedade da rede de serviços públicos, definir os encaminhamentos
torna-se uma garimpagem de recursos escassos, quando não inexistentes. A determinação do juiz
Orientadora: O André está aqui há quatro meses. O André desde quando ele é atendido... o André tem, tem...
fez dezesseis anos há pouco tempo. Fez dezesseis anos agora em maio. Mora ele, o pai, a mãe e dois irmãos
menores. Não sei o que posso te dizer da estrutura infracional e da não estrutura infracional. Não sei se dá
pra usar esses termos. Mas o André não tem...
Pesquisador: Por que você fala isso?
Orientadora: O André, não sei... como é que vai ser, de repente <hesitante, quase incompreensível>, a
infração dele vai ser redigida. Posso citá-la, mas peço a preservação.
Pesquisador: Olha. Deixa eu te falar uma coisa: tudo que a gente está conversando vai ser escrito. Mas eu
acho que se isso vai prejudicá-lo... só se o que eu escrever <menção ao anonimato de todos os citados
durante a entrevista>
Orientadora: Ah! Ta, tá ok.
Pesquisador: Mas, mesmo assim, se você quiser...<caso não quisesse falar sobre a infração>”
285
reverte-se em uma abstração social, com o agravante de que o seu descumprimento gera
conseqüências sobre o adolescente. Não raro, na ausência, por exemplo, de programas públicos de
atendimento a usuários de substâncias químicas, o magistrado decide pela internação com o intuito
de que ela afaste o adolescente do convívio social que, supostamente, o teria levado ao consumo e
tráfico. Em razão de sua presunção gerencial-administrativa de prever a alocação de bens e
recursos a partir de um esquema de vinculação entre interesses do adolescente e as condições da
rede de atendimento, o “Plano” revela-se, pela realidade da destituição social em voga, uma das
expressões mais evidentes – e caricatas - da forma jurídica dos direitos esvaziados de justiça:
Orientadora: Ele descreveu o fato. Ele <atrás>, a moça seguindo adiante, deu a
possibilidade dela correr. A moça correu e gritou. Ele correu e gritou pra
esquerda. Então, nesse sentido que não dá pra caracterizar como estupro. Tanto
que depois ele foi, correu, caiu, se sujou no riozinho, coisa e tal. Foi pro clube,
entrou no banheiro, lavou o rosto e o segurança: “O que tá acontecendo? Por
que você está entrando aqui?” E ele descreveu o que ele tinha falado, o que ele
tinha feito (risos). Na delegacia, ele contou e, para nós, ele também contou,
entendeu? E aí ele apresenta reflexão disso tudo, no sentido de: “Eu sei que isso
não foi legal. Eu posso conseguir através de outras maneiras.”. Isso são falas
dele: “Que eu posso ter uma relação sexual com a pessoa que eu queira, que a
pessoa também queira; não precisa ser forçado.” É esse o sentido. Para o André
foi solicitado medida protetiva também, encaminhamento psicoterápico, mas eu
ainda estou com ele no processo de apresentar <a proposta de tratamento>. Não
um “olha, o juiz mandou você fazer terapia, você vai fazer”. André, agora, foi
inserido num trabalho com o núcleo <Núcleo de Saúde>. Ele está no grupo de
saúde. No grupo de saúde ele trabalha DST-Aids, sexualidade, trabalha
saúde/doença, saúde física, saúde mental também. Não vai tão a fundo no
estudo, mas corpo erótico, sistema reprodutivo... a gente tem uma parceria com
um centro de referência em DST-Aids.
Pesquisador: Que legal.
Orientadora: Então, são essas temáticas. E a princípio ele até havia solicitado, a
gente fez um levantamento de interesses. O PPA <Plano Personalizado de
Atendimento> também, para levantamento de interesses: “O que você gostaria
de saber? Você tem interesse em conhecer...”. E a questão da sexualidade foi
algo que de fato <gerou interesse>.
286
André: Lá eu gostava de ir, tinha pessoas que eu tinha amizade. Por isso que eu
saia. Eles me chamavam pra ir, eu ia.
Pesquisador: Lá você tinha pessoas que tinha amizade, mas na família não?
André: Na minha família é uma festa tal, depois que vira as costas todo mundo
fala de todo mundo, aí é ruim.
Pesquisador: E aqui? Fazia conversa com outros meninos aqui <programa
socioeducativo>?
André: Então, tipo teve uma vez que teve um grupo de meninos aqui, a gente
ficou conversando, discutindo um assunto, foi bate-papo legal.
Pesquisador: O que vocês discutiram?
André: Um caso da orientadora, que tinha feito uma entrevista com cada um, e
colocou na cartolina coisas que você gosta, coisas que você não gosta. Em casa
você tinha que contar coisas que você gostava e não gostava. Depois a gente ia
discutir sobre aquele assunto e opinar “mas por que você não gosta?”, “por isso,
por aquilo”. E depois, no final de tudo, o grupo tinha que decidir uma coisa que
gostava que era preferência de todo mundo. No caso todo mundo colocou
mulher.
O programa socioeducativo não oferece nada muito além desse tipo de acompanhamento,
que tematiza os interesses do adolescente e procura, dentro de suas limitadas possibilidades
materiais, concretizar o “Plano”. Com a intenção de tornar o adolescente parte ativa do processo
educativo, essa tematização limita-se a ser apenas uma nomeação. A relação estabelecida entre os
atributos do adolescente e as ações socioeducativas é direta e sem volteios. As circunstâncias do ato
de André, sem dúvida, amenizaram a avaliação de todos os envolvidos, desde o juiz até os
familiares. Por se tratar de uma tentativa de estupro e levando em conta os fatores atenuantes da
situação, que sugerem ausência de periculosidade do adolescente, a nomeação do “plano” circula
ao redor do tema “sexualidade” e opera uma passagem do delito ao desejo, ganhando representação
pelos “interesses” e objetividade pela participação nas “oficinas” e pelas conversas, igualmente
pautadas pelo tema, com a orientadora social. Tudo isso a partir do simples manejo de um
instrumental administrativo. Mas os significados educativos do acompanhamento não são
corolários da aplicação desse instrumento. Eles compõem, junto com o “Plano”, a grade simbólica
por intermédio da qual o ideário e o dispositivo da responsabilização punitiva podem ser
organizados e exercidos segundo o fraseado dos direitos. O respeito à condição peculiar do
adolescente, princípio central do ECA, dá o norte do discurso profissional ao mesmo tempo em que
as garantias constitucionais da defesa jurídica podem ser violadas justamente em nome do conteúdo
educativo da lei146. O acompanhamento de André apresenta, nesse sentido, o outro lado da
responsabilização punitiva que o aparato socioassistencial costuma incitar junto aos adolescentes
em medida socioeducativa. Em comparação àqueles com histórico de internação, André possuiria,
nas palavras de sua orientadora social, outra “estrutura infracional”. Conseqüentemente, o
acompanhamento assume a finalidade de ampliação da sociabilidade do adolescente, que somente
146
Sobre esse desconcertante aspecto contraproducente dos direitos de crianças e adolescentes, ver Fajardo
(2004) e Frasseto (1999; 2004; 2005).
287
terá efeito se o cotidiano de André for representado, com o consentimento de todos os implicados
no atendimento, inclusive do próprio jovem, como restrito e problemático.
288
André: Ele foi criado num ambiente bem fechado. Pai dele era rígido, a mãe
dele também, aí ele aprendeu sendo assim.
< André lacrimeja. O assunto família vai ter que ficar pra depois.>
Pesquisador: O que você pensa para você daqui para frente <depois que concluir
a liberdade assistida>?
André: Penso em estudar, fazer até o terceiro colegial. Faculdade eu não penso
não, fazer algum curso arrumar um emprego. Poder ter a minha própria casa,
por enquanto não, ficar morando com meus pais. Posso comprar alguma coisa
para eles morarem, ajudar eles por enquanto e depois ter minha independência.
Por enquanto ainda penso em morar com os meus pais, ter um emprego, estudar.
Conforme uma das principais linhas estruturantes do campo socioassistencial, seja ele o
antigo ou o novo, a família é contraposta ao saber técnico sobre os segmentos populacionais à
margem dos meios privilegiados de apropriação da riqueza social. Ainda que alianças possam ser
estabelecidas com as famílias147, as práticas de atenção ao público juvenil as tomam,
majoritariamente, como objeto de controle, cuja possibilidade de arregimentação sinérgica pelo
dispositivo é funcionalmente residual. Nesse aspecto, é preciso atentar para a diferença da
conformação histórica do “social”. Ao contrário do que vigorou no núcleo do liberalismo, entre
nós, mais especificamente nos últimos vintes anos, o “social” consolidou uma posição de
permeabilidade entre mercado e Estado – e não apenas ocupou um espaço social intermediário
entre eles. Se na emergência européia, tratava-se de responder aos riscos representados pela
“questão social” mediante um dispositivo de atenção e cuidado dos pobres, cuja responsabilidade
por sua mazela material não poderia ser atribuída à vontade individual, no nosso novo campo
socioassistencial, em contrapartida, a ameaça da anomia social é subsumida pela assunção
anacrônica dos direitos sociais (avançadíssimos e de “terceira geração”, para falar com Bobbio). O
vazio instituído por sua inefetividade é o homólogo invertido - verdadeira “fratura social”, no dizer
de Castel - do espaço intervalar aberto pela modernidade capitalista do século XIX, contexto
histórico da emergência das práticas liberais de assistência e moralização da pobreza. No plano
microssociológico da nossa formação histórica do dispositivo, a integração entre mercado e Estado
ou economia e política não pode ser explicitada no momento da realização - para retomarmos o fio
da análise - de um acompanhamento socioassistencial. Em relação à permeabilidade entre mercado
e Estado, as configurações aqui analisadas dizem respeito, sobretudo, aos mecanismos prático-
discursivos que sustentam o desenvolvimento e aplicação da tecnologia política de modelação do
consentimento com as injustiças sociais pela via da responsabilização punitiva dos autores juvenis
de atos delitivos, extensiva também aos seus familiares. O consentimento com a injustiça social
requer o uso intensivo dessa tecnologia, o que impõe também uma incidência de maior duração do
147
O terreno das alianças possíveis entre profissionais socioasssistenciais e famílias atendidas, no interior de
um dispositivo de normalização, foi analisado no hoje clássico A polícia das famílias, de Jacques Donzelot
(1986). Em chave teórica diferente, mas muito próximo ao trabalho do sociólogo francês, outro estudo
fundametal sobre o tema da normalização, especificamente, no campo da “delinqüência” juvenil, consiste em
Platt (1977).
289
controle para que se produza efeitos na subjetividade do atendido. A execução de uma medida em
meio aberto já se revelou incapaz disso: o disciplinamento dos corpos e a padronização da conduta
resultam, dentre outros fatores, de uma permanente estrutura normativa, composta de ações
individualizadas e sistemáticas. Está longe de ser esse o princípio da execução das medidas em
meio aberto, o que, no entanto, não implica afirmar que ela não tenha nenhuma conseqüência sobre
a vida do atendido. Daí o valor de paradigma do enunciado “a gente enfatiza o que é positivo”, dito
pela orientadora de André quando indagada sobre o modo como o acompanhamento era conduzido.
Operador prático do formalismo dos direitos, o profissional do acompanhamento socioeducativo
sublinha os traços e características das condutas e comportamentos já existentes, sinaliza ao invés
de disciplinar, manipula no lugar de produzir, motiva e estimula para não questionar a
subjetividade do adolescente.
Ao “enfatizar o positivo”, a orientadora procede mais uma vez a uma nomeação. Nesse
aspecto, não existem grandes diferenças em relação ao modo pelo qual a mesma profissional, à
semelhança dos procedimentos adotados nas “dinâmicas” do programa cultural para jovens,
tematiza um problema de ordem moral servindo-se de uma referência ficcional. Mas, ao contrário
das “dinâmicas”, o trabalho com o adolescente autor de ato infracional não envolve a criação e
dramatização de uma cena e, conseqüentemente, de um personagem. A prerrogativa do trabalho de
orientação socioeducativa prescinde desse recurso, pois a própria figuração simbólica que enquadra
o atendimento, permitindo-lhe uma estabilidade a partir de um acordo cognitivo, se inicia no
momento em que o adolescente “se apresenta” ao programa, por uma determinação judicial. O
atendimento continua a ser uma representação do Direito, por mais que os profissionais e
defensores da aplicação das medidas em meio aberto neguem ou tentem minimizar. E com essa
pertinência não legitimada e, em grande parte, negada, o trabalho de orientação do adolescente
procura firmar-se em uma posição de contraposição ao conjunto dos atores do circuito
socioeducativo (poder judiciário e seu corpo técnico, ministério público, defensoria, polícia civil e
militar, FEBEM etc.). Dessa posição, a prática discursiva do profissional ganha uma coloração
“alternativista”148, sem, entretanto, a mesma significação política pleiteada pelo ideário
148
Sobre a história recente dessa concepção na área da infância e juventude, ver Ota (2005).
290
movimentalista na área da infância e juventude do início da década de 80. A manutenção de um
traço ideológico na ausência da ação que lhe conferia existência pública não apenas revela seu
anacronismo, mas, principalmente, expõe sua funcionalidade no formalismo normativo do novo
campo socioassistencial. Se, do lado do grupo atendido, a responsabilização do sujeito constitui a
meta do acompanhamento, não há, em contrapartida, essa dimensão do lado do profissional – e, por
razões de princípio do dispositivo, ações de repressão devem ser criadas para o caso de sua
presença. Uma responsabilização do profissional dos programas em meio aberto implodiria o
núcleo da eficácia do trabalho. Na condição de contraponto de todo o circuito socioeducativo, o
orientador do “meio aberto” pode reivindicar um significado “alternativo” para suas práticas de
nomeação e renomeação ostensivas. Ao contrário das outras instâncias e atores desse circuito,
marcados pela fixação dos critérios de responsabilização punitiva, o orientador não precisa se
prender a prescrições predeterminadas; sua prática seria, nesse sentido, “alternativa” às dos demais,
ainda que participante e agente fundamental do circuito. Para esse profissional, se impõe a adesão
funcional ao formalismo e não uma responsabilização pelas conseqüências do exercício do ofício.
Trata-se, por meio de seu trabalho, de dar operacionalidade ao vazio semântico da linguagem e,
conseqüentemente, modelar os contextos práticos a partir de uma massiva aplicação de recursos
simbólicos de desreferencialização. Daí a unidade ficcional do atendimento, em permanente
variação e deslocamento, muitas vezes materializada pelo uso moralizante da ficção, a exemplo do
que fez a orientadora de André:
291
O trabalho da orientação não se resume, todavia, a pontuações moralizantes. Todo
adolescente que adentra o Sistema de Justiça passa pelo mesmo ritual simbólico. A técnica jurídica
e o trâmite codificado dos corpos e falas, atributos definidores do ritual, evocam a necessidade de
tradução para o público secundário, os familiares do adolescente. A depender do momento e do
lugar do circuito socioeducativo, essa tradução é feita pelo defensor público ou advogado, a
profissional da unidade de atendimento inicial ou até mesmo pelos familiares de outros
adolescentes, enfileirados e à espera na calçada em frente ou nos corredores do Fórum das Varas
Especiais da Infância e Juventude. No “meio aberto”, essa função é exercida pelo orientador social.
No caso do atendimento de André, adolescente sem passagem anterior pelo Sistema de justiça, os
esclarecimentos da orientadora para os familiares, sobretudo para a mãe, expressaram a outra face
do formalismo socioassistencial. Explicações sobre os procedimentos jurídicos podem ser
compreendidos como uma espécie de trabalho social para amenizar os efeitos da eficácia simbólica
do Direito. Entretanto, não há razão para acreditar que esse trabalho possua um conteúdo autônomo
e passível de conferir uma identidade de ofício ao profissional que o realiza. Contínuo ao ritualismo
jurídico iniciado no Fórum, o acompanhamento de André consistiu na tradução do Direito para o
adolescente e seus familiares, mesmo que essa função tenha sido, na maioria das vezes, revestida
de significação educativa pela orientadora. É do campo simbólico do Direito que ela extraiu a
eficácia de sua fala junto à mãe de André. Nem analogia, nem paródia, talvez a paráfrase seja a
figura retórica mais apropriada para representar esse acompanhamento. Que os atendidos não
pudessem atestá-la, nenhuma surpresa, pois foi justamente devido à ocultação do referente
parafraseado, o ritualismo jurídico e sua codificação, que a fala da orientadora pôde repercutir
sobre eles, produzindo, inclusive - por que não reconhecer -, “efeitos terapêuticos breves”, a
tranqüilidade e uma posição perspectiva de questionar a si mesma, considerando o lugar do filho:
Pesquisador: A senhora comentou que a orientadora deu uma orientação que foi
boa para a senhora?
Mãe: Ela conseguiu me tranqüilizar que isso que o André fez não é um bicho de
sete cabeças. Não é eu tacando na cara dele ou tentando passar na cara dele o
que aconteceu que ia ajudar ele. Até o momento que eu conversei, ela falou:
"Olha mãe, a gente não pode te dizer o que aconteceu, não pode dar receita de
como criar filho nem nada, mas não é você crucificando ele que você vai
conseguir ajudar ele".
Pesquisador: É fácil não fazer isso?
Mãe: É fácil assim: eu sou a mãe dele, se eu não tentar ajudar ele eu acho que
vai ficar mais difícil a situação tanto pra ele como pra mim. Eu parei um pouco
e pensei: "Eu tenho que tentar ajudar ele e saber o que foi que levou ele a ter
esse tipo de atitude". Em vez de pegar ele e ficar crucificando ou bater nele eu
tenho que procurar achar o que foi que desencaminhou pra ele ter esse tipo de
atitude por um momento <apenas>, mas o que foi que levou?
