Em Diligência de Se Libertar. Alforria, Família Escrava e Tráfico Interprovincial, No Alto Sertão Da Bahia - Termo de Monte Alto (1810-1888)
Em Diligência de Se Libertar. Alforria, Família Escrava e Tráfico Interprovincial, No Alto Sertão Da Bahia - Termo de Monte Alto (1810-1888)
Em Diligência de Se Libertar. Alforria, Família Escrava e Tráfico Interprovincial, No Alto Sertão Da Bahia - Termo de Monte Alto (1810-1888)
Salvador 2018
ROSÂNGELA FIGUEIREDO MIRANDA
Salvador
2018
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA),
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Aprovada em:______/______/_______.
BANCA EXAMINADORA
Prof.a Dr.a Maria de Fátima Novaes Pires (Orientadora) - Universidade Federal da Bahia
Prof.ª Drª. Ione Celeste Jesus de Sousa – Universidade Estadual de Feira de Santana
AGRADECIMENTOS
Esta tese, que hoje apresento, foi fruto de algo almejado e pensado desde a minha época de
graduação. Por conta desta temporalidade mais extensa, muitas pessoas, de alguma forma ou
de outra, contribuíram para a construção do que aqui se defende. Claro que algumas dessas
pessoas merecem reverências e agradecimentos.
À minha orientadora, Maria de Fátima Novaes Pires, pela dedicação e opiniões sinceras,
acertadas, conduzindo sempre para uma produção que realmente atendesse à exigência
acadêmica, requisito necessário para uma tese de doutorado. Obrigada pela paciência e pelas
horas dedicadas à orientação, à leitura do texto e eficiência no acompanhamento.
A Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes e Sharyse Piroupo do Amaral, por terem participado da
banca de qualificação, com contribuições valiosas de sugestão e leitura, para incorporar no
desenvolvimento da pesquisa. Sou grata por terem aceitado o convite e por fazerem parte
deste estudo.
À minha amiga e querida Danielle Silva Ramos, que participou da pesquisa desde a
identificação do acervo histórico de Monte Alto, até a finalização deste trabalho. Leu meus
textos, deu sugestão, além do apoio moral em todos os momentos da escrita. A você, Dani,
minha eterna gratidão.
Não poderia esquecer-me de lembrar os meus pais, que, apesar de pouca instrução, souberam
identificar a educação como um caminho para vencer na vida.
Ao meu esposo, Manoel Miranda, e a minha filha, Ana Clara, obrigada pelo amor e
compreensão em todos os momentos da minha vida, sobretudo pelo apoio incondicional nas
dificuldades e nos momentos de exaustão durante esses quatro anos.
Agradeço à FAPESB pela concessão da bolsa de doutorado e ao Instituto Federal Baiano, pela
liberação para realizar este estudo.
Às amigas de Monte Alto: Adriana Cruz Veiga e Leila Cotia de Assunção, pela presteza em
transcrever parte das fontes utilizadas nesta pesquisa, e aos funcionários do Fórum de Monte
Alto, que me atenderam com simpatia e sempre solícitos ao fornecerem informações e
identificação de documentos.
Ao amigo Pedro Aurélio dos Santos Carvalho e Santos, pelos favores prestados, sempre
mandava de Salvador as encomendas de que eu precisava.
Enfim, a Deus, meu refúgio, onde busco forças e coragem para seguir nesta grandiosa
conquista!
RESUMO
Este estudo analisa as relações entre senhores e escravos elaboradas nas diversas experiências
de convívio de grandes, médias e pequenas propriedades do termo de Monte Alto, no Alto
Sertão da Bahia. Interessa compreender, sobretudo, os diferentes meandros percorridos por
escravos com senhores, forros e livres pobres na busca pela alforria e manutenção dos laços
familiares, destacando as diferenciações e implicações do ser cativo de grandes, médias e
pequenas propriedades. Situa-se entre os anos de 1810 e 1888, século XIX, período marcado
pela vigência do tráfico atlântico, da expansão do tráfico interno e das leis emancipacionistas.
O fim do tráfico atlântico, em 1850, e a intensificação do tráfico interprovincial a partir de
1840, na região do Alto Sertão baiano, marcaram a vida de cativos com a recorrente ameaça
de venda e a relutância de senhores em conceder a alforria, tornando-a difícil e complexa.
Grandes propriedades contaram com escravaria numerosa e condições econômicas versáteis, o
que permitiu a cativos encontrarem, na dinâmica daquelas atividades, maiores possibilidades
de tecerem arranjos e negociações com seus senhores, diferentemente dos cativos de pequenas
propriedades, que não puderam contar com as mesmas chances. Nesse viés de argumentação,
tentarei demonstrar que a integralidade da família escrava e a obtenção da alforria foram
favorecidas em grandes e médias propriedades, ainda que o tráfico interno constituísse força
na região.
This study analyzes the relations among masters and slaves occurred in different experiences
of coexistence in large, medium and small properties in the term of Monte Alto, in the high
rough northeast of Bahia. It is important to understand mainly the different meanders covered
by slavers with masters, freed slaves and poor free slaves searching for manumission and
maintenance of family ties, emphasizing differentiation and implication of the human being of
large, medium and small properties. It is situated between 1810 and 1888, XIX century, in
period marked by the Atlantic traffic, the expansion of the internal traffic and the
emancipationist laws. The end of the Atlantic traffic, in 1850, and the intensification of the
provincial traffic from 1840 in the region of high rough northeast of Bahia earmarked the
slaves life with the recurrent threat of sale and the reluctance of masters in granting
manumission, becoming it difficult and complex. Large properties had large enslavement and
versatile economic conditions and this allowed the slaves to find, in the dynamic of those
activities, great possibilities of weaving arrangements and negotiations with their masters,
differently of the slaves of small properties that could not to count with the same chances. In
this bias of argumentation, I will try to demonstrate that the integrality of slave family and the
attainment of the manumission were favored in great and medium properties even the internal
traffic formed force in the region.
Figura 1 - Desenho da Vila de Monte Alto realizado por Theodoro Sampaio – 1879 ........... 37
Figura 2 - Mapa contendo o trecho entre Monte Alto e Caetité, desenhado por Theodoro
Sampaio em 1879 .................................................................................................. 38
Figura 3 - Cidades, trajetos e rios no Alto Sertão da Bahia, 1879.......................................... 39
Figura 4 - Igreja Matriz construída em 1735 no sopé da Serra de Monte Alto ...................... 51
Figura 5 - Limites do termo de Monte Alto em 1856............................................................. 52
Figura 6 - Trajeto percorrido pelos tropeiros do Alto Sertão com destino ao Recôncavo da
Bahia e Salvador .................................................................................................... 54
Figura 7 - Família cativa de Inineo e Desidéria.................................................................... 121
Figura 8 - Rede Familiar de Faustino e Dorotheia ............................................................... 129
Figura 9 - Família escrava da Fazenda Gonçalo – 1869....................................................... 142
Figura 10 - Escravos de Marçal Roiz Monção – 1875 ........................................................... 185
Figura 11 - Casarão da Fazenda Lameirão ............................................................................. 191
Figura 12 - Casarão da Fazenda Poço Comprido .................................................................. 191
LISTA DE TABELAS
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................15
1.1 A família escrava .....................................................................................................21
1.2 Alforria ....................................................................................................................25
1.3 O Alto Sertão da Bahia ............................................................................................28
1.4 Fontes e Métodos .....................................................................................................31
2 SENHORES E ESCRAVOS NA FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE
ESCRAVISTA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA, TERMO DE MONTE ALTO,
SÉCULO XIX ..............................................................................................................36
2.1 “Não pode ter lugar a alforria”: alforria e família escrava, uma conquista árdua ...36
2.2 Breves considerações históricas e econômicas do lugar .........................................48
2.3 Escravos na composição da riqueza de grandes, médios e pequenos proprietários 61
2.4 Perfil populacional e posse escrava nas pequenas, médias e grandes fazendas do
termo de Monte Alto, século XIX .................................................................................76
3 ARTICULAÇÕES ENTRE SENHORES E ESCRAVOS EM GRANDES
PROPRIEDADES........................................................................................................97
3.1 Na teia da sobrevivência: alforria, família escrava e redes de relações ..................97
3.2 “Que a suplicante queira se libertar”: alforria em grandes propriedades ..............107
3.3 Tráfico interno e (des) arranjos familiares em grandes propriedades ...................120
3.4 Uma rede bem tramada: laços de família, compadrio e amizade ..........................133
4 ESCRAVOS EM PEQUENAS E MÉDIAS PRO4PRIEDADES .......................144
4.1 “Existe um único bem melhor, e de valor”: composição da riqueza de médios e
pequenos proprietários .................................................................................................144
4.2 Vivências escravas em pequenas posses: tráfico e família escrava.......................156
4.3 Alforria em pequenas propriedades .......................................................................165
4.4 Na teia da sobrevivência: escravos, libertos e livres pobres .................................177
5 VIVÊNCIAS E QUERELAS COTIDIANAS DE SENHORES, ESCRAVOS E
LIBERTOS NAS PROPRIEDADES DE MONTE ALTO ....................................190
5.1 “Como a minha tropa se vai demorando”: ambientes, moradas e vivências
cotidianas .....................................................................................................................190
5.2 “E nem deve escravidão a alguém”: escravizados e forros nos tribunais de Monte
Alto ..............................................................................................................................197
5.3 Fundo de Emancipação: Família escrava e alforria...............................................210
5.4 Criminalidade escrava: outras formas de resistência ............................................219
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................229
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................232
15
1 INTRODUÇÃO
O cenário
1
Epígrafe retirada do livro “Os analfabetos”, do jornalista, escritor e tipógrafo do Alto Sertão da Bahia, João
Gumes. O autor citado trabalhou como mestre-escola durante oito anos em fazendas dessa região.
2
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção judiciária. Inventariada: Inácia da
Silva Prates. Maço 08, processo n° 021, 1847. A utilização da nomenclatura “termo” em vez de “município”
deve-se ao seu registro nas fontes analisadas neste estudo; por todo o século XIX, apareceu na documentação
referida à região de Monte Alto como “termo”.
3
O valor mencionado corresponde a: setenta e dois contos, oitocentos e noventa e nove mil e quinhentos e
cinquenta e nove réis.
16
ressaltados pelo autor, a historiografia mais recente sobre o Alto Sertão baiano evidencia que
algumas fortunas mencionadas continuaram em equilíbrio4.
O tráfico, nessa região, beneficiou muitos senhores escravistas com empreendimento
nessa atividade, ao ponto de, com o lucro proveniente da compra e venda de cativos,
investirem em outros negócios capazes de estender o poderio econômico por gerações,
criando e ampliando fortunas em suas fazendas e demais propriedades. Pequenos proprietários
também se envolveram na diversificação de atividades econômicas, como a pecuária, a
compra e venda de cativos, a produção agrícola e em investimentos alternativos, porém em
menor escala.
Noutro momento, no drama intitulado “A Abolição”, Gumes (1920) lembrou os
desmantelos do tráfico interprovincial em famílias de escravizados no Alto Sertão baiano5.
Embora o autor não explicitasse o local exato da trama, presume-se que se tratava de fazendas
escravistas no termo de Monte Alto, uma vez que ele atuou naquela região ministrando aulas
para filhos de fazendeiros. Na trama, o autor descreveu a maneira como traficantes, na figura
de Antero de Sá, arregimentavam cativos em comboios com destino às províncias do Sudeste,
sobretudo para São Paulo. Mostrou os efeitos vagarosos da Lei do Ventre Livre, o sofrimento
das famílias de escravizados representadas pelo personagem Manoel, pai de família, africano,
50 anos, que se curvou diante do seu senhor, implorando-lhe não vender seus filhos para o
cruel traficante Antero. O drama remeteu ao contexto da segunda metade do século XIX, no
Alto Sertão baiano, auge do tráfico interprovincial, que impactou a sobrevivência de muitos
escravos e libertos.
Paulo Henrique Duque Santos (2014), ao estudar a dinâmica socioeconômica do Alto
Sertão baiano entre os anos de 1890-1930, destacou variados aspectos de intercâmbios
comerciais na região para além do mercado interno. Por meio de fontes inéditas, mostrou a
importância do sertão baiano integrado a centros de capital financeiro e industrial, com
vultosas taxas de exportação de produtos agrícolas e da pecuária. Apontou, ainda, a
contribuição da historiografia do sertão baiano no revisionismo de certos conceitos da
literatura tradicional, como descreve:
4
Ver: SANTOS, Paulo Henrique Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia.
Caetité, 1890 – 1930. Tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP). 2014; RAMOS,
Danielle da Silva. O mundo aqui é largo demais: produção e comércio no termo de Monte Alto, alto sertão da
Bahia, 1890-1920. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2016.
5
GUMES, João, 1920. A Abolição. Drama. Transcrição do manuscrito feito por Maria Belma Gumes
Fernandes, março de 2013.
17
Sobre a intensificação do tráfico interprovincial na Bahia a partir de 1840, ver: SILVA, Ricardo Tadeu Caires.
6
Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão - Bahia,
1850-1888. 2007. 335 f. (Tese de Doutorado). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal
do Paraná. Curitiba, 2007. Ainda; NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros Traficantes: Comércio de
escravos do Alto Sertão da Bahia para o oeste cafeeiro paulista. Revista Afro-Ásia, Salvador, 2000, p.97-
18
128. Ressalte-se, que Neves localizou 1.200 registros de procurações de escravos vendidos de Caetité, a partir de
1840, via tráfico interprovincial para as regiões do Sudeste.
19
7
Para pensar essas relações, a autora baseou-se nas contribuições de Genovese sobre o paternalismo articulado
com a reintegração dos conceitos de acomodação e resistência. Nesse sentido, o conceito de resistência por
muito tempo trabalhado na historiografia brasileira, ganhou novos horizontes. Ao fazer uma releitura, “o autor
elimina a polaridade dos conceitos de resistência e acomodação, dirigindo ambos a sentido comum, retirando-os
dos limites estreitos que tradicionalmente os confinavam”. Sobre os conceitos de acomodação e resistência, ver
também: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.151.
8
Conforme Alex Andrade Costa (2016, p.31) o conceito de autonomia escrava se apoia nas definições pioneiras
lançadas por Maria Helena P. T. Machado (1988; 2014) e também seguidas por Roberto Guedes (2005),
relacionando-o com a economia própria dos cativos, sendo que a autonomia escrava se dava também na
capacidade de movimentação em espaços que circulavam; movimentação essa que se relaciona com aquilo que
Costa (2016) define como mobilidade espacial. Ainda, de acordo com Roberto Guedes (2008, p.86) tem-se a
mobilidade social, que está relacionada com as estruturas sociais, podendo ser familiar, geracional e por isso
deve ser considerada a partir de uma perspectiva relacional.
21
9
Genovese (1988) e Thompson (1998) foram autores que muito influenciaram em estudos de populações no
Brasil de escravizados. Sílvia Lara (1995) enfatiza a confusão que muitos pesquisadores fazem no uso do
conceito de paternalismo utilizado por Genovese e Thompson com o patriarcalismo de Gilberto Freire em “Casa
Grande e Senzala”. Salienta a autora que, na obra de Freire, o conceito é descritivo e impreciso, oferecendo uma
análise da sociedade a partir da dominação senhorial. Genovese (1988, p. 21), bastante citado nos estudos de
família escrava no Brasil, definiu a escravidão no Sul dos Estados Unidos como “um sistema de dominação de
classe”, antagônica, mas, ao mesmo tempo, complexa e ambivalente. Esse sistema pautava-se numa relação de
exploração da força de trabalho de um indivíduo sobre o outro, contudo, ao contrário do que se pensava, os
cativos não viviam na imoralidade e promiscuidade, e sim construíram formas próprias de viver e estabeleceram
relações estáveis com seus senhores. Nessa lógica de posição e sobreposição e de espaços ínfimos, os escravos
adquiriram vantagens importantes na organização coletiva de suas vidas, como: a liberdade de cultos, roupas,
alimentos, direitos para casar e constituir uniões estáveis, alforrias e, até mesmo, permissão para plantarem e
criarem animais. Por outro lado, a ponderação de atitudes abusivas por parte do senhor implicava também
ganhos, pois, consequentemente, o escravo produziria maior quantidade de trabalho. Desse modo, o paternalismo
consistia em uma prática mediadora de promoção na estabilidade nas relações entre senhor e escravo
(GENOVESE, 1988). Outro autor que também contribui para este estudo é o historiador Hebert Gutman (1976),
principalmente no que se refere às formas e graus de parentesco que os africanos, antes de serem escravizados,
construíram na África Ocidental. Ao chegarem às Américas, na condição de escravos traficados, trouxeram
consigo uma das mais ricas experiências humanas e valores culturais, adaptando-os ao convívio nas senzalas.
Gutman mostrou, ainda, como os escravos do Sul dos Estados Unidos construíram relações estáveis por meio de
práticas exogâmicas, levando à formação de extensas redes de parentesco e de solidariedades entre eles.
22
diferentes sujeitos sociais para resistir ao cativeiro.10 A construção dessas relações sociais
poderia implicar importantes vantagens na organização coletiva da vida cativa e realização de
seus desejos, ainda que imersas num plano de exploração e subalternidade.
Para ampliar a compreensão das relações entre senhor e escravo, autores como
Genovese pensaram-nas a partir de uma ótica paternalista, que consistia em uma prática
mediadora de promoção na estabilidade das relações entre senhor e escravo, o que não
eliminava o escravo da condição de propriedade privada. Do mesmo modo, Douglas Cole
Libby (2008, p. 33) reconhece o caráter da propriedade privada, marcadamente no “âmbito
fechado do domínio senhorial”, mas pondera que “a autoridade do senhor ou da senhora
nunca foi verdadeiramente absoluta, nem totalmente incontestável”. Entende que o
paternalismo consistia em uma relação de direitos e deveres e era, sobretudo, no campo dos
deveres (do senhor para com o escravo), que cativos os transformavam em direitos
conquistados. Na mediação de forças com seus senhores, cativos conquistaram espaços
autônomos, por isso, o paternalismo nunca foi um jogo vencido pelos senhores, já que cativos
mergulharam incessantemente na luta por espaços adicionais.
Nas características das unidades produtivas e no contexto das relações pessoais entre
senhores e cativos, Libby ressalta, ainda, a necessidade de pensar formas distintas de
paternalismo no Brasil, considerando as especificidades dos diferentes tamanhos da posse
escrava, como em pequenas propriedades que apresentavam acentuadas instabilidades,
imprevisibilidades e tensões de toda parte no cotidiano escravo (LIBBY, 2008, p. 37).
Dentre os autores brasileiros que se valeram desse conceito, podemos citar Sílvia Lara
(1995), com nova interpretação da vida e experiências cativas, como: as tensões entre
senhores e escravos, a resistência, a formação de famílias estáveis e a liberdade, entre outras
conquistas.
Ao tratarmos da escravidão e das relações entre senhores e escravos, tanto
quanto ao tratarmos qualquer outro tema histórico, lembramos, com
Thompson, que as relações históricas são construídas por homens e mulheres
num movimento constante, tecidas através de lutas, conflitos, resistências e
acomodações, cheias de ambiguidades. Assim, as relações entre senhores e
escravos são frutos das ações de senhores e de escravos, enquanto sujeitos
históricos, tecidos nas experiências destes homens e mulheres diversos,
imersos em uma vasta rede de relações pessoais de dominação e exploração
(LARA, 1995, p. 4).
Sobre a historiografia tradicional de que trata o tema “família escrava” ver: Casa Grande e Senzala (FREIRE,
10
1980 – 20. ed.); Da senzala à Colônia (COSTA, 1996); As religiões africanas no Brasil (BASTIDE, 1960); A
integração do negro na sociedade de classes (FERNANDES, 1965). Com exceção de Gilberto Freire, os
demais autores integraram a “Escola Paulista de Sociologia”, cujas teses recaíam na premissa da insociabilidade
entre a escravidão e o parentesco dos cativos.
23
Nesse sentido, a dominação dava-se de forma complexa e ambígua e, mesmo que a lei
legitimasse a propriedade escrava, cativos “possuíam projetos e ideais próprios, pelos quais
lutavam e conquistavam pequenas e grandes vitórias”, conforme Sílvia H. Lara (1995, p. 47),
vendo, nas relações paternalistas, a concessão de alguns benefícios como produto de uma
conquista árdua.
Inseridas em um universo de acordos, mediações, valores e costumes, as relações entre
senhor e escravo foram marcadas também por complexidades e ambiguidades. Nas diferenças
e implicações do ser escravo em pequena, média e grande propriedade, em Monte Alto, o
paternalismo, calcado nas mediações dos direitos e deveres, nem sempre prevaleceu, na
medida em que a região tinha como marcador nas relações as ameaças de venda face ao
tráfico interno, dentre outras situações que colocavam a vida daqueles cativos na
imprevisibilidade. Mas, nas experiências cotidianas da vida em cativeiro, que envolviam
“esperanças, recordações e uniões estáveis”, o fortalecimento dos laços comunitários e
familiares colocava em risco a segurança da instituição escravista, impondo certos limites à
dominação de seus senhores (SLENES, 2011, p. 36).
Slenes (2011), ao estudar a família escrava em Campinas, no século XIX, sugeriu que
a mesma foi resultado de relações paternalistas tensas, as quais foram construídas por
escravos, e não somente de arranjos senhoriais, como forma de resistir à dominação senhorial.
Nesse sentido, em “Senhores e subalternos no Oeste paulista”, o autor considera a família
escrava como sendo de importância central para a política de domínio dos senhores e também
para os projetos dos escravos, pautados no uso da “força e do favor”, mostrando
dialeticamente seu funcionamento, que poderia servir aos interesses de ambas as partes:
possibilidades de acesso à alforria e união estável, ainda que o plano da “força” e do “favor”
prevalecesse nas relações estabelecidas (SLENES, 2011, p.36). Desse modo, a família escrava
representou espaço privilegiado de articulações para obter a alforria e de resistência às
condições impostas na política do cativeiro. Entretanto, a documentação analisada indicia que,
nas negociações realizadas com senhores, nem sempre a família podia assegurar vantagens e
estabilidade, notadamente em pequenas propriedades, suscetíveis às mais diferentes
vulnerabilidades.
Considerando as contribuições de Slenes para os estudos de família escrava, Sandra
Lauderdale Graham (2005) acrescenta que o casamento legitimado entre escravos nem sempre
esteve associado à política de interesses senhoriais. Ao trazer o protagonismo de mulheres
escravas, como Caetana, a uma região de economia pujante, marcada pelo domínio privado e
caráter ardiloso dos senhores, destacou a resistência escrava que “perturbou a ordenação
patriarcal”, fazendo com que, dentro de certo limite, o senhor intercedesse a favor dela. 11
Nesse viés de resistência e negociação, ilustrou relações de escravos com senhores, de forma
que os primeiros não se intimidavam com a força do poderio senhorial, entretanto, sabiam das
limitações e de possíveis punições, tornando ainda mais precárias suas condições de vida,
quando o senhor retirasse “seu favor, da mesma forma que o concedera” (GRAHAM, 2005, p.
64).
Com abordagem específica sobre Salvador - Bahia, na segunda metade do século XIX,
a tese de Isabel Cristina Ferreira dos Reis (2007) constituiu uma valiosa contribuição aos
estudos sobre as experiências de vida familiar, pois ampliou a compreensão de família escrava
ao usar o termo “família negra”, entendendo-a como uma teia de relações compostas não
apenas por escravos, mas também por libertos e livres, fossem elas legítimas ou
consensuais.12 Embora o termo cunhado pela autora não seja aqui utilizado, uniões entre
indivíduos de estatutos jurídicos diferentes também foram observadas em Monte Alto, como
importante elo na ampliação das alforrias e ações de liberdade via judicial, mormente com a
Lei de 1871, além de fornecer amparos em momentos de necessidade.
A morte de um senhor, as vendas, as dívidas, a divisão dos bens entre herdeiros
poderiam desamparar as famílias escravas, por isso, estas buscaram ampliar suas redes de
11
O local estudado pela autora refere-se à Fazenda Rio Claro, localizada na Província de São Paulo.
12
Ainda na Bahia, Kátia M. de Queirós Mattoso (1992), ao se debruçar sobre inventários post mortem em
Salvador, inclusive de escravos e forros, abriu novas perspectivas de estudos em história social, até mesmo no
que se refere à família escrava e redes de sociabilidades. Também, como referência nos estudos de escravidão na
Bahia, João José Reis e Flávio Silva, em “Negociação e Conflito” (1989), ao apresentarem uma análise com
ênfase na micro-história, confirmaram as tendências na historiografia contemporânea ao incluírem o escravo
como sujeito de sua própria história, conquistando espaços de autonomia em meio a uma sociedade marcada pela
dominação senhorial.
25
relações, que fortaleciam os laços com a comunidade, ganhando proteção e apoio na garantia
de certa estabilidade, afirma Maria Inês Côrtes de Oliveira (1995/6). A permanência de tempo
com um mesmo proprietário poderia facilitar maior vínculo e união estável que implicasse
ganhos materiais. Nos tempos da escravidão brasileira, a família tinha “importância
fundamental na montagem e funcionamento das atividades econômicas e nas relações sociais
e políticas” (FARIA, 1997, p. 256). Consanguínea ou não, a família conferiu “estabilidade e
movimento”, influindo na posição social do indivíduo vinculado a um grupo, “incluindo
relações rituais e de aliança política” (FARIA, 1997, p. 256). O casamento legal, instituído
pela Igreja Católica, abrangia todas as camadas sociais, inclusive os escravizados, no entanto,
algumas situações poderiam interferir nas uniões estáveis dos cativos, manifestadas a
depender do contexto de cada localidade.
Em Monte Alto, evidenciam-se uniões sacramentadas entre cativos com maior
incidência nas grandes e médias propriedades. Conforme observou Sheila de Castro Faria,
“grandes unidades, portanto, tinham mais condições do que as menores de contar com casais
legalmente unidos” (FARIA, 1997, p. 257). Em Campinas – São Paulo, Robert W. Slenes
(2011, p. 80) também observou a prevalência de uniões estáveis entre cativos de grandes e
médias unidades produtivas. O mesmo constatou Roberto Guedes, em trabalhos sobre a região
de Porto Feliz, no Rio de Janeiro: “Nas escravarias com mais de dez escravos, as
possibilidades de casar eram mais amplas”, aponta Roberto Guedes (2008, p. 150).
Apesar de regiões com características diferentes das de Monte Alto, no Alto Sertão
baiano, é importante notar as implicações das características das propriedades na vida escrava,
notadamente na estabilidade familiar e alcance à alforria, conforme tem sido apontado em
alguns estudos historiográficos. Na disposição dos inventários post mortem, em Monte Alto,
observou-se a existência de grandes, médias e pequenas propriedades, demarcando diferenças
em ser cativo em cada uma delas. Assim, o tamanho da propriedade e suas condições de
produção tinham implicações na integralidade da família escrava, e esta expressava um desejo
compartilhado entre cativos que não só contribuiu para fortalecer “a formação de uma
identidade nas senzalas” (SLENES, 2011, p. 59), como era um dos fatores fundamentais para
a obtenção de suas alforrias, dentre outras possibilidades.
1.2 Alforria
26
Quanto às alforrias, fontes analisadas nas páginas que seguem neste trabalho mostram
as diferentes estratégias de negociações e atitudes dos escravos na busca por suas
manumissões, inclusive com ações de liberdade para resistir às oscilações do cativeiro.
Sidney Chalhoub (1990, p. 232) enfatiza que escravos construíram lógicas e racionalidades
próprias, “vinculados a experiências e tradições históricas particulares e originais”, buscando
sempre ampliar possibilidades dentro ou fora da instituição escravista.
Nas diferentes propriedades de Monte Alto, muitos escravos alcançaram possibilidades
de ganhos econômicos, principalmente entre grandes e médias propriedades. Por meio do
trabalho árduo e apoio tecido entre familiares e companheiros de cativeiro, puderam requerer
a compra de suas manumissões e, consequentemente, enfraquecer a política de domínio
senhorial. Nem sempre os propósitos dos escravos e libertos tiveram conquistas satisfatórias,
mas eles fizeram uso de estratégias possíveis para sobreviver à dominação escravista e às
ameaças do tráfico interno, que marcou e “interferiu nas expectativas de vida dos escravos
baianos”, assinala Ricardo Tadeu Caires Silva (2007, p.28).
Nesse sentido, o autor supracitado (2007, p.28) elucida que o tráfico interno
desarticulou arranjos costumeiros de famílias, mas não desmotivou comunidades escravas a
lutarem pela permanência e alcance da alforria, daí maior pressão para ampliar redes de
sobrevivência e espaços de autonomia, até mesmo o acesso à Justiça era resultado de alianças
tecidas com pessoas livres e libertas na tentativa de requerer e manter a liberdade, face às
mais diversas situações de enfrentamentos com seus senhores. Isto posto, a alforria não
deixava de ser uma concessão senhorial, um acordo basicamente desigual entre senhor e
escravo, mas para o escravo era, sem sombra de dúvidas, “um primeiro passo de reinserção
social pela via legal”, principalmente se pensarmos pelo prisma de que a escravidão era
“norma” e a desigualdade, “um princípio básico” (GUEDES, 2008, p. 183-189). A alforria
constituía para cativos “diferenciação social”, ou seja, uma maneira de hierarquização social,
que perpassava pelo plano das negociações, mas também das tensões e conflitos. Além disso,
é claro, o alcance da alforria constituía-se pelo plano das redes de solidariedade, dentro e fora
do cativeiro, “manifesta, por exemplo, nas suas relações familiares pelo casamento, entre
outras maneiras” (GUEDES, 2008, p. 184).
Ser escravo de uma pequena propriedade requeria esforço redobrado na luta pela
sobrevivência, eram contundentes as dificuldades para barganhar com seus senhores
expectativas de uma vida menos incerta. Na peleja da vida diária, não era incomum que
tensões emergissem entre as amargas experiências do cativeiro. Outrora, consolidaram
aproximações com forros e livres pobres na iminência de assegurar mediações e apoios para
27
experiências concretas dos oprimidos, da multiplicidade de sujeitos históricos, “dando voz aos
silenciados da história” (DIAS, 1998, p. 233).
13
Essas pesquisas tomaram maior expressão com os trabalhos de Neves (2008), Pires (2003, 2009), Nogueira
(2011), Santana (2012), Almeida (2012), Santos (2014) e Ramos (2016), dentre outros. Os referidos estudos
começaram por Rio de Contas e Caetité (que dispõem de arquivos organizados) e vêm ampliando-se para outras
regiões, como Paratinga, Carinhanha, Bom Jesus da Lapa e Palmas de Monte Alto. Parte dos trabalhos canalizou
a atenção para a escravidão e para a liberdade, no entanto, necessita-se da continuidade das pesquisas sobre o
tema, visto existirem, ainda, lugares pouco contemplados, como o termo de Monte Alto, no decorrer do século
XIX. Outro autor que também trata do sertão baiano oitocentista, especificamente Morro do Chapéu, é Jackson
André da Silva Ferreira (2014). Em seu estudo, revelou importantes meandros das relações de dependência
pessoal entre senhores e dependentes, inspirando refletir sobre as facetas do paternalismo nas relações entre
subalternos e senhores no sertão.
29
Santos e Cia.; Brandão & Irmãos (Salvador); e Campos e Castro (Minas Gerais), todas elas
atuavam com frequência na região do Alto Sertão, inclusive em Monte Alto.
Em outro momento, Maria de Fátima Novaes Pires (2003) identificou para Caetité e
Rio de Contas, por meio de processos-crime, aspectos sociais da vida cotidiana de escravos,
senhores, forros e livres pobres. As distâncias da capital da província, a exiguidade do Poder
Judiciário e as aproximações dos cativos com livres pobres e forros constituíam entraves na
manutenção da ordem pública, por isso, os responsáveis por ela buscavam sempre
mecanismos de controle social. Na iminência de salvaguardarem a propriedade senhorial, as
posturas de autoridades públicas revelam forte “suspeição e a vigilância presentes na vida dos
cativos e forros” (PIRES, 2003, p. 106). Em “Fios da Vida”, Pires (2009) debruçou-se sobre o
tema “tráfico e alforrias para Caetité e Rio de Contas” na segunda metade do século XIX. Ao
perseguir trajetórias de escravos, forros e ex-escravos, observou que, apesar das ameaças
constantes do tráfico, cativos dessas regiões construíram significados nas relações de convívio
para suas vidas e não desapareceram das fazendas, sítios, vilas e entorno da região14.
Nas relações que mantinham com os senhores, cativos construíram experiências de
liberdade marcadas por tensões, acordos e, em muitos casos, por via judicial. Fontes
documentais sobre Monte Alto apontam fragmentos de especificidades da vida escrava, cujas
relações tecidas, como uniões familiares, representaram não apenas resistência, mas,
conforme sinalizou Kátia Lorena Novais Almeida (2012, p.104), “um leque de possibilidades
de sua existência e experiência, que dependiam principalmente do contexto em que os cativos
viveram”.
Nas primeiras décadas do século XIX, inventários de grandes, médios e pequenos
proprietários mostraram intensificação de escravizados na região, provenientes do tráfico
atlântico. As áreas do Alto Sertão, naquele período, ganharam impulso, sendo introduzido no
Médio São Francisco o cultivo do algodão e de gêneros alimentícios variados, associado ao
uso do trabalho escravo. Não obstante, ao lado do famigerado desenvolvimento agrícola, as
14
Outros estudos sobre trajetórias familiares de africanos e afro-brasileiros no sertão do São Francisco no século
XVIII corroboram as afirmativas de que cativos souberam “viver por si” e pelos seus, construindo autonomia e
mobilidade por meio de arranjos familiares cotidianos na luta pela sobrevivência (NOGUEIRA, 2011). Em
“Família e Microeconomia Escrava no Sertão do São Francisco (Urubu-BA, 1840 a 1880)”, Napoliana Pereira
Santana (2012) destacou variados arranjos de negociação entre cativos e senhores, sobretudo envolvidos na
participação da economia da região, fato que favoreceu o acúmulo de pecúlio para a compra da alforria. Simony
Oliveira Lima (2017) também evidenciou experiências de escravos em Carinhanha, região vizinha de Monte
Alto, entre os anos de 1800 e 1870. Ao analisar as práticas costumeiras de alforria, concedida ou por compra,
percebeu os diversos arranjos de sobrevivência e luta para a consecução da alforria, da família e laços de
parentesco nos plantéis daquela localidade.
30
O contexto mencionado pela autora mostra que o fim do tráfico atlântico, com a Lei
Euzébio de Queiroz, em 1850, intensificou a procura de escravos das províncias do norte para
o Sul e Sudeste do Brasil, com a expansão das lavouras de café. Naquele período, o Alto
Sertão se destacou como região de fornecimento de cativos, mobilizando redes de negócios
entre senhores, traficantes e procuradores. Tais negócios trouxeram consigo implicações na
vida social de muitos cativos, principalmente no que tange às formas de organização de vida
comunitária e às constantes ameaças de venda, conjuntura esta que tornou mais complexa a
luta pela alforria.
15
Acerca da conjuntura econômica em fins do século XVIII e início do XIX, ver: NEVES, Erivaldo Fagundes.
Estrutura Fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador EDUFBA,
2005. BITTENCOURT, J.S. Memória sobre a plantação dos algodões. Ano M. DCC. XCVIII. Biblioteca
Tradicional de Lisboa. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: São Paulo: Brasiliense,
2004. NEUMANN, Eduardo S; GRIJÓ, Luiz Alberto (Orgs.). O império e a Fronteira: a Província de São
Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014. ARAÚJO, Jonas Cardoso. Algumas considerações acerca
do município de Palmas de Monte Alto. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012. Para conhecer mais sobre
o processo de expansão dos sertões, ver: SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Fronteiras do sertão baiano:
1640-1750. Tese de doutorado, USP, 2010.
16
Sobre os autores que mencionaram a ilegalidade do tráfico ver: CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão:
ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. RODRIGUES,
Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro
(1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma
história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. Editora UNESP, 2004. SILVA, Alberto
da Costa e. Um rio chamado Atlântico: África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira:
Ed. UFRJ, 2003.
31
Para classificá-los por faixa de riqueza foi levado em consideração a quantia do monte-mor arrolado nos
17
inventários post mortem, bem como as características dos investimentos feitos pelos inventariados, similar a
estudos realizados por Maria José Rapassi Mascarenhas (1998), Mônica Duarte Dantas (2007) e Maria de Fátima
Novaes Pires (2009).
33
18
Para saber mais sobre a micro-história, ver: GINZBURG, Carlo, “O queijo e os vermes, o cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição”, São Paulo: Companhia das Letras, 1987; e “A micro-
história e outros ensaios”, Rio de Janeiro: Bertrand, 1989; PESAVENTO, Sandra Jatahy, “História e história
cultural”, Belo Horizonte: Autêntica, 2006; CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.),
“Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia”. Rio de Janeiro: Elsevier (1997); VAINFAS, Ronaldo,
“Os protagonistas anônimos da história, micro-história”, Rio de Janeiro: Campus, 2002. REVEL, Jacques,
“Microanálise e construção do social”, In: REVEL, Jacques (Org.), “Jogos de escala: as experiências da
microanálise”, Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1898, pp. 17-38; e “Micro-história, macro-
história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado”, Revista Brasileira de
Educação, v. 15, n. 45, septiembre-diciembre, 2010, pp. 434-444.
34
19
Para melhor compreender a operacionalização dos conceitos pensados neste texto, valemo-nos das leituras de
Jacques Revel, em especial, a apreensão do método de escalas de análise, tão difundido na micro-história. Para o
autor, esse método é relacional e possibilita maior exploração do objeto de estudo a partir da experiência da
realidade social. Assim, o particular, o indivíduo, o local e o concreto passaram a ser pensados a partir de uma
rede de relações em diferentes dimensões da vida social. Os conceitos não são determinantes nem soberanos,
mas concretos, com “incertezas e racionalização limitada”. “As grandes transformações que alteram
profundamente a face da Terra não existem em nenhuma parte a não ser pela ação de atores que, na lógica dos
contextos peculiares da sua experiência social, se esforçam em garantir para si um lugar, isoladamente e/ou com
outros” (REVEL, 2010, p 444).
35
2.1 “Não pode ter lugar a alforria”: alforria e família escrava, uma conquista árdua
20
Situada na Serra Geral da Bahia, mais especificamente na região do Sudoeste, a uma distância de 800 km da
capital, Salvador, e a 200 km das margens do Rio São Francisco, Palmas de Monte Alto foi historicamente
povoada por diferentes povos indígenas que ali construíram seus modos de viver e sua própria dinâmica. No
século XVIII, o arraial era distrito da comarca de Urubu, sob a jurisdição da vila do Rio de Contas. O seu nome
era Monte Alto das Palmas, conforme consta no traslado do testamento de Francisco Pereira de Barros, anexado
no livro do encapelado da igreja de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, de 1846. Ao longo do século
XIX, passou por sucessivos desmembramentos e incorporações em relação a outros municípios. Com a
Independência do Brasil, a primeira Constituição, de 1824, no seu art. 24, estabeleceu que fosse facultado às
províncias subdividirem seus territórios, o que levou à ampliação de 63 vilas na província da Bahia, entre os
anos de 1827 e 1889. Foi nesse contexto que, em 1832, Macaúbas elevou-se à vila, incorporando Monte Alto em
seu território. E, somente com a Lei n° 124, de 19 de maio de 1840, Monte Alto alcançou a condição de vila,
desmembrando-se, portanto, de Macaúbas. Em 11 de junho de 1860, Monte Alto e Carinhanha “formaram por si
uma comarca, com a denominação de Comarca de Monte Alto” (FREIRE, 1998, p.268). Contudo, a lei de 28 de
maio de 1873 alterou a divisão das comarcas, levando Monte Alto a denominar-se de Carinhanha, “constituída
pelos termos de Carinhanha e do Rio das Águas”. Em 1878, Riacho de Santana desmembrou-se de Monte Alto e,
no ano de 1880, foram criadas novas comarcas, sendo que a de Monte Alto compreendeu este termo e o de
Riacho de Santana, separando-se da Comarca de Caetité (FREIRE, 1998, p. 268- 269).
