Em Diligência de Se Libertar. Alforria, Família Escrava e Tráfico Interprovincial, No Alto Sertão Da Bahia - Termo de Monte Alto (1810-1888)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ROSÂNGELA FIGUEIREDO MIRANDA

“EM DILIGÊNCIA DE SE LIBERTAR”: ALFORRIA, FAMÍLIA ESCRAVA e


TRÁFICO INTERPROVINCIAL NO ALTO SERTÃO DA BAHIA - TERMO DE
MONTE ALTO (1810 - 1888)

Salvador 2018
ROSÂNGELA FIGUEIREDO MIRANDA

“EM DILIGÊNCIA DE SE LIBERTAR”: ALFORRIA, FAMÍLIA ESCRAVA e


TRÁFICO INTERPROVINCIAL, NO ALTO SERTÃO DA BAHIA - TERMO DE
MONTE ALTO (1810 - 1888).

Texto apresentado ao Programa de Pós-


Graduação em História Social, da
Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, como requisito
para defesa de tese no Curso de Doutorado em
História Social.
Área de Concentração: Escravidão e invenção
da liberdade.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima


Novaes Pires.

Salvador
2018
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA),
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Figueiredo Miranda, Rosângela


" EM DILIGÊNCIA DE SE LIBERTAR ":
ALFORRIA, FAMÍLIA ESCRAVA e TRÁFICO INTERPROVINCIAL
NO ALTO SERTÃO DA BAHIA - TERMO DE MONTE ALTO (1810 -
1888) / Rosângela Figueiredo Miranda. -- Salvador -
BA, 2018.
243 f.

Orientadora: Dr.ª Maria de Fátima Novaes Pires.


Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em
História) -- Universidade Federal da Bahia,
Universidade Federal da Bahia, 2018.

1. Escravidão. 2. Família escrava. 3. Alforria. 4.


Tráfico interprovincial. 5. Monte Alto. I. Novaes
Pires, Dr.ª Maria de Fátima. II. Título.
ROSÂNGELA FIGUEIREDO MIRANDA

“EM DILIGÊNCIA DE SE LIBERTAR”: ALFORRIA, FAMÍLIA ESCRAVA e


TRÁFICO INTERPROVINCIAL, NO ALTO SERTÃO DA BAHIA – TERMO DE
MONTE ALTO (1810 - 1888).

Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História Social, da Universidade


Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, como requisito para defesa de
tese no Curso de Doutorado em História Social.

Área de Concentração: Escravidão e invenção da liberdade

Aprovada em:______/______/_______.

BANCA EXAMINADORA

Prof.a Dr.a Maria de Fátima Novaes Pires (Orientadora) - Universidade Federal da Bahia

Prof.a Dr.a Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes - Universidade do Estado da Bahia

Prof.a Dr.a Sharyse Piroupo do Amaral – Universidade do Estado da Bahia

Prof.º Drº. Alex Andrade Costa – Universidade Federal da Bahia

Prof.ª Drª. Ione Celeste Jesus de Sousa – Universidade Estadual de Feira de Santana
AGRADECIMENTOS

Esta tese, que hoje apresento, foi fruto de algo almejado e pensado desde a minha época de
graduação. Por conta desta temporalidade mais extensa, muitas pessoas, de alguma forma ou
de outra, contribuíram para a construção do que aqui se defende. Claro que algumas dessas
pessoas merecem reverências e agradecimentos.

À minha orientadora, Maria de Fátima Novaes Pires, pela dedicação e opiniões sinceras,
acertadas, conduzindo sempre para uma produção que realmente atendesse à exigência
acadêmica, requisito necessário para uma tese de doutorado. Obrigada pela paciência e pelas
horas dedicadas à orientação, à leitura do texto e eficiência no acompanhamento.

A Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes e Sharyse Piroupo do Amaral, por terem participado da
banca de qualificação, com contribuições valiosas de sugestão e leitura, para incorporar no
desenvolvimento da pesquisa. Sou grata por terem aceitado o convite e por fazerem parte
deste estudo.

À minha amiga e querida Danielle Silva Ramos, que participou da pesquisa desde a
identificação do acervo histórico de Monte Alto, até a finalização deste trabalho. Leu meus
textos, deu sugestão, além do apoio moral em todos os momentos da escrita. A você, Dani,
minha eterna gratidão.

À professora Maria Belma Gumes Fernandes, referência regional na correção de trabalhos


acadêmicos. Após anos de dedicação à educação, até hoje se mantém vinculada a este
ambiente, contribuindo com seu precioso conhecimento. Além da contribuição intelectual,
demonstrava sentimento de carinho e amizade. Obrigada, Belma, pelas horas de conversa e
conselhos.

Não poderia esquecer-me de lembrar os meus pais, que, apesar de pouca instrução, souberam
identificar a educação como um caminho para vencer na vida.

Ao meu esposo, Manoel Miranda, e a minha filha, Ana Clara, obrigada pelo amor e
compreensão em todos os momentos da minha vida, sobretudo pelo apoio incondicional nas
dificuldades e nos momentos de exaustão durante esses quatro anos.
Agradeço à FAPESB pela concessão da bolsa de doutorado e ao Instituto Federal Baiano, pela
liberação para realizar este estudo.

Às amigas de Monte Alto: Adriana Cruz Veiga e Leila Cotia de Assunção, pela presteza em
transcrever parte das fontes utilizadas nesta pesquisa, e aos funcionários do Fórum de Monte
Alto, que me atenderam com simpatia e sempre solícitos ao fornecerem informações e
identificação de documentos.

A Laiane Fraga Silva, pelas conversas de incentivo e amizade.

Ao amigo Pedro Aurélio dos Santos Carvalho e Santos, pelos favores prestados, sempre
mandava de Salvador as encomendas de que eu precisava.

Enfim, a Deus, meu refúgio, onde busco forças e coragem para seguir nesta grandiosa
conquista!
RESUMO

Este estudo analisa as relações entre senhores e escravos elaboradas nas diversas experiências
de convívio de grandes, médias e pequenas propriedades do termo de Monte Alto, no Alto
Sertão da Bahia. Interessa compreender, sobretudo, os diferentes meandros percorridos por
escravos com senhores, forros e livres pobres na busca pela alforria e manutenção dos laços
familiares, destacando as diferenciações e implicações do ser cativo de grandes, médias e
pequenas propriedades. Situa-se entre os anos de 1810 e 1888, século XIX, período marcado
pela vigência do tráfico atlântico, da expansão do tráfico interno e das leis emancipacionistas.
O fim do tráfico atlântico, em 1850, e a intensificação do tráfico interprovincial a partir de
1840, na região do Alto Sertão baiano, marcaram a vida de cativos com a recorrente ameaça
de venda e a relutância de senhores em conceder a alforria, tornando-a difícil e complexa.
Grandes propriedades contaram com escravaria numerosa e condições econômicas versáteis, o
que permitiu a cativos encontrarem, na dinâmica daquelas atividades, maiores possibilidades
de tecerem arranjos e negociações com seus senhores, diferentemente dos cativos de pequenas
propriedades, que não puderam contar com as mesmas chances. Nesse viés de argumentação,
tentarei demonstrar que a integralidade da família escrava e a obtenção da alforria foram
favorecidas em grandes e médias propriedades, ainda que o tráfico interno constituísse força
na região.

Palavras-chave: Escravidão. Família escrava. Alforria. Tráfico interprovincial.


ABSTRACT

This study analyzes the relations among masters and slaves occurred in different experiences
of coexistence in large, medium and small properties in the term of Monte Alto, in the high
rough northeast of Bahia. It is important to understand mainly the different meanders covered
by slavers with masters, freed slaves and poor free slaves searching for manumission and
maintenance of family ties, emphasizing differentiation and implication of the human being of
large, medium and small properties. It is situated between 1810 and 1888, XIX century, in
period marked by the Atlantic traffic, the expansion of the internal traffic and the
emancipationist laws. The end of the Atlantic traffic, in 1850, and the intensification of the
provincial traffic from 1840 in the region of high rough northeast of Bahia earmarked the
slaves life with the recurrent threat of sale and the reluctance of masters in granting
manumission, becoming it difficult and complex. Large properties had large enslavement and
versatile economic conditions and this allowed the slaves to find, in the dynamic of those
activities, great possibilities of weaving arrangements and negotiations with their masters,
differently of the slaves of small properties that could not to count with the same chances. In
this bias of argumentation, I will try to demonstrate that the integrality of slave family and the
attainment of the manumission were favored in great and medium properties even the internal
traffic formed force in the region.

Keywords: Slavery. Manumission. Slave family. Internal traffic.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Desenho da Vila de Monte Alto realizado por Theodoro Sampaio – 1879 ........... 37
Figura 2 - Mapa contendo o trecho entre Monte Alto e Caetité, desenhado por Theodoro
Sampaio em 1879 .................................................................................................. 38
Figura 3 - Cidades, trajetos e rios no Alto Sertão da Bahia, 1879.......................................... 39
Figura 4 - Igreja Matriz construída em 1735 no sopé da Serra de Monte Alto ...................... 51
Figura 5 - Limites do termo de Monte Alto em 1856............................................................. 52
Figura 6 - Trajeto percorrido pelos tropeiros do Alto Sertão com destino ao Recôncavo da
Bahia e Salvador .................................................................................................... 54
Figura 7 - Família cativa de Inineo e Desidéria.................................................................... 121
Figura 8 - Rede Familiar de Faustino e Dorotheia ............................................................... 129
Figura 9 - Família escrava da Fazenda Gonçalo – 1869....................................................... 142
Figura 10 - Escravos de Marçal Roiz Monção – 1875 ........................................................... 185
Figura 11 - Casarão da Fazenda Lameirão ............................................................................. 191
Figura 12 - Casarão da Fazenda Poço Comprido .................................................................. 191
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Distribuição do monte-mor por faixa e período de 1820 a 1889........................... 68


Tabela 2 - Registro de procurações e de escravos no termo de Monte Alto .......................... 72
Tabela 3 - Registro de procurações e de escravos na Freguesia do Gentio ............................ 72
Tabela 4 - Distribuição da riqueza dos inventários em porcentagem, entre 1820-1889 ........ 74
Tabela 5 - Número de casamentos por livro, termo de Monte Alto, 1840-1886 .................... 76
Tabela 6 - Origem dos escravos entre 1810 – 1850 ..................................................................... 85
Tabela 7 - Posse escrava por proprietários no termo de Monte Alto ..................................... 88
Tabela 8 - Amostragem do número de escravos e proprietários do termo de Monte Alto..... 89
Tabela 9 - Média de escravarias por tamanho de propriedade – termo de Monte Alto, 1810-
1880 ....................................................................................................................... 89
Tabela 10 - Preço, idade média dos escravos, Palmas de Monte Alto – 1811 a 1870 ............. 93
Tabela 11 - Faixa etária de escravarias entre grandes, médias e pequenas propriedades......... 95
Tabela 12 - Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa
de monte-mor de Rs. 15:001$000 a Rs. 50:000$000 .......................................... 102
Tabela 13 - Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa
de monte-mor acima de Rs. 50:000$000 ............................................................. 103
Tabela 14 - Origem e gênero dos alforriados em Monte Alto – 1850 a 1888 ........................ 110
Tabela 15 - Número de casamentos por tamanho de propriedade – termo de Monte Alto,
1810-1880 ............................................................................................................ 123
Tabela 16 - Cônjuges legítimos por livro X Condição jurídica, Termo de Monte Alto, 1840-
1886 ..................................................................................................................... 124
Tabela 17 - Cor dos cônjuges, termo de Monte Alto, 1840-1886 .......................................... 126
Tabela 18 - Batizados de Monte Alto – Filhos legítimos X Filhos naturais (1858 – 1879) ... 138
Tabela 19 - Condição jurídica e cor dos batizandos em Monte Alto ..................................... 139
Tabela 20 - Condição jurídica dos batizandos - Termo de Monte Alto, 1858 – 1879 ........... 140
Tabela 21 - Estatuto jurídico dos padrinhos e madrinhas dos batizandos em Monte Alto,
1858-1879 ........................................................................................................... 141
Tabela 22 - Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa
de monte-mor até Rs. 1:000$000 ......................................................................... 145
Tabela 23 - Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de
monte-mor de Rs. 1:001$000 a Rs. 5:000$000 ............................................................ 146
Tabela 24 - Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 –
Rs. 5:001$000 a Rs. 15:0000$000 ............................................................................. 151
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Escravos e suas ocupações – Inventário Faustino Moreira Castro....................... 62


Quadro 2 - Tabulação dos principais vendedores, compradores e procuradores de escravos
no termo de Monte Alto e Gentio ........................................................................ 69
Quadro 3 - Fazendas, proprietários e posse escrava no termo de Monte Alto - 1811-1860... 73
Quadro 4 - População da Paróquia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte
Alto ....................................................................................................................... 78
Quadro 5 - Escravos de Belchior Pereira Guedes -1827 ........................................................ 81
Quadro 6 - Número de escravos por decênio de acordo com os inventários.......................... 87
Quadro 7 - Fazendas e Imóveis de José Antônio da Silva Castro ........................................ 100
Quadro 8 - Escravos levados à arrematação de José Antônio da Silva Castro - 1844 ......... 105
Quadro 9 - Despesas feitas com os escravos do falecido José Pedreira de Cerqueira, 1874 153
Quadro 10 - Escravos que permaneceram com a herdeira Adélia Carolina de Freitas Mesquita
– 1872 ................................................................................................................ 163
Quadro 11 - Província da Bahia – Município de Palmas de Monte Alto: escravos libertados
por conta do Fundo de Emancipação em audiência do dia 16 de abril de 1885 . 217
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Especialização dos cativos - termo de Monte Alto, 1810-1888 ............................ 64


Gráfico 2 – Percentual de riquezas x números de inventários analisados ................................ 65
Gráfico 3 - Amostra de alforrias entre grandes, médios e pequenos proprietários no termo de
Monte Alto........................................................................................................... 111
LISTA DE SIGLAS

APEB Arquivo Público do Estado da Bahia


IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IGHB Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
UNEB Universidade do Estado da Bahia
GPCSL Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................15
1.1 A família escrava .....................................................................................................21
1.2 Alforria ....................................................................................................................25
1.3 O Alto Sertão da Bahia ............................................................................................28
1.4 Fontes e Métodos .....................................................................................................31
2 SENHORES E ESCRAVOS NA FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE
ESCRAVISTA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA, TERMO DE MONTE ALTO,
SÉCULO XIX ..............................................................................................................36
2.1 “Não pode ter lugar a alforria”: alforria e família escrava, uma conquista árdua ...36
2.2 Breves considerações históricas e econômicas do lugar .........................................48
2.3 Escravos na composição da riqueza de grandes, médios e pequenos proprietários 61
2.4 Perfil populacional e posse escrava nas pequenas, médias e grandes fazendas do
termo de Monte Alto, século XIX .................................................................................76
3 ARTICULAÇÕES ENTRE SENHORES E ESCRAVOS EM GRANDES
PROPRIEDADES........................................................................................................97
3.1 Na teia da sobrevivência: alforria, família escrava e redes de relações ..................97
3.2 “Que a suplicante queira se libertar”: alforria em grandes propriedades ..............107
3.3 Tráfico interno e (des) arranjos familiares em grandes propriedades ...................120
3.4 Uma rede bem tramada: laços de família, compadrio e amizade ..........................133
4 ESCRAVOS EM PEQUENAS E MÉDIAS PRO4PRIEDADES .......................144
4.1 “Existe um único bem melhor, e de valor”: composição da riqueza de médios e
pequenos proprietários .................................................................................................144
4.2 Vivências escravas em pequenas posses: tráfico e família escrava.......................156
4.3 Alforria em pequenas propriedades .......................................................................165
4.4 Na teia da sobrevivência: escravos, libertos e livres pobres .................................177
5 VIVÊNCIAS E QUERELAS COTIDIANAS DE SENHORES, ESCRAVOS E
LIBERTOS NAS PROPRIEDADES DE MONTE ALTO ....................................190
5.1 “Como a minha tropa se vai demorando”: ambientes, moradas e vivências
cotidianas .....................................................................................................................190
5.2 “E nem deve escravidão a alguém”: escravizados e forros nos tribunais de Monte
Alto ..............................................................................................................................197
5.3 Fundo de Emancipação: Família escrava e alforria...............................................210
5.4 Criminalidade escrava: outras formas de resistência ............................................219
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................229
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................232
15

1 INTRODUÇÃO

O cenário

Contava Bonifácio que nasceu em Paramirim – a terra do assucar -, que era


filho único e que seu pae, quando ele era ainda menino, mudou-se para
Almas – hoje Jacaracy – onde se dedicou à cultura do café. Seu velho, feita a
colheita da preciosa rubiácea, pela qual tinha chodó, sahia em viagem pelos
baixios de Monte Alto vendendo o produto de sua cultura, pois naquela
região, onde não medra o café, em contraste, o povo faz um gasto
extraordinário da agradável bebida aromática. Bonifácio conheceu aquella
região, até a beira da serra na época em que os ricos fazendeiros e
plantadores de algodão possuíam numerosos rebanhos de bovinos, grande
escravaria e uma lavoura extensiva e fartamente productiva. A exportação de
gados, algodão e couros era uma esplêndida fonte de riqueza, os fazendeiros
acumulavam grandes fortunas e possuíram vivendas quase principescas.
Aquilo era um paraíso e nadava-se em fartura. A libertação dos escravos e a
enorme emigração para São Paulo abalaram muito essas fortunas, as terras
foram retalhadas, muitas casas foram derribadas, como a do Canabraval, que
era um verdadeiro palácio, sendo dispersos os materiais para construção de
casas modestas de pequenos lavradores e outras obras de somenos
importância (GUMES, 1928, p.159)1.

A epígrafe retirada do livro “Os Analphabetos”, de João Gumes (1928), escritor e


jornalista do Alto Sertão da Bahia, em fins do século XIX e primeira década do século XX,
descreve a dinâmica econômica e a circulação de mercadorias que movimentavam a região
naquela época, inclusive dando ênfase às ricas fazendas situadas no termo de Monte Alto
durante o século XIX, a exemplo da Canabraval.2 Em 1835, a fazenda pertencia a Joaquim
Moreira dos Santos e a Inácia da Silva Prates, com monte-mor estimado em Rs. 72:899$559.3
Gumes, ao descrever as atividades econômicas, como a exportação de gado, de
algodão e couro, projetou a região do Alto Sertão no intercâmbio comercial, não só entre as
vilas e cidades vizinhas, como nas províncias do Brasil e no mercado externo. Ao referir que
“a libertação dos escravos e a enorme emigração para São Paulo abalaram muito essas
fortunas”, sinalizou o comércio de escravizados do Alto Sertão para o Sudeste do Brasil, na
segunda metade do século XIX, auge da expansão das lavouras cafeeiras. Apesar dos abalos

1
Epígrafe retirada do livro “Os analfabetos”, do jornalista, escritor e tipógrafo do Alto Sertão da Bahia, João
Gumes. O autor citado trabalhou como mestre-escola durante oito anos em fazendas dessa região.
2
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção judiciária. Inventariada: Inácia da
Silva Prates. Maço 08, processo n° 021, 1847. A utilização da nomenclatura “termo” em vez de “município”
deve-se ao seu registro nas fontes analisadas neste estudo; por todo o século XIX, apareceu na documentação
referida à região de Monte Alto como “termo”.
3
O valor mencionado corresponde a: setenta e dois contos, oitocentos e noventa e nove mil e quinhentos e
cinquenta e nove réis.
16

ressaltados pelo autor, a historiografia mais recente sobre o Alto Sertão baiano evidencia que
algumas fortunas mencionadas continuaram em equilíbrio4.
O tráfico, nessa região, beneficiou muitos senhores escravistas com empreendimento
nessa atividade, ao ponto de, com o lucro proveniente da compra e venda de cativos,
investirem em outros negócios capazes de estender o poderio econômico por gerações,
criando e ampliando fortunas em suas fazendas e demais propriedades. Pequenos proprietários
também se envolveram na diversificação de atividades econômicas, como a pecuária, a
compra e venda de cativos, a produção agrícola e em investimentos alternativos, porém em
menor escala.
Noutro momento, no drama intitulado “A Abolição”, Gumes (1920) lembrou os
desmantelos do tráfico interprovincial em famílias de escravizados no Alto Sertão baiano5.
Embora o autor não explicitasse o local exato da trama, presume-se que se tratava de fazendas
escravistas no termo de Monte Alto, uma vez que ele atuou naquela região ministrando aulas
para filhos de fazendeiros. Na trama, o autor descreveu a maneira como traficantes, na figura
de Antero de Sá, arregimentavam cativos em comboios com destino às províncias do Sudeste,
sobretudo para São Paulo. Mostrou os efeitos vagarosos da Lei do Ventre Livre, o sofrimento
das famílias de escravizados representadas pelo personagem Manoel, pai de família, africano,
50 anos, que se curvou diante do seu senhor, implorando-lhe não vender seus filhos para o
cruel traficante Antero. O drama remeteu ao contexto da segunda metade do século XIX, no
Alto Sertão baiano, auge do tráfico interprovincial, que impactou a sobrevivência de muitos
escravos e libertos.
Paulo Henrique Duque Santos (2014), ao estudar a dinâmica socioeconômica do Alto
Sertão baiano entre os anos de 1890-1930, destacou variados aspectos de intercâmbios
comerciais na região para além do mercado interno. Por meio de fontes inéditas, mostrou a
importância do sertão baiano integrado a centros de capital financeiro e industrial, com
vultosas taxas de exportação de produtos agrícolas e da pecuária. Apontou, ainda, a
contribuição da historiografia do sertão baiano no revisionismo de certos conceitos da
literatura tradicional, como descreve:

4
Ver: SANTOS, Paulo Henrique Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia.
Caetité, 1890 – 1930. Tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP). 2014; RAMOS,
Danielle da Silva. O mundo aqui é largo demais: produção e comércio no termo de Monte Alto, alto sertão da
Bahia, 1890-1920. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2016.
5
GUMES, João, 1920. A Abolição. Drama. Transcrição do manuscrito feito por Maria Belma Gumes
Fernandes, março de 2013.
17

Essas dinâmicas e diversidades socioeconômicas distanciavam a realidade


daquela região de uma visão historiográfica que acentuou a agricultura
mercantil de plantation, reservando a regiões do interior sua condição
periférica (geográfica e socioeconômica), abastecedoras de alimentos para o
mercado de consumo interno. A nova historiografia do sertão baiano muito
tem contribuído para revelar essas dinâmicas sociais. Proprietários do alto
sertão criaram e produziram em terras de distintas dimensões, para o
mercado interno e de exportação. A vida social no sertão baiano apresentou
dinâmicas muito ricas (SANTOS, 2014, p. 314).