Pesquisador: A senhora se encontra com a orientadora?
Mãe: Me encontro com ela toda sexta-feira.
Pesquisador: Sozinha?
292
Mãe: Sozinha.
Pesquisador: Vocês conversam de outras coisas?
Mãe: A gente também conversa sobre outras coisas, o dia a dia da gente. Às
vezes como eu ajo e como o André age comigo, se não é uma coisa, <se> eu
como mãe dele estou levando a cometer essas coisas. Ela quer chegar numa
consciência tanto eu como ele. Ela faz eu ver o meu lado e depois faz ver o lado
dele. Ela quer mostrar a realidade pra gente. Não eu ficar só condenando, ver o
meu lado se eu também não errei, se eu também não fiz alguma coisa pra
desencadear isso. Então a gente conversa sobre várias coisas.
A posição perspectiva propiciada pela orientação não se espraiou em relação aos que, como a
família de André, experimentavam as agruras da força simbólica do Direito. Muito pelo contrário.
O extenso e pormenorizado relato da mãe sobre a experiência do dia em que seu filho foi detido
pela polícia e encaminhado para o Fórum deixa claro sua recusa em estabelecer qualquer
reconhecimento ou relação de aproximação (posição perspectiva) com as pessoas em igual situação
que a sua. Nesse relato, foi antes com a vítima do filho que a mãe procurou representar um vínculo
comum. Em outras configurações da responsabilização punitiva dos jovens, esse tipo de
representação não teve a intensidade como esta. O caráter iniciático da experiência de André pelo
Sistema de Justiça explica em boa parte a profusão do relato e a recusa de sua mãe em aceitar a
validade dos esclarecimentos que familiares de outros adolescentes haviam fornecido no dia de sua
apreensão. Familiares de adolescentes com passagens mais longas pelo circuito socioeducativo,
principalmente aqueles com histórico de internação, são freqüentemente mais comedidos ao narrar
as experiências de submissão e controle, vividas enquanto objetos do ritualismo jurídico. Não
sendo esse o caso de André, as descrições de sua mãe puderam ser mais detalhadas, na linha de
uma tática do excesso e da redundância discursivas como defesa contra a estigmatização. Também
pela mesma razão, os discursos de André, de sua mãe e da orientadora compuseram uma
constelação ideativa extremamente coesa, outra característica bem diferente da maioria das
configurações analisadas. Mas, para tanto, foi imprescindível produzir e atribuir, em consenso, um
traço comportamental ao adolescente que justificasse seu ato infracional sem, contudo, estigmatizá-
lo. Foi sob essa exigência que a disponibilidade de André para as tarefas práticas e sua reclusão
social de “poucas amizades” serviram para construir uma justificativa da motivação que levou o
adolescente à tentativa de estupro, ao encontro entre as patéticas circunstâncias do ato infracional e
a gravidade da tipificação penal a que ele estaria sujeito. Por isso a retidão de André e o seu gosto
em “ser útil” ou por “assunto sério”, características que os relatos sublinharam a toda hora,
reforçaram o caráter extraordinário de seu ato. Ainda que “já mal intencionado”, o adolescente não
teria consciência das conseqüências de sua investida delitiva. A tematização da escolha da forma de
coação da vítima – um cortador de unhas – corrobora o significado de desvio do ato em relação à
costumeira retidão do comportamento do adolescente, mas de modo a explicá-lo, dando, assim,
subsídios para o trabalho educativo em “meio aberto”, o que significa, nesse caso, preservar a
normalidade até acentuá-la ao nível do excesso, transformando-a em mote explicativo da tentativa
293
de estupro. Um excesso de retidão e de zelo pela utilidade de sua conduta e pela normalidade de
sua vida teria determinado a morfologia pueril do ato infracional. Daí por que a “frieza” e a
sinceridade manifestadas nos depoimentos de André, quando apreendido pela polícia e em todos os
momentos de inquisição no Fórum, não tenham, no “meio aberto”, alimentado julgamentos pelo
viés das categorias da delinqüência e da periculosidade social. Traços que poderiam identificar e
antecipar, em adolescentes com histórico de internação ou em reincidentes, um pendor quase
perverso em delinqüir foram acolhidos pelas práticas de discurso típicas do novo campo
socioassistencial. Aqui, o formalismo jogou em benefício do jovem. A motivação subjacente ao ato
deve expressar uma realidade conflitiva, mas longe de qualquer patologização da subjetividade.
Essa conflitividade teria que ser encontrada nos impasses da vida social do adolescente, em
particular, nas relações que mantinha com seus pais. A configuração da responsabilização ganhava,
assim, a fisionomia da normalidade de um sujeito em “condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento”.
294
outros jovens. Embora sem grande peso na fala da orientadora, a igreja constituía um dos temas
pelos quais o conflito entre o adolescente e o contexto familiar submetia-se ao foco do
atendimento. Pela tematização da participação nos cultos e no cotidiano da igreja, tornava-se
possível dar uma mesma direção aos esforços de localização dos indícios preliminares ao ato
infracional, encadeá-los em uma série a partir da qual atendidos e profissionais apreenderiam os
acontecimentos em retrospecto, formulariam explicações e significariam o que deveria ser feito. A
responsabilização encontra seu universo de pertinência; traços comportamentais e predileções
podem ser atribuídos aos indivíduos, indicando tendências e insinuando explicações, ainda que
hesitantes. Aliás, importante dizer que, diferentemente dos saberes construídos pelas práticas
clássicas do “social”, no novo campo e, principalmente, no “meio aberto”, como já mencionado, o
trabalho e o conhecimento dele extraído não se assentam sobre uma regularidade específica,
instituída no tempo e cristalizada no espaço. Além de contínuo ao ritualismo jurídico, há nesse
campo uma importação de técnicas inventadas pela velha assistência social (como as famigeradas
“visitas domiciliares”). Também perpassam práticas de cunho religioso e dos movimentos sociais
urbanos da virada dos anos 70 aos 80. Mas, se não parece razoável afirmar uma especificidade
prática a partir dos parâmetros do “social” de antanho, importante interrogar, em contrapartida, a
singularidade do novo campo socioassistencial. A tese do formalismo inscrito nas práticas de
controle como prerrogativa máxima desse novo campo constitui, a nosso ver, uma interpretação
mais adequada para a crítica das modalidades contemporâneas de dominação. Que o formalismo
normativo no novo campo socioassistencial tenha se valido de uma estrutura preexistente de
“disposições práticas”, esse fato diz respeito, antes de tudo, ao princípio mesmo de sua eficácia. A
manutenção do “habitus” ou de uma ordem de conduta profissional não dá garantias ao
investigador de que o “campo” seja igual ao dispositivo liberal de tratamento da pobreza, o
“social”, donde a dificuldade em objetivar, metodologicamente, o formalismo normativo. Seu
espectro é expressão de sua própria realidade material. O atendimento em “meio aberto” apresenta
com clareza a incorporação de antigas práticas em um registro especificamente novo.
295
Orientadora: Acho que ela cita o pai no sentido de: “Poxa, me dê você um
apoio, você se relacione comigo, enquanto pai; divida, compartilhe as
responsabilidades da casa”. Mas ela também: “Como eu sei que ele não vai
falar, eu chamo a atenção”. Já brigou, mas quer que o pai brigue. E aí eu fui à
visita. E a visita <casa> é um quarto e cozinha. Ele < André > tem um irmão
com dez, um de nove anos...
Pesquisador: Dez?
Orientadora: É, são dois irmãos.
Pesquisador: Um de dez?
Orientadora: É. Dez ou nove, não tenho certeza.
Pesquisador: Certo.
Orientadora: E a menininha de dois anos e pouco.
Pesquisador: Certo.
Orientadora: Então, é um pouco da casa. Tem a cozinha e no quarto dorme todo
mundo. Um quarto e uma sala, que é uma coisa só.
Pesquisador: Todos dormem no quarto?
Orientadora: No mesmo espaço. É uma beliche e uma cama de casal. O André,
ele também acompanha as relações sexuais dos pais, de uma certa forma...
Pesquisador: Ele cita as atividades dos pais?
Orientadora: Prá?
Pesquisador: Prazer.
Orientadora: Se ele tem?
Pesquisador: Se já comentou que ouviu ou viu...
Orientadora: Não. Acabaram tendo...
Pesquisador: Não...
Orientadora: Não. Eles não tem e nem de... sei lá: por mais que fale: “Ó, vou
dormir, mas não...” É jovem, né? Então, porque acompanha e talvez isso tenha...
sei lá... sendo um fator que... <Assunto muito resistente. Tento mudar>
Pesquisador: É. Mas é um cara tranqüilo. Assim, a princípio. Você vê tudo isso
que chega nessa questão aqui, né... que ao mesmo tempo também não é nosso
espaço...
Orientadora: É. <Ele> tem interesses, no crescimento cultural, em estar sendo
inserido em um curso de técnicas administrativas.
296
princípios do novo campo do que pudor ou resguardo ético do profissional. Esse modo impreciso e
vacilante da avaliação não é completamente indeterminado. Ao impasse em convocar um saber que
conferisse consistência ao encadeamento dos eventos que desembocaram no ato infracional,
sobreveio o jargão profissional, cujo conteúdo já revela por si só a região animada pelo
formalismo. O improvável acesso aos bens e serviços públicos cimenta a base da funcionalidade do
orientador social como operador da desreferencialização permanente. É justamente pelo manejo
socioassistencial do discurso – e não pela posse de um saber disponível - que se delineiam as
fronteiras de um universo imaginário, no interior do qual a virtuosa simbolização dos direitos de
cidadania desliza sem entraves, reforçando, por intermédio da autonomia e generalização de sua
gramática, o exercício prático de seu contrário. E quanto maiores a motivação e o vigor
protagônico do sujeito atendido, a exemplo do desejo de “crescimento cultural”, mais intensa será
sua objetivação. Eis o princípio de regulação gramatical no novo campo: quanto maior a dinâmica
do sujeito, maior a estática do objeto. Não foi, portanto, em razão da boa ventura contida em um
achado de pesquisa que o discurso em defesa do ideal da família, pronunciado em conjunto pela
mãe e o adolescente, tenha figurado, de forma cristalina, essa gramática. Não por acaso que a
responsabilização moral pelo curso da vida e suas intempéries tenha ganhado lugar na avó materna,
demandante de total atenção e vigilância, sujeito da dor em silêncio.
Pesquisador: Fiquei muito curioso de saber uma coisa, o que você acha que é
uma família legal, boa?
Mãe: Minha família é uma família boa, apesar dos problemas que todos nós
enfrentamos, porque pode parecer que não, mas esse negócio da minha mãe
assim,... eu acho que eu fui a que ficou mais próxima da situação dela. Apesar
de eu estar mais próxima do problema da minha mãe, todo mundo sentiu. A
minha família é uma família boa! A única coisa que eu digo pra você é que teve
tantas coisas, e então tinha certas coisas que eu não sabia lidar, não tinha
paciência! Hoje em dia com a reunião com a orientadora, então as vezes eu falo,
eu tinha que pagar água, tinha que pagar luz, tinha que pagar imposto, tinha que
por mantimento dentro de casa, tomar conta das crianças pequena... e tipo
assim, minha mãe doente, então eu com aquela responsabilidade todinha nas
costas, tinha hora que eu estourava com os meus irmãos! Não com os que
ajudava, mas com os que não ajudava. Eu falava assim: “Tem que ter
consciência!” A minha mãe era duro de se lidar com ela. Se fosse outra família
punha ela num lugar e deixava lá. Mas aquilo partia o coração, você entendeu?
Era minha mãe, ela lutou para criar a gente e tudo. Então a gente era uma
família com todos os atributos, com todas as brigas, as dificuldades... Mas na
hora que precisasse era só a gente! Deus me perdoe, mas eu vou falar pra você,
a gente não podia contar com ninguém. Ela adoeceu com trinta e quatro anos. A
minha avó veio, buscou esse <outro irmão> que está em Minas Gerais, ele tem
trinta e poucos anos. Levou ele e um irmão meu que hoje está com quarenta e
poucos anos.
Pesquisador: Tinha algum motivo especial?
Mãe: Minha avó levou esse porque a minha mãe estava doente da cabeça, foi
dele que ela ficou doente! Pra não deixar junto...
Pesquisador: O que era?
Mãe: A gente passava com ela nos médicos, e eles falavam que eram resguarde
quebrado, mas tem uns médicos que falam que não existe isso!
297
Pesquisador: Você sabe o que é resguardo quebrado? Não? É quando ela tem
uma criança, e tem que ficar um tempo descansando e ela não fica. É isso né?
Mãe: Não foi de um filho só que ela quebrou o resguarde. Ela ganhava as
crianças e já ia trabalhar, pegava sereno, lavava roupa e não podia, né?
Antigamente as pessoas tinham muito isso, mas os médicos falam que não
existe esse negócio de resguarde quebrado. Eles falam que chega uma hora a
cabeça da pessoa, <pelo menos a psiquiatra> não dava, estourava a velhinha...
Pesquisador: E você com toda essa pressão, com tudo isso?
Mãe: Eu não sei! Uma vez eu fui numa psicóloga aqui em Santana. Eu falei pra
psicóloga: “Não sei como não fiquei louca.” Porque eu contando para você é
uma coisa, mas você viver ali, dia a dia, e ele era muito pequeno, por isso que
eu digo pra você que o André era uma criança muito boa. Deus sabe o que faz!
Pesquisador: André, você percebia essas coisas que ela passava?
Mãe: Não!
André: Algumas coisas só depois de grande. Eu cheguei a ir ao hospital,
cheguei a ver ela internada na Santa Casa... o pé dela, depois ela quebrou a
bacia, ela foi andar e quebrou a bacia. Depois de um tempo que o pé dela estava
cicatrizado que ela foi se conformando com a situação. Antes do pé sarado, ela
ficava andado de lá pra cá, ela estava acostumada, era o jeito dela.
Mãe: Quando ela foi amputar o pé, na Santa Casa tinha uma psicóloga para
acompanhar. Ela falou assim: “vocês vão ter que ter paciência porque agora
juntou dois problemas. Antes ela tinha problema da cabeça, agora além de não
ter o juízo muito certo, ficou sem o pedaço do pé.” Então no começo eu tinha
que estar muito próxima a ela.
André: Foi triste. Ela estava acostumada andar de lá pra cá, com o pé cortado
não poder andar, ficar em cima de uma cama.
Mãe: Ela era muito agitada, era trabalhadeira, não parava, chegava em casa, ela
tinha dez filhos e nós andávamos impecáveis, todos limpinhos, nós íamos para
escola, estudava. Ela era uma pessoa muito extrovertida. Então..., ficou ruim da
cabeça. Aí depois ficava nesse “interna e sai, interna, sai”. E também sem
contar que você sente dos seus filhos não estarem muito presente. Quem sempre
ficava do lado dela era eu. Eu sempre ficava do lado dela. Eu sentia que ela
precisava muito de um apoio. E depois dessa passagem da cabeça, surge essa
história do pé. Aí pronto! Tinha hora que você via que ela saia fora do juízo.
André: Mas também ela tinha uma coisa, quando ela estava sentido dor ela não
falava, ela guardava pra ela mesmo, ela podia estar com o pé sentindo dor,
quando quebrou a bacia ela não falou pra ninguém, ela ficou deitada com a
bacia quebrada e não falou pra ninguém.
Mãe: Sabe como eu descobri? Eu chegava na cama dela de ponta de pé,
costumava ficar observando ela, eu ficava muitas horas assim quietinha e
observando ela. Então eu via que ela estava deitada e via que ela segurava a
respiração, eu falei pra ela: “mãe o que você aprontou?” e ela: “ nada.”, e eu:
“Mãe, o que você aprontou?”, ela: “nada.” Eu falei: “Mãe você aprontou alguma
coisa!” Porque ela fez a cirurgia e cortou o pé, e aqui na perna eles iam cortar
mais, mas a médica achou que era uma judiação cortar a perna dela todinha.
Então o que a médica fez? Colocou uma veia de carneiro para ela não perder a
perna. E sem contar que ela já tinha passado por uma cirurgia anterior aqui, e na
hora da cirurgia deu problema de enfarto, alguma coisa, e ela precisou fazer um
enxerto. Então essa foi uma cirurgia, esta outra foi outra. Ela ficou um longo
tempo de repouso, e essa minha irmã, que mora lá na casa dela, ficava de vigia
pra ela não fazer nenhuma ‘arte’.
298
“No final do mês, chega a conta pra pagar”
149
“Pesquisador: E qual é a diferença da conversa que a gente está tendo agora da conversa que você tem
com o pessoal da LA?
Benito: É que, tipo assim, as mesmas conversas que você está conversando comigo hoje, acho que ela
conversa, só que conversa aos poucos. Ela fala uma coisa, na outra semana ela fala outra e na outra ela fala
outra, aos poucos. Até que termina a LA e já deu tempo de falar tudo. E é assim: guarda quem quer. Eu
mesmo guardo assim: procuro ver o que é bom pra mim e vou guardando.
Pesquisador: Você acha que eu estou te dando conselhos?
Benito: Você está perguntando pra mim o que é certo e o que é errado. E eu estou te respondendo o que eu
posso. E pelo que eu vejo, se não fosse bom, você não me chamaria aqui.
Pesquisador: - E você também não viria aqui pra conversar comigo?
Benito: Eu acho que não.”