37
pesquisadores21. Teodoro Sampaio (2002) também foi um desses viajantes que deixaram
relatos sobre sua passagem por Monte Alto. Assim descreve o autor:
A vila é antiga e pequena, mas regularmente edificada numa situação
excelente na base da serra do mesmo nome e em altitude de cerca de 580
metros, com um clima dos mais afamados do sertão. Apesar de estar quase
abandonada pelos seus habitantes, que, no geral, se refugiam nas fazendas,
receosos de um assalto de jagunços, a vila pareceu-me interessante, no seu
aspecto de tranquilidade e de repouso. Fomos aí gentilmente acolhidos pelos
srs. José Patrício de Souza, José Barbosa Madureira e Avelino de Oliveira
Guimarães, hospedando-nos em casas deste último, o qual nos acompanhou
desde a fazenda das Campinas para o fim de nos dar agasalho em sua casa
(SAMPAIO, 2002, p. 198-199).
Figura 1 - Desenho da Vila de Monte Alto realizado por Theodoro Sampaio – 1879
Fonte: SAMPAIO, Theodoro Dr. O Rio São Francisco – trechos de um diário de viagem e a
Chapada Diamantina, 1879-80. São Paulo – Escolas Profissionnaes Salesianas. Disponível em:
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. N° Reg. 1241.
Alto, as belezas dos recursos minerais, como as rochas, pinturas rupestres, as grutas, o achado
do minério de ferro, salitre, as argilas coradas e usadas pelos habitantes para pintura das suas
casas, assim como as águas correntes do Rio das Rãs, que nasce naquela serra. Entre as
fazendas que percorrera, ele destacou as seguintes: Campinas, Três Irmãos, Pé da Serra,
Carnaíba de Dentro, Carnaíba de Fora, Caldeirão, Lagoa do Pato, Paga-Tempo, Lagoa da
Pedra, Boa Vista, Pau d‟Espinho, Capim da Raiz e Boqueirão22.
O mapa a seguir, na Figura 2, desenhado por Sampaio (1879) ao passar pelo Rio São
Francisco em direção à Chapada Diamantina, entre 1879 e 1880, registrou algumas fazendas
que ele percorreu entre Monte Alto e Caetité.
Figura 2 – Mapa contendo o trecho entre Monte Alto e Caetité, desenhado por Theodoro Sampaio em
1879
Fonte: SAMPAIO, Teodoro Dr. O Rio São Francisco – trechos de um diário de viagem e a
Chapada Diamantina, 1879-80. São Paulo – Escolas Profissionnaes Salesianas. Disponível em:
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. N. Reg. 1241.
22
A área geográfica de Monte Alto engloba uma serra de mesmo nome, principal ramificação da Serra das
Almas, divisora das bacias do Rio Verde e do Rio das Rãs (com nascente na Serra de Monte Alto), afluentes do
São Francisco na margem direita. Além desses, a região beneficia-se também de dois rios originários do
município de Caetité: Rios Carnaíba de Dentro e Carnaíba de Fora, cujas águas se juntam no território de Monte
Alto. A seguir, uma representação gráfica do mapa do Rio das Rãs.
39
Algumas cidades do Alto Sertão da Bahia, incluindo o percurso dos rios, caminhos e
estradas pelas quais circulavam mercadorias e pessoas foram outras impressões deixadas por
Sampaio (1879) em sua passagem pelo sertão rumo à Chapada Diamantina.
Figura 3 – Cidades, trajetos e rios no Alto Sertão da Bahia, 1879
Fonte: SAMPAIO, Teodoro Dr. O Rio São Francisco – trechos de um diário de viagem e a Chapada Diamantina.
1879-80. Publicado pela primeira vez na Revista S. Crus. São Paulo – Escolas Profissionnes Salesianas.
Disponível em: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. N. Reg. 1241. Adaptado por Alex Martins, 2016.
Pereira de Souza Costa, rico comerciante da região entre os anos de 1870, expressou
envolvimento direto na comercialização de cativos e lucros provenientes dessa atividade:
Declaro que quase todos os bens, dívidas activas e dinheiro que possuo
acepção da escrava Benedicta, e da legitima que tenho por parte digo por
morte de meu pai, recebida parte, e a receber no inventario que inda se vai
proceder, tanto adquiridos por compra, lucros comerciais de lavoura e
criação pertencem e são comuns a mim e minha sogra e Tia, Dona Anna
Rosa do Espírito Santo a quem pertencia os escravos com quem tenho
trabalhado e comerciado com os lucros delles resultante, e com esses é que
tenho negociado, comprado e zelado os bens de que estou de posse, e que
representam meu casal, inclusive ou conjuntamente com os bens a ela
pertencentes, e donde emanarão os capitaes com que sempre negociei.23
Com dívidas e lucros partilhados com sua sogra, o emprego de cativos na produção e,
notadamente, na comercialização, ao lado de outros itens, como o gado vacum, permitiu o
acúmulo de fortuna estimada em Rs.58:000$000, aplicando “os capitaes com que sempre
negociei” em outros investimentos. Possuir cativos e comercializá-los foram características
marcantes de grandes, médios e pequenos proprietários da região desde o início do século
XIX. Caminhos que cortavam as divisas entre o Alto Sertão e a província de Minas Gerais
serviram ao largo comércio de cativos, sal, fazendas secas, algodão, tecidos, couro, cavalos e
gados. Registros da alfândega de Malhada, vizinha ao termo de Monte Alto, localizada às
margens do Rio São Francisco e Rio Pardo de Minas mostraram, conforme Tarcísio R.
Botelho (2006, p.249/250), intenso comércio de escravos via tráfico atlântico e tráfico interno,
que, dos portos de Salvador, alcançavam a província de Minas Gerais pelos caminhos do Alto
Sertão. Erivaldo Fagundes Neves evidenciou que, nesses caminhos, havia intenso fluxo de
negócios de compra e venda de escravos entre essas regiões e demais províncias no século
XIX:
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Testamento anexado ao inventário de
23
24
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária, Livros de Notas do
Tabelionato. Procuração de compra e venda de escravos. Cx. Século XIX.
25
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária, Livros de Notas do
Tabelionato. Procuração de Compra e venda de escravos. Cx. Século XIX.
26
Os dados acima dizem respeito à parte das procurações do referido livro de notas. São vários livros referentes
às décadas de 1860, 1870 e 1880.
APEB. Seção Judiciária. Série Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro. Classificação:
27
cativos.28 Em 1845, o filho desse senhor, Joaquim José Barbosa, herdou a fazenda, triplicando
as benfeitorias ali existentes, com monte-mor estimado em Rs. 82:296$530. Foram arrolados
117 cativos que somaram o valor de Rs. 34:650$000, 3.000 cabeças de gado vacum avaliadas
a Rs. 21:000$000, 65 bestas muares encangalhadas, no valor de Rs. 4:675$000, dentre outros
itens.29
Com a morte de Joaquim José Barbosa e partilha dos bens, a filha Antônia Barbosa de
Andrade, casada com Antônio Botelho de Andrade Júnior, herdou a fazenda, mantendo
algumas das benfeitorias e escravarias. Antônia Barbosa de Andrade, em 1863, ao ficar viúva,
com cinco filhos órfãos, contraiu o segundo casamento com o cunhado Ezequiel Botelho de
Andrade, um dos últimos herdeiros da Fazenda Lameirão, em fins do século XIX, que atuou
intensamente na comercialização de escravos, beneficiando-se do tráfico interno.
Inserido nesse contexto do tráfico, Ezequiel Botelho de Andrade era um senhor
escravista que manteve o trabalho escravo e usufruiu dos negócios provenientes desse
lucrativo comércio, como vimos nas transações de compra e venda citadas atrás. Imersos em
tais circunstâncias, apesar de o domínio da autoridade privada convergir para os interesses
senhoriais e dificultar a concessão de alforrias dentre outros anseios desejados pelos escravos,
estes souberam articular teias de relações e negociações para atenuar as imposições do
cativeiro, como veremos na ação de liberdade que segue.
No ano de 1872, a escrava Inez entrou com ação de liberdade na Justiça de Monte Alto
contra seu senhor Ezequiel Botelho de Andrade.30 Dizia Inez que era casada com o escravo
Leipião e que o seu marido “há quatro anos, pouco mais, sem menos, foi vendido pelo dito
senhor” ao Dr. Cassemiro Pereira Castro e “q não pode a Supp. viver separada de seu marido,
principalmente qto a lei assim ordena”. Com ajuda de um curador, requereu a compra da
alforria, tomando dinheiro emprestado do senhor de Leipião, Dr. Cassemiro Pereira Castro,
outro rico proprietário, o qual emprestou a quantia sob a condição de Inez prestar-lhe sete
anos de serviços.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Francisco José Barbosa,
28
1842.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Joaquim José Barbosa,
29
1845.
30
De acordo com Ricardo Tadeu da Silva, as ações de liberdade impetradas pelos escravos à Justiça remontam à
segunda metade do século XVIII, mas é necessariamente a partir de 1870, com a Lei do Ventre Livre, que essas
ações se tornam mais intensas (SILVA, 2007, p. 144). Já Keila Grinberg e Sue Peabody conceituam a origem de
uma ação de liberdade como “a negociação em torno da alforria realizada entre um senhor e um escravo”. E
ressalvam que, se essa negociação fosse descumprida, o escravo podia recorrer à Justiça, principalmente quando
o senhor negava o direito concedido anteriormente, ou herdeiros não reconheciam a liberdade do escravo; por
acusação de maus-tratos, pela recusa por parte do senhor a vender o escravo, mesmo que este propusesse a
compra, não concordância com o valor proposto, tudo isso era motivo para que o cativo recorresse à Justiça
(GRINBERG, Keila; PEABODY, Sue, 2013, p. 106).
44
O curador constituía figura importante para representar escravos nos autos cíveis e
explicar os motivos pelos quais requeriam a liberdade, por ser o escravo “considerado incapaz
judicialmente” de realizar interpelação, (SILVA, 2007, p. 142)31. Inês não queria “continuar a
prestar mais serviços ao seu antigo dono, por motivos que deixa de expor” e, para isso, pediu
à Justiça, por intermédio do curador, o arbitramento de sua avaliação e, posteriormente, a
alforria32. Não obstante, seu senhor, Ezequiel Botelho de Andrade, ao receber a intimação,
não hesitou em requerer a revogação do despacho, antes concedido pelo juiz, autorizando o
arbitramento dos avaliadores. Com o comportamento próprio de qualquer senhor escravista de
resistir à concessão de determinados direitos almejados pelos escravos, principalmente em
contexto de valorização cativa, o Sr. Ezequiel justificou a ilegalidade do pedido, alegando que
a aludida escrava “estava bem longe de supor que poderia contratar serviços futuros com
terceiros, sem seu consentimento”, afirmando, ainda, que o seu consentimento “é uma das
condições essenciais para que tais contratos possam ter lugar como é expresso no referido
art.” da Lei de 1871.
Apesar de contestações e contradições no entendimento da lei, o juiz dos órfãos de
Monte Alto indeferiu o pedido de Ezequiel Botelho de Andrade, prosseguindo a avaliação da
escrava. No primeiro arbitramento, os avaliadores entraram em contradição quanto ao valor
de Inez, sendo o juiz obrigado a convocar o Dr. Cassemiro Pereira de Castro (senhor que
emprestou dinheiro a Inez) para compor a segunda avaliação. Inez foi avaliada em
Rs. 750$000, valor considerado adequado para o mercado naquela época. Assim, recebeu a
carta condicional e o direito de viver ao lado do seu companheiro.
A história de Inez nos remete ao contexto mais amplo, no qual o termo de Monte Alto
era uma parte pequena, mas que lança luz sobre a sociedade escravista e os embates dela
decorrentes; resistência contra o tráfico, negociações pela alforria, manutenção de laços
familiares. Dentro de certos limites, ela resistiu ao domínio senhorial quando Ezequiel
Botelho de Andrade retirou o “favor” a ela concedido de permanecer ao lado de seu marido.
Assim, a escrava recorreu à negociação de tomar dinheiro emprestado do senhor de Leipão
para comprar a alforria, mesmo que isso implicasse uma transferência de relações de domínio,
que continuaria por mais sete anos, até que conseguisse pagar o empréstimo contraído. Para
31
A fim de definir o conceito de curador, Ricardo Tadeu Silva recorreu a Perdigão Malheiros para afirmar que a
presença do curador também se estendia “aos menores e demais pessoas miseráveis, isto é, dignas da proteção da
Lei pelo seu estado ou condição”. (MALHEIROS, 1976, p. 125 apud SILVA, 2007, p. 142).
32
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção crime: Série Ação de Liberdade:
1872.
46
Inez, a liberdade custaria a chegar, mas permanecer ao lado de sua família era o principal
anseio naquele momento e, consequentemente, a alforria. Desse modo, apesar de os senhores
dificultarem o acesso à alforria e à manutenção de laços familiares, diante dos lucros
possibilitados pela compra e venda de escravos, estes articularam significativas redes de
relações e negociações para resistir ao domínio/interesse senhorial e fortalecer suas ações
dentro e fora do cativeiro.
Para Ricardo Tadeu Silva, a partir de 1850, com o fim do tráfico atlântico e a
continuidade do tráfico interno, o preço dos cativos aumentou, comprometendo as
negociações em torno da liberdade e, consequentemente, provocando maiores tensões “no
cotidiano de senhores e escravos, em especial, nas províncias diretamente afetadas pelo
tráfico intra e interprovincial” (SILVA, 1993, p. 17). Nessa perspectiva de análise, Isabel
Cristina Ferreira dos Reis (2007, p. 40), com base em estudos de Slenes, apontou que, entre
1851 e 1880, foram comercializados cerca de duzentos mil escravizados no Brasil via tráfico
interprovincial, o que “garantiu a continuidade da instituição escravista”, fato que
desencadeou uma série de ações de escravizados recorrendo à Justiça, principalmente a partir
da Lei de 1871, quando “o direito de o escravizado recorrer a uma ação de liberdade foi
renovado em um dos seus artigos”.
Conforme dito, a Lei de 1871 era elemento fundamental para que os cativos pudessem
se aproximar da Justiça e contestar contradições vivenciadas nas experiências do cativeiro,
caso se sentissem injustiçados, sendo essa a situação de Inez. A nova lei não só inibia o
direito exclusivo de senhores decidirem os rumos dos escravos, como também alargava
conquistas além do âmbito restrito ao domínio senhorial.
E o que dizer dos escravos que também resistiram e conquistaram alforria antes de
1871? Para Ricardo Tadeu Silva, antes de 1871, o direito costumeiro nem sempre transcorria
no âmbito das relações privadas entre senhor e escravo; quando ocorria sentimento de
injustiça considerado pelos escravos, estes recorriam aos tribunais para fazer valer os acordos
estabelecidos pelo costume, uma vez que “não se conformavam com as frequentes trapaças de
seus proprietários” (SILVA, 2000, p. 30). Diante das incertezas quanto ao cumprimento dos
acordos, principalmente por parte de seus senhores, cativos calçavam-se de diferentes
garantias, para evitar rompimento das negociações acertadas anteriormente. Tais atitudes
seriam uma forma de precaução, pois sabiam que não poderiam contar com a certeza do que
haviam conquistado, restando-lhes a “proteção” da Justiça (SILVA, 2000, p. 30).
A relação paternalista entre senhores e escravos, apoiada em direitos e deveres para
ambas as partes, acionou negociações tecidas nas mais diversas experiências e situações, nas
47
33
quais cativos tiraram vantagens em momentos oportunos . A ação de liberdade movida por
Inez, de certa forma, “perturbou” aspectos da relação de poder senhorial. Para Maria Cristina
Cortês Wissenbach (1998), manter a estabilidade da união afetiva constituía matéria de
reivindicação dos escravos e, quando esses espaços não eram concedidos, surgiam ações
diversas por parte dos escravizados, como fugas, ataques violentos, desgostos gradativos,
recorrendo-se à proteção da Justiça. Na dinâmica das relações sociais em que Inez se inseriu,
emergiram ações mais tensas no momento que se recusou a servir, na condição de escrava, ao
senhor Ezequiel Botelho de Andrade, resistindo perante a Justiça, quando não mais podia
contar com o acomodar-se. Nesse sentido, a resistência manifestada pela escrava demonstrou
a continuidade da linha tênue entre a escravidão e a liberdade, resistiu quando os intentos de
seu senhor foram de encontro à expectativa de um projeto de vida melhor, nesse caso, a
alforria e o direito de conviver ao lado do companheiro (WISSENBACH, 1998).
Manter a integridade da família e a vida em liberdade custava muito caro para
escravos do sertão baiano, principalmente na segunda metade do século XIX, quando o tráfico
interno despertou ambições desmedidas entre senhores escravistas ao venderem cativos para
as províncias do Sul e Sudeste para abastecer as lavouras cafeeiras. Frente a essa conjuntura,
muitos escravos se depararam com situações embaraçosas na garantia de seus direitos e,
assim, empenharam esforços redobrados para valer a vida em liberdade. Foi em meio a essa
dualidade de conjunturas políticas (Lei do Ventre Livre e o tráfico interno) que Inez respaldou
sua vontade de manter o matrimônio e adquirir a alforria.
A historiografia sobre família escrava e liberdade para o Alto Sertão tem demonstrado
escravos buscando estratégias para manter a unidade familiar e os vínculos étnicos. Uniões
sacramentadas pela Igreja Católica entre escravizados e a compra de alforrias não foram
incomuns em fontes analisadas para Monte Alto, evidenciando semelhanças em relação a
outras regiões vizinhas, como Caetité, Rio de Contas e Paratinga34.
A partir da segunda metade do século XIX, novos arranjos de negociações entre
cativos e senhores foram postos, ao ponto de que os altos preços dos cativos e as migrações
compulsórias do sertão para as províncias do Sul tornaram mais difícil a concessão dos
senhores. Dessa forma, a história de Inez se insere num contexto específico do século XIX
que impactou as relações entre senhor e escravo: o tráfico atlântico e o tráfico interprovincial.
Uma variedade de situações como a da escrava Inez poderia ser aqui elencada, demonstrando
33
Sobre o conceito, ver também: LIBBY, 2008, p. 33.
34
Sobre estudos de família escrava no Alto Sertão, ver: NOGUEIRA, Gabriela Amorim. 2011; SANTANA,
Napoliana Pereira, 2012. ORTIZ, Ivanice Teixeira Silva, 2014.
48
35
Acerca do povoamento nos sertões, no início da colonização portuguesa, ver: TAVARES, Luís Henrique Dias.
História da Bahia. Editoras: Unesp e Edufba. ed. 11, 2008. p. 157-158; ALENCASTRO, Luís Felipe de. O
Trato dos Viventes: A Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 340-
341.
49
Ver: IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América
36
portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: edições UESB, 2012; SANTOS, Márcio Roberto Alves dos.
Fronteiras do sertão baiano: 1640- 1750. Tese de Doutorado. São Paulo: USP. 2010.
37
Durante o século XVIII, Monte Alto correspondia a uma área pouco povoada e relativamente voltada à
exploração do salitre e à economia de subsistência, contudo, dada a falta de registros nos documentos, não se
sabe exatamente a dimensão do conjunto populacional no século XVIII. No entanto, há indícios de que o
trabalho escravo se fez presente desde o processo de colonização na região. Cite-se como exemplo o testamento
de Francisco Pereira de Barros, que deixou registrados 16 cativos em 1735, em sua Fazenda Boa Vista.
IBGE. Recenseamento do Brasil - Província da Bahia, Monte Alto, 1872.
38
39
Sobre o salitre na serra de Monte Alto, ver: IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos culturais,
comércio e cores nos sertões da América portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: edições UESB, 2012.
40
Ainda sobre o salitre na serra de Monte Alto, ver também: PERES, Damião. Um capítulo de história
econômica bahiana e sua integração na vida política luso-brasileira de setecentos: A exploração de salitre no
Monte Alto. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, n. 77, 1952, p.207 – 216.
41
Pedro Leolino Mariz, romano, homem de confiança do governo português, foi encarregado de administrar as
riquezas nos sertões da Bahia. Responsável pela descoberta de minas de salitre na serra de Montes Altos. Além
dele, João da Silva Guimarães e João Gonçalves da Costa foram responsáveis por organizar estradas, partindo de
Minas Novas do Araçaí e Norte de Minas Gerais, rumo aos sertões da Bahia. Coube a Pedro Leolino Mariz a
incumbência de se firmar “como um homem de fronteira”, abrindo estradas, expulsando bandeirantes paulistas e
preservando as minas de salitre em Montes Altos. (IVO, 2012). A expressão “homens de caminho” foi retirada
do livro: IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América
portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: edições UESB, 2012.
50
42
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Autos do Encapelado, v.1, 1846.
43
De acordo com Nuno Monteiro, o sistema de concessão das mercês, criado em 1671, foi esclarecido pelo
Decreto de 15 de Agosto de 1706, que regulamentava o Regimento das Mercês. As mercês “repousavam no
princípio da remuneração de serviços prestados à coroa”. Conseguir uma mercê dependia de todo um processo
burocrático e difícil de adquirir. O indivíduo pleiteante teria que mostrar um grande feito para merecer a
recompensa. Para saber mais sobre as Mercês, ver: MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. O Crepúsculo dos
Grandes, a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal. (1750-1832), 2. ed. revista. Imprensa Nacional
Casa da Moeda. Lisboa, 2003. Ver ainda: RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. Brasil c. 1530 – c.
1630. São Paulo: Alameda, 2009. O autor dedica um capítulo específico às honras e mercês.
51
objetivo de converter em benesses. Essa prática de servir ao poder do reino criava expectativa
de receber algo em troca e, de certo modo, algum amparo para a vida toda. O ato de dar,
receber, pedir, disposição para presteza, assim como agradecer constituíam “verdadeiro
círculo vicioso” (OLIVAL, 1999, p. 18) de boa parte da sociedade do antigo reino. Em alguns
casos, os prêmios esperados pela prestação dos serviços nem sempre correspondiam aos
desejos do pedinte, o que poderia ser considerado “injusto”. Nesse sentido, Pereirinha,
possivelmente, ao doar o terreno para a construção da capela, contava com recompensas e
reconhecimento do feito. A petição foi atendida pelo arcebispado da Bahia, contudo,
Pereirinha faleceu antes que a construção da capela ficasse pronta e, por razões diversas, não
gozou das recompensas esperadas, exceto o sepultamento na redondeza da capela.44
Fonte: Biblioteca do IBGE. Série: Acervo dos municípios brasileiros, 1957. Disponível em:
<http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=431437> Acesso em: 26 jan.
2017.
44
Sobre Francisco Pereira de Barros e Monte Alto, ver: ARAÚJO, Jonas Cardoso. Algumas considerações
acerca do município de Palmas de Monte Alto. In: SILVA, Joaquim Perfeito da. Territórios e ambientes da
serra de Monte Alto. Vitória da Conquista: UESB, 2012, p. 167-176.
52
Sul, com a província de Minas. O documento informava os limites dos colégios eleitorais na
região, conforme representação a seguir45.
Figura 5 – Limites do termo de Monte Alto em 1856
Fonte: Mapa elaborado em parceria com Junívio Pimentel a partir de informações contidas em correspondências
recebidas da Câmara de Monte Alto. APEB. Arquivos Colonial e Provincial. Correspondências Recebidas da
Câmara de Monte Alto. Processo 1361, 1856.
APEB. Governo da província - Câmara de Monte Alto, 1840 a 1856. Seção de arquivo colonial e provincial, n.
45
1360, 1856.
53
província da Bahia, reclamando das péssimas condições das estradas, as quais precisavam de
pontes, sobretudo as do Rio de Contas, principal via de acesso entre o Alto Sertão e o
Recôncavo baiano:
Todas estas estradas estam em más estado e precisam de pontes, sobre tudo
do Rio de Contas, ellas passam por terrenos, que em sua maior extensão, seja
susceptíveis de culturas, e sem boas passagens, noutras porém há falta de
água. Serve-se de cavalos de carga que custam 80 reis, de bestas por 150
reis, carregam e caminham 3 a 4 léguas, o frete é variável46.
O estado precário das estradas, comprometendo a comunicação eficiente, era uma das
maiores queixas da Câmara de Monte Alto, pois dificultava as transações de mercadorias de
exportação e importação. Exportava-se por São Félix e Cachoeira, passando por Caetité e Rio
de Contas. Importava-se diretamente da capital, via Cachoeira e Santa Isabel. Passava-se pelas
estradas do Paraguaçu e Rio de Contas, subindo aos portos de Cachoeira, à distância de 120
léguas, que correspondem a 720 km. O mapa a seguir demonstra o percurso de ida e volta dos
caminhos percorridos por tropeiros com mercadorias do sertão para o Recôncavo da Bahia, à
capital da província e vice-versa47. Os relatórios enviados ao presidente da província, em
1856, reclamavam das dificuldades de produção econômica, das vias de transportes e questões
de ordem social, podendo-se, assim, conjecturar que esses problemas eram ainda piores nas
primeiras décadas do século XIX.
APEB. Correspondências recebidas da Câmara de Monte Alto, n. 1361. Seção de arquivos colonial e
46
provincial, 1856.
APEB. Seção do Arquivo Colonial e Provincial. Governo da Província – Monte Alto. Mç:1360, 1840-1856.
47
54
Figura 6 – Trajeto percorrido pelos tropeiros do Alto Sertão com destino ao Recôncavo da Bahia e
Salvador
Fonte: Mapa elaborado em parceria com Junívio Pimentel a partir de informações contidas na documentação
consultada. APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Governo da Província Monte Alto. Mç: 1360, 1840-
1856.
Para saber mais sobre os trânsitos econômicos do Alto Sertão em fins do século XIX, ver: SANTOS, Paulo
48
Henrique Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia, Caetité, 1890-1930. Tese de
Doutorado. São Paulo: USP, 2014.
55
Ângelo Alves Carraro (2008) evidenciou, ao estudar a história dos preços a partir de
séries documentais em Ouro Preto, Minas Gerais, produtos que circulavam na capitania
provenientes de vários lugares do Brasil. Da Bahia, especificamente nas regiões do
Recôncavo e sertão, incluíam-se produtos das fazendas do São Francisco: “sal das salinas
sanfranciscanas, sabão, sebo, carne-seca, sola, cera e couros de boi, de veado e de lontra e,
finalmente, os peixes salgados” (CARRARO, 2008, p. 188). E acrescenta em outro momento
que, no final do século XVIII, encontrou, nos registros de Rio Pardo, maior concentração de
comércio “entre o Norte de Minas e a Bahia e Minas Novas”, sobretudo no que diz à
importação de escravos e produção de algodão (CARRARO, 2006, p. 141).
A economia de abastecimento interno e a “mercantilização da economia de
subsistência” construíram espaço próprio, autônomo e dinamizador e, respeitando as
56
APEB. Correspondências recebidas da Câmara de Monte Alto, n. 1361. Seção de arquivos colonial e
50
provincial, 1861.
58
sertão, considerado esquecido51. Para isso, argumentou-se que Monte Alto exportava
anualmente grande quantidade de algodão, produto destinado não só ao mercado interno,
como também ao de exportação, encontrando, nos cerrados e caatingas dos sertões baianos,
condição propícia para se desenvolver52. Dessa forma, não era um município insignificante,
como talvez parecesse.
No início da década de 1850, a produção algodoeira passou por inovações nas técnicas
de cultivo e introdução de nova espécie. A produção econômica requisitou novas adaptações e
empreendimentos para atender às demandas dos mercados interno e externo. Em 1853, a
Câmara Municipal da vila informou ao presidente da província da Bahia o recebimento de
uma lata de sementes de algodão herbáceo, para que fossem distribuídas entre os produtores
da região53. Embora esse algodão se encontrasse em alta no mercado, substituindo o de fibras,
alguns produtores sentiram dificuldades para adaptá-lo, pois ele exigia técnicas no preparo das
terras e traquejo no manejo das plantações.
Apesar de resistirem inicialmente à introdução da nova espécie, logo os produtores
adaptaram a planta à região. O algodão cultivado desde o final do século XVIII, com destino à
exportação, leva à hipótese de que houve a necessidade de aumento do número de
trabalhadores, já que os currais de gado, em toda a margem do Rio São Francisco,
dependeram de baixa mão de obra cativa. E, de fato, o algodão do Alto Sertão baiano era bem
aceito no mercado de exportação por ser de melhor qualidade. Mas nem só a demanda da
produção algodoeira movia os trânsitos de compra de cativos na região, muitos desses
produtores se dedicavam a atividades comerciais e financeiras variadas, dentre elas, a compra
e venda de escravos, ampliada para o sudeste do País na segunda metade do século XIX.
No ano de 1871, o jornal Correio da Bahia publicou uma matéria sobre a exportação
do algodão do Brasil, destacando que este tinha maior aceitação no mercado, em relação ao
51
APEB. Presidência da Província – Governo da Câmara de Monte Alto. Seção de Arquivos colonial e
provincial, 1865.
52
José de Sá Bittencourt informou, por meio de relatório ao rei de Portugal, em 1798, sobre as plantações dos
algodões no Brasil. Dentre os relatos sobre as características do solo, clima, adaptabilidade da planta, variedades
de espécies do algodão provenientes de vários lugares do mundo que foram trazidas para o sertão, como Índia,
China, Pérsia, Europa, destaca-se o algodão nativo dos sertões de Rio de Contas, na Bahia. Além dos cálculos
dos custos, preparação do terreno, mão de obra e rentabilidade do cultivo do produto no Brasil, chama a atenção
não só para o plantio no Ceará, mas também no Alto Sertão da Bahia, a exemplo de Rio de Contas, Caetité,
Monte Alto e ambas as margens do Rio São Francisco. De acordo com os “cálculos analíticos” feitos pelo autor,
“Hum escravo trabalhando em algodão dá de rendimento no sertão 250$000”. Esse mesmo escravo prepara terra
para 500 pés, “que dão de lã 62 e 16 a tirada de 1364 maças, que produz razão de 4 cada pé de colheita
ordinária”. Relatou ainda o plantio de outras atividades, como o milho, o feijão para o sustento e a criação de
galinhas e porcos. Fonte: BITTENCOURT, J. S. Memória sobre a plantação dos Algodões. Ano M. DCC.
XCVIII. Biblioteca Tradicional de Lisboa. Cópia gentilmente cedida por minha colega e amiga de doutorado
Poliana Cordeiro de Oliveira.
53
APEB: Governo da Província – Governo Câmara de Monte Alto. 1840 – 1856. Seção de Arquivos Colonial e
Provincial. N. 1360.
59
produzido nos Estados Unidos. Além disso, que a Guerra de Secessão norte-americana, na
década de 1860, incentivou a produção do cultivo no Brasil, com destaque para o Nordeste.
Na Bahia, especificamente, as regiões produtoras do algodão eram as do Alto Sertão,
sendo que Caetité, cidade vizinha de Monte Alto, naquela época, exercia o posto de centro
distribuidor do produto colhido na região para os portos de embarque de Salvador e, de lá,
exportava-se para o mercado externo. Assim assinala o jornal:
[...] Foram sancionadas uma lei e uma resolução, sendo esta, sob n. 1647,
mandando pertencer ao termo do Caetité a parte da freguesia do Gentio
actualmente pertencente ao termo de Monte Alto. E aquella, sob n. 1648,
concedendo privilégio por 30 annos á Francisco José Vergne de Abreu & C.
para estabelecerem uma fábrica de tecidos finos de algodão55.
54
Fonte: CORREIO DA BAHIA – 1871-1878. Parte Comercial, n° 00230, 29 de dezembro de 1871. Biblioteca
Nacional Digital. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 20 jul. 2016.
55
Fonte: Annaes da Assembleia Legislativa Provincial da Bahia (BA)- 1873 a 1887. 64 – Sessões ordinárias em
20 de julho de 1876. Disponível em: < http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 20 jul.2016.
60
lugar e muita criação de gado vacum localizada próxima ao Rio São Francisco e divisa da
província de Minas Gerais, sendo, assim, não atingida pelas enchentes do rio no período
chuvoso, necessitando, portanto, de iniciativas do governo para permitir escoamento da
produção via trechos navegáveis pelo Rio São Francisco.
As petições enviadas repetidas vezes demonstravam que a população local tomou a
iniciativa de realizar algumas obras, a exemplo do cemitério construído com investimento da
Igreja, e a Casa de Câmara e Cadeia, com ajuda do povo, que reclamava sempre ser essa uma
obrigação do governo. Ressaltavam, ainda, que as parcas ajudas do governo só aconteceram
após iniciativa popular.
Todavia, o termo de Monte Alto se constituiu numa intensa dinâmica socioeconômica,
sendo povoado por moradores de grandes, médias e pequenas posses, como escravos,
trabalhadores livres, comerciantes, fazendeiros, representantes de instituições públicas, juiz,
médicos, vereadores, representantes da Igreja, entre outros. A vila era essencialmente
ruralizada e pouco povoada. As fazendas situavam-se distantes umas das outras,
principalmente pela extensão das terras e pela dificuldade com as estradas. No entanto, muitos
fazendeiros mantinham casas na sede da vila e realizavam negócios, permitindo a circulação
de pessoas e mercadorias entre o núcleo urbano e o rural. Escravos e forros também
conviviam com esses moradores locais, estreitando laços e articulando modos de
sobrevivência entre as vilas e fazendas. Constou no inventário do Capitão Joaquim Pereira de
Souza Costa, no ano de 1870, a existência de uma casa de morada na Fazenda Tabuinha e
outra, na vila de Monte Alto, na Rua da Ponte, sendo esta “coberta com telhas, com 3 portas,
6 janelas e um portão de frente”. Com a produção algodoeira desenvolvida em suas
propriedades, a criação extensiva de gado vacum, pouco mais de 500 cabeças, e atuante no
comércio de escravos, o capitão manteve seus negócios entre a fazenda, a vila e demais partes
da província56.
Nas propriedades rurais de grandes e médios senhores, as residências possuíam porte
de grandes casarões, ostentando luxo e abastança, e, como as propriedades fundiárias não
eram acessíveis a todos, tal fato gerava desigualdades acentuadas nas condições de vida entre
os sujeitos sociais que habitavam no termo. Em uma realidade totalmente oposta à do Capitão
Joaquim Pereira de Souza Costa, vivia D. Maria Ignácia Nunes, com riqueza inventariada, no
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários
56
ano de 1862, em Rs. 2: 655$000, possuindo uma casa coberta de palhas e feita de enchimento,
uma parte de terras situada no Barreiro dos Coqueiros e um cavalo57.
Embora tenha havido desproporcionalidades nas condições de vida na localidade, e os
caminhos fossem de difícil acesso devido à precarização das vias de comunicação, assim
como pelo fato de não haver investimentos constantes do governo provincial em regiões
interioranas, a exemplo do Alto Sertão da Bahia, nada disso impossibilitou o desenvolvimento
de atividades produtivas e criação de rede de caminhos para o fluxo de mercadorias e pessoas,
havendo intenso movimento de compra e venda de produtos, ora exportados, ora importados.
Nesse trajeto de idas e vindas, o comércio de cativos esteve na rota dos caminhos do sertão
baiano e dele muitos fazendeiros fizeram fortunas, sendo também nessas grandes e médias
fazendas que escravos construíram redes de relações, vislumbrando aquilo que queriam para
si e para os seus.
Possuir escravos, gado e terras no Alto Sertão da Bahia era elemento definidor da
riqueza, movimentação da produção e consumo. A concentração e posse das melhores terras,
ao lado da exploração do trabalho escravo, favoreceu o enriquecimento de determinadas
famílias ao longo do século XIX, gerando desequilíbrio nas condições de vida entre os
variados sujeitos sociais que habitavam aquela localidade58. Paralelamente ao processo de
posse da terra e desenvolvimento da agropecuária, a compra e venda de escravos foram
fundamentais para o acúmulo de riqueza na região. Muito mais do que empregar recursos nas
atividades produtivas, senhores valeram-se da comercialização de cativos para auferir ganhos
em momento oportuno de vigência do tráfico interno. Desse modo, compreender o perfil
agrário e econômico da região é imprescindível para análise da construção das relações entre
senhor e escravo, visto que as características de posses com escravarias variadas estiveram
relacionadas ao tamanho das propriedades e atividades rentáveis mobilizadas por aqueles
indivíduos, em especial, a compra e venda de cativos.
O termo de Monte Alto, entre os anos de 1810 e 1880, caracterizou-se pela existência
de fazendas sob o poder de uma pequena classe senhorial enriquecida. Naquelas terras,
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários
57
foi aberto em 1866. Coube à sua mulher, Guilhermina Moreira Castro – filha de outro rico
fazendeiro, Comendador Antônio Botelho de Andrade – inventariar os bens patrimoniais,
avaliados em Rs. 111:660$857. O montante do monte-mor revelou o quanto aquele senhor
possuía de bens consideráveis e diversificados, sendo que parte desses bens provavelmente
abastecia a região e o mercado fora dos limites da fazenda. Ao computar os valores dos bens,
registrou-se a menção em dinheiro de Rs. 7: 500$000 e muitas dívidas ativas a receber de
outros proprietários da região, a exemplo de Rs. 3: 683$577, de Thomaz José da Silva, Rs. 3:
380$000, de João Barros Silva, Rs. 4: 000$000, de Ana Moreira de Andrade e demais
devedores. Suas dívidas ativas somaram Rs. 21:485$911, totalizando concessão de crédito a
12 indivíduos, além de Rs. 7:500$000 de dinheiro em espécie.
Os valores em dívidas ativas elevadas podem ser consequência do comércio de
cativos, já que foi declarada a posse de 55 escravos em sua fazenda, somando o valor de
Rs. 32:450$000, e, com o lucro do tráfico, ele investiu em créditos a juros. Houve o registro,
ainda, de 2.000 mil cabeças de gado vacum, no valor de Rs. 30: 000$000, distribuídas entre as
Fazendas Carnaíba de Fora e Tabocas, 47 cabeças de gados cavalar, 14 cargas de algodão em
lã, além de bens de raiz (terras) e muitas benfeitorias na Fazenda Cajueiro.59 O contexto da
década de 1860 foi favorável àquele senhor, pois não só beneficiou o tráfico interprovincial,
como foi um período de incentivo ao cultivo do algodão, diante da crise do principal
fornecedor internacional, os Estados Unidos.
A exposição do inventário do rico senhor da Fazenda Cajueiro é representativa do
limite da concentração de riqueza nas mãos de uma minoria que compunha uma elite
latifundiária e escravista sertaneja. Na vigência do século XIX, mesmo em meio
extremamente rural, nota-se que, dos 257 inventários analisados, 211 (82,4%) concentravam
apenas 22,9% do monte-mor total e somente 46 inventários (17,6%) acumularam 77,1% da
riqueza da região, revelando alta concentração de fortuna.