Junto ao dinamismo econômico, afirma-se a presença significativa do trabalho cativo


disseminado entre as grandes, médias e pequenas propriedades. Esses escravos eram
provenientes do tráfico atlântico, do comércio interno e da reprodução natural, conforme
inventários post mortem analisados e demonstrados no capítulo seguinte. Senhores sertanejos
valiam-se desses mecanismos não apenas para suprir as demandas das fazendas, mas,
especialmente, para ampliarem e consolidarem fortunas por meio da compra e venda de
cativos, beneficiando-se das diversas conjunturas que aquele comércio oferecia ao longo do
século XIX, o que pode ser verificado na posse escrava disseminada nas propriedades e nos
negócios dela decorrentes.
A região de Monte Alto dispunha de uma localização geográfica estratégica, com
acesso aos caminhos para vários pontos da província baiana, de Minas Gerais e Goiás. Dentro
do circuito baiano, destacava-se a vizinha Carinhanha, que, naquela época, galgava a
condição de “importante entreposto comercial e por lá passavam tropas de mulas que
movimentavam o comércio entre várias províncias do Brasil” (LIMA, 2017, p. 20). Havia,
ainda, rotas fluviais com suprimentos de mercadorias que circulavam entre as regiões do São
Francisco e adjacências. Devido à constatação da boa localização geográfica que interligava o
Alto Sertão a vários lugares do Brasil por meio do comércio, pode-se afirmar que, em Monte
Alto, se situava um entreposto comercial de mercadorias, especialmente com referência à
compra e venda de cativos.
Este estudo situa-se, assim, entre os anos de 1810 e 1888, século XIX, período marcado
pela vigência do tráfico atlântico, da expansão do tráfico interno e das leis emancipacionistas.
O fim do tráfico atlântico, em 1850, e a intensificação do tráfico interprovincial a partir de
1840, sobretudo na região do Alto Sertão baiano, marcaram a vida de cativos de grandes,
médios e pequenos proprietários com a recorrente ameaça de venda intra e interprovincial.6

Sobre a intensificação do tráfico interprovincial na Bahia a partir de 1840, ver: SILVA, Ricardo Tadeu Caires.
6

Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão - Bahia,
1850-1888. 2007. 335 f. (Tese de Doutorado). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal
do Paraná. Curitiba, 2007. Ainda; NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros Traficantes: Comércio de
escravos do Alto Sertão da Bahia para o oeste cafeeiro paulista. Revista Afro-Ásia, Salvador, 2000, p.97-
18

Senhores de grandes e médias posses atuavam na rota do tráfico como compradores,


traficantes ou representantes de firmas especializadas e, às vezes, diretamente na
comercialização de escravos. A posse numerosa de escravarias desses indivíduos mais
abastados servia para atender às demandas do mercado e à rotina de produção das fazendas,
da lavoura, do gado, do tropeirismo, de atividades domésticas e manufatureiras. Isso quer
dizer que os senhores se beneficiaram não só da mão de obra cativa, como dos lucros
provenientes da comercialização de seus cativos. Por sua vez, pequenos senhores repassavam
seus cativos a senhores abastados e envolvidos diretamente no comércio de escravos, a
traficantes e a firmas especializadas, já que o tráfico interno elevou o preço dos escravos,
fomentando a venda para cobrir despesas e, assim, favorecer sobrevivência menos
constrangida por dívidas.
Em meio à intensificação do comércio de escravos, via tráfico interno, e à relação
fortemente marcada pela política de domínio senhorial, em que “força e favor” permeavam
espaços das propriedades, senhores relutaram em conceder a alforria, tornando-a difícil e
complexa (SLENES, 2010). A família do cativo Manoel, apresentada linhas atrás, no drama
“A Abolição”, evidencia uma vida familiar, com sólidos laços de parentesco e amizade, que
sentiu o peso da imprevisibilidade e desorganização diante da ameaça de venda de seus filhos.
Em outra passagem do drama, o filho do escravo Manoel, Francisco, resistiu, diante do
traficante Antero, à sua venda como certa para as províncias do Sudeste, uma vez que
depositava em seu padrinho a proteção do destino e desejo que era outro: a obtenção da
alforria.
Irônico, o traficante desdenha de Francisco ao questionar se o padrinho tinha
condições de pagar pela alforria, pois, naquela conjuntura do tráfico interno, conquistar a
manumissão tornou-se embaraçoso nas experiências de muitos escravos. Negociá-la com seu
senhor requeria combinação de interesses que perpassavam por uma relação de “força e
favor” e, em muitos casos, com resistência mais extrema, acionando os tribunais. Diante de
tais circunstâncias, cativos valeram-se de ampla rede de relações em grandes, médias e
pequenas propriedades, conforme agiu Francisco quando mencionou desejo de conquistar a
alforria, amparado na proteção de seu padrinho. Francisco deixava explícitos a confiança e os
laços estabelecidos entre companheiros de cativeiro.

128. Ressalte-se, que Neves localizou 1.200 registros de procurações de escravos vendidos de Caetité, a partir de
1840, via tráfico interprovincial para as regiões do Sudeste.
19

Apesar das consequências do tráfico, cativos elaboraram diversas experiências e


significados no convívio de grandes, médias e pequenas propriedades. Entretanto, os
itinerários percorridos por eles distinguiam-se de acordo com o tamanho da propriedade à
qual pertenciam. A pesquisa às fontes deste estudo indica que o tamanho da propriedade e sua
dinâmica econômica interferiram nas possibilidades e pretensões de escravos no que se refere
ao alcance da alforria e integralidade das famílias de escravizados.
Grandes propriedades tinham maiores condições econômicas do que as pequenas, dada
a capacidade produtiva e o envolvimento de senhores em diferentes ramos de produção, de
comércio e atividades financeiras. Além de venderem cativos via tráfico, reservavam escravos
também para atender às necessidades da fazenda, geralmente aqueles cativos de sua plena
confiança e com habilidade na execução das tarefas. Nessa versatilidade de negócios,
escravos vislumbraram expectativas de melhores condições de sobrevivência, ao perceber
que, no exercício de ocupações variadas, poderiam reunir pecúlio e articular negociações com
seus senhores, componentes importantes à manutenção da família e à obtenção da alforria.
Fragmentos de trajetórias da vida escrava em Monte Alto demonstraram que cativos
de pequenas posses não tinham as mesmas possibilidades de obter alforria e estabilidade
familiar, se comparados aos de grandes e médias propriedades. Com parcos recursos para
ampará-los em situações de crise – secas e estiagens, dívidas e morte – quando da partilha dos
herdeiros, pequenos senhores utilizavam-se de bens econômicos para pagamento de dívidas e
despesas. E, como o cativo constituía, nos espólios, item de maior valor para a sociedade de
Monte Alto, naquela época, contando com atrativo de mercados das províncias do sul e
sudeste do País, não era incomum senhores desfazerem-se dele com frequência. Ressalte-se
que, entre as pequenas posses, havia maior incidência de senhores na demanda do tráfico
interno. Essas situações corriqueiras enfrentadas por pequenos senhores impactavam,
diretamente, as experiências escravas, tornando seus destinos imprevisíveis quanto ao
desempenho de tarefas às quais estavam acostumados, às chances da alforria e à estabilidade
familiar.
Fontes documentais de Monte Alto indiciam múltiplas experiências e estratégias de
escravos na busca por espaços para atenuar a violência sofrida e se afastar do cativeiro, com
destaque para as redes de relações construídas. Na execução de atividades cotidianas e
tessituras da vida, resistiam ou acomodavam-se conforme as adversidades vivenciadas. Para
Maria Cristina Cortês Wissenbach (1998, p.27), o conceito de resistência se reintegra “à
dinâmica das relações sociais, reincorporando-o não como repúdio ou negação, mas como
conjunto de elementos provenientes da perspectiva escrava interagindo no mundo dos
20

senhores no funcionamento do regime”7. Essas expectativas vinculavam-se a um conjunto de


crenças, valores e comportamentos fundamentais na organização social e vínculos internos:
laços de parentesco e familiares, relações de mancebia, associações de malungos e
compromissos de compadrio (WISSENBACH, 1998, p. 26).
Nessa linha de interpretação, a historiadora Maria de Fátima Novaes Pires (2009)
observou, nas relações de cativos com senhores, livres pobres e libertos, no Alto Sertão
baiano, organização de projetos próprios de vida e arranjos cotidianos constituídos para
remediar melhores condições de sobrevivência, conjugando-os a interesses e conquistas
variadas. Alex Andrade Costa (2016) identificou cativos inseridos nas atividades agrícolas, na
Baía de Camamu, na primeira metade do século XIX, liderados por ampla comunidade negra,
que conquistou espaços de autonomia significativos ao formarem “redes de proteção e
dependência envolvendo pessoas de diferentes condições” (COSTA, 2016, p.18). Os laços
afetivos e de solidariedade construídos entre escravos, livres e libertos, permitiram usufruírem
de relativa autonomia, mobilidade em suas ações e até a obtenção da alforria 8.
Nesse sentido, esta pesquisa procura analisar as relações entre senhor e escravos
elaboradas nas distintas experiências de convívio de grandes, médias e pequenas
propriedades, em Monte Alto. Embora o envolvimento de senhores sertanejos no comércio de
escravos e o tamanho da posse tenham interferido nas possibilidades de alcance à alforria e
estabilidade familiar evidenciada, sobretudo pela capacidade produtiva diversificada, não
significava que cativos de pequenas propriedades não obtivessem chances de alforrias e redes
familiares.
Interessa a este estudo compreender os diferentes meandros percorridos por escravos
com senhores, forros e livres pobres, em especial, a busca pela alforria e manutenção dos
laços familiares, destacando as diferenciações e implicações de ser cativo de grandes, médias
e pequenas propriedades. Ainda, este estudo também procura chamar atenção para as tensões

7
Para pensar essas relações, a autora baseou-se nas contribuições de Genovese sobre o paternalismo articulado
com a reintegração dos conceitos de acomodação e resistência. Nesse sentido, o conceito de resistência por
muito tempo trabalhado na historiografia brasileira, ganhou novos horizontes. Ao fazer uma releitura, “o autor
elimina a polaridade dos conceitos de resistência e acomodação, dirigindo ambos a sentido comum, retirando-os
dos limites estreitos que tradicionalmente os confinavam”. Sobre os conceitos de acomodação e resistência, ver
também: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.151.
8
Conforme Alex Andrade Costa (2016, p.31) o conceito de autonomia escrava se apoia nas definições pioneiras
lançadas por Maria Helena P. T. Machado (1988; 2014) e também seguidas por Roberto Guedes (2005),
relacionando-o com a economia própria dos cativos, sendo que a autonomia escrava se dava também na
capacidade de movimentação em espaços que circulavam; movimentação essa que se relaciona com aquilo que
Costa (2016) define como mobilidade espacial. Ainda, de acordo com Roberto Guedes (2008, p.86) tem-se a
mobilidade social, que está relacionada com as estruturas sociais, podendo ser familiar, geracional e por isso
deve ser considerada a partir de uma perspectiva relacional.
21

e conflitos como forma de resistência ao cativeiro, a exemplo das ações de liberdade e


processos-crime.
Nesse viés de argumentação, tentaremos demonstrar que a integralidade da família
escrava e a obtenção da alforria foram favorecidas em grandes e médias propriedades. Numa
região marcada pelo impacto do tráfico interno, grandes propriedades contaram com
escravaria numerosa e condições econômicas versáteis, o que possibilitou a cativos
encontrarem, na montagem e funcionamento daquelas atividades, meios de tecerem arranjos e
negociações com seus senhores. Ao inserirem-se nas ocupações das propriedades, poderiam
distinguir-se dos demais companheiros e ser favorecidos por uma relação de maior
proximidade com os senhores, ainda que houvesse um controle rígido movido pela “força” do
domínio senhorial.

1.1 A família escrava

As referências historiográficas para este estudo corroboram pesquisas da história


social da escravidão, que lançaram olhar atento sobre as mais diversas experiências de
escravos e suas redes de relações com senhores, forros e livres pobres. 9 Dentre essas
experiências descortinadas em diferentes lugares do Brasil, tem-se destacado a relevância da
família escrava, da alforria, das redes de solidariedade e outras estratégias criadas por esses

9
Genovese (1988) e Thompson (1998) foram autores que muito influenciaram em estudos de populações no
Brasil de escravizados. Sílvia Lara (1995) enfatiza a confusão que muitos pesquisadores fazem no uso do
conceito de paternalismo utilizado por Genovese e Thompson com o patriarcalismo de Gilberto Freire em “Casa
Grande e Senzala”. Salienta a autora que, na obra de Freire, o conceito é descritivo e impreciso, oferecendo uma
análise da sociedade a partir da dominação senhorial. Genovese (1988, p. 21), bastante citado nos estudos de
família escrava no Brasil, definiu a escravidão no Sul dos Estados Unidos como “um sistema de dominação de
classe”, antagônica, mas, ao mesmo tempo, complexa e ambivalente. Esse sistema pautava-se numa relação de
exploração da força de trabalho de um indivíduo sobre o outro, contudo, ao contrário do que se pensava, os
cativos não viviam na imoralidade e promiscuidade, e sim construíram formas próprias de viver e estabeleceram
relações estáveis com seus senhores. Nessa lógica de posição e sobreposição e de espaços ínfimos, os escravos
adquiriram vantagens importantes na organização coletiva de suas vidas, como: a liberdade de cultos, roupas,
alimentos, direitos para casar e constituir uniões estáveis, alforrias e, até mesmo, permissão para plantarem e
criarem animais. Por outro lado, a ponderação de atitudes abusivas por parte do senhor implicava também
ganhos, pois, consequentemente, o escravo produziria maior quantidade de trabalho. Desse modo, o paternalismo
consistia em uma prática mediadora de promoção na estabilidade nas relações entre senhor e escravo
(GENOVESE, 1988). Outro autor que também contribui para este estudo é o historiador Hebert Gutman (1976),
principalmente no que se refere às formas e graus de parentesco que os africanos, antes de serem escravizados,
construíram na África Ocidental. Ao chegarem às Américas, na condição de escravos traficados, trouxeram
consigo uma das mais ricas experiências humanas e valores culturais, adaptando-os ao convívio nas senzalas.
Gutman mostrou, ainda, como os escravos do Sul dos Estados Unidos construíram relações estáveis por meio de
práticas exogâmicas, levando à formação de extensas redes de parentesco e de solidariedades entre eles.
22

diferentes sujeitos sociais para resistir ao cativeiro.10 A construção dessas relações sociais
poderia implicar importantes vantagens na organização coletiva da vida cativa e realização de
seus desejos, ainda que imersas num plano de exploração e subalternidade.
Para ampliar a compreensão das relações entre senhor e escravo, autores como
Genovese pensaram-nas a partir de uma ótica paternalista, que consistia em uma prática
mediadora de promoção na estabilidade das relações entre senhor e escravo, o que não
eliminava o escravo da condição de propriedade privada. Do mesmo modo, Douglas Cole
Libby (2008, p. 33) reconhece o caráter da propriedade privada, marcadamente no “âmbito
fechado do domínio senhorial”, mas pondera que “a autoridade do senhor ou da senhora
nunca foi verdadeiramente absoluta, nem totalmente incontestável”. Entende que o
paternalismo consistia em uma relação de direitos e deveres e era, sobretudo, no campo dos
deveres (do senhor para com o escravo), que cativos os transformavam em direitos
conquistados. Na mediação de forças com seus senhores, cativos conquistaram espaços
autônomos, por isso, o paternalismo nunca foi um jogo vencido pelos senhores, já que cativos
mergulharam incessantemente na luta por espaços adicionais.
Nas características das unidades produtivas e no contexto das relações pessoais entre
senhores e cativos, Libby ressalta, ainda, a necessidade de pensar formas distintas de
paternalismo no Brasil, considerando as especificidades dos diferentes tamanhos da posse
escrava, como em pequenas propriedades que apresentavam acentuadas instabilidades,
imprevisibilidades e tensões de toda parte no cotidiano escravo (LIBBY, 2008, p. 37).
Dentre os autores brasileiros que se valeram desse conceito, podemos citar Sílvia Lara
(1995), com nova interpretação da vida e experiências cativas, como: as tensões entre
senhores e escravos, a resistência, a formação de famílias estáveis e a liberdade, entre outras
conquistas.
Ao tratarmos da escravidão e das relações entre senhores e escravos, tanto
quanto ao tratarmos qualquer outro tema histórico, lembramos, com
Thompson, que as relações históricas são construídas por homens e mulheres
num movimento constante, tecidas através de lutas, conflitos, resistências e
acomodações, cheias de ambiguidades. Assim, as relações entre senhores e
escravos são frutos das ações de senhores e de escravos, enquanto sujeitos
históricos, tecidos nas experiências destes homens e mulheres diversos,
imersos em uma vasta rede de relações pessoais de dominação e exploração
(LARA, 1995, p. 4).

Sobre a historiografia tradicional de que trata o tema “família escrava” ver: Casa Grande e Senzala (FREIRE,
10

1980 – 20. ed.); Da senzala à Colônia (COSTA, 1996); As religiões africanas no Brasil (BASTIDE, 1960); A
integração do negro na sociedade de classes (FERNANDES, 1965). Com exceção de Gilberto Freire, os
demais autores integraram a “Escola Paulista de Sociologia”, cujas teses recaíam na premissa da insociabilidade
entre a escravidão e o parentesco dos cativos.
23

Nesse sentido, a dominação dava-se de forma complexa e ambígua e, mesmo que a lei
legitimasse a propriedade escrava, cativos “possuíam projetos e ideais próprios, pelos quais
lutavam e conquistavam pequenas e grandes vitórias”, conforme Sílvia H. Lara (1995, p. 47),
vendo, nas relações paternalistas, a concessão de alguns benefícios como produto de uma
conquista árdua.
Inseridas em um universo de acordos, mediações, valores e costumes, as relações entre
senhor e escravo foram marcadas também por complexidades e ambiguidades. Nas diferenças
e implicações do ser escravo em pequena, média e grande propriedade, em Monte Alto, o
paternalismo, calcado nas mediações dos direitos e deveres, nem sempre prevaleceu, na
medida em que a região tinha como marcador nas relações as ameaças de venda face ao
tráfico interno, dentre outras situações que colocavam a vida daqueles cativos na
imprevisibilidade. Mas, nas experiências cotidianas da vida em cativeiro, que envolviam
“esperanças, recordações e uniões estáveis”, o fortalecimento dos laços comunitários e
familiares colocava em risco a segurança da instituição escravista, impondo certos limites à
dominação de seus senhores (SLENES, 2011, p. 36).
Slenes (2011), ao estudar a família escrava em Campinas, no século XIX, sugeriu que
a mesma foi resultado de relações paternalistas tensas, as quais foram construídas por
escravos, e não somente de arranjos senhoriais, como forma de resistir à dominação senhorial.
Nesse sentido, em “Senhores e subalternos no Oeste paulista”, o autor considera a família
escrava como sendo de importância central para a política de domínio dos senhores e também
para os projetos dos escravos, pautados no uso da “força e do favor”, mostrando
dialeticamente seu funcionamento, que poderia servir aos interesses de ambas as partes:

A família, além disso, estava associada ao sistema de incentivos senhoriais:


daí, certamente, um de seus atrativos para os escravos. As ocupações com
autonomia de trabalho, as possibilidades de acumular um pecúlio e escapar
da dura labuta no eito eram distribuídas a cativos de mais longo contato com
o senhor, que tendiam a ser aqueles com uma história familiar na
propriedade. O exercício dessas ocupações, por sua vez, dava ao escravo
mais acesso a outros cativos com recursos e a homens livres, fortalecendo
uma teia de relações. Mesmo quando formada ao longo da casa-grande, tais
relações contribuíam para tornar o escravo mais refém ainda dos seus
próprios projetos. Quem conseguia avançar no caminho do favor ficava cada
vez mais vulnerável, pois tinha mais a perder. Ao mesmo tempo, sonhava
cada vez mais com a possibilidade de alforria para uma ou mais pessoas de
sua família [...] (SLENES, 2010, p. 276).