299
pelo fascínio de classe e sua inação política. Que os entrevistados possam suspender – e não raro o
fazem - as regras do jogo que lhes garante certa proteção contra o ímpeto objetivante do
pesquisador, e que com ele partilhem informações sob a tutela de um suposto saber desinteressado,
isto não implica dar aos que detêm o privilégio da pergunta a autoridade subjetiva sobre as
respostas. Ainda mais quando se trata de um campo prático no qual a atenção e a assistência
passam, cada vez mais, a serem modeladas pela linguagem, em seu movimento incessante de
transformação, e menos pelos saberes constituídos de uma autonomia profissional sobre o “social”.
O sentido que ganha corpo pelos acontecimentos trágicos da família de Benito prescinde de
ilustração metafórica ou do realismo perspectivista pleiteado pela experiência etnológica. Ele se
inscreve no discurso a partir de um estado de mimesis. A rotina e suas medidas, o cotidiano e suas
tarefas são reflexos auto-disciplinados de um fluxo contínuo de violência, que acompanha em
paralelo a trajetória da família. Os assassinatos de dois irmãos de Benito um poucos antes de sua
última internação na FEBEM compõem essa presença, a cada hora do dia. Telefonar do serviço
para casa com o objetivo de confirmar com o filho a visita do pesquisador, agendada com semanas
de antecedência, teria sido apenas um dos indícios de que dona Benedita conhece bem a lei que
rege a vida de sua família. Tentar antever o acaso não é certamente uma simples ação contra o
medo e seus maus pensamentos. Dessa lei, não permitem o esquecimento as elevadíssimas contas
de telefone, que constrangem o orçamento de uma família em que apenas a mãe trabalha, enquanto
seus dois filhos dividem o dia entre procurar emprego ou qualificar-se em cursos duvidosos e
expor-se aos riscos da violência da cidade. Do dinheiro que falta à conta a pagar, da rebelião na
FEBEM aos gastos com o plano de saúde, um encadeamento rígido entre os eventos marca os
limites das significações possíveis.
300
Benedita: Aí vai apertar, porque pra mim pagar pros dois não vai dar. Aí ele
falou assim: “Vou ver se tranco por seis meses.” Aí o Benito tira a habilitação
ou ele arruma um emprego agora. Aí já vai ajudar também, né? Mentiram pra
ele falando que ele ia... não só ligaram, falaram que era gratuito, que <se> ele
fosse lá que o curso era grátis. Só que era uma gravação, sei lá. Uma coisa
assim. Aí ele foi realmente, chegou lá e diz ele que o curso custava cento e
poucos reais, 130, uma coisa assim e teve oferta de R$80,00. Mas ninguém sabe
se é isso mesmo. Aí, ele tá fazendo o curso, apesar que ele tá gostando, mas
chegou uma hora que vai ter que parar, porque é seis meses de curso. Está
apertando pra mim, porque a firma que eu trabalho não tem convênio e com
aquele problema que eu tive, tive que fazer convênio. Eu pago R$ 70,00 por
mês.
Pesquisador: Problema da pressão <arterial alta>?
Benedita: É.
Pesquisador: E a senhora continua com esse problema?
Benedita: Continuo. Tô tomando remédio, mas tem dia que ... tem uma veia
também entupida.
Pesquisador: Nossa!
Benedita: Eu passei no cardiologista e deu <que a veia estava entupida>. Aí, eu
tenho que tomar os remédios. Eu não quero parar de pagar o convênio, porque
se eu conseguir vaga no hospital do Estado, aí não tem como eu trabalhar,
porque tem que ficar o dia inteiro lá. Em casa é só eu trabalhando.
Pesquisador: Sei.
Benedita: Aí eu fiz o convênio. Já fiz todos os exames. Eu fiz o convênio lá e já
vai apertando um pouco. Mas eu vou ver, se der ele continua, se não der... mas
eu estou pensando em mandar desligar o telefone, que tá um absurdo.
Pesquisador: A conta de telefone?
Benedita: Tá muito caro, muito, muito. Nossa! Diz que vai aumentar mais
agora, né? Eu já tô pensando, porque num mês eu paguei R$ 70,00 de conta de
telefone. Um absurdo! Porque eu fico assim: ele sai, eu ligo no celular
preocupada, porque a violência que tá hoje... e eu já perdi um filho também,
então eu me preocupo muito. Aí, no final do mês, vem a conta pra pagar.
Pesquisador: Sei...
Benedita: Se você tem telefone em casa, você não vai deixar de usar, né?
Precisou de falar, ocupar, você vai ligar.
Pesquisador: Sei...
Benedita: Se o Alberto arrumasse um serviço também pra ajudar, seria muito
bom, mas por enquanto tem que esperar.
Pesquisador: Por isso que a senhora está pagando convênio? Pra ter essa
garantia, né?
Benedita: Pra fazer esse tratamento.
Pesquisador: E foi no dia da rebelião <que o problema da pressão se revelou>?
Benedita: Foi.
Pesquisador: A senhora acha que passou muito nervoso?
Benedita: Eu fiquei preocupada, porque eles falaram, quando a gente ligou, o
funcionário, que não se identificou, falou que o choque <a tropa da polícia
militar> tinha entrado, não sabia o que tava acontecendo lá dentro. Já pensou?
Meu filho lá dentro e não só o meu... as outras mãe que tem por lá e tudo... Aí
foi que a gente foi ligando, ligando, até que uma pessoa falou que ele tava bem
e eu perguntei se eu podia falar com ele e ele falou que não podia. Aí quando
nós foi visitar e que eu vi a destruição, eu falei: “imagina o que não se passou
aqui dentro?” Aí a minha pressão subiu muito, fiquei ruim, ruim mesmo.
O mesmo telefone que traz a oferta enganosa de gratuidade para um curso é o que permite
acompanhar os filhos durante o período em que dona Benedita está no trabalho. Também são as
ligações telefônicas que sobrecarregam os gastos e exigem soluções paliativas, precarizadas. Bom
301
filho, preocupado com as condições da família, agravadas pelas dívidas contraídas em razão do
assassinato do irmão, Benito teria aceitado, segundo sua mãe, um “bico” como office-boy. Com o
tempo, os locais das entregas dos documentos e correspondências da firma começavam a ficar
muito distantes, fato que o teria levado a alugar uma moto, por iniciativa própria. Menor de idade e,
portanto, sem carteira de habilitação, não demoraria muito e Benito seria parado pela polícia. Na
vistoria, sua menoridade e a ilegalidade da documentação do veículo foram constatadas, gerando,
ainda de acordo com a versão de dona Benedita, apreensão e registro na delegacia. Primeiro ato
infracional, sem grandes conseqüências, apenas a aplicação da medida de liberdade assistida, que o
obrigava a comparecer todo mês ao posto da FEBEM. Em seqüência ao primeiro ato, o segundo,
por sua vez, converteu-se em medida de internação. Ao se dirigir com um amigo ao posto, em
trânsito no calçamento, teria sido confundindo pela polícia, que naquele instante procurava o
responsável pelo roubo de um carro nas redondezas. Encaminhado ao Fórum , o juiz, confirmando
sua condição de “reincidente”, lhe aplica a medida de internação, enquanto seu amigo, por ser
“primário”, recebe medida mais branda, a semiliberdade. Encadeamento consistente, com relações
de causa e conseqüência claras para os entrevistados. Mas não ao modo da investigação das
variáveis e suas correlações. A morte do filho e os problemas com endividamento não são
redutíveis a variáveis. A causalidade que a associação entre os fatos revela não diz respeito a uma
dimensão específica, uma explicação pontual capaz de dar um mesmo significado a dois episódios
inicialmente isolados. Ela confirma um sentido de totalidade, a se repor a cada comprovação da
força do acaso e sua violência, de uma destinação trágica em face da qual a família e cada um de
seus membros devem oferecer resistência. Por isso o relato da mãe pode manifestar esse sentido
pelo encadeamento dos eventos do assassinato, endividamento, necessidade de renda suplementar,
serviço ilegal e precarizado, apreensão policial, aplicação de medida, ida ao posto, nova apreensão
e, por fim, internação. Na série a partir da internação de Benito, a rebelião, estresse, pressão alta,
gasto com convênio e necessidade de renda complementar, propagandas enganosas, custos com
curso e interrupção das aulas por falta de dinheiro. Os eventos são alinhados esquematicamente em
uma unidade em processo, ameaça a ser atualizada a qualquer momento para a família. Daí a
convivência entre as figuras do acaso e da certeza. Como totalidade afetiva, sentida a partir da
percepção da possibilidade de mais uma vez o sentido último dos encadeamentos confirmar sua
verdade trágica, a certeza se apóia na violência, que unifica os acasos e lhes projeta a idéia de que
os caminhos já estavam, de antemão, traçados. Entretanto, a valorização de cada acontecimento
alvissareiro, que deve ser dissociado e recomposto em nova série, não pode ter outra significação
diferente da negatividade de uma resistência permanente. É especificamente nessa resistência que a
responsabilização pode encontrar abrigo, sem recair na conhecida moralidade viril que caracteriza
historicamente a convivência entre os adolescentes internados.
302
Benedita: Ele saiu, mas todo dia eu recomendo, eu falo em casa pra tomar
cuidado que o negócio não é fácil. Porque hoje não chega você chegar numa
esquina e levar uma presepada. Hoje o negócio não tá fácil.
Pesquisador: Sei...
Benedita: Mas ele arrumou um serviço, vai trabalhar, chegar em casa cansado e
vai pra escola. Vai mudar bastante. Eu fico no serviço, ligo pra ele de manhã e é
só dar uma chance que eu estou ligando pra saber como que <ele> está. Eu digo:
“Benito, onde você está?” e “ah, mãe, eu estou em casa”, “onde você está?”, “eu
tô em tal lugar”, “o que você tá fazendo?”, “eu tô em tal lugar”. Hoje mesmo, eu
liguei às dez horas pra ele, pra ele não sair atrasado pra vim, porque ele tinha
que tá aqui antes das duas. Tornei a ligar de novo e ele: “Já tomei banho e já
estou saindo”. E é sempre assim.
Pesquisador: Sei...
Benedita: Eu tenho muito medo, nossa mãe! Mas se der tudo certo, se eu
resolver mudar <de casa>. Até o final do ano, vamos ver se eu consigo.
Pesquisador: O medo que a senhora está falando, que a senhora ligou, fica
ligando pro Benito. Que medo é esse?
Benedita: Eu falo assim, porque eu falo assim pra ele, pra ele não ficar na
esquina, nesse lugar, porque hoje pra pessoa chamar pro mau caminho, pra
chamar pra qualquer coisa. Porque está ali desocupado, não está fazendo nada.
Falo pra não pegar carona com certo tipo de pessoa, eu sempre estou falando
pra ele. Porque, às vezes, você até entra dentro de um carro com a pessoa, não
sabe de nada e o carro é roubado e a polícia pára e quem tá junto, vai tudo junto.
Eu falo pra ele, sempre eu dou conselho. Quando sair, saber com quem fala,
com quem vai, tudo. Recomendo direto pra ele.
Benito ficou exatamente onze meses e cinco dias internado, incluídos os períodos na Unidade
de Atendimento Inicial (UAI) e na Unidade de Internação Provisória (UIP). Da mesma forma como
os eventos eram interligados por meio de um esquema de totalização trágica, a contagem do tempo
da passagem pelo sistema de contenção era feita pela circulação dos relatórios e pareceres ao poder
judiciário, confeccionados pela equipe técnica das unidades. O tempo era, portanto, medido
administrativamente e vivenciado estrategicamente. Pegar “relatório de 4 em 4” meses significava
que, muito provavelmente, Benito ficaria ao menos um ano recluso. Nos procedimentos judiciais
extralegais largamente adotados pelos juízes das Varas Especiais de São Paulo, três é a quantidade
mínima de relatórios, o “inicial”, o de “acompanhamento” e o “conclusivo”. Daí a previsão
preliminar de um ano de internação150. O Estatuto não estabelece na sentença, como faz o Direito
Penal, o período de privação de liberdade, limitando-se a restringir o tempo máximo de internação
150
“Pesquisador: Você achava que ia sair rápido, nessa época?
Benito: Porque é por relatório, né? Deixa ver. O primeiro subiu na UIP. Depois subiu o segundo no Tatuapé
<complexo de unidades de internação>, o terceiro no Tatuapé e no quarto relatório que eu fui embora.
Subiu um com quatro, não, com três, depois com mais três, depois três e depois o conclusivo com 11 meses.
Ficou 10 meses e 20, 25 dias. Quase 11 meses. Aí subiu dia 25 e quando foi dia... não, subiu dia 15 e quando
foi dia 28, minha liberdade ficou pronta. 13 dias de conclusivo<em relação ao relatório final>. E pelo que
eles me falou lá, quando ele leu o relatório lá, o técnico falou bem assim pra mim; “Você, dos menor que o
tempo que eu trabalhei na FEBEM, você é o único menor que tá subindo relatório com 12 folhas.” Pelo que
eu fiz, né? Um monte de curso. Fiz minha parte pra ir embora. <O técnico> Falou: “Não dou dez dias pra
você ir embora.” Aí eu fiquei meio assim, por causa que eu via um monte que subia relatório conclusivo e
vinha avaliação pra <ficar mais> três meses. Aí eu fiquei naquelas. Mas no dia que eu vim embora, na sexta
feira, tava tudo trancado, tudo barrado, não podia sair nem no pátio. Aí eu falei: “Hoje eu vou embora.” Aí
o funcionário veio e me chamou assim e falou: “Saiu sua liberdade.” Eu falei que ia embora, cumprimentei
o pessoal e fui lá, assinei os papel, conversei com a assistente. Aí saí pra rua pra ver minha família.”
303
a três anos. Por se centrar na pessoa e não no ato, o Estatuto impõe ao ordenamento jurídico,
explícita e reconhecidamente pelos operadores do Direito, uma dependência estrutural do saber
especializado dos profissionais que trabalham na execução das medidas socioeducativas. Na sua
maioria formada por psicólogos, os profissionais das unidades que emitem os pareceres ganham
extrema importância. Diante da indeterminação temporal da medida socioeducativa, o relatório
técnico constitui, concretamente151, o único meio para o adolescente revelar seu bom
comportamento ao magistrado e, com isso, pleitear a liberação. Ao contrário da justiça criminal, na
justiça juvenil, em razão da necessidade de celeridade do processo e da morosidade procedural do
poder judiciário, o habeas corpus é pouco utilizado. A celeridade prescrita pela legislação
converte-se em um eficaz instrumento de punição. Em verdade, as instâncias superiores do poder
judiciário sequer são acionadas na justiça juvenil, exceção feita a alguns abnegados defensores
públicos, cuja militância os fazem questionar a decisão da primeira instância para que uma
jurisprudência, em favor da prática de habeas corpus, possa ser vislumbrada. O magistrado da
primeira instância torna-se o soberano da lei, cuja arbitrariedade funda-se em uma conjugação entre
um princípio progressista do Estatuto - a celeridade - e a inoperância das instituições de justiça em
efetivá-lo em todos os momentos do processo, e não apenas durante a produção da sentença. Em
relação ao tempo máximo previsto pela legislação para a reclusão antes da entrada no Fórum e,
posteriormente, para a internação provisória, período de espera até a sentença do juiz, o processo de
Benito encarnava uma seqüência de violações de direitos. Na UAI, ficou 16 dias, mais de duas
semanas além do teto estabelecido pelo Estatuto; na UIP, seis meses contra o máximo legal de 45
dias152. Apesar de inexistir a indicação do período total de privação de liberdade na sentença, a
extrapolação dos prazos nessas unidades promove um raciocínio operacional que, na realidade,
efetiva critérios práticos de definição do tempo da medida socioeducativa. O acúmulo de
extrapolações fez com que Benito chegasse à unidade de internação do Tatuapé, onde deveria
cumprir a medida em definitivo, já com seis meses de privação. Desse modo, segundo o raciocínio
do profissional da unidade, o relatório refletiria muito pouco tempo de acompanhamento na
internação, sendo, portanto, desconsiderado pelo juiz. A dimensão educativa servia para justificar a
extensão do tempo de privação, um despautério para o Direito penal, mas um fenômeno comum na
Justiça juvenil.
151
Concretamente, não legalmente, pois o ECA reconhece o direito do adolescente internado dirigir-se
diretamente ao juiz responsável pelo seu processo. Art. 111: “São asseguradas ao adolescente, entre outras,
as seguintes garantias: I - pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação
ou meio equivalente; II - igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e
testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa; III - defesa técnica por advogado; IV -
assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei; V - direito de ser ouvido
pessoalmente pela autoridade competente; VI - direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável
em qualquer fase do procedimento”. Grifos meus.
152
Art. 183 do ECA: “O prazo máximo e improrrogável para a conclusão do procedimento, estando o
adolescente internado provisoriamente, será de quarenta e cinco dias”.
304
Pesquisador: Você ficou seis meses na UIP?
Benito: Na UIP, seis. Até no Tatuapé, a assistente falou: “Você ficou seis meses
lá e acho que você vai ter que ficar mais seis meses aqui e cinco meses pra mim
mandar seu relatório. Porque se você chega com seis meses e o juiz ia dar sua
liberdade com oito meses. Com dois meses, se eu mandar o conclusivo pra ele,
já vai vir negado, porque ele vai falar que em dois meses não deu tempo de eu
conhecer você, seu jeito, se você já está pronto pra voltar a viver em sociedade”.
Aí, eu falei: “Não, tudo bem, eu entendo.” Aí, eu peguei e avisei pra minha
mãe. Falei: “Mãe, liga lá na UIP lá e conversa, fala com eles lá.” Ela falou: “Vai
adiantar o quê? Deixa pra lá.” Aí deixou. Porque era pra eu sair com sete meses,
oito meses, que nem a maioria dos menino. Que eu assinei 57 <número do
artigo do Código Penal>, roubo, só que não me pegaram com arma, nem com
nada da vítima a não ser com o carro. Eu assinei isso. E todo mundo, a maioria
dos menor que assinava esse negócio de carro, moto, saía com sete mês, sete
meses e meio. Eu fiquei onze meses. Eu falei: “Tá, tudo bem, já estou aqui, o
que vai adiantar chorar?” Então somando tudo, a UIP e a Tatuapé, é que dá onze
meses.