Um olhar mais detido sobre o Quadro 1 faz perceber que as especializações dos
escravos indicavam variadas atividades desenvolvidas nas fazendas, principalmente entre as
de grande porte, que multiplicavam suas ocupações através da criação de gado vacum com a
presença de vaqueiros, escravos tropeiros, na agricultura, com os cativos de serviços de
lavoura e escravas costureiras, envolvidas em atividades de manufaturas com o algodão.
Ainda, perseguindo as cifras lucrativas advindas do comércio de escravos, observa-se,
59
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Faustino Moreira
Castro. Mç: 17, n. 866, 1866.
64
conforme ressaltou Lysie Reis (2013, p.122/123), que “possuir escravos para serviços gerais
era uma prática comum, possuir escravos qualificados era uma prática lucrativa,
principalmente se estes fossem aptos para as ocupações valorizadas no mercado de trabalho”,
a exemplo daqueles direcionados para o sul e sudeste do País. O Gráfico 1 abaixo ilustra
percentuais das especializações dos cativos no termo de Monte Alto e o Gráfico 2 traz o
percentual de riqueza dos inventariados.
5; 1% 4; 1% 1; 0% 2; 0% 8; 2% 2; 0% 6; 1%
0; 0% 7; 1; 0% 2; 0%
7; 2%
2; 0% 2
2; %
1; 0% 6; 1%
0
1; 0% %
23; 5%
174; 38%
71; 15%
8; 2%
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série: Inventários: 1810-1888.
65
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1810-1888.
60
Estabeleceram-se como metodologia para estratificar as fortunas os estudos de Mello (1990) e as pesquisas
desenvolvidas por Mascarenhas (1998), Dantas (2007), Silva (2005) e Pires (2009), consideradas leituras
imprescindíveis para a realização de análises como esta.
66
patrimônio possuído. Aos pequenos produtores, com posse de um a cinco escravos, foram
computados 21 inventários, totalizando o equivalente a 5 % da escravaria no termo de Monte
Alto. Os que possuíam de seis a dez escravos correspondiam a 7,3%, em um total de 12
senhores. Têm-se, portanto, 33 inventariados classificados como pequenos produtores,
correspondendo a 60% dos proprietários que possuíam de um a dez cativos. Esses pequenos
senhores preferiram investir seus negócios na criação de animais, como o gado cavalar,
plantação de algodão e terra, mas não era desprezível a existência da posse cativa e do
comércio que dela faziam.
Além do envolvimento em modestas atividades agropastoris, não se pode excluir a
possibilidade de que os pequenos produtores realizassem atividades comerciais e se
diversificassem na aplicação de investimentos. No inventário de Vicência Amélia Correia, em
1858, consta um monte-mor de Rs. 4: 414$460, sendo: Rs. 2: 500$000 referentes a três
escravos, Rs. 152$500, a cargas de algodão e Rs. 1: 641$000 referentes a gados vacum e
cavalar, terra, ouro, dívidas ativas e um pequeno imóvel61. Além de atividades mais rentáveis,
os senhores de pequenas posses no sertão mantinham o sustento das famílias e dos escravos
com outras menos rentáveis, porém necessárias à garantia da sobrevivência. Nos sítios, faziam
roçados com o cultivo de vários mantimentos, como arroz, mandioca, feijão,
cana-de-açúcar, milho, frutas e legumes. Criações miúdas que iam desde porcos a cabras e
galinhas, dentre outros, complementavam a atividade desses senhores.
Na terceira faixa de riqueza, de Rs. 5:001$000 a Rs. 15:000$000, encontram-se os
médios proprietários. Contando com diversas partes de terra, escravarias e investimentos em
atividades da agricultura e pecuária, esses indivíduos estiveram atuantes na produção e
comercialização de produtos agropastoris e de cativos. Possuir de 11 a 20 escravos
possibilitava a médios proprietários manter a realização de atividades lucrativas.
O arrolamento dos bens de Joaquim Ferreira da Silva, em 1868, cujo-monte mor foi de
Rs.12: 376$000, registrou 55 cabeças de gado vacum, mula velha de carga e fazendas secas
vindas da Bahia, compradas em mãos da firma Brandão & Irmãos, itens que demonstram
alguns dos negócios realizados por esse médio fazendeiro. A mula velha de carga deve ter
servido tanto para o escoamento da produção agrícola como para trazer mercadorias “que
mandou vir da Bahia por abono que lhe fez”. A encomenda feita à Firma Brandão & Irmãos
correspondeu a Rs. 2: 000$000, e, ao se proceder ao auto da partilha, foram entregues três
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ Ba. Seção Judiciária. Série: Inventários.
61
escravos para quitar a dívida: Joaquim africano, 60 anos, serviço de lavoura, avaliado em
Rs. 200$000; Carolina cabra, 39 anos, Rs. 1: 000$000 e Porfírio cabra, 12 anos, Rs.800$000.
A penúltima faixa, de Rs. 15:001$000 a Rs. 50:000$000, e a última, acima de
Rs.50:001$000, estabelecidas neste estudo referem-se aos grandes proprietários sertanejos,
detentores das maiores fortunas no Alto Sertão da Bahia, que compunham elite escravista e
latifundiária. Esses senhores investiram comumente na posse e comércio de escravos,
atividades comerciais e financeiras, tinham acesso a grandes extensões de terra e criação
extensiva de gado vacum e gado cavalar, embora houvesse outras atividades de peso e que, de
certa forma, se agregavam ao montante do patrimônio.
Nas propriedades, diversificaram as atividades produtivas, a exemplo da
disponibilidade de equipamentos e benfeitorias na organização das fazendas, como tachos de
cobre, roda de ralar mandioca, oficina de ferreiro, de carpina, prensa de enfardar algodão,
currais, parafusos de prensa, enxadas, foices, machados, espingardas, ferro de ferrar, dentre
outros pertences. Os casarões eram feitos de adobe com muitas janelas, portas, senzalas,
quartos para servidão, acompanhados de paióis, casa de farinha, engenho para o fabrico da
rapadura e melaço, dentre outras repartições. No inventário do grande proprietário José
Antônio da Silva Castro, registrou-se o seguinte:
Em Monte Alto, a diversificação de atividades não era uma característica dos grupos
mais afortunados, em menor escala, abrangia também indivíduos de vida mais modesta. A
seguir, na Tabela 1, tem-se a constituição da riqueza inventariada por faixas de riqueza, entre
os anos de 1820-1889.
62
APEB. Seção Judiciária. Série Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01. Mç:14, n. 19, 1844.
68
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.
68
69
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).
63
64
De acordo com Neves (2000), Leolino Xavier Cotrim era coronel da Guarda Nacional, dono da fazenda Lagoa
da Pedra, atualmente pertencente ao município de Pindaí, e, em 1878, emigrou para São Carlos do Pinhal, onde
faleceu com 90 anos de idade.
65
Joana D´Arc de Oliveira e Maria Ângela P.C.S. Bortolluci (2013) mencionam o inventário de Manoel Cândido
de Oliveira Guimarães em São Carlos do Pinhal. De acordo com as pesquisadoras, Manoel era proprietário da
fazenda Babylônia e negociante matriculado com uma casa comercial na Bahia. Afirmam ainda que o
fazendeiro, após a liquidação de sua casa comercial, continuou negociando escravos em alta escala, recebendo-os
em consignação para posteriormente revendê-los. No inventário foram encontrados 198 escravos, sendo a
maioria apta para a lavoura. Manoel Cândido, antes de se mudar para São Carlos, morava na vila de Caetité,
Bahia.
70
Azevedo
Tenente Tiburtino Pereira
- -
Pinto
José de Brito da Silva Neves - -
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Livros de Notas, 1875-1879. Cartório
de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).
66
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Livro de Notas de Registros Cíveis,
1875-1879.
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).
67
72
escravos na região de Monte Alto. Assim como comprou, vendeu seus escravos de nomes
Firmina, de doze anos, parda, e Elias, de oito anos, pardo, ao negociante Leolino Xavier
Cotrim.68 Em outra procuração, no ano de 1878, esse mesmo Coronel José Pereira de Castro
aparece comprando do pequeno proprietário Joaquim Pereira de Magalhães o escravo
Francisco, de 27 anos, preto, e a escrava Líria, parda, de 13 anos, por Rs. 350$000 cada um.
Os exemplos configuram senhores de pequenas posses, vendendo ou repassando cativos,
como pagamento de dívidas, para outros proprietários ou negociantes de maior peso que, por
sua vez, consignavam a grandes traficantes a revenda para as províncias do Sul e Sudeste.
As transações de compra e venda no sertão envolviam intermediários nas negociações
e, de acordo com Erivaldo Fagundes Neves (2000), estes representavam legalmente, por meio
de procurações, o proprietário do escravo. Tais transferências tinham como pretexto o não
pagamento da meia sisa, imposto exigido nas transações de operação comercial. Em 1884, o
proprietário Francisco Antônio de Brito vendeu os escravos de nomes Zeferino e Speridião,
ambos pretos, com habilidades para o serviço de lavoura. No rol das negociações, foi possível
identificar que o tráfico de cativos era rotina na vida daqueles homens, como se verifica nos
registros das transações apresentadas nas Tabelas 2 e 3 e realizadas entre os anos de 1871 e
1881, em Monte Alto, e entre 1875 e 1887, no Gentio:
68
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de Notas. Cx: Século XIX, 1875 a
1879.
73
1883 03 03
1884 07 09
1885 05 06
1886 02 02
1887 01 02
Total 43 51
Fonte: Cartório de Registro Cível, Distrito de Ceraíma – Guanambi/BA. Livro de Notas 1, 2, 3, 1875 a 1903.
Assim, pode-se dizer, com base nos dados levantados, que houve um crescimento
econômico na região entre as décadas de 1850, 1860 e 1870, não só decorrente da produção
algodoeira e da pecuária, mas, sobretudo, em função do intenso comércio de cativos que
circulavam entre essas regiões para outras províncias. Entretanto, na década 1880, ocorreu
leve diminuição dos bens patrimoniais e da produção da pecuária e de escravizados. Os
elementos comuns, presentes em todos os espólios de senhores de posses, fossem eles
grandes, médios ou pequenos (escravos, terra, semoventes, imóveis e dívidas ativas),
apresentavam equilíbrio na distribuição das riquezas dos inventariados, principalmente os
itens escravos, semoventes e terras. Esses três elementos foram marcadores importantes na
composição do patrimônio na região durante o século XIX.
escravos responderam pela maior parte dos espólios. Em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz
suspendia o tráfico atlântico, porém aos senhores da região do Alto Sertão baiano, pareceu
sentirem pouco o efeito da lei, posto a continuidade intensa da instituição escravista via
tráfico interno. Esse contexto da segunda metade do século XIX foi crucial para maior
acumulação de fortunas, especialmente em créditos financeiros a juros, investimentos em
bancos, imóveis e outras adaptações rentistas, extemporâneas ao novo capital.
2.4 Perfil populacional e posse escrava nas pequenas, médias e grandes fazendas do
termo de Monte Alto, século XIX
Número de casamentos
Ano
Abs. %
1840-1862 701 34,2
1862-1875 604 29,5
1875-1886 745 36,3
Total 2.050 100,0
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886.
69
No século XIX, a sede da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário do Gentio, pertencente ao município de
Caetité, incorporava, do ponto de vista religioso, várias localidades como: Pindaí, Urandi, Jacaraci, Guirapá e
Mortugaba. De acordo com o mapa das Paróquias, criado entre os anos de 1844 e 1855, a do Gentio foi fundada
a partir de 1848, conforme Resolução 16.11.1848, disponível na APEB. Seção Colonial e Provincial. Série:
Religião. Freguesias. Mç: 5248, 1829 - 1914.
70
Durante o século XVIII, Monte Alto correspondia a uma área pouco povoada e relativamente voltada à
exploração do salitre e economia de subsistência, contudo, dada a falta de registros nos documentos, não se sabe
exatamente a dimensão do conjunto populacional no século XVIII. No entanto, há indícios de que o trabalho
escravo se fez presente desde o processo de colonização na região. Cite-se como exemplo o testamento de
Francisco Pereira de Barros, que deixou registrados 16 cativos em 1735, em sua Fazenda Boa Vista.
Foram localizados, na igreja Santo Antônio, três livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
71
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, com datas-limites especificadas no Quadro.
77
Relacionando esses dados da Tabela acima com os do censo de 1872, têm-se, entre
homens e mulheres, livres e solteiros, na vila, 7.853 pessoas, e 1.000 escravos solteiros entre
homens e mulheres. Sobre os casados livres, registrou-se número superior àqueles
identificados nos livros de casamentos, sendo 2.546 livres e 99 escravos casados. Ainda, com
relação aos viúvos, homens e mulheres livres, computaram-se 362 pessoas e 06 escravos72.
72
IBGE. Recenseamento do Brasil - Província da Bahia, Monte Alto, 1872.
Quadro 4 – População da Paróquia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto
78
79
demais valores distribuídos em terra, gado vacum, gado cavalar, ouro, prata, ferramentas,
móveis, dotes, dinheiro, dívidas ativas e passivas. Dos 172 cativos arrolados, três exerciam
funções de vaqueiro: David, Jacinto e Vitorino; e um de arrieiro, o escravo “Lourenço Nação
Banguela”. O escravo Joaquim, crioulo, era o cozinheiro da tropa, o escravo Agostinho,
sapateiro, e o escravo Joaquim, crioulo, alfaiate.
Compor tropa exigia certa confiabilidade dos senhores, pois mobilizava diferentes
negócios a serem encaminhados e resolvidos em Salvador, Recôncavo da Bahia, Minas
Gerais, dentre outros lugares. Conforme Jurema Mascarenhas Paes (2001, p. 69), o arrieiro
era responsável por dirigir a comitiva, “homem prático de viagens, que tinha a seu cargo
também o cuidado dos animais: como auxiliar levava um companheiro selecionado com a
atividade de cozinheiro”. Os escravos Lourenço e Joaquim mantiveram, então, hierarquia
frente a seus pares, com relação de confiança junto a seu senhor. Do sertão, certamente,
Belchior Pereira Guedes encaminhou a produção agropastoril, assim como também cativos
em idade adulta, para venda. De lá para cá, retornavam com mercadorias nacionais e
importadas destinadas às casas de negócio e, assim, por meio das tropas, “conduziram por
conhecidos e desconhecidos caminhos a dinâmica socioeconômica do Brasil, especialmente
das regiões interioranas que mantiveram ativas transações com maiores centros de comércio e
exportação” (RAMOS, 2016, p. 86).
Na relação nominativa das escravarias daquele senhor, constou que a maioria
apresentava faixa etária entre 11 e 45 anos e se ocupava em diversas atividades da fazenda,
podendo ser direcionada à demanda do mercado interno de cativos, e somente sete
apresentavam idade acima de cinquenta anos. Foram registradas 45 crianças entre um e dez
anos de idade, fruto de uniões conjugais ou consensuais entre os escravos. Alguns cativos
foram declarados alforriados e a escrava Mariana, de 18 anos, era casada com José Aurelino,
de 40 anos.
O inventário de Belchior Pereira Guedes forneceu ainda informações preciosas sobre a
naturalidade dos cativos, oriundos de vários lugares da África, assim como suas “nações”–
Uçá, Angola, Benguela, Congo, Nagô, Mina, Samthomé (São Tomé), Jeje, entre outras – e
que, ao chegarem aqui, construíram laços de solidariedade e uniões estáveis, formando
extensa relação de vínculos com crioulos, mulatos, cabras e livres, proporcionando mesclas
biológicas e culturais nos diversos espaços ocupados76. A escrava Natácia, cabra, 30 anos, Rs.
76
Para Hebert S. Klein (1989, p. 13), a nacionalidade, sexo e idade dos escravos eram “determinados
principalmente pelas condições africanas”. Com exceção dos portugueses em Angola e Moçambique, os quais
demonstravam certa familiaridade com as regiões que exploravam, os demais europeus desconheciam o
81
160$000, tivera um filho, Sebastião, mulatinho, 3 anos, Rs. 75$000, e Angélica Mina, 40
anos, Rs. 160$000, mãe de Thereza, crioula, 6 anos, Rs.80$000. Noutro inventário, de
Thomaz Teixeira Camargo, 1820, constou que Maria Angola, 35 anos, Rs. 120$000, oficial
de carpina, era mulher de Manoel, pardo, e Maria, crioula, 25 anos, Rs, 120$000, mulher de
Bernadino, cabra77.
Verifica-se, no Quadro 5 a seguir, a diversidade de nações da escravaria de Belchior
Pereira Guedes, no ano de 1827, demonstrando a conexão do Alto Sertão baiano com os
portos de Salvador e/ou Rio de Janeiro, via compra e venda de cativos. A partir de 1831,
quando ocorreu a proibição do tráfico atlântico, senhores tenderam a homogeneizar os
cativos, denominando todos de africanos, e não mais notificando os lugares de embarque da
África. As fontes documentais evidenciam grandes e médios senhores obedecendo à lógica
das conjunturas da época para camuflar o comércio ilegal.
Origem
Homens Mulheres Total
ÁFRICA
Benguela 07 01 08
Congo do Riacho 02 - 02
Congo 07 02 09
Gegi 03 - 03
Angola 06 03 09
Nagô 02 01 03
Mina 05 02 07
Uçá ou Auçá 09 03 12
Santomé 01 - 01
Total 42 12 54
BRASIL
Crioulo 41 27 68
Mulato 07 10 17
Cabra 15 10 25
Não declarado 05 03 08
Total 68 50 118
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA.
Seção Judiciária: Inventariado: Belchior Pereira Guedes, n. do processo: 407. Mç: 03, 1827.
continente e as peculiaridades dos grupos étnicos, o que resultou em atribuir diferentes classificações aos
africanos capturados como escravos para as Américas. Assim, indicavam bem mais os portos de embarque do
que “a língua geral, o grupo ou identidade nacional” de africanos escravizados. Ver também: SILVA Júnior
Carlos. Tráfico, escravidão e comércio em Salvador do século XVIII; a vida de Francisco Gonçalves Dantas –
Escravidão e suas sombras, EDUFBA, 2012. Nesse artigo, o autor afirma que nações eram categorias étnicas
forjadas pelo tráfico negreiro que, de forma geral, correspondiam a portos de embarques, reinos, regiões, etc. Em
se tratando da vila de Monte Alto, no alto sertão da Bahia, encontramos, em inventários de 1810 a 1830,
escravos de diversas regiões da África, mas, a partir de 1835, a especificação da nacionalidade passou a ser
substituída pelo termo generalizante “africano”.
77
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventariado:
Thomaz Teixeira Camargo. N. do processo: 407. Mç: 02, 1820.
78
Observação: os nomes descritos no quadro acima seguem a mesma forma de escrita nos inventários.
82
79
A identificação das “nações” de origem consta no Inventário de Belchior Pereira Guedes, 1827. As regiões de
embarque, porém, onde foram traficados os cativos na África foram referidas conforme análise de Carlos Silva
Júnior, no texto intitulado “Ardras, Minas, Jejes, ou escravos de primeira reputação: políticas africanas,
tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII”. Almanack. Guarulhos, n. 12, p. 6-33. Dossiê 6.
83
(Benim e Costa do Ouro), mas, na metade do século, mais precisamente em 1740, o porto do
Rio de Janeiro superou o da Bahia, com o incremento de escravos da Costa Centro-Ocidental
no mercado internacional, sendo os portos de Luanda e Angola os principais centros de
distribuição da população de escravizados (SANTOS; CORRÊA, 2008, p. 287)80.
Depreende-se que a região do Alto Sertão baiano, especificamente Monte Alto e
Caetité, tinha localização geográfica considerada estratégica por dar acesso às províncias da
Bahia, Minas Gerais, divisas de Goiás e, pelo médio São Francisco, com a província de
Pernambuco. Tal condição favoreceu traficantes e senhores para que fizessem do lugar um
entreposto para receber e vender cativos dos portos de Salvador, Recôncavo, como também
do Rio de Janeiro. A região não só arregimentou escravarias de etnias e identidades
diferentes, como despertou em muitos senhores e traficantes a habilidade de tirar vantagens
nos negócios relacionados à compra e venda de cativos. Essa evidência também foi notada por
Simony Oliveira Lima (2017, p. 58) quando analisou a carta de alforria da escrava Maria,
registrada em 1830, na vila de Carinhanha, termo limítrofe ao de Monte Alto. Maria era de
Moçambique e tinha sido comprada por D. Bernardina via porto do Rio de Janeiro. A autora
observou que, além do porto da Bahia, os proprietários da região do Médio São Francisco
circulavam por rotas que ligavam as províncias de Pernambuco, Minas Gerais e Bahia para
adquirir escravos desembarcados no porto do Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do
século XVIII.
Assim, o número expressivo de escravos, descrito no inventário post mortem de
Belchior Pereira Guedes, correspondeu a diferentes povos e culturas na composição da
estrutura social da região, formando laços de parentesco e vínculos solidários entre escravos,
forros, livres e pobres no Alto Sertão.
Sobre os crioulos, Parés (2005, p. 88) denomina “o negro de ascendência africana
nascido no Brasil” e, ao analisar a crioulização no Recôncavo baiano, tendo como base
inventários, observou para a Bahia, no início do século XIX, que a crioulização constituía
crescimento vertiginoso junto a outras etnicidades, como mulatos, cabras e pardos, e indicava
limites entre africanos e os nascidos no Brasil, principalmente até o final do século XVIII. A
composição social marcada pela coação hierarquizava indivíduos e, de certa forma,
estabelecia barreiras nos aspectos culturais entre africanos recém-chegados da África e os que
SANTOS, Raphael Freitas; CORRÊA, Carolina Perpétuo. A trajetória econômica da Comarca do Rio das
80
Velhas: Um estudo das estruturas de posse de escravos e as relações com o mercado internacional de escravos
(século XIX). In: PAIVA, Eduardo França, Org.; IVO, Isnara Pereira, Org. Escravidão, mestiçagens e histórias
comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB,
2008, p. 289-291.
84
aqui nasceram. Para o Alto Sertão, essas barreiras não eram tão rígidas, conforme vimos nos
exemplos anteriormente citados.
Para além de Monte Alto, Gabriela Amorim Nogueira (2011, p. 62), estudando os
escravos da Freguesia de Santo Antônio do Urubú de Sima, percebeu, na formação de
fazendas escravistas naquela região, que senhores “fizeram opções diferenciadas, alguns
recorrendo ao tráfico”, enquanto outros optaram pela reprodução natural e que, desde o século
XVIII, o “Certam de Sima” esteve na rota do tráfico atlântico por meio de uma relação direta
entre compradores e vendedores. Demonstrou, por meio dos assentos de batismo e livros de
casamentos, índices elevados de nascidos no interior das fazendas, sobretudo nas grandes
propriedades dos Guedes de Brito, cujo crescimento vegetativo tornou-se maior que os
escravos vindos da África. Em Rio de Contas e Caetité, Maria de Fátima Pires (2009, p. 163-
164) observou recorrência de uniões estáveis e consensuais entre os escravos do sertão e sob o
consentimento de seus senhores. Para a autora, “casais escravos acompanhados de seus filhos
sugerem vínculos mais duradouros e estáveis influenciando as lutas pela preservação da vida
familiar”.
Em Carinhanha, Simony Oliveira Lima (2017), ao analisar o perfil da escravaria da
família Siqueira Brandão, percebeu que a maioria era formada por crioulos e, em menor
número, africanos, característica que se repetiu em outras propriedades, indicando que “a
reprodução natural foi o meio mais utilizado para a conservação e ampliação da posse escrava
na região; e que, ao longo do século XVIII até a primeira metade do século XIX, cativos de
origem africana continuaram sendo adquiridos junto ao tráfico atlântico” (LIMA, 2017, p.
49).
Essa característica do crescimento natural associado ao tráfico atlântico expandiu-se
por vários lugares do sertão, inclusive para Monte Alto, e dela pôde-se extrair que os cativos
constituíram uniões conjugais e consensuais a partir de desejo e negociações com seus
senhores. É certo que senhores se beneficiaram da expansão populacional dos escravos e,
interferindo ou não nessas relações, detinham o controle do direito de propriedade dos
nascidos entre suas escravarias e se serviam deles para aumentar o patrimônio. Entretanto,
estudos historiográficos mais recentes contestam a ideia de reprodução natural como mero
incentivo dos senhores81. Escravizados construíram noções próprias do que queriam para si e,
81
Sobre essa discussão, ver: SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Caminhos e descaminhos da abolição: escravos,
senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão – Bahia, 1850/1888. Tese de Doutorado. Curitiba: UFPE,
2007; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro; PINTO, Fábio Carlos Vieira. Tráfico e famílias escravas em
Minas Gerais: o caso de São José do Rio das Mortes, 1743-1850, p.41 a p.58. In: PAIVA, Eduardo França;
IVO, Isnara Pereira (Orgs.). Escravidão, mestiçagem, e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo
85
Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2008; AMARAL, Sharyse Piroupo. Um pé
calçado, outro no chão: liberdade e escravidão em Sergipe, Cotinguiba, 1860-1900. Salvador: EDUFBA;
Aracaju: Editora Diário Oficial, 2012.
86
BRASIL
Pardo 11 2,5 08 3,0 19 3,0
Crioulo 176 46 148 58,0 324 50,5
Mulato 34 9,0 26 10,5 60 9,5
Cabra 110 28,5 37 14,5 147 23,0
Não declarado 54 14,0 36 14,0 90 14,0
Total 385 255 640
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários:
1810-1830.
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventários. Série: Inventários.
1811-1888.
Ver: NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos
82
XVIII e XIX. Salvador EDUFBA, 2005; PIRES, Maria de Fátima. Fios da vida: tráfico interprovincial e
alforrias nos Sertoins de Sima – BA (1860/1920). São Paulo: Annablume, 2009.
88
médios e grandes senhores e, a partir dos cálculos, pode-se afirmar que 40% deles
concentravam 81,4% da escravaria, formando, assim, uma elite sertaneja com grande
acumulação de riqueza na primeira metade do século XIX.
Apenas 7,2% dos senhores concentravam mais de 100 escravos em suas propriedades,
representando 39,8% das escravarias para o período, compondo um dos seus principais
investimentos, já que atendiam tanto às demandas das fazendas, como à comercialização.
Entre outras atividades desenvolvidas por esse grupo (grandes proprietários) estavam, além da
pecuária e algodão, atividades comerciais e financeiras, formando, assim, uma minoria de
homens de grossa aventura, que conciliavam os negócios da agropecuária com atividades de
crédito83. Outras ocupações do ramo de gêneros alimentícios também se incluíam na rotina
daqueles senhores.
Manoel Pereira da Costa teve fortuna arrolada no ano de 1867, cujo valor foi de
Rs.20:660$480. O envolvimento com atividades agropastoris, com 550 cabeças de gado
vacum, produção e comercialização da farinha e algodão, forneceu condições para amealhar
riqueza aliada a investimentos na posse escrava, declarando 27 cativos. Alguns deles foram
direcionados ao mercado, como o escravo Manoel, crioulo, 50 anos, vendido a Rs.400$000,
Antônia, crioula, 30 anos, por Rs.700$000 e Lourenço, crioulo, 40 anos, por Rs.1:000$000.
83
A expressão “homens de grossa aventura” é definida por João Luís Ribeiro Fragoso como um grupo
aristocrático, escravista e latifundiário, cuja hegemonia estava relacionada ao envolvimento desses homens,
comerciantes de grosso trato, no tráfico internacional de escravos, no abastecimento interno e outras atividades
rentáveis e financeiras. Ver: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e
Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790 – 1830). Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. 1992.
89
A análise dos dados revela que a posse escrava era mais representativa, em termos de
concentração, nas médias e grandes propriedades do termo de Monte Alto. Apesar de a
maioria dos proprietários ser considerada pequena, o número de cativos distribuídos nessas
propriedades era relativamente baixo, se comparado aos das grandes e médias. A seguir, os
dados apresentados sobre a média e percentual de masculinidade evidenciam essa
distribuição:
Tabela 9 – Média de escravarias por tamanho de propriedade – termo de Monte Alto, 1810-1880
Percentual de
Tamanho do Nº de escravos Nº de Nº total de masculinidade,
proprietário por proprietário propriedades escravos população acima de 12
anos
Pequeno 3 126 402 57,4%
Médio 11 46 528 53,2%
Grande 39 38 1496 64,6%
Total de propriedades 210
Total de Escravos 2.426
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventários. Série: Inventários.
1811-1880.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Manoel Pereira da Costa.
84
Mç:18, 1867.
90
A proprietária Antônia Barbosa de Andrade, fazenda Lameirão, também sentiu os efeitos da seca. No
85
inventário de seu esposo, Antônio Botelho de Andrade, 1863, destacou a redução do gado vacum em sua
propriedade devido às grandes secas do ano anterior, flagelo “que dizimou todo o gado dos fazendeiros”. Ainda,
as “terras nada têm produzido porque a lavoura desde 1860 nada tem dado”. Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias
Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventariado: Antônio Botelho de Andrade Júnior. Mç. 16, 1863.
91
escolha para a venda não foi aleatória, tendo em vista a idade, vigor físico e, provavelmente,
maior preferência no mercado. Dessa forma, permaneceram na fazenda apenas 6 cativos:
Luiz, crioulo, 8 anos, Antônio, crioulo, 30 anos, Jerônimo, africano, 50 anos, Petronílha,
cabra, 20 anos, Maria, cabra, 40 anos e Josefa, cabra, 50 anos. Supõe-se que esses escravos
mantinham maior aproximação com seu senhor e atendiam às suas necessidades diante da
conjuntura vigente.
Além disso, soma-se a essa conjuntura a alteração do valor de cativos na dinâmica
socioeconômica da região. A vigência do tráfico e a crise da seca, as quais dificultavam a
manutenção da escravaria, estimularam aquela senhora a vender parte de seus escravos,
garantindo certa margem de lucro, já que o preço estava em alta com a expansão das lavouras
cafeeiras no sudeste do País. Aliado a essa demanda, o valor atribuído aos escravos levava
em consideração o aprimoramento das funções exercidas e a idade. Maria de Fátima Novaes
Pires (2009) demonstrou a média de preço dos escravos para Rio de Contas e Caetité em
1860, com valores correspondentes a Rs.700$000 para homens e Rs. 600$000 para mulheres,
e o declínio dos preços a partir de 1880, tanto para os homens quanto para as mulheres. O
preço dos escravos seguiu tendência em toda a província baiana na segunda metade do século
XIX.
Essas observações se evidenciam para o termo de Monte Alto, onde os preços
tenderam a aumentar após 1850. Os inventários registraram valores absolutos, arredondados,
sem quebra, exceto aqueles de procedência africana, com problemas de doenças ou
deformações físicas e idade acima de 50 anos, que apresentavam valores muito baixos; os
cativos com idade avançada ou com deformações físicas eram avaliados abaixo de
Rs. 80$000. Aqueles com idade considerada adequada para o trabalho, ou criança com
aspecto físico saudável, representavam média, na primeira metade do século XIX, de
Rs. 300$000 para mulheres e Rs. 400$000 para homens. A lucratividade que senhores
sertanejos acumulavam com cativos jovens, saudáveis e com alguma especialização na
vigência do tráfico interno justifica a concentração e características da posse escrava em
médias e grandes propriedades do termo de Monte Alto.
Após 1850, conforme a Tabela 10, a seguir, os valores se elevaram, se comparados aos
dos períodos anteriores. De acordo com as profissões do cativo, poderiam ser avaliados entre
Rs. 1:000$000 e Rs. 2:000$000. Esses indicadores também foram observados por João José
Reis (1986), quando identificou que os preços para Salvador e Recôncavo da Bahia, na
primeira metade do século XIX, tenderam a subir devido à suspensão do tráfico atlântico e à
92
procura das províncias do Sul e Sudeste com a expansão dos cafezais, como afirma João José
Reis:
Por volta de meados dos anos trinta, a Bahia e outras províncias do Nordeste
se tornariam regiões exportadoras de escravos para o Sul. O valor destes
aumentou muito na Bahia. O preço médio de um escravo era 175$000 em
1810, 200$000 em 1820, 250$000 em 1830 e 450$000 em 1840. Enquanto o
preço subira 30 por cento em vinte anos (1810- 1830), nos dez anos
seguintes (1830 a 1840) ele aumentaria 45 por cento (REIS, 1986, p. 98).
Tabela 10 – Preço, idade média dos escravos, Palmas de Monte Alto – 1811 a 187086.
86
Com base em Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 120/121), foi estabelecida a idade de 0 a 12 anos para caracterizar o cativo como criança.
93
94
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
87
1811 – 1850
Faixa etária de escravarias Grande Média Pequena
Criança 155 25% 80 27% 42 25%
Adulto 367 58% 178 60% 97 58%
Idoso 102 17% 40 13% 28 17%
TOTAL 624 298 167 1.089
1851 – 1870
Faixa etária de escravarias Grande Média Pequena
Criança 113 28% 246 36% 129 32%
Adulto 188 47% 298 43% 226 55%
Idoso 99 25% 136 20% 58 14%
TOTAL 400 680 413 1.493
1871 – 1888
Faixa etária de escravarias Grande Média Pequena
Criança 71 18% 51 25% 52 33%
Adulto 291 74% 97 48% 67 43%
Idoso 29 8% 54 27% 36 24%
TOTAL 391 202 155 748
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Seção: Judiciária. Série:
Inventários, 1811 a 1888.
Pode-se aferir que, nas primeiras décadas do século XIX, o total da população cativa
chegou a 1.089 pessoas. Entre o período de 1851 e 1870, ocorreu um sutil crescimento no
número de escravos nas fazendas e, a partir de 1871, os dados do censo aproximaram-se dos
registros das décadas anteriores. O aumento entre o período de 1851 e 1870 deveu-se a vários
fatores, dentre eles, à reprodução natural e ao maior número de inventários com registros de
escravos. No segundo período, ocorreu leve aumento no percentual de crianças entre a
população escrava, se comparado com o primeiro período, de 1811 a 1850, quando esse
percentual era de 25%.
A partir de 1871, na conjuntura das leis abolicionistas e tráfico interno, os indicadores
da Tabela anterior sinalizaram decréscimo de cativos por propriedades, mas, ainda assim,
algumas fazendas mantiveram números elevados até a última década da escravidão. Em meio
à concentração de escravarias observadas, especialmente em grandes e médias propriedades, a
população do termo de Monte Alto ingressou no século XIX sob forte impacto econômico
advindo da vigência e envolvimento de senhores escravistas nas conjunturas do tráfico
atlântico e do tráfico interno, incidindo drasticamente na concessão de alforrias e articulação
96
de redes familiares, posto que senhores arregimentaram escravos não apenas para o trabalho
nas fazendas, mas para comercialização, fazendo da região um importante entreposto
comercial de escravos.
Nessas condições, passaremos a observar, no capítulo seguinte, as estratégias de
negociações de escravos e senhores na luta pela conquista da alforria e manutenção dos laços
familiares de cativos em grandes propriedades, valendo-se, nesse cenário, de múltiplas
estratégias para resistir às vendas compulsórias.
97
90
Rafael era escravo da fazenda Canabraval, pertencente ao Major Manoel Moreira da Trindade. Fórum Dr.
Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Major Manoel Moreira Trindade, n.304,
1866.
98
de 1:700.000, pouco mais ou menos, para cujo pagamento remetteo da safra deste anno vinte
cargas de algodão”.91
Nessas condições, diversas ações permearam a vida dos escravos para remir-se do
cativeiro ou garantir a permanência junto aos seus familiares. Experiências como a de Rafael
também foram observadas por Mattos (1998), para o município de Rio Claro, província do
Rio de Janeiro, em 1850: cativos do mundo rural “lograram ampliar seus espaços de
autonomia dentro do cativeiro, diferenciando-se do conjunto dos demais escravos,
aproximando-se desta experiência de liberdade e ampliando suas condições de acesso à
compra da alforria”, afirma Hebe Maria Mattos (1998, p. 100).
Acompanhando pistas de escravos em inventários de Monte Alto, outro rico
fazendeiro de nome José Antônio da Silva Castro, inventariado no ano de 1844, cujo
monte-mor equivalia a Rs. 287:371$136, acusa diversos pagamentos a indivíduos que
prestavam serviços para aquele proprietário, inclusive, havia pagamentos feitos a cativos:
dinheiro a Maurício Ferreiro, Rs.16$000; dinheiro à sua escrava, de nome não identificado,
Rs. 36$000, Rs. $360; dinheiro aos carpinas, Rs. 23$000; dinheiro ao marceneiro Henrique
Kroger, Rs. 164$000; dinheiro ao escravo Tibúrcio, Rs. $200; além de vaqueiros, tropeiros,
seleiros, fiandeiras, dentre outros ofícios. O cativo Felisberto acompanhava Gasparino
Moreira Castro, filho de seu senhor, quando o jovem estudava o curso de Direito em Olinda,
por isso precisou ser avaliado às pressas para a continuidade dos estudos de Gasparino92.
O envolvimento de grandes senhores em atividades lucrativas e diversificadas precisou
de aprimoramento de tarefas a serem executadas, especialmente por cativos. Por um lado, esse
aprimoramento pode ser visto como ação estratégica do senhor em agregar maior valor ao
escravo quando direcionado ao mercado, conforme visto, a depender das especializações
desenvolvidas por um cativo, o valor recebido com uma futura venda tendia a ser maior. Por
A Firma Antônio Francisco Brandão e Companhia foi uma das principais firmas que atuaram na região do
91
Alto Sertão baiano, envolvendo-se em várias transações comerciais, sobretudo no comércio de cativos. Pires
(2009, p. 51) evidenciou negócios dessa firma em Caetité com abastado proprietário da família Gomes Neto,
Barão de Caetité, “e outros comerciantes, como o riocontense Antônio Gomes Pereira”, comerciante de fazendas
e secos da Bahia. Sobre a atuação dessa firma em outras localidades do Alto Sertão da Bahia, ver também:
NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros Traficantes: comércio de escravos do Alto Sertão da Bahia para o
oeste cafeeiro paulista. Afro-Ásia, 2000, p.97-128; SANTOS, Paulo Henrique Duque Santos. Légua tirana:
sociedade e economia no alto sertão da Bahia, Caetité, 1890-1930. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2014;
RAMOS, Danielle da Silva. O mundo aqui é largo demais: produção e comércio no termo de Monte Alto, alto
sertão da Bahia, 1890-1920. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2016; LIMA, Simony Oliveira. O
ardente desejo de ser livre: escravidão e liberdade no sertão do São Francisco (Carinhanha, 1800-1871).
Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2017.
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
92
03/1021/1490/01, 1844.
99
outro lado, o aprimoramento abriu espaço que comportava certo grau de mobilidade social ao
cativo, possibilitando algumas flexibilidades nas funções desempenhadas.
Possuir determinadas habilidades de ocupação despertava nos senhores uma forma
lógica de atribuição de valores que hierarquizavam aquele grupo. Dessa relação, muitos
cativos levaram vantagens: constituíam pecúlio, compravam alforrias, formavam famílias e
permaneciam por maior tempo nas propriedades. “As regras do jogo” estavam nas mãos dos
senhores, mas o cativo “dispõe de mil possibilidades de aceitá-las, porém modelando-as”
(MATTOSO, 2003, p. 122).