Na convivência entre senhor, escravos, forros e livres pobres, redes de relações se


formaram dentro e fora do cativeiro, em Monte Alto. Ao tempo em que a família poderia estar
“associada aos incentivos senhoriais”, cativos projetavam visões diferentes ao ampliar
24

possibilidades de acesso à alforria e união estável, ainda que o plano da “força” e do “favor”
prevalecesse nas relações estabelecidas (SLENES, 2011, p.36). Desse modo, a família escrava
representou espaço privilegiado de articulações para obter a alforria e de resistência às
condições impostas na política do cativeiro. Entretanto, a documentação analisada indicia que,
nas negociações realizadas com senhores, nem sempre a família podia assegurar vantagens e
estabilidade, notadamente em pequenas propriedades, suscetíveis às mais diferentes
vulnerabilidades.
Considerando as contribuições de Slenes para os estudos de família escrava, Sandra
Lauderdale Graham (2005) acrescenta que o casamento legitimado entre escravos nem sempre
esteve associado à política de interesses senhoriais. Ao trazer o protagonismo de mulheres
escravas, como Caetana, a uma região de economia pujante, marcada pelo domínio privado e
caráter ardiloso dos senhores, destacou a resistência escrava que “perturbou a ordenação
patriarcal”, fazendo com que, dentro de certo limite, o senhor intercedesse a favor dela. 11
Nesse viés de resistência e negociação, ilustrou relações de escravos com senhores, de forma
que os primeiros não se intimidavam com a força do poderio senhorial, entretanto, sabiam das
limitações e de possíveis punições, tornando ainda mais precárias suas condições de vida,
quando o senhor retirasse “seu favor, da mesma forma que o concedera” (GRAHAM, 2005, p.
64).
Com abordagem específica sobre Salvador - Bahia, na segunda metade do século XIX,
a tese de Isabel Cristina Ferreira dos Reis (2007) constituiu uma valiosa contribuição aos
estudos sobre as experiências de vida familiar, pois ampliou a compreensão de família escrava
ao usar o termo “família negra”, entendendo-a como uma teia de relações compostas não
apenas por escravos, mas também por libertos e livres, fossem elas legítimas ou
consensuais.12 Embora o termo cunhado pela autora não seja aqui utilizado, uniões entre
indivíduos de estatutos jurídicos diferentes também foram observadas em Monte Alto, como
importante elo na ampliação das alforrias e ações de liberdade via judicial, mormente com a
Lei de 1871, além de fornecer amparos em momentos de necessidade.
A morte de um senhor, as vendas, as dívidas, a divisão dos bens entre herdeiros
poderiam desamparar as famílias escravas, por isso, estas buscaram ampliar suas redes de
11
O local estudado pela autora refere-se à Fazenda Rio Claro, localizada na Província de São Paulo.
12
Ainda na Bahia, Kátia M. de Queirós Mattoso (1992), ao se debruçar sobre inventários post mortem em
Salvador, inclusive de escravos e forros, abriu novas perspectivas de estudos em história social, até mesmo no
que se refere à família escrava e redes de sociabilidades. Também, como referência nos estudos de escravidão na
Bahia, João José Reis e Flávio Silva, em “Negociação e Conflito” (1989), ao apresentarem uma análise com
ênfase na micro-história, confirmaram as tendências na historiografia contemporânea ao incluírem o escravo
como sujeito de sua própria história, conquistando espaços de autonomia em meio a uma sociedade marcada pela
dominação senhorial.
25

relações, que fortaleciam os laços com a comunidade, ganhando proteção e apoio na garantia
de certa estabilidade, afirma Maria Inês Côrtes de Oliveira (1995/6). A permanência de tempo
com um mesmo proprietário poderia facilitar maior vínculo e união estável que implicasse
ganhos materiais. Nos tempos da escravidão brasileira, a família tinha “importância
fundamental na montagem e funcionamento das atividades econômicas e nas relações sociais
e políticas” (FARIA, 1997, p. 256). Consanguínea ou não, a família conferiu “estabilidade e
movimento”, influindo na posição social do indivíduo vinculado a um grupo, “incluindo
relações rituais e de aliança política” (FARIA, 1997, p. 256). O casamento legal, instituído
pela Igreja Católica, abrangia todas as camadas sociais, inclusive os escravizados, no entanto,
algumas situações poderiam interferir nas uniões estáveis dos cativos, manifestadas a
depender do contexto de cada localidade.
Em Monte Alto, evidenciam-se uniões sacramentadas entre cativos com maior
incidência nas grandes e médias propriedades. Conforme observou Sheila de Castro Faria,
“grandes unidades, portanto, tinham mais condições do que as menores de contar com casais
legalmente unidos” (FARIA, 1997, p. 257). Em Campinas – São Paulo, Robert W. Slenes
(2011, p. 80) também observou a prevalência de uniões estáveis entre cativos de grandes e
médias unidades produtivas. O mesmo constatou Roberto Guedes, em trabalhos sobre a região
de Porto Feliz, no Rio de Janeiro: “Nas escravarias com mais de dez escravos, as
possibilidades de casar eram mais amplas”, aponta Roberto Guedes (2008, p. 150).
Apesar de regiões com características diferentes das de Monte Alto, no Alto Sertão
baiano, é importante notar as implicações das características das propriedades na vida escrava,
notadamente na estabilidade familiar e alcance à alforria, conforme tem sido apontado em
alguns estudos historiográficos. Na disposição dos inventários post mortem, em Monte Alto,
observou-se a existência de grandes, médias e pequenas propriedades, demarcando diferenças
em ser cativo em cada uma delas. Assim, o tamanho da propriedade e suas condições de
produção tinham implicações na integralidade da família escrava, e esta expressava um desejo
compartilhado entre cativos que não só contribuiu para fortalecer “a formação de uma
identidade nas senzalas” (SLENES, 2011, p. 59), como era um dos fatores fundamentais para
a obtenção de suas alforrias, dentre outras possibilidades.

1.2 Alforria
26

Quanto às alforrias, fontes analisadas nas páginas que seguem neste trabalho mostram
as diferentes estratégias de negociações e atitudes dos escravos na busca por suas
manumissões, inclusive com ações de liberdade para resistir às oscilações do cativeiro.
Sidney Chalhoub (1990, p. 232) enfatiza que escravos construíram lógicas e racionalidades
próprias, “vinculados a experiências e tradições históricas particulares e originais”, buscando
sempre ampliar possibilidades dentro ou fora da instituição escravista.
Nas diferentes propriedades de Monte Alto, muitos escravos alcançaram possibilidades
de ganhos econômicos, principalmente entre grandes e médias propriedades. Por meio do
trabalho árduo e apoio tecido entre familiares e companheiros de cativeiro, puderam requerer
a compra de suas manumissões e, consequentemente, enfraquecer a política de domínio
senhorial. Nem sempre os propósitos dos escravos e libertos tiveram conquistas satisfatórias,
mas eles fizeram uso de estratégias possíveis para sobreviver à dominação escravista e às
ameaças do tráfico interno, que marcou e “interferiu nas expectativas de vida dos escravos
baianos”, assinala Ricardo Tadeu Caires Silva (2007, p.28).
Nesse sentido, o autor supracitado (2007, p.28) elucida que o tráfico interno
desarticulou arranjos costumeiros de famílias, mas não desmotivou comunidades escravas a
lutarem pela permanência e alcance da alforria, daí maior pressão para ampliar redes de
sobrevivência e espaços de autonomia, até mesmo o acesso à Justiça era resultado de alianças
tecidas com pessoas livres e libertas na tentativa de requerer e manter a liberdade, face às
mais diversas situações de enfrentamentos com seus senhores. Isto posto, a alforria não
deixava de ser uma concessão senhorial, um acordo basicamente desigual entre senhor e
escravo, mas para o escravo era, sem sombra de dúvidas, “um primeiro passo de reinserção
social pela via legal”, principalmente se pensarmos pelo prisma de que a escravidão era
“norma” e a desigualdade, “um princípio básico” (GUEDES, 2008, p. 183-189). A alforria
constituía para cativos “diferenciação social”, ou seja, uma maneira de hierarquização social,
que perpassava pelo plano das negociações, mas também das tensões e conflitos. Além disso,
é claro, o alcance da alforria constituía-se pelo plano das redes de solidariedade, dentro e fora
do cativeiro, “manifesta, por exemplo, nas suas relações familiares pelo casamento, entre
outras maneiras” (GUEDES, 2008, p. 184).
Ser escravo de uma pequena propriedade requeria esforço redobrado na luta pela
sobrevivência, eram contundentes as dificuldades para barganhar com seus senhores
expectativas de uma vida menos incerta. Na peleja da vida diária, não era incomum que
tensões emergissem entre as amargas experiências do cativeiro. Outrora, consolidaram
aproximações com forros e livres pobres na iminência de assegurar mediações e apoios para
27

fortalecer atitudes de resistência, obter alforria e o direito de permanecer ao lado de seus


familiares. As demandas sentidas por esse segmento não divergiram da vida de escravos de
senhores abastados, porém cativos de grandes propriedades perceberam que o envolvimento
de senhores em atividades diversificadas, às quais se dedicavam rotineiramente, poderia
proporcionar-lhes ganhos econômicos capazes de garantir a compra da alforria e uma vida
familiar mais estável, ainda que, para isso, precisassem contar com outras formas de
expedientes que desafiassem a vida em cativeiro. Mas é importante lembrar que nem todos os
escravos de grandes propriedades desfrutaram das mesmas possibilidades. Muitos também
seguiram os percursos do tráfico interno, assim como escravos de pequenos senhores,
entretanto, não resta dúvida de que, em grandes propriedades do termo de Monte Alto, cativos
encontraram condições mais propícias nas negociações e relacionamentos com seus senhores.
Quando rompidos os acordos, anteriormente realizados entre senhores e cativos, a
resistência se fez presente das mais diversas maneiras, entre elas, “a possibilidade de poder
pressionar judicialmente seus senhores a conceder-lhes a liberdade”, antes e após a Lei de
1871 (SILVA, 2000, p. 150). Com a elevação do preço dos cativos diante do fim do tráfico
atlântico e continuidade do tráfico interno, as negociações em torno da liberdade avançaram
no campo jurídico como marcador importante na luta contra um destino indesejado, conforme
apontou Sharyse Piroupo do Amaral (2012), ao refletir sobre as transformações ocorridas na
segunda metade do século XIX, na região de Cotinguiba – Sergipe, e seus impactos nas
relações senhor e escravos, tendo em vista as ações intensificadas por eles para amealhar
pecúlio, comprar suas alforrias, recorrendo, em muitas situações, a ações da liberdade, crimes
e fugas.
Outra contribuição importante para este estudo diz respeito ao destaque dado por
Víctor Santos Gonçalves (2017) à associação entre o tamanho da posse escrava e as
possibilidades de manutenção de uniões estáveis, imprescindíveis para o alcance da alforria,
na Vila de São Jorge dos Ilhéus, entre os anos de 1806-1888. Assim, os arranjos familiares
entre escravos e libertos, bem como as suas relações de compadrio, também são interpretados
como meios impulsionadores para a conquista da alforria.
Pensar as várias experiências cotidianas de cativos no termo de Monte Alto pressupõe
rastrear indícios da vida social que ali permaneceram. Um cotidiano que se define, nos dizeres
de Maria Odila Dias (1998, p. 232-233), como um exercício de perspectiva renovador da
historiografia “ao se propor a perseguir as vicissitudes de conceitos ou temas de todo dia, de
um prisma relativista e indiferente a parâmetros prefixados”. Daí, uma interpretação das
28

experiências concretas dos oprimidos, da multiplicidade de sujeitos históricos, “dando voz aos
silenciados da história” (DIAS, 1998, p. 233).

1.3 O Alto Sertão da Bahia

Estudos sobre populações de escravizados no Alto Sertão também evidenciaram


experiências de cativos por melhorias nas condições de sobrevivência. Para compreendê-las,
tornou-se necessário recorrer ao cruzamento de fontes variadas, visto que os vestígios dessas
conquistas não dependeram apenas de um tipo de fonte.13 Essas pesquisas apontam que, desde
as primeiras incursões da colonização portuguesa, a região foi tomada por diversificação na
produção econômica e uso da mão de obra cativa no exercício de atividades variadas.
Senhores do sertão baiano se beneficiaram dos negócios do tráfico de escravizados, fazendo
deles um dos principais meios de auferir lucros e acumulação de fortunas.
Dentre os estudos que constituem parâmetros importantes na compreensão dos
meandros da vida escrava no Alto Sertão da Bahia, destacam-se pesquisas de Erivaldo
Fagundes Neves (2000), em especial o artigo “Sampauleiros Traficantes: comércio de
escravos do Alto Sertão da Bahia para o Oeste cafeeiro paulista”. Nesse artigo, o autor
identificou 1.233 escrituras de escravos e 686 cartas de liberdade em livros de notas de
Caetité, entre os anos de 1840 e 1879. Assim, ressaltou a crescente oferta de cativos de
Caetité e Rio de Contas, e seu envio para as regiões do Sudeste cafeeiro, como Minas Gerais e
São Paulo, e, ainda, para as divisas de Goiás, no Centro-Oeste. Nesse negócio, senhores e
traficantes obtiveram lucros vantajosos ao ponto de criarem firmas especializadas destinadas a
esse empreendimento. A obra supracitada aponta como exemplo a empresa do Padre Manoel
José Gonçalves Fraga e Cia. e a sua sucessora, Padre Manoel José Gonçalves Fraga e
Cardoso, e outras empresas, como a de Alexandre Alves Bello e Cia.; Antônio Gomes dos

13
Essas pesquisas tomaram maior expressão com os trabalhos de Neves (2008), Pires (2003, 2009), Nogueira
(2011), Santana (2012), Almeida (2012), Santos (2014) e Ramos (2016), dentre outros. Os referidos estudos
começaram por Rio de Contas e Caetité (que dispõem de arquivos organizados) e vêm ampliando-se para outras
regiões, como Paratinga, Carinhanha, Bom Jesus da Lapa e Palmas de Monte Alto. Parte dos trabalhos canalizou
a atenção para a escravidão e para a liberdade, no entanto, necessita-se da continuidade das pesquisas sobre o
tema, visto existirem, ainda, lugares pouco contemplados, como o termo de Monte Alto, no decorrer do século
XIX. Outro autor que também trata do sertão baiano oitocentista, especificamente Morro do Chapéu, é Jackson
André da Silva Ferreira (2014). Em seu estudo, revelou importantes meandros das relações de dependência
pessoal entre senhores e dependentes, inspirando refletir sobre as facetas do paternalismo nas relações entre
subalternos e senhores no sertão.
29

Santos e Cia.; Brandão & Irmãos (Salvador); e Campos e Castro (Minas Gerais), todas elas
atuavam com frequência na região do Alto Sertão, inclusive em Monte Alto.
Em outro momento, Maria de Fátima Novaes Pires (2003) identificou para Caetité e
Rio de Contas, por meio de processos-crime, aspectos sociais da vida cotidiana de escravos,
senhores, forros e livres pobres. As distâncias da capital da província, a exiguidade do Poder
Judiciário e as aproximações dos cativos com livres pobres e forros constituíam entraves na
manutenção da ordem pública, por isso, os responsáveis por ela buscavam sempre
mecanismos de controle social. Na iminência de salvaguardarem a propriedade senhorial, as
posturas de autoridades públicas revelam forte “suspeição e a vigilância presentes na vida dos
cativos e forros” (PIRES, 2003, p. 106). Em “Fios da Vida”, Pires (2009) debruçou-se sobre o
tema “tráfico e alforrias para Caetité e Rio de Contas” na segunda metade do século XIX. Ao
perseguir trajetórias de escravos, forros e ex-escravos, observou que, apesar das ameaças
constantes do tráfico, cativos dessas regiões construíram significados nas relações de convívio
para suas vidas e não desapareceram das fazendas, sítios, vilas e entorno da região14.
Nas relações que mantinham com os senhores, cativos construíram experiências de
liberdade marcadas por tensões, acordos e, em muitos casos, por via judicial. Fontes
documentais sobre Monte Alto apontam fragmentos de especificidades da vida escrava, cujas
relações tecidas, como uniões familiares, representaram não apenas resistência, mas,
conforme sinalizou Kátia Lorena Novais Almeida (2012, p.104), “um leque de possibilidades
de sua existência e experiência, que dependiam principalmente do contexto em que os cativos
viveram”.
Nas primeiras décadas do século XIX, inventários de grandes, médios e pequenos
proprietários mostraram intensificação de escravizados na região, provenientes do tráfico
atlântico. As áreas do Alto Sertão, naquele período, ganharam impulso, sendo introduzido no
Médio São Francisco o cultivo do algodão e de gêneros alimentícios variados, associado ao
uso do trabalho escravo. Não obstante, ao lado do famigerado desenvolvimento agrícola, as

14
Outros estudos sobre trajetórias familiares de africanos e afro-brasileiros no sertão do São Francisco no século
XVIII corroboram as afirmativas de que cativos souberam “viver por si” e pelos seus, construindo autonomia e
mobilidade por meio de arranjos familiares cotidianos na luta pela sobrevivência (NOGUEIRA, 2011). Em
“Família e Microeconomia Escrava no Sertão do São Francisco (Urubu-BA, 1840 a 1880)”, Napoliana Pereira
Santana (2012) destacou variados arranjos de negociação entre cativos e senhores, sobretudo envolvidos na
participação da economia da região, fato que favoreceu o acúmulo de pecúlio para a compra da alforria. Simony
Oliveira Lima (2017) também evidenciou experiências de escravos em Carinhanha, região vizinha de Monte
Alto, entre os anos de 1800 e 1870. Ao analisar as práticas costumeiras de alforria, concedida ou por compra,
percebeu os diversos arranjos de sobrevivência e luta para a consecução da alforria, da família e laços de
parentesco nos plantéis daquela localidade.
30

relações de trabalho persistiram na dependência da mão de obra cativa, ampliando, dessa


forma, o contingente de escravizados na região15.
A partir de 1831, sinalizavam a suspensão da legalidade do comércio de cativos, com
punição aos que descumprissem a nova lei16. Embora a pressão inglesa fosse constante, nem
sempre contavam com dispositivos eficazes para impedir tal prática, o que levava, na maioria
das vezes, à ingerência diplomática e à dificuldade de controle no contrabando das
mercadorias que circulavam pelo Atlântico, principalmente entre a África e o Brasil.
Ainda sobre a conjuntura do século XIX, Mônica Duarte Dantas (2007) a define bem
em seu estudo da região de Itapicuru, no norte da Bahia, como um período de grandes
mudanças:
[...] o influxo de grandes levas de escravos nas décadas de 1830 e 1840; a
abolição do tráfico negreiro; o tráfico interprovincial; a abolição da
escravatura; as mudanças nas leis de recrutamento e nas leis eleitorais; o
impacto das secas e epidemias que assolaram grande parte do Norte e
Nordeste no período são algumas das grandes questões que pontuaram a
história do Brasil e, especialmente, da Bahia no Oitocentos (DANTAS,
2007, p. 24).

O contexto mencionado pela autora mostra que o fim do tráfico atlântico, com a Lei
Euzébio de Queiroz, em 1850, intensificou a procura de escravos das províncias do norte para
o Sul e Sudeste do Brasil, com a expansão das lavouras de café. Naquele período, o Alto
Sertão se destacou como região de fornecimento de cativos, mobilizando redes de negócios
entre senhores, traficantes e procuradores. Tais negócios trouxeram consigo implicações na
vida social de muitos cativos, principalmente no que tange às formas de organização de vida
comunitária e às constantes ameaças de venda, conjuntura esta que tornou mais complexa a
luta pela alforria.

15
Acerca da conjuntura econômica em fins do século XVIII e início do XIX, ver: NEVES, Erivaldo Fagundes.
Estrutura Fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX. Salvador EDUFBA,
2005. BITTENCOURT, J.S. Memória sobre a plantação dos algodões. Ano M. DCC. XCVIII. Biblioteca
Tradicional de Lisboa. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: São Paulo: Brasiliense,
2004. NEUMANN, Eduardo S; GRIJÓ, Luiz Alberto (Orgs.). O império e a Fronteira: a Província de São
Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014. ARAÚJO, Jonas Cardoso. Algumas considerações acerca
do município de Palmas de Monte Alto. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012. Para conhecer mais sobre
o processo de expansão dos sertões, ver: SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Fronteiras do sertão baiano:
1640-1750. Tese de doutorado, USP, 2010.
16
Sobre os autores que mencionaram a ilegalidade do tráfico ver: CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão:
ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. RODRIGUES,
Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro
(1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma
história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. Editora UNESP, 2004. SILVA, Alberto
da Costa e. Um rio chamado Atlântico: África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira:
Ed. UFRJ, 2003.
31

Identificar a movimentação dos cativos nesse contexto permitirá compreender as


diversas elaborações de estratégias nas relações com seus senhores, uma vez que a conjuntura
não era favorável a conquistas de alforria, formação de núcleos familiares, entre outras formas
de manifestação e resistência. O tráfico interno foi lucrativo ao ponto de criar companhias
especializadas em negociações de escravos, mobilizando indivíduos a investirem nessa
empreitada, e estes, certos da impunidade, se arriscavam contra qualquer empecilho na
garantia de um bom negócio.

1.4 Fontes e Métodos

Para alcançar o objetivo desta pesquisa, valemo-nos de minuciosa análise de


informações disponíveis em processos de inventários post mortem, totalizando 257
documentos pesquisados para o termo de Monte Alto, entre o período de 1810 e 1888. A
opção pela análise dessa fonte permitiu uma construção de perfil variado de grupos sociais, da
vida cotidiana e dos elementos de riqueza que compunham a estrutura econômica da região.
Inventários post mortem de Monte Alto mencionam, até 1831, escravos oriundos de
várias localidades da África, como Congo, Angola, Mina, Nagô, juntamente com os nascidos
no Brasil. Essas procedências, ainda que não correspondessem aos lugares de origem na
África, mostraram o quanto senhores da região estavam na rota do comércio atlântico. Entre
1831 e 1850, nos inventários, as denominações do local de origem foram substituídas com
frequência pelo termo africano e, à proporção que os períodos se estendiam ao longo do
século XIX, o termo africano praticamente desapareceu da documentação. A exceção ocorria
para aqueles escravos em idade avançada, sugerindo que os senhores se utilizavam da
estratégia de disfarce contra o iminente flagrante da lei que proibia o comércio ilegal de
africanos. Os registros nos documentos do Judiciário evidenciam, ainda, a complacência da lei
em acobertar tais informações sem nenhum constrangimento legal ou de suspeição.
Para Zélia Maria Cardoso de Mello (1990), o inventário post mortem como fonte de
pesquisa:
[...] permite captar um aspecto da realidade econômico-social, quais os
elementos constitutivos da riqueza, além de proporcionar informações para a
história dos costumes e das mentalidades. Pode dar conta, imperfeitamente, é
verdade, de outros aspectos, como, por exemplo, da rentabilidade das
atividades e do movimento mais geral da economia, para o qual
necessitamos de notícias complementares (MELLO, 1990, p. 28).
32

Devido ao fato de os inventários de Monte Alto estarem desorganizados, foi


necessário catalogá-los e empacotá-los em papel de embrulho, dividindo as séries por ano.
Após a catalogação, os dados foram listados de forma nominativa, formando, assim, um
banco de dados sobre a vida social e cultural dos indivíduos. Para se estabelecer um padrão da
composição de riqueza no termo, as informações coletadas foram organizadas em tabelas do
Excel e classificadas por décadas, dividindo-as por faixas de riqueza: grande, médio e
pequeno proprietário.17 O mesmo foi feito para se compreender o perfil da sociedade escrava.
Imprescindível para a metodologia desta pesquisa foi a obra “Nomes e Números; alternativas
metodológicas para a história econômica e social”, coordenada por Carla Maria Carvalho de
Almeida e Mônica Ribeiro de Oliveira (2006), possibilitando melhor compreensão de como
trabalhar com as conjunturas históricas das populações, por meio do cruzamento de fontes, em
especial, no que se refere aos arranjos familiares, articulando-os aos aspectos sociais e
econômicos da região, como afirmam Almeida e Oliveira. Assim, os livros de casamento,
batismo e fontes do Judiciário serviram como balizas para o entendimento das vivências
cotidianas dos escravos, senhores e livres, bem como das estratégias, solidariedades, alianças,
dos conflitos e tensões em que aqueles indivíduos estavam inseridos.
Sob o olhar da micro-história, inventários do termo de Monte Alto permitiram
reconstituir fragmentos da vida em sociedade. Uma vez que esse tipo de documento visa
prestar contas do falecido, cujas informações do patrimônio são ali estabelecidas para análise
e partilha dos bens entre os herdeiros, o conjunto de dados massivos e seriais, quando
inquiridos e contextualizados, conduz a uma análise mais ampla do caráter econômico, social,
cultural e religioso de parte de uma dada sociedade, confirma Carla B. Pinski (2008).
No Arquivo Público da Bahia, foi consultada uma documentação inédita referente às
correspondências da Câmara e do Judiciário, assim como algumas ações de liberdade e
processos-crime envolvendo escravos. Essas fontes trazem referências sobre os problemas que
afligiam as populações do termo de Monte Alto, como as más condições das estradas e a falta
de acesso aos meios de comunicação, dentre outras queixas, assim como dados das flutuações
econômicas da região, as fazendas de gado, plantação de algodão e gêneros agrícolas
diversos.
Os livros de notas (compra e venda de cativos) e as cartas de alforrias
complementaram as informações sobre a região. Essas fontes permitiram construir listas

Para classificá-los por faixa de riqueza foi levado em consideração a quantia do monte-mor arrolado nos
17

inventários post mortem, bem como as características dos investimentos feitos pelos inventariados, similar a
estudos realizados por Maria José Rapassi Mascarenhas (1998), Mônica Duarte Dantas (2007) e Maria de Fátima
Novaes Pires (2009).
33

nominativas de cativos, essenciais no cruzamento e comparações com outras fontes, sobretudo


inventários, e vice-versa. Nas procurações, escrituras de compra e venda e cartas de alforria,
ficaram evidentes as estratégias dos escravos na busca pela liberdade, em contraponto aos
proprietários que, muitas vezes, resistiam à concessão de direitos.
No Arquivo Público da Bahia, alguns processos-crime e correspondências da polícia
da época contribuíram para perceber as vivências escravas, seus anseios e o modo de
enfrentamento das agruras do cativeiro em terras sertanejas. As esparsas fontes disponíveis
nesse Arquivo abriram possibilidades para conhecer indícios do cotidiano escravo no termo
de Monte Alto, suas trajetórias de vida, a luta pelo alcance da liberdade e constituição de
famílias. No acervo da Paróquia de Guanambi, foram consultados livros de assento de
batismo e de casamento, imprescindíveis para compreensão das redes de relações entre
senhores, escravos e libertos, no âmbito da família, do compadrio e do acesso à alforria. Essas
fontes forneceram, ainda, indícios preciosos da filiação de escravos, da reprodução natural,
dos laços de parentesco, de pertencimento étnico e das lutas de sobrevivência.
Certamente, indícios da vida de muitos cativos foram perdidos ao longo do tempo ou
encontram-se espalhados por cartórios e arquivos de várias cidades do sertão baiano.
Entretanto, os que foram localizados deixaram rastros de como se constituíam as trajetórias e
as relações sociais de cativos com seus senhores, livres e libertos, possibilitando identificar
um universo complexo de convivências nos diferentes espaços que ocupavam.
Importante lembrar que fontes documentais são fragmentos que requerem articulações
nas diferentes temporalidades históricas, uma vez que as pesquisas da micro-história se
articulam a um contexto mais amplo, pois não são fragmentos isolados. Nos dizeres de Carlo
Ginzburg (2007, p. 277), “toda configuração social é o resultado da interação de incontáveis
estratégias individuais: um emaranhado que somente a observação próxima possibilita
reconstituir”. Conclui o autor que o princípio organizador da narrativa histórica perpassa pela
dimensão microscópica e pela dimensão contextual mais ampla18.