Pesquisador: Você sabe que isso aí que você está colocando é contra a lei, ficar
seis meses quando no máximo são 45 dias?
Benito: É. Porque quando eu cheguei na UAI, eles falou assim: “Você vai de
bonde... você vai ser transferido essa semana ou a outra... que você só pode ficar
45 dias e você já tá há 30...35 dias... 35 não... 30 dias e com duas semanas você
vai ser transferido.” E eu falei: “Tá bom”. Mas eu cheguei lá e tinha menino
com 3 mês, 4 mês. Como é que eu vou ser transferido? Só eu? E esse monte na
minha frente? Aí, eu fiquei esperando os outro tudo. Quando eu saí de bonde, eu
era o mais velho na unidade.
Pesquisador: E você não ficou com raiva?
Benito: Eu acostumei, porque depois que você fica seis meses em um lugar,
você acostuma. Eu todo dia dormia cedo, acordava cedo, tomava café, ia pra
aula. E também o estudo que eu fiquei seis meses estudando lá não valeu pra
nada.
Pesquisador: Por quê?
Benito: Porque lá era, como se diz, era apostila, esse negócio do ECA, Estatuto
da Criança e Adolescente. Eles te davam a apostila do que era cidadania. Aí
você concluía a cidadania, concluía o... sei que era cinco tema. Eu concluí os
cinco temas e fiquei numa sala que era eu e mais dois. Porque se você concluía
os cinco temas, você ia pra outra sala. E eu concluí os cinco temas e fui pra uma
sala que era eu e mais dois. Aí, eu cheguei e perguntei pra pedagogia lá:
“Terminei tudo isso aqui, fiz tudo esse tema assim”. Mas o que eu fiz aqui não
era de sexta série, era coisa bem mais avançada e coisas menos avançada. Que
nem tinha tema, que nem matemática. Tinha as conta da 1ª série, tinha conta do
1º grau, aquelas conta grandona. E eu fazia, tinha que fazer, eu fazia. Aí eu
peguei e perguntei assim: “Isso aqui que eu fiz, eu vou ser aprovado pra outra
série?” E ele falou: “Vai.” Então tá bom, né? Fiquei seis meses estudando. Aí
quando eu cheguei no Tatuapé, ele disse: “Não, o que você fez lá <UIP> foi lá,
porque lá só precisa ficar parado.” Aí comecei estudar lá, aí eu concluí <na
unidade de internação do Tatuapé>. Eu tava na 6ª e eu fui pra 7ª. E os seis
meses que eu estudei na UIP não valeu de nada.
305
de uma contagem dos dias, mas também de uma ocupação qualitativa da duração da internação. A
freqüência em atividades pedagógicas que não conferiam certificação ou que em nada ensinavam
uma habilidade prática, passível de ser convertida em ofício quando em liberdade, representava o
embuste de um envolvimento que não poderia ser desdobrado, preso ao interior dos muros da
unidade. Benito certamente nem desconfiava o quanto custava para o Estado essa inutilidade em
forma de cartilhas temáticas, entre as quais, a de “cidadania”. Concebidas como material de
formação para os adolescentes no intervalo entre a apreensão policial e a sentença, essas apostilas
foram produzidas por uma ONG. Com cifras milionárias garantidas pelos cofres públicos, o projeto
de educação nas unidades provisórias da FEBEM não mantinha nenhuma relação com os
estabelecimentos oficiais de ensino das unidades de internação, vínculo que poderia certificar as
suas atividades; limitava-se ao elenco temático, a ser trabalhado por módulos e em poucos dias:
“cidadania”, “esportes e lazer”, “participação social” etc153. Pedagogia vazia, facilmente
denunciada por Benito como sem nenhum valor, ela, entretanto, operava conforme o estrito
funcionamento institucional da FEBEM. O caráter “provisório” da privação de liberdade nas
unidades onde as apostilas eram aplicadas mostrava-se o mesmo que o valor educacional do
projeto.
Houve, contudo, um beneficiamento simbólico, indireto, dos projetos educacionais como o
das apostilas, cuja inutilidade, mesmo que tenha afrontado o adolescente, obrigado que estava a
participar de suas atividades, pôde reverter-se em nomeação de seu contrário. Foi nesse sentido que
a “cidadania” aprendida nas aulas deslocou-se dos hábitos de civilidade e respeito à convivência
social ao acerto de contas dos injustiçados. Daí o exemplo da rebelião na unidade não ser uma
ilustração casual. Contra a violência e humilhação sofridas na unidade, a rebelião conflagraria a
possibilidade da equidade pelo confronto, em substituição ao justiçamento da emboscada e da
vingança pessoal. “Cidadania” estaria muito longe de ser um conteúdo da educação; ela nomearia a
reciprocidade que a justiça deveria estabelecer. Benito toma a palavra aprendida nas aulas do
projeto, ilustra o conceito com casos para, em seguida, subvertê-la. Da civilidade com os outros,
mediada pelas tênues manifestações do gesto e da cortesia, a “cidadania” aproxima-se da “revolta”,
no plano individual, e da “rebelião”, no âmbito coletivo, não deixando de ser, assim, uma
apropriação da fraseologia terceiro-setorista com claro sentido crítico. O absurdo da “cidadania”
como conteúdo didático, dado no mesmo espaço da violência e violação de direitos, subverte-se em
153
Essa metodologia e o seu material pedagógico foram incorporados pela atual Fundação Casa, antiga
FEBEM. O valor do último contrato com a ONG foi de aproximadamente R$ 2.000.000,00, para o período
de um ano. Ver Diário oficial do Poder executivo, Estado de São Paulo, 29 de agosto de 2008. Com o aditivo
aprovado ao final do contrato, o valor total subiu para mais de R$ 2.500.000,00. Ver Diário oficial do Poder
executivo, Estado de São Paulo, 3 de setembro de 2009. Tudo feito na mais estrita observância da lei e do
regulamento da Fundação Casa, com a garantia dos pareceres técnicos emitidos pelo corpo de assessores da
presidência.
306
forma disciplinar, não a dos “corpos dóceis”, obviamente, mas a de um exercício permanente de
resistência às injunções agressivas que o contexto institucional exige.
307
responderia às exigências dessa resistência não se refere apenas ao universo dos valores e
convicções morais. O traço masculinizante e de caráter viril, indiferente à dor e ao sofrimento, não
caracterizam as estratégias defensivas assumidas em conjunto por Benito, sua mãe e seu irmão.
Lembremos: a violência é, para essa família, um fluxo contínuo que, a qualquer instante, pode
totalizar-se. A identificação em negativo é com o ameaça dessa totalização e não com o curso
contínuo da violência em potencial, como seria o caso de uma confrontação pela via da afirmação
viril. Daí o silêncio e a inação de Benito face à rebelião na unidade. Sua enorme disponibilidade em
participar, nas palavras de sua orientadora, de “tudo o que colocar de bom para fazer”, seu
interesse em aproveitar todos os cursos oferecidos durante a internação (de panificação,
pirogravura, teatro, artesanato etc.), sua abertura em ajudar nas tarefas de casa e sua sensibilidade
em perceber os apelos da mãe, sempre feitos com uma descrição quase clandestina, fazem de
Benito um modelo sem retoques da motivação do “protagonismo juvenil”, professada e
disseminada pelo novo campo socioassistencial. Motivação reconhecida pelos pareceres técnicos
do psicólogo responsável pelo acompanhamento de Benito na unidade de internação. O bom
comportamento durante o período de privação de liberdade diz respeito a essa disponibilidade em
participar das atividades propostas e de se negar à rebelião. Nem sempre essa divisão torna-se clara
para o adolescente, entre o que lhe será útil e aquilo que nada agregará ao cálculo do psicólogo e ao
julgamento do juiz para a extinção da medida socioeducativa. Existem circunstâncias em que são
altas e arriscadas as conseqüências da recusa em aderir aos grupos de adolescentes, organizados
para ações que, do ponto de vista de Benito, lhe seriam prejudiciais. Mesmo no “meio aberto” o
risco permanece. Por muito pouco, Benito, por ser considerado um “reincidente”, pode retornar à
internação. A “vizinhança” problemática, que teria sido capaz de passar “trotes” telefônicos sobre a
morte de um dos filhos de Benedita, isso logo após o assassinato, foi reiteradamente apontada por
todos como um fator periclitante. Por isso, além da motivação, é preciso atualizar a resistência,
fortalecida pela experiência de reclusão na FEBEM, também no cotidiano da convivência
“comunitária”. Segundo a orientadora, que toma esse tipo de aprendizado de Benito como um
ensinamento de vida, ele teria dito que aproveitava “o que existia de bom” na internação,
esquecendo, “deixando lá”, “o que existia de ruim”.
308
apanhou, mas ele sabe por que tava apanhando lá e por que todos estavam
apanhando. E que mesmo o fato dele não ter participado de rebelião e ter
apanhando por causa disso, ele entendia, porque ele sabia que ele ia apanhar
mesmo. Mas aquilo ele deixou lá, ele deixou lá. Ele veio pra cá, ele falou que
quer uma outra vida, sem rancor.
Pesquisador: Pra você, pessoalmente, é difícil ouvir essas histórias?
Orientadora: Olha, no começo, sim. Você se choca. Mas depois você vê que não
pode ser... é uma realidade, né? E você tem que encarar isso de uma outra forma
pra trabalhar isso, pra que melhore, pra que melhore isso pra ele. Não o fato de
você sentir... o importante é o que ele está sentindo, ajudar um pouco nessa
ferida, suavizar um pouco. Se suavizar pra o outro, suaviza pra gente também.
Então, vai muito dele, do que ele está sentindo.
154
Ainda que sofram e pertençam ao novo campo socioassistencial, algumas organizações sociais,
inevitavelmente de passado de militância política, resistem com mais tenacidade ao processo de cooptação
gestionária. Para conhecer uma dessas exceções, sem com isso deixar de reconhecer seu sentido contraditório
e dilemático, ver FELTRAN (2008).
155
Como observamos na orientadora de André.
309
podem ser assinados por um profissional que não seja, necessariamente, um psicólogo.
Diferentemente dos pareceres técnicos oriundos das unidades de internação, os relatórios sobre a
liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade prescindem de um saber sobre a
subjetividade. Mais vale a freqüência escolar, uma estabilidade familiar, atestada pelo orientador e
que costuma significar implicação de um dos pais no acompanhamento da medida. Pesa
favoravelmente na avaliação judicial a participação em outras atividades, de cunho socializador,
como, por exemplo, oficinas culturais ou cursos de qualificação profissional. É esse o modelo
rudimentar dos indícios de bom comportamento do adolescente que auxilia o magistrado em suas
decisões. “Aquilo que é exigido” ou o que o “ECA te coloca” limita a formação especializada ao
lugar de auxílio. Mas auxiliar o quê? Se tais critérios valem mais do que o parâmetro da “condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento”, seria pertinente atribuir a esse trabalho, como desejam os
militantes que defendem as medidas em “meio aberto” enquanto alternativa à aplicação da
internação, um espaço independente do ritualismo jurídico e da violência que vigora, ainda hoje,
nas unidades de privação de liberdade? A resposta à desconcertante idéia de que seriam contínuos
entre si a instituição total presentificada nas unidades da FEBEM e o “meio aberto” dos programas
socioeducativos desenvolvidos pelas organizações civis, muitas delas com passado de intensa
militância política, passa pela prerrogativa do princípio estruturante do novo campo
socioassistencial, a radical desreferencialização cognitiva que, em última instância, implica a
produção de uma irrealidade social para o sujeito. Daí por que o dispositivo de poder capaz de
efetivá-la só pode ser um calcado na conversão dos opostos e na transmutação da linguagem pelo
deslizamento semântico do discurso, uma abstração com efeitos sociais, um formalismo normativo.
Pesquisador: Você acha que este curso <de Terapia familiar> ajuda? O que ele
ajuda pro trabalho <de orientador social>?
Orientador: Eu percebo que a gente tem uma outra visão da família. Quando
você faz o curso de Terapia Familiar, você vê a família de outra forma. A gente
vê a família, assim, como uma grande engrenagem. Cada um representa uma
peça. E cada engrenagem, se uma delas não tiver funcionando bem, a família
toda adoece; a família adoece por causa de uma peça. Se você não tiver um
olhar mais terapêutico, não consegue saber onde está a doença, onde está a peça
danificada. E aí você vê, pode ser que o menino não é o problema. O problema
está numa outra coisa. É isso que a Terapia está me levando a buscar, sabe?
Pesquisador: Sei.
Orientador: Ela muda o foco, tira o foco do que a gente chama do paciente
importante. O paciente importante é aquele que está apresentando os sintomas.
No caso daquela família, eu vejo o menino que está apresentando o sintoma. Foi
lá, cometeu o ato infracional. Aí a gente vai saber o por quê daquilo. Alguma
coisa tem ali, que não está funcionando bem. Mas manifestou nele. Entendeu? É
como em toda família: como a minha família, como a tua. Alguém manifesta
alguma coisa: uma doença, às vezes até um cara tem bronquite asmática, é
aquele lá que vai internado. Todo mundo fica em volta dele. Ele é o paciente
importante. Ele é que, de uma forma doentia, reúne a família, segura a família
em torno dele. Não estou dizendo aqui que todo mundo que tem problema de
bronquite é ...
310
Pesquisador: Claro. E você acha que o trabalho te dá condições para usar esse
conhecimento como terapeuta ou você acha que tem limitações?
Orientador: Eu acho que uma coisa ajuda a outra. Sempre acrescenta. O trabalho
de LA tem acrescentado muito no meu aprendizado com terapia.
Pesquisador: E qual é a diferença do teu trabalho como terapeuta e esse outro
trabalho, de orientadora?
Orientador: O trabalho de orientador tem uma certa técnica, né? Percebe aquilo
que o ECA te coloca, o que a determinação <do juiz> te coloca, aquilo que é
exigido. No trabalho terapêutico, você não exige, não pode exigir. E mesmo
sendo LA você não pode exigir, mas você tem que saber conduzir. Pra aquilo
que...
Pesquisador: - Que está na Legislação.
Orientador: - Que está na Legislação, que está no ECA. A terapia familiar não.
Por isso que eu estou te falando que o trabalho de LA me acrescentou muito. E
o trabalho que eu faço com terapia familiar me acrescenta muito no atendimento
com a família <na LA>. Porque a Terapia Familiar trata a família, não trato o
indivíduo.
311
patrão. Aí podia até ser que eles ia levar numa boa, mas eu preferi reservar e
não falar. Sofri muito. Tinha dia que eu chegava no serviço e os problema e
sabe, eu ficava triste, e chegavam a me perguntar se eu tava com algum
problema. Eu falava: “Não, é por causa do...” Porque quando meu filho faleceu,
eu já tava trabalhando nessa firma. Já vai fazer três anos que eu estou lá. Eu já
tava trabalhando lá e eles me deram o maior apoio. Foram lá no velório do meu
filho, me deram o maior apoio, os meus patrão. Agora do Benito, eu não falei.
Eles não ficaram sabendo. Reservei pra mim. Eu cheguei a conversar com o Sr.
Jurandir, o psicólogo do Benito <na unidade> e ele falou assim: “Se a senhora
acha que não deve falar, então, não tem nenhum problema.”. Aí eu reservei, não
falei, passei por tudo. Tinha dia que eu tava triste, tinha dia que eu tava alegre,
mas, enfim, eu não falei.
Benito: O curso que tem aqui <programa de LA> é bom pra quem não fez. Eu já
fiz. Eu não me interesso em mexer no computador, não me interesso. Porque,
pra mim, pra arrumar serviço lá fora, não tem <serviço> pra mexer em
computador. A não ser que eu vá arrumar um serviço pra arrumar computador.
Tem outros cursos, não é só computação. Eles encaminham pra fazer. Que nem
curso de panificação, que tinha lá na FEBEM. Tem computação lá também, tem
teatro. Teatro eu fiz e gostei de fazer. Teatro você solta bem a voz, perde a
vergonha. Quando cheguei na UIP, eu fiquei onze meses fazendo teatro, dez
meses e pouco, quase onze. Eu cheguei na UIP e no outro dia que eu cheguei,
perguntaram pro pessoal quem queria fazer teatro e ninguém queria.. Eu peguei
e falei: “Vou fazer.” Não tinha nada pra fazer. Sai da UIP, cheguei no Brás e no
dia que eu cheguei a pedagogia perguntou se eu queria fazer teatro e eu falei:
“Quero fazer”. E eu continuei fazendo teatro. Na UIP, eu apresentava assim
pros menor. Quando eu cheguei no Tatuapé, a minha primeira apresentação, eu
apresentei pra minha família, pra minha irmã que foi me visitar um dia lá. Falei
assim: “Nossa, não tô nem acreditando, parece que você está assim em outro
lugar.” Fica pensando: “Será que eu vou conseguir?” Aí, apresentei e foi bom,
todo mundo bateu palma. Depois no Natal, eu apresentei pra minha mãe, pra
minha namorada que foi também me visitar. É bom.
Pesquisador: Você gosta?