As escravarias pertencentes a José Antônio da Silva Castro estavam disseminadas por
volumosas propriedades em toda a província baiana. Esse senhor era filho do bandeirante
João Antunes da Silva Castro, casado com Ana Pedrosa de Araçatuba, descendente dos
Raposos Leite.93 Estes, ao se estabelecerem na região de Outeiro em Muritiba, na fazenda
“Tapera”, região de Curralinho (hoje Castro Alves, Bahia), construíram fortunas
consideráveis e tiveram cinco filhos, dentre eles, o mencionado José, que no comando do
Regimento de Cavalaria 43, passou a atuar no sertão e se instalou na Fazenda Cajueiro, Termo
de Monte Alto.
Algumas famílias portuguesas vieram para o Brasil, sobretudo para São Paulo, e
figuraram como bandeirantes na procura de ouro e metais preciosos. De São Paulo
adentraram-se por Minas Gerais e Bahia (Rio de Contas), envolvidos com a extração de ouro,
prata, diamantes e o salitre na Serra de Monte Alto, século XVIII, de acordo com Isnara
Pereira Ivo (2012). Dentre eles: Francisco Pereira Barros, Joaquim Pereira de Castro, João
Antunes da Silva Castro, Pedro Leolino Mariz, Domingues Gomes de Azevedo e Belchior
Pereira Guedes, entre outros. Ao se instalarem no Alto Sertão baiano, construíram suas
moradas, adquirindo terras por compras, heranças, doações e apropriação, permanecendo por
séculos. Construíram fortunas, sobretudo a partir da atuação no comércio de escravos,
exerceram patentes militares, controlaram o poder local; eram comerciantes, latifundiários e
escravistas, cujas fortunas geraram relação de dependentes, como escravos, libertos e livres
pobres. O acesso à terra tornara-se difícil devido a enormes concentrações sob o domínio de
famílias privilegiadas que perduraram por séculos, como a família de José Antônio da Silva
Castro.
A dimensão de redes de negócios e composição fundiária pertencentes àquele senhor
podem ser observadas no Quadro 7 a seguir.
ALMEIDA, Norma Silveira Castro; TANAJURA, Amanda Rodrigues Lima. José Antônio da Silva Castro,
93
De acordo com esse Quadro, para cada lugar em que José Antônio da Silva Castro
possuía bens patrimoniais na Província da Bahia e no Rio de Janeiro, foi nomeado um
procurador para inventariar as devidas propriedades. A escolha desses representantes mostrou
articulações desse senhor com indivíduos abastados e de influência política e econômica,
como pode ser observado nos títulos de patentes e formação superior que antecedem seus
nomes: Doutor, Comandante, Major, Capitão, Coronel e Tenente. No Recôncavo da Bahia,
em Cachoeira, o procurador Dr. Álvaro Tibério de Mancovo Lima pertencia à família
proprietária do Engenho Trapiche Mancovo e mantinha relações com diversos negociantes da
praça da Bahia. No arrolamento dos bens desse senhor, constaram itens referentes à compra e
101
venda nas casas de negócios: Lima, Irmãos & Cia, Companhia do Queimado; Anselmo de
Azevedo Fernandes & Cia; Loja de Modas de Paris de J. Rodrigues Teixeira, dentre outras94.
No espólio arrolado, constaram 125 cativos, 6.000 reses de criação, muitos animais
cavalares, como animais de carga, bestas e éguas em propriedades do sertão e Recôncavo
baiano95. A criação extensiva, possibilitada pela posse de diversas propriedades e de recursos
necessários à sua manutenção, justificou lucros auferidos com comercialização para mercados
interno e externo na província baiana. Nas propriedades do Recôncavo baiano, investiu no
plantio e comercialização da cana-de-açúcar e na criação, em menor escala, da pecuária e
gado cavalar, como deu a descrever a posse de “30 arrobas de açúcar, por 96$000 mil reis e
11 burros de tropas” 96.
Em propriedades do sertão, investiu em maior peso no criatório de gado vacum,
cavalar e outras atividades voltadas à casa de negócios e ao plantio de algodão, dando no
inventário “seis cargas de algodão em capunxo avaliada a 12 mil reis cada huma, todas por 72
mil reis”. Na propriedade da Taboca, tinha uma casa velha para escravos e “deu o
inventariante vinte e cinco cargas de algodão em capunxo, que forão avaliados a doze mil reis
cada huma”. Aquele rico senhor não só plantava o algodão, mas também beneficiava,
havendo em sociedade com Clemente Antunes da S. Castro e Antônio Luiz de Avelar uma
“maquina filatoria da Fazenda Gameleira, cuja casa e maquinismo ahi existente pertence a
sociedade, como mostra a escriptura”97.
O algodão, a posse e comercialização de cativos foram elementos de grande
importância na articulação comercial de ricos senhores, na composição e na ampliação das
fortunas. Além disso, investiram também em semoventes (gado vacum e cavalar), atividades
de crédito e concentração de extensas unidades agrárias distribuídas em Monte Alto e outras
localidades, destinadas à economia de abastecimento e de subsistência. Essa diversidade de
investimentos e articulações permitiu caracterizá-los como grandes proprietários, cuja faixa de
riqueza foi de Rs. 15:000$000 a Rs. 50:000$000 e acima de Rs. 50:001$000, conforme se
observa nas Tabelas a seguir.
94
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: Álvaro Tibério de Mancovo e Lima.
Classificação: 01/121/146/02, 1869.
95
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01, 1844.
96
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01, 1844.
97
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01, 1844.
Tabela 12 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor de Rs. 15:001$000 a Rs. 50:000$000
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série: Inventários: 1820-1889.
102
Tabela 13 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor acima de Rs. 50:000$000
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1888.
103
104
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
98
03/1021/1490/01, 1844.
105
jamais se importavam com os vínculos familiares que uniam essas famílias escravas,
causando enormes constrangimentos à vida familiar e à liberdade.
A seguir, verifica-se uma pequena amostra dos cativos arrematados por aquele rico
senhor:
Quadro 8 – Escravos levados à arrematação de José Antônio da Silva Castro - 1844
99
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção: Judiciária. Série: Inventários, 1811 a
1880.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira- Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária, Livros de Notas do
100
partilha, momento de quitar dívidas, cativos e gado vacum foram direcionados ao pagamento
dos empréstimos contraídos, a exemplo de 20 cativos e 273 cabeças de gado vacum101.
Lycurgo Santos Filho (2012, p. 35), ao caracterizar a rica Fazenda Campo Seco, em
Bom Jesus dos Meiras (atual Brumado), no Alto Sertão da Bahia, pertencente a Manoel de
Lourenço, no início do século XIX, mostrou o quanto esse senhor não só ampliou o
patrimônio, como deixou legado à geração de filhos. O genro e herdeiro da antiga fazenda,
José Pinheiro Pinto, expandiu a capacidade produtiva e realizou inúmeras transações
comerciais entre a região do Alto Sertão e a província da Bahia, com destino aos mercados
interno e externo.
Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 184) evidenciou dois grandes senhores para a
região de Caetité e Rio de Contas, no Alto Sertão baiano, na segunda metade do século XIX,
com características semelhantes às dos descritos acima, o Barão de Caetité, Gomes Neto, com
monte-mor de Rs. 169:000$094, e o Coronel Alves Coelho, com Rs. 186:382$160. Esses
senhores, segundo a autora, demonstraram disposição para o dinamismo na economia da
região, construíram fortunas e souberam conviver com as “distintas oscilações conjunturais”,
sendo a manutenção do trabalho escravo fundamental para o desenvolvimento das atividades
agropastoris. Paulo Henrique Duque Santos (2014, p. 38) também identificou a diversidade de
investimentos entre os anos de 1890 e 1930, no Alto Sertão.
Tais características de grandes fazendas com demandas diversificadas e concentração
de mão de obra cativa serviram como fonte de abastecimento ao comércio regional, provincial
e interprovincial. A posse cativa na região e as ameaças do tráfico obstavam as estratégias e
experiências de vida de escravos ao longo do século XIX, no Alto Sertão baiano, mas não
impediram de negociar com seus senhores e, ao se especializarem em determinadas tarefas e
fortalecerem a teia de relações, dentro e fora do cativeiro, vislumbraram possibilidades de
mobilidade social, a exemplo do pecúlio para compra de alforria, projetando na família a
“esperança” de uma vida melhor, aponta Robert W. Slenes (2010).
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Botelho de
101
Andrade, 1863.
108
órfão Antonio troca que fez a suppl. Porque o dicto escravinho além da
figura era muito doentio, sofria de asma e seu outro escravinho Juvêncio,
muito boa figura e mais valioso: vem a suplicante assim apelar para a
equidade de Vs. pedindo aprovação do seu procedimento para seu único fim
era evitar qualquer mal que pudesse provir aos órfãos.
Portanto
P. Vsª. Queira deferir com equidade pedida.
Antônia Barboza de Andrade102
Ao prestar contas dos bens dos órfãos Anna Carolina, Antônio e Eugênia, D. Antônia
Barboza de Andrade, viúva do Major Antônio Botelho de Andrade, herdeiro da Fazenda
Lameirão e rico comerciante do termo de Monte Alto, apresentou em processo de inventário,
no ano de 1863, justificativa para a troca do escravo Fabrício, “muito doentio, sofria de
asma”, por outro de nome Juvêncio, “muito boa figura e mais valioso”, ressaltando que a
troca evitaria prejuízos ao órfão. O documento ilustra a preocupação da inventariante em
assegurar a equidade na partilha dos bens entre os demais herdeiros, visto que o escravo
Fabrício, “doente e considerado de má figura”, resultaria em prejuízos por possuir limitações
no desempenho das atividades daquela propriedade e numa futura venda.
Em outro momento, no ano de 1872, o procurador da órfã Eugênia representou, em
audiência na casa do Juiz Sebastião Cardoso Souza, vila de Monte Alto, três escravas: Isabel,
parda, 20 anos; Valeriana, parda, 35 anos; e Victorina, parda, 14 anos103. Essa última foi
adquirida por troca realizada com a venda do escravo Cândido, por receio de perda ou
prejuízo, “visto que o escravinho era fujão, de má índole e tentou até se suicidar uma vez; por
isso, pedia a aprovação do juiz quanto à referida troca por julgar favorável aos interesses da
orphã” 104.
O contexto de valorização da mão de obra cativa diante das transferências para o
sudeste do País, motivadas pela expansão das lavouras cafeeiras, despertou nos senhores
interesse por escravos que atendessem às exigências do mercado e, obviamente, as
substituições dos cativos visavam a esse destino, principalmente por se tratar de escravos
jovens e com idade adequada ao perfil dos senhores escravistas do Sul e Sudeste. Diante
daquele contexto, o fato de um senhor possuir escravo “fujão e má figura” representava
prejuízos, já para o escravo Cândido, a fuga e a tentativa do suicídio simbolizavam resistência
ao cativeiro e à transferência compulsória para outras regiões.
102
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Botelho de
Andrade Júnior. Mç: 16, 1863.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Botelho de
103
Perante as armadilhas do tráfico, a alforria tornara-se mais difícil, visto que alcançá-la
envolvia interesses antagônicos: por parte dos senhores, uma concessão limitada, e por parte
dos cativos, uma conquista árdua que requeria esforço e trabalho redobrado. Nesse sentido, a
mobilização de redes de solidariedade funcionava como importante elo de fortalecimento da
identidade individual e coletiva entre cativos, livres pobres e libertos, especialmente na
montagem de estratégias e de diferentes caminhos para permanecerem próximos de seus
familiares.
Na Fazenda Cajueiro, em Monte Alto, propriedade de José Antônio da Silva Castro,
com 125 cativos em 1844, 10 foram alforriados, dos quais sete receberam suas manumissões
mediante compra, evidenciando o quanto aqueles sujeitos sociais manejaram recursos e
estratégias no acesso à liberdade. É bem verdade que esse acesso perpassava por uma relação
de direitos e deveres entre senhor e escravo, posto que, para adquirir a condição de liberto, os
escravos dependiam de décadas de trabalho para amealhar pecúlio e tentar obter a alforria.
Além disso, era preciso uma série de convenções sociais, como a honestidade, a fidelidade e a
deferência para merecerem a recompensa da alforria; do contrário, as ameaças, a altivez e as
inquietações culminariam na recusa da alforria ou na venda “dos maus serviçais”
(WISSENBACH, 1998, p.212). Tais condições dependiam de o cativo aceitar o “código do
bom comportamento” estabelecido no cativeiro para que a recompensa fosse alcançada
(SILVA, 1993, p. 23).
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
105
03/1021/1490/01, 1844.
110
Conforme Hebe Mattos, “os termos „negro‟ e „preto‟ foram usados exclusivamente para designar escravos e
106
forros. Em muitas áreas e períodos, „preto‟ foi sinônimo de africano, e os índios escravizados, de „negros da
terra‟.” (MATTOS, 2000, p.17). Entretanto, o que se observou para Monte Alto é que o termo “africano”
relacionava aos escravos provenientes do tráfico atlântico, especialmente, aqueles que entraram na região a partir
de 1831, tática usada para camuflar o comércio clandestino, pois não identificava o lugar de origem da África. Já
o termo “preto”, de acordo documentação analisada, só aparece a partir da segunda metade do século XIX,
sugerindo influência do racismo científico. Vale ressaltar que a compreensão dessas categorias no Alto Sertão
ainda não foi explorada com mais afinco por estudos historiográficos.
111
de comarcas, pois ora pertencia a Macaúbas, Santo Antônio do Urubu, Caetité e Carinhanha, e
ora recriava a sede jurídica na própria vila. Essa alternância de Comarcas pode ter extraviado
documentos. Portanto, teremos aqui apenas amostra das alforrias que foram encontradas nos
livros de notas e inventários, disponíveis no Fórum daquela localidade.
A incidência de manumissões compradas ou condicionais com pecúlio, especialmente
em grandes propriedades, pode ser verificada no Gráfico 3 a seguir107.
Gráfico 3 – Amostra de alforrias entre grandes, médios e pequenos proprietários no termo de Monte
Alto108
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série: Inventários: 1820 -
1889. Livros Notas, século XIX.
107
Sharyse Piroupo do Amaral, analisando cartas de alforrias em Cotinguiba - Sergipe concedidas entre 1860 e
1900, classificou as alforrias compradas como “qualquer alforria concedida pelo senhor mediante recebimento
de algum valor em dinheiro ou em mercadoria”, inclusive aquelas em que o senhor cobrava valor abaixo do
mercado. As cartas condicionais, a autora definiu como toda alforria em que o escravo prestasse algum tipo de
serviço ou dinheiro ao senhor. E as incondicionais, foram aquelas que dispensavam qualquer tipo de obrigação,
fosse em serviços, fosse em dinheiro (AMARAL, 2012, p. 246). Por sua vez, Kátia Lorena Novais Almeida
definiu, para Rio de Contas, na Bahia, da seguinte forma: Incondicionais, as alforrias pagas em dinheiro ou
espécie de acordo com o valor do mercado. As “pagas condicionais”, quando o escravo, além de pagar em
dinheiro, ainda ficava na dependência das condições estipuladas pelo senhor. E, por fim, as alforrias “não pagas
condicionais”, quando isentavam o cativo de dinheiro, porém ele ficava na condição de prestar algum serviço
para o senhor. (ALMEIDA, 2009, p.166). Sobre tipologias de alforrias, ver também Maria de Fátima Novaes
Pires (2009, p. 74). A partir dos três conceitos, optou-se pelo modelo que Sharyse utilizou para Sergipe,
principalmente quanto às alforrias pagas, já que a maioria das alforrias para Monte Alto envolvia pecúlio.
Foram utilizadas para realização do gráfico apenas 97 alforrias registradas em livros de notas e inventários
108
post mortem do termo de Monte Alto, as outras três também são de Monte Alto, mas pertencem ao livro de
tabelionato da Freguesia do Gentio, que pertencia a Monte Alto naquela época.
112
para conseguir comprá-las – esforço que também perpassava por articulação de interesses
senhoriais.
Os negócios do tráfico interno foram altamente lucrativos e intensos na região,
levando senhores a desfazerem-se de seus cativos, antes e depois da Lei de 1871. Por outro
lado, as cartas de alforria com pecúlio de Monte Alto demonstraram escravos inseridos na
economia da região, com perspectivas de melhorar suas vidas distante do cativeiro. Kátia
Lorena Novais Almeida (2009), examinando cartas de alforrias para Rio de Contas, no século
XIX, mostrou que, embora esse tipo de documento não evidenciasse os caminhos pelos quais
os cativos perpassaram para amealhar pecúlio, o ato em si do pagamento é indicativo de que a
economia da região estava em constante movimento, ao ponto de escravos e forros
vislumbrarem essa possibilidade (ALMEIDA, 2007, p. 163-186). Ressaltou a autora que, no
início do século XIX, o Alto Sertão baiano integrou a economia de abastecimento regional e
inter-regional, sendo o algodão, a pecuária e os gêneros alimentícios as principais atividades
produtivas que dinamizaram o comércio.
Essa integração justifica, em parte, a disponibilidade da mão de obra cativa
disseminada em variadas unidades de produção e explica, também, o número de alforrias
alcançadas mediante a compra, “pois uma economia em franca decadência, impossibilitaria
aos escravos acumularem pecúlio e comprarem a alforria” (ALMEIDA, 2009, p. 167).
O pecúlio sempre foi uma prática comum adquirida pelos escravos em suas
negociações com senhores, para a obtenção da alforria. Essa prática, bastante difundida nas
relações costumeiras, se intensificou a partir da segunda metade do século XIX e se tornou
legal com a Lei de 1871, conturbando a autoridade senhorial. Assim, alguns cativos recorriam
à Justiça para formalizar seu pedido de alforria mediante a compra, não só porque desejavam
legalizar o ato em si, mas por receio de que os herdeiros descumprissem o acordo
anteriormente realizado com seu senhor (SILVA, 2000, p. 53).
Essa estratégia foi utilizada pelo casal de escravos Bernardino e Maria, ambos em
idade avançada para os padrões de mercado daquela época. Bernardino tinha 62 anos,
profissão carpina, e foi avaliado em Rs.200$000, sua mulher Maria, 50 anos, avaliada em
Rs. 100$000. Os dois escravos entraram com petição no ato da partilha dos bens de seu
senhor, João José de Oliveira, requerendo carta de liberdade mediante compra. O casal de
escravos permaneceu na Fazenda Campos durante anos e somente em 1855, após o
falecimento do seu senhor, ofertaram aos herdeiros os respectivos valores pela
113
109
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto. Inventariado: João José de Oliveira,
1855.
114
Diz Faustino Mor-ª Castro, tutor de suas sobrinhas, filhas do Cap.ᵐᵒ Joaquim
José Barbosa q‟ havendo tocado em legítima de sua tutellada de nome Elvira
110
Arquivo da Cúria da Paróquia de Santo Antônio – Guanambi/Bahia. Livro de casamento de Monte Alto,
1840-1862.
115
Joaquim José Barbosa e Carolina Sofhia Moreira de Castro. N. 025, p. 174, 1845.
116
propriedade. Com a morte do senhor, Francisco se deparou com o imprevisível destino de sua
companheira, por isso, conclamou a Justiça para mediar a negociação da alforria com os
herdeiros, antevendo as dificuldades que poderia enfrentar.
No desenrolar daquelas ações de partilha, cativos percebiam espaços para conquistar
algumas vantagens, como alforria, casamentos e ascensão em ocupações exercidas nas
fazendas. Ricardo Tadeu Caires Silva, ao estudar vilas localizadas no sul da província da
Bahia, chamou a atenção para um aspecto importante nas negociações entre senhor e escravo
na aquisição da alforria. Segundo o autor, essas negociações estavam pautadas, muitas vezes,
no consentimento do seu senhor, cuja relação de dependência resultava “na perspectiva de que
o esforço pessoal [do escravo] podia valer a pena” (SILVA, 2007, p. 22).
O historiador João José Reis (2016), ao descrever e analisar minuciosamente a vida do
escravo Manoel Joaquim Ricardo, que se tornou rico e liberto na Bahia na primeira metade do
século XIX, destacou alguns casos de cativos que alcançaram ascensão social e se tornaram
senhores de outros escravos. No entanto, sinaliza que a prática de escravos adquirirem outros
escravos e os usarem como moeda de troca para a compra da alforria perpassava pelas
relações estabelecidas com seus senhores, necessárias à ascensão social (REIS, 2016, p. 40).
Em Monte Alto, essas relações também pareciam comuns e, algumas vezes, ultrapassaram o
plano da “convivência harmoniosa”. Os cativos estavam atentos às conjunturas locais e
sabiam, com astúcia, organizar mecanismos de ganhos para si e seus companheiros de
senzalas.
Outra situação de escravo pleiteando a compra da alforria perante a Justiça foi a do
cativo Manoel, de 70 anos, viúvo, feitor da Fazenda Lameirão, que pedira, no momento da
partilha dos bens, a alforria, argumentando ter sido sempre vontade de sua esposa, já falecida.
O juiz aceitou o pedido, concedendo-lhe a liberdade113. A condição de escravo feitor em
propriedades de grande porte sugere que não era “figura ausente” para a localidade. Ser feitor,
vaqueiro, ferreiro, sapateiro, cozinheira, dentre outras ocupações, reforça o argumento de que
exercer função especializada em grandes propriedades hierarquizava e possibilitava algumas
vantagens na ascensão social dentro do cativeiro, ampliando as chances de conseguir alforria.
Como já dito em outras passagens deste texto, essas hierarquias alcançadas pelos
escravos faziam parte de um “campo de força e favor” nas relações construídas com seus
senhores. E aqueles escravos que avançavam no campo do favor ampliavam suas expectativas
em termos de mobilidade social, de teias de relações e do acesso à alforria, porém, como
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Inventariado: Capitão
113
Joaquim José Barbosa e Carolina Sofhia Moreira de Castro. N. 025, p. 174, 1845.
117
afirma Robert W. Slenes (2010), quanto mais esses cativos se aproximavam da “casa grande”,
maiores eram a vulnerabilidade e imprevisibilidade quanto ao seu futuro.
Um escravo feitor, por mais que devesse favor ao seu senhor cumprindo deveres, não
poderia romper os vínculos com os companheiros de senzala. Mesmo ciente de que a função
de feitor poderia lhe render vantagens, como a alforria, muitos daqueles cativos no exercício
de ocupações importantes mantinham também relações com seus companheiros de senzalas e
não se apartaram deles, porque sabiam o quanto esses laços eram fundamentais para a vida em
cativeiro, como depois de alforriado (SLENES, 2010, p. 280). Não resta dúvida de que o grau
de relação mantido com o senhor proporcionaria algumas hierarquias a partir das ocupações
exercidas e podiam, inclusive, contar com maior permanência nos espaços das grandes
fazendas. Em outras palavras, as ocupações exercidas no âmbito das grandes propriedades
forneciam a cativos maiores chances de permanência ao lado de seus familiares, condição
imprescindível para projetar ganhos econômicos e obter a alforria. Esses escravos podiam
contar com alguma mobilidade social, tendo em vista as dinâmicas produtivas das
propriedades, diferente dos cativos de pequenos senhores, que se deparavam constantemente
com a imprevisibilidade.
Desse modo, conseguir tais vantagens e pleitear a alforria exigia dos cativos esforços
que perpassavam por variada rede de relações e articulações construídas dentro e fora do
cativeiro. Ao acompanhar parte da trajetória de Cesário e Josefa, é possível perceber os
meandros da política do favor entre esse casal de escravos e seus senhores na grande Fazenda
Canabraval, ao longo do século XIX.
Os herdeiros de Joaquim Moreira Prates e sua esposa Ignácia da Silva Prates
mantiveram a Canabraval por todo o século XIX. Na identificação de três inventários da
referida fazenda em momentos diferentes – 1835, 1847 e 1866 –, em todos se observou um
número significativo de escravos disseminados pela propriedade. Em 1835, a fazenda
pertencia ao grande fazendeiro Joaquim Moreira dos Santos, cujo monte-mor foi avaliado em
Rs. 72:899$559. No mesmo ano, o escravo Cesário, mulato de 35 anos, fora avaliado por
Rs. 400$000 e, em 1847, em outro inventário, quando do falecimento de Ignácia da Silva
Prates (esposa do primeiro inventariado, em 1835), esse continuava na fazenda e estava
casado com Josefa, crioula, avaliada em Rs. 500$000114. Em 1866, o casal de escravos
pertencia ao Major Manoel Moreira da Trindade, herdeiro da mesma fazenda e, quando este
faleceu, Cesário requereu de Dona Leonarda da Silva Prates (cabeça do casal), a compra da
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventários.
114
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventários.
115
O fragmento acima mostra o desmantelo do tráfico para com uma família de escravos
e libertos no Alto Sertão da Bahia, na segunda metade do século XIX. Nesse caso, trata-se,
especificamente, da arrematação em praça pública, de dois irmãos escravos, André e
Anselmo. Na relação de matrículas do termo de Monte Alto, consta que os cativos eram filhos
de Irineo escravo, e Desidéria, liberta, pertencentes a João Pio de Souza Lima até o ano de
1873. Irineo recebeu alforria por compra, via Fundo de Emancipação, mas seus filhos
117
A expressão “vidas partilhadas” foi retirada do título do artigo de Napoliana Pereira Santana. Vidas
partilhadas: estabilidade familiar escrava no Alto Sertão da Bahia (segunda metade do século XIX). No caso
acima, as vidas partilhadas referem-se à precarização da liberdade no termo da Vila de Monte Alto tanto para a
conquista da alforria como após, quando membros da comunidade escrava, ex-escrava e livres se sensibilizavam
com os que ainda viviam em regime de cativeiro. No exemplo acima, era uma família desesperada com a
possível venda de seus filhos. Dissertação de mestrado defendida no Programa de História Regional e Local.
Santo Antônio de Jesus, 2012. Revista de História, 4,2 (2012), p.63-80. Disponível em:
<http://www.revistahistoria.ufba.br/2012_2/a03.pdf>.
118
Inventário do Dr. Capitão Antônio Pereira de Castro. Fl.33. Ano 1870. Fórum de Monte Alto. Grifos nossos.
121
permaneceram cativos por terem nascido antes da Lei do Ventre Livre, de 1871. Com a morte
de Anna Maria Moreira dos Santos, mulher de João Pio de Souza Lima, em 1873, a família
cativa viu-se fragmentada. Anselmo e André foram doados como dote ao herdeiro Antônio
Moreira de Castro Lima, e Manoel ao herdeiro Pedro de Souza, conforme o diagrama a
seguir.
Desidéria
Irineo (Crioulo)
Liberta em 1873
Senhor : João Pio de Souza
Lima - 1873 Ex- Senhor: João Pio de Souza
Lima
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Série: Inventários. Inventariado: José
Pio de Souza Lima, 1873.
A procura por uniões estáveis demonstra o poder de articulação entre cativos que,
historicamente, souberam buscar nesse convívio formas de solidariedade e de apoio mútuo
nas agruras do cativeiro. Nesse sentido, conforme Flávio dos Santos Gomes (2005), nas
últimas décadas do século XIX, existiu um processo de fuga em massa dos escravos nas áreas
urbanas e uma politização dos destinos da sua vida. Não muito diferente foi o abandono de
fazendas por cativos, livres pobres ou libertos, migrando para outros locais distantes do jugo
senhorial, enquanto outros vislumbravam a liberdade e negociavam formas de permanência e
convívio familiar, mesmo que desvinculados do cativeiro (GOMES, 2005).
Assim como se empenharam pela conquista da alforria, encontraram na unidade
familiar outras possibilidades de resistência às condições impostas. As uniões estáveis ou não
no seio do cativeiro apresentavam conotações evidentes de resistência em suas vidas. Isabel
Cristina Ferreira dos Reis (2012, p. 84) conceitua a experiência familiar escrava como toda
forma de união independente do “estatuto jurídico dos indivíduos”, não importando se a união
era legitimada ou consensual, sendo, de fato, indispensável o sentimento de ter uma família e
nela apoiar-se nos momentos de necessidade. Corroborando as ideias de Reis (2012), Raiza
Cristina Canuta Hora (2015), ao estudar casamentos na freguesia da Penha, em Salvador,
entre 1750 e 1810, concluiu que as uniões sacramentadas pela Igreja não eram acessíveis a
toda a população, pois havia questões burocráticas, financeiras e de preceitos instituídos pela
Igreja que impediam tais intentos (HORA, 2015). Mesmo assim, esses obstáculos foram
rompidos, muitas vezes, por boa parte da população de cativos, livres e libertos, os quais
fizeram dos arranjos matrimoniais um “espaço privilegiado para estabelecer e nutrir redes de
sociabilidades” (HORA, 2015, p. 31), ou seja, insere “a família escrava numa perspectiva que
rompe os circuitos da escravidão” (HORA, 2015, p. 16). Para Monte Alto, as uniões
costumeiras ou legitimadas contribuíram para que cativos acessassem a alforria, colaborando
também para resistir às oscilações próprias ao cativeiro.
A autora considera ainda como importantes nas redes familiares as uniões não
consensuais que constituíam maioria naquela freguesia e que, embora houvesse aceitação da
sociedade para esse tipo de união, “a família natural é desprovida de qualquer validade
jurídica, mas tolerada pela sociedade baiana no século XIX” (HORA, 2015, p. 62-63). Sendo
assim, as redes de sociabilidades e laços parentais funcionavam no sentido de ampliar as
possibilidades por melhores condições de vida para si e para os seus. Tais experiências foram
identificadas e compartilhadas entre cativos do termo de Monte Alto em variados momentos
de suas vidas, no decorrer do século XIX, como pontuado na Tabela 15 a seguir.
123
Tabela 15 – Número de casamentos por tamanho de propriedade – termo de Monte Alto, 1810-1880119
Número de
Tamanho da Propriedade Número de Casamentos (%)
Casamentos
Pequeno 03 2,5
Médio 23 19,5
Grande 80 67, 8
Não identificados 12 10,2
Total 118 100
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886. Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte
Alto/BA. Seção: Judiciária. Série: Inventários, 1811 a 1870.
Com base na análise da composição da riqueza no termo de Monte Alto, foram definidos como pequenos
119
proprietários aqueles lavradores, posseiros, roceiros, que contaram com uma modesta mobilização de recursos e
atividades produtivas, computadas num monte-mor de até Rs.5:000$000. Os médios proprietários representam
comerciantes de gêneros agropastoris, cativos e produtos manufaturados, que contaram com o domínio de
extensas propriedades rurais, gado vacum e considerável posse cativa, com fortuna avaliada entre Rs.5:001$000
até Rs. 15:000$000. Já os grandes proprietários se caracterizam como uma elite escravista e latifundiária, que
investiu comumente na posse e comércio de escravos, atividades comerciais e financeiras, grandes extensões de
terra e criação de gado vacum, com fortuna acima de Rs. 15:001$000.
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
120
finais da escravidão”. No Sertão de Cima do São Francisco, no século XIX, Gabriela Amorim
Nogueira (2011) observou, quanto às grandes propriedades dos Guedes de Brito, concentração
de escravos que criaram entre si laços familiares, encontrando 45 registros de casamentos de
escravos e 137 uniões conjugais, indicadas pela filiação dos batizados.
Modo geral, os estudos sobre a família escrava na Bahia indicam baixo índice de
uniões legitimadas pela Igreja, se comparadas às ilegítimas (SCHWARTZ, 1988;
MATTOSO, 1992; FARIAS, 1998; REIS, 2007). Apesar de haver, desde 1720, legislações
que garantissem direito ao escravo de casar, escolher seus pares e permanecer juntos, a saber
– As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Código 1720 –, essas instruções
pouco interferiram nos arranjos domésticos dos escravos, uma vez que “a proteção legal das
famílias escravas só passou a existir no Brasil em 1869” (RUSSELL-WOOD, 2005, p. 250).
Antes desse período, prevaleciam negociações de cunho paternalista entre senhores e
escravos, sendo que esses últimos participavam ativamente de suas escolhas, “afinal, é difícil
acreditar que uma política de casamentos forçados, sem base alguma nos desejos dos
trabalhadores, pudesse ser eficaz” (SLENES, 2011, p. 102). Sendo assim, pode-se dizer que
constituir famílias se destacou como marcador importante na vida dos escravos de Monte Alto
e em outros lugares do Brasil. A Tabela 16 a seguir apresenta a relação entre cônjuges
legítimos e condição jurídica em termo de Monte Alto, entre 1840 e 1886.
Tabela 16 – Cônjuges legítimos por livro X Condição jurídica, termo de Monte Alto, 1840-1886
Condição Total de
Ano
Escravo Livre Liberto SD casados
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1840- 1862 92 1.242 01 66 1401
1862-1875 54 1.152 - 02 1.208
1875- 1886 43 1.434 02 10 1.489
Total 189 3.828 03 78 4.098
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886.
Trilhando pistas dos assentos de casamento e batismo do termo de Monte Alto entre
1840 e 1886, verificou-se que a população era formada por indivíduos diversos na
composição social: escravos, livres e libertos. Apesar de haver números significativos da
população branca e detentores das maiores fortunas, o censo de 1872 demonstrou que a
população livre, em sua maioria, se declarou como parda, constituindo 63% da população
absoluta livre naquele período. Tais números são reveladores de matizes diversos na formação
social daquele lugar, não somente em termos de condição jurídica, como também pela cor.
125
Isso não quer dizer que as marcas das diferenças se atenuaram, mas não dá para negar a
predominância de uma população de cor como consequência das interações sociais. Homens e
mulheres, pardos, mulatos, cabras, africanos e crioulos compuseram o perfil daquela
sociedade.
Desse modo, computaram-se, entre os anos de 1840-1886, 189 cativos casados, entre
homens e mulheres, representando 4,6 % da população absoluta de casados. Já os casados
livres totalizaram 3.823 homens e mulheres. A população absoluta que contraiu matrimônios
legitimados – ou seja, escravos e livres casados – totaliza 4.098 nubentes. Se compararmos a
quantidade de escravos casados com as uniões entre livres, concluímos que o número de
casamentos consagrados pela Igreja entre cativos era relativamente baixo para Monte Alto, no
século XIX.
Quanto à escolha de escravos por seus parceiros, pode-se afirmar que não havia
predileção, ocorrendo, portanto, uniões entre indivíduos de diferentes estatutos jurídicos, pelo
menos, a partir de 1840, período em que se encontraram registros em livros de casamento da
freguesia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens. Embora não tão frequentemente,
escravos casavam com livres e forros. Em 1844, na matriz de Nossa Senhora Mãe de Deus e
dos Homens de Monte Alto, Gregório Ribeiro, cativo, uniu-se à Carlota Maria dos Santos,
forra. No mesmo ano, na freguesia de Riacho de Santana, Francisco José de Souza, livre, filho
legítimo, casou-se com Joanina, escrava de Maria Francisca121.
À medida que decrescia a população escrava na região, nas décadas finais do século
XIX, os registros de casamentos apresentaram maiores incidências dessas uniões mistas. A
atuação do Fundo de Emancipação na região de Monte Alto, a partir de 1871, tinha como
pré-requisito para alforriar pelo Fundo: ser escravo casado, com filhos, cujo parceiro fosse
livre ou liberto122. Com o intuiuto ou não de assegurar preferência frente à liberdade via
Fundo de Emancipação, os matrimônios representaram estratégias e arranjos que foram
elaborados visando conferir sonhos e projetos de vida própria. Soma-se a essa questão a
ampliação da Lei do Ventre Livre, de 1871, de proteger escravos casados e com filhos para
que permanecessem juntos, além das ameaças do tráfico, que, de certo modo, despertavam
nos escravos a busca por parceiros, temendo serem vendidos por seus senhores. Assim, o
121
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1844-1862.
Sobre a atuação do Fundo de Emancipação na Província da Bahia, ver: REIS, Isabel Ferreira Cristina. A
122
família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de
Campinas, 2007; NETO, José Pereira de Santana. A alforria nos termos e limites da lei: o fundo de
emancipação na Bahia (1871- 1888). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2012 ;
126
casamento influía na demanda por melhores condições de vida, inclusive a alforria. E, mesmo
diante da demografia do tráfico interprovincial, na região, escravos, sobretudo de grandes e
médias propriedades constituíram relações familiares estáveis escolhidas, muitas vezes, pelos
próprios escravos, o que permitiu a formação de extensos laços de parentesco, de compadrio e
de fortalecimento de grupos étnicos por gerações entre escravos, livres pobres e forros. Esses
homens e mulheres escravos e libertos ocupavam espaços na dinâmica social do lugar, as
quais se conectavam por redes de solidariedade e proteção, inclusive espiritual.
No que se refere à origem e à cor, os assentos de casamentos também mostraram que
havia leve inclinação dos escravos na escolha de seus parceiros de origem ou grupos étnicos
dentro do próprio convívio. Contudo, isso não era uma regra imposta e, a depender da
situação, essa união acontecia entre parceiros pertencentes a grupos diferentes, conforme
mostra a Tabela 17 a seguir123.
Tabela 17 – Cor dos cônjuges, termo de Monte Alto, 1840-1886
Presume-se, diante dos poucos indícios encontrados, que as uniões mistas, em maior
ou menor proporção, constituíam realidade para Monte Alto, além de evidenciar que as
escolhas não estavam atreladas apenas à vontade senhorial. O senhor podia até manifestar se
deveria ou não consentir na sacralização do casamento perante o padre, mas as fontes indicam
que a escolha dos parceiros era dos escravos, inclusive, de uma propriedade para outra, não
muito incomum, isso valia tanto para os casados legitimados quanto para as uniões não
consensuais.
No ano de 1844, na freguesia de Riacho de Santana, Carlos, filho de Ignácia, cabra,
escravo de Francisco Manoel da Silva Ribeiro, casou-se com uma escrava de Anacleto
123
No entanto, essa questão da cor nem sempre era declarada na hora do casamento e, mesmo as que eram
identificadas, não se pode tomar como certas. A cor e a nação nem sempre correspondiam aos grupos étnicos do
cativeiro e apresentavam-se alternadas a depender do documento e compreensão do tabelião e do responsável
pela Igreja para registrar esses assentos, quer fosse de casamento, quer fosse de batismos.
127
124
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1844-1862.
125
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1865-1886.
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
126
Faustino e Dorotheia
(cabra) 1848
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886.
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção: Judiciária. Série: Inventários, 1811 a 1870.
129
130
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
127
compra dos seus escravos, frente às pressões das leis abolicionistas e da resistência cotidiana
de cativos. O tráfico dificultava a concessão das alforrias e a manutenção da integralidade das
famílias e, diante dos obstáculos enfrentados, os escravos intensificaram ações mais diretas no
empenho daquilo que consideravam direitos, inclusive acionando a Justiça para formalização
de seus pedidos de alforrias, como vimos na história da escrava Inês, no segundo capítulo
desta tese, e de tantas outras histórias analisadas aqui.
Assim, a família de Dorotheia e Faustino deparou com situações de impasses entre a
escravidão e a liberdade. De um lado, as leis abolicionistas abriam perspectivas de alcance da
alforria, de outro, se viam ameaçados frente à vigência do tráfico interno. No ano de 1881,
uma filha do casal, Auta, mãe de duas ingênuas e ainda pertencente à família Castro, foi
vendida, juntamente com seus filhos, para o Major Alberto Moreira Castro, negociante e
morador da cidade de Lençóis, na Bahia. A Lei do Ventre Livre, de 1871, resguardava o
direito da mãe em permanecer ao lado dos filhos menores de 12 anos, entretanto, não se sabe
se após a venda essas garantias foram, de fato, asseguradas. O tráfico interno abalou a
estrutura familiar, rompendo com os arranjos simbólicos, rituais e de solidariedades
estabelecidos no cativeiro129.