18
Para saber mais sobre a micro-história, ver: GINZBURG, Carlo, “O queijo e os vermes, o cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição”, São Paulo: Companhia das Letras, 1987; e “A micro-
história e outros ensaios”, Rio de Janeiro: Bertrand, 1989; PESAVENTO, Sandra Jatahy, “História e história
cultural”, Belo Horizonte: Autêntica, 2006; CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.),
“Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia”. Rio de Janeiro: Elsevier (1997); VAINFAS, Ronaldo,
“Os protagonistas anônimos da história, micro-história”, Rio de Janeiro: Campus, 2002. REVEL, Jacques,
“Microanálise e construção do social”, In: REVEL, Jacques (Org.), “Jogos de escala: as experiências da
microanálise”, Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1898, pp. 17-38; e “Micro-história, macro-
história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado”, Revista Brasileira de
Educação, v. 15, n. 45, septiembre-diciembre, 2010, pp. 434-444.
34

As fontes aqui mencionadas são recorrentes em pesquisas da história social,


principalmente pelo uso do cruzamento de tais documentos, sendo estes imprescindíveis para
o estudo de trajetórias de escravizados, libertos e livres, e suas possíveis relações com
senhores na tentativa de assegurar o que consideravam justo para si.
No contexto das mediações sociais, o cotidiano como processo de mudança permitiu
ao historiador perseguir, por meio do diálogo constante com as fontes, indícios das
experiências vividas nas diferentes sociedades e culturas. Permitiu, ainda, repensar conceitos,
estabelecer crítica com as novas interpretações da história social.19 É nessa linha de
interpretação que, a seguir, se delineiam experiências de cativos, livres e libertos do termo de
Monte Alto, no Alto Sertão da Bahia.
Para tal, a análise sobre os aspectos históricos, geográficos e econômicos da região
tornou-se indispensável neste estudo, pois influenciaram significativamente a forma como
escravos e senhores estabeleceram suas relações. Desse modo, o primeiro Capítulo discute
aspectos fundamentais da geografia e economia do termo de Monte Alto, importante
entreposto no comércio de cativos entre o Atlântico, Recôncavo, sertão, Minas Gerais e
Goiás, promovendo, ao lado da produção algodoeira e desenvolvimento de demais atividades
produtivas, alta concentração da mão de obra escrava nas fazendas. Mobilizando tais
atividades, médios e grandes proprietários constituíam-se por elevada concentração de
riqueza, havendo manutenção e ampliação das fortunas, ao longo do século XIX,
intrinsecamente vinculadas à posse e ao comércio de cativos.
Embora os cativos tenham convivido com a iminente possibilidade de venda, nas
diversas experiências e condições, sobretudo das grandes propriedades, importantes
negociações se fizeram presentes por meio de arranjos familiares, conciliação de interesses e
grau de relações estabelecidas com seus senhores, para a consecução da alforria. Por isso, o
segundo Capítulo procura analisar as redes de negócios que permearam os espaços das
grandes fazendas e suas implicações na luta pela liberdade, considerando a constante ameaça
de venda para outras partes do Império. Assim, os meandros que permearam a conquista pela

19
Para melhor compreender a operacionalização dos conceitos pensados neste texto, valemo-nos das leituras de
Jacques Revel, em especial, a apreensão do método de escalas de análise, tão difundido na micro-história. Para o
autor, esse método é relacional e possibilita maior exploração do objeto de estudo a partir da experiência da
realidade social. Assim, o particular, o indivíduo, o local e o concreto passaram a ser pensados a partir de uma
rede de relações em diferentes dimensões da vida social. Os conceitos não são determinantes nem soberanos,
mas concretos, com “incertezas e racionalização limitada”. “As grandes transformações que alteram
profundamente a face da Terra não existem em nenhuma parte a não ser pela ação de atores que, na lógica dos
contextos peculiares da sua experiência social, se esforçam em garantir para si um lugar, isoladamente e/ou com
outros” (REVEL, 2010, p 444).
35

alforria, a manutenção de laços familiares e a importância das redes de compadrio e


sociabilidades serão abordados nesse capítulo.
No terceiro Capítulo, evidenciam-se as redes de relações construídas entre cativos,
senhores e libertos em médias e pequenas propriedades, levando em conta as secas, crises
financeiras e o impacto do tráfico interno. Escravos de pequenas propriedades tinham vida
mais instável, valendo-se de esforços redobrados para o alcance da alforria e para a
constituição de famílias, pois, quando seus senhores passavam por dificuldades, recorriam à
venda de cativos para sanar os problemas, diminuindo as chances de livrá-los do cativeiro ou
de vida mais estável perante a família e companheiros de senzalas.
No quarto Capítulo, pretende-se discorrer sobre o cotidiano escravo e as tensões de
resistência entre pequenas, médias e grandes propriedades. Enfatizam-se, ainda nesse
capítulo, as ações mais enérgicas de escravos e forros nos embates com seus senhores para
assegurar direitos, quando os interesses de ambas as partes não mais podiam ser solucionados
no campo do favor, a exemplo das ações de liberdade e processos-crime. A ênfase recai nos
sujeitos sociais e seus arranjos de sobrevivência, de dependência e confrontos nas complexas
relações tecidas entre livres, escravos e senhores.
Por fim, ressalte-se que as fontes abordadas aqui foram parcialmente catalogadas para
a finalidade da escrita desta pesquisa e consultadas pela primeira vez. Entretanto,
recentemente, a documentação que se encontra no Fórum da cidade de Palmas de Monte Alto
está sendo recatalogada e será removida para o Arquivo Público de Caetité, por meio do
convênio entre a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Grupo de Pesquisa, Cultura,
Sociedade e Linguagem (GPCSL) (Caetité) e o Judiciário do Estado da Bahia.
Fazer história social eivada de experiências de diversos indivíduos, principalmente de
escravos e libertos, no termo de Monte Alto, Alto Sertão da Bahia, constituiu o desafio desta
pesquisa, postas as experiências vivenciadas por esses sujeitos, em face de uma sociedade
marcada pelo domínio senhorial e das vendas compulsórias do tráfico interno.
36

2 SENHORES E ESCRAVOS NA FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE


ESCRAVISTA NO ALTO SERTÃO DA BAHIA, TERMO DE MONTE ALTO,
SÉCULO XIX

2.1 “Não pode ter lugar a alforria”: alforria e família escrava, uma conquista árdua

Historicamente, o município de Palmas de Monte Alto, na Bahia, foi, desde a


colonização portuguesa no Brasil, lugar de interesses econômicos e de movimentos humanos
que, sobremaneira, se inseria nas conexões do Mundo Atlântico e se estenderia por séculos
como região estratégica de acesso às Minas Gerais, ao litoral da Bahia e à Chapada
Diamantina, entre outros lugares20. Carl F. P. von Martius e Johann B. R. von Spix, ao
passarem por Monte Alto, descreveram:
Alguns montes elevaram-se muito e formaram em diversos logares os mais
altos picos da serra de Montes Altos, cuja formação, muito densa é de
gneiss-granitoso. Fizemos a volta de uma parte desta serra, entre as fazendas
PAU DE ESPINHO, PÉ DA SERRA E PICADAS, o que permitiu ver toda a
extensão da mesma, perto da fazenda real CARNAÍBAS, onde ella corre em
direção de S.E. a N.O. como uma cadeia de montanhas, cujo contorno
principal se parece com o das collinas e cumes dos rochedos, por entre os
quaes nos conduzia o tortuoso caminho (VON MARTIUS; VON SPIX,
1938, p. 20-21).

Os currais de gado, fazendas e as paisagens naturais localizados nas margens do


Médio São Francisco impressionaram viajantes, literatos e memorialistas, e continuam, ainda
hoje, sendo objeto de estudo de arqueólogos, historiadores, geógrafos e demais

20
Situada na Serra Geral da Bahia, mais especificamente na região do Sudoeste, a uma distância de 800 km da
capital, Salvador, e a 200 km das margens do Rio São Francisco, Palmas de Monte Alto foi historicamente
povoada por diferentes povos indígenas que ali construíram seus modos de viver e sua própria dinâmica. No
século XVIII, o arraial era distrito da comarca de Urubu, sob a jurisdição da vila do Rio de Contas. O seu nome
era Monte Alto das Palmas, conforme consta no traslado do testamento de Francisco Pereira de Barros, anexado
no livro do encapelado da igreja de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, de 1846. Ao longo do século
XIX, passou por sucessivos desmembramentos e incorporações em relação a outros municípios. Com a
Independência do Brasil, a primeira Constituição, de 1824, no seu art. 24, estabeleceu que fosse facultado às
províncias subdividirem seus territórios, o que levou à ampliação de 63 vilas na província da Bahia, entre os
anos de 1827 e 1889. Foi nesse contexto que, em 1832, Macaúbas elevou-se à vila, incorporando Monte Alto em
seu território. E, somente com a Lei n° 124, de 19 de maio de 1840, Monte Alto alcançou a condição de vila,
desmembrando-se, portanto, de Macaúbas. Em 11 de junho de 1860, Monte Alto e Carinhanha “formaram por si
uma comarca, com a denominação de Comarca de Monte Alto” (FREIRE, 1998, p.268). Contudo, a lei de 28 de
maio de 1873 alterou a divisão das comarcas, levando Monte Alto a denominar-se de Carinhanha, “constituída
pelos termos de Carinhanha e do Rio das Águas”. Em 1878, Riacho de Santana desmembrou-se de Monte Alto e,
no ano de 1880, foram criadas novas comarcas, sendo que a de Monte Alto compreendeu este termo e o de
Riacho de Santana, separando-se da Comarca de Caetité (FREIRE, 1998, p. 268- 269).
37

pesquisadores21. Teodoro Sampaio (2002) também foi um desses viajantes que deixaram
relatos sobre sua passagem por Monte Alto. Assim descreve o autor:
A vila é antiga e pequena, mas regularmente edificada numa situação
excelente na base da serra do mesmo nome e em altitude de cerca de 580
metros, com um clima dos mais afamados do sertão. Apesar de estar quase
abandonada pelos seus habitantes, que, no geral, se refugiam nas fazendas,
receosos de um assalto de jagunços, a vila pareceu-me interessante, no seu
aspecto de tranquilidade e de repouso. Fomos aí gentilmente acolhidos pelos
srs. José Patrício de Souza, José Barbosa Madureira e Avelino de Oliveira
Guimarães, hospedando-nos em casas deste último, o qual nos acompanhou
desde a fazenda das Campinas para o fim de nos dar agasalho em sua casa
(SAMPAIO, 2002, p. 198-199).

Figura 1 - Desenho da Vila de Monte Alto realizado por Theodoro Sampaio – 1879

Fonte: SAMPAIO, Theodoro Dr. O Rio São Francisco – trechos de um diário de viagem e a
Chapada Diamantina, 1879-80. São Paulo – Escolas Profissionnaes Salesianas. Disponível em:
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. N° Reg. 1241.

Conforme se observa na figura acima, a pequena vila de Monte Alto se apresentava


em volta de uma vastidão de terras, fator que propiciou a formação de grandes, médias e
pequenas propriedades, com concentração de riquezas e a presença de populações
escravizadas. Ainda, nas descrições de Sampaio (1879) incluíam também a serra de Monte
21
Sobre autores que abordaram Monte Alto ver: SPIX, Von; MARTIUS, Von. Através da Bahia. Bahia,
Imprensa Official do Estado. 1916; COTRIM, Dário Teixeira. O distrito de Paz do Gentio e a história sucinta
de sua decadência. Seleção de textos, notas, estudos biográficos e históricos. A “Penna” editora gráfica Ltda.
Montes Claros, 1997. 148p. SAMPAIO, Teodoro. Teodoro e a Chapada Diamantina; Org. José Carlos de
Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; BITTENCOURT, J. S. Biblioteca Nacional de Lisboa. Anno,
M.DCC. XCVIII; GUMES, João. Os Analphabetos – Escola Typographica Salesiana – Bahia, 1928; REIS,
Aline da Silva. Serra de Monte Alto e olhares sobre a paisagem: UESB, 2012; SILVA, Joaquim Perfeito da.
Territórios e ambientes da Serra de Monte Alto: região Sudoeste da Bahia (Org.) – Vitória da Conquista:
Edições UESB, 2012.
38

Alto, as belezas dos recursos minerais, como as rochas, pinturas rupestres, as grutas, o achado
do minério de ferro, salitre, as argilas coradas e usadas pelos habitantes para pintura das suas
casas, assim como as águas correntes do Rio das Rãs, que nasce naquela serra. Entre as
fazendas que percorrera, ele destacou as seguintes: Campinas, Três Irmãos, Pé da Serra,
Carnaíba de Dentro, Carnaíba de Fora, Caldeirão, Lagoa do Pato, Paga-Tempo, Lagoa da
Pedra, Boa Vista, Pau d‟Espinho, Capim da Raiz e Boqueirão22.
O mapa a seguir, na Figura 2, desenhado por Sampaio (1879) ao passar pelo Rio São
Francisco em direção à Chapada Diamantina, entre 1879 e 1880, registrou algumas fazendas
que ele percorreu entre Monte Alto e Caetité.

Figura 2 – Mapa contendo o trecho entre Monte Alto e Caetité, desenhado por Theodoro Sampaio em
1879

Fonte: SAMPAIO, Teodoro Dr. O Rio São Francisco – trechos de um diário de viagem e a
Chapada Diamantina, 1879-80. São Paulo – Escolas Profissionnaes Salesianas. Disponível em:
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. N. Reg. 1241.

22
A área geográfica de Monte Alto engloba uma serra de mesmo nome, principal ramificação da Serra das
Almas, divisora das bacias do Rio Verde e do Rio das Rãs (com nascente na Serra de Monte Alto), afluentes do
São Francisco na margem direita. Além desses, a região beneficia-se também de dois rios originários do
município de Caetité: Rios Carnaíba de Dentro e Carnaíba de Fora, cujas águas se juntam no território de Monte
Alto. A seguir, uma representação gráfica do mapa do Rio das Rãs.
39

Algumas cidades do Alto Sertão da Bahia, incluindo o percurso dos rios, caminhos e
estradas pelas quais circulavam mercadorias e pessoas foram outras impressões deixadas por
Sampaio (1879) em sua passagem pelo sertão rumo à Chapada Diamantina.
Figura 3 – Cidades, trajetos e rios no Alto Sertão da Bahia, 1879

Fonte: SAMPAIO, Teodoro Dr. O Rio São Francisco – trechos de um diário de viagem e a Chapada Diamantina.
1879-80. Publicado pela primeira vez na Revista S. Crus. São Paulo – Escolas Profissionnes Salesianas.
Disponível em: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. N. Reg. 1241. Adaptado por Alex Martins, 2016.

O termo de Monte Alto era, indubitavelmente, ao longo do século XIX, um lugar de


belíssimas paisagens naturais, com aspecto rural e terras propícias ao desenvolvimento da
cultura do algodão e da agropecuária. Havia ali, conforme descreveram os viajantes, fazendas
de grande, médio e pequeno porte. Nesse contexto, a região foi povoada por diferentes
sujeitos sociais, que se dedicaram a inúmeras atividades relativas à produção de gêneros
agrícolas, criação de gado vacum e cavalar, comercialização de produtos manufaturados,
comércio de escravos, dentre outros, da grande à pequena economia. Eram abastados
fazendeiros, médios e pequenos proprietários, escravos, libertos e livres pobres que se
envolveram cotidianamente na lida de ocupações variadas das fazendas, criando vínculos
étnicos, de parentesco, amizades ou de tensões e contradições nas formas de viver.
Nos circuitos econômicos da região, a compra e venda de cativos alcançou destaque
nos negócios empreendidos por proprietários locais, especialmente no abastecimento de
mercados do Sul e Sudeste do Brasil. O testamento deixado pelo grande proprietário Joaquim
40

Pereira de Souza Costa, rico comerciante da região entre os anos de 1870, expressou
envolvimento direto na comercialização de cativos e lucros provenientes dessa atividade:

Declaro que quase todos os bens, dívidas activas e dinheiro que possuo
acepção da escrava Benedicta, e da legitima que tenho por parte digo por
morte de meu pai, recebida parte, e a receber no inventario que inda se vai
proceder, tanto adquiridos por compra, lucros comerciais de lavoura e
criação pertencem e são comuns a mim e minha sogra e Tia, Dona Anna
Rosa do Espírito Santo a quem pertencia os escravos com quem tenho
trabalhado e comerciado com os lucros delles resultante, e com esses é que
tenho negociado, comprado e zelado os bens de que estou de posse, e que
representam meu casal, inclusive ou conjuntamente com os bens a ela
pertencentes, e donde emanarão os capitaes com que sempre negociei.23

Com dívidas e lucros partilhados com sua sogra, o emprego de cativos na produção e,
notadamente, na comercialização, ao lado de outros itens, como o gado vacum, permitiu o
acúmulo de fortuna estimada em Rs.58:000$000, aplicando “os capitaes com que sempre
negociei” em outros investimentos. Possuir cativos e comercializá-los foram características
marcantes de grandes, médios e pequenos proprietários da região desde o início do século
XIX. Caminhos que cortavam as divisas entre o Alto Sertão e a província de Minas Gerais
serviram ao largo comércio de cativos, sal, fazendas secas, algodão, tecidos, couro, cavalos e
gados. Registros da alfândega de Malhada, vizinha ao termo de Monte Alto, localizada às
margens do Rio São Francisco e Rio Pardo de Minas mostraram, conforme Tarcísio R.
Botelho (2006, p.249/250), intenso comércio de escravos via tráfico atlântico e tráfico interno,
que, dos portos de Salvador, alcançavam a província de Minas Gerais pelos caminhos do Alto
Sertão. Erivaldo Fagundes Neves evidenciou que, nesses caminhos, havia intenso fluxo de
negócios de compra e venda de escravos entre essas regiões e demais províncias no século
XIX:

Os mascates de escravos deslocavam-se com suas mercadorias do sertão da


Bahia pelo interior, saindo de Caetité pelo distrito de Duas Barras, atual
Urandi, transpondo a fronteira de Minas em território da jurisprudência de
Boa Vista do Tremedal, atual Monte Azul, passando por Montes Claros e
Bocaiúva, ainda no norte mineiro, seguindo para Corinto, Curvelo. Daí,
possivelmente, dirigiam-se para Divinópolis, Formiga, Guaxupé ou Poços de
Caldas, alcançando o destino final através de Araras. Poderiam também, de
Corinto ou Curvelo, contornar a serra da Mantiqueira, dirigindo-se para
Araxá, onde atravessariam a serra da Canastra, chegando a Franca, no norte
de São Paulo, deslocando-se para Batatais, Ribeirão Preto e finalmente São
Carlos e adjacências (NEVES, 2000, p. 108).

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Testamento anexado ao inventário de
23

Joaquim Pereira de Souza Costa, 1870.