Benito: Eu gosto de teatro. Que nem tem um rapaz lá na rua que é muito bom,
ele gosta de fazer palhaçada. Aí, eu falei pra ele que quando começar a trabalhar
- ele tá trabalhando - nós compra uma perua, pinta ela todinha de palhaço e
vamos alegrar as festa aí. Dá pra nós ganhar um dinheiro e ele falou assim: “É
mesmo! Dá pra nós ganhar um dinheiro!” Eu falei na esportiva, assim, na
brincadeira, mas se for pra ver pelo sério, dá também. É trabalho, né? Só que
312
tem que trabalhar sexta, sábado e domingo, que é dia de festa de criança. Você
chegar numa festa, de uma criança... que nem eu mesmo, teve o aniversário do
meu sobrinho. Eu moro na favela. Aí, meu irmão arrumou duas roupas lá, de
palhaço, tipo pateta e um patinho. Eu chamei o menino lá pra colocar as roupas
e eu e ele colocamos e ficamos na festa. Os meninos tudo feliz, brincando com
nós, puxando nós. Era maior alegria das crianças lá e eu fiquei contente.
Quando acabou a festa, eu fui pra outra festa na rua de cima, umas cincos festas
num dia só. E eu ia na festa e os outros pegava e falava: “Vem aqui.” Aí eu ia e
os outros me dava bolo, refrigerante. Aí dava pra zoar bastante, <falavam>
direto: “<você> tem que arrumar as roupa pra animar as festa”. Aí, eu falo que é
só arrumar as roupa e nós vai, porque eu gosto de animar as criança, coisa que,
tipo assim, eu não tive quando era criança, eu procuro fazer com as criança.
A passagem pelo circuito socioeducativo, mesmo que tangencial, não pode deixar de incidir
sobre a vida do adolescente e seus familiares. A força simbólica do ritualismo jurídico não cessa de
produzir efeitos quando o trânsito dos corpos desloca-se para o espaço da rotina familiar. Algumas
horas sob o aparato policial e os corredores do Fórum são suficientes para que uma experiência
punitiva seja instituída como uma incontornável realidade para o sujeito. As variações de percepção
existem, mas todas com a alcunha deixada pela inscrição dessa ordem factual, onde a resistência
termina por revelar os traços diferenciais de uma mesma submissão. A responsabilidade que surge
e é paulatinamente consentida pelos próprios sujeitos punidos configura o exemplo mais dramático
e revelador da eficácia da forma de exercício desse poder. Há, certamente, uma longa tradição de
pesquisa dedicada ao tema. Etnologias do sistema de justiça e estudos realizados a partir da
observação em campo, seja das unidades de contenção, seja entre os operadores do Direito,
identificam a força simbólica dos procedimentos ritualísticos que discriminam grupos e fundam
novas ordens de classificação social (PANDJIARJIAN, 1999; SCHRITZMEYER, 2001;
SINHORETTO, 2006). Igualmente, a “desculturação” dos sujeitos confinados nas “instituições
totais” e o “estigma” que carregam no retorno ao convívio social (GOFFMAN, 1961) fazem parte
do repertório básico do pesquisador que se embrenha nos labirintos da justiça e nos aparatos da
execução penal ou socioeducativa. O assunto, enfim, já foi e continua sendo bem estudado. Nessa
problematização, vigora quase que a presunção de um internacionalismo punitivo, cuja crítica
313
mantém, há décadas, as virtudes – e os vícios – irradiadas pelos centros hegemônicos da divisão
intelectual do trabalho. Seja à francesa, com a “violência doce” e os “corpos dóceis”, seja ao modo
do norte das Américas, com os efeitos da institucionalização sobre a identidade do interno, a
quadratura no interior da qual a questão da responsabilização pode ser teoricamente formulada tem
passado e linhas fortes. Mas se estiver correta a tese de que a atualidade do controle social diz
respeito a um poder praticado como uma linguagem, não conviria, então, repetir as conclusões
canônicas, a despeito da validade que ainda possam ter em relação ao contexto que analisamos. Sob
determinadas condições do formalismo, entre nós, um mínimo traço é capaz de caricaturar,
indicando, pelo esvaziamento semântico da representação, uma disposição afetiva específica para a
violência. Também, levando-se em consideração a gravitação do formalismo, um “hiper-realismo”
pode advir das unidades de internação para adolescentes. No regime simbólico das unidades, a
expressão pública do sujeito violado em sua dignidade e direitos torna-se a própria violência de que
é objeto. Seria esse o regime em vigor na última década, a ele correspondendo um “corpo-prova”
mutilado, suma figuração mortífera do sujeito em sua resistência biopolítica (VICENTIN, 2005).
O traço que finca vincos na análise, decalcando os personagens e conduzindo a narrativa
sobre as linhas contorcidas da tragédia que se apresenta no real da violência, não apreende a
dimensão branda dessas histórias sobre a experiência punitiva. Se a repetição da violência pode
atingir uma família, pelos assassinatos consecutivos de dois de seus membros, e nela gerar uma
representação verdadeiramente sistêmica da vida, na qual o sentido dos eventos que a compõem só
pode ser previsível pela destinação trágica dos mais jovens, o mesmo dispositivo também faz uso
da violência, mas de uma “docilizada” – e, portanto, simbólica -, porque em estado de potência.
Mais uma vez: a afirmação da docilidade do controle em nada implica validar as teses canônicas
sobre o disciplinamento dos corpos. Os relatos da família de Carlos, adolescente sentenciado com
medida de liberdade assistida em razão de porte de arma, contam uma história em que a disciplina
não tem efetividade, ainda que o ideal dos “corpos dóceis” esteja, a todo o momento, presente nas
expectativas geradas pela experiência punitiva. O processo de responsabilização desencadeado pelo
ato infracional se expande em direção ao núcleo familiar e nele ganha ressonância, mas com
conteúdos bem diferentes do encadeamento sistêmico à espreita de um destino trágico. Também na
família de Carlos, embora fora do seu núcleo, a violência era concreta. Um primo assassinado pelo
narcotráfico, outro internado há cerca de um ano na FEBEM não mostraram ser eventos de uma
ameaça possível porque constitutiva da história da família; eles serviam como exemplos
relativamente distantes de um futuro temeroso, ilustrações de um medo abstrato156. Acontecimentos
156
Obviamente, o medo abstrato não implica negar o significado trágico do acontecimento. Em relação à
morte do sobrinho, dona Marisa reconheceu as implicações da violência, mas em nenhum instante se incluiu
como parte dessa história: “Eu tenho um sobrinho que morreu ano passado, de tiro. Foi três ou quatro tiros.
Ele estava envolvido com droga. Só que a gente não tinha contato com ele não. Até hoje, ninguém sabe quem
matou, se foi a polícia, se foi ladrão. Foi, assim, horrível, porque <meu irmão> não tinha condições
314
cotidianos marcados pela arbitrariedade também não portavam qualquer significação trágica e
tampouco indicavam um fechamento em forma de destino. Antes do ato infracional, a revista
policial na escola, da qual Carlos fora objeto, consistiu em motivo de queixa e indignação da mãe,
mas o receio sentido não era o da confirmação de uma previsão. Pelo contrário. A revista motivou
uma conversa pessoal com a diretora da escola. O fato de a diretora recorrer à força policial para
solucionar um distúrbio momentâneo entre os alunos mereceria uma posição contundente e
reinvidicativa de igualdade157. Confrontar ou afirmar o conhecimento da arbitrariedade e assimetria
caracterizou não apenas a conduta mãe, mas também a do pai, mesmo depois do ato infracional de
Carlos. Foi assim no momento da apreensão policial, na delegacia e no Fórum, e, posteriormente,
no acompanhamento realizado pelo programa socioeducativo. Se existe antecipação, ela ocupa essa
atitude de confronto, e não uma representação orgânica do futuro, como observamos na família de
Benito. Daí por que o ato infracional tenha abalado a confiança do pai. As circunstâncias da
apreensão de Carlos deram a essa atitude a oportunidade de confirmar a injustiça da intervenção
policial. Mas com a constatação pessoal, na frente dos policias, da arma escondida sob o móvel da
sala de sua casa, o discurso do pai teve que, por alguns momentos, se adequar às regras do circuito
socioeducativo, desconhecidas até então, primeira etapa da incidência de seu controle, ainda pouco
incisivo, mas certamente marcante para quem o experimenta.
nenhuma de pagar o enterro, não tinha dinheiro. Meu irmão não tinha dinheiro para condução, entendeu?
Foi uma coisa horrível. E outra, o meu irmão, pra ele a vida acabou.”
157
“Chamar a polícia, eles chega aqui, já chamando o menino, e não só ele <Carlos> como todos meninos
que estavam ali, de traficante, de “nóia”, de vagabundo, marginal. Eu falei: “isso aí não vai ajudar nada”.
Só que tem uma coisa. A escola tem os direitos dela, eu também tenho os meus. Se acontecer isso mais uma
vez, eu vou procurar os meus direitos, entendeu?”
315
Carlos é a mesma coisa. Então, realmente eu fiquei muito decepcionado. Mas
quando eu soube a verdadeira história...
Marisa: Fiquei toda feliz, eu falei: “nossa, duas notícia boas <empregos para ela
e o filho>.” Eu fiquei feliz. Liguei prá todo mundo, liguei prá minha mãe -
porque a família está sempre querendo que você melhore, né?: “mãe, que bom,
eu arrumei emprego e o Carlos também”. Fiquei toda feliz, aí falei: “vou passar
minha roupa, que agora eu vou trabalhar.” Fiquei animada. Depois eu fiquei
pensando comigo: “será que tanta alegria, será que alguma coisa não vem por
trás?” Eu fiquei imaginando - porque eu queria trabalhar de qualquer jeito, que
tem muita cobrança dos filhos, não é? Dali a pouco, minha alegria durou acho
que quinze minutos, parece que despejaram um caminhão em cima da minha
cabeça. Aconteceu isso aí <referindo-se ao ato infracional>. No outro dia ele
começou a trabalhar. Só que como ele chegava muito tarde, eu tinha que ir
buscar. Eu ficava apavorada com medo da polícia pegar ele na rua; fiquei
mesmo. Inclusive, quando ele fazia esse outro caminho aqui de cima, eu ficava
com medo dos policiais que pegou ele aqui <em casa>, pegar ele na rua e fazer
alguma coisa com ele, porque eu pensei: “se dentro da minha casa eles tiveram
coragem de falar tudo que eles falaram, imagina longe”. Eles falam: “você deu
sorte que estava perto da sua casa”.
316
dessa conduta, restringem a sua força moral. Como responder às diversas situações do convívio
social transformadas em relações assimétricas pelo ritualismo jurídico? A resposta parece não ter
sido não se intimidar. Mas nada pode garantir a eficácia dessa escolha. Outro delito, a depender das
circunstâncias e mesmo que não envolva violência ou grave ameaça à pessoa, pode justificar a
internação de Carlos. Nesse aspecto, a ameaça é real e constante. Os mesmos policiais que
revistaram e apreenderam o adolescente são os que retornaram alguns dias depois, circulando nas
ruas ao redor e passando na frente da casa do Sr. João, intimidando a todos de sua família. Por
muito pouco ou simplesmente em razão da contingência do humor dos policiais, Carlos pode ter
seu destino selado com a produção – atribuída injustamente ou capturada pelo rigor judicial - de
nova infração e, conseqüentemente, a aplicação de medida de internação, o que significará a
entrada no andar mais elevado e, portanto, mais punitivo do circuito socioeducativo. É
substancialmente maior a exposição de um adolescente em cumprimento de medida à violência
policial, mesmo que em “meio aberto” e sem histórico de internação. Daí a consciência de que a
vigilância sobre o filho deva ser contínua, iniciativa dos pais e partilhada pelos vizinhos e
profissionais do programa socioeducativo. Uma comunidade imaginária é pensada como
responsável pela proteção dos novos, talvez a única forma de transpor as fronteiras determinadas
pela arbitrariedade policial e pela discricionariedade do poder judiciário.
Marisa: Não é porque vai terminar a liberdade assistida do meu filho que eu vou
falar “pra mim não interessa”, não posso dizer isso. É lógico que interessa, já
não aconteceu? Eu tenho vários sobrinhos, eu tenho quarenta sobrinhos, pode
acontecer com qualquer um.
Pesquisadora: Você tem quarenta sobrinhos mesmo?
Marisa: É.
Pesquisadora: Nossa!
Marisa: Então, quer dizer que eu não me preocupo só com o meu filho, eu
sempre me preocupei com os outros meninos também, que a gente vê crescer
tudo junto. Quando eu vejo algum moleque andando errado, eu me preocupo,
converso. Às vezes, já aconteceu, assim, esse negócio de droga, eu chegar pra
uma pessoa e falar: “olha, cuidado com seu filho, que ele tá assim, assim”. E é
muito duro pra uma mãe, porque eu conversei com uma amiga minha sobre isso
aí, sobre negócio de droga que o filho dela poderia tá. E ela não aceitava, ela
não aceitava. Foi muito difícil pra ela. Só que quando ela viu já fazia um bom
tempo que o filho dela tava, e eu sempre falando pra ela. E sempre naquela
troca: “olha, se eu ver teu filho você me fala, e se você vê o meu”. Eu tô sempre
comentando com ela. Ela sabe que você tá aqui porque tudo eu conto pra ela.
Porque ela trabalha, a gente não tem muito tempo. Então, como ela mora na
parte de cima, então eu falo pra ela: “quando eu não tiver aí você olha”. Quando
o filho dela aparece aqui de bicicleta, eu ligo: “olha, desceu, tá aqui embaixo, tô
olhando.” Pra ela saber onde ele tá e pra eu saber onde o meu tá, então a gente
tá sempre comunicando. Mas, sei lá, eu acho que mesmo independente do
Carlos terminar a liberdade assistida, quando vier o novo pessoal pra fazer o
trabalho, que faça o acompanhamento, né? Porque até esses moleques que fala
na gíria, tudo, que quer dá um de malandro, na verdade são criança. É o jeito
certo de você tratar. Eu sei porque aqui é assim, eu conheço um monte de
moleque. Já aconteceu das mulheres que dá bronca, gritar, xingar eles. Eles
respondem um monte de palavrão. E comigo não, nunca nenhum dos moleques
317
me desrespeitaram, me maltrataram. Se eu vejo alguém brigando, eu tento
separar, tô sempre ali. Teve uma época que tinha umas crianças que ficavam
muito aqui em casa porque a mãe trabalhava, eu falava: “fica aqui comigo.” Aí
dava comida, mandava tomar banho. Eu não ligo, entendeu? Quando eu vejo as
crianças que passam na rua descalço, aí eu falo: “cadê sua mãe? Vai por um
chinelo, vai por uma blusa!” Aí eu brinco, faço pouco, às vezes tá sem camiseta,
às vezes é tarde da noite: “que é que você tá fazendo na rua?” Quer dizer, eu
não fico só olhando pro meu umbigo, né? A gente tem que sempre ajudar. Por
quê? Eu tenho os meus filhos, então como eu não vivo isolada nem trancada, se
eu quiser só fazer pra mim, eu tô sendo egoísta e não tô me ajudando em nada,
entendeu? Eu acho que é assim. Eu acho que todo bairro devia ter um trabalho
com os jovens, todos.
O ideal de uma vigilância permanente, sob responsabilidade dos pais e dessa comunidade
imaginária, não está muito longe do que determina o Estatuto, ao menos em relação à representação
de sociedade subjacente aos seus enunciados normativos. Uma sociedade compreendida como uma
totalidade orgânica, cujos elementos constituintes possuem uma função e um agente específicos,
tem lugar tanto no texto da lei quanto no discurso da militância em defesa dos direitos de crianças e
adolescentes (OTA, 2005). Para os pais de Carlos, o atributo da sistematicidade pertence, portanto,
ao ideal de proteção social e não, como na representação comungada pela família de Benito, ao
futuro destinado pela violência. Comparadas as configurações das duas experiências punitivas, as
unificações dos eventos em uma ordem de sentido assumem sinais opostos. Para uma, o futuro
deve ser destotalizado para que perca sua aura de destino e para que o presente seja tolerável, dia a
dia; para outra, o futuro só pode ser unificado sem temor se o presente for uma projeção idealizada
de uma comunidade imaginária. Essa diferença explica a avaliação e o significado dados ao
trabalho desenvolvido pelo programa de liberdade assistida. Não é à toa que, ao contrário de Dona
Benedita e Benito, os pais de Carlos vejam na figura do orientador social um parceiro da vigilância
familiar, ainda que sua função deva ser limitada e esclarecida. Trata-se de ser uma extensão do
controle sobre o adolescente e não sobre a família. As observações críticas de Dona Marisa sobre a
falta de sentido das visitas domiciliares158 realizadas pelos profissionais do programa
socioeducativo revelam o incômodo de quem oferece abertura para a ação conjunta, mas se vê
constrangida por uma espécie de invasão extorquida. O programa deveria acompanhar o filho para
158
“Marisa: Veio duas moças e um rapaz. Ela sentou e levantou: “Oi, tudo bem, cadê o Carlos?” O Carlos
tava. Eu não lembro se ele já tinha ido pro serviço. Foi assim, muito rápido. Ela falou assim: “Posso ir no
quarto dele?” Eu falei: “Pode.” Aí lá entrou, olhou <e> pronto: “Vamos embora?” Se ficaram cinco
minutos foi muito. Quer dizer... Aí o Carlos chegou e falou: “Mãe, e aí o que é que eles falaram?” Eu falei:
“Nada! Chegaram aqui me perguntando do seu quarto, olharam e foram embora.” Então ficou muito vago,
né? Você chega e fala: “Olha Marisa, uma visita, o negócio funciona assim, assim, assado. A gente está
entrando no quarto dele por causa disso, disso e disso.” Não! Eu não entendi, a gente fica deduzindo
sozinha: “Será que eles entraram no quarto dele pra vê se tem droga, será que eles desconfia?”