Considera-se, ainda, que vínculos de amizade e afetividade da extensa família de
Dorotheia e Faustino não se restringiram aos laços consanguíneos. A trajetória de Marqueza,
madrinha de Nicolau, filho do casal de escravos, evidenciou as diversas nuances com que se
deparavam os cativos. Marqueza nascera na Fazenda Jacaré, em 1849, mesmo lugar em que
vivia a família de Dorotheia e Faustino. No ano de 1857, pertencia a Antônio Dias da Silva e
à sua mulher Edvirgens Correa de Lacerda, moradores do distrito de Boqueirão das Palmeiras,
termo de Monte Alto. Os acervos históricos indiciam que Marqueza, mesmo pertencendo a
outro senhor, não perdeu o contato com os companheiros da senzala onde nasceu e,
certamente, circulava naquele espaço. Não foi por acaso que Marqueza foi escolhida para
fazer parte do círculo de convivência de Dorotheia e Faustino130. A história de Marqueza será
retomada no último capítulo desta tese. A escrava recorreu aos tribunais de Monte Alto para
manutenção da liberdade, devido à tentativa de reescravização por parte dos herdeiros após a
morte de seu senhor.
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Livros de Notas, século XIX, 1881.
129
1870. Inventariado: João Pereira de Castro, Mç: 9, 1849; Inventariado: Estevão da Silva Pimentel, Mç: 13,
1857;Inventariado: Antônio Dias da Silva, Mç 18, 1867.
133
131
Transcrição em manuscrito feita por Maria Belma Gumes Fernandes, 2013.
135
dos seus (GONÇALVES, 2017, p. 214). Nesse caso, o apadrinhamento ganhou espaço
privilegiado na estratégia de escravizados por melhores condições de sobrevivência e acesso à
alforria. Assentos de batismos da freguesia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de
Monte Alto, na segunda metade do século XIX, indicaram, reiteradas vezes, famílias de
escravizados legítimas ou consensuais estabelecendo uma gama de relações com indivíduos
de diferentes estatutos jurídicos, principalmente com a escolha de padrinhos para seus filhos.
Na Fazenda Cajueiro, do rico proprietário Faustino Moreira Castro, caracterizada no
primeiro capítulo, foi realizada a celebração do batismo de nove escravos, no ano de 1858. Na
celebração do ritual, todas as crianças batizadas foram declaradas como filhos naturais.
Apenas para duas crianças, as mães escolheram senhores como padrinhos: Antônia, parda, 01
ano, filha natural da escrava Silvéria, com os padrinhos Alberto Moreira Castro e Elvira
Barbosa Castro; e Margarida, crioula, 08 meses, filha da escrava Deodata, sendo padrinhos
Francisco Pereira Castro e Dona Sophia Moreira Castro132. Os demais escravos preferiram
convidar seus próprios companheiros de senzala para apadrinhar seus filhos. O escravinho
Roque, crioulo, filho de Sebastiana, escrava de Faustino Moreira Castro, foi apadrinhado por
Antônio e Luciana, também escravos. Tudo indica que a escolha dos cativos daquela
propriedade por padrinhos de diferentes estatutos jurídicos, como senhores, libertos e
escravos, representou variadas estratégias na ampliação das redes de relações e,
possivelmente, expectativas de obter vantagens material e espiritual que contribuíssem para
melhores condições de vida dos filhos e familiares, a exemplo da alforria.
Aproximar-se do senhor e tê-lo como padrinho ou compadre constituía privilégio e
distinção entre os demais escravos. Já a escolha de padrinhos e compadres do cativeiro
implicava também vantagens, geralmente apadrinhavam os que tivessem maior aproximação
com a família do batizando, exercessem alguma ocupação especializada na fazenda,
possuíssem maior idade, fossem respeitados perante o grupo, com grau de influência nas
relações estabelecidas que distinguissem socialmente dos demais. Ressalte-se que essas
estratégias de escolhas dos padrinhos e compadres ocorriam em todos os tamanhos de
propriedade, fossem elas grandes, médias ou pequenas. No entanto, a presença de cativos
apadrinhando outros cativos foi significativa nas grandes propriedades e, certamente, esse
aspecto sugere que a política de domínio senhorial, de conceder alguns “privilégios” a seus
132
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.
136
Para saber mais sobre a Lei de 1869 e a de 1871 e a regulamentação do Fundo de Emancipação, criada em
133
1872 para libertar, com prioridade, escravos casados, seguindo-se os que têm filhos nascidos livres, “depois, os
que têm filhos menores de 8 anos, casais cujos filhos tenham sido alforriados e ainda não chegaram aos 21
anos” (MATTOSO, 2003, p.127), ver também: GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de
mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; SLENES, Robert W. Na
senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. ed.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
137
quatro crianças batizadas, os padrinhos também eram cativos: o batizando Maurício, crioulo,
01 ano, filho natural da escrava Laurinha, apadrinhado por Vicente, cabra, 48 anos, vaqueiro,
avaliado em Rs. 600$000 e Thereza, cabra, 64 anos, avaliada em Rs.100$000. O batizando
João, cabra, filho da escrava Matildes recebeu as bênçãos do escravo Paulino, mulato, 74
anos, oficial de ferreiro, e de Desidéria, cabra, 68 anos. Vitória, crioula, 12 anos, filha da
escrava Marcolina, também foi batizada pelos escravos Justiniano, crioulo, 35 anos, vaqueiro,
e Carlota, cabra, 62 anos, forra. Observe-se o perfil dos padrinhos escolhidos pelos pais dos
afilhados, geralmente eram pessoas mais velhas do grupo, com certa hierarquia nas funções
exercidas. A propriedade contava com 50 cativos, e o que chama a atenção é a procedência
cor/nação entre eles, apenas 02 africanos, 07 mulatos e os demais, cabras e crioulos.
Provavelmente, esse grupo de cativos tinha uma linhagem de parentescos muito grande entre
si e as redes de relações se constituíam com maior força no eito da fazenda.
Ao que parece, o tamanho da posse escrava influenciou a escolha de comadres e
compadres. Escravos de grandes propriedades tinham maiores chances de escolher como
padrinhos de seus filhos o próprio companheiro de cativeiro. Cativos de propriedades menores
não tinham tantas opções assim, por isso ampliavam esses laços com escravos, livres ou
libertos de outras propriedades, devido ao número reduzido de cativos, da vulnerabilidade do
tráfico, de crises financeiras dos senhores e da partilha dos bens entre herdeiros.
Não foram encontrados todos os livros de registros de batismos da freguesia, daí, a
análise centrou-se apenas em dois livros correspondentes aos períodos de 1858-1879 e 1873-
1879. Dentro desse período, 10 anos ficaram sem análise, sendo impossível obter leitura da
população absoluta com registros de batismos. Portanto, optou-se apenas por amostragem da
realidade social naquele contexto, as esparsas fontes forneceram indícios preciosos da
experiência de vida familiar de escravizados, que enxergaram no compadrio oportunidade de
ampliar as redes de relações pessoais e coletivas. A realização do ritual criava esperanças de
amparo nos momentos de necessidades, de resistência ao cativeiro e proteção para si e os
seus. A Tabela 18, a seguir, com algumas observações sobre os registros de batismos de
Monte Alto.
138
Tabela 18 – Batizados de Monte Alto – Filhos legítimos X Filhos naturais (1858 – 1879)
Sem
Filhos legítimos Filhos naturais Total
Condição identificação
Qtd. % Qtd. % Qtd. % Qtd. %
1858 -1863 0,0% 0,0% 0,0%
Batizandos
3 0,2% 197 20,2% - 200 7,0%
escravos
Batizandos
446 23,5% 394 40,5% - 840 29,2%
livres
1873 -1879 0,0% 0,0% 0,0%
Batizandos
9 0,5% 46 4,7% - 55 1,9%
libertos
Batizandos
1.440 75,9% 336 34,5% - 1776 61,9%
livres
Total 1.898 100% 973 100% 2871 100%
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de
Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.
Conforme essa tabela, os batismos de legitimados, entre a população livre, pela Igreja
Católica foram superiores aos de filhos naturais, constando apenas o nome da mãe. Já para a
população escrava, esses números se invertem: encontrou-se maior número de filhos naturais
que de legitimados. Do total de batizados identificados, os batizandos escravos representaram
7%, os livres, 91,1% e os batizandos libertos, 1,9%. Entre os batizandos escravos, apenas
1,5% são filhos legítimos, enquanto os 98,5% restantes são de filhos naturais. Já entre os
batizandos livres, 72,1% são de filhos legítimos e 27,9%, de filhos naturais; e entre os
libertos, 16,4% são legítimos e 83,6% são naturais. Os filhos legítimos representaram 66,1%
dos batizandos e os filhos naturais, os 33,9% restantes.
A composição de filhos legítimos é feita por 99,4% de batizandos livres, 0,2% de
batizandos escravos e 0,4% de batizandos libertos. Finalmente, entre os filhos naturais, 20,2%
são escravos, 75,0% são livres e 4,8% são libertos. A baixa legitimidade de crianças escravas
se explica devido à burocracia e exigência imposta pela Igreja Católica, a despeito das taxas
de despesas pela realização do ato religioso, ou simplesmente pelo escravo não desejar
submeter ao ritual. Somam-se a essas questões as distâncias das fazendas que certamente
dificultavam o deslocamento do pároco para celebrar o ritual e
vice-versa. Por isso, a maioria dos batismos ocorria por atos de desobriga, em celebrações
festivas na matriz, nas capelas ou casas dos proprietários, necessitando, portanto, de
organização de calendário para a celebração do ritual. Há, ainda, a preferência dos lugares de
batismos, levando a crer que a religiosidade católica implicava preceitos, pedidos de proteção
139
divina, graças recebidas que eram “pagas” com promessas em lugares considerados sagrados,
a exemplo do Santuário de Bom Jesus da Lapa, Bahia. Eram comuns romarias em grupos
deslocarem-se para esse Santuário e realizarem os rituais naquele lugar.
Apesar de alguns obstáculos sinalizados e que impediam as uniões legítimas, os dados
disponíveis permitem-nos afirmar que o batizado se estendia também aos filhos de uniões
consensuais de escravizadas e libertos, inserindo o indivíduo na condição de reconhecimento
perante a sociedade, com nome e afirmação dos preceitos católicos. A escrava Ignácia
representa essa realidade: ao batizar seu filho André, cabra, de 01 ano, escolheu para
padrinhos o escravo Antônio e Lina, liberta134. Ignácia era escrava de Manoel Pereira Pinto,
proprietário da Fazenda Jacaré, no ano de 1861. Ter padrinhos significava afirmar a
existência de pais espirituais e materialmente proteger os afilhados, já que os padrinhos
exerciam o papel de tutores da cristandade. Ressalte-se que, entre escravizados, o batizado
representava status social e esperança de melhores chances de vida a si e aos seus filhos.
Logo, “socialmente, o batismo podia ser uma ponte para ser acolhido ou não entre os cristãos”
(ORTIZ, 2014, p. 50).
Cor Quantidade %
Branca 216 7,52%
Parda 417 14,52%
Cabra 9 0,31%
Crioulo 19 0,66%
Mulato 1 0,03%
Preto 15 0,52%
Não declarado 2194 76,42%
Total 2871 100,0%
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros
de assentos de batismos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto,
1858-63.
134
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.
140
Tabela 20 – Condição jurídica dos batizandos - Termo de Monte Alto, 1858 – 1879
Condição Total de
Ano Escravo Livre Liberto SD batizados
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1858-
200 100% 840 32,2% - 49,5% - - 1.040 37,5%
1863
1873-
- - 1.776 67,8% 55 50,5% - - 1.831 62,5%
1879
Total 200 100% 2.616 100% 55 100% - - 2.871 100%
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.
No que se refere à condição jurídica dos batizandos, nota-se que, entre a população
absoluta, a quantidade de assentos de batismos foi de 2.871, sendo que os livres foram em
número superior, representando 62,5% da população batizada. Em seguida, os escravos, com
37,5 % e, por último, os libertos, 5%. Apesar da predominância dos livres no acesso do ritual
do batismo, as fontes evidenciam diferentes sujeitos participando da celebração, inclusive
escravos e livres de outras famílias e proprietários. Os diversos matizes de condição jurídica
ampliavam as possibilidades de inserção social, de autonomia e de futuras esperanças. Esses
vínculos de alianças sociais, de amparo às necessidades e à sobrevivência visavam conseguir
barganhas nos momentos de tensão e aflição. Pode-se dizer que o ritual do batismo, entre
escravos, livres e libertos, ultrapassou os limites das fazendas, revelando mobilidades,
hierarquias e fortalecimento da comunidade cativa. Assim fez Vitória, escrava do Capitão
Tiburtino Moreira Prates, proprietário da Fazenda Pé da Serra, quando batizou seu filho
Benedito, de 04 anos. Vitória convidou para padrinhos de seu filho o livre Antônio da Costa
Mello e Maria, escrava de José da Silva Nunes. Nesse sentido, “(...) o compadrio
interpropriedade revela, sobretudo, a manutenção de vínculos de amizade ou até mesmo de
parentesco entre escravos dispersos por diferentes fazendas e sítios” (SANTANA, 2012, p.
68). A Tabela 21, adiante, mostra o estatuto jurídico dos padrinhos e madrinhas dos
batizandos de Monte Alto.
141
Tabela 21 – Estatuto jurídico dos padrinhos e madrinhas dos batizandos em Monte Alto, 1858 – 1879
Joaquina
(africana)
40 anos -
500$000
Félix - Crioulo Felippa -
10 anos Crioula
Batizado em 12 anos
1861 Batizada em
1858
Padrinhos
Padrinhos
Antônio
Cambaca Raimundo Ana - Crioula
Africano - 69 (liberto) 55 anos
anos Tereza africana
64 anos Cozinheira
Serviço de 78 anos -
Doente Serviço de
lavoura lavoura
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.
Muitas histórias poderiam ser aqui contadas, dadas as diversas relações criadas pelos
cativos em suas interações com livres, libertos e senhores, questão que será mais bem tratada
no próximo capítulo. Pelo exposto até agora, resta-nos pensar que o poder senhorial podia até
interferir nas escolhas dos escravos – e o fizeram, com ameaças de separação de suas famílias,
143
por meio das vendas com o tráfico, com castigos, com a divisão das heranças e nas
dificuldades financeiras –, mas não impediu que cativos e libertos elaborassem projetos de
vida diferentes dos seus. E, diante de cada contexto, esses mesmos senhores também
recuavam frente às pressões dos escravos, pois temiam motins, fugas, revoltas, dentre outras
possíveis formas de resistência. Cativos de Monte Alto criaram redes de relações, de
mobilidade social dentro dos limites das propriedades e fora deles, conforme vimos na
trajetória de Marqueza e tantos outros escravos. As relações familiares, legítimas ou
consensuais, de parentesco e de compadrio congregaram, assim, interesses maiores, o alcance
da alforria e melhores condições de vida para si e para os seus, mesmo diante das dificuldades
impostas a partir da força do tráfico interno na região.
144
Cumprir com o processo de autos de inventário post mortem nem sempre representava
ganhos às partes interessadas. Para indivíduos de pequena posse, esse ato poderia apenas ser
suficiente para custear o procedimento, pois “implicava gastos para a família do falecido,
tanto para o pagamento das custas do processo quanto para a regularização da situação com a
fazenda” (DANTAS, 2007, p. 80). Entretanto, ainda que os investimentos e recursos
estivessem longe dos alcançados por proprietários abastados, importantes atividades foram
mobilizadas por pequenos proprietários, gerando, inclusive, reivindicações entre os herdeiros
no momento da partilha dos bens.
Com o falecimento de Lourenço Dias Guimarães, iniciou-se, no ano de 1855, o
processo de avaliação. Entre bens de raiz, imóveis e gado cavalar, constou apenas uma parte
de terras na Fazenda Santa Rosa, denominada Mato Grosso, uma casa velha, cargas de
algodão e cavalos, que somaram, em média, Rs. 600$000. A posse de três cativos –
Benedicto, crioulo, de 02 anos, avaliado a Rs.600$000, Joanna, crioula, 10 anos, Rs. 550$000,
e Cassimira, crioula, 50 anos, Rs. 70$000 – equivaleu a mais da metade da riqueza
inventariada, calculada em Rs.1:742$000. No momento da partilha, o herdeiro Joaquim Dias
Guimarães entrou com petição para que o valor da escrava Joanna crioula fosse dividido
igualmente entre todos os herdeiros, com esta justificativa: “Para que ninguém fique no
prejuízo, sendo esta escrava um único bem melhor, e de valor”.
Diante da iminência de serem prejudicados na divisão dos bens arrolados, herdeiros
como Joaquim Dias Guimarães se valiam de reivindicações. De fato, os escravos
correspondiam ao item de maior relevância na composição da riqueza no grupo dos pequenos
proprietários, ao lado da posse de diminutas partes de terra, a criação de algumas cabeças de
gado bovino e cavalar e pequenas dívidas ativas, entre outros bens de menor valor,
compuseram um monte-mor de até Rs. 1:000$000 a Rs. 5:001$000, como pode ser observado
nas Tabelas 22 e 23 a seguir.
Tabela 22 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor até Rs. 1:000$000
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.
145
Tabela 23 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor de Rs. 1:001$000 a Rs. 5:000$000
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.
146
147
Fórum Dr. Alcebíades Dias laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
135
Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
136
vantagens, considerando, conforme Alex Andrade Costa, que possuir escravos estava
relacionado não apenas ao exercício de atividades, mas também a bens de capital,
procedimento “com o qual investiam esperando algum retorno financeiro que poderia vir com
a venda ou alforria paga” (COSTA, 2016, p.104). Para senhores menos remediados, investir
em cativos incorreria em riscos, já que o cativo poderia fugir ou morrer, entretanto, em
regiões como o Alto Sertão baiano, devido à valorização e procura nas províncias do Sul e
Sudeste, despertou nos senhores de parcos recursos o emprego nesse bem de capital. A
depender do momento, os lucros eram garantidos, obtendo maior facilidade de desfazê-lo para
cobrir alguma dívida, socorrer em situações de extrema necessidade ou investir em outros
empreendimentos.
É importante assinalar que apenas alguns menos afortunados não possuíam escravos,
porém tinham outros bens significativos, a exemplo de algumas reses. Joaquim Ticá da Silva,
quando faleceu, deixara sete vacas paridas, sete garrotes, quatro vacas solteiras e dois
cavalos138. O gado representara um elemento de riqueza quase que necessário na vida do
sertanejo. De seus derivados, retirava o couro, o leite, o requeijão, o queijo, a manteiga, além
de contarem com a carne, útil para o consumo interno. Dos inventários analisados para o
termo de Monte Alto, havia apenas o de Henrique Ribeiro de Magalhães sem bens declarados.
Em 1867, sua mulher declarou que seu marido a deixou em estado de extrema pobreza, sem
bem algum e com três filhos pequenos para cuidar139.
No Alto Sertão, específico Caetité e Rio de Contas, Maria de Fátima Novaes Pires
(2009, p.116/117) observou, a partir da segunda metade do século XIX, que a posse escrava
continuou até a véspera da abolição, com média entre cinco e dez cativos por senhor e uma
faixa de valores do monte-mor em “nível não superior a cinco contos de réis”. Os poucos
cativos serviam nas tarefas rotineiras de pegar água, cortar lenha, cuidar dos animais, preparar
a terra, plantar, colher e, quando os senhores não conseguiam adquirir um mínimo de
escravos, recorriam à contratação de diaristas ou jornaleiros. A autora elucida ainda a
continuidade da instituição escravista entre pequenos produtores, sitiantes, roceiros, médios e
grandes fazendeiros, o que permitiu certa flexibilidade nas relações estabelecidas entre esses
sujeitos.
Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
138
Esse percentual equivaleu à grande maioria dos espólios analisados pela autora para as
regiões citadas linhas atrás, correspondendo a 60% dos inventários analisados. Entretanto, os
valores obtidos por ela diferem dos analisados para Monte Alto, por encontrar número de
escravos e faixa de riqueza muito superior nos espólios computados. Por exemplo, a
classificação de pequenos, para Monte Alto, equivaleu a um médio senhor para Caetité. Em
Monte Alto, as primeiras faixas de riqueza corresponderam até Rs. 1: 000$000, a segunda, de
Rs. 1: 001$000 a Rs. 5: 000$000. Os dados comparados permitem-nos observar diferenças
peculiares entre as condições econômicas das vilas vizinhas, ao longo do século XIX,
inferindo atenção às especificidades de cada local.
Na Tabela 24 a seguir, é possível perceber o escravo também como item de maior peso
na constituição do patrimônio de médios proprietários ao longo do período analisado. Apenas
entre as décadas de 1840-1849 e 1880-1889, representou o terceiro maior valor. Com posse de
11 a 20 escravos, médios proprietários mantiveram atividades lucrativas no Alto Sertão e na
capital da província e Recôncavo baiano. As dívidas ativas constituíram indicadores
importantes da atuação desses indivíduos na produção e comercialização de produtos
agropastoris e de cativos.
Tabela 24 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 – Rs. 5:001$000 a Rs. 15:0000$000
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.
151
152
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
140
Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 140) observou, para Caetité e Rio de Contas,
indícios de escravos beneficiando-se de “roças”, e muitos senhores viram nessa prática “uma
opção vantajosa, porque os isentavam de mantê-los”. Ressalta ainda que a oportunidade de
cativos trabalharem por conta própria possibilitava reunir pecúlio e, com isso, adquirir a
alforria mediante a compra.
Embora o viúvo de D. Joana fosse um médio proprietário, não conseguiu manter toda
a escravaria ao passar por período de dificuldades ocasionado pela seca, enfrentando situação
similar à dos pequenos proprietários. Essa instabilidade de médios senhores oscilava e, a
depender, uns prosperavam, outros enfrentavam crises, como o viúvo de D. Joana. Todavia,
aqueles senhores tidos como médios contavam com maior disposição de recursos para superar
momentos difíceis, dispondo, inclusive, de alguns cuidados para manter seus cativos. José
Pedreira de Cerqueira, em 1874, teve riqueza arrolada no valor de Rs. 10:005$000, constando
em anexo contas e despesas realizadas com escravos em sua propriedade142. Nos itens
apresentados no Quadro 9 a seguir, é possível observar a alimentação dos cativos, à base de
carnes de péssima qualidade, como um quarto de ossos, sal, feijão, rapadura, farinha e arroz.
Esse inventário traz informação extra sobre o cotidiano escravo, visto que o casal falecido não
deixou herdeiros e era natural de Santo Amaro, na Bahia.
Quadro 9 – Despesas feitas com os escravos do falecido José Pedreira de Cerqueira, 1874
142
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: José Pedreira de
Cerqueira. Mç: 22, 1874.
154
Mais uma vez, as fontes evidenciam que cuidar das doenças de escravos e da
alimentação constituía práticas de grandes ou médios fazendeiros. E mesmo que houvesse
certo receio com a alimentação, esta era insuficiente e precária para a rotina pesada do
trabalho. A distribuição dos alimentos crus, como feijão, toucinho, rapadura e carne com
ossos, indica que cativos complementavam sua alimentação de outras formas. Presume-se que
a caça, a pesca, o plantio de algumas roças para si e a criação de animais miúdos, como
galinhas, porcos, dentre outros, serviam à necessidade diária dos cativos. Possivelmente, os
cuidados daquele senhor se relacionavam à intenção de comerciar seus escravos e, prevendo
as exigências do mercado por prioritariamente jovens, robustos e mais produtivos para o
trabalho, dispusera de certos cuidados: alimentação, saúde física, como o fez com a compra de
remédio, por Rs.10$000 para o escravo Thomaz. Vale lembrar, que o cuidado se associava
também à necessidade de reter cativos para o desempenho de atividades nas fazendas.
Ainda, sobre os escravos desse senhor, as fontes indicaram que, no mesmo ano, alguns
foram levados à arrematação pública, sendo nove escravos, filhos de duas escravas. Tanto as
mães dos cativos quanto os filhos foram arrematados por propostas de cartas fechadas, dentro
das formalidades legais. Adelaide, preta, de 32 anos, solteira, foi vendida juntamente com os
cinco filhos. O mesmo foi feito com a escrava Porfíria, preta, de 36 anos, também solteira,
arrematada com seus três filhos menores pelo traficante de escravos, Bruno Cardozo de
Souza.
143
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: José Pedreira de Cerqueira.
Mç: 22, 1874.
155
Ter cativos significava não somente usá-los para o trabalho cotidiano nas fazendas,
serviam também como moeda de troca nas transações comerciais, principalmente nas
hipotecas, como garantia de pagamento, em empréstimos financeiros e podiam até ser
alugados para prestarem serviços a outros senhores (LIMA, 2017, p. 82). A comercialização
de escravos de Monte Alto, às regiões vizinhas e outras províncias, mostrou a complexidade e
os constantes trânsitos que marcavam as experiências do cativeiro. Conforme busquei
demonstrar no capítulo anterior, cativos de grandes propriedades forjaram, dentro de certos
limites, redes de relações extensas e acumularam pecúlio para a aquisição da alforria, ainda
que essas relações fossem desiguais. Mesmo com dificuldades impostas pelo tráfico interno,
cativos formaram famílias extensas, especializaram-se em ocupações variadas e foram à
Justiça quando entendiam que senhores extrapolavam nas decisões de seus interesses.
Demostraram, assim, importantes estratégias de resistência ao cativeiro. Diante de tais
evidências, podemos afirmar que cativos de pequenas posses tinham as mesmas
possibilidades, já que seus senhores não dispunham de recursos variados?
A anotação anterior, disponível no inventário de Dionísio Barros de Oliveira, senhor
de parcos recursos, que deixou muitas dívidas a credores em Monte Alto quando faleceu,
aponta momentos tensos entre escravos de pequenos senhores. O monte-mor computado
chegou a Rs. 1:218$000, distribuído entre algumas cabeças de gado vacum, terras e oito
escravos. Cinco desses escravos foram levados para hasta pública e arrematados por credores
para o pagamento de dívidas, restando apenas três crianças cativas que não foram vendidas.
João Pereira de Castro Filho foi um daqueles credores de Dionísio e, diante da morte do
devedor, entrou com petição na Justiça de Monte Alto para embargar os recursos deixados
pelo falecido. E logo tratou de levar os escravos do devedor a pregões em praça pública,
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Dionísio Barros de
144
dentre eles, a escrava Francisca, 30 anos, avaliada por Rs. 400$000, e sua filha, conforme
juntada de justificativa nos autos, alegando que a escravinha devia ser vendida “juntamente
com a mãe e que torna inseparável, e evitar assim grandes despesas com uma nova praça, só
para ele” 145.
Muitos cativos foram levados para locais distantes, face o tráfico interno, rompendo
vínculos e redes familiares. A história que emerge do documento não tratava apenas de uma
exceção de pequenos senhores vulneráveis a crises financeiras. A venda da cativa Francisca
juntamente com a filha representou drama de muitos outros escravos e ofereceu olhar mais
atento para as relações de poder que se constituíam por senhores, para com escravizados,
livres pobres e libertos. É uma história que despontou em meados de 1850, cujo contexto
social era marcado pela suspensão do tráfico atlântico, pela expansão do tráfico
interprovincial, de que senhores sertanejos se beneficiaram. É importante lembrar que a
reprodução natural entre cativos favoreceu economicamente, a certo modo, alguns
proprietários. A preocupação em leiloar mãe e filha “inseparável” deixa explícito o desejo de
repor o valor emprestado a Dionísio perante uma venda rápida e sem perdas financeiras. A
experiência de Francisca e sua filha, levadas a pregões da Praça de Monte Alto, é elucidativa
do quanto o comércio de escravos despertava controle de poder senhorial sobre seus
subalternos.
Como dito em outros momentos deste trabalho, a família era crucial para a vida em
cativeiro, sendo esse vínculo uma das maiores conquistas dos escravizados, resultado de
muito esforço e negociação com seus senhores, ainda que implicasse uma relação pautada
pela “força e favor”, em que “a família escrava transformava os cativos em reféns tanto dos
seus próprios anseios quanto do proprietário” (SLENES, 2004, p.276).
Em propriedades de Monte Alto, proprietários, procuradores e intermediários nos
negócios do tráfico ignoravam a existência de vínculos familiares, camuflando suas intenções,
para que as conexões do comércio não fossem impedidas. Esses senhores e traficantes de
escravos eram residentes na região do Alto Sertão baiano, tinham fazendas, escravarias e se
envolveram intensamente naquela atividade atraídos por lucros com o suprimento de
demandas nas províncias de Sudeste e outros lugares146. Nas procurações, notam-se diversos
trânsitos de escravos de vários lugares da Bahia ilustrando as muitas idas e vindas do ativo
comércio, visto serem “bens” de maior importância entre proprietários da região. Pequenos
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Dionísio Barros de
145
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas, 1878 a 1884.
147
148
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).
149
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de notas. Cx: Século XIX, 1875 a
1879.
159
para vender a escrava Margarida, de vinte e quatro anos, acompanhada do ingênuo de nome
Domingo. 150
Como se observa, esses traficantes atuavam ativamente na região do Alto Sertão
baiano, com patentes de tenente, coronel, alferes, capitão, quando não eram eles mesmos
fazendeiros ou tocavam grau de parentesco a grandes senhores. Tais condições favoreciam a
atuação deles, não só referente às relações pessoais, quanto à facilidade no desenrolar das
transações de procurações em cartório local. Sem contar que muitos desses traficantes
fartaram-se nos contrabandos para burlar o fisco. Erivaldo Fagundes Neves (2000) denotou,
em estudos sobre o tráfico interno para Caetité, cidade vizinha de Monte Alto, no século XIX,
fortes vínculos entre proprietários e traficantes de escravos e ainda observou que alguns dos
nomes pertenciam a familiares residentes em Caetité e região como: “Costa Negrais, Oliveira
Guimarães, Teixeira Lacerda, Vasconcelos Bittencourt”, entre outros (NEVES, 2000, p. 118).
Muitos desses traficantes identificados por Neves (2000) estão presentes nas
procurações de Monte Alto e apresentavam similaridades nas características dos que atuavam
em Caetité, a exemplo de Manoel Cândido de Oliveira Guimarães. Em 1880, ele apareceu ao
lado de mais seis procuradores comprando cativos de senhores da região de Monte Alto. A
cativa Margarida, 24 anos, acompanhada do ingênuo Domingo, estava no rol das negociações.
151
Essas relações entre senhores do Alto Sertão baiano e traficantes implicava maiores
proximidades das vilas, roças e povoados. Maria de Fátima Novaes Pires assevera que
“senhores mais abastados mantinham fazendas em ambas as localidades e também grandes
proximidades em variados momentos da vida política” (PIRES, 2009, p. 57). Esse contato
favoreceu traficantes de escravos, prioritariamente, nos disfarces dos registros cartoriais, que,
movidos pelo lucro, sonegavam de todas as maneiras possíveis o Fisco Imperial. E isso só se
concretizou devido à rede de pessoas interessadas e compactuadas nos mesmos interesses,
incluindo nesse caso a proteção de alguns funcionários de cartório. Essa circunstância da
proteção de escrivão de cartórios pode ser percebida na grande incidência de procurações de
compra e venda de cativos, na freguesia de Gentio, que, até 1876, pertencia a Monte Alto,
sendo depois anexada a Caetité. Presume-se que a localização da freguesia entre as duas
cidades, aliada à ao fato de ser próxima do caminho para a província de Minas Gerais,
constituía bom lugar de disfarce e invisibilidade na realização das transações comerciais.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de notas. Cx: Século XIX, 1880.
150
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de notas. Cx: Século XIX, 1880.
151
160
Grandes traficantes de escravos, inclusive, tinham residência fixa nessa freguesia, a exemplo
de João José de Farias e Leolino Ribeiro e Silva.
Na Freguesia do Gentio, o vendedor Honorato Pereira de Castro outorgou, em
escritura pública, ao comprador Theóphilo Monteiro de Magalhães, a venda da escrava
Sancha, apta para o serviço de lavoura, pelo preço de Rs. 400$000, acompanhada de duas
ingênuas de nomes Emília e Christina152. O auge do tráfico para o sertão baiano foi na década
de 1870, que coincidia também com a implementação da Lei de 1871, o que ampliou as ações
de escravos na Justiça em busca de suas manumissões e da garantia da continuidade dela, face
às ameaças de senhores trapaceiros na tentativa de rescindir alforrias duramente conquistadas.
Como se pode notar, e que é asseverado por Ricardo Tadeu Caires Silva, o tráfico
interno “causou nos escravos enormes sequelas físicas e, sobretudo, psicológicas, na medida
em que estes eram retirados do convívio de seus parentes e familiares e obrigados a
reconstruir suas vidas em outras paragens” (SILVA, 2007, p. 126). O tráfico não só
desestabilizou arranjos familiares existentes, como qualquer condição de “práticas de
dominação específica”, adquiridas no interior das relações costumeiras com senhores, por
meio de negociação ou resistência e, que, de certa forma, impuseram alguns limites à política
de domínio senhorial (CHALHOUB, 2012, p. 259).
Para Robert W. Slenes (2004), ao tempo em que a família servia aos interesses
senhoriais, diante do aumento da posse cativa, ela poderia contrariar tais perspectivas com a
ampliação das redes de parentesco, compadrio e solidariedade, garantindo certo espaço de
mobilidade social e maiores chances de auferir a alforria. Se escravos foram vendidos e
arrancados da convivência familiar, outros permaneceram e fortaleceram laços de identidade
com companheiros de cativeiro.
No que se refere ao casamento legitimado pela Igreja, esse pareceu ser mais
significativo em médias e grandes propriedades, embora não ficasse descartada a
possibilidade de cativos de pequenos senhores contraírem o matrimônio religioso, já que o
casamento constituía meios de assegurar vantagens individuais, alcance da alforria e de
outras formas de inserção social. Alex Andrade Costa (2016, p.123/124) aponta que havia nas
pequenas propriedades pouca incidência, devido a dois fatores possíveis: desequilíbrio da
razão entre os sexos e estratégias dos senhores em evitar casamentos de escravos entre
propriedades variadas “com o objetivo de resguardar futuros negócios.” Apesar de o autor
analisar uma região com características diferentes das de Monte Alto, as diminutas uniões
152
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884), f. 19 e v.19,
1879.
161
153
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
1841. Maço 06.
162
para dividir entre seis herdeiros: Manoel, 24 anos, crioulo, avaliado em Rs. 350$000,
mantinha união com Maria, africana, Rs. 350$000, de 18 anos. Desse casal nasceram duas
crianças: Balbina, crioula, 01 ano, e Justina, crioula, 02 meses, evidenciando união estável
desmantelada no momento da morte dos senhores. Havia ainda a prática de dotes, distribuídos
entre filhos, quando casassem, e a arrematação desses escravos para o pagamento de dívidas
deixadas pelo falecido.
Jonis Freire, estudando famílias escravas de três grandes senhores da Mata Mineira
oitocentista, afirmou:
O ato da partilha dos bens de um proprietário foi, sem dúvida, um dos
momentos que mais causou expectativas e tensões para os escravos e suas
famílias. A possibilidade de esfacelamento dos laços consanguíneos e
fictícios sempre presentes chegava ao seu ápice no momento da morte de
seus senhores, quando os cativos se deparavam com aquilo que eles temiam
muito: a venda para um dono novo e desconhecido (FREIRE, 2010, p. 14).
Para o autor, o tamanho da posse cativa interferiu na estabilidade familiar dos escravos,
e, costumeiramente, a morte de um senhor podia ou não gerar tensões nas negociações por
permanência junto aos familiares. Entretanto, entre pequenos senhores, muitas dívidas
ficavam pendentes, levando os herdeiros a venderem os cativos, arrematarem-nos para o
pagamento de dívidas ou repartirem entre si. Havia outras negociações internas em que
cativos de pequenos senhores eram vendidos para grandes senhores, com a finalidade de
serem pagas as dívidas contraídas.
Nesse caso, alguns desses escravos poderiam permanecer na mesma localidade, sem
perder o contato com seus antigos companheiros e, presumivelmente, adquiriam uniões com
livres, mas a venda de um escravo de pequeno senhor para um grande senhor não significava
garantias de permanência na propriedade, dado o envolvimento desses grandes proprietários
com firmas especializadas no tráfico interprovincial e, como dito anteriormente, era comum
repassarem esses cativos a preços superiores aos valores adquiridos. Por exemplo, no ano de
1872, o Capitão João Pereira de Mesquita teve seus pequenos bens arrolados no valor de
Rs. 2: 175$000, sendo que o maior valor do patrimônio era investido em oito escravos em sua
propriedade. Conjectura-se que esse senhor passou por dificuldades financeiras e, no final da
vida, deixou parcos recursos. O título de capitão sugere que ele não era tão pobre assim em
anos anteriores ao seu falecimento.
Ao registrar o espólio do falecido, a inventariante Adélia Carolina de Freitas Mesquita
justificou ter vendido alguns bens para pagamento de dívidas que existiam antes do
inventário: uma casa situada na Rua do Conde d´Eu, naquela vila, 10 burros, 4 cavalos, alguns
163
acessórios da casa e algumas joias de ouro e prata. Justificou, ainda, a venda dos seguintes
escravos: Roque, vendido para o grande proprietário da Fazenda Cajueiro, Faustino Moreira
Castro, para pagamento de dívidas contraídas, o escravo Bernardo, vendido para o Capitão
Joaquim Pereira de Souza Costa, e o escravo Cândido, entregue a João de Barros, também
para quitar dívidas.154 Os demais escravos ficaram sob o poder da inventariante, por esta não
ter herdeiros e apenas o cativo Moisés, crioulo, de cinquenta anos, foi alforriado por
recomendação do falecido.
Quadro 10 – Escravos que permaneceram com a herdeira Adélia Carolina de Freitas Mesquita -1872
Os escravos que ficaram com a inventariante do Capitão João Pereira de Mesquita não
resultaram de uma escolha aleatória, tratava-se de cativas mulheres, em idade reprodutiva e
que poderiam lhe render um bom negócio no futuro, a exemplo da cativa Dionísia, cabra, de
38 anos de idade e mãe de dois escravinhos, Juliana, crioula, cinco anos, avaliada em
Rs. 225$000, e Estanislão, crioulo, três anos de idade, por Rs. 250$000. Havia ainda a escrava
Joana, de três anos, avaliada por Rs. 50$000 e que sofria de Sífilis, situação que a colocava
em valores bem abaixo dos estipulados para os demais escravos crianças; presume-se que a
referida escrava era filha de outra escrava da inventariante. A fonte permite elucidar, ainda, as
profissões das cativas voltadas a diversos afazeres domésticos, como cozinhar, engomar,
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Série: Inventário de Capitão João Pereira
154
de Mesquita, 1872.
164
lavar, e para todo o serviço diário da rotina do pequeno sítio, bem como a relevância da
mulher escrava na localidade e as múltiplas pluralidades de modelos familiares.
Acerca desta questão, Sheila de Castro Farias, pontua que o casamento legitimado não
era acessível somente à elite branca e que estudos da historiografia brasileira mais recente
encontraram número considerável de crianças livres e libertas, com registros de batismos e
pais casados, fogos chefiados por mulheres e forte presença de concubinato, relativizando e
desmistificando, assim, a noção do casamento e da família extensa como modelos que
caracterizavam somente as elites brasileiras (FARIA, 1997, p. 255-256). Para a autora, os
escravos encontraram condições possíveis de organização social dentro e fora do cativeiro,
pluralizando as noções de família através de grupos variados de origem étnica.