41

Traficantes especializados por meio de firmas da capital da província, de São Paulo e


da própria região, adentraram-se pelas roças, fazendas, sítios para comercializar com
senhores, ricos e pobres, a compra e venda de escravos, envolvendo “variados segmentos,
interessados em seus altos lucros”, (PIRES, 2009, p. 48-49). Os negócios do tráfico interno
eram tão lucrativos que os agentes das casas comerciais, munidos de dinheiro, armas e
animais, percorriam vilas do interior à procura da aquisição de escravos, propondo ofertas
vantajosas para atrair as vendas, sobretudo àqueles senhores de pequenas e médias posses,
conforme afirma Ricardo Tadeu Silva:
O incremento do tráfico interno trouxe importantes mudanças à vida de
milhares de cativos baianos. Muitos tiveram suas vidas radicalmente
alteradas no que diz respeito a seus laços familiares, afetivos, de trabalho e
de amizade. Outros tantos sofreram duras ameaças de não verem suas
expectativas e acordos de liberdade com seus senhores serem cumpridos e
alguns indivíduos nascidos livres ou libertos sofreram tentativas de
reescravização (SILVA, 2007, p. 107).

A posse de cativos e os negócios dela provenientes foram importantes na composição


de fortunas no termo de Monte Alto, a exemplo do caso de Joaquim Pereira de Souza Costa,
exposto linhas atrás. Na compra e venda de cativos, somas lucrativas foram mobilizadas por
senhores escravistas, traficantes e procuradores ao ponto de dificultar negociações para
alcance da alforria e desmantelar arranjos familiares no cativeiro, provocando uma das
experiências mais traumáticas na vida de escravizados no termo de Monte Alto. De acordo
com Ricardo Tadeu Silva (2007), o incremento do tráfico interno afetou “expectativas e
acordos de liberdade”, intensificando a busca na Justiça pela garantia de direitos. Em Monte
Alto, a ameaça de vendas para lugares distantes levou cativos a recorrerem a diversas
estratégias para a conquista de suas cartas de alforria, que iam desde a busca por pequena
economia, necessária para a compra da alforria, à manutenção das uniões familiares
legitimadas ou consensuais, dentre outras, inclusive apelando à Justiça com petições para
fazer valer seus direitos; mesmo que as relações sociais construídas por esses diferentes
sujeitos fossem marcadas por hierarquia socioeconômica e diferenciação, não impediam que
pobres e dependentes criassem projetos de vida próprios e almejassem melhores condições de
sobrevivência.
A ganância de senhores e traficantes, porém, ávidos por lucros, não tinha limites e,
embora cativos lutassem na direção contrária para adquirir sua alforria e manter a integridade
da unidade familiar, negócios do tráfico rondavam o cotidiano de homens e mulheres no
cativeiro, colocando-os sempre em risco, com futuro imprevisível.
42

No ano de 1874, Ezequiel Botelho de Andrade, grande proprietário da Fazenda


Lameirão e rico comerciante que mantinha articulações dentro e fora do Alto Sertão da Bahia,
passou procuração aos traficantes Manoel Cândido de Oliveira, José Justino Gomes &
Azevedo e José Pereira de Figueiredo, com plenos poderes para vender seus escravos de
nomes: Florêncio crioulo, Simão crioulo, Lucião crioulo e Florêncio cabra24. No livro de
notas do tabelionato de 1875, registraram-se 12 escrituras públicas de compra e venda de
escravos e 13 escravos vendidos25. Somam-se, nesse mesmo ano, 16 procurações com 24
escravos vendidos26. E, em 1879, foi vendida a escravinha Júlia, 10 anos, preta, filha da
escrava Sebastiana. Nos inventários foram identificados outros fazendeiros proprietários de
escravos em proporções semelhantes ao proprietário da Fazenda Lameirão, como os
Gonçalves, Castros, Farias, Pereira, Andrade, Magalhães, Costa, Guimarães, Cotrim, Gomes
de Azevedo e tantos outros.
Fazendas do termo de Monte Alto foram marcadas por distintas experiências e redes
de relações entre senhores, escravos, livres e libertos, além de terem sido vistas como espaço
produtivo que demandavam dinâmicas socioeconômicas variadas, articulando a sobrevivência
da região, mas “também como lugares em que modos de vida se especificavam”, (PIRES,
2009, p.188), a exemplo da Fazenda Lameirão. No ano de 1835, o então proprietário, José
Antônio da Silva Castro, a repassou para Francisco José Barbosa, português que aqui se
instalou e construiu fortunas.27 Nessa propriedade, Barbosa concentrou algumas de suas
principais atividades econômicas: a pecuária, produção agrícola e comercialização, dando a
descrever em seu inventário 1.000 cabeças de gado vacum, canaviais e demais benfeitorias,
além de 55 cativos que serviram para execução de trabalhos na fazenda e negócios de compra
e venda, resultando, inclusive, numa dívida ativa de Rs. 33: 264$123, oriunda também de
empréstimos a juros. O tropeirismo movimentava trânsitos de comércio da região, fazendo
com que a produção de senhores como Francisco José Barbosa fosse escoada para vilas e
cidades vizinhas, bem como para centros mais afastados. Nesses circuitos de comércio, vendia
algodão, rapadura, gado vacum, entre outros itens, e retornava com produtos manufaturados e

24
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária, Livros de Notas do
Tabelionato. Procuração de compra e venda de escravos. Cx. Século XIX.
25
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária, Livros de Notas do
Tabelionato. Procuração de Compra e venda de escravos. Cx. Século XIX.
26
Os dados acima dizem respeito à parte das procurações do referido livro de notas. São vários livros referentes
às décadas de 1860, 1870 e 1880.
APEB. Seção Judiciária. Série Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro. Classificação:
27

03/1021/1490/01. Mç:14, nº 19, 1844.


43

cativos.28 Em 1845, o filho desse senhor, Joaquim José Barbosa, herdou a fazenda, triplicando
as benfeitorias ali existentes, com monte-mor estimado em Rs. 82:296$530. Foram arrolados
117 cativos que somaram o valor de Rs. 34:650$000, 3.000 cabeças de gado vacum avaliadas
a Rs. 21:000$000, 65 bestas muares encangalhadas, no valor de Rs. 4:675$000, dentre outros
itens.29
Com a morte de Joaquim José Barbosa e partilha dos bens, a filha Antônia Barbosa de
Andrade, casada com Antônio Botelho de Andrade Júnior, herdou a fazenda, mantendo
algumas das benfeitorias e escravarias. Antônia Barbosa de Andrade, em 1863, ao ficar viúva,
com cinco filhos órfãos, contraiu o segundo casamento com o cunhado Ezequiel Botelho de
Andrade, um dos últimos herdeiros da Fazenda Lameirão, em fins do século XIX, que atuou
intensamente na comercialização de escravos, beneficiando-se do tráfico interno.
Inserido nesse contexto do tráfico, Ezequiel Botelho de Andrade era um senhor
escravista que manteve o trabalho escravo e usufruiu dos negócios provenientes desse
lucrativo comércio, como vimos nas transações de compra e venda citadas atrás. Imersos em
tais circunstâncias, apesar de o domínio da autoridade privada convergir para os interesses
senhoriais e dificultar a concessão de alforrias dentre outros anseios desejados pelos escravos,
estes souberam articular teias de relações e negociações para atenuar as imposições do
cativeiro, como veremos na ação de liberdade que segue.
No ano de 1872, a escrava Inez entrou com ação de liberdade na Justiça de Monte Alto
contra seu senhor Ezequiel Botelho de Andrade.30 Dizia Inez que era casada com o escravo
Leipião e que o seu marido “há quatro anos, pouco mais, sem menos, foi vendido pelo dito
senhor” ao Dr. Cassemiro Pereira Castro e “q não pode a Supp. viver separada de seu marido,
principalmente qto a lei assim ordena”. Com ajuda de um curador, requereu a compra da
alforria, tomando dinheiro emprestado do senhor de Leipião, Dr. Cassemiro Pereira Castro,
outro rico proprietário, o qual emprestou a quantia sob a condição de Inez prestar-lhe sete
anos de serviços.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Francisco José Barbosa,
28

1842.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Joaquim José Barbosa,
29

1845.
30
De acordo com Ricardo Tadeu da Silva, as ações de liberdade impetradas pelos escravos à Justiça remontam à
segunda metade do século XVIII, mas é necessariamente a partir de 1870, com a Lei do Ventre Livre, que essas
ações se tornam mais intensas (SILVA, 2007, p. 144). Já Keila Grinberg e Sue Peabody conceituam a origem de
uma ação de liberdade como “a negociação em torno da alforria realizada entre um senhor e um escravo”. E
ressalvam que, se essa negociação fosse descumprida, o escravo podia recorrer à Justiça, principalmente quando
o senhor negava o direito concedido anteriormente, ou herdeiros não reconheciam a liberdade do escravo; por
acusação de maus-tratos, pela recusa por parte do senhor a vender o escravo, mesmo que este propusesse a
compra, não concordância com o valor proposto, tudo isso era motivo para que o cativo recorresse à Justiça
(GRINBERG, Keila; PEABODY, Sue, 2013, p. 106).
44

Embora fizéssemos uma busca minuciosa nos Livros de Casamento do termo de


Monte Alto, não foi encontrado registro sobre o casamento de Inez e Leipão nos documentos
pesquisados, porém a Ação de Liberdade movida por ela indicia que a união do casal foi, de
fato, sacramentada pela Igreja com o consentimento do seu senhor. O casamento poderia
trazer algumas vantagens: maior estabilidade de permanência na propriedade, acesso à terra e
cultivo de sua própria roça e acúmulo de pecúlio para compra da alforria (SLENES, 2011). É
certo que essas condições não lhes asseguravam garantias, enfatiza Sandra Lauderdale
Graham (2005, p.64) – “toda a vida escrava tinha como pano de fundo a possibilidade de
venda e mudança para um lugar estranho”, ou, no caso do escravo Leipião, em Monte Alto,
para outras fazendas da própria região.
O desejo de permanecer ao lado de seu marido fez com que Inez ultrapassasse os
limites das relações costumeiras estabelecidas entre senhor e escravo, quando recorreu à
Justiça para garantir aquilo que considerava justo. A fonte documental não mencionou os
motivos que conduziram o senhor Ezequiel Botelho de Andrade a vender o cônjuge de Inez,
mas pode-se inferir que, além da valorização advinda do tráfico, atitudes que ferissem a
confiança ou interesses senhoriais poderiam ser impulsionadoras de vendas, castigos e
rebaixamento para trabalhos pesados; talvez um desses tenha sido o motivo da venda de
Leipião, postura típica de um senhor de escravo “que brande a força e o favor para prender o
cativo na armadilha de seus próprios anseios” (SLENES, 2007, p.36). Mas, se a permissão de
sacramentar o matrimônio de Inez tinha por intenção ligar os escravos à fazenda, os interesses
deles eram outros, e logo o senhor descobriu “os constrangimentos que a posse de escravos
casados podia impor” (GRAHAM, 2005, p.55).
Inez sabia que a Lei de 1871 oferecia aos escravos casados a garantia do direito de
permanecerem juntos, contudo, compreendia que a condição de escrava não lhe permitia
recorrer à Justiça sem a ajuda de alguém, por isso, a participação do curador para que o
processo fosse impetrado. Além disso, a Lei de 1871 “reconhecia ao escravo o direito de
formação de pecúlio, fosse proveniente de doações, legados e heranças de pecúlios, fosse
obtido por consentimento do senhor, do seu trabalho, sem que seu senhor pudesse impedi-lo”
(Grinberg e Peabody, 2013, p. 115). Ainda, segundo Ricardo Tadeu Caires Silva:
Com a incorporação do direito „costumeiro‟ à Lei de 1871, os escravos
puderam ir além. Amparados pelos dispositivos legais, os cativos agora
tinham a possibilidade de, caso as negociações com os senhores falhassem,
apresentar o pecúlio em juízo e esperar pelo resultado do arbitramento
judicial. Antes, para conseguir suas liberdades, tinham de se envolver em
batalhas judiciais em que se chocavam o direito de propriedade e o princípio
de liberdade (SILVA, 2000, p. 79).
45

O curador constituía figura importante para representar escravos nos autos cíveis e
explicar os motivos pelos quais requeriam a liberdade, por ser o escravo “considerado incapaz
judicialmente” de realizar interpelação, (SILVA, 2007, p. 142)31. Inês não queria “continuar a
prestar mais serviços ao seu antigo dono, por motivos que deixa de expor” e, para isso, pediu
à Justiça, por intermédio do curador, o arbitramento de sua avaliação e, posteriormente, a
alforria32. Não obstante, seu senhor, Ezequiel Botelho de Andrade, ao receber a intimação,
não hesitou em requerer a revogação do despacho, antes concedido pelo juiz, autorizando o
arbitramento dos avaliadores. Com o comportamento próprio de qualquer senhor escravista de
resistir à concessão de determinados direitos almejados pelos escravos, principalmente em
contexto de valorização cativa, o Sr. Ezequiel justificou a ilegalidade do pedido, alegando que
a aludida escrava “estava bem longe de supor que poderia contratar serviços futuros com
terceiros, sem seu consentimento”, afirmando, ainda, que o seu consentimento “é uma das
condições essenciais para que tais contratos possam ter lugar como é expresso no referido
art.” da Lei de 1871.
Apesar de contestações e contradições no entendimento da lei, o juiz dos órfãos de
Monte Alto indeferiu o pedido de Ezequiel Botelho de Andrade, prosseguindo a avaliação da
escrava. No primeiro arbitramento, os avaliadores entraram em contradição quanto ao valor
de Inez, sendo o juiz obrigado a convocar o Dr. Cassemiro Pereira de Castro (senhor que
emprestou dinheiro a Inez) para compor a segunda avaliação. Inez foi avaliada em
Rs. 750$000, valor considerado adequado para o mercado naquela época. Assim, recebeu a
carta condicional e o direito de viver ao lado do seu companheiro.
A história de Inez nos remete ao contexto mais amplo, no qual o termo de Monte Alto
era uma parte pequena, mas que lança luz sobre a sociedade escravista e os embates dela
decorrentes; resistência contra o tráfico, negociações pela alforria, manutenção de laços
familiares. Dentro de certos limites, ela resistiu ao domínio senhorial quando Ezequiel
Botelho de Andrade retirou o “favor” a ela concedido de permanecer ao lado de seu marido.
Assim, a escrava recorreu à negociação de tomar dinheiro emprestado do senhor de Leipão
para comprar a alforria, mesmo que isso implicasse uma transferência de relações de domínio,
que continuaria por mais sete anos, até que conseguisse pagar o empréstimo contraído. Para

31
A fim de definir o conceito de curador, Ricardo Tadeu Silva recorreu a Perdigão Malheiros para afirmar que a
presença do curador também se estendia “aos menores e demais pessoas miseráveis, isto é, dignas da proteção da
Lei pelo seu estado ou condição”. (MALHEIROS, 1976, p. 125 apud SILVA, 2007, p. 142).
32
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção crime: Série Ação de Liberdade:
1872.
46

Inez, a liberdade custaria a chegar, mas permanecer ao lado de sua família era o principal
anseio naquele momento e, consequentemente, a alforria. Desse modo, apesar de os senhores
dificultarem o acesso à alforria e à manutenção de laços familiares, diante dos lucros
possibilitados pela compra e venda de escravos, estes articularam significativas redes de
relações e negociações para resistir ao domínio/interesse senhorial e fortalecer suas ações
dentro e fora do cativeiro.
Para Ricardo Tadeu Silva, a partir de 1850, com o fim do tráfico atlântico e a
continuidade do tráfico interno, o preço dos cativos aumentou, comprometendo as
negociações em torno da liberdade e, consequentemente, provocando maiores tensões “no
cotidiano de senhores e escravos, em especial, nas províncias diretamente afetadas pelo
tráfico intra e interprovincial” (SILVA, 1993, p. 17). Nessa perspectiva de análise, Isabel
Cristina Ferreira dos Reis (2007, p. 40), com base em estudos de Slenes, apontou que, entre
1851 e 1880, foram comercializados cerca de duzentos mil escravizados no Brasil via tráfico
interprovincial, o que “garantiu a continuidade da instituição escravista”, fato que
desencadeou uma série de ações de escravizados recorrendo à Justiça, principalmente a partir
da Lei de 1871, quando “o direito de o escravizado recorrer a uma ação de liberdade foi
renovado em um dos seus artigos”.
Conforme dito, a Lei de 1871 era elemento fundamental para que os cativos pudessem
se aproximar da Justiça e contestar contradições vivenciadas nas experiências do cativeiro,
caso se sentissem injustiçados, sendo essa a situação de Inez. A nova lei não só inibia o
direito exclusivo de senhores decidirem os rumos dos escravos, como também alargava
conquistas além do âmbito restrito ao domínio senhorial.
E o que dizer dos escravos que também resistiram e conquistaram alforria antes de
1871? Para Ricardo Tadeu Silva, antes de 1871, o direito costumeiro nem sempre transcorria
no âmbito das relações privadas entre senhor e escravo; quando ocorria sentimento de
injustiça considerado pelos escravos, estes recorriam aos tribunais para fazer valer os acordos
estabelecidos pelo costume, uma vez que “não se conformavam com as frequentes trapaças de
seus proprietários” (SILVA, 2000, p. 30). Diante das incertezas quanto ao cumprimento dos
acordos, principalmente por parte de seus senhores, cativos calçavam-se de diferentes
garantias, para evitar rompimento das negociações acertadas anteriormente. Tais atitudes
seriam uma forma de precaução, pois sabiam que não poderiam contar com a certeza do que
haviam conquistado, restando-lhes a “proteção” da Justiça (SILVA, 2000, p. 30).
A relação paternalista entre senhores e escravos, apoiada em direitos e deveres para
ambas as partes, acionou negociações tecidas nas mais diversas experiências e situações, nas
47

33
quais cativos tiraram vantagens em momentos oportunos . A ação de liberdade movida por
Inez, de certa forma, “perturbou” aspectos da relação de poder senhorial. Para Maria Cristina
Cortês Wissenbach (1998), manter a estabilidade da união afetiva constituía matéria de
reivindicação dos escravos e, quando esses espaços não eram concedidos, surgiam ações
diversas por parte dos escravizados, como fugas, ataques violentos, desgostos gradativos,
recorrendo-se à proteção da Justiça. Na dinâmica das relações sociais em que Inez se inseriu,
emergiram ações mais tensas no momento que se recusou a servir, na condição de escrava, ao
senhor Ezequiel Botelho de Andrade, resistindo perante a Justiça, quando não mais podia
contar com o acomodar-se. Nesse sentido, a resistência manifestada pela escrava demonstrou
a continuidade da linha tênue entre a escravidão e a liberdade, resistiu quando os intentos de
seu senhor foram de encontro à expectativa de um projeto de vida melhor, nesse caso, a
alforria e o direito de conviver ao lado do companheiro (WISSENBACH, 1998).
Manter a integridade da família e a vida em liberdade custava muito caro para
escravos do sertão baiano, principalmente na segunda metade do século XIX, quando o tráfico
interno despertou ambições desmedidas entre senhores escravistas ao venderem cativos para
as províncias do Sul e Sudeste para abastecer as lavouras cafeeiras. Frente a essa conjuntura,
muitos escravos se depararam com situações embaraçosas na garantia de seus direitos e,
assim, empenharam esforços redobrados para valer a vida em liberdade. Foi em meio a essa
dualidade de conjunturas políticas (Lei do Ventre Livre e o tráfico interno) que Inez respaldou
sua vontade de manter o matrimônio e adquirir a alforria.
A historiografia sobre família escrava e liberdade para o Alto Sertão tem demonstrado
escravos buscando estratégias para manter a unidade familiar e os vínculos étnicos. Uniões
sacramentadas pela Igreja Católica entre escravizados e a compra de alforrias não foram
incomuns em fontes analisadas para Monte Alto, evidenciando semelhanças em relação a
outras regiões vizinhas, como Caetité, Rio de Contas e Paratinga34.
A partir da segunda metade do século XIX, novos arranjos de negociações entre
cativos e senhores foram postos, ao ponto de que os altos preços dos cativos e as migrações
compulsórias do sertão para as províncias do Sul tornaram mais difícil a concessão dos
senhores. Dessa forma, a história de Inez se insere num contexto específico do século XIX
que impactou as relações entre senhor e escravo: o tráfico atlântico e o tráfico interprovincial.
Uma variedade de situações como a da escrava Inez poderia ser aqui elencada, demonstrando

33
Sobre o conceito, ver também: LIBBY, 2008, p. 33.
34
Sobre estudos de família escrava no Alto Sertão, ver: NOGUEIRA, Gabriela Amorim. 2011; SANTANA,
Napoliana Pereira, 2012. ORTIZ, Ivanice Teixeira Silva, 2014.
48

o quanto, em Monte Alto, as ações dos escravizados estavam intrinsecamente vinculadas a


tais conjunturas. Muitas vezes, os acordos medraram, em outros momentos, fracassaram, mas
jamais aniquilaram seus anseios e visões de conquistas. Mesmo com dificuldades, abriram
caminhos para a alforria e diversificaram as estratégias de negociações e resistência frente às
necessidades. Nem sempre os propósitos dos escravos e libertos tiveram conquistas
satisfatórias, mas as possíveis estratégias de sobreviver à dominação escravista e assegurar
direitos costumeiros eram constantes.
As histórias de escravos que emergem das pesquisas permitem perceber as limitações
e as possibilidades da alforria e importância da constituição de famílias para o termo de
Monte Alto. Mesmo diante das pressões senhoriais, contundentemente favoráveis à
continuidade da exploração do trabalho escravo, muitos cativos criaram chances de escapar
das malhas do tráfico para manter-se e permanecer junto aos seus, fossem elas por meio de
negociações ou mediante tensões conflituosas, como se verá com mais afinco nos capítulos
que seguem. Antes de adentrar em tais questões, será importante entender como se formou
historicamente a região.