Pesquisador: Nossa! Fica imaginando que podem achar...
Marisa: Até hoje eu não sei por que eles entraram no quarto. Ninguém me fala nada. Não sei se era pra ver
se era arrumadinho, se ele era organizado, se tinha alguma coisa diferente que podia ser suspeito,
entendeu? Eu mesma ficava bolando na minha cabeça.”
318
que ele não se esqueça dos riscos a que está exposto e da sorte que teve em não ter sua liberdade
privada. Sempre tendo a internação como contraponto, o trabalho “em meio aberto”, na perspectiva
dos pais de Carlos, não parece ter identidade alguma, restringindo-se a ser um reforço do controle
familiar. Opinião externa e sem órbita própria, a orientação socioeducativa prescindiria de um
saber autônomo.
Sr João: Pra mim, pra ele, pra quantos outros que já passou, que tá passando por
aqui <programa>, é um espetáculo! É uma chance que a pessoa tem que ter. É
como eu falo pra você: tem muita gente que está lá <unidade de internação>,
que às vezes até merecia, fez coisa errada. Mas que podia mudar a vida da
pessoa, só isso aqui. E lá muda pra pior. Podia ter passado por um programa
igual a esse, ou diferente, com curso e está se aprimorando, já na vida, né? O
meu filho, graças a Deus, tá sendo excelente. Como eu falei pra ele. Não foi
muita coisa, pra mim seria melhor que não tivesse acontecido, mas já que
aconteceu, graças a Deus, a coisa caminhou pelo melhor lado possível. Pra ele
tá sendo bom. Como eu te falei, ele tá sendo bom. O Carlos, hoje, ele é mais
medroso, assim, nesse ponto, entendeu? Não é só respeito, ele tem mais medo.
Eu falei: “Filho, o pai já te falou, olha o horário. Você sabe pra onde você vai,
se sabe como que é lá.” Eu também dou umas cutucadas nele; dou uns sustos
nele, entendeu?
A despeito do entusiasmo do pai, a ausência de uma finalidade que não seja meramente
complementar ao controle judicial e familiar torna o trabalho do programa de liberdade assistida
alvo fácil de crítica. Em razão da inexistência de uma rede de serviços públicos capaz de acolher os
encaminhamentos do programa e também porque ele não oferece os tão desejados cursos
profissionalizantes para os adolescentes, a percepção de ingerência sobre a família não é rara,
declarada explicitamente por Dona Marisa. Diante dessa ausência, reforça-se a idéia de que o
trabalho socioeducativo se justifica pela intensificação do controle. “Assustar” ou tornar o
adolescente mais “medroso” são expressões diretas e cruas, mas nem por isso menos verdadeiras,
do objetivo delegado pelos pais ao profissional que exerce o trabalho de orientador social.
Marisa: Se tivesse um lugar pra ele tá ali: “olha, tem que ir, é o curso.” Vamos
supor, esse jovem vai ter que fazer esse curso, seja de informática, qualquer
coisa. Mas aí tem que ir. Faltou? “Mãe do Carlos, por que o Carlos não veio?
Então vem cá, vai assinar uma advertência.” Ser uma coisa séria mesmo. Pra,
assim, pra eles vê que qualquer erro tem uma cobrança em cima. Não vai ficar:
“Ah, daquela vez me pegaram com arma, eu fiquei seis meses, acabou, não deu
em nada”.
Não é dessa forma que a orientadora que acompanha Carlos pensa o seu trabalho, apesar do
conteúdo sancionatório da medida sempre impor a presença do controle, seja nos relatórios
enviados ao juiz, seja nas conversas e atividades desenvolvidas no programa. Facilmente observada
nos profissionais da área social, sobretudo nos segmentos dirigidos ao grupo de crianças e
adolescentes, a idéia de que o trabalho porta um sentido vocacional mantém, com as antigas
319
matrizes filantrópicas, um laço místico de comunhão com uma população alijada da justiça social.
Nesse acompanhamento em específico, esse laço é ainda mais forte por se tratar de uma instituição
que, ainda que laica, foi originalmente fundada por um grupo de missionários franciscanos e
moradores da região, engajados na militância política em favor dos direitos dos moradores. A
orientadora de Carlos pertence a esse grupo. Em seu discurso, como o de todos os seus colegas que
criaram a instituição, não há nenhuma referência a valores religiosos ou à comunhão de princípios
de fé daquela época. A atual linguagem política dos direitos, vocalizada pelos profissionais dessa
instituição, faz uso da lei e não da antiga mística do educador das pastorais da igreja católica,
cultivada em larga escala, nos grandes centros urbanos, no início dos 80. A própria instituição em
que Carlos é atendido, inaugurada no final dos anos 90, tem se notabilizado por sua competência
gestionária em prospectar recursos materiais e simbólicos no novo campo socioassistencial.
Entretanto, a vocação como condição para o trabalho permanece em meio a outras reivindicações,
como o aumento dos valores do convênio com a Prefeitura e a diminuição do número de
adolescentes acompanhados por orientador. As dificuldades administrativas não só em nada abalam
como parecem reforçar a “paixão” pelo trabalho.
159
Sob o argumento de que assim o Poder público estaria concretizando o princípio legal da municipalização
dos programas e políticas de atendimento ao segmento de adolescentes autores de ato infracional.
320
do país. O caráter vocacional tem permanecido, sobretudo, em instituições com esse passado, mas
cada vez mais se vê ameaçado por essa diversificação das trajetórias dos orientadores sociais. As
novas gerações de profissionais que atuam na área da infância e juventude já tiveram sua formação
universitária sob a égide do Estatuto. A iniciação no mercado socioassistencial, em especial no
contexto da execução das medidas, implica o conhecimento da legislação – o que, obviamente, não
significa que ela seja sempre respeitada no cotidiano. Independentemente da qualidade da formação
dos profissionais, a linguagem dos direitos articula o universo semântico de sua prática,
determinando a forma de circulação social dos significados coletivos do trabalho. O primado dessa
linguagem sobre outras não envolve dicotomias e nem conflitos sem resolução. Na execução das
medidas em “meio aberto”, o trabalho dos orientadores se funda sobre os direitos em dois sentidos.
O primeiro diz respeito aos aspectos técnicos da processualidade jurídica. O orientador deve
conhecer os trâmites do sistema de justiça, seus atores e as exigências impostas ao
acompanhamento socioeducativo. O segundo sentido refere-se à eficácia simbólica extraída do
Direito, reposicionada e transformada pelos mecanismos de controle do novo campo
socioassistencial. A classificação discriminante dos grupos e indivíduos, derivada do ritualismo
jurídico, converte-se em uma nova divisão. Constatadas as profundas deficiências do sistema de
justiça e das políticas públicas, os direitos são, de um lado, compreendidos como projetos de uma
sociedade ideal. Do outro lado, o mundo social revela-se na condição de uma imanência trágica,
repetitiva e paralisante. A lei é capturada pelo discurso mediante essa operação, cujo resultado
expressa bem a versão socioassistencial do formalismo normativo na execução das medidas. Um
Direito sem justiça, defendido politicamente e disseminado profissionalmente pela vacuidade
prospectiva de sua forma, pode então ganhar o depoimento da orientadora de Carlos e até mesmo
da pesquisadora, também profissional da área, que não resistiu ao apelo identificatório de sua
entrevistada.
321
me afastando não por causa dos meninos em si, mas o problema de infra-
estrutura que a entidade não fornecia, tava muito pesado. Principalmente
violência doméstica, quando você trabalha sem uma retaguarda, fica muito
difícil. E na liberdade assistida também, tanto que hoje o Centro de defesa A.
ainda não tem mais o convênio, está esperando com a SAS <Secretaria
Municipal de Assistência Social> alguma possibilidade de retorno. Mas eu
gosto muito, eu comecei como estagiária de direito, mas não quero saber mais e
acabei entrando como educadora no Centro de defesa A., depois no Centro de
defesa B., depois fui pra FEBEM e continuei como educadora visitando as
unidades e as famílias.
Daniela: Faz tempo que você se formou?
Pesquisadora: Foi em 99, desde 96 que eu trabalho na área. Mas eu sou
apaixonada, eu fiquei mais apaixonada ainda quando eu descobri essa oficina do
ECA. Começou assim: “Você conhece o ECA? Dá pra você fazer um grupo de
formação com os adolescentes?”
<Anotação da pesquisadora: Continuamos a bater um papo, como a fita acabou,
deixei terminar assim. Contei sobre o grupo junto com crianças e adolescentes
para descobrir o ECA, o que continuo fazendo e amo. Daniela me disse - daí
entendi a pergunta - que também quer dar um passo a mais: quer fazer terapia
ocupacional e trabalhar com crianças e adolescentes portadores de necessidades
especiais.>
O mercado socioassistencial aberto pelo Estatuto ainda não teve seu tamanho medido. Talvez
isso nunca aconteça. Pouco importa. Sua realidade é evidente demais para ser ignorada. Nesse
ponto, a execução das medidas em “meio aberto” é reveladora. Em poucos anos, uma área
profissional para realizar o acompanhamento socioeducativo, remunerada pelo Poder público, mas
sob a responsabilidade operacional das organizações sociais, surgiu na cidade de São Paulo e
continua em expansão, até os dias de hoje. Os valores são, certamente, modestos se comparados ao
montante dispensado à contenção dos adolescentes nas unidades de internação, mas suficientes
para alavancar a atuação de organizações e lideranças comunitárias das regiões periféricas da
capital paulista, constituindo mais um elemento de uma nova e complicada tessitura de interesses
políticos e formas associativas, questão que tem motivado diversos estudos preocupados em
apontar a indeterminação das fronteiras entre o legal e o ilícito, o formal e o informal160. O novo
campo socioassistencial dá larga vazão aos negócios, em uma escala generosa, contemplando todos
os sensos de oportunidades e as virtudes empreendedoras. No laissez-faire dos direitos sem justiça,
particularmente no “meio aberto”, o chamado “trabalhador social” desfruta de uma situação
ambígua. Profissionalmente, são poucas as exigências de formação feitas pelo Conselho municipal
dos direitos da criança e do adolescente, exceção, na época das entrevistas, à necessidade de
conclusão do ensino médio, o que rebaixava significativamente a remuneração a ponto de muitos
profissionais, sobretudo os que possuíam diploma universitário, questionarem a permanência no
emprego. Por outro lado, a ausência de uma formação especializada, somada à carga de
investimento moral que o trabalho de orientador carrega, incita a retomada de um sentido
vocacional, o que só reforça o teor ideativo – e suas conseqüências - do discurso em defesa dos
160
Entre os mais instigantes, destaco o de CABANES e TELLES (2006).
322
direitos nesse contexto profissional. Daí a razão para que Daniela, ao contrário das orientadoras de
Benito e André, tenha se arriscado a interpretar o “caso”, sem ao menos ter alguma formação
universitária, mesmo que complementar, para tanto. As hesitações sobre a afirmação de um saber,
que costumam marcar a atuação do orientador social, não a intimidavam. Não surpreende, portanto,
seu diagnóstico sobre a dinâmica familiar a partir da descoberta da gravidez da namorada de
Carlos. O tema da paternidade precoce esteve presente em todos os depoimentos do adolescente, de
sua mãe e do seu pai. Ele indicava claramente uma alternativa à responsabilização punitiva,
problematizada pela família em tons de esperança e de defesa contra a experiência aviltante
desencadeada pelo ato infracional. Nada disso foi aventado pela orientadora. Por mais que a análise
esteja sensível aos significados latentes ou ocultos do que falaram os entrevistados, nenhum relato
parece poder confirmar algo semelhante ao que Daniela disse sobre o assunto:
323
Daniela: Casa única, onde moram todas essas pessoas. (...) No caso da família
do Carlos, deu a impressão que é muito mais fácil de lidar com essas coisas,
porque é uma família que, teoricamente, são dois filhos, é muito mais fácil de
conversar. Agora, do outro lado, pra gente, os educadores que estão de fora, é
muito mais fácil de ver onde é que está pegando, onde está a dificuldade. Se a
irmã continuar desse jeito, daqui a pouco ela também vai fazer alguma coisa,
gravidez pra chamar atenção. Ela está resistente, ela não quer vir até aqui.
Seja pela certeza da validade do ofício, seja pela performance para a pesquisa, Daniela utiliza
a liberdade de manobra e manipulação propiciada pela indeterminação do saber no novo campo
socioassistencial. Pragmaticamente e segundo procedimento adotado pela instituição, serve-se dos
quesitos obrigatórios da medida, como a confecção e envio de relatórios à vara de execução do
Fórum, para imputar ao adolescente a consciência e a concordância com os rumos do
acompanhamento. Por isso o acordo representado pelo Plano personalizado de atendimento, no
início da medida e de preferência com a participação dos pais, e a leitura com o adolescente de
cada relatório antes de remetê-lo ao juiz. Como atestou Carlos, era esperado que a codificação
jurídica não permitisse uma compreensão, por parte dele e de seus familiares, da finalidade desse
recurso de leitura conjunta e também da implicação subjetiva pressuposta na forma escolhida para
traçar o Plano161. O princípio disciplinar da vigilância constante não pode explicar a natureza da
eficácia das práticas de controle existentes no “meio aberto”. Eficácia muito longe de se deixar ver
no comportamento dos indivíduos acompanhados. A vigilância que vigora não é permanente, mas o
receio sim, mesmo que inicialmente abstrato. Daí por que não há “aliança” e nem “polícia” das
famílias (DONZELOT, 1986). As práticas do “social” de antanho são subvertidas no novo campo.
Agora, trata-se de apreender a irregularidade dos fenômenos socioassistenciais pelas intensas
transformações das formas de sua vacuidade.
161
“Pesquisadora: Você sabe se ela <orientadora> conta desse atendimento que ela tem com você, essa
parceria, se ela conta pra alguém?
Carlos: Se ela conta o que nós conversa, eu não sei, mas manda o relatório pro juiz, né?
Pesquisadora: Manda. Você já leu?
Carlos: Não, ela falou, deu uma ficha, um papel. Outro dia aí, eu li o motivo, tive que trazer RG e Xerox, e
uns negócio de casa pra mandar pro juiz, o relatório. Mas, assim, se eu já li? Não.
Pesquisadora: Ler o que está escrito no relatório, não?
Carlos: Não. Lá só tá escrito o tempo que eu vou ter que vim aqui. Aí, tá lá que eu não tenho tempo, não tem
fim. Enquanto o juiz falar que eu tenho que vim aqui, eu venho. <É> o que eu li.
Pesquisadora: Você está lembrando o quê? De uma ficha?
Carlos: É, de uma ficha. O primeiro dia que eu vim, deu uma ficha num arquivo pro meu pai ler. Aí ele leu
tudo o que tinha na ficha. Aí ela falou: “O tempo é tempo indeterminado, pode ser seis meses, pode ser mais
tempo. Se o juiz achar que eu estou indo bem...”
324
à pessoa que está acompanhando e o que cabe a nós, a entidade e educador estar
fazendo.
Pesquisadora: Como foi este momento com o Carlos?
Daniela: Muito legal. Porque é como eu falei pra você. Todos os meninos são
bons. Mas a preocupação dele, no início, foi aquilo que eu te falei, se ele iria
estar com outros meninos. Isso no primeiro acordo.
Pesquisadora: A preocupação dele, ele chegou a falar pra você?
Daniela: Isso, se ele ia estar junto com outros meninos. Isso já no primeiro
<atendimento>, nesse acordo.
Pesquisadora: E quando ele fala de outros meninos, de que forma ele se refere?
Daniela: Quando eu expliquei como seria a proposta de trabalho, eu falei dos
atendimentos de grupo, o que a gente faria nesses grupos, que não era discutir
porque ele roubou a arma, porque matou, atirou. Falei que a proposta não era
essa. Aí ele ficou meio assustado, e eu falei que não precisaria, porque eram
meninos e meninas na mesma situação que o Carlos, que não cabia discutir e
nem julgar o menino... então a gente escutaria e de novo rediscutiria a proposta
de trabalho.
Pesquisadora: Ele pergunta de relatórios?
Daniela: Eu apresento um relatório pro adolescente antes de enviar. Porque o
que a gente faz no começo, não é um contrato, um acordo? Eu digo primeiro,
antes do relatório, eu falo que vou pôr no relatório tudo o que você fizer. Agora
o que você não fizer, eu não vou pôr também.
Pesquisadora: Você mostra e eles lêem?
Daniela: Tiro uma cópia e eles lêem. A gente discute com o que eles estão
concordando ou não.
Pesquisadora: E o Carlos leu?
Daniela: Leu
Pesquisadora: E o que ele achou?
Daniela: Ele disse: “No começo, eu achei que você não ia me mostrar nada,
porque você falou, falou, mas como é uma coisa importante, eu achei que você
não fosse me mostrar.” Mas ele leu e falou: “É isso mesmo o que está escrito
aqui.” E tem outra, eu peço que eles assinem uma cópia, porque tem alguns
meninos que precisam pedir uma oitiva <conversa informal com o promotor ou
juiz>, não tem muito jeito. Então, ele não pode dizer que não sabia. Acho que é
uma forma legal de se trabalhar. Ele sabe que ele precisa cumprir, sabe que tem
algumas questões que não dá pra fugir muito, e se ele não faz, não dá pra fazer
muita coisa. Então, eu acho isso muito legal, dá algumas brigas feias... (risos)
Pesquisadora: Já chegou a acontecer do adolescente não concordar?
Daniela: Já. Teve um que não me jogou por essa janela aqui porque não tem
jeito... (risos). Disse que eu era folgada. Daí eu disse: “Escuta, quem está
cumprindo a medida, sou eu ou você?” “Sou eu?” “Você veio naquele dia?