Esses escravos que não caíram na malha do tráfico tiveram seus destinos, às vezes,
partilhados por meio de heranças ou dotes, levando-os a pertencer a outro dono, situação que
não o fazia perder o contato direto com os antigos companheiros, ou manterem-se
geograficamente próximos a parentes e amigos. Assim, as relações de proximidade, amizade e
solidariedade se estendiam a escravarias de propriedades diferentes, tendo a família e o
compadrio importantes vínculos no fortalecimento desses laços. Em Monte Alto e cidades
vizinhas, o comércio de cativos impactou, e muito, os arranjos familiares e, sem sombra de
dúvidas, grandes, médios e pequenos proprietários se envolveram diretamente com essa
atividade, daí, aqueles escravos pertencentes a senhores de pequenas posses sempre levarem
desvantagens na hora de negociar a sua permanência, embora essas relações não deixassem de
existir.
Escravos africanos e crioulos nascidos aqui logo se inseriam nas atividades das
fazendas, demarcando espaços de conquistas, hierarquias e organização familiar. Muitos
sabiam que suas vivências por aquelas fazendas podiam ser passageiras, dado o intenso
comércio via tráfico, crises financeiras, secas, estiagens prolongadas e partilha dos bens que,
volta e meia, desestruturavam qualquer tipo de organização montada no cativeiro. Em meio a
tais circunstâncias, deixaram registros de suas experiências de vida coletiva e individual,
reconstituindo laços de fortalecimento entre si e os seus, mesmo que os limites impostos pelos
senhores deixassem marcas indeléveis a vidas de muitos escravos, valendo isso para cativos
de grandes, médias ou pequenas propriedades.
No ano de 1872, inventariaram-se os bens de Dulino Correia de Lacerda, morador do
Sítio Jatobá, com uma casa velha e mobília simples. Na descrição dos bens feita pela viúva
inventariante, D. Dolina Teixeira de Camargo, constaram uma casa de morada, algumas
ferramentas, dívidas contraídas e a posse de cinco cativos: Maria Rosa, crioula, 35 anos,
165
Rs. 500$000, serviço doméstico, e seus filhos, Eduardo, crioulo, 6 anos, Rs. 400$000,
Domingas, crioula, 4 anos, Rs. 250$000, Hylaria, crioula, 2 anos, Rs. 120$000, e Mathildes,
crioula, Rs. 200$000. Apesar das dívidas contraídas e da partilha dos bens entre os herdeiros
do casal, os órfãos Luiz, Balduíno, Deslisando e Generosa, a família cativa permaneceu sob a
posse da viúva Dolina Teixeira de Camargo.155 Nesse cenário, que compunha o cotidiano dos
escravos, é possível que a senhora Dolina Teixeira de Camargo tenha preservado a família
cativa para fins de melhor desenvolver as atividades agrícolas em sua propriedade, já que
preferiu entregar outros bens de valor aos herdeiros, sabia também que a reprodução natural
dos cativos poderia lhes render lucros. No caso, a cativa Maria Rosa, com quatro filhos, sem a
presença de cativos homens naquela propriedade, indica que ela mantinha relação consensual
com parceiros de outras propriedades.
Assim, escravos de pequenos proprietários, como João Pereira de Mesquita e Dulino
Correia de Lacerda, pareciam não ter tantas opções na escolha de companheiros para manter
uniões estáveis ou consensuais, dentro de uma mesma propriedade se comparado às grandes e
médias fazendas, mas esses homens e mulheres escravo(a)s buscaram parceiros fora da
propriedade de seu senhor, inferindo redes de relações constituídas, em sua maioria, com
livres e forros. Nesse sentido, Robert W. Slenes (2010) notabilizou que se a casa grande
convergia parte das relações estabelecidas com seus cativos para interesses próprios, estes
desfrutaram também de vantagens, que incentivaram a identidade individual e coletiva,
inclusive ao aderir à instituição familiar.
Luizina comprou a alforria bem antes de a sua senhora, Anna Domingues de Almeida,
falecer e, mesmo com a carta em mãos, continuou morando na propriedade, ao lado da filha,
de nome Maria, cabra, fruto de relação consensual. Luizina, crioula, tinha 24 anos, avaliada
em Rs. 300$000, e pertencia a Anna Domingues de Almeida, proprietária de oito cativos, com
um monte-mor concluído no ano de 1844, avaliado em Rs. 2: 638$000. Quando sua senhora
morreu, deparou-se com situação típica de outros escravizados em propriedades de Monte
Alto: geralmente, herdeiros ignoravam a alforria de ex-escravos no ato de partilha dos bens
patrimoniais, reinserindo-os no cativeiro. Em 1848, ela foi entregue ao comendador Antônio
155
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários.
Inventariado: Dulino Correia de Lacerda, Maço 23, 1872.
166
Botelho de Andrade, provavelmente para pagamento de dívida deixada pela falecida. Esse
senhor era um rico proprietário e negociante da região, pai de Antônio Botelho de Andrade
Júnior e Ezequiel Botelho de Andrade, traficantes de escravos e donos da Fazenda Lameirão,
quando contraiu matrimônio com D. Antônia Barbosa de Andrade. Ezequiel era aquele senhor
que enfrentou disputas judiciais com a escrava Inez, apresentada no primeiro capítulo desta
tese.
Na Fazenda da Serra do Tanque, a pequena proprietária se dedicava à criação de
quarenta cabeças de gado vacum e à produção agrícola. Em 1844, quatro dos cinco cativos
arrolados eram responsáveis pelo trabalho nessa propriedade. Após o falecimento de Anna
Domingues de Almeida, os cativos foram divididos entre os herdeiros da seguinte maneira:
Procópio, crioulo, 20 anos, Rs.400$000, Domingas, crioula, 15 anos, Rs.300$000, e Fabiana,
crioula, 23 anos, Rs.300$000, ficaram sob a posse do viúvo Francisco José do Amaral. À
herdeira Lina foi dada a escrava Luizina, crioula, 24 anos, Rs.300$000; ao herdeiro
Bernardino, o escravo Ricardo, 5 anos, Rs. 200$000; à herdeira Maria Madalena, a cativa
Marcolina, crioula, 2 anos, Rs. 180$000; à herdeira Jesuína, o escravo Irineu, crioulo, 02
meses, Rs. 50$000; e à herdeira Maria, a escrava Venância, 6 anos, Rs.260$000.
No decorrer do processo, já em 1848, o inventariante declarou o nascimento de mais
quatro cativos: Maria, cabra, filha de Luizina, que se achava forra, Rozinda, crioula, 3 anos,
Benjamim, crioulo, 2 anos, Irina, 1 ano, e Eugênia, 1 mês, filhos da escrava Fabiana,
presumivelmente frutos da relação com o escravo Procópio. Nota-se que os cativos em idade
adulta, Fabiana e Procópio, ficaram sob a posse do viúvo, talvez por manterem relação estável
e em condições de reprodução natural, o que poderia, assim, ampliar sua escravaria.
Após a partilha dos bens, a herdeira Lina justificou que uma de suas escravas, de nome
Lirina, estava em condições de fuga, por isso, requeria que a escrava fosse presa em lugar
seguro, “para que impeça que se evada e que não fique em prejuízo”. Ainda em 1848, Lina
viu-se novamente em situação de prejuízo, visto que a escrava Luizina, recebida como
herança, já havia sido alforriada antes da morte de sua mãe, Anna Domingues Almeida.
Contudo, Lina depositou a escrava Luizina sob o poder do Comendador Antônio Botelho de
Andrade, para pagamento de dívida contraída.
O inventariante, Francisco José do Amaral, reclamou que a referida escrava tinha sido
liberta e, quando o juiz avaliou o caso, constatou a alforria de Luizina, anulando um ano
depois, em 1849, o depósito da escrava já em mãos de Antônio Botelho de Andrade. E para
compensar o prejuízo da herdeira Lina, valeu-se de outros escravos nascidos no Sítio Tanque
da Serra, após a abertura do inventário. Era o auge do tráfico interprovincial e, certamente, os
167
herdeiros, diante dos parcos recursos deixados pela falecida, viam na partilha dos cativos
meios de ampliar o patrimônio. A tentativa de quebrar o acordo realizado entre Luizina e sua
senhora, ainda que a liberta tivesse pagado pela sua alforria, denotou a vulnerabilidade e
precarização das alforrias em Monte Alto. Além do alto custo realizado pela escrava para
amealhar o pecúlio, tivera que deparar com situação embaraçosa: o risco de perder a
manumissão, conquistada a duras penas.
A história de Luizina aconteceu entre o final do ano de 1849 e início de 1850,
momento da proibição do tráfico atlântico, quando a região do Alto Sertão da Bahia vivenciou
a continuidade da força da escravidão mediante o tráfico inter e intraprovincial, situação que
despertou maiores ambições de lucro por parte dos senhores escravistas, tornando a conquista
da alforria mais difícil. Entretanto, alguns cativos conseguiram êxitos nas negociações com
seus senhores ou nos tribunais, quando estes não cumpriam os acordos estabelecidos por meio
do direito costumeiro. Todavia, é preciso destacar que o tráfico interno, sem sombra de
dúvidas, interferiu e muito no acesso à alforria, principalmente entre escravos de pequenos
senhores. As secas nas décadas de 1850 e 1860 provocaram queda brusca de produção
econômica no sertão, sendo os pequenos proprietários os mais atingidos com esse problema.
Com poucos recursos, não conseguiam superar os momentos de crise e, como o mercado de
escravos estava em alta, não hesitaram em se desfazer de seu “bem mais valioso”, o cativo.
Esses senhores contraíam muitas dívidas com médios e grandes senhores, hipotecavam seus
cativos como garantia do pagamento e, quando morriam, era preciso levar os cativos a leilões,
ou eram dados como pagamento das dívidas a credores. Daí, a dificuldade para a aquisição da
alforria em Monte Alto, principalmente para escravos de pequenos e médios senhores.
O tráfico interferiu de forma violenta nas vivências escravas e, consequentemente, no
acesso às manumissões. Diante de contextos difíceis como esse, os escravizados envidaram
esforços redobrados para fazer valer seus desejos. Além de contar com a dificuldade de juntar
pecúlio, muitos deparavam ainda com a negação da conquista por parte de seus senhores, o
que provocava embates jurídicos e tensões no âmbito das propriedades. Soma-se a essa
questão a escassez de pequenos senhores em adquirirem cativos mediante o tráfico
clandestino, após 1850, o que deve ter interferido na manutenção da posse escrava, visto os
altos preços e as parcas condições financeiras, sendo penosa a concorrência com senhores
mais afortunados.
Porém, mesmo diante de todas essas dificuldades, observa-se, para Monte Alto, que a
posse escrava foi substancial nos assentamentos de bens contidos nos inventários. Ao que
pareceu, a posse cativa atingiu a todas as camadas sociais e era símbolo de distinção social, ao
168
Conforme Thompson (1998, p.89), “o costume vigorava no contexto de normas e tolerância sociológicas.
156
Vigorava igualmente na rotina cotidiana de ganhar o sustento. Era possível reconhecer os direitos costumeiros
dos pobres e, ao mesmo tempo, criar obstáculos ao seu exercício.”
169
alforria favorecia o senhor, visto que ele não perderia o investimento feito com o escravo; por
sua vez, o ato de pagar significava e muito para o escravo, pois era evidente que, ao juntar
pecúlio, alcançava a condição de negociar a liberdade, demonstrando habilidades e estratégias
de vida naquele momento. A ameaça do retorno ao cativeiro era sempre uma situação
embaraçosa, colocando em risco a vida e projetos de muitos escravizados e libertos. Como diz
Victor Santos Gonçalves (2017, p. 173), a “zona entre a escravidão e a liberdade foi marcada
pela incerteza social da sociedade brasileira oitocentista”. Nesse sentido, a escravidão tinha
limites além da legalidade, pois as populações negras e libertas conviviam sempre com o
fantasma do retorno ao cativeiro e de um Estado omisso e fiador da propriedade escrava.
Tudo isso colocava em perigo “a liberdade limitada” e precária (GONÇALVES, 2017).
Foram intensas as lutas e estratégias de escravizados em Monte Alto, na tentativa de se
verem distantes do cativeiro, principalmente a partir de 1840, quando o tráfico interprovincial
garantiu a continuidade da escravidão no sertão baiano, despertando nos senhores lucros e
ambições pessoais de enriquecimento. Por isso, as lutas constantes dos cativos não só para
obter o alcance à alforria como para assegurar o direito à continuidade dela.
Outra característica dos modos de alforriar entre pequenos senhores diz respeito às
relações de afetividade, embora não tão explícita nas cartas ou inventários. A comoção na
hora da morte poderia levar senhores a conceder alforrias a cativos, o que, mais tarde, geraria
tensões entre os herdeiros. Quando José Temothio Ferreira dos Santos faleceu, deixou um
monte-mor avaliado em Rs. 2: 807$420, oito cativos para serem divididos entre a viúva, um
filho menor e mais duas pessoas citadas em testamento: João Pereira Teixeira e o Comandante
João Caetano Xavier da Silva. Na hora da morte, declarou em testamento que, se o filho
menor morresse, os bens deixados seriam repartidos entre os escravos, concedendo-lhes a
alforria. Declarou que já havia concedido alforrias quando sua primeira mulher faleceu, a
pedido dela, e outra alforria a pedido do seu pai, e deixava também livre a escrava Allana,
africana, 50 anos de idade, avaliada em Rs.100$000, e Justiniano, cabra, 60 anos,
Rs. 120$000, “machucado de um lado do rosto”. Os demais escravos foram vendidos em
leilão: o escravo Joaquim, africano, 60 anos, e a escrava Custódia, crioula, 25 anos, avaliada
em Rs.400$000, por esta apresentar “condições de fuga” e por temer que o menor ficasse em
prejuízo.
Essas ações de comoção gerariam mais tarde, quando da abertura do processo de
partilha dos bens entre herdeiros, questionamento sobre a veracidade das alforrias, ao ponto
de se tentar retorná-los ao cativeiro. A morte de um senhor de pequenas posses e o
endividamento geraram instabilidade na vida dos cativos, visto que, em algumas situações, os
170
credores exigiam que o mínimo do patrimônio existente fosse leiloado em praça da vila de
Monte Alto, com a finalidade da quitação das dívidas contraídas em vida.
O exemplo nos remete, ainda, a pensar sobre a interferência senhorial no destino dos
cativos, de modo que, mesmo na hora da morte, a expectativa de uma política paternalista
estava sempre explícita ou implícita no ato de consecução da alforria. Termos como “pelos
bons serviços prestados”, “como se do ventre livre nascesse”, “remuneração dos serviços
prestados” expressavam um ato de doação, comoção, mas também de domínio e prevalência
da vontade senhorial. Para receber alforria nessas condições, era preciso uma relação de
fidelidade mútua entre senhor e escravo e nem sempre os escravos eram respeitados pelos
herdeiros, após a morte do falecido. Nessas condições, Simony de Oliveira Lima, estudando
alforrias de escravizados entre pequenos senhores, em Carinhanha, região vizinha de Monte
Alto, também constatou:
Como a prática da alforria se desenrolava em âmbito privado, cabia ao
senhor decidir sobre a concessão ou não do pedido de liberdade. Dessa
forma, os cativos, juntamente àqueles que os assessoravam na escrita dos
pedidos de alforria, utilizavam de argumentos que evidenciavam o
paternalismo presente na relação senhor-escravo. Destacando, também, o
lugar de submisso que o escravo deveria exercer perante o seu senhor, aquele
a quem deveria dispensar respeito e gratidão. Essa foi uma das alternativas
utilizadas, no entanto, é preciso destacar que outras estratégias foram
adotadas e muitos dos processos judiciais movidos por escravos com vistas a
alcançarem a liberdade comprovam essa questão (LIMA, 2017, p. 148).
„de me servir durante minha vida e depois de finda essa, servir também a
meu filho e Reverendo Alexandre da Silva Leão por tempo de dez anos
sucessivos, que serão contados da data de meu falecimento à completar-se o
tempo declarado, ficando porém à vontade do dito filho, ser ou deixado de
ser completados, os dez annos marcados por mim para a dita escrava servi-
lo‟.
Nesse caso, a negociação ou imposição por parte dos senhores eram uma constante na
vida dos escravos, revelando abuso na relação estabelecida nos momentos das concessões e,
de certa forma, “o estatuto jurídico coadunava com essa classe senhorial no procedimento de
acumulação de propriedade ilegal” (CHALHOUB, 2012, p.229). Essa situação de
complexidade e de precarização das alforrias ocorria com maior frequência com senhores de
pequenas posses. Nesse caso, era preciso uma “boa” relação existente entre as duas partes
para que a alforria fosse alcançada. E isso vale até para as manumissões compradas, posto que
as relações de pequenos senhores apresentavam caráter menos disciplinador se comparadas às
de grandes proprietários. Para Victor Santos Gonçalves:
inventário de Maria Teresa, em 1849, cuja riqueza atingiu o modesto valor de Rs. 1: 049$000,
além de parcos bens, foram arrolados no espólio oito escravos. Destes, Nicolau, 20 anos,
avaliado em Rs. 150$000, e Faustino, 22 anos, avaliado em Rs. 160$000, foram destinados ao
pagamento de dívidas158.
Vale ressaltar: o argumento de que cativos de grandes e médias fazendas recorriam a
negociações em busca de alforria e constituição de famílias, com maior êxito, não isenta
perceber que, no termo de Monte Alto, entre os pequenos senhores, com posse de um a dez
escravos e faixa de riqueza de até Rs. 1: 000$000 a Rs. 5: 000$000, as negociações também
não existissem. Para escravo de senhor de pequena posse, os inventários denunciam algumas
tensões conflituosas entre herdeiros e a vulnerabilidade desse senhor em desfazer-se de seus
cativos com maior frequência, principalmente nos momentos de crises financeiras, deixando
sempre pendências de dívidas a credores em praça pública.
Há, nos livros de notas de Monte Alto, outro caso, semelhante ao da liberta Lirina:
herdeiros recorrendo à Justiça na tentativa de revogar a carta de alforria de escravos, que os
considerava bens de herança. Na procuração, davam todos os poderes, ou substabeleciam aos
procuradores para reverter a carta de alforria adquirida, conforme segue: no ano de 1882,
última década da escravidão, compareceram ao cartório do termo de Monte Alto os senhores
de nome Bibiano de Souza Brito e Antônio de Souza Brito, outorgando procuração a cinco
procuradores com o seguinte teor:
[...] „aos quais concedem todos os poderes em direito permitidos para que
defenderão o direito dos mesmos outorgantes em todos as causas cíveis,
commerciais ou crimes, especialmente para qualquer dos seus ditos
procuradores possa perante o juízo competente propor a ação de nulidade
da carta de liberdade passada clandestinamente aos escravos Tiburtino,
Galdino, David, Desidério, Francisco, Luzia, Rosa pertencentes aos
outorgantes e a sua irmã Maria Clara de Anunciação como únicos filhos
legítimos e herdeiros de sua finada Mae Dona Maria Luiza da Conceição e
reduzir os mesmos escravos a escravidão, em que desde nascidos
viveram, podendo seus procuradores por ellles substabelecidos,
empregarem para este fim todas e quaiquer recursos em direito
permitidos, aggravar, allegar, suspeição, appelar, fazer seguir a
apellação, jurar, processar os autores e testemunhas da referida cartas,
e quaisquer pessoas que tenhão concorrido para o acto de tal alforria
clandestina, de que tenha dado origem a mesma: protestar e tudo
assignar e seguir até mais alçada; para o que lhes concedem todos os
poderes [....]159.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventariado: Maria
158
Mesmo que a senhora tivesse concedido a alforria aos cativos, por motivos quaisquer
que fosse, havia sempre o perigo de esses mesmos senhores ou herdeiros desfazerem de suas
decisões, reconduzindo à condição de escravizados. No exemplo acima, é possível que a ação
conjunta dos escravos contasse com a ajuda de alguém que conhecia os trâmites da Justiça
para a elaboração da carta de alforria coletiva. No livro de notas de Monte Alto, consta a carta
dos escravos alforriados passada por D. Maria Luíza da Conceição, que seria a mãe dos
herdeiros, uma pequena proprietária com monte-mor declarado em Rs. 4:761$000.160 O
documento sugere que não havia motivos para que a carta fosse considerada “clandestina”.
Por que, então, o registro da carta no cartório? Quem concedeu essa carta? O oficial estaria,
nesse caso, também envolvido na ação?
A procuração, além de contraditória, demonstrou que os herdeiros não concordaram
com a atitude de sua mãe em conceder alforria aos escravos, refutando dúvidas quanto ao fato,
e, pelo que se procedeu, souberam muito bem disfarçar para o tabelião sobre os envolvidos no
processo da alforria.
É evidente, ainda, a maneira meticulosa com que o cartório elaborou a procuração, de
forma que o texto repassasse poderes ilimitados aos procuradores para localizar os escravos
libertos e retorná-los ao cativeiro, confirmando as assertivas de Sidney Chalhoub (2012), de
que muitos escravos libertos eram confundidos e levados de volta à reescravização. Por sua
vez, a ação dos cativos foi bem pensada e elaborada para que não deixasse pista, daí, o
desespero dos senhores e a relutância nos tribunais. Ao recorrerem à Justiça, outorgaram
procuração a cinco procuradores para empreender caçada aos escravos, recurso difícil de ter
dado certo, pois era comum cativos fugirem em massa para quilombos à beira do Rio São
Francisco ou para outros lugares que garantissem certa segurança e evitar retorno ao cativeiro.
Essas ações dos herdeiros mostram o quanto senhores resistiram à abolição da escravatura e
não mediram esforços para retornar ex-escravo ao cativeiro.
O objetivo ao vender os ingênuos, que acompanhavam as mães, era evitar maiores
despesas, já que essas crianças, nascidas após a Lei do Ventre Livre, ficariam a cargo de seus
senhores, pois, ao completarem oito anos, facultava-se em lei a prestação de serviços entre
oito e 21 anos. Na verdade, era um hábito recorrente dos senhores utilizarem esses serviços
em benefício próprio, inclusive vendendo-os juntamente com suas mães, explicam Keila
Grinberg e Sue Peabody (2013). A vida dos escravos tornou-se ainda mais precária com o
incremento do tráfico interno elevando as tensões sociais entre senhores e escravos nos
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariada: D. Maria Luiza da
160
Conceição, 1860.
174
total eficácia da Lei de 1871, no termo de Monte Alto, tendo em vista a ação de nulidade
movida pelos herdeiros de Dona Maria Luíza da Conceição para “reduzir os mesmos escravos
à escravidão, em que desde nascidos viveram”. Mesmo diante do estado precário da liberdade
com que se depararam os cativos em e após a conquista de direitos, eles empreenderam ações
individuais ou coletivas na busca por direitos na instância da Justiça, ações essas que,
progressivamente, tinham a finalidade de fragilizar, de maneira gradual, a escravidão e a
política de domínio senhorial. Ricardo Tadeu Caires Silva (2000) não hesita em dizer que os
escravos foram à Justiça em busca de liberdade e não raro tiveram que enfrentar a arrogância
de seus senhores, apesar da proteção da lei. Mesmo sob a pressão das leis emancipacionistas,
é possível verificar, na documentação analisada, a continuidade do trabalho cativo na região
até os últimos anos da escravidão. A manutenção da posse foi preservada por senhores na
garantia de utilizar os ex-cativos em trabalhos de diaristas, agregados e/ou por meio de
contratos a preços irrisórios. Em Monte Alto, o inventário de Antônio Rodrigues de Souza,
no ano de 1889, portanto após a abolição, por intermédio de uma ação na Justiça, movida
pelos herdeiros dos bens do falecido, demonstrou, no ato da prestação de contas, a trajetória
de muitos indivíduos livres e as relações constituídas entre os diferentes sujeitos sociais:
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
161
Podemos, assim, dizer que os sujeitos sociais de Monte Alto compunham-se de gente
como escravos, libertos e livres, e, embora houvesse espaços demarcados na composição
social e uma relação de deferência entre subalternos e senhores, escravos, libertos e livres
pobres se inseriram na dinâmica social e econômica da região, resistindo e se acomodando aos
contratempos de suas vivências.
E o que pensar dos cativos, libertos e livres pobres que viviam nas roças? Esses
indivíduos também constituíam redes de relações pela sobrevivência, pautada em situações de
acomodação ou de resistência, a depender das necessidades e lutas diárias. Escravos e livres
pobres dividiam tarefas e rotinas da vida, assim como vivenciavam tensões conflituosas,
condição inerente a qualquer sociedade, fosse rural ou urbana. “Não se pode pensar em
ausência de conflitos em sítios ou roças menores; as tensões foram inerentes à sociedade
escravista, que gerou, por isso mesmo, necessidades de dinâmicas mediações” (PIRES, 2009,
p. 207).
Nos espaços de trabalho, as redes de relações constituídas entre escravos, libertos e
livres pobres mostraram articulações na lida dos roçados, no plantio, na busca do gado, no
pegar água, lenha, cortar madeira, tirar o leite, em atividades de caça, nos alambiques, no
fabrico artesanal, dentre muitas outras atividades que faziam parte do cotidiano rural. Por
outro lado, as vicissitudes do dia a dia, principalmente em relação à carência de alimentos,
poderiam ocasionar conflitos e tensões entre aqueles indivíduos. As dificuldades de acesso à
terra, a falta de aguadas e de espaço para cultivar seus mantimentos motivavam, às vezes,
disputas acirradas, importantes à sobrevivência pessoal e familiar.
Nesse sentido, a historiografia tem demonstrado inúmeros casos de escravizados,
libertos e livres pobres atuando na luta pela sobrevivência, sendo necessário, em alguns
momentos, deparar com situações tensas para preservar o mínimo de limite conquistado,
178
afirmam Maria Cristina Cortês Wissenbach (1998), Walter Fraga (2014), Maria de Fátima
Novaes Pires (2009), Alex Andrade Costa (2016), Maria Odila Silva Dias (1998) e Maria
Helena P. T. Machado (1987). Um caso envolvendo tensões entre escravos e livres ocorreu no
ano de 1853, quando Antônio Pereira Pinto, livre pobre, acompanhado de sua mulher e de
uma sobrinha, entrou numa roça para furtar mandioca, sendo os três logo repelidos pelo
escravo Venâncio, que vigiava a roça e desferiu mortalmente uma facada em Antônio Pereira
Pinto.
Em seguida, o escravo foi capturado e preso162. A atitude de defesa do cativo
Venâncio demonstrou que ele se dedicava, em horários noturnos, a proteger a propriedade de
seu senhor e evitar que alheios lhe furtassem algo. Possivelmente, Venâncio adquiriu, nas
relações constituídas com seu senhor, o direito de plantar para si e criar algumas reses, prática
muito comum nas relações senhor-escravo em Monte Alto. O senhor permitia ao escravo
plantar uma roça e amealhar pequena economia, costume que ampliava as chances de angariar
recursos para a compra da alforria pessoal e de seus familiares.
Não se sabe se a roça de mandioca vigiada por ele era do próprio escravo, nem a qual
senhor o cativo pertencia; a esse respeito, a correspondência policial nada mencionou,
entretanto, pelo horário de trabalho e pela atitude de Venâncio, tudo indica que a roça era
mesmo dele, conquistada com muito esforço, ao ponto de virar a noite vigiando-a para evitar
prejuízos. Certamente, o cativo contava com aquela colheita para angariar alguns pecúlios e
negociar a sua alforria. Muitos escravos do sertão exerciam funções no serviço de lavouras e,
em alguns casos, trabalhavam também para si, quando o senhor o permitia.
Não era à toa o sacrifício de Venâncio em vigiar sua roça de mandioca, porque sabia a
importância que a pequena economia tinha para complementar seu sustento, comercializando
o excedente. O ato de vigiar roças durante a noite também foi apontado por Maria de Fátima
Novaes Pires (2009, p. 222) quando estudou Caetité e Rio de Contas, mostrando como esse
costume fazia parte da luta pela sobrevivência e da precária condição de vida entre escravos,
libertos e pobres livres:
162
APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província (1849-1854), n. 5689.
179
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Processo-crime.
163
Autuação: Severiano José da Costa Farias e Ignácio Rodrigues Nogueira. Documento não catalogado. 21 de
outubro de 1887.
180
A pequena vila de Monte Alto, em fins do século XIX, continuava sendo um lugar em
que moradores pareciam conhecer uns aos outros. A aproximação era comum, ao ponto de
chamarem-se por apelidos, traços físicos, insultos nos hábitos pessoais, na identificação de
parentescos, pelo nome, sobre o que faziam e se eram do lugar, conforme o teor do
documento acima: “João de Lulu”, “Ludgero afilhado de Ignácio”, “capitão Pacífico José de
Lima” e assim por diante. Escravos, forros e pobres livres estavam inseridos na dinâmica da
vila e conforme as formas de tratamento, por apelidos ou provocações, como ocorreu com
Severiano, de ter sido insultado como “negro sem vergonha”. A cor da pele e a condição
econômica determinavam a hierarquia social daqueles indivíduos, entretanto, não impediam
que eles circulassem por espaços diversos e almejassem maior mobilidade social, ainda que
precária.
A fonte documental que segue, no desenrolar deste texto se refere a um processo-
crime que trata da desavença entre Ignácio Roiz Nogueira, sapateiro, 21 anos, casado, filho de
Theodório Roiz Nogueira, oficial de justiça, natural e morador da freguesia de Monte Alto; e
Severiano José da Costa Farias, 42 anos, casado, operário, natural da freguesia, filho de
Francisco José Martins, que “vive de viagem”.164 O crime ocorreu no ano de 1887, véspera da
abolição da escravatura. Houve troca de palavras ofensivas entre os envolvidos, tendo como
desfecho um golpe de faca desferido por Ignácio em Severiano e, segundo as testemunhas,
“não sendo pior porque os companheiros a tomaram”. A troca de palavras se deu porque
Deoclídio Pereira Castro perdera uma faca, e esta foi encontrada por Severiano, que ficou
com a posse dela. Sabendo que Severiano encontrou a faca, Deoclídio mandou Ignácio ir com
outro companheiro à casa de Severiano buscar o objeto perdido. Severiano recusou-se a
devolver “faca nenhuma para canalha”, respondeu que entregaria ao próprio dono, alegando,
em outro momento do processo, ressentimentos por palavras ofensivas ditas por Ignácio.
Mais tarde, Severiano devolveu a faca ao legítimo dono e, ao sair da casa de um
amigo, circulou pela rua em que morava Ignácio, a quem chamou de canalha. Ao passar pela
casa de Ignácio, que se encontrava com outros conhecidos na calçada, foi surpreendido com
palavras de insultos, chamando-o de negro e perguntando “se tinha o atrevimento de chamá-lo
de canalha e se servia ganhar um couro”, logo investindo sobre ele. Alega Severiano que, para
se defender, deu uma cacetada em Ignácio e este o esfaqueou. Socorrido pelos amigos,
Severiano não chegou à morte, sendo preso juntamente com Ignácio, em flagrante. No
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Processo-crime.
164
Autuação: Severiano José da Costa Farias e Ignácio Rodrigues Nogueira. Documento não catalogado. 21 de
outubro de 1887.
181
depoimento prestado ao delegado, Severiano afirmou manter desavenças com o réu e que a
abordagem de Ignácio foi proposital, avançando com ofensas, chamando-o “de negro sem
vergonha”.
O exame de processos-crime é bastante usado pela historiografia brasileira,
principalmente para entender indícios das experiências concretas dos diversos sujeitos sociais,
sejam eles escravos, forros, senhores e livres. Essas experiências articulavam, de forma
dinâmica e contraditória, as mais variadas dimensões do social. Para Maria de Fátima Novaes
Pires (2003), as tensões conflituosas e cotidianas se enquadravam nas condições de vida
social por divergências e manutenção de prerrogativas, que, por sua vez, resultavam em
cursos violentos. Assim ela se expressa:
Foi em meio a insultos que Severiano e Inácio se viram envolvidos em confusão tensa,
resultando em ofensas pela condição social e de cor. Muitas testemunhas se fizeram presentes
nesse episódio do crime, eram homens casados, solteiros e um viúvo, alguns moradores da
freguesia, um da vila de Caetité e outro da vila da Barra. Em depoimento ao delegado e,
posteriormente, ao juiz, as testemunhas se identificavam como vaqueiros, comerciante,
pedreiro, lavrador, operário, artista, jornaleiro, porém, em nenhum momento, a cor deles foi
declarada, situação curiosa para esse processo-crime, já que em outros analisados ao longo do
século XIX a cor do indivíduo era registrada. Suspeito que fosse pelo fato de o conflito girar
em torno de um insulto racista, talvez as autoridades quisessem omitir esse pormenor para
camuflar tal ato, diante das pressões e leis que sinalizavam aos ouvidos os ecos da abolição.
O crime mostrou indícios do convívio social de variados sujeitos sociais na vila de
Monte Alto, em finais do século XIX, ao tempo em que fez transparecer as sutilezas da vida,
marcada por contratempos de uma sociedade violenta, arrogante e hierarquizada, deixando
evidentes “padrões de deferência social em que deviam aos brancos”, assinala Maria Cristina
Cortez Wissenbach (1998, p. 210). As camadas subalternas, como escravos, forros e livres de
cor, deparavam constantemente com insultos sobre a sua condição social e cor da pele,
destacando que os valores escravocratas estavam distantes de se desenraizarem das
182
representações sociais daquela época, tal como observou Wissenbach na província de São
Paulo:
Quem fez os ferimentos foi Ignácio, com provocações, insultando-o repetidas vezes.
Os ataques de Severiano, representados em palavras, refletiam o pensamento da maioria da
sociedade daquela época, relutando na preservação da escravatura. Severiano era negro livre
e, por estar com 42 anos, supõe-se ter sido escravo ou descendente, sabendo o quanto o
estigma da cor e da condição social importava para si e seus companheiros. Daí, resistir aos
impropérios dos insultos, às “convenções sociais” que essa mesma sociedade mediava, não se
acomodando às situações impostas, destacou Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998, p.
214).
Aspecto interessante nesse processo-crime era a forma como as relações sociais se
constituíam na pequena vila, no contexto da abolição da escravatura e, apesar de Severiano
resistir aos insultos de Ignácio, foi apreendido pelo delegado local, que declarou prisão por
flagrante. Na cadeia, Severiano se deparou com situação ainda mais complexa, isto é, por ser
réu primário e não ter cometido crime de morte, a lei permitia o direito de liberdade, caso
tivesse como pagar a fiança, mas a pobreza extrema impossibilitava-lhe tal condição. Por
isso, recorreu à estratégia de amealhar o valor para sair da prisão contando com a ajuda de
dois senhores escravistas e ricos da vila – José Barbosa Madureira e Alferes Venceslau
Antônio Lellis de Farias – conforme elucida a petição abaixo.
Noutra petição, Severiano reforçou sua condição de pobreza e pediu que fosse
abonada a taxa da fiança, não tendo, contudo, êxito no pedido. Assim, os senhores foram até o
juiz efetuar o pagamento da fiança, arbitrado em Rs.300$000. A condição de pobreza de
Severiano o levou à dependência de outros, para amealhar pecúlio e livrar-se da cadeia,
situação bastante real para muitas das populações negras que, ao saírem da escravidão,
continuavam na linha da precarização social, relativamente distinta dos demais moradores de
Monte Alto, em particular, os mais abastados.
Ainda que fosse livre, a condição social de Severiano não permitia que a resistência
fosse além. Nesse caso, optou pela linguagem da resistência e, ao mesmo tempo, das
estratégias de acomodação como mecanismos de sobrevivência. Não dá para saber o grau de
relação entre ele e os fiadores, ao arranjarem pecúlio para tirá-lo da cadeia, mas há indicativo
de que a devolução do valor do empréstimo poderia ser feita por meio de trabalho ou serviço
de favor, afeição e fidelidade. No contorno das adversidades e dificuldades, as aspirações de
Severiano pela liberdade confluíam para a dependência e supostas “benevolências” de
senhores ricos, tornando mais penosa sua condição de vida, não só material, mas também no
reconhecimento da identidade pessoal. A relação de “força e favor” ainda minava as bases
sociais daqueles indivíduos, estendendo-se por longos anos, mesmo com a abolição da
escravatura.
A análise do processo-crime induz a pensar o mesmo que Maria Cristina Cortez
Wissenbach (1998) observou para São Paulo, quando estudou crimes naquela região
envolvendo escravos, libertos e livre pobres. Para a autora, havia poucas distinções que
separavam escravos de libertos e pobres livres e mesmo os que dependiam das atividades de
ganho viviam em condições precárias. Para garantir a sobrevivência, apoiavam-se nos demais
companheiros, a exemplo de dividir as tarefas com escravos, as moradias coletivas, o
envolvimento em relações pessoais, de compadrio, de afeto e/ou de tensão. Esses negros
livres formavam juntamente com os cativos “o contingente de artesãos, de vendedores
ambulantes e, como trabalhadores braçais ou mestres, os operários das obras públicas da
cidade” (WISSENBACH, 1998, p. 53).
165
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Processo-crime.
Autuação: Severiano José da Costa Farias e Ignácio Rodrigues Nogueira. Documento não catalogado. 21 de
outubro de 1887.
184
1975, Marçal Roiz Monção, pequeno proprietário do Sítio Pé da Serra, permitiu que fosse
realizado o batismo de duas ingênuas – Cassiana, 07 anos, sendo padrinhos Norberto Bispo do
Espírito Santo e Luíza Maria, e para a outra filha, Canuta, 10 anos, convidaram como
padrinhos Emigídio da Silva Fiuza e Thereza de Jesus (Figura 10, adiante). Os pais das
batizandas eram os escravos Vicente, 50 anos, casado com Francisca, de 29 anos. O casal de
escravos teve cinco filhos e escolheu pessoas livres para abençoá-los. Supõe-se que alguns
daqueles padrinhos fizessem parte de um grupo de subalternos livres pobres na região de
Monte Alto, sendo que as relações de proximidade aconteciam em função das labutas
cotidianas pela sobrevivência166.
A Figura 10, adiante, mostra organograma referente aos escravos de Marçal Roiz
Monção.
Figura 10 – Escravos de Marçal Roiz Monção - 1875
Francisca
(preta) Vicente (crioulo)
Idade: 29 anos Idade: 50 anos
Padrinhos: Padrinhos:
Noberto Bispo Emigídio da
do Spírito Santo Silva Fiuza e
e Luiza Maria Joana Thereza de
Jesus
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/ BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863 e Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de
Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Marçal Roiz Monção, 1875.
Rastrear a vida de escravos de pequenos senhores de Monte Alto foi muito difícil,
pois, nos livros de casamentos e batismos da região mencionada fizeram constar poucos
registros de escravos desses pequenos proprietários. Para Monte Alto, o tamanho da posse
escrava influenciou, e muito, as decisões dos escravos, principalmente com referência a
uniões legítimas, batismos e escolhas dos padrinhos. Por exemplo: era mais comum que
escravos de grandes propriedades tivessem maiores chances de escolhas de seus parceiros,
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/ BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
166
dada a disponibilidade, sendo que os rituais sacramentados eram celebrados com maior
frequência nas capelas de sítios e fazendas da região, através dos atos de desobriga.
Geralmente, quem organizava o festejo religioso eram senhores de grandes propriedades, mas
cativos de pequenos senhores também transitavam nesses espaços, embora com menos
frequência, já que, para ter acesso aos rituais, era preciso a permissão de seus senhores e,
como estes não dispusessem de condições econômicas suficientes para promover a
celebração, limitavam o acesso de seus cativos à participação dos atos de proclamas.