2.2 Breves considerações históricas e econômicas do lugar

Conforme dito no tópico anterior, na evolução da história da Bahia, municípios do


Alto Sertão, a exemplo de Caetité, Rio de Contas e Monte Alto, dentre outros lugares, foram
bastante representativos na produção econômica referente à pecuária, ao algodão e outras
atividades rentáveis. Soma-se a essas atividades lucrativas o comércio de cativos, seja via
tráfico atlântico ou tráfico interno, que muito contribuiu para o enriquecimento de alguns
senhores durante o século XIX. No final do século XVII, quando Portugal empreendeu a
busca por jazidas de ouro nas Minas Gerais e nos sertões, a região integrou-se à dinâmica do
capital mercantil, promovendo, dessa forma, o deslocamento de pessoas de todos os cantos do
mundo em busca de riquezas e prestígio social. O Alto Sertão integrava a sesmaria dos
Guedes de Brito, destinada à criação de gado nos tão conhecidos currais do São Francisco35.
No século XVIII, essas regiões se enquadravam entre as áreas de colonização dos
sertões pela coroa portuguesa, com abertura de estradas, caminhos e rotas fluviais pelo Rio

35
Acerca do povoamento nos sertões, no início da colonização portuguesa, ver: TAVARES, Luís Henrique Dias.
História da Bahia. Editoras: Unesp e Edufba. ed. 11, 2008. p. 157-158; ALENCASTRO, Luís Felipe de. O
Trato dos Viventes: A Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 340-
341.
49

São Francisco36. Paralelamente à expansão das atividades econômicas, veio o crescimento da


população escrava, somente em Monte Alto, cerca de 10% da população era escrava no ano
de 187237. Do total de 11.866 pessoas, a população escrava correspondia a 1.105 pessoas,
sendo 645 homens e 460 mulheres. Desse montante, 5.627 eram, de acordo com o censo,
gente parda, e 1.296 eram declarados pretos, sendo que, possivelmente, parte destes era
oriunda do tráfico de escravizados que se tornaram livres ou libertos, destinados a diversas
atividades das fazendas38.
No percurso da Serra Geral, mais especificamente entre as regiões de Rio de Contas,
na Bahia, e Minas Gerais, localizava-se a serra de Monte Alto, com jazidas de salitre39. A
descoberta do salitre, no século XVIII, despertou cobiça da coroa portuguesa, que enviou
contratadores para explorar o minério, a exemplo do mestre de campo, Pedro Leolino Mariz,
visando à instalação de uma fábrica40. Investiu, ainda, em abertura de estradas e logística para
o escoamento do produto. A exploração do salitre, somada à pecuária, contribuiu para o
desenvolvimento de núcleos urbanos e rurais e de povos de diferentes nações e culturas, entre
eles, indígenas e africanos escravizados41.
O esgotamento das atividades auríferas em fins do século XVIII impactou a economia
do império português, sendo necessária a busca de alternativas capazes de garantir a
manutenção da estrutura administrativa. Nesse contexto, reorientou-se a exploração de terras
destinadas às atividades agrícolas e pecuaristas, sendo que Monte Alto, juntamente com
Caetité e todo o Alto Sertão da Bahia, ganhou impulsos nos setores produtivos da pecuária e
do algodão, entre outras atividades. Na tentativa de prolongar o projeto colonizador, o

Ver: IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América
36

portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: edições UESB, 2012; SANTOS, Márcio Roberto Alves dos.
Fronteiras do sertão baiano: 1640- 1750. Tese de Doutorado. São Paulo: USP. 2010.
37
Durante o século XVIII, Monte Alto correspondia a uma área pouco povoada e relativamente voltada à
exploração do salitre e à economia de subsistência, contudo, dada a falta de registros nos documentos, não se
sabe exatamente a dimensão do conjunto populacional no século XVIII. No entanto, há indícios de que o
trabalho escravo se fez presente desde o processo de colonização na região. Cite-se como exemplo o testamento
de Francisco Pereira de Barros, que deixou registrados 16 cativos em 1735, em sua Fazenda Boa Vista.
IBGE. Recenseamento do Brasil - Província da Bahia, Monte Alto, 1872.
38
39
Sobre o salitre na serra de Monte Alto, ver: IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos culturais,
comércio e cores nos sertões da América portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: edições UESB, 2012.
40
Ainda sobre o salitre na serra de Monte Alto, ver também: PERES, Damião. Um capítulo de história
econômica bahiana e sua integração na vida política luso-brasileira de setecentos: A exploração de salitre no
Monte Alto. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, n. 77, 1952, p.207 – 216.
41
Pedro Leolino Mariz, romano, homem de confiança do governo português, foi encarregado de administrar as
riquezas nos sertões da Bahia. Responsável pela descoberta de minas de salitre na serra de Montes Altos. Além
dele, João da Silva Guimarães e João Gonçalves da Costa foram responsáveis por organizar estradas, partindo de
Minas Novas do Araçaí e Norte de Minas Gerais, rumo aos sertões da Bahia. Coube a Pedro Leolino Mariz a
incumbência de se firmar “como um homem de fronteira”, abrindo estradas, expulsando bandeirantes paulistas e
preservando as minas de salitre em Montes Altos. (IVO, 2012). A expressão “homens de caminho” foi retirada
do livro: IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América
portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: edições UESB, 2012.
50

governo do Marquês de Pombal criou a Mesa de Inspeção de Agricultura da Bahia, em 1750,


no intuito de retomar o desenvolvimento agrícola no Brasil-colônia. O novo projeto,
gradativamente, suspendeu a Lei do Morgado, e as terras dos Guedes de Brito foram
repassadas a contratadores, concedidas mediante acordos, vendidas ou arrendadas para
posseiros (NEVES, 2005). Mesmo assim, grandes latifúndios escravistas permaneceram ao
longo do século XIX no Alto Sertão da Bahia.
Alguns “homens de caminho” dirigiram-se para as serras de Montes Altos, a exemplo
do Francisco Pereira de Barros (Pereirinha), que, em 1742, comprou a Fazenda Riacho da Boa
Vista, de Isabel Guedes de Brito, fixando morada naquelas terras. Pereirinha, conhecido pelos
montealtenses como um dos responsáveis pelo povoamento, requereu, em 1735, da Santa Sé
da Bahia, autorização para a construção da capela em louvor a Nossa Senhora Mãe de Deus e
dos Homens, deixando claras no testamento suas intenções para a edificação do monumento.

[...] he este Riacho assim confrontado do meu próprio por eu haver


comprado a Dona Isabel Maria Guedes de Brito, como consta de uma
escritura que está nos autos da cidade da Bahia feita pelo tabelião Francisco
Alves Tavares, e sendo a nota da dita escritura em meu poder e consta a dita
comprado o dito Riacho da Boa Vista com todas as suas vertentes e
juntamente da Serra da Boa Vista com todas as suas águas nativas e
correntes, e tudo está muito bem declarado na dita escritura das quais terras
faço de ação a virgem Maria Mae de Deos para de seu rendimento delas se
pagar cada um ano seis mil e duzentos e cinquenta reis para começar huma
Capella que invento edificar e com effeito a edifico de licença de sua
Reverendíssima com a sua invocação da Virgem Mae de Deos e Homem.
Com condição de que edificada que seja a tal Capella nos limites da tal
fazenda [...]42

Acreditava aquele rico senhor que a edificação da instituição religiosa promoveria um


espaço de obtenção dos sacramentos, como o direito de sepultamento dele, de seus familiares
e demais fiéis, além do fato de poder beneficiar-se da doação, fazendo da instituição religiosa
um lugar de concessões de mercês, conforme declarou na petição feita à Santa Sé43.
Para Fernanda Olival (1999, p.21), servir à coroa na iminência de recompensas era
prática recorrente por diferentes indivíduos do reino português. Até mesmo as camadas
sociais mais baixas naquela época encontravam meios de servir e realizar préstimos, com o

42
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Autos do Encapelado, v.1, 1846.
43
De acordo com Nuno Monteiro, o sistema de concessão das mercês, criado em 1671, foi esclarecido pelo
Decreto de 15 de Agosto de 1706, que regulamentava o Regimento das Mercês. As mercês “repousavam no
princípio da remuneração de serviços prestados à coroa”. Conseguir uma mercê dependia de todo um processo
burocrático e difícil de adquirir. O indivíduo pleiteante teria que mostrar um grande feito para merecer a
recompensa. Para saber mais sobre as Mercês, ver: MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. O Crepúsculo dos
Grandes, a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal. (1750-1832), 2. ed. revista. Imprensa Nacional
Casa da Moeda. Lisboa, 2003. Ver ainda: RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. Brasil c. 1530 – c.
1630. São Paulo: Alameda, 2009. O autor dedica um capítulo específico às honras e mercês.
51

objetivo de converter em benesses. Essa prática de servir ao poder do reino criava expectativa
de receber algo em troca e, de certo modo, algum amparo para a vida toda. O ato de dar,
receber, pedir, disposição para presteza, assim como agradecer constituíam “verdadeiro
círculo vicioso” (OLIVAL, 1999, p. 18) de boa parte da sociedade do antigo reino. Em alguns
casos, os prêmios esperados pela prestação dos serviços nem sempre correspondiam aos
desejos do pedinte, o que poderia ser considerado “injusto”. Nesse sentido, Pereirinha,
possivelmente, ao doar o terreno para a construção da capela, contava com recompensas e
reconhecimento do feito. A petição foi atendida pelo arcebispado da Bahia, contudo,
Pereirinha faleceu antes que a construção da capela ficasse pronta e, por razões diversas, não
gozou das recompensas esperadas, exceto o sepultamento na redondeza da capela.44

Figura 4 – Igreja Matriz construída em 1735 no sopé da Serra de Monte Alto

Fonte: Biblioteca do IBGE. Série: Acervo dos municípios brasileiros, 1957. Disponível em:
<http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=431437> Acesso em: 26 jan.
2017.

No século XIX, mais especificamente em 1856, a Câmara de Monte Alto informou ao


presidente da província da Bahia os limites territoriais da vila, sendo com Caetité a 15 léguas
(90 km), Macaúbas a 34 léguas (204 km), Carinhanha a 16 léguas (100 km) e, para o lado do

44
Sobre Francisco Pereira de Barros e Monte Alto, ver: ARAÚJO, Jonas Cardoso. Algumas considerações
acerca do município de Palmas de Monte Alto. In: SILVA, Joaquim Perfeito da. Territórios e ambientes da
serra de Monte Alto. Vitória da Conquista: UESB, 2012, p. 167-176.
52

Sul, com a província de Minas. O documento informava os limites dos colégios eleitorais na
região, conforme representação a seguir45.
Figura 5 – Limites do termo de Monte Alto em 1856

Fonte: Mapa elaborado em parceria com Junívio Pimentel a partir de informações contidas em correspondências
recebidas da Câmara de Monte Alto. APEB. Arquivos Colonial e Provincial. Correspondências Recebidas da
Câmara de Monte Alto. Processo 1361, 1856.

Assim, o termo constituía-se pelos principais distritos: Riacho de Santana, Boqueirão


das Palmeiras (Sebastião Laranjeiras) e Beija-Flor (Guanambi). Em 1856, a Câmara informou
que a produção algodoeira, uma das principais atividades econômicas da região, passava por
dificuldades devido ao despreparo dos terrenos, apesar de estarem ali as melhores criações de
animais. O insucesso na cotonicultura levou alguns proprietários a migrarem para as Lavras
Diamantinas, na Bahia, a partir da descoberta do diamante, o que, certamente, desencadeou
migrações do interior do sertão para a exploração do minério, promovendo impactos no
cotidiano local.
Malgrado os problemas das secas, a região era produtora de uma variedade de gêneros
agrícolas, como arroz, feijão, milho, cana-de-açúcar e mamona, além de investirem na
pecuária. Nos períodos chuvosos, ocorria reanimação dos proprietários, os quais não mediam
esforços para a retomada de suas atividades. No entanto, enfrentavam problemas relativos ao
escoamento da produção. Em 1856, a Câmara remeteu outro relatório ao presidente da

APEB. Governo da província - Câmara de Monte Alto, 1840 a 1856. Seção de arquivo colonial e provincial, n.
45

1360, 1856.
53

província da Bahia, reclamando das péssimas condições das estradas, as quais precisavam de
pontes, sobretudo as do Rio de Contas, principal via de acesso entre o Alto Sertão e o
Recôncavo baiano:

Todas estas estradas estam em más estado e precisam de pontes, sobre tudo
do Rio de Contas, ellas passam por terrenos, que em sua maior extensão, seja
susceptíveis de culturas, e sem boas passagens, noutras porém há falta de
água. Serve-se de cavalos de carga que custam 80 reis, de bestas por 150
reis, carregam e caminham 3 a 4 léguas, o frete é variável46.

O estado precário das estradas, comprometendo a comunicação eficiente, era uma das
maiores queixas da Câmara de Monte Alto, pois dificultava as transações de mercadorias de
exportação e importação. Exportava-se por São Félix e Cachoeira, passando por Caetité e Rio
de Contas. Importava-se diretamente da capital, via Cachoeira e Santa Isabel. Passava-se pelas
estradas do Paraguaçu e Rio de Contas, subindo aos portos de Cachoeira, à distância de 120
léguas, que correspondem a 720 km. O mapa a seguir demonstra o percurso de ida e volta dos
caminhos percorridos por tropeiros com mercadorias do sertão para o Recôncavo da Bahia, à
capital da província e vice-versa47. Os relatórios enviados ao presidente da província, em
1856, reclamavam das dificuldades de produção econômica, das vias de transportes e questões
de ordem social, podendo-se, assim, conjecturar que esses problemas eram ainda piores nas
primeiras décadas do século XIX.

APEB. Correspondências recebidas da Câmara de Monte Alto, n. 1361. Seção de arquivos colonial e
46

provincial, 1856.
APEB. Seção do Arquivo Colonial e Provincial. Governo da Província – Monte Alto. Mç:1360, 1840-1856.
47
54

Figura 6 – Trajeto percorrido pelos tropeiros do Alto Sertão com destino ao Recôncavo da Bahia e
Salvador

Fonte: Mapa elaborado em parceria com Junívio Pimentel a partir de informações contidas na documentação
consultada. APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Governo da Província Monte Alto. Mç: 1360, 1840-
1856.

Nesse contexto, mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, a análise dos


inventários post mortem sinalizou em Monte Alto, ao longo do século XIX, a existência de
ricas fazendas com vista para o desenvolvimento da pecuária e cultivo do algodão, produtos
destinados aos mercados interno e externo, como Salvador, Recôncavo da Bahia, Minas
Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, assim como o desenvolvimento da policultura48. As
pequenas fazendas e sítios também integravam a dinâmica do comércio interno e subsidiavam
o abastecimento da região. No âmbito da historiografia clássica, pesquisadores como Prado
Júnior (2004) destacaram a relevância da interiorização na dinâmica do capital mercantil,
como os aspectos da existência de atividades subsidiárias após a crise das zonas auríferas,
dentre elas, a agricultura e a pecuária.
Parte do abastecimento de carnes para as regiões de Minas Gerais, São Paulo e Rio de
Janeiro tinha como fonte fornecedora as localidades que se estendiam do Rio de Contas, na
Bahia, às margens do São Francisco, além do Rio Pardo e Rio Verde de Minas. As regiões
contavam com climas favoráveis e topografias planas, a exemplo da beira do Rio São
Francisco, que possuía salinidade no solo, os conhecidos “lambedouros”, com um mineral

Para saber mais sobre os trânsitos econômicos do Alto Sertão em fins do século XIX, ver: SANTOS, Paulo
48

Henrique Duque. Légua tirana: sociedade e economia no alto sertão da Bahia, Caetité, 1890-1930. Tese de
Doutorado. São Paulo: USP, 2014.
55

necessário à criação de gado. Ainda, ressaltou-se a existência do comércio interno desse


minério entre “a zona que margeia o São Francisco e seu afluente, o Salitre e a vila do Urubu”
(PRADO JÚNIOR, 2004, p. 62).
Para além da pecuária, na caatinga do Alto Sertão da Bahia, assim como em outras
regiões do Nordeste, como Maranhão e Ceará, o plantio do algodão se expandiu no início do
século XIX e encontrou, nessas regiões de clima seco, condições favoráveis ao seu
desenvolvimento. Em Monte Alto, a atividade do algodão também foi ressaltada por Prado
Júnior (2004), ao afirmar que, ao lado da pecuária, o algodão constitui uma das principais
fontes de riqueza e desenvolvimento econômico da região. Assim, evidencia:

O interior mais remoto também se aproveita da preferência do algodão por


climas mais secos. Nos altos sertões limítrofes da Bahia e Minas gerais,
forma-se uma região algodoeira de certa importância. Ela abrange, no sul da
primeira, a área que se estende a leste do Rio São Francisco, compreendendo
a serra de Monte Alto, Rio de Contas, Gavião e Conquista, com centro
principal em Caetité (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 151).

Mesmo com dificuldades de transportes e distâncias dos grandes centros, o algodão


proporcionou o alargamento das atividades agrícolas para regiões do interior da colônia,
motivando, também, a dinâmica interna de comércio, expansão e perspectivas de maior
integração econômica, como afirmou José de Sá Bittencourt, em 1798:

A 14 léguas da villa de Camamú, fazendo caminho de Oest-Sudueste até


encontrar as margens do Rio de Contas, onde confinão as matas grossas,
com Catingas altas (1), e vão confinar a 12 léguas com Catingas baixas (2),
já a regularidade do clima se conforma com a fertilidade do terreno, muito
próprio para todas as plantações, particularmerte, para a lavoura do Algodão,
onde se acha silvestre no meio das ditas Catingas (BITTENCOURT, 1798).

Ângelo Alves Carraro (2008) evidenciou, ao estudar a história dos preços a partir de
séries documentais em Ouro Preto, Minas Gerais, produtos que circulavam na capitania
provenientes de vários lugares do Brasil. Da Bahia, especificamente nas regiões do
Recôncavo e sertão, incluíam-se produtos das fazendas do São Francisco: “sal das salinas
sanfranciscanas, sabão, sebo, carne-seca, sola, cera e couros de boi, de veado e de lontra e,
finalmente, os peixes salgados” (CARRARO, 2008, p. 188). E acrescenta em outro momento
que, no final do século XVIII, encontrou, nos registros de Rio Pardo, maior concentração de
comércio “entre o Norte de Minas e a Bahia e Minas Novas”, sobretudo no que diz à
importação de escravos e produção de algodão (CARRARO, 2006, p. 141).
A economia de abastecimento interno e a “mercantilização da economia de
subsistência” construíram espaço próprio, autônomo e dinamizador e, respeitando as
56

singularidades regionais e temporalidades históricas, conectaram direta ou indiretamente a


dinâmica do mercado externo. As atividades internas foram além das práticas de escambo e
autoconsumo, pois representaram e adaptaram as regras do capitalismo internacional. Mesmo
com todas as dificuldades de comunicação, transportes e distância dos grandes centros, havia
fluxos constantes de pessoas e mercadorias que transitavam de um lugar para outro,
favorecendo a integração territorial e econômica do interior (LAPA, 1982, p. 44/45).
Caracterizar a região e o comércio interno é imprescindível para entender as
especificidades da economia da região ao longo do século XIX, com a expansão das
atividades agropastoris, acompanhada pela mão de obra cativa. No dinamismo regional,
desenvolveu-se uma elite local, considerada dentro dos limites de produção econômica da
região, homens afortunados, verdadeiros potentados, proprietários de fazendas e capitalistas
que se valiam do trabalho cativo para tocar seus negócios e, consequentemente, acumular
riquezas.
Quanto à infraestrutura da pequena vila de Monte Alto, nos relatórios remetidos ao
presidente da província da Bahia, no século XIX, havia inúmeras queixas, que pareciam ser
ignoradas pelas autoridades: falta de calçamentos na maioria das ruas e o conserto das
estradas dependia da boa vontade de outros municípios, a exemplo da construção da ponte do
Rio de Contas e a do Rio Carnaíba de Dentro, do mesmo termo, e da ponte do Pajeú, que dava
acesso à Carinhanha. No conserto da ponte do Rio Carnaíba, que ficaria a uma extensão de
sete léguas (42 km) de distância da vila, o orçamento chegaria a Rs. 500$000.
Antes de 1856, a igreja matriz carecia de reformas e não havia na vila cemitérios nem
casa da Câmara ou cadeia. Os presos ficavam em lugares improvisados e mal acomodados.
Mesmo assim, o termo possuía 40 engenhos, sendo oito principais, localizados em fazendas
de grandes proprietários, como Faustino Moreira de Castro, José Francisco Barbosa, Belchior
Pereira Guedes e José Antônio da Silva Castro. A agricultura e a pecuária ficavam a cargo das
técnicas rudimentares, à base do trabalho escravo, e sem perspectivas de melhoramentos49.
Noutro relatório, de 1861, passados cinco anos, a Câmara novamente enfatizava as reais
necessidades da vila, ressaltando a situação da pobreza diante da escassez de gêneros
alimentícios, as péssimas estradas e a falta de pontes nos rios. Assim consta no relatório:
Ex_ᵐᵒ Senr.ᵒ,
Monte Alto – 1861
A Câmara municipal da Villa de Monte Alto de novo expõe as necessidades
das mais urgentes do município pedindo melhorias a ellas. Primeiramente –
não há casa de Câmara, nem cadeia para cujo edifício abriu-se uma
49
APEB. Governo da província – Judiciário/ juízes. 1840 – 1856. Seção Arquivo colonial e provincial, n.1360,
1856.
57

subscricção que apenas obteve em assignaturas um conto de reis, que não é a


quantia suficiente para um sobrado. Continua a Câmara a funcionar em casas
particulares, emprestadas, porque nem vintém tem para pagar uma caza.
Segundo – há a necessidade da construção de uma ponte principalmente na
estrada de Riacho de Santana, districto o mais importante do município.
Terceiro – a estrada maior e muito vantajosa desta villa para a de Carinhanha
pelo lugar chamado Pageú por estar totalmente fechada, para cuja abertura a
Câmara já pediu, e de novo torna a solicitar a subvenção de quatro contos
mil reis, quantia não excessiva a atender a grandeza do trabalho. Quarto –
necessita-se da construção de cemitério, porque nenhum há, por cuja causa
continua o abuso da insumação no Templo que aqui existe. Quinto – Esse
Templo é a matriz, que se acha em más estado, o que já sendo atendido pela
assembleia provincial, foi destinada para seu melhoramento certa quantia, a
qual procurando a Câmara não foi remetida. Finalmente havendo outras
muitas necessidades e entre ellas a falta de gêneros alimentícios que se
continua a sofrer, sem que até agora tenhão chegado os socorros pelo
governo mandadas a pobreza, que ainda está padecendo de fome, a Câmara
deixa de expor agora, reservando-as para outra ocasião.
Deos guarde a V. Exª .
Paço da Câmara municipal da Villa de Monte Alto em sessão extraordinária
de 31 de janeiro de 1861.
Ilmᵒ Exᵐᵒ Srᵒ Desembargador – Presidente da Província, Antônio da Costa
Pinto50.