Você me disse por que não veio?” “Não!” “Você participou da atividade?
“Não!” Você faz isso ou aquilo?” “Não!”. “Então, nega, eu não posso mentir. O
que eu posso fazer, eu não posso mentir, como eu não minto pra você, eu não
vou mentir lá”. Daí ele gritou, quebrou cadeira, mas depois... não que a gente
fique massacrando toda vez <dando socos na mão>, a gente está chamando pra
responsabilidade.
325
“Tudo que eles me chamam eu concordo e vou.”
162
À figura da “família desestruturada” pode ser atribuída quase que um lugar estrutural na história das
práticas de assistência social. Sua presença é freqüente ainda hoje, facilmente observada pelas entrevistas
com os profissionais dos programas de liberdade assistida, das mais diversas procedências político-
institucionais, desde organizações ligadas à igreja católica, em que vigora o paradigma filantrópico
tradicional, até centros oriundos da militância política em defesa de direitos. Em linhas gerais, a “família
desestruturada” se resume ao desarranjo causado pelo desvio de dois vetores, a composição hierarquizada
pelos laços de consangüinidade centrados no casal e a situação ocupacional no mercado de trabalho e sua
repercussão nas condições materiais. Alguns trechos ilustrativos dessa figura nas entrevistas realizadas com
orientadores dos 16 programas de liberdade assistida, responsáveis, na época, pela execução da liberdade
assistida na cidade de São Paulo:
Instituição A: “No projeto, nós temos um trabalho com as famílias desassistidas, dirigida junto com
educadores, profissionais do grupo e estagiários de ciências sociais e psicologia. A gente faz um trabalho
sistemático com a família. Basicamente, é o resgate da auto-estima da família, do respeito, de saber o papel
de cada um na família, a importância de cada um, que esse papel não é um papel pesado e sim um papel de
construção dessa família. A gente encontra família muito desestruturada. Ela perdeu a autoridade sobre o
filho, a mãe e o pai. Ela quer impor autoridade à força, só que ela já perdeu há muito tempo atrás. Então a
gente tem que trabalhar a auto-estima dessas mães, desses pais para que eles entendam que não dá mais,
quando se está com o adolescente, <para> impor à força. Você tem que construir isso com alicerce. E aí
realmente a gente faz um trabalho voltado a estas famílias para poder resgatá-las.”
Instituição B: “É obrigado você trabalhar com a família pra poder atender as necessidades dele
<adolescente>. Então <fazemos> reunião de pais com toda a instituição e eventos junto com a família.
Agora mesmo eu voltei com uma colega e nós fomos visitar umas famílias. Você não encontra mais aquele
conceito de família: pai, mãe e filhos. Não tem mais. A mãe solteira com o menino ou então é só o pai, a mãe
e padrasto, não é mais aquele conceito de marido, esposa e filho. Mudou muito. Aqui mesmo as famílias são
muito desestruturadas. (...) É aquilo que eu já falei lá atrás. As famílias estão passando por diversos
problemas e o adolescente a gente não consegue caminhar, não quer nada. A gente olha pra família, a
326
história. A classificação discriminatória, em operação no cotidiano dos programas em “meio
aberto”, responde e é contínua ao poder simbólico do Direito. Marcar com essa rubrica uma família
significa definir-lhe um diagnóstico e um tratamento específico, pautados pela idéia de que os
investimentos devem ser altos para resultados, muito provavelmente, insatisfatórios. Embora não
sejam excluídas do acompanhamento – afinal, o juiz assim determina que elas sejam atendidas até
o fim da medida -, as “famílias desestruturadas” ocupam um lugar em que o discurso e as ações
profissionais incidem com mais intensidade. Por isso a família de Murilo, a despeito das
características que facilmente a habilitariam a compor o grupo preterido pelo trabalho, explicita o
processo de significação necessário para que as qualidades negativas de sua história sejam
acolhidas pelo programa como adequadas e sobre as quais a intervenção socioeducativa deve
recair. Aqui, será possível observar um acordo implícito entre o profissional e os atendidos muito
semelhante à “polícia das famílias”, controle paradigmático do “social”. Ponto geométrico desse
acordo, a concordância de que a punição, apesar das suas injustiças e excessos, seria, em última
instância, benéfica, posicionando o adolescente em uma curva ascendente de aprendizagem para a
vida, verdadeira realização do “aprender a aprender”. Os temas do trabalho social podem, assim,
ganhar forma e conteúdo em uma narrativa, ainda que cheia de vacilações, do percurso educativo
de um adolescente a ser “reinserido” socialmente:
família totalmente desestruturada, sem emprego, sem moradia fixa, morando de favor num cômodo num
lugar insalubre, devendo luz e água, mal conseguindo comer, pais com problemas de dependência química.”
Instituição C: “E a gente vai trabalhar cidadania, tem a questão da violência, política entra muito. Porque o
que é complicado com esses meninos é a aproximação com a família, a gente procura resgatar a questão do
convívio. E isso a gente trabalha muito. Isso é trabalho permanente, tanto no grupo do adolescente quanto
no da família. De buscar refazer o vínculo tanto dos meninos que ficaram muito tempo interno, quanto dos
meninos que por conta do fato do ato infracional, a relação com a família ficou um “troço”, sem contar que
muitas famílias estão desestruturadas.”
Instituição D: “Aí quando tem um programa mais global, a gente também entra, participa junto. Para ver se
consegue uma bolsa trabalho para os meninos. Porque a grande necessidade dos meninos é que eles tenham
o tempo deles preenchido, com algo que dê vida para eles. Porque lá onde eles moram já é uma miséria, a
família já é toda desestruturada. Às vezes tem família que o pai está preso, o irmão está preso. Nós temos
<esses> casos.”
327
pasta e de acordo com conversa com a família e com ele, né? Não é um dado
que eu possa falar: “Ah! É isso e pronto.”
Pesquisador: Mas isso que é o legal.
Carolina: O fato de ele ter sido autuado fez com que houvesse uma reflexão. Se
ele fosse um dependente, seria mais difícil de sair. Foi deixando as drogas e
discutindo, conversando com pessoas, a mãe foi mudando o comportamento. É
automático isso: o filho muda, a mãe muda. E hoje eles são amigos, há amizade,
há aproximação...
Pesquisador: Comentou que ele saiu de casa, que ele abriu uma “boca” <ponto
de venda de drogas>.
Carolina: Então, de fato. No atendimento, voltar a falar da infração é algo que
não o agrada. Não o agrada. Por mais que você introduza o assunto, ele
modifica. A gente sacou isso, deu uma devolutiva; mas ainda está em trabalho
de sensibilização. Pra que ele possa vir a falar à vontade, sem cobranças. Porque
se não, ao invés de auxiliar, causa um trauma e ai não é legal. <A entrevistada
tenta se justificar. O pesquisador já havia entrevistado o adolescente. Mostrava
ter mais informações sobre Murilo do que a orientadora, o que a deixou
nitidamente desconcertada.>
328
Pesquisador: Você acha importante falar da infração?
Carolina: Não que seja importante falar da infração, mas é um trabalho...
Embora eu seja orientadora social, a minha formação é psicologia. É <fazer a
pergunta>: “O que te incomoda tanto nisso?”
Pesquisador: Ótimo.
Carolina: É mais nesse sentido. Como poderia ser não falar do pai... Não que
tenha de falar a respeito da infração ou do que o incomoda, mas por que isso
traz tanto incômodo assim? É o medo de encarar a realidade, de voltar? Como é
que funcionaria tudo isso? Esse é o sentido, não que tenha de ser da infração.
Pesquisador: Certo. Ainda <falando> sobre aspectos mais gerais. O que você
acha que o incomoda quando fala disso?
Carolina: Perceber que ele falhou. Não no sentido de ter falhado em ter sido
<pego pela polícia>. <É> Por ele ter infracionado: “Mas, pôxa vida, se eu fui
pego é porque eu não era tão esperto”. Eu percebo nesse sentido. Ele fala muito
em conquistas, em perspectivas, em futuro e tem uma visão até bastante
ilusionista, assim, de ter carro, casas etc. Não que isso não possa acontecer.
Isso, se a gente semear a gente chega lá. Mas não é do dia pra noite. Eu acredito
que esse medo, assim, de falar...
Pesquisador: Ele fala de futuro?
Carolina: Muito. Com perspectivas até concretas. Embora ele fale <sobre> casa,
carro, viagens, faculdade. Quando eu digo que ele tem um senso crítico, é no
sentido que ele sabe que tudo tem seu tempo. Então, por exemplo, não dá pra eu
trabalhar como engenheiro sem eu sequer ter feito uma faculdade. Ele tem uma
noção do passo-a-passo. É sensato.
Pesquisador: Ele está a fim de conquistar as coisas?
Carolina: É. A conquista... Talvez, psicologizando...<risos>. Ele teve muito
coisa e tudo se esvaiu, foi muito fácil, pronto <refere-se aos ganhos com o
tráfico>.
Pesquisador: Teve? <em tom de questionamento>
Carolina: Teve no tempo que ele era dono de “boca”. Tinha grana, tinha tudo.
<Você> viu que ele é careca? O Murilo tinha muitos cabelos. <Foi> o sistema
nervoso que fez perder. Ele não tem nem sobrancelhas, cabelo. <A queda de
cabelos> Foi relacionada ao sistema nervoso. É algo que ele também não gosta
de falar muito. Já que aqui dentro é serviço de orientação, então a gente
intervém no sentido de saúde <e não no sentido terapêutico>. Não parece que
isso traz um mal estar: “Ah! Estou careca, e agora?”.
329
incompreensão de detalhes descritos para o papel no instante da encenação podem comprometer o
sujeito, auferindo-lhe mais punição do que a destinada usualmente. Para os adolescentes
“primários” e cuja infração não envolveu ameaça à pessoa, confessar o ato diante do juiz e
promotor, demonstrando arrependimento, provavelmente significará uma medida socioeducativa
mais branda, como a liberdade assistida ou prestação de serviço à comunidade. Mesmo que exista
alegação de inocência por parte do adolescente, via de regra a orientação dada pelos defensores
públicos, conhecedores das regras rituais do sistema de justiça, é para que o acusado reconheça a
culpa. Estratégia eficiente em um primeiro momento, mas que não contempla os problemas que se
iniciam logo na saída do Fórum, acarretados pela marca da lei. Sentenciado, ainda que “em meio
aberto”, o adolescente torna-se uma superfície potencial para novas estigmatizações, certamente
mais intensas e violentas do que esta primeira. Por outro lado, sujeitos identificados como
reiteradamente “reincidentes”, geralmente egressos de “famílias desestruturadas”, compõem o
público preferencial para a punição, mas, em função disso, não apresentam os atributos necessários
para a transformação subjetiva pela emergência de uma responsabilidade ajustada aos ditames do
convívio social. Por isso a situação de Murilo é especial, uma exceção.
Com passagens anteriores pelo circuito socioeducativo em função de envolvimento com o
tráfico de drogas e com um assalto em que não fora apreendido em flagrante, mas que lhe rendeu
uma semiliberdade, Murilo possui uma trajetória familiar marcada pela violência doméstica. Seu
primeiro padrasto, a quem até a adolescência reconhecia como pai, era sistematicamente violento
com ele e sua mãe. Policial militar de carreira, exercia brutalmente agressões físicas, algumas vezes
com ameaças de morte. A reiterada violência de que era vítima motivou Murilo a sair de casa e
morar com a avó materna, situação inviável de ser mantida por muito tempo. Somente com a
separação da mãe, Dona Manoela, é que Murilo pôde retornar em definitivo para o lar. O consumo
e, posteriormente, o tráfico de entorpecentes agravaram a relação, já conturbada, com sua mãe e o
novo padrasto, levando o adolescente a deixar novamente a residência, mas agora para ficar nas
ruas da cidade. O consumo de crack impunha a necessidade de constantes furtos e roubos. Dona
Manoela acompanhava o filho à distância, angustiada com a sua condição. Por vezes o socorria,
mas sempre tendo em mente a convicção de que essa experiência seria a única capaz de colocar
Murilo no caminho de volta, longe do tráfico e da dependência, sua dolorosa forma de educar o
filho.
330
não nele. Então, o Osvaldo começou a criar a Renata, que é minha filha
também, <a> tratar eu e o Murilo como uma pessoa, como eu posso explicar,
assim: “Ele não é seu irmão. Cuidado com ele. Quando crescer vai transar com
você”. Começou a falar isso pra menina, e ela cresceu com aquele medo do pai.
Ela não falava comigo nem com o Murilo com medo de apanhar do pai. Ele
nunca bateu na filha, mas se caísse um garfo ali e o Murilo estivesse no quarto,
o garfo caiu por causa do Murilo. Ele batia no Murilo. Ele batia mais quando eu
não estava. Passei a trabalhar para fazer a minha vida, tinha que sair dali, e não
podia sair dali sem emprego. Pra onde eu ia? Não tinha <para onde ir>.
Comecei a trabalhar fora, guardar um dinheiro e falei: “um dia eu vou embora,
quando estiver tudo pronto eu vou embora”. Eu falei: “mãe, o Osvaldo espanca
muito o Murilo, e eu trabalho, ele passa muito tempo com o menino”. Ele
judiava dele, fazia o menino de empregado, fazia o menino limpar a casa, cuidar
da casa, do quintal, e a menina não podia levantar para pegar um copo da água.
E eu também não era de bater nem nele nem na menina, também não podia
bater na menina. Mas ela fazia tudo com medo, mas não era isso que ela queria,
aí falei: “mãe, a senhora tem que ficar com o Murilo pra mim, pra eu fazer a
minha vida pra ir embora”. Aí eu deixei ele com a minha mãe, passava quinze
dias com minha mãe, quinze comigo. Só que isso atrapalhava a escola. O
Murilo estudou onde eu morei, começou a prejudicar ele na escola, começou ter
queda de cabelo por causa emocional, e eu também não podia perder o
emprego. Fiquei assim: “não sei pra onde eu vou.” Só que a minha mãe, eu sou
bem calma, mas ela é calma demais, passa muito a mão, e eu já não passo a
mão, quero ver a tarefa. Nunca fui de bater, de espancar, mas se eu dou uma
tarefa quero ver o retorno. Minha mãe é uma vó maravilhosa, os netos é tudo, se
ele falar “hoje minha mão está doendo, não vou escrever”, ela fala “então
filhinho, não escreve hoje, deixe pra outro dia”. Eu não: “sua mão está doendo,
mas você vai escrever porque você brincou”. O Murilo passou a ser criado pela
minha mãe, ele não podia ir na minha casa, quando fosse ele <Osvaldo > já
xingava: “ah, esse moleque...”. Os palavrões que ele falava... aí ele bebia o
dobro: “esse menino vai ser marginal, eu sou polícia e vou trocar tiro com ele,
vou matar ele”. Eu acho que o Murilo já cresceu com isso na cabeça, porque o
sonho do Murilo era ser polícia, ele falava: “eu vou ser polícia igual meu pai”.
Ele foi criado ouvindo o Osvaldo <falar> “você tem que me respeitar, eu sou
seu pai”. Tanto que ele cresceu com aquilo na cabeça: “ele é meu pai”. Mas
chegou uma hora que eu falei: “não é o seu pai, seu pai é outra pessoa”. (...) Eu
abri o jogo com ele: “ele não é o seu pai, eu conheci ele e você tinha três anos”.
(...) Ele foi pegando raiva do Osvaldo, mas ele nunca provocou o Osvaldo,
nunca bateu de frente com o Osvaldo, nunca. Mas o Osvaldo não podia ouvir
falar nele. Eu tinha que tomar uma decisão: “agora é hora, eu vou embora”. Aí
eu aluguei uma casa no Jardim Vitela, o Murilo estava com minha mãe. Aí eu já
comecei a desconfiar: “eu acho que o Murilo está usando droga”, porque
quando você é mãe, você conhece o que é seu. (...) Quando você convive com
uma pessoa, você conhece. Então eu comecei a desconfiar: “tem alguma coisa
errada com o Murilo”. Comecei a ir atrás, e é claro que eles negam. Você só vai
descobrir a verdade quando ele é detido, porque aí não tem como negar mais. Se
eu vou parar numa delegacia é porque ele roubou, porque matou, porque ele
usou droga. Então cheguei nele e falei: “Olha Murilo, eu perguntei se você
usava droga, você falava que não. Eu chego aqui, você está detido por uso de
droga!”
331
não dever, ensinamento repassado também muito precocemente aos seus filhos. É essa a matriz da
responsabilização punitiva de Murilo e não a sua passagem pelo circuito socioeducativo ou pelo
mundo do crime. Sua família não tem nada de “desestruturada”. Mais correto seria atribuir-lhe uma
estrutura rígida em excesso, construída pelo rigor moral de uma vida cauterizada contra as
constantes ameaças de desfiliação. Permitir que o filho saia à rua, mesmo sob forte risco de morte,
revela uma aposta na responsabilização, cheia de incertezas e expectativas. Não é preciso o trânsito
pela violência institucional do sistema de justiça para que a responsabilidade, de cunho
individualista e ciente de suas conseqüências, possa ganhar emergência, libertando todos do medo
da perda, sentimento inadequado ao que Manoela pensa ser correto para seus filhos. A decisão de
Murilo pela internação para livrar-se do consumo de entorpecentes ratifica essa responsabilidade,
feito bem sucedido na aposta materna e ponto de apoio do acompanhamento no “meio aberto”:
Manoela: Um dia quando menos espera ele vai fazer um assalto. Não acreditei,
fiquei passada, noventa e três reais, um assalto à mão armada, ele e mais dois ou
três maior. Ele era menor. Mas mesmo assim, aquilo que eu estava falando: eu
não sou de bater, mas o certo é o certo, o errado é o errado. Eu faço questão que
você cumpra o que você fez. Não sou de ficar falando: "Não! Meu filho, não!"