No ano de 1861, no sítio da Pindoba, D. Maria Luíza da Conceição, pequena
proprietária – já mencionada no item sobre alforrias em pequenas propriedades, quando
concedeu a alforria coletiva aos escravos, tachadas pelos herdeiros como ato clandestino –,
permitiu que a escrava Faustina batizasse sua filha Maria, de 10 anos.167 Escolheram como
padrinhos Benedito Dias Guimarães e sua mulher Angélica Maria de Jesus. O mesmo fizera
sua outra escrava, de nome Joaquina, quando batizou Ana, com idade de 10 anos, tendo como
padrinhos João José da Silva e sua mulher, Francisca Maria de Jesus, ambos considerados
livres. Como se observa, havia relacionamentos interpropriedades entre as famílias de
escravizados, sugerindo amplas redes de relações necessárias à sobrevivência e à mobilidade
social, inclusive entre escravos de pequenos senhores. A extensão das redes possibilitava
maiores espaços de sociabilidade, “dando significados próprios aos seus projetos de vida”
(GONÇALVES, 2017).
Quanto às mães, escravas de pequenos senhores, apresentavam aparentemente maior
inclinação para filhos naturais, ou seja, filhos de mães solteiras. As uniões consensuais
prevaleciam, embora essa condição não confirme ausência dos pais. Como havia menos
possibilidades de uniões entre cativos de pequenos senhores, devido ao número reduzido
naquelas propriedades, é possível afirmar que boa parte das relações acontecia fora da
propriedade senhorial, podendo ser entre a vizinhança, com cativos de outras propriedades e
que tocavam parentescos com seus senhores ou mesmo com ex-escravos e livres pobres.
É preciso assinalar, ainda, que o comércio de escravos, no início da segunda década
do século XIX, tinha como maior alvo a procura por escravos homens, fator considerável para
pensar o significativo número de filhos naturais, apenas com a presença das mães. Contudo,
tanto em grandes propriedades como em pequenas, o número de crianças nascidas, durante a
vigência do século XIX, foi considerável e exprimiu a busca de relacionamentos não só entre
escravos, mas estendeu-se a forros e livres, dentro e fora do cativeiro. A intimidade dos
Igreja Santo Antônio – Guanambi/ BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora Mãe de
167
vida mais ampla dos núcleos familiares de escravizados. Mesmo assim, encontrou 27 uniões
legitimadas para o período estudado, os dados confirmaram vida ativa e mobilidade social dos
cativos, inclusive em uma região de intenso tráfico interno.
Com números que se assemelham aos verificados por Santana (2012), para a freguesia
de Carinhanha, os registros de batismos, em 1835, apontaram percentual elevado de crianças
escravas e libertas correspondentes a crioulos, representando 93,44% e os demais, 6,6% de
africanos, conforme análise de Simony Oliveira Lima (2017), sendo que as mães residiam na
sede da vila, em fazendas ou pequenos sítios. Constatou ainda que a maioria dos batizandos
era formada por filhos naturais, com 79,31% de registros constando apenas o nome materno, o
que significou número considerável de mulheres nos assentos, já os legítimos representavam
20,96%. A autora destacou a importância da reprodução natural na preservação da posse
escrava na região, cujos senhores lucravam, e muito, e que “as crianças poderiam permanecer
em sua propriedade até atingiram o tempo de iniciação ao trabalho, ou até mesmo serem
vendidas em tenra idade” (LIMA, p. 75-76). As mulheres escravas tinham filhos em idade
precoce, a partir dos doze anos de idade, sendo a procriação, dentro dos limites, incentivada
pelos senhores.
A vulnerabilidade de estarem sujeitos a vendas com maior frequência e a situações
variadas, demonstradas ao longo deste texto, tornava a vida daqueles subalternos ainda mais
complexa, frente às dificuldades impostas. Assim, tanto o curto prazo de permanência nas
mãos daqueles pequenos senhores, em face da conjuntura do tráfico interno, na região, quanto
à pobreza de boa parte daquelas populações limitava o acesso aos rituais sacramentados e
legitimados pela Igreja Católica.
Se, para escravos de grandes senhores, a obtenção das alforrias e a manutenção da
família eram difíceis, a situação para os cativos de pequenos senhores era ainda pior, daí, o
fortalecimento de uma rede de relações sociais, como o apadrinhamento de seus filhos, com
pessoas livres e libertas. A conexão entre escravos de pequenas propriedades com o mundo
livre era intensa e constituía, sem dúvidas, estratégia de sobrevivência, de fortalecimento e de
estreitamento de elos, mas não podemos perder de vista o fato de que senhores também
motivavam o acesso ao ritual com o objetivo de controlar e reforçar o poder de domínio. Ou
seja, “o compadrio promovia o estreitamento dos laços paternalistas entre cativos e
proprietários, entre livres e escravos, entre senhores e subalternos” (GONÇALVES, 2017, p.
217).
Por fim, o que se pretendeu discutir neste capítulo se refere às dificuldades com que
cativos de pequenos senhores deparavam frente às vicissitudes da vida sertaneja,
189
principalmente a dificuldade de negociar com seus senhores a alforria. Diante das ameaças do
tráfico interno, que mexia drasticamente nos modos de viver daqueles que permaneciam nas
propriedades, não era incomum que, entre o cativeiro, se espalhassem notícias da crueldade
do tráfico, causando-lhes pânico quanto os efeitos dessa política ardilosa dos senhores.
Ressalte-se que cativos de grandes propriedades também caíam na malha do tráfico e seus
senhores resistiram à concessão das alforrias, mas a dinâmica produtiva dessas fazendas,
vislumbrada pelos cativos, criou maiores expectativas de mobilidade e meios para obter a
alforria, além da integralidade de algumas famílias conquistada ferrenhamente nas duras
negociações com seus senhores. Indícios dispersos da documentação, porém valiosos,
mostraram que cativos e forros, mesmo diante da impossibilidade de negociar com senhores,
frente à negativa de mantê-los alforriados e à iminência de suas vendas, resistiram a esses
expedientes cruéis, ora cometendo homicídios, com fugas, tentativas de suicídios e estratégias
variadas, ora com ações mais enérgicas na Justiça (ações de liberdade), para alcançar, ou
manter, a continuidade da alforria, como veremos no capítulo que segue.
190
5.1 “Co o a inha tropa se vai de orando”: ambientes, moradas e vivências cotidianas
nas vilas, mas muitos deles moravam nas sedes dos casarões das fazendas, com benfeitorias,
de onde retiravam a maior parte dos proventos para o sustento e comercialização. As figuras
abaixo são representativas das sedes de duas grandes propriedades de Monte Alto, no século
XIX.
Figura 11 – Casarão da Fazenda Lameirão
Fonte: TEIXEIRA, Domingos Antônio. Respingos Históricos. Acervo da Biblioteca do IF Baiano – Campus
Guanambi. Gráfica e Editora Arembepe, 1967.
Fonte: TEIXEIRA, Domingos Antônio. Respingos Históricos. Acervo da Biblioteca do IF Baiano – Campus
Guanambi: Gráfica e Editora Arembepe, 1967.
Como se pode notar, alguns casarões apresentavam estilo rústico, outros, mais
sofisticados, e serviam de habitação para toda a família, agregados e escravarias alojavam-se
em cômodos anexos ou mais afastados desses espaços. O estilo arquitetônico dos casarões,
192
em sua maioria, era feito de adobe, com muitas janelas, portas, senzalas, quartos para
servidão, acompanhados de paióis, casa de farinha, engenho para o fabrico da rapadura e
melaço, dentre outras repartições. Construíam-se ainda reservatórios de águas nos lugares
mais baixos dos terrenos: açudes, tanques, cacimbas, a fim de se precaverem dos períodos
longos de estiagem. No inventário de um grande senhor de terras, Custódio Pereira Pinto,
1861, a descrição da casa de morada, situada na fazenda Campinas, se resumia da seguinte
forma:
Uma casa de telhas, com portas e cinco janelas de frente, rebocada, caiada e
pintada a óleo com outras casas pequenas e acessórios de despejo e servidão
a ela unidas senzalas e muros neste sítio das Campinas avaliada em
2:000$000 contos de réis.” 4 currais de páo a pique e caiçara e uma manga
de caiçara; dois currais velhos na lagoa do Bebedor na fazenda Campinas168.
Eduardo França Paiva, estudando a respeito das moradas nas Minas Gerais do século
XVIII, afirmou:
Há de se pensar ainda sobre o espaço das senzalas, lugar de abrigo dos escravos, que
significava não somente um lugar de pobreza e péssimas condições de higiene, mas de
vínculos afetivos e étnicos, de tensões e contradições entre companheiros de cativeiro.169 Nas
grandes propriedades de Monte Alto, quase todos os senhores que possuíam cativos
afirmaram em seus inventários a existência de senzalas ou quartos de servidão. Sabe-se pouco
sobre o ambiente de convivência entre os cativos nas senzalas, uma vez que as disposições
dos bens inventariados apenas descreviam a sua existência, sem dar muitos detalhes das
formas de organização de vida no interior daquelas construções. Senzalas com cobertura de
telhas constituíam exceção para a realidade das propriedades sertanejas e, geralmente, são
identificadas em posses de senhores abastados.
Ademais, ao que parece, essas moradias obedeciam a um padrão de construção
coletiva e poucos escravos não faziam parte dela, a exemplo daqueles que eram escolhidos
por senhores para prestarem serviços nas casas, como cozinheira, lavadeira, cuidadores de
crianças (filhos de senhores), como ama de leite ou babás, da condição de lacaio, tropeiro,
entre outras atividades. Daí, inúmeras recorrências em inventários de senhores abastados
168
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: Custódio Pereira Pinto, 1861.
Para saber mais sobre a arquitetura das senzalas, ver: SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças
169
dando a descrever a existência de quartos de servidão, aspecto que os distinguia dos demais
proprietários, em especial, daqueles de parcos recursos. 170 Em alguns casos, a casa de morada
de um pequeno senhor era construída de enchimento, assim como as senzalas. Havia, porém,
nítidas distinções na estrutura e organização do espaço, visto que se tornava um lugar privado,
enquanto os cativos eram obrigados a viverem amontoados e sem conforto algum.
No inventário de João Pereira Teixeira da Costa, consta que todo o seu patrimônio fora
avaliado em Rs. 5:623$494 e que sua casa de morada era estruturada com uma porta e uma
janela na frente, quatro portas no interior e construída de enchimento 171. O mesmo se verifica
no inventário de Maria Ignácia Nunes, em 1862, que deu a descrever uma casa coberta de
palha e feita de enchimento, mais uma parte de terra situada no Barreiro dos Coqueiros e um
cavalo. Somados os bens da inventariada, chegou-se ao valor de Rs. 2:655$000172.
Com relação aos médios proprietários, mesmo com pertences de valor, é possível notar
que a casa de morada, em alguns casos, representava um espaço simples e com pouca mobília,
como foi o caso de Ignácio Corrêa de Lacerda. Nos autos de inventário, consta uma casa de
morada, com mobília, situada na Fazenda Mamonas, avaliada em Rs. 300$000, quantia
insignificante se comparada a outros bens de riqueza que esse senhor possuía, como o escravo
de nome Faustino, cabra, vaqueiro, de 38 anos, avaliado em Rs. 1:000$200.
Deu mais uma casa de esteios de telas, com casas de despejo, cozinha,
senzalas, fábrica de farinha, neste sítio das Mamonas, com todos os
utensílios de serviço domésticos, mesa, bancos, camas e demais acessórios, o
que deram o valor a todos de trezentos mil réis que sai173.
170
No dicionário de escravidão negra no Brasil, Moura (2013) descreve a senzala como lugar de habitação dos
escravos, de um modo geral. Lugar sempre rústico, desconfortável, feito de taipa, coberto de palha, sem
condição nenhuma de conforto, trancada com cadeado pelo feitor para evitar a fuga dos escravos. “Num espaço
de vinte metros, em média, moravam inúmeras famílias de escravos, homens, mulheres e crianças sem nenhum
vínculo de parentesco”, por isso, tiveram que inventar outras formas de sociabilidades e “estabelecer um código
de linguagem comum”, ou seja, um “dialeto das senzalas” (MOURA, 2013, p. 375).
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
171
Ao que parece, a família de D. Joana mantinha, havia certo tempo, estreito contato
com o médico Pedro da Silva Rêgo. Outra correspondência, em 1843, denota que o médico de
São Félix atendia a pacientes no sertão: “como se vai demorando a sua vinda a Caetité, não
175
quero retardar o pagamento da conta que a senhora D. Joana ficou responsável” . Apesar
das distâncias que separavam as propriedades de demais vilas, famílias abastadas como a de
D. Joana contavam com meios eficazes de viabilizar pedidos, remessas de produtos, dentre
outras necessidades. Intercâmbios entre o rural e o urbano se fizeram constantemente, através
de indivíduos encarregados pelas tropas ou aqueles que circulavam pelo ambiente interno das
propriedades e de maior confiança dos proprietários.
Destaca-se, aqui, que a travessia entre o sertão e outras paragens demandava
indivíduos habilidosos, que soubessem conduzir as tropas cargueiras. Nesse caso, tais
atividades foram executadas, em sua maioria, por escravos e libertos que se destacavam dos
demais companheiros de cativeiro por assumir função especializada, hierarquizando-se em
relação aos demais, característica peculiar a escravos de grandes e médias propriedades. Não
APEB. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro.
174
APEB. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro.
176
(2003, p. 185-189) descreveu um caso de tortura, que o escravo Martinho sofreu, porque
contrariou a vontade do seu senhor. Martinho queria casar e não teve o consentimento, propôs
pagar pelo seu valor, o que também foi negado e ainda teve que deparar com castigos
horrendos, sendo torturado ao ponto de perder os dedos da mão, simplesmente por ter
manifestado seus desejos e desafiado a autoridade senhorial.
Em pequenas propriedades, limitações eram impostas quanto ao acesso a recursos
variados para o tratamento de moléstias. Presume-se que escravos e forros de grandes
senhores, ao experimentarem formas de procedimentos que prometiam curar as enfermidades,
apropriavam-se desse saber, reinterpretando-o e difundindo-o entre os demais companheiros,
inclusive àqueles de pequenos senhores, informa Carla Berenice Starling de Almeida (2010,
p. 74). Essas experiências poderiam ser adquiridas e ampliadas por escravos e outros
indivíduos que se incumbiam do ir e vir entre o sertão e lugares mais afastados, assim como
lugarejos vizinhos, pois influíam não só em mobilidade física, mas em trânsitos de ideias,
proximidades nas relações cotidianas, saberes e práticas culturais, entre as populações dessas
regiões.
Por sua vez, batismos e casamentos registrados nas fontes eclesiásticas do termo de
Monte Alto mostraram, na celebração desses rituais, forma de inserção social e encontros de
diferentes indivíduos. O casamento legitimado pela Igreja, sem dúvida, representou um dos
momentos festivos, de sociabilidade, de vínculos afetivos e de manifestação religiosa. Do
mesmo modo, pode-se pensar sobre os batismos: esses rituais não só visavam disciplinar os
indivíduos socialmente nos sacramentos da Igreja Católica, como aferiam “pactos de alianças
entre famílias, assim como à clientela”, (FRAGOSO, 2014, p. 23).
Independentemente do significado particular que cada um ou o grupo atribuía a esses
rituais, era momento aguardado por todos, sobretudo nos espaços das grandes e médias
propriedades, que, de maneira geral, viabilizavam com maior frequência a participação de
escravos e forros nessas manifestações religiosas. Com “a devida cumplicidade da população
local”, os padres registraram, nas paróquias, vestígios da vida dos indivíduos que socialmente
comungavam da mesma religião. Ao fazerem isso, classificavam os participantes quanto à
condição social, “costumeira, vivida na freguesia”, como a qualificação social dos pais e
padrinhos, dos escravos, forros, donas, capitães, fidalgos, livres pobres e demais (FRAGOSO,
2014, p. 23).
Essas manifestações religiosas foram constantes na vida dos sujeitos sociais do termo
de Monte Alto. No ano de 1858, na Fazenda Cajueiro, de Faustino Pereira Castro: o padre da
paróquia dirigiu-se até a propriedade daquele rico senhor para celebrar o ritual do batismo de
197
179
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.
198
qual tinha posse sobre a parda), resolveu reconduzir Maurícia ao cativeiro.180 Maurícia foi
declarada de cor parda, de idade de 12 anos e mantinha sob a guarda de si a carta de liberdade
adquirida em 1837, por negociação entre sua mãe e a mãe de D. Cristina, ambas falecidas.
A liberta era filha natural de um neto de D. Cristina, de nome Francisco Fialho, e, por
desavenças de sua suposta senhora com familiares, passou a ser perseguida com ameaças de
retorno ao cativeiro, já que, naquela altura, usufruía da condição de livre. Maurícia
encontrava-se em poder de um tio, que a recebeu em sua casa, quando D. Cristina a impediu
de viver sob o mesmo teto que ela, alegando não querer “gente forra em sua casa”, como
consta no documento abaixo:
180
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844. O inventário de
D. Cristina Fernandes de Barros não foi localizado, entretanto, a classificação como grande fazendeira deve-se
ao fato de a riqueza inventariada pelo filho de D. Cristina Fernandes de Barros, que dá continuidade ao processo
após a morte de sua mãe, ser de Rs. 24:000$892, em 1873.
181
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844.
199
182
Hemeroteca Nacional. O Guaycuru – 1844 a 1860. Ano 5. Número 447, de 22 de outubro de 1847. Disponível
em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=709794&pesq=Vila>.
200
pela Justiça da vila de Monte Alto à ex-escrava183. Presume-se que Luiz Fernandes da Rocha
mantinha influência com outras pessoas na capital da província baiana, levando o caso ao
conhecimento da imprensa, no intuito de ser favorecido.
A apelação de Luiz Fernandes da Rocha fundamentou-se em duas questões: o
julgamento do mérito, que deu sentença favorável a Maurícia, e a condenação das custas
processuais. A postura do apelante era, no mínimo, indevida, no que se referiu às custas do
processo, quando recorreu ao Tribunal da Relação do Estado para reverter a sentença do Juiz
de Monte Alto, tendo em vista que, em regra, a autora do processo (Maurícia) não possuía
recursos suficientes para arcar com as despesas cobradas. O valor a pagar só podia ser de
responsabilidade do senhor, já que tentou reconduzir a forra à condição de sua propriedade.
Com a pretensão de retorná-la ao cativeiro, não haveria por que questionar o valor a
ser pago, a cativa passaria a ser sua propriedade e, ainda que possuísse o pecúlio, caso o
houvesse acumulado nas fímbrias do domínio senhorial, do ponto de vista legal, o pagamento
não caberia à escrava, existindo dispositivo que a protegia de tal condenação. Somente a partir
de 1871 é que o pecúlio passou a constar na legislação como um direito legal do cativo. A
esse respeito, Sidney Chalhoub, analisando o caso da escrava Fortunata, pontua: “[...] as
economias dos escravos, assim como a alforria mediante indenização de preço, eram práticas
cotidianas relativamente comuns, porém não foram objeto de legislação específica antes de
1871” (1990, p. 108). Quanto ao mérito, caberia talvez o recurso, uma vez que era prática de
senhores, por motivos quaisquer que “ferissem” os acordos no campo do favor, rescindir o ato
concedido ao escravo, principalmente se o alforriado não tivesse como provar sua condição de
liberdade. Nesse caso, também, não era devida a ação, pois Maurícia provou a existência da
carta de liberdade e com causa ganha em primeira instância.
Depreendem-se, da narrativa acima, as vulnerabilidades em torno da liberdade de
cativos e forros que se defrontavam com ameaças de retorno à escravidão, “[...] por mais que
os escravos se empenhassem em reduzir o perigo em suas vidas”, confirma Robert W. Slenes
(2010, p.280). Por isso, acionaram a Justiça e elaboraram estratégias de resistências cotidianas
não só dentro do cativeiro, mas em graus variados de articulações e tensões com senhores. Na
premência de assegurar o direito conquistado, Maurícia não se intimidou frente à vida
embaraçada, reclamando com embates jurídicos a continuidade da manumissão. Sua história,
assim como a de outros escravos e escravas, é reveladora de um cotidiano de lutas, de
conquistas e de fracassos nas relações com seus senhores em Monte Alto. Se a autoridade
183
A reportagem tratava sobre atos oficiais do interior e foi mencionada na ata da sessão de 18 de agosto de 1847
do Tribunal de Relação da Bahia, incluída a história do processo de Maurícia.
201
senhorial canalizava vantagens para si, cativos interpretaram de outro modo seu cotidiano
escravista e lançaram mão de variadas estratégias, inclusive junto à Justiça, na garantia
daquilo que consideravam direito pleno.
Outra questão que merece pontuar acerca do processo de Maurícia são as diferentes
concepções de liberdade entre o curador (defensor da liberta) e o procurador de Luiz
Fernandes da Rocha. A concepção desse em nada correspondia aos anseios de escravos e
libertos. Para o curador:
A liberdade, esse dom naturalmente sublime, e precioso que encanta a todo o
gênero de viventes, q‟ abaixo todos os corações bem formados, e que tantos,
e tão sábios patronos tem sido sempre a seu lado, se não vê na presente causa
à penas a recosta no fraco arrimo intelectual de um pobre e simples curador
sem princípios e sem prática judicial; tendo por única defesa a Lei que a
protege, e os poucos, porém verdades documentos, em que basêa o seu
direito184.
Concluiu o curador, na defesa, que esperaria ser ouvido, e que a sua curatelada
Maurícia fosse julgada livre de toda escravidão, gozando da antiga liberdade conquistada
havia mais de oito anos, cabendo à Ré, se condenada, pagar as custas do processo. Na ordem
do trâmite, seguem contra-argumentações do procurador, defensor da Ré, alegando ser
indubitável o dom sublime e precioso da liberdade e, com ela, todas as comoções se abraçam,
pois a “liberdade emana do céu e encanta os viventes”, porém a pretendida liberdade não
existia, mas, sim, trapaças e engano.
Existem, nas falas, conflitos quanto à primazia da liberdade: o curador apelando para a
naturalidade da liberdade como algo “sublime e precioso que encanta a todos”, e o procurador
da Ré argumentando, em teoria, que, de fato, “é sublime e encantadora” e que vem dos céus,
contudo, na causa específica, tratava-se de efeito prático e de direito de propriedade
individual. Nesse caso, é possível perceber o quanto as noções da liberdade se distanciavam
do desejo que os cativos alentavam, pois, tanto por parte do curador como por parte do
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
184
Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844.
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
185
Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844.
202
procurador, as considerações não condiziam com a realidade cotidiana que cativos tinham
sobre si. Mesmo que a liberdade fosse princípio defendido e constitucionalmente legalizado
como direito natural e inalienável, na prática, era custosa e requeria esforço e astúcias dos
escravos para alcançá-la.
Embora liberta, Maurícia não podia contar com a condição de livre, ao menos no
aspecto moral e reconhecimento de seus ex-donos. Assim, para provar a posição de liberta,
necessitou de outra pessoa, nesse caso, a presença de um curador para representá-la e ser
ouvida. O direito à propriedade privada ditava as regras do jogo e sempre caminhava na
contramão dos interesses dos cativos. Por isso, a ocorrência de tensões, motins, assassinatos,
conflitos, sublevações, a recorrência à Justiça, as fugas de toda ordem, bem como as
estratégias variadas de negociações entre escravos, livres pobres e forros nos embates com os
senhores. A insegurança e privações, na vida de escravos e libertos, fizeram com que eles
investissem ainda mais no fortalecimento dos laços com os companheiros de cativeiro,
familiares e vizinhança. Essas relações eram importantes para potencializar seus projetos de
vida em liberdade.
A trajetória de Virgínia, que nasceu em 1862, após o arrolamento dos bens do falecido
Ignácio Corrêa de Lacerda, médio fazendeiro, proprietário da Fazenda Mamonas, cujo
monte-mor declarado foi de Rs. 8:807$440, é outra situação embaraçosa vivenciada por
cativos da região, para fazer valer sua alforria perante os tribunais. Virgínia nasceu depois da
morte de seu dono, por esse motivo, não foi declarada no inventário, ficando a cargo da viúva
do casal, Margarida Moreira da Silva, conferir-lhe a alforria, uma vez que era desejo de sua
mãe, escrava, pagar pela manumissão da filha. Com base no trâmite do processo,
encaminhou-se petição ao juiz para estabelecer a data, hora da avaliação e a descrição da
cativa, para, assim, a suplicante, mãe da escrava Virgínia, depositar o valor e entregar-lhe a
carta de alforria. Sua senhora declarou, ainda, que não haveria dolo ou prejuízo aos herdeiros,
e que sua atitude era um ato de “extrema amizade consagrada à suplicante”186.
O Juiz dos Órfãos designou o pedido para o dia 14 de junho de 1865, atribuindo um
valor de duzentos mil réis, pago pela mãe da escrava, Chrispiana. Não contava a inventariante
que, mais tarde, no ano de 1866, outro juiz analisaria o inventário, identificando falhas na
condução do processo. De fato, existiam outras alforrias também concedidas a escravos de D.
Margarida e, sobre todas elas, o juiz declarou irregularidade nos trâmites legais da condução,
alegando que as alforrias foram concedidas por “impulso de caridade” quando a inventariante
186
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: de Ignácio Corrêa de Lacerda. Mç:15, n. 296, 1862, p. 27 a 28.
203
aceitou o preço oferecido pelos escravos. De acordo com o juiz, a sentença não poderia ser
acatada devido à existência de órfãos e herdeiros ausentes.
A irregularidade devia-se ao fato de os tutores não terem autorizado a concessão da
alforria e, assim, o juiz declarou que, “nessa matéria de alforria existe, é verdade, a
compaixão, mas o juiz é a lei viva, e deve rigorosamente sob pena sujeitar-se a abrir as portas
aos maiores abusos e escândalos”187.
Enquanto tramitava o processo, anos se passaram até que D. Margarida resolveu,
novamente, recorrer ao tribunal com outras petições, dessa vez, com argumento contrário à
alforria de Virgínia. Justificou passar por crises “não só pelo seu mau estado de saúde, como
pelos inconvenientes das secas”. Logo, resolveu vender a pequena Virgínia, justificando a
venda pela garantia da subsistência de sua família, avaliando a cativa em quatrocentos mil réis
– o dobro da primeira avaliação. Nesse caso, caberia à mãe da escrava o ônus de pagar
novamente o preço que dera pela nova avaliação. O juiz atendeu à peticionária e, mediante o
pagamento da diferença em relação ao primeiro valor atribuído, depositado pela mãe da
escrava, Chrispiana, foi deferido o pleito da alforria, em 12 de julho de 1870.
Como se observa, ao longo do processo, D. Margarida assumiu posição contrária à
decisão com que havia se comprometido inicialmente. Após a morte de seu marido, a família
passou por crises financeiras com o arrastar dos anos, caminhando para a falência. As
dificuldades conjunturais acentuadas pela seca, associadas ao auge do tráfico interno, que
elevou o preço dos cativos, fizeram com que D. Margarida mudasse de ideia quanto à alforria
de Virgínia, colocando-a à venda pelo valor atualizado de mercado.
Naquela época, a menina ainda dependia dos cuidados da mãe (Chrispiana, crioula),
que vivenciou a experiência de ver sua filha em disputa judicial. Certamente, a infância de
Virgínia foi marcada por uma série de situações de difícil entendimento para uma criança e
com árdua tarefa para sua mãe. O caso levou mais de uma década e, com a devida atenção ao
documento, percebe-se morosidade e abuso de poder no desempenho dos tribunais, já que o
juiz deixou clara sua posição hierárquica, ao afirmar que “o juiz é a lei viva”. Chrispiana e sua
filha Virgínia continuaram no cativeiro e, quando a mãe apelou à Justiça, tinha a esperança de
que o destino de suas vidas pudesse solucionar-se, no entanto, não havia ainda, naquela época,
base legal de garantia da alforria, tudo dependia do consentimento de seus senhores.
Cabia à Justiça decidir o processo, visto que, no âmbito privado, não houve
cumprimento do acordo negociado. Apelar para a instância judicial dependia da sensibilidade
187
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: Ignácio Corrêa de Lacerda. Mç: 15, n. processo 296, 1862.
204
do juiz, favorável ou não à causa dos escravos. A prerrogativa de ser “a lei viva” norteia uma
ideologia de persistência na manutenção da escravatura, visto que as autoridades locais eram
também senhores escravistas e, conforme o próprio juiz afirmou, sua posição evitaria outros
“abusos e escândalos”, ou seja, coibir as negociações entre escravos e senhores que vinham
paulatinamente se ampliando, a partir da segunda metade do XIX.
Ressalte-se que o período de 1850-1870 foi, para a região do Alto Sertão baiano,
momento de intenso comércio de escravos, via tráfico interno, despertando em senhores de
grandes, médias e pequenas propriedades a avareza de lucros provenientes desse negócio.
Eram frequentes as declarações de juízes de Monte Alto questionando a veracidade das
informações e a falta de esclarecimentos sobre bens arrolados nos espólios, principalmente
referentes à descrição de escravos, com valores acima ou abaixo dos estipulados na época,
sonegação da quantidade exata de cativos, vendas sem consentimento dos herdeiros,
arrematação e hipotecas indevidas.
Um exemplo dessas declarações está no inventário de José de Souza Góes, pequeno
proprietário com um monte-mor de Rs. 3: 246$550, no ano de 1854188. Somente em 16 de
abril de 1866, o juiz expediu um documento questionando as informações acerca do preço do
escravo Manoel, de 14 anos, avaliado em Rs. 700$000. Para o juiz de Monte Alto, o valor era
considerado acima do mercado, e a venda, justificada por motivo de fuga do escravo não o
convencia, desconfiando até da ação do escrivão, o que não era surpresa, para uma localidade
pequena, em que todos se conheciam e alguns fossem favorecidos nas aproximações.
Observa-se que os casos citados, sob a revisão judicial, levavam anos para chegarem à
sentença, tempo suficiente para senhores mudarem os rumos da condução de um processo,
obtendo informações privilegiadas em contato com pessoas dos cartórios e comarcas em
geral. Recorremos a Sidney Chalhoub (1990, p. 122): libertar “os escravos não esbarrava
apenas na avareza dos herdeiros, mas no próprio pacto de classe que garantia a continuidade
da escravidão”.
Os impasses entre a propriedade privada e os princípios da liberdade contradiziam-se e
se deparavam com constantes ambiguidades na jurisprudência, ainda que a base de
argumentação das disputas, entre senhores e cativos, se fundamentasse nas razões do direito
legal. Nessa situação limite, as ações de liberdade serviram de balizas ao mexerem nas
convicções mais íntimas referentes à continuidade ou não da escravidão (CHALHOUB,
188
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: José de Souza Góes. Mç: 11, n. 125, 1854.
205
1990). Tais comportamentos mostravam o quão difícil era a luta pela alforria e, mais ainda, a
garantia de usufruir o direito de conquista, um dilema árduo para cativos e forros.
Foram localizadas quatro ações de ex-cativos, levando senhores aos tribunais para
impedir a reescravização, ao contrário dos pedidos de alforrias, em inventários, que eram
muitos, principalmente entre escravos de grandes senhores. Mesmo assim, não se pode
afirmar que, em Monte Alto, existiu pouca incidência desses casos. Conforme já falado em
outros momentos deste estudo, parte da documentação do Alto Sertão baiano possivelmente
se perdeu nas mudanças de comarcas pelas quais vilas e freguesias se alternavam, no século
XIX, e sabe-se que nem todos os cativos, após a alforria, ficaram próximos de seus ex-
senhores.
Alguns daqueles alforriados devem ter procurado outros espaços alternativos,
evadindo-se da violência e do trabalho extenuante a que eram submetidos, buscando outras
vias de sobrevivência independentes do ex-senhor.189 Mas boa parte deles continuou
mantendo relação de favor com seus senhores, pois as grandes extensões de terras estavam
sob controle desses fazendeiros, que necessitavam de gente para prosseguir na organização
produtiva de suas propriedades e, como as alforrias eram precárias, acabavam conduzindo os
forros e pobres livres à dependência, especialmente daqueles que tivessem terra para
trabalhar, morar e dela sobreviver. Isso vale, inclusive, para senhores de pequenos recursos. A
esse respeito, Flávio Gomes (2005, p. 12-13) menciona: “Havia muita expectativa a respeito
do controle da população recém-libertada, principalmente nas áreas rurais”. Explica o autor
que, nos anos finais da abolição, rondou na mentalidade da época “o fantasma da desordem e
do caos econômico” entre os que defendiam a manutenção da escravidão.
Maria de Fátima Novaes Pires (2003, p. 113-114) sinalizou apenas dois casos de ações
de liberdade, nos autos analisados, para Caetité e Rio de Contas, na segunda metade do século
XIX, porém notou variados momentos de tensões entre senhores e escravos no sertão, e, em
muitos deles, cativos “buscaram a instância judicial como mediadora”. Tendo em vista uma
vasta documentação da província da Bahia, Ricardo de Tadeu Caires Silva (2000) encontrou
inúmeros casos de escravizados acionando a Justiça. Salienta o autor que essas ações se
expandiram para o interior e citou, como exemplo, “mais de uma dezena de processos”
movidos por escravos na Justiça de Caetité, cidade vizinha de Monte Alto, no século XIX.
189
Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p.117) identificou para Caetité e Rio de Contas a permanência de
escravos no mesmo local, trabalhando por jornais (diárias).
206
Para Carinhanha, Simony Oliveira Lima (2017) também encontrou quatro ações de liberdade
para a localidade.
Márcio de Souza Soares (2009) - Campos de Goitacazes – pontuou, para o fim do
século XVIII e início do século XIX, sudeste do País, alguns forros convivendo com ameaças
de retorno ao cativeiro, mas considerou que essas ocorrências de ações de liberdade eram
relativamente baixas e insuficientes para sustentar crenças generalizadas de ameaça à vida de
forros e cativos, embora reconhecesse a tenacidade dos escravos como protagonistas de ações
diversas, no empenho de alforrias.
Para o autor, libertos estavam atentos à alforria e senhores não tinham interesses em
romper com as concessões. A ameaça recaía, basicamente, naqueles forros que mudavam de
lugar de origem, sendo a distância, aspecto que os tornaria suspeitos e conduzidos à prisão até
que se comprovasse a liberdade. Soares (2009) valeu-se de comparações com outros estudos,
mostrando, na maioria dos casos, compromisso nos acordos firmados entre senhores e cativos.
Assim, localizou apenas três casos de anulação de alforrias e cita que Kiernan, em Parati
(1798 e 1822), verificou apenas seis casos de reescravização, Karasch (2000), com treze
situações semelhantes de um total de 1.319 alforrias analisadas para o Rio de Janeiro, na
primeira metade do século XIX. Sidney Chalhoub (1990) contou apenas com um caso e
Sheila de Castro Faria (1997), quatro casos, de um montante de 17.500 cartas analisadas. Na
visão de Soares (2009), esses exemplos tratam de referências esparsas e impedem
generalizações da ampla ameaça sofrida pelos forros quanto ao retorno ao cativeiro.
De fato, não se pode generalizar o argumento da ameaça assustadora na vida dos
forros e libertos, até porque, como reconhece o próprio autor Soares (2009), os libertos
possuíam tenacidade nas relações estabelecidas e estavam atentos às ações trapaceiras de seus
ex-senhores. Quando caíam na armadilha do possível retorno ao cativeiro, não hesitavam em
fazer conciliações e, sempre que possível, recorriam, com ajuda de curadores, à instituição
jurídica do Estado, na garantia daquilo que haviam conquistado. Entendiam, a seu modo, o
que era a Justiça e conheciam as regras, notadamente construídas nas práticas costumeiras e
da representação legal, a partir de 1871.
Casos de rompimentos de acordo por parte de senhores, mesmo que esporádicos,
representaram realidade nos quatro cantos do Brasil, ou seja, no período da escravidão, as
ações de liberdade e ameaças acompanharam o cotidiano dos libertos e forros.190 No Alto
190
A existência de indícios de cativos acionando a Justiça remonta desde o século XVII, mas foi no decorrer do
século XIX que a prática tornou-se mais recorrente. Muitos escravos, ao reunir condições, como o amealhar
pecúlio, puderam negociar com seus senhores a alforria e, quando essas negociações não fossem possíveis,
207
Sertão da Bahia, embora ainda careça de pesquisas nessa área, os casos localizados
evidenciam situações emblemáticas de instabilidade vivenciadas por muitos cativos em suas
práticas cotidianas, quer fossem em grandes propriedades, quer fossem em médias e
pequenas.
A ameaça de retorno ao cativeiro possivelmente assustava os demais companheiros e
os colocava em vigilância constante frente às ações que, porventura, senhores viessem a
praticar, principalmente em face ao tráfico interno. Impactava, ainda, no comportamento e
expectativa de escravos e forros, uma vez que, para receber a alforria, cativos utilizavam
vários expedientes nas negociações com seus senhores: contar com o favor e, caso esse dever
antes e depois da alforria fosse descumprido, entraria o uso da força senhorial, recolocando-o
no cativeiro. Assim, independentemente de ser cativo ou forro, a luta pela liberdade marcou
profundamente a experiência de vida de todos aqueles que direta ou indiretamente se
envolviam nos projetos de sua liberdade e a de seus familiares.
Outro caso de escrava nos tribunais de Monte Alto tratou-se de Marqueza, já
mencionado anteriormente neste texto, por seu grau de influência nas redes de relações com
outros cativos, batizando filhos e apadrinhando outros em várias propriedades de seus antigos
senhores. No dia 13 de outubro de 1873, no termo de Monte Alto, Marqueza, escrava de
Antônio Dias da Silva, requereu, junto ao Tribunal de Justiça daquela vila, a “justificação da
manutenção de liberdade”.
A escrava, com trinta anos de idade, cabra, fiandeira, mãe de duas filhas, Felipa
(alforriada) e Joana (deficiente de um braço), vivenciou uma situação embaraçosa no processo
de reconhecimento da alforria. Antônio Dias da Silva declarou em testamento que, por
vontade, deixava Marqueza forra, assim como sua filha de nome Felipa, a quem já havia
passado carta de liberdade, porém, depois de escrito o testamento, naquele momento não
“acharão naquelas vizinhanças pessoas desimpedidas e aptas que se prestassem e pudessem
servir de testemunhas”, por isso, na presença do Escrivão de Paz, declarou verbalmente e
perante testemunhas (testamento nuncupativo) que concedeu alforria à Marqueza e sua
filha.191
Zeferino Correa de Lacerda, herdeiro do falecido, não reconheceu a condição de
liberta, reconduzindo-a ao cativeiro. No decorrer dos autos de inventário, Marqueza foi
declarada como bem do casal, permanecendo por mais de três anos no cativeiro, até que o
recorriam aos tribunais para provar seus direitos. Na segunda metade do século XIX, especificamente a partir de
1860, essas ações em tribunais aumentaram consideravelmente (GRINBERG e PEABODY, 2013, P. 110- 111).
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira. Palmas de Monte Alto/BA. Auto-Crime: Manutenção de liberdade, 1873.
191
escrivão que havia presenciado o desejo expresso do testador Antônio Dias da Silva
denunciasse o fato à Justiça, alegando ter a suplicante incontestável direito à sua liberdade.
Era desejo de Marqueza sair do poder do herdeiro Zeferino Correa de Lacerda,
comprometendo-se, inclusive, a depositar e requerer o que fosse a bem de seu direito. O juiz
de Monte Alto foi favorável ao processo movido pela escrava, validando a carta de alforria192.