A situação de pobreza e escassez exposta no documento ganhou um teor ainda mais


drástico diante da intenção de angariar recursos junto ao governo provincial, valendo-se dos
mais variados argumentos para sensibilizar as autoridades, a exemplo da referência ao Templo
da matriz, que carecia de reformas. Ressalte-se que a religião católica acompanhava a vida de
boa parte das populações sertanejas, por isso, exigia-se melhor acomodação sob o teto das
igrejas, com anuência dos padres e bispos católicos. A demanda por lugares mais apropriados
e adequados à população era constante e, em 1864, a Câmara reclamou da situação da igreja
matriz, ao tempo em que solicitava a edificação de uma igreja maior, requerendo do governo
provincial uma quantia em dinheiro para dar prosseguimento à construção. Alegava a boa
disposição em que se achava o povo, principalmente com a chegada de dois missionários
capuchinhos, e que a capelinha existente era pequena e havia sido construída em 1739;
necessitava-se, portanto, de uma igreja maior.
Os insistentes e longos pedidos evidenciam que o governo provincial tratava com
morosidade as petições enviadas, a ponto de os membros da Câmara se arrenegarem,
notificando o empenho do povo nas edificações solicitadas e o descaso do governo para com o

APEB. Correspondências recebidas da Câmara de Monte Alto, n. 1361. Seção de arquivos colonial e
50

provincial, 1861.
58

sertão, considerado esquecido51. Para isso, argumentou-se que Monte Alto exportava
anualmente grande quantidade de algodão, produto destinado não só ao mercado interno,
como também ao de exportação, encontrando, nos cerrados e caatingas dos sertões baianos,
condição propícia para se desenvolver52. Dessa forma, não era um município insignificante,
como talvez parecesse.
No início da década de 1850, a produção algodoeira passou por inovações nas técnicas
de cultivo e introdução de nova espécie. A produção econômica requisitou novas adaptações e
empreendimentos para atender às demandas dos mercados interno e externo. Em 1853, a
Câmara Municipal da vila informou ao presidente da província da Bahia o recebimento de
uma lata de sementes de algodão herbáceo, para que fossem distribuídas entre os produtores
da região53. Embora esse algodão se encontrasse em alta no mercado, substituindo o de fibras,
alguns produtores sentiram dificuldades para adaptá-lo, pois ele exigia técnicas no preparo das
terras e traquejo no manejo das plantações.
Apesar de resistirem inicialmente à introdução da nova espécie, logo os produtores
adaptaram a planta à região. O algodão cultivado desde o final do século XVIII, com destino à
exportação, leva à hipótese de que houve a necessidade de aumento do número de
trabalhadores, já que os currais de gado, em toda a margem do Rio São Francisco,
dependeram de baixa mão de obra cativa. E, de fato, o algodão do Alto Sertão baiano era bem
aceito no mercado de exportação por ser de melhor qualidade. Mas nem só a demanda da
produção algodoeira movia os trânsitos de compra de cativos na região, muitos desses
produtores se dedicavam a atividades comerciais e financeiras variadas, dentre elas, a compra
e venda de escravos, ampliada para o sudeste do País na segunda metade do século XIX.
No ano de 1871, o jornal Correio da Bahia publicou uma matéria sobre a exportação
do algodão do Brasil, destacando que este tinha maior aceitação no mercado, em relação ao
51
APEB. Presidência da Província – Governo da Câmara de Monte Alto. Seção de Arquivos colonial e
provincial, 1865.
52
José de Sá Bittencourt informou, por meio de relatório ao rei de Portugal, em 1798, sobre as plantações dos
algodões no Brasil. Dentre os relatos sobre as características do solo, clima, adaptabilidade da planta, variedades
de espécies do algodão provenientes de vários lugares do mundo que foram trazidas para o sertão, como Índia,
China, Pérsia, Europa, destaca-se o algodão nativo dos sertões de Rio de Contas, na Bahia. Além dos cálculos
dos custos, preparação do terreno, mão de obra e rentabilidade do cultivo do produto no Brasil, chama a atenção
não só para o plantio no Ceará, mas também no Alto Sertão da Bahia, a exemplo de Rio de Contas, Caetité,
Monte Alto e ambas as margens do Rio São Francisco. De acordo com os “cálculos analíticos” feitos pelo autor,
“Hum escravo trabalhando em algodão dá de rendimento no sertão 250$000”. Esse mesmo escravo prepara terra
para 500 pés, “que dão de lã 62 e 16 a tirada de 1364 maças, que produz razão de 4 cada pé de colheita
ordinária”. Relatou ainda o plantio de outras atividades, como o milho, o feijão para o sustento e a criação de
galinhas e porcos. Fonte: BITTENCOURT, J. S. Memória sobre a plantação dos Algodões. Ano M. DCC.
XCVIII. Biblioteca Tradicional de Lisboa. Cópia gentilmente cedida por minha colega e amiga de doutorado
Poliana Cordeiro de Oliveira.
53
APEB: Governo da Província – Governo Câmara de Monte Alto. 1840 – 1856. Seção de Arquivos Colonial e
Provincial. N. 1360.
59

produzido nos Estados Unidos. Além disso, que a Guerra de Secessão norte-americana, na
década de 1860, incentivou a produção do cultivo no Brasil, com destaque para o Nordeste.
Na Bahia, especificamente, as regiões produtoras do algodão eram as do Alto Sertão,
sendo que Caetité, cidade vizinha de Monte Alto, naquela época, exercia o posto de centro
distribuidor do produto colhido na região para os portos de embarque de Salvador e, de lá,
exportava-se para o mercado externo. Assim assinala o jornal:

O algodão do Brazil – Tem continuado a reinar boa procura para o algodão


do Brazil, com especialidade n‟estes últimos dias nos quaes várias partidas
de vulto foram tomadas em substituição ao dos Estados – Unidos. A
franqueza porém com que ele tem oferecido, devido ao crescido deposito, e
mais ou menos desejo dos possuidores para realizar, tem obstado a elevação
dos preços na mesma escala do que o de muitas outras procedências.
O algodão do Ceará atraiu o vulto da atenção. O da Parahyba tem estado em
pouco favor, enquanto que a procura para o de outras classes foi favorável.
Chegou um suprimento d‟ algodão da Bahia (Caetité) sendo pela maior parte
de fibra longa, o que é apreciado por muitos os fiandeiros; Já se vendeu
algum a bons preços e antecipa-se a prompta colocação do resto a valores
extremos. Desde 23 do p.p. até hoje inclusive, venderam-se 34,260 saccas,
incluindo 18,200 do Ceará, Pernambuco, Parahyba, Rio Grande do Norte,
Aracaly e Mossoró; 3,790 saccas do Maranhão, que alcançavam
respectivamente os seguintes preços. – 9d. á 9 3/1 d., 8 7/8 d. a 9 2/1. e 9 d á
12 por lb54.

Na década 1870, o cultivo do algodão na região ganhou, de fato, dimensão de destaque


não só na imprensa do Correio da Bahia, como nos Annaes da Assembleia Legislativa
Provincial. Foi autorizada, em 1876, a criação de uma fábrica de tecidos finos de algodão na
localidade do Gentio, que, a partir da Lei n.1647, foi desmembrado do termo de Monte Alto e
anexado ao de Caetité.

[...] Foram sancionadas uma lei e uma resolução, sendo esta, sob n. 1647,
mandando pertencer ao termo do Caetité a parte da freguesia do Gentio
actualmente pertencente ao termo de Monte Alto. E aquella, sob n. 1648,
concedendo privilégio por 30 annos á Francisco José Vergne de Abreu & C.
para estabelecerem uma fábrica de tecidos finos de algodão55.

Prosseguindo com os relatórios de correspondências da Câmara de Monte Alto


enviados ao presidente da província da Bahia, eles também relatavam que a região
apresentava prosperidade econômica, boa localização geográfica e merecia atenção especial
por parte do governo provincial. Destacou-se número considerável de pessoas existentes no

54
Fonte: CORREIO DA BAHIA – 1871-1878. Parte Comercial, n° 00230, 29 de dezembro de 1871. Biblioteca
Nacional Digital. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 20 jul. 2016.
55
Fonte: Annaes da Assembleia Legislativa Provincial da Bahia (BA)- 1873 a 1887. 64 – Sessões ordinárias em
20 de julho de 1876. Disponível em: < http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 20 jul.2016.
60

lugar e muita criação de gado vacum localizada próxima ao Rio São Francisco e divisa da
província de Minas Gerais, sendo, assim, não atingida pelas enchentes do rio no período
chuvoso, necessitando, portanto, de iniciativas do governo para permitir escoamento da
produção via trechos navegáveis pelo Rio São Francisco.
As petições enviadas repetidas vezes demonstravam que a população local tomou a
iniciativa de realizar algumas obras, a exemplo do cemitério construído com investimento da
Igreja, e a Casa de Câmara e Cadeia, com ajuda do povo, que reclamava sempre ser essa uma
obrigação do governo. Ressaltavam, ainda, que as parcas ajudas do governo só aconteceram
após iniciativa popular.
Todavia, o termo de Monte Alto se constituiu numa intensa dinâmica socioeconômica,
sendo povoado por moradores de grandes, médias e pequenas posses, como escravos,
trabalhadores livres, comerciantes, fazendeiros, representantes de instituições públicas, juiz,
médicos, vereadores, representantes da Igreja, entre outros. A vila era essencialmente
ruralizada e pouco povoada. As fazendas situavam-se distantes umas das outras,
principalmente pela extensão das terras e pela dificuldade com as estradas. No entanto, muitos
fazendeiros mantinham casas na sede da vila e realizavam negócios, permitindo a circulação
de pessoas e mercadorias entre o núcleo urbano e o rural. Escravos e forros também
conviviam com esses moradores locais, estreitando laços e articulando modos de
sobrevivência entre as vilas e fazendas. Constou no inventário do Capitão Joaquim Pereira de
Souza Costa, no ano de 1870, a existência de uma casa de morada na Fazenda Tabuinha e
outra, na vila de Monte Alto, na Rua da Ponte, sendo esta “coberta com telhas, com 3 portas,
6 janelas e um portão de frente”. Com a produção algodoeira desenvolvida em suas
propriedades, a criação extensiva de gado vacum, pouco mais de 500 cabeças, e atuante no
comércio de escravos, o capitão manteve seus negócios entre a fazenda, a vila e demais partes
da província56.
Nas propriedades rurais de grandes e médios senhores, as residências possuíam porte
de grandes casarões, ostentando luxo e abastança, e, como as propriedades fundiárias não
eram acessíveis a todos, tal fato gerava desigualdades acentuadas nas condições de vida entre
os sujeitos sociais que habitavam no termo. Em uma realidade totalmente oposta à do Capitão
Joaquim Pereira de Souza Costa, vivia D. Maria Ignácia Nunes, com riqueza inventariada, no

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários
56

Inventariado: Capitão Joaquim Pereira de Souza Costa. Mç: 20, 1870.


61

ano de 1862, em Rs. 2: 655$000, possuindo uma casa coberta de palhas e feita de enchimento,
uma parte de terras situada no Barreiro dos Coqueiros e um cavalo57.
Embora tenha havido desproporcionalidades nas condições de vida na localidade, e os
caminhos fossem de difícil acesso devido à precarização das vias de comunicação, assim
como pelo fato de não haver investimentos constantes do governo provincial em regiões
interioranas, a exemplo do Alto Sertão da Bahia, nada disso impossibilitou o desenvolvimento
de atividades produtivas e criação de rede de caminhos para o fluxo de mercadorias e pessoas,
havendo intenso movimento de compra e venda de produtos, ora exportados, ora importados.
Nesse trajeto de idas e vindas, o comércio de cativos esteve na rota dos caminhos do sertão
baiano e dele muitos fazendeiros fizeram fortunas, sendo também nessas grandes e médias
fazendas que escravos construíram redes de relações, vislumbrando aquilo que queriam para
si e para os seus.
Possuir escravos, gado e terras no Alto Sertão da Bahia era elemento definidor da
riqueza, movimentação da produção e consumo. A concentração e posse das melhores terras,
ao lado da exploração do trabalho escravo, favoreceu o enriquecimento de determinadas
famílias ao longo do século XIX, gerando desequilíbrio nas condições de vida entre os
variados sujeitos sociais que habitavam aquela localidade58. Paralelamente ao processo de
posse da terra e desenvolvimento da agropecuária, a compra e venda de escravos foram
fundamentais para o acúmulo de riqueza na região. Muito mais do que empregar recursos nas
atividades produtivas, senhores valeram-se da comercialização de cativos para auferir ganhos
em momento oportuno de vigência do tráfico interno. Desse modo, compreender o perfil
agrário e econômico da região é imprescindível para análise da construção das relações entre
senhor e escravo, visto que as características de posses com escravarias variadas estiveram
relacionadas ao tamanho das propriedades e atividades rentáveis mobilizadas por aqueles
indivíduos, em especial, a compra e venda de cativos.

2.3 Escravos na composição da riqueza de grandes, médios e pequenos proprietários

O termo de Monte Alto, entre os anos de 1810 e 1880, caracterizou-se pela existência
de fazendas sob o poder de uma pequena classe senhorial enriquecida. Naquelas terras,

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários
57

Inventariado: Maria Ignácia Nunes. Mç: 20, 1870.


58
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários
Inventariado: Belchior Pereira Guedes. Mç: 03, n. 407, 1827.
62

desenvolveram-se atividades da pecuária, cultivo do algodão e gêneros alimentícios variados,


com destino aos mercados interno e externo. Havia, ainda, pequenas propriedades e sítios, que
se integravam à dinâmica do comércio interno e subsidiavam o abastecimento da região. A
concentração de riqueza e atividades mobilizadas nas propriedades tiveram grandes
implicações para a população escrava. Ao fornecerem a sustentação da riqueza e ampliação de
fortunas, cativos construíram condições de abertura à mobilidade social, resistindo à
instituição escravista. O Quadro 1 abaixo contém amostras de número de cativos,
especializações e valores a eles atribuídos:

Quadro 1 – Escravos e suas ocupações – Inventário Faustino Moreira Castro

Nome Idade Ocupação Valor


José crioulo 50 Lacaio e Capoeiro 600$000
Antônio mulato 60 Vaqueiro 200$000
Antônio africano 60 Ferreiro 200$000
Lino africano 60 Serviço de lavoura 200$000
Camilo africano 55 Serviço de lavoura 150$000
Francisco crioulo 46 Serviço de lavoura 600$000
Manoel mulato de Sancta 65 Feitor 300$000
Anna
Paulino cabra 45 Tropeiro 500$000
Tertuliano mulato 40 Vaqueiro 700$000
Ezequiel crioulo 27 Vaqueiro com olho de menus 700$000
Christiano cabra 26 Vaqueiro 1:000$000
Roque cabra 26 Peão 1:000$000
Maximiano crioulo 22 Serviço de lavoura 900$000
Jordão crioulo 17 Serviço de lavoura 1:000$000
Aristides crioulo 25 Copeiro 1:000$000
Arthur africano 28 Serviço de lavoura 1:000$000
Benedicto mulato 16 Copeiro 1:000$000
Julia crioula 14 Costureira 900$000
Mariana cabra 24 Engomadeira 900$000
Tito cabra 17 Serviço de lavoura 800$000
Sebastiana crioula 14 Costureira 900$000
Maria crioula 18 Costureira 900$000
Rita mulata 20 Costureira 900$000
Silvéria mulata 25 Engomadeira 800$000
Salustiana crioula 28 Costureira 800$000
Escolástica crioula 30 Cozinheira 700$000
Rosalina cabra 50 Cozinheira 300$000
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Faustino Moreira
Castro. Mç: 17, n. 866, 1866.

O Coronel Faustino Moreira Castro, rico fazendeiro e herdeiro da Fazenda Cajueiro,


era um daqueles senhores que extrapolavam, em termos de fortunas, os demais proprietários,
tendo a posse escrava como principal item demarcador da riqueza amealhada. Seu inventário
63

foi aberto em 1866. Coube à sua mulher, Guilhermina Moreira Castro – filha de outro rico
fazendeiro, Comendador Antônio Botelho de Andrade – inventariar os bens patrimoniais,
avaliados em Rs. 111:660$857. O montante do monte-mor revelou o quanto aquele senhor
possuía de bens consideráveis e diversificados, sendo que parte desses bens provavelmente
abastecia a região e o mercado fora dos limites da fazenda. Ao computar os valores dos bens,
registrou-se a menção em dinheiro de Rs. 7: 500$000 e muitas dívidas ativas a receber de
outros proprietários da região, a exemplo de Rs. 3: 683$577, de Thomaz José da Silva, Rs. 3:
380$000, de João Barros Silva, Rs. 4: 000$000, de Ana Moreira de Andrade e demais
devedores. Suas dívidas ativas somaram Rs. 21:485$911, totalizando concessão de crédito a
12 indivíduos, além de Rs. 7:500$000 de dinheiro em espécie.
Os valores em dívidas ativas elevadas podem ser consequência do comércio de
cativos, já que foi declarada a posse de 55 escravos em sua fazenda, somando o valor de
Rs. 32:450$000, e, com o lucro do tráfico, ele investiu em créditos a juros. Houve o registro,
ainda, de 2.000 mil cabeças de gado vacum, no valor de Rs. 30: 000$000, distribuídas entre as
Fazendas Carnaíba de Fora e Tabocas, 47 cabeças de gados cavalar, 14 cargas de algodão em
lã, além de bens de raiz (terras) e muitas benfeitorias na Fazenda Cajueiro.59 O contexto da
década de 1860 foi favorável àquele senhor, pois não só beneficiou o tráfico interprovincial,
como foi um período de incentivo ao cultivo do algodão, diante da crise do principal
fornecedor internacional, os Estados Unidos.
A exposição do inventário do rico senhor da Fazenda Cajueiro é representativa do
limite da concentração de riqueza nas mãos de uma minoria que compunha uma elite
latifundiária e escravista sertaneja. Na vigência do século XIX, mesmo em meio
extremamente rural, nota-se que, dos 257 inventários analisados, 211 (82,4%) concentravam
apenas 22,9% do monte-mor total e somente 46 inventários (17,6%) acumularam 77,1% da
riqueza da região, revelando alta concentração de fortuna.
Um olhar mais detido sobre o Quadro 1 faz perceber que as especializações dos
escravos indicavam variadas atividades desenvolvidas nas fazendas, principalmente entre as
de grande porte, que multiplicavam suas ocupações através da criação de gado vacum com a
presença de vaqueiros, escravos tropeiros, na agricultura, com os cativos de serviços de
lavoura e escravas costureiras, envolvidas em atividades de manufaturas com o algodão.
Ainda, perseguindo as cifras lucrativas advindas do comércio de escravos, observa-se,

59
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Faustino Moreira
Castro. Mç: 17, n. 866, 1866.
64

conforme ressaltou Lysie Reis (2013, p.122/123), que “possuir escravos para serviços gerais
era uma prática comum, possuir escravos qualificados era uma prática lucrativa,
principalmente se estes fossem aptos para as ocupações valorizadas no mercado de trabalho”,
a exemplo daqueles direcionados para o sul e sudeste do País. O Gráfico 1 abaixo ilustra
percentuais das especializações dos cativos no termo de Monte Alto e o Gráfico 2 traz o
percentual de riqueza dos inventariados.

Gráfico 1– Especialização dos cativos - termo de Monte Alto, 1810-1888

5; 1% 4; 1% 1; 0% 2; 0% 8; 2% 2; 0% 6; 1%
0; 0% 7; 1; 0% 2; 0%
7; 2%
2; 0% 2
2; %
1; 0% 6; 1%
0
1; 0% %
23; 5%
174; 38%

71; 15%

81; 18% 27; 6%


20; 4%

8; 2%

Serviço de Lavoura Fiandeira Costureira Cozinheira


Vaqueiro Serviço doméstico Serviço mestiço Cavador de Madeiras
Serviço de Campo Tropeiro Tecelão Lavrador
Carpina Lacaio Carreiro Engomadeira
Ferreiro Peão Copeiro Feitor
Sapateiro Carpinteiro Alfaiate Arrieiro

Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série: Inventários: 1810-1888.
65

Gráfico 2 – Percentual de riquezas x números de inventários analisados

Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1810-1888.

Os proprietários do termo de Monte Alto são aqui classificados em cinco faixas de


riquezas: a primeira, até Rs. 1: 000$000; a segunda, de Rs. 1: 001$000 a Rs. 5:000$000; a
terceira, de Rs. 5:001$000 a Rs. 15:000$000; a penúltima, de Rs. 15:001$000 a
Rs. 50:000$000 e a última, acima de Rs.50:001$000.60 Nítidas distinções foram observadas
entre os grupos, entretanto, ao defini-los, não se pode homogeneizar ou desconsiderar as
especificidades e mobilidades existentes entre eles. Maria José Mascarenhas (1998) definiu os
níveis de riqueza da elite colonial em Salvador, de 1760 a 1808, em dez grupos, e observou
que a riqueza e a estabilidade das fortunas eram asseguradas pela presença da diversificação
de atividades dos indivíduos, de forma que, quando uma atividade entrasse em crise, a outra
“cobriria a diminuição ou ausência de rendimentos”.
Para análise mais detida sobre as faixas estabelecidas, considerando as similaridades
existentes, as duas primeiras faixas de riqueza são aquelas que se referem aos pequenos
proprietários, com patrimônio arrolado que não ultrapassou a quantia de Rs. 5: 000$000;
constam de indivíduos inseridos na dinâmica socioeconômica local, mas com um poder de
articulação, mobilização de bens materiais e posse cativa ora direcionada à manutenção da
sobrevivência de seus familiares, ora à retenção da margem de lucro e ampliação do

60
Estabeleceram-se como metodologia para estratificar as fortunas os estudos de Mello (1990) e as pesquisas
desenvolvidas por Mascarenhas (1998), Dantas (2007), Silva (2005) e Pires (2009), consideradas leituras
imprescindíveis para a realização de análises como esta.
66

patrimônio possuído. Aos pequenos produtores, com posse de um a cinco escravos, foram
computados 21 inventários, totalizando o equivalente a 5 % da escravaria no termo de Monte
Alto. Os que possuíam de seis a dez escravos correspondiam a 7,3%, em um total de 12
senhores. Têm-se, portanto, 33 inventariados classificados como pequenos produtores,
correspondendo a 60% dos proprietários que possuíam de um a dez cativos. Esses pequenos
senhores preferiram investir seus negócios na criação de animais, como o gado cavalar,
plantação de algodão e terra, mas não era desprezível a existência da posse cativa e do
comércio que dela faziam.
Além do envolvimento em modestas atividades agropastoris, não se pode excluir a
possibilidade de que os pequenos produtores realizassem atividades comerciais e se
diversificassem na aplicação de investimentos. No inventário de Vicência Amélia Correia, em
1858, consta um monte-mor de Rs. 4: 414$460, sendo: Rs. 2: 500$000 referentes a três
escravos, Rs. 152$500, a cargas de algodão e Rs. 1: 641$000 referentes a gados vacum e
cavalar, terra, ouro, dívidas ativas e um pequeno imóvel61. Além de atividades mais rentáveis,
os senhores de pequenas posses no sertão mantinham o sustento das famílias e dos escravos
com outras menos rentáveis, porém necessárias à garantia da sobrevivência. Nos sítios, faziam
roçados com o cultivo de vários mantimentos, como arroz, mandioca, feijão,
cana-de-açúcar, milho, frutas e legumes. Criações miúdas que iam desde porcos a cabras e
galinhas, dentre outros, complementavam a atividade desses senhores.
Na terceira faixa de riqueza, de Rs. 5:001$000 a Rs. 15:000$000, encontram-se os
médios proprietários. Contando com diversas partes de terra, escravarias e investimentos em
atividades da agricultura e pecuária, esses indivíduos estiveram atuantes na produção e
comercialização de produtos agropastoris e de cativos. Possuir de 11 a 20 escravos
possibilitava a médios proprietários manter a realização de atividades lucrativas.
O arrolamento dos bens de Joaquim Ferreira da Silva, em 1868, cujo-monte mor foi de
Rs.12: 376$000, registrou 55 cabeças de gado vacum, mula velha de carga e fazendas secas
vindas da Bahia, compradas em mãos da firma Brandão & Irmãos, itens que demonstram
alguns dos negócios realizados por esse médio fazendeiro. A mula velha de carga deve ter
servido tanto para o escoamento da produção agrícola como para trazer mercadorias “que
mandou vir da Bahia por abono que lhe fez”. A encomenda feita à Firma Brandão & Irmãos
correspondeu a Rs. 2: 000$000, e, ao se proceder ao auto da partilha, foram entregues três

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ Ba. Seção Judiciária. Série: Inventários.
61

Inventariada: Vicência Amélia Correia. Mç: 13, n. 136, 1858.