Ele vai ter que pagar. Não passei a mão nele. Tive que ir à delegacia, <corrige-
se> meu marido que foi no meu lugar - por que isso foi de madrugada - e eu tive
que ir lá na FEBEM do Brás. Fui lá, ouvi tudo que eu tinha que ouvir.
Conversei. Ele pegou a semiliberdade. (...) Comecei a ficar mais de olho em
cima dele, porque você perde a confiança, comecei a desconfiar que ele estava
pisando na bola na semiliberdade. Os amigos eram mais importantes do que a
semiliberdade. Matriculei ele, mas perdeu o ano de escola. Aí o juiz arrumou
uma escola em tal lugar, matriculei ele, aí um dia a escola liga falando que ele
não compareceu. Eu falei: “se ele não compareceu, onde ele está?” Fui atrás,
que é a minha obrigação, quando eu fui saber <que> ele não foi nem um dia. Eu
falei que ele está enganando a semiliberdade. Quer dizer, ele vai trabalhar com o
meu marido, sente dor de dente e vai embora. Chega aqui, toma remedinho, fica
cinco minutos deitados e vai embora. Na escola não vai, aonde ele vai? Fui
atrás. Eu vi que ele tinha que passar por aquilo. Eu vou cruzar os meus braços e
ver até onde ele vai. Deixar acontecer. Cruzei os braços, mas ficava meio assim,
sabe quando você vai dando corda e vai segurando? Quando eu vi que não tinha
mais jeito, que ele começou a tirar as coisas de dentro de casa pra vender, pra
comprar droga, aí meu marido falou: “Você vai ter que escolher, ou vive essa
vida ou vive outra, porque não é certo todo dia tirar dinheiro da carteira, roubar
meu dinheiro, tirar as coisas de dentro de casa. Você vai ter que escolher."
<Murilo>: "Ah, eu quero morar na rua." Eu falei: "Tudo bem, pega suas coisas e
vai embora." Aí ele foi. (...) Nisso ficou eu sofrendo, porque eu vi que ele estava
se acabando no crack, na cocaína, na maconha, eu vi que ele estava se
acabando, mas eu podia fazer o quê? Eu não podia forçar ele ficar comigo, ele
tem que tomar a decisão dele, do coração dele, não adianta você querer uma
coisa e a pessoa não querer, não adianta. Então ele tinha que sofrer aquilo
também, pra ele sentir a minha falta. (...) Eu tinha medo que alguém matasse
ele, tinha medo que ele fizesse um outro assalto. Eu não achava certo ele
assaltar nada que era dos outros, não passei isso pra ele. (...) Muitas vezes eu
chamava ele pra tomar banho em casa, porque eu não queria ver ele como um
mendigo na rua, comprava até roupa pra ele usar, porque ele estava que nem um
mendigo. Daí ele chegou e falou: "Mãe, eu quero me internar, a senhora me
interna?” Eu falei: "Você está falando sério?" <Ele disse>: “Eu quero ajuda.”
332
O pedido de ajuda e a decisão pela internação para tratamento contra a dependência das
drogas compõem a prerrogativa atribuída a Murilo pelos profissionais do programa e que permitem
a ele ser acolhido de forma diferenciada, um adolescente cuja trajetória teria tudo para ser
classificada e discriminada pelos profissionais do circuito socioeducativo. Reconhecer a culpa e o
sofrimento pela história familiar e pelas infrações cometidas, assumindo a responsabilidade pela
mudança no plano subjetivo – inclusive com o corpo, a exemplo da queda de cabelos -, fazem de
Murilo um adolescente em relação ao qual o trabalho do orientador social poderia ser bem
sucedido. Essa concepção, todavia, não consegue se fundar em um universo prático-discursivo
desse trabalho, que seja muito diferente da valorização da responsabilidade punitiva, cultivada pela
família e pelos profissionais do circuito socioeducativo. Se há motivo para pensar em uma
“aliança” entre o profissional e a família atendida, aqui ela encontra sua justificativa, já que
assentada em uma afinidade de propósitos. Aos pais, interessa que a violência vivenciada nas
instituições estatais torne-se exemplo produtivo, ilustrativo e subjetivado pelo filho. Os mandos e
desmandos dos agentes de segurança, a prepotência policial e a arbitrariedade dos operadores do
Direito devem servir a essa finalidade, em contraposição à dolorosa e inútil lembrança da violência
perpetrada, durante anos, pelo primeiro padrasto de Murilo no coração da família. A expectativa
subjacente a essa valorização da punição tem base em um pressuposto. Se o sujeito pode resistir a
tamanho jugo, humilhação e contingência, pode também cristalizar, em seu benefício, um controle
emocional e uma competência de cálculo e estratégia, um eficiente instrumental cognitivo e afetivo
de adaptação a situações-limite. Pelo lado do profissional, essa facilidade adaptativa pode definir o
espaço da autonomia do objeto do saber do trabalho em “meio aberto”, desarticulando as amarras
criadas pela indeterminação própria da atuação do orientador social instituído pela legislação.
Corresponde a essa capacidade adaptativa a atitude de disponibilidade total para com as atividades
propostas pelo programa. Participar de tudo, sem colocar obstáculos ou interpor vontades
específicas, porque sabedor do valor potencial de qualquer atividade, configura a postura ideal de
aprendizagem segundo a voga do ideário da “educação integral”. Murilo seria, não fosse seu
passado comprometedor e sua fisionomia pouco palatável ao gosto terceiro-setorista, o aprendiz-
modelo dos projetos sociais mantidos pela virtude cidadã do grande mercado.
333
e tem serviço de sábado para fazer eu vou pra fechar aquele dia, na boa. Se eles
me chamarem para alguma coisa, vai ter um teatro ou um cinema, <digo>:
“vamos”. Tudo que eles me chamam eu concordo e vou.
Pesquisador: Eles te chamaram pra mais coisa?
Murilo: Por enquanto ainda não.
Pesquisador: Se chamar você vai?
Murilo: Eu irei se me chamar e estou envolvido.
Pesquisador: O que você gostaria que te chamasse? Você curte teatro, cinema?
Murilo: Pra mim qualquer coisa eu vou. Comigo não tem tempo ruim, pra nada.
É a mesma coisa de eu chegar na sua casa ali, maior humildade, você chegar e
falar: “Vou almoçar, quer comer?” Você faz um prato lá pra mim, eu não vou
falar que não quero. Comigo não tem essa, se me chamar pra fazer qualquer
coisa eu vou. “Vamos jogar bola?” “Vamos.” Se eles virarem pra mim: “Tem
um campeonato, jogar uma bola, tô reunindo os menores, você quer entrar?”
“Entro. Quais os dias?” Nos dias <marcados> estou aqui, com o tênis na mão...
Na gravitação do mesmo regime moral, Dona Manoela pode fazer valer o saber propiciado
pelo seu relacionamento com Osvaldo, a partir do qual sustenta a afirmação triunfante de sua
individualidade, que transpôs o medo da morte dos filhos e serviu-se da lei punitiva – e injusta – do
Direito e seus agentes.
Manoela: Foi uma conquista. Eu sou uma pessoa que quando quer alguma coisa,
vou à luta mesmo. Se quero conquistar alguma coisa, eu vou e não paro no meio
do caminho, não volto pra trás. Mesmo que der errado, eu começo tudo de novo,
vou procurar uma saída. Só se eu morrer, porque se eu estiver viva, eu dou um
jeito de procurar saída. Eu vou à luta. Não tenho medo de perder. Não tenho
medo... eu já tive muito medo, muito. Das coisas. Já tive muito medo de muita
coisa. Mas hoje em dia eu já não tenho muito medo não. Tenho mais fé. Antes
eu não tinha muita fé. Hoje eu dia já tenho mais fé em Deus. Então, medo pra
mim não existe, se eu tiver que falar pro juiz tudo o que eu estou falando pro
senhor, eu falo pra ele, na boa: “Meu filho errou, meu filho fez isso, fez aquilo.”
Se ele fizer de novo, eu vou chamar a viatura ou entregar pessoalmente. Eu não
estou criticando, eu estou ajudando.
Pesquisador: Pouca gente entende isso. Pouca gente fala desse jeito que você
está fazendo...
Manoela: Ah sim, são poucas. Eu queria até entender por quê. Por quê? Ainda
não descobri o porquê. Pode ser porque pensa que ama muito o filho, mas não
ama. Não se libertou do medo. Porque o medo faz você errar muito. O medo de
perder meu filho. Então você pensa que vai ajudar, <mas> você está perdendo
ele.
Mãe e filho podem conjugar os lemas de um mesmo dialeto, de dicção escandida e sintética,
em forma de slogan ético. Nas direções desconhecidas do acaso e de um tempo de urgência, quem
conhece os “três lados” do mundo pode se pronunciar sobre o que é reto e sem desvios, o preço a
pagar por cada ato de existência. Nada parece atestar a idéia de que uma estratégia de ocultamento
esteja em vigor nessa responsabilidade163. Por que seria diferente? Não se trata justamente de ter
163
A orientadora de Murilo reflete bem o desencontro que costuma surpreender os que procuram no
programa de liberdade assistida a certeza de uma proximidade quase íntima com o adolescente. Não
compreender a lógica da responsabilidade defendida a muito custo pelo adolescente e sua mãe sinaliza um
dos efeitos da substituição do saber pela prática de discurso. A instabilidade do objeto a conhecer, gerada
334
clareza dos vínculos causais e até mesmo de exacerbá-los para que uma imagem viril possa ser
explicitada?
Murilo: Olha, pra falar a verdade mesmo, o mundo tem seus dois lados. Na
realidade, é três, seus três lados: tem a ilusão, tem a realidade, certo? E tem as
conseqüências. Você tem que escolher o caminho que você quer fazer. Chega
uma certa idade que sua mãe tá ali com você. Mas chega uma certa idade, você
tem que escolher o que você quer. Então, você tem que ver o que você quer e
seguir.
Manoela: Eu acho que você tem que escolher o que você quer, mas por essas
três palavras que você disse. Você passou pelas três.
Murilo: É o óbvio. Não adianta você também passar por um assunto só. Você
vai descobrir as três, vai ver o que é bom e o que ruim.
Manoela: Com certeza.
Murilo: Certo? Não é: “Não, vou só pro lado bom”.
Manoela: O lado bom também tem uma coisa errada. Porque uma coisa é certa,
nada é de graça.
Murilo: Lógico que não. Pra você fazer uma “necessidade” você tem que pagar
ou a água ou o papel higiênico. Você tá entendendo? Pra você usar o rádio pra
escutar música, tem que pagar. A não ser que você fizer um cambalacho, se
puxar um fio ali...
pelo formalismo normativo, abre espaço para avaliações completamente equivocadas, uma vez que ignoram
o cerne da problematização moral envolvida nessa afirmação de uma responsabilidade sobre a punição e a
injustiça: “Carolina: É uma família... <fala muito baixo, como para não ser ouvida>. Algo meio que tudo
muito bom. Por isso a leitura do grupo <com famílias>: Está tudo bem, a família muito legal, todo mundo
reunido, todo mundo participa. Mas é algo que está sendo interpretado. Que possa estar sendo maquiada,
isso tudo. Ou então: “o que é o tudo bem? Vocês não têm problemas nunca, não sofrem, não choram, não
passam por dificuldades?” Ou de repente, pode ser algo - que daí dá pra citar – com relação ao Murilo:
“Porque o medo de citar a infração?” E nessa família: “por que de repente tudo é tão lindo, hoje? Mas e o
ontem? Como é que foi superada as dificuldades? Ou será que não existem mais dificuldades?” Uma das
falas da mãe em atendimento: “Hoje a minha família é perfeita”. É? Então: “O que é hoje uma família
perfeita? Se hoje é perfeita, é porque ontem não era. Se ontem não era, como é que pode ser amanhã?”
335
Pesquisador: Uma coisa que me impressionou é que os meninos aqui da Zona
Norte <referindo-se a um grupo focal desenvolvido semanas antes com alguns
adolescentes atendidos pelo programa> descreviam pormenores de situações
<sobre o narcotráfico>. Isso foi impressionante. Ao mesmo tempo, a noção do
Murilo, quando ele comentava <junto aos demais do grupo focal>: “Pôxa, de
quem é a responsabilidade pela violência?”. Eles estavam descrevendo muito
esse assunto da violência. Eu lembro que ele comentou: “Mas, gente, de quem é
a responsabilidade pela violência? Dessa violência?”. Aí, ele colocou assim, a
gente tava discutindo alguma coisa sobre o Estado e ele falou que o Estado não
faz nada. Ele chegou e <falou>: “Você acha que é pobre que tem dinheiro pra
comprar arma? O lote de armas custa uns R$100.000,00.” E outra, por exemplo:
“você vai, quer abrir uma boca, quanto dinheiro você precisa?”
Carolina: Um investimento...
Pesquisador: É. Aí, ele pegou <e disse>: “Uns três mil reais de arma, uns nove
mil reais por um bom quilo de pó, mais não sei quanto de maconha e pronto.
Abriu sua boca. Quem é que tem esse dinheiro? É pobre? Não é pobre.” Pelo
menos foi isso que ele colocou.
Carolina: Sim, sim...
Pesquisador: Ele colocou alguma coisa por aí. A gente ficou impressionado
com...
Carolina: Com a sabedoria até...
Pesquisador: É, com a sabedoria.
Carolina: Mas, por exemplo, a sabedoria, no sentido desse investimento, não é
qualquer um que abre uma “boca”.
336
com o objetivo de estimular a sugestão e associação, para, no instante seguinte, perguntar quais
idéias vinham à cabeça. A associação produzida não poderia ser outra que não uma rudimentar e
aprisionada aos lugares comuns da representação da experiência punitiva. Contudo, expressões
estereotipadas podem pertencer, como verificado aqui, a um mosaico de indícios sobre a dimensão
volitiva do adolescente, a partir do qual o profissional pode extrair conclusões. Isso porque não há
formação especializada para leitura dos sinais coletados por esse tipo de recurso. Uma assistente
social pode interpretar, segundo os esquemas classificatórios da área, o “perfil psicológico” de um
atendido, enquanto o terapeuta mapeia a disponibilidade da rede de serviços da região. No “meio
aberto” em específico e no campo socioassistencial em geral, o saber disciplinar importa muito
pouco se comparado à prática discursiva. A profusão vocabular e o deslocamento semântico de
noções antigas fazem da desreferencialização o seu modelo de trabalho. Daí o formalismo não ser
apenas uma ilustração do funcionamento do novo campo socioassistencial, mas a descrição de sua
eficácia. A abstração que ele produz se associa a esse futuro das significações forçadas pelas
técnicas rudimentares de um método sem saber.
337
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primo Levi
338
exportação, sobretudo em tempos de liberalismo avançado: expansão jurídica e cívica ao lado do
consentimento público com a injustiça; responsabilização punitiva no esteio dos valores do
individualismo concorrencial; permeabilidade sinergética entre Estado e mercado no âmbito da
reestruturação da administração pública; um capital social das oportunidades perdidas nas situações
excepcionais de qualificação profissional abertas no campo socioassistencial. Neste mesmo campo,
também se vislumbra o desenvolvimento de uma tecnologia social específica e, sem dúvida, de
ponta: um saber sem conhecimento, pura operação do vazio das significações do trabalho. Uma
autêntica irrealidade social é, a um só tempo, gestada e incitada por esse poder estruturado como
uma linguagem, tendo no formalismo normativo o seu principal dispositivo. Que, diante da
comprovação da injustiça social, psicanalistas propositivos, militantes eloqüentes, empresários
responsáveis, educadores e profissionais da assistência, inquietos acadêmicos e intelectuais
inconformados possam todos, ao seu modo e segundo suas convicções, evocar o discurso das boas
virtudes da cidadania, isso não seria a mais contundente prova material da eficácia do formalismo?
Isso não seria igualmente o sinal da verdade sobre o sentido totalitário do poder da enunciação
objetal do vazio, sempre irreal e puramente formal?
339
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___________. (1978). Os movimentos sociais, in: FORACCHI, M.M. e MARTINS, J.S.,
Sociologia e sociedade – leituras de introdução à Sociologia, Livros técnicos e científicos: Rio de
Janeiro.
TRÉGLIA, N. (2008). Direction de la cure. Quelqu’un à qui parler, in: La Petite Girafe, n. 27,
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VICENTIN, M. C. (2005). A vida em rebelião: jovens em conflito com a lei, Hucitec: São Paulo.
VIÑAR, M. & VIÑAR, M. (1992). Exílio e tortura, Ed. Escuta: São Paulo.
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WEBER, M. (2002). Ensayos sobre sociologia de la religión, v.1, Taurus: Madri.
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________ (2006a). A subjetividade por vir: ensaios críticos sobre a voz obscena, Relógio d’água:
Lisboa.
________ (2006b). Arriscar o impossível: conversas com Zizek, Martins Fontes: São Paulo.
346
ANEXO 1
ref.2 Assessoria externa Março de 2004 Texto redigido a partir da proposta educativa
do Programa, para incluir a discussão sobre a
ciência e a tecnologia na formação dos
jovens.
347
ref.12 Equipe do Programa Abril de 2004 Registro da “equipe” sobre o 1º encontro de
formação do Programa.
ref.13 Equipe do Programa Abril de 2004 Roteiro para visitas do grupo 1. Material
utilizado no 1º encontro de formação do
Programa.
ref.14 Equipe do Programa Abril de 2004 Roteiro para visitas do grupo 2. Material
utilizado no 1º encontro de formação do
Programa.
348
ANEXO 2
349