Vale lembrar que Marqueza foi uma daquelas escravas atentas ao contexto das leis
abolicionistas, sobretudo a Lei do Ventre Livre, que ampliava o direito de cativos recorrerem
à Justiça, principalmente em situações de reescravização.
Keila Grinberg e Sue Peabody (2013) identificaram, ao longo do século XIX, números
crescentes de processos judiciais de escravos recorrendo à Justiça para a obtenção das
alforrias e argumentam que a frequência de ações deveu-se em função de muitos escravos
passarem a acreditar “ter reunido condições para serem considerados livres”. Assinalam as
autoras:
As evidências documentais existentes sobre as ações de liberdade
demonstram que, assim como nas práticas de coartação, a relação entre
senhores e escravos envolvia, além de conflitos, muitas negociações.
Embora os conflitos e negociações fossem desiguais – os senhores tinham
uma probabilidade muito maior de saírem vencedores nestas disputas –, é
importante ressaltar que, muitas vezes, o escravo conseguia provar seus
direitos nos tribunais, conseguindo sua liberdade (GRINBERG; PEABODY,
2013, p. 107).
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Auto Crime: Manutenção de Liberdade, 1873.
192
1995, p. 238). Alisson Luiz Freitas de Jesus, afirmar que “o acesso à Justiça é mais uma
realidade, constituindo-se em mais um exemplo da mobilidade e complexidade da escravidão
brasileira” (JESUS, 2007, p. 50).
193
APEB - Seção de Arquivo Colonial e Provincial, Presidência da Província, Judiciário (Escravos: Assuntos)
1880-1888, Maço 2900. Apud REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão:
Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas. 2007, p.203.
194
Segundo o historiador Pereira Neto (2012, p.38), o Decreto 5.135, de 23 de novembro de 1871, estabelecia,
em seu artigo 28, a criação, nos municípios do Império, das Juntas de Emancipação, com a finalidade de
classificar os escravos que poderiam libertar-se pelo Fundo. De acordo com o autor, o Fundo funcionava nos
municípios e vilas da seguinte forma: primeiramente, era preciso criar uma Junta composta por agentes do setor
administrativo e judiciário dos municípios, como promotores públicos, presidentes da Câmara e o coletor de
rendas. Na ausência destes, haveria uma substituição legal, com outros componentes que fariam parte da referida
Junta, e ainda um juiz de paz para ajudar nos registros das atas.
211
que os escravos estivessem regularmente matriculados por seus senhores com informações
precisas sobre a vida. Essas informações baseavam-se, normalmente, em nome, cor, idade,
estado civil, naturalidade, filiação, aptidão para o trabalho, profissão, sexo e algumas
observações no final, caso necessário. Era com base nesses dados que a Junta determinava
quais os cativos que se enquadravam na exigência do regulamento, comenta Fabiano Dauwe
(2010).
Cabia à Junta priorizar as características e estabelecer os critérios de acordo com o
regulamento do Fundo, assim como decidir quais escravos estariam contemplados a receber a
alforria, apesar de a visão senhorial do “bom escravo” prevalecer. Dessa forma, o primeiro
critério consistia na valorização das uniões matrimoniais, enquadrando os cativos nos
“padrões e normas” de convivência da época. Para José Pereira de Santana Neto (2012),
normalmente, a prioridade destinava-se aos escravos casados com outros livres ou libertos e
que tivessem filhos. Em seguida, os que possuíssem pecúlio, independentemente de serem
casados ou não, e disciplinados no trabalho.
Mesmo antes de 1871, conforme se observou em documentação analisada nos
Capítulos III e IV deste estudo, houve números consideráveis de escravos que mantinham
uniões legitimadas ou consensuais com seus pares, forros e livres e pobres, em Monte Alto.
Essa incidência explica a preocupação do vice-presidente da Junta, Ernesto Pereira de Souza,
em afirmar: “visto nunca se esgotar os da classe dos casados”, com ampliação dessas uniões a
partir da atuação do Fundo de Emancipação na região. Obviamente, o Fundo despertou
nesses cativos a busca de alforrias contempladas por essa política apoiada pelo Estado.
Conforme Ricardo Tadeu Caires Silva:
Nesse sentido, Dauwe (2010) chama a atenção para a relevância dessa forma de
alforria, pois ela caminhou lado a lado com a Lei do Ventre Livre e era, de certa forma, uma
maneira instituída pelo Estado para amenizar as tensões entre escravos e senhores, visto que,
na segunda metade do século XIX, recorrer à Justiça para garantir a alforria tornou-se prática
comum entre os escravizados.195 Por esse motivo, o próprio Estado imperial, com o intuito de
195
Dentre os estudos que sinalizam a existência do Fundo de Emancipação para o sertão da Bahia, estão os
trabalhos: PIRES, Maria de Fátima Novaes (2009, p. 94). A autora identificou para Rio de Contas a incidência
de uma carta pelo Fundo; SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos,
212
evitar uma relação de desgaste com senhores escravistas, procurou maneiras gradativas e
legalistas com a intenção de garantir “[...] a manutenção da „paz no campo‟ por meio de
critérios de classificação de escravos moralmente orientados”, disse Fabiano Dauwe (2010,
p.10).
No entanto, a vigência da Lei de 1871 e a aplicação do Fundo de Emancipação pouco
alteraram a política da “força e favor” entre senhores e escravos. Ao que pareceu, revestiu-se
de nova roupagem, coadunada com a tutela do Estado, visto que a nova lei não obrigava
senhores a concederem a alforria e incentivava-os ao recebimento de indenizações. A seguir,
tem-se cópia de procuração passada por Dona Maria Joaquina de Castro, outorgando plenos
poderes a pessoas de sua confiança, negociantes ou firmas especializadas, para a retirada do
valor da indenização na capital da província da Bahia, como se vê no documento:
Procuração bastante em nota que faz Dona Maria Joaquina de Castro, como
abaixo se declara;
Saibam quantos este público instrumento de procuração bastante em notas
virem em que no anno do nascimento de nosso senhor Jesuz Christo de mil
oitocentos e oitenta e um dos quatros dias do mez de novembro do dito anno,
nesta Villa de Monte Alto em meo cartório compareceu como outorgante a
viúva Dona Maria Joaquina Pereira de Castro, reconhecida pela própria e
pelas testemunhas no fim assignados perante as quais disse que nomeava e
constituía por seus bastantes procuradores e onde mais convier com poderes
de substabelecer aos senhores, Antonio Gomes dos Sanctos & Companhia,
a quem concede os poderes necessários para o fim especial de receber na
thesoraria geral desta Província a quantia de oitocentos e quarenta e cinco
mil reis que a outorgante tem de haver em qualidade de senhora do escravo
Francisco, preto, com a idade de trinta e nove annos, matriculado sob
número dois mil cento cinqüenta e um da ordem da matrícula deste
município, cazado com a liberta Luiza Corrêa de Lacerda, o qual foi
alforriado pelo juiz de Orphãos desta Villa por conta do Fundo de
Emancipação, e arbitrando em novecentos mil reis, tendo o mesmo
escravo cinqüenta e cinco mil reis de pecúlio, para o que o procederão os
ditos procuradores e substabelecidos requerer o que preciso for, dar quitação,
e uso de todos os recursos attinentes ao dito fim [....]196.
senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese de doutorado - Universidade
Federal do Paraná, 2007. O autor encontrou para Caetité 95 cartas pelo Fundo de Emancipação e aponta que
Carinhanha foi o primeiro município na Bahia a conceder alforria pelo Fundo, no ano de 1877 (Silva, p. 211);
SANTANA NETO, José Pereira de. A alforria nos termos e limites da lei: o fundo de emancipação na Bahia
(1871-1888). Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2012. Ver mais autores que
discutem o Fundo de Emancipação: CONRAD, Robert Edgar. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; DAUWE, Fabiano. Liberdade inconveniente: os múltiplos
sentidos da liberdade pelo Fundo de Emancipação de escravos. In: X Encontro Estadual de História. Santa Maria
– RS, 26 a 30 de julho, 2010.
196
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Livro de Notas, 1880.
213
com a liberta Luíza Corrêa de Lacerda, arbitrado em Rs. 900$000 pela Junta de Classificação
do Fundo. Francisco dispunha de pecúlio no valor de Rs. 50$000, ficando o restante a ser
pago pelo Estado. Certamente, o cativo já se havia utilizado de outros expedientes para
negociar a alforria com sua senhora, contudo, o preço elevado no mercado, face ao tráfico
interno e à relutância de senhores em persistir na continuidade da escravidão, impossibilitou
que as expectativas de Francisco, quanto à alforria, fossem alcançadas.
Não foi possível saber se a união de Francisco com a liberta Luíza se consumou antes
da Lei de 1871 ou se ele se apressou em legitimar a união após conhecimento das chances de
conquistar a liberdade pelo Fundo de Emancipação. Assim, “caso a negociação cotidiana
falhasse e o escravo não tivesse um pecúlio suficiente para intentar na justiça uma ação de
liberdade, restava-lhe ainda a possibilidade de recorrer ao fundo, na esperança de conseguir
completar esse valor”, como assinala Ricardo Tadeu Caires Silva (2007, p.196).
Por sua vez, pode-se se inferir o incentivo de Dona Maria Joaquina de Castro ao seu
escravo para receber a indenização, posto que ele não contava com economia suficiente para a
compra da manumissão. Diante da possibilidade de conciliação dos interesses, ambos se
beneficiaram da política instituída pelo Estado. Por ser casado com a liberta, Francisco tinha
prioridade no pleito que o Fundo oferecia. No entanto, Isabel Cristina Ferreira dos Reis (2007,
p.2005) afirma que o casamento entre escravo e liberto poderia implicar desvantagens,
sobretudo porque o liberto ficaria vulnerável aos favores do senhor de seu companheiro,
muitas vezes submetido à exploração e a controle por parte de seus senhores.
Não há como negar que a lei proporcionou certa ampliação de expectativas ao alcance
da alforria, mobilizando boa parte de escravos a recorrerem à Justiça para assegurar,
legalmente, aquilo que já consideravam um direito adquirido, anteriormente, nas práticas
costumeiras de negociações com seus senhores. Acionar a Justiça implicava também entraves
burocráticos de toda natureza, com tensões e morosidade nas decisões dos tribunais, mas é
certo que a percepção dos escravos se distanciava dos interesses de quem lutava pela
continuidade da escravidão.
Se os casamentos foram incentivados pelos senhores ou não, o que importa são as
estratégias e arranjos elaborados no intuito de conferir sonhos e projetos de vida próprios de
escravizados. Para Lucimar Felisberto dos Santos (2009, p. 37), “o significado das escolhas
por parte dos cativos, certamente, tem sentido que dialoga com suas próprias experiências e
expectativas”. Possivelmente, a maioria deles convivia, havia tempo, com seus parceiros, por
meio de relações consensuais e, com os dispositivos da Lei de 1871, oficializaram as uniões.
214
Não se faz referência aqui apenas ao casamento monogâmico, mas também às variadas
formas de convivência consensuais, étnicas, por meio da religião, de laços solidários e de
outras formas de convívio social197. Conforme apontou Hebe Maria Mattos (2009), a família
escrava foi reconhecida pela Lei de 1871 como:
escrava possuía pecúlio de “trezentos e trinta e quatro mil réis” e foi avaliada por “seiscentos
mil réis”, cabendo ao Fundo pagar o restante devido. A Junta concordou com o pedido e
incluiu a escrava no número da segunda ordem da classificação por não haver reclamações de
classe superior.199 Conforme se vê, ter pecúlio significava meio caminho andado para obter a
alforria. A escrava Juliana, não poderia ser incluída na primeira classe do Fundo, por não ser
legalmente casada e a prioridade era para casados com livres e que tivessem filhos. Ao que
pareceu, a dificuldade de amealhar pecúlio foi fator de interfêrencia no acesso às cotas. Não
foi por falta ou desinteresse de cativos casados concorrer às cotas, e sim pela política de
senhores em contemplar cativos que dispusessem de alguma quantia. Sobre isso, Ricardo
Tadeu Caires Silva observou que cativos com economias disponíveis saíam na frente daqueles
que não tivessem algum recurso para ofertar, frisando que essa possibilidade foi usada por
senhores e cativos (SILVA, 2007, p. 195).
A procura por uniões estáveis evidencia poder de articulação das comunidades cativas
que, historicamente, souberam buscar nesse convívio formas de solidariedade e de apoio
mútuo dentro ou fora do cativeiro. O documento a seguir trata da sexta cota do Fundo enviada
pela Junta de Monte Alto ao presidente da província da Bahia e da relação de escravos
alforriados, no ano de 1885. Dos sete escravos alforriados, todos eram casados com livres ou
libertos e possuíam filhos. Nessa cota, não consta pecúlio por parte dos cativos, uma vez que
para essa lista existiu consentimento e acordo dos proprietários.
Ao mesmo tempo, percebe-se a estratégia dos escravos em procurar parceiros livres e
libertos, visando ao alcance da liberdade, ou que, já vivendo em relações consensuais e com a
possibilidade da indenização, oficializaram suas uniões. Todavia, é preciso atentar-se para
algumas ressalvas referentes aos interesses senhoriais, nas diminutas alforrias premiadas pelo
Fundo de Emancipação. Em Monte Alto, o alcance das alforrias pelo Fundo denotou
interferência de senhores em contemplar alguns cativos no recebimento do benefício. Em
todos os casos encontrados, tratavam-se de cativos de grande e médio senhor e, como afirma
Isabel Cristina Ferrreira dos Reis (2007), os casamentos entre escravos e livres poderia não
ser vantajoso para o parceiro livre. Mesmo após a abolição, esses indivíduos continuavam
submetidos à política dos favores senhoriais, posto que o escravo companheiro negociou a
concessão da alforria sob o preço de muita gratidão e deferência.
Por outro lado, muitos escravos recorriam a essa prerrogativa para adquirir a liberdade
e, ao que pareceu, foi uma estratégia bem articulada, em que, nos momentos decisivos da
APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Série Governo da província – Judiciário: Juízes Monte Alto,
199
1871-1889.
216
Fonte: APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Série Governo da província – Judiciário: Juízes Monte Alto, 1871- 1889.
217
218
Conforme o Quadro 11, o cativo Faustino, de 63 anos, casado com liberta, foi
contemplado pelo Fundo, em 1885, com um valor de indenização de Rs. 178$000. Presume-
se que Faustino, por ser escravo de confiança do seu senhor, continuou prestando serviços na
mesma propriedade, já que seu senhor, o Tenente Antônio Rodrigues Malheiros, era rico
proprietário e comerciante entre a região de Monte Alto e Rio Pardo de Minas. No seu
espólio, em 1908, foi declarado um monte-mor de Rs. 60:005$210. Somente em dívidas
ativas, ele tinha a receber na praça Rs. 27:774$536, referentes à agiotagem e negócios
realizados em feira de gado e outras atividades. Declarou, ainda, gastos com a feira de gado e
com vaqueiros que pegavam vacas e cuidavam dos animais. Observa-se, nesse inventário, a
movimentação de senhores ricos após a abolição da escravidão, ativos na economia da
região.200 E muitos daqueles prestadores de serviços eram ex-escravos que permaneceram nas
propriedades, provavelmente dentro dos mesmos padrões do favor.
Os demais senhores, descritos no referido quadro, eram ricos fazendeiros, como os
Laranjeiras, Pereira Castro e Andrade. Chama atenção, ademais, na relação dos alforriados
pelo Fundo de Emancipação, o valor repassado pelo Estado à vila de Monte Alto, um
montante de Rs. 2:428$333, considerado muito pouco para que parcela significativa dos
escravizados alcançasse a alforria, ficando nítida a não acessibilidade a todos os cativos.
Importante dizer que esse montante foi dividido entre sete cativos de senhores diferentes e
isso denota que também não era qualquer senhor que tinha acesso às cotas. Grandes senhores
disputavam a largada da concorrência, o que dificultava o acesso a cativos de pequenos
senhores.
Certamente, os sinais da abolição definitiva, pelo menos do ponto de vista legal,
reforçavam a relutância à continuidade da escravidão e, cientes de que não seriam
indenizados, disputavam qualquer valor disponibilizado pelo Estado para não ficarem no
prejuízo. A quantia repartida e os valores atribuídos aos cativos da sexta cota eram muito
abaixo do que se costumava arbitrar nas avaliações de cativos para a região e, mesmo que as
vendas do tráfico tenham diminuído naqueles anos de 1885, é possível inferir que os senhores
utilizaram essa estratégia, de declinar o preço, somente para receber a cota. Na prática, é
possível que alguns deles tenham mantido relação de dependência com seus antigos senhores
e devessem algum valor, favor, em troca da permissão da alforria.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Rodrigues
200
Malheiros, 1908.
219
Era o ano de 1850, época em que a escrava Angélica, africana, de trinta anos de idade,
assassinou sua senhora, de nome Maria de Tal, mulher de Modesto Rodrigues de Monção,
médio fazendeiro, residente na localidade de Barreiras, distrito de Monte Alto201. Angélica foi
julgada como ré no crime e, no interrogatório feito pelo delegado, assumiu a culpa com
notável desembaraço. Afirmou ter matado sua senhora à noite, quando esta se encontrava
dormindo, desferindo-lhe pancadas com uma mão de pilão, justificando o ato por ter sido
amarrada. Diante da confissão do crime e da confirmação das testemunhas e demais pessoas
envolvidas no processo, o juiz de Monte Alto pronunciou a prisão da escrava, enquadrando-a
no Art. 192 do Código Penal da época, com as circunstâncias de agravos do Art. 16 1.ᵒ, 7.ᵒ,
8.ᵒ, e 15 do mesmo Código.202
201
O processo-crime pode ser definido como um instrumento jurídico que visa desvendar e enquadrar crimes nos
padrões de regras do Código Penal da época. Para tanto, pressupõe formalidades técnicas na instauração do
corpo processual a depender do tempo, lugar e tipologia do crime. Para o século XIX, autores que trabalharam
com esse tipo de documento definiram basicamente que o processo se compõe de sumário de culpa – “conjunto
de peças que autorizam a denúncia e justificam a pronúncia do acusado nos crimes previstos pelo Código
Criminal”. Em seguida, procede-se ao julgamento com a fala do réu, das testemunhas, juramentos, configuração,
julgamento e punição ou absolvição do criminoso (WISSENBACH, 1998, p. 40) e (PIRES, 2003, p. 107). Nem
sempre o crime deflagrado no inquérito da polícia desencadeava-se em processo e, quando resultava na
condução da continuidade das investigações em processo, em alguns casos, ocorriam contradições nos conceitos
usados pela Justiça, na omissão ou alteração dos fatos pelas testemunhas que reconduziam a novos julgamentos,
alterando assim o transcurso das investigações. Os crimes poderiam ser classificados como de ordem pública,
contra pessoas e a propriedade. Como fonte de apreensão histórica, os processos-crime contribuíram “na
elaboração de uma história social”, como evento histórico e realidade. É também no exame desses documentos
oficiais que se observa o comportamento das camadas dominantes, bem como as experiências e práticas
cotidianas dos grupos marginalizados e anônimos (MACHADO, 1987, p.22-23). Conclui a autora que o processo
criminal é um mecanismo de controle social por parte do aparelho judicial, impõe um padrão de linguagem
específica da jurisdição entre a mediação do escrivão, réu, testemunhas e o registro escrito. Apesar do caráter
normativo e sempre em busca da verdade, o documento permite adentrar os aspectos da vida cotidiana, no dia a
dia dos implicados, na vida íntima das pessoas, bem como investiga laços de parentesco e convivência social
entre as partes interessadas.
202
APEB. Seção Judicial. Processos-crime, classificação. Est. 12/464/04, n. 2585, 1870.
203
APEB. Auto Crime – Homicídio. Angélica (escrava), Monte Alto, 1850.
220
25. E, em virtude do art. 60 do seu Cód. Crime, condenado a 200 açoites a serem recebidos no
quarto da cadeia. Ao senhor do réu ficariam as despesas do processo e ele ficaria obrigado,
por termo, a trazer o escravo com um ferro no pescoço, no espaço de 2 a 3 meses. Mas como
o senhor não concordou com a sentença do juiz municipal, apelou para o Superior Tribunal da
Relação204.
O procurador do réu, contratado pelo senhor de Ciríaco, arguiu no processo várias
situações que considerava, no mínimo, contraditórias: a começar pelas testemunhas, que
apresentavam provas inverídicas, a falta de exame de corpo de delito no processo, situações
de que a fazenda estava sendo espionada por outros escravos do queixoso e que, pela mísera
condição do réu, não havia motivo para que, sem provas cabais, fosse submetido ao horrível
suplício do art. 60, “e que já devera ter sido riscado do nosso bello código penal,” como já
haviam sido arrancados das praças públicas os bárbaros e repugnantes pelourinhos205.
Os açoites usados como castigos legítimos pelos senhores “imprimiam no corpo de
homens e mulheres as marcas da crueza da vida social sob a escravidão”, afirma Maria de
Fátima Novaes Pires (2003, p. 117). As marcas de torturas variavam conforme o grau do
crime, causando, nos escravos, constrangimento e sofrimento, limitando o cativo à mobilidade
física e social, além de servir de exemplo aos demais cativos, a fim de evitar que ações
semelhantes viessem a ocorrer.
Não ficou claro no processo se Ciríaco chegou a receber os castigos determinados na
sentença, provavelmente, a intervenção imediata de prosseguir o processo serviu para
prorrogar o prazo da condenação e punição severa. Em se tratando de um escravo, certamente
a nomeação do procurador partiu do seu senhor, que se sentiu injustiçado na sentença e
constrangido por ter que arcar com as despesas do processo. Soma-se, ainda, o fato de que as
marcas de ferro no corpo de um cativo, além de ser constrangimento para o senhor,
incorreriam em perda do valor que, para aquela época, se apresentava em alta no mercado.
Ciríaco exercia a profissão de vaqueiro, atividade que o promoveria a preços altos, chegando
a Rs. 1: 000 $000 e 1: 500$000 um escravo no termo, entre as décadas de 1860 e 1880.
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Furto. Interessado: Almeida, Jesuíno Eugênio E. Monte
204
Ciríaco era escravo de confiança, especializado em uma profissão essencial para um senhor
com criação de gado vacum.
Nessas circunstâncias, justifica-se a “proteção” recebida e, obviamente, a condenação
do cativo causaria prejuízos ao senhor, por isso, ele recorreu da sentença. De acordo com
Lana Lage da Gama Lima (1981), a pena de galés perpétua, aplicada a homicídios de feitores,
senhores e insurreições de escravos, nem sempre agradava a senhores escravistas, pois,
“embora a reconhecesse como pena grave para os homens livres, argumentavam que para os
negros não constituíam dano algum, servindo somente para afastá-los das fazendas,
prejudicando seus senhores” (LIMA, 1981, p.46).
Entretanto, para alguns cativos, e a depender da situação, optar pelas galés significava
arriscar outra opção de vida; mesmo que o lugar fosse insalubre, era preferível a conviver com
maus-tratos e trabalho extenuantes. Era também uma forma de resistir ao cativeiro, de
desestruturar o monopólio do domínio senhorial, por isso, muitos senhores preferiam
aumentar o reforço nas fazendas com a presença de feitores e instaurar sua punição própria,
sem necessariamente recorrer à prisão.
A presença de feitores no controle e vigilância de escravos foi opção de alguns
grandes senhores do termo de Monte Alto, a exemplo de Faustino Moreira Castro, dono da
Fazenda Cajueiro, em 1866, que dispunha, naquela época, de 55 escravos em sua propriedade.
O escravo Manoel, “Mulato de Sancta Anna”, de 65 anos de idade e avaliado em
Rs. 300$000, foi declarado feitor da referida fazenda; outras grandes unidades da região
também indicaram em espólios a figura do feitor. A presença desse personagem, ainda que
fosse também uma propriedade senhorial, mas que, ao assumir essa função, se hierarquizava
em relação aos demais companheiros de cativeiro, demonstra o quanto senhores abastados de
Monte Alto optaram pela instalação da punição própria em suas propriedades. A atuação da
polícia para Monte Alto era pouco eficaz, visto não possuir cadeia adequada, dispor de pouco
aparato policial para efetivar as execuções, sem contar a dificuldade de adentrar as extensas
localidades na captura de infratores, pois as estradas e caminhos, naquela época,
encontravam-se em péssimas condições, dificultando os trabalhos do diminuto aparato
policial, daí, senhores escravistas exerciam a própria punição.206
Os relatos de correspondências da polícia sobre o interior registraram insucessos nas
capturas dos criminosos. Em todos os quadros demonstrativos de ocorrências, a situação de
obstáculos que os policiais e os delegados enfrentavam no interior era corriqueira. O
APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série: correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
206
207
APEB. Relatório ao Ints° Ministro da Justiça em mapear estatísticas na conformidade do regulamento n.1200,
Art.181. Correspondências da polícia, 1848.
208
Lei de 04 de junho de 1835, em seu “Art. 1ᵒ. Determina as penas com que devem ser punidos os escravos,
que matarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; e estabelece
regras para o processo. Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por
qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa
physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a
administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento, ou offensa physica forem leves,
a pena será de açoutes a proporção das circumstancias mais ou menos aggravantes. Art. 2º Acontecendo algum
dos delictos mencionados no art. 1º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que
caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinaria do Jury do Termo (caso não esteja em exercicio) convocada
pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados.” Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM4.htm>. Acesso em: 11 fev. 2016. A lei aqui foi copiada na
íntegra, de acordo com o site do Planalto. Essa lei é referida por vários pesquisadores que estudam criminalidade
escrava. Antes dessa, vigorava a Lei de 29 de março de 1719, que “proibia aos mulatos, e pretos escravos o uso
de facas e outras armas sob pena de 10 anos de galés (PIRES, 2003, p.105)”. Acrescenta a autora que, em 1749,
a lei de proibição do uso de armas foi estendida aos forros e negros livres. A autora menciona ainda que, até
1824, prevaleciam as determinações de mutilações, como marcas de ferro quente, esmagamento de dedos, corte
das orelhas, amputação parcial dos pés e o uso irrestrito do chicote. Até 1876, os crimes cometidos por escravos
eram punidos com a pena de morte, que, a partir daí, foi abolida dos códigos criminais. Porém, desde 1857, a
pena de morte havia sido substituída pelas galés perpétuas. Em função das leis, nota-se no sertão que as
224
decorrer do processo-crime da escrava Angélica, foi possível identificar, entre os relatos das
testemunhas, duas declarações importantes a respeito do fato: uma, da primeira testemunha,
de nome Joaquim Rodrigues da Trindade, de qualidade pardo, casado, morador das Barreiras,
distrito da vila, de profissão lavrador, respondeu afirmativamente, justificando-se pela razão
do que a acusada havia dito, pela própria boca, a outras pessoas. A segunda testemunha
também indicou aproximação com a escrava Angélica. Era Marçal Roiz Munção, solteiro, de
qualificado como pardo, morador das Barreiras, onde vivia da criação de gado e lavoura e
tinha 33 anos de idade. Ao ser interrogado se sabia ou ouviu dizer se a Ré cometeu o crime,
respondeu “que ouviu da boca da mesma Ré quando foi presa”. Perguntado se sabia o motivo
pelo qual a mesma Ré, conforme lhe tinha dito, cometeu o crime, respondeu “que na véspera
sua senhora lhe tinha dado humas bofetadas”209. Os fatos acima testemunham que Angélica
havia planejado o crime e não hesitou em contar para seus conhecidos. Evidenciam, ainda,
que a escrava mantinha relações de amizade fora do âmbito do seu senhor, inclusive com
pessoas livres e/ou ex-escravos, e suas ações não resultaram em espanto para a vizinhança. A
escrava fizera questão de espalhar os maus-tratos que vinha sofrendo, obviamente revelando
seu plano de resistência.
Similar à ação conflituosa protagonizada por Angélica, o incidente a seguir, ocorrido
no ano de 1849, na vila de Caetité, vizinha a Monte Alto, reforça “comportamentos extremos”
de escravos frente à força senhorial. No dia dois de julho, às 11 horas da manhã, dois pretos
escravos, de nomes Custódio e Braz, atacaram o Tenente Alexandre José Pinheiro, dentro de
sua própria roça, “o qual, auxiliado por E. Fellipe Nery da Cruz, resistiu aos agressores, que
lhes dispararam 03 tiros”. Apenas um caroço de chumbo acertou a pálpebra do olho esquerdo
de Pinheiro. Após o ato, os mesmos negros foram à casa do ajudante José Pinheiro Pinto e, na
ausência deste, tentaram tirar da casa duas escravas e amásias dos agressores. Os demais
escravos da casa resistiram e não aceitaram a fuga. No dia seguinte, os mesmos escravos
rechaçados retornaram ao local e atearam fogo na cobertura da casa. Em seguida, foram
capturados, mas, posteriormente, conseguiram fugir.210
Os escravos possuíam armas de fogo e facão e, na fuga, deixaram uma arma, um
facão, duas zagaias e 40 e tantas balas, muita pólvora e chumbo, além de roupas e produtos
autoridades passaram a se preocupar com as prisões dos escravos e livres que cometessem crimes. Porém, vale
sinalizar que nem sempre os infratores dos crimes eram capturados. A ineficiência das cadeias, distâncias da
província, a morosidade de comunicação e habilidades para adentrar os cerrados e catingas extensas das áreas
sertanejas foram fatores de fracasso nas apreensões dos criminosos.
APEB. Auto Crime – Homicídio. Angélica (escrava), Monte Alto, 1850.
209
APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série: correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
210
comestíveis. Mesmo com o incidente, no terceiro dia após os conflitos, foram apreendidas as
duas escravas pela polícia e, por ocasião do fogo ateado à casa do senhor, outras duas ficaram
feridas. Continuaram a perseguição aos escravos tidos como réus do crime, “a fim de não se
211
agregarem a eles outros escravos” . Mais uma vez, é notória a apreensão senhorial diante
das ações de “rebeldia” dos escravos e a preocupação da polícia com a possibilidade de
ampliação desses atos a outros cativos, ainda que alguns deles preferissem continuar na órbita
do favor, estando menos dispostos a arriscar confrontos, como fizeram os cativos que não
aderiram à fuga, segundo Robert W. Slenes (2010, p. 281).
Chama a atenção, nos dois casos analisados, o grau de articulações que escravos
mantinham dentro e fora do cativeiro com seus pares, livres pobres e forros. Percebe-se, nas
atitudes de Angélica, a mobilidade física além do espaço privado de sua senhora, ao
compartilhar com amigos e vizinhos os castigos recebidos e planejamento de suas ações,
demonstrando ampliação e fortalecimento de redes de relação que iam de encontro à política
do cativeiro. Mais ainda, a fuga planejada por Custódio e Braz é reveladora da importância de
articulações e mobilidade com indivíduos de diferentes condições sociais. Conseguir roupas,
alimentos, armas e, certamente, abrigo após a fuga, exprime sólida rede de relação.
Entretanto, em algumas situações verifica-se que relações de tensão e conflitos
também faziam parte das vivências cotidianas entre os escravos. A persistência do sofrimento
levava ao desespero e a atitudes de crimes hediondos cometidos por eles, ao acreditarem que
estariam dirimindo vicissitudes impostas a suas vidas. Em Umburanas (atual Urandi), o
escravo Clementino assassinou os escravos de nomes Leandro e Miquelina Maria de Jesus 212.
E, no ano de 1851, na vila de Carinhanha, a escrava Sérgia matou o filho menor de três anos,
de nome Porfírio, torcendo-lhe o pescoço e, em seguida, a mesma escrava tentou se afogar no
rio, sendo salva e recolhida para a prisão213. Verificam-se, nesses crimes, as dificuldades
enfrentadas e como as tensões vividas no cativeiro se refletiam fora do âmbito do convívio
social. A tentativa de suicídio da escrava Sérgia, ao tirar a vida do seu filho e, em seguida, a
sua vida, significou modos de livrar-se do cativeiro, dos abusos de senhores e senhoras, que
forçavam a trabalhos extenuantes, ou a venda, separando os cativos de seus familiares.
APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série: correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
211
Ao articular com outros estudos sobre o Alto Sertão e com o contexto macro das
relações escravistas no Brasil, verifica-se o quanto cativos se imbuíam de uma consciência
individual com grandes implicações no coletivo. Pesquisas recentes evidenciam diretrizes que
marcaram as formas de controle social e a reprodução da ordem escravista, contextualizando-
as no tempo e espaço em que as formas de resistência aconteceram, atentando sempre aos
pormenores imperceptíveis e às singularidades históricas de cada região. Consideradas pelas
elites dominantes como atos criminosos, para os cativos, forros e livres pobres, tensões
conflituosas foram alternativas de alcance da liberdade.
A “rebeldia” escrava se fez sentir também em outras formas de manifestação
cotidiana, inclusive contra proprietários de pequenas posses, a exemplo das fugas para os
quilombos, e senhores apressando as vendas de seus cativos devido à dificuldade de controlar
ações mais enérgicas de resistência, que cresciam sem precedentes. Em 1855, o inventário de
Prudêncio Gomes dos Santos, pequeno proprietário, com monte-mor arrolado no valor de
Rs. 1: 460$000, deixara registrado que o escravo Faustino, de 12 anos, foi vendido por
Rs. 400$000 porque era muito fujão214. As mesmas disposições encontram-se no inventário de
José Themotheo Ferreira dos Santos, também pequeno proprietário, com riqueza avaliada em
Rs. 2:807$420, no qual, em 1845, consta uma petição do tutor de um menor, requerendo
autorização da venda da escrava Custódia, sendo que esta vinha “apresentando condições de
fuga” e o tutor temia que o menor ficasse em prejuízo215.
Cativos de grandes propriedades também fizeram uso da fuga como estratégia de se
livrar do cativeiro, como alguns pertencentes ao Major Manoel Moreira da Trindade, grande
proprietário da Fazenda Canabraval, que, no ano de 1866, possuía 79 escravos, com quatro
fugidos: Pedro, crioulo, de 45 anos, fugido havia cerca de quinze anos, Gonçalo, cabra, de 40
anos, Felipe, crioulo, de 35 anos, fugido havia cinco anos, e Severino, cabra, de 60 anos.216
Escravos do sertão ensejaram fugas, cometeram atos de insubordinação, assassinatos e
suicídios por não compactuarem com os maus-tratos de senhores escravistas e pelo desejo de
viver fora do cativeiro. Contaram, para isso, com a ajuda de outros companheiros e, na
maioria das situações, o que era encarado pelas autoridades como violência, tratava-se, na
verdade, de dura resistência e de descumprimento às normas instituídas; em outras situações,
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Prudêncio Gomes de
214
Foram essas pequenas aberturas que permitiram delinear indícios da vida escrava, de
forros e livres pobres no termo de Monte Alto. As histórias retiradas de fragmentos esparsos
da documentação ensejaram evidências das relações senhor-escravo na região, considerando a
interferência da grande, média e pequena posse no desenrolar das inúmeras ações de cativos
na busca por alforria e estabilidade familiar. Mesmo que tenham sido ações individuais, as
práticas cotidianas de resistência revelaram que o mundo dos escravos ansiava por interesses
muito diferentes dos de seus senhores e os escravos não pouparam esforços para alcançar
conquistas. As encruzilhadas eram muitas, nem por isso se perderam no caminho.
Muitos senhores, na iminência dos riscos, pressionaram as autoridades municipais e
judiciárias para programar medidas eficazes de controle social, como os códigos de posturas,
as prisões em galés, apreensão dos crimes e punições rígidas. Quando houve fragilidade
dessas instituições, preferiam agir por conta própria, criando mecanismos individuais de
conter as práticas de insubordinações, fugas e demais ações praticadas por cativos e que
fossem consideradas crimes.
Verificou-se a existência de ações imprevisíveis de determinados indivíduos que
recorriam a crimes para sanar situações consideradas abusivas. No convívio das relações
humanas, a violência foi um recurso utilizado no sertão, pelo fato de que as distorções sociais
entre indivíduos ricos e pobres eram bastante acentuadas, além da convivência mútua, de
simplicidade nos modos de vida e de uma tímida mobilidade social marcada pela pobreza.
Situações que, de certa forma, eram percebidas pelos escravos, forros e livres pobres e, como
228
CONSIDERAÇÕES FINAIS
iminente a vida e a esperança de conquistar pecúlio para a compra da alforria, por isso
recorriam a situações extremas de violência imediata, em alguns casos, para atenuar a vida
cruel do cativeiro. As dificuldades econômicas de pequenos senhores revelaram o quanto
difícil era a vida para essas categorias sociais que, diante de tais evidências, encontraram, nos
arranjos cotidianos, rede de contatos e fortaleceram suas ações com pobres livres e forros para
atenuar a vida imprevisível no cativeiro.
A compreensão dessas teias de relações da sobrevivência só foi possível quando se
enveredou por caminhos diversos, elegendo e cruzando diversas fontes históricas, para
entender os indícios das experiências sociais, ora envolvidas por vínculos de solidariedade,
ora de tensões e contradições no modo de viver. Ao depor sobre essas relações, a
documentação em evidência mostrou os graus de proximidade, de vizinhança, e o significado
de ser escravo em pequena, média e grande propriedade. Nas experiências de vida coletiva e
individual, construíram laços de fortalecimento entre si e os seus, mesmo que os limites
impostos pelos senhores deixassem marcas indeléveis nas vidas de muitos deles.
Desse modo, diante da conjuntura do tráfico interno, esses homens e mulheres atuaram
com astúcia e desenvoltura no que queriam para si e pelos seus. Foram também responsáveis
pela manutenção da unidade familiar no cativeiro, e simultaneamente atendiam a seus
senhores, e fizeram desse instrumento medida eficaz para o alcance da alforria, das
contestações e da resistência aos abusos senhoriais, sobretudo em grandes e médias
propriedades.
Assim, o contexto do tráfico interno, em Monte Alto, tornou-se ainda mais custosa o
alcance à alforria e a integralidade da família escrava, sobretudo entre aqueles cativos
pertencentes a senhores de parcos recursos. Por constituir um bem de maior valor nos espólios
de senhores de grandes, médias e pequenas propriedades e pela ampla procura nos mercados
do Sul e Sudeste do país, no século XIX, era comum que esses senhores recorriam à venda de
seus cativos para obter lucros, cobrir despesas ou investir em outros negócios. No caso dos
senhores de parcos recursos à volatilidade das vendas era uma questão de necessidade, frente
às crises financeiras que assolavam constantemente suas rotinas. Havia ainda, às frequentes
intrigas entre herdeiros e por isso não hesitavam em desfazer desse bem de maior liquidez,
colocando em vulnerabilidade as formas de organização e convivência do cativeiro. Escravos
de grandes senhores também eram vítimas do tráfico interno, mas o número considerável da
posse na mão daqueles senhores facilitava o acesso a distintas alternativas, entre elas, a
compra da alforria e maior tempo de permanência familiar entre eles. A capacidade
econômica das grandes propriedades, a utilização de terras para o plantio e a criação de
231
animais (gado vacum, cavalar e etc), são fatores que influenciaram na vida cotidiana de
escravos e em maiores chances para negociarem a alforria, ainda que essas possibilidades
estivessem imersas no campo da “força e do favor”.
Por fim, registramos que este estudo constituiu esforço despendido diante do
amontoado de fontes inéditas, ainda não catalogadas e sem o devido cuidado, basicamente,
inventários, livros de notas e processos-crime do termo de Monte Alto, no Alto Sertão da
Bahia, ao longo do século XIX, em que se constatou a existência de números significativos de
fazendas e sítios com muitas histórias sobre as relações senhor/escravo, forros e livres pobres.
232
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