67

escravos para quitar a dívida: Joaquim africano, 60 anos, serviço de lavoura, avaliado em
Rs. 200$000; Carolina cabra, 39 anos, Rs. 1: 000$000 e Porfírio cabra, 12 anos, Rs.800$000.
A penúltima faixa, de Rs. 15:001$000 a Rs. 50:000$000, e a última, acima de
Rs.50:001$000, estabelecidas neste estudo referem-se aos grandes proprietários sertanejos,
detentores das maiores fortunas no Alto Sertão da Bahia, que compunham elite escravista e
latifundiária. Esses senhores investiram comumente na posse e comércio de escravos,
atividades comerciais e financeiras, tinham acesso a grandes extensões de terra e criação
extensiva de gado vacum e gado cavalar, embora houvesse outras atividades de peso e que, de
certa forma, se agregavam ao montante do patrimônio.
Nas propriedades, diversificaram as atividades produtivas, a exemplo da
disponibilidade de equipamentos e benfeitorias na organização das fazendas, como tachos de
cobre, roda de ralar mandioca, oficina de ferreiro, de carpina, prensa de enfardar algodão,
currais, parafusos de prensa, enxadas, foices, machados, espingardas, ferro de ferrar, dentre
outros pertences. Os casarões eram feitos de adobe com muitas janelas, portas, senzalas,
quartos para servidão, acompanhados de paióis, casa de farinha, engenho para o fabrico da
rapadura e melaço, dentre outras repartições. No inventário do grande proprietário José
Antônio da Silva Castro, registrou-se o seguinte:

casa de vivenda com todos os seus pertences, senzalas de escravos, paiós,


huma engenhoca, casa de Alambiques, currais e todas as mais benfeitorias
pertencentes à mesma Fazenda Carnaíba que sendo visto pelos avaliadores
estes lhes dão o valor de quatro contos e oitocentos mil reis, com o que sai62.

Em Monte Alto, a diversificação de atividades não era uma característica dos grupos
mais afortunados, em menor escala, abrangia também indivíduos de vida mais modesta. A
seguir, na Tabela 1, tem-se a constituição da riqueza inventariada por faixas de riqueza, entre
os anos de 1820-1889.

62
APEB. Seção Judiciária. Série Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01. Mç:14, n. 19, 1844.
68

Tabela 1– Distribuição do monte-mor por faixa e período de 1820 a 1889

Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.

68
69

Conforme a Tabela 1, notou-se que, entre as décadas de 1850 e 1860, os inventários


apontaram picos elevados de concentração de riqueza. Presume-se que tal fato, para aquele
período, deveu-se ao auge do tráfico interno de escravos, cujos senhores venderam parte das
escravarias para as províncias do sudeste e sul do País, com a expansão das lavouras cafeeiras.
A análise dos inventários aponta que, ao longo do século XIX, entre os bens de maior valor
dos senhores, o elemento escravo sobressaía em relação aos demais, inclusive sobre o gado
vacum, considerado principal atividade da região. E isso é válido até para aqueles pequenos
proprietários com renda insignificante em termos de comercialização.
Livros de notas da freguesia do Gentio, vizinha à de Monte Alto, registraram a venda
de número considerável de escravos entre os anos de 1870 e 1888, com destino, em sua
maioria, para o sudeste do Brasil. Naquela época, compradores, vendedores, senhores e
comerciantes envolveram-se de forma intensa no ramo daquela atividade e dela tiraram lucros
vantajosos.63 O Capitão Leolino Ribeiro e Silva, comerciante, proprietário de terra e residente
na freguesia do Gentio, era um deles64, atuando entre os maiores compradores de escravos da
região, juntamente com José João de Farias, comerciante residente na Freguesia do Gentio,
Justino Gomes de Azevedo, Leolino Xavier Cotrim, Alferes Ernesto Ribeiro da Silva
(morador de Oliveira, província de Minas Gerais) e Manoel Cândido de Oliveira Guimarães,
negociante matriculado pelo Tribunal do Comércio da Província da Bahia, e tantos outros,
conforme veremos no quadro abaixo65.

Quadro 2 – Tabulação dos principais vendedores, compradores e procuradores de escravos no termo


de Monte Alto e Gentio

Vendedor Procurador Comprador


Campos e Castro (empresa que
Sebastião Cardozo de Souza Carlos Catão de Castro atuava no ramo do tráfico interno
de escravos)
Antônio Antunes de Souza
João de Araújo Braga Campos e Castro (residente em Lençóis de Rio
Verde, província de Minas Gerais)

Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).
63
64
De acordo com Neves (2000), Leolino Xavier Cotrim era coronel da Guarda Nacional, dono da fazenda Lagoa
da Pedra, atualmente pertencente ao município de Pindaí, e, em 1878, emigrou para São Carlos do Pinhal, onde
faleceu com 90 anos de idade.
65
Joana D´Arc de Oliveira e Maria Ângela P.C.S. Bortolluci (2013) mencionam o inventário de Manoel Cândido
de Oliveira Guimarães em São Carlos do Pinhal. De acordo com as pesquisadoras, Manoel era proprietário da
fazenda Babylônia e negociante matriculado com uma casa comercial na Bahia. Afirmam ainda que o
fazendeiro, após a liquidação de sua casa comercial, continuou negociando escravos em alta escala, recebendo-os
em consignação para posteriormente revendê-los. No inventário foram encontrados 198 escravos, sendo a
maioria apta para a lavoura. Manoel Cândido, antes de se mudar para São Carlos, morava na vila de Caetité,
Bahia.
70

Tenente Pacífico José das Alexandre Alves Bello e


Capitão Bernardo Alves e Pinto
Neves. Companhia.
Clemente Herculano de Alferes Pedro Pereira da Silva
Leolino Xavier Cotrim
Salles Castro
Leolino Fernandes da Rocha Antônio Jorge da Costa José Bernardino Alvarenga
Alfredo Pereira de Castro Joaquim José de Farias Francisco Pereira de Castro
João Antônio Rodrigues João José de Farias Gustavo de Souza Lima
Juá Bernadino D‟ Alvarenga Manoel Cândido de Oliveira,
(Oliveira, província de Minas José Justino Gomes & Azevedo, Sebastião Cardozo de Souza
Gerais) José Pereira de Figueiredo
Sátiro Pereira Teixeira Francisco Antônio Lopes Alferes Leolino H. C
otrim
Manoel Cândido de Oliveira
Guimarães (negociante,
D. Anna Maria matriculado pelo Tribunal do Teotônio Pereira da Costa
Comércio de Província da
Bahia)
Régulo Venâncio de
Tiburtino Pereira de Castro Ernesto Fagundes Cotrim
Azevedo
José Joaquim Pereira de
José Pereira de Souza. José Rodrigues Porto
Magalhães
Bartholomeo de Souza e
- Álvaro Pereira de Castro
Silva
Bernadino Alves Pereira - Manoel Fagundes Cotrim
Ezequiel Botelho de Andrade
- Ezequiel Botelho de Andrade
Francisco Nunes Pereira
João Antônio Roiz - Coronel José Pereira Castro
José Joaquim Pereira de
Ernesto Fagundes Cotrim -
Magalhães
Antônio da Rocha Ribeiro - -
Alferes Pedro Pereira da
- -
Silva Castro.
Antônio José de Castro - -
Francisco Nonato da Silva - -
Dr.Joaquim Pereira de Castro - -
Manoel Joaquim Pereira de
- -
Castro
D. Maria Joaquina de Castro - -
Capitão José Mariano Prates - -
José Cândido Xavier - -
José Alves de Oliveira - -
Quintino Rodrigues da Silva - -
João Roiz Moreira - -
Antônio Dias Laranjeira - -
Joaquim Antônio Fernandes - -
Francisco Antônio de
- -
Oliveira
Coronel José Pereira Castro - -
Joaquim Pereira de
- -
Magalhães
Jozino Pereira Coutinho - -
Gustavo Pereira da Silva - -
Belchior Nogueira Tiburtino - -
Régulo Venâncio de - -
71

Azevedo
Tenente Tiburtino Pereira
- -
Pinto
José de Brito da Silva Neves - -
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Livros de Notas, 1875-1879. Cartório
de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).

Observa-se que os maiores procuradores e compradores envolvidos em transações de


compras e vendas de cativos na região eram ainda negociantes e donos de terras, pertencentes
“à mesma rede familiar, de consanguinidade ou casamento”, de acordo com Erivaldo
Fagundes Neves (2000, p. 118). Estes não só representavam os proprietários na intermediação
das vendas e compras, como facilitavam o trânsito de cativos com outras províncias, como
São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, dentre outras. Ao realizar essas transações,
proporcionavam aos senhores de escravos do sertão enriquecimento e maiores conexões com
o mercado de escravos e outras atividades rentáveis. O negócio de traficar escravos era tão
lucrativo, ao ponto de formarem redes comerciais de articulação entre o poder local e
empresas especializadas, para atuar no ramo daquela atividade. Entre as firmas mais comuns,
destacaram-se Campo & Castro, Irmãos Brandão e Alexandre Alves Bello & Companhia66.
Manoel, preto, dezoito anos, serviço da lavoura, avaliado por Rs. 650$000, foi um
daqueles escravos que estavam na rota do tráfico. Manoel foi matriculado na Vila de Santo
Antônio do Paraguaçu (atual Mucugê, Chapada Diamantina) e veio parar na freguesia do
Gentio, caindo em mãos do Capitão Leolino Ribeiro e Silva, que, ao adquiri-lo, repassou-o
para outro senhor na província de São Paulo. Nas procurações de compra e venda do Gentio,
foi possível identificar mais 15 procurações de cativos com destino para o sudeste do Brasil,
sendo 12 para São Paulo, dois para o Rio de Janeiro e um para Minas Gerais. Não se sabe
exatamente o lugar específico de São Paulo para o qual os escravos foram levados, mas, das
12 procurações, uma foi para São Carlos do Pinhal67. Conforme se verifica nos exemplos
citados de compra e venda de cativos, a região do Alto Sertão, sobretudo Monte Alto, figurou
como localidade estratégica no funcionamento do ativo comércio de cativos, ou, melhor
dizendo, era importante entreposto nessa atividade.
No ano de 1875, Francisco Nonato da Silva vendeu ao comprador José Rodrigues
Porto a escrava Maria, de cor preta, de 11 anos de idade. O mesmo fez o vendedor Joaquim
Pereira de Magalhães ao vender a escrava Thomazia, parda, de oito anos, por Rs. 250$000,
para o Coronel José Pereira de Castro. Esse Coronel era um vendedor e comprador de

66
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Livro de Notas de Registros Cíveis,
1875-1879.
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).
67
72

escravos na região de Monte Alto. Assim como comprou, vendeu seus escravos de nomes
Firmina, de doze anos, parda, e Elias, de oito anos, pardo, ao negociante Leolino Xavier
Cotrim.68 Em outra procuração, no ano de 1878, esse mesmo Coronel José Pereira de Castro
aparece comprando do pequeno proprietário Joaquim Pereira de Magalhães o escravo
Francisco, de 27 anos, preto, e a escrava Líria, parda, de 13 anos, por Rs. 350$000 cada um.
Os exemplos configuram senhores de pequenas posses, vendendo ou repassando cativos,
como pagamento de dívidas, para outros proprietários ou negociantes de maior peso que, por
sua vez, consignavam a grandes traficantes a revenda para as províncias do Sul e Sudeste.
As transações de compra e venda no sertão envolviam intermediários nas negociações
e, de acordo com Erivaldo Fagundes Neves (2000), estes representavam legalmente, por meio
de procurações, o proprietário do escravo. Tais transferências tinham como pretexto o não
pagamento da meia sisa, imposto exigido nas transações de operação comercial. Em 1884, o
proprietário Francisco Antônio de Brito vendeu os escravos de nomes Zeferino e Speridião,
ambos pretos, com habilidades para o serviço de lavoura. No rol das negociações, foi possível
identificar que o tráfico de cativos era rotina na vida daqueles homens, como se verifica nos
registros das transações apresentadas nas Tabelas 2 e 3 e realizadas entre os anos de 1871 e
1881, em Monte Alto, e entre 1875 e 1887, no Gentio:

Tabela 2 – Registro de procurações e de escravos no termo de Monte Alto

Ano Frequência Quantidade de escravos vendidos


1871 02 02
1872 01 01
1875 29 34
1877 19 32
1878 12 15
1879 19 19
1880 17 28
1881 03 03
Total 102 134
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Livros de Notas, 1871 -1881.

Tabela 3 – Registro de procurações e de escravos na Freguesia do Gentio

Ano Frequência Quantidade de escravos vendidos


1875 02 03
1878 01 01
1879 10 11
1880 07 08
1881 03 03
1882 02 03

68
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de Notas. Cx: Século XIX, 1875 a
1879.
73

1883 03 03
1884 07 09
1885 05 06
1886 02 02
1887 01 02
Total 43 51
Fonte: Cartório de Registro Cível, Distrito de Ceraíma – Guanambi/BA. Livro de Notas 1, 2, 3, 1875 a 1903.

Não é possível saber com precisão a quantidade de escravos comercializados, pois,


como já mencionado, parte da documentação foi perdida ou está dispersa em outras comarcas,
sendo os dados apresentados aqui referentes a uma amostragem das procurações de compra e
venda. Senhores escravistas não se desfizeram de todos os cativos, visto darem continuidade
ao trabalho escravo na região, e não restam dúvidas de que o tráfico de cativos, seja atlântico
ou interprovincial, teve peso significativo na composição daquelas riquezas senhoriais. Do
lucro proveniente desse negócio, investiram em outras atividades rentáveis, como imóveis,
bancos financeiros, empréstimos a juros ou na reorganização da capacidade produtiva de suas
fazendas. A dinâmica do tráfico permitiu identificar circuitos regionais com outras províncias
do País, favorecendo o enriquecimento de alguns homens e mulheres na pequena localidade
de Monte Alto, como proprietários descritos no Quadro 3.

Quadro 3 – Fazendas, proprietários e posse escrava no termo de Monte Alto - 1811-1860

FAZENDAS ANO PROPRIETÁRIO MONTE-MOR ESCRAVOS

Fazenda Mangabeira 1822 Thomaz Teixeira Camargo 21:820$153 48


Brejo das Carnaíbas e
parte da fazenda 1826 Belchior Pereira Guedes 42:726$335 172
Hospício
Fazenda do Angico 1827 Mariana Pereira Castro 17:588$125 23
Joaquim Moureira dos
Fazenda Canabraval 1835 72:899$559 110
Santos
Fazenda Cajueiro 1838 José Antônio de Castro 280:000$000 125
Fazenda Lameirão 1838 Maria Josefa de Jesus 42:726$335 117
Fazenda Malhada do
1847 Tenente José Pereira da Silva 16:693$000 20
Canto
Não declarada 1849 Ana Alves Ferreira 24:878$541 30
Fazenda dos Campos 1855 João José de Oliveira 70:789$830 80
Fazenda Lagoa de
1857 Estêvão da Silva Pimentel 27:485$788 33
Boqueirão
Fazenda do Coeté 1858 Gerônimo de Araújo Braga 56:830$720 55
Fazenda da Serra 1858 Casimira Dantas Prates 25:587$100 18
Joaquim Rodrigues 37:309$763
Fazenda Mamonas 1859 23
Malheiros
74

Fazenda dos Campos 1860 João José de Oliveira 70:789$830 81


Custódio Pereira Pinto e sua
Fazenda Campinas 1861 mulher Joana Pereira de 159:051$813 50
Castro
Fazenda Enxu 1862 José da Silva Neves 40:017$900 13
Fazenda do Poço Major Antônio Pereira da
1865 88:072$000 57
Comprido Costa
Fazenda do Cajueiro 1866 Faustino Moreira Castro 111:660$085 54
Fazenda Gonçalo 1869 Antônio Pereira de Souza 75:347$000 77
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários.
1811-1860.

Assim, pode-se dizer, com base nos dados levantados, que houve um crescimento
econômico na região entre as décadas de 1850, 1860 e 1870, não só decorrente da produção
algodoeira e da pecuária, mas, sobretudo, em função do intenso comércio de cativos que
circulavam entre essas regiões para outras províncias. Entretanto, na década 1880, ocorreu
leve diminuição dos bens patrimoniais e da produção da pecuária e de escravizados. Os
elementos comuns, presentes em todos os espólios de senhores de posses, fossem eles
grandes, médios ou pequenos (escravos, terra, semoventes, imóveis e dívidas ativas),
apresentavam equilíbrio na distribuição das riquezas dos inventariados, principalmente os
itens escravos, semoventes e terras. Esses três elementos foram marcadores importantes na
composição do patrimônio na região durante o século XIX.

Tabela 4 – Distribuição da riqueza dos inventários em porcentagem, entre 1820-1889

Total de Dívidas Outros


Faixa das Escravos Imóveis Terras Semoventes
monte- ativas bens
fortunas (%) (%) (%) (%)
mores (%) (%)
1 24:568$339 36 11 8.7 24.2 1,5 18.6
2 253:355$638 49 3.8 10.5 17,3 5.5 13,9
3 439:701$239 48.7 1,5 13.8 13.7 6.7 15.6
4 931:039$088 32,5 2.5 13.4 19 13.7 18.9
5 740:167$021 30 2.7 11,8 30 10.3 15.2
6 526:740$225 25 2.8 5.4 15 9 42.8
Total 100 100 100 100 100 100
Fonte: Dados da pesquisa.

Essas riquezas variavam conforme as condições econômicas dos proprietários, fossem


grandes, médios ou pequenos. Como destacado na Tabela acima, os elementos de maior valor
na composição do patrimônio eram: escravos, terras, semoventes e dívidas ativas, que
promoviam a dinâmica econômica e social da região. Havia ainda outros elementos descritos
nos espólios: ouro, prata, ferramentas, dinheiro, dotes, imagem, algodão em cargas, cobre e
arma de fogo. Esses itens não eram comuns a todos os senhores da região, por isso, optou-se
por classificá-los de “outros bens”. Nos inventários de grandes e médios senhores, eles
75

apareceram com maior frequência, em relação aos pequenos, representando percentuais


significativos na totalidade das fortunas.
As reses, consideradas o segundo item de maior valor que circulava entre os
proprietários da região, estavam espalhadas entre as pequenas, médias e grandes fazendas, em
proporção maior ou em menor escala. O volume das reses dependia da condição financeira do
senhor, do tamanho da propriedade e formação de pastagens para alimentação dos animais.
Naquela época, o gado era criado à base de vegetação rica em folhagens, do capim cultivado
nas propriedades e, às vezes, à solta nos campos. Daí, a necessidade de áreas extensas para
ampliação do rebanho. Essa atividade requeria habilidade na lida diária, pois precisava de
cuidados específicos, que iam desde o registro dos ferros, para identificar a qual proprietário
pertencia o animal, ao cuidado com a alimentação, água, tratamento das feridas, tirar o leite,
separar os bezerros, amansá-los, dentre inúmeras atividades referentes à criação de animais.
A profissão de vaqueiro era bastante comum entre os criadores de animais da região,
inclusive muitos escravos se especializavam nessa função e dela tiravam vantagens, como o
direito de juntar pecúlio para a obtenção da alforria de si e dos seus familiares, possuir
cativos, dentre outros acessos de bens materiais, conforme veremos nos capítulos seguintes.
Da Fazenda Campinas, seu proprietário Custódio Pereira Pinto descreveu, na lista nominativa
de seus bens inventariados, sete escravos vaqueiros. O cativo Crispim, cabra, 32 anos,
avaliado em Rs.1:100$000, exprime a importância da especialidade nessa profissão. Os
demais cativos vaqueiros da fazenda também obtiveram valores elevados quando foram
inventariados, indicando que o gado requeria muita gente na lida, não sendo, portanto, uma
atividade que demandava poucos braços.
Luiz Felipe de Alencastro (2000, p. 340-34) pontuou que a atividade da pecuária
exigiu dinâmica nas relações sociais, dadas as condições de lidar com os animais fora do
espaço de morada dos seus senhores. “O gado expulsa as comunidades indígenas” e torna-se,
em meados do século XVIII, um apêndice fundamental e complementar à economia
açucareira (ALENCASTRO, 2000, p. 340), sendo os sertões lugares propícios à expansão da
atividade, principalmente às margens do Rio São Francisco. Para Rio de Contas no século
XVIII, Kátia Lorena Almeida (2012) registrou que a criação extensiva de bovinos, ao lado do
ouro e algodão, constituiu-se fonte rentável para aquela localidade. Essa disposição de ter o
gado como item de peso na composição das fortunas foi comum para o termo de Monte Alto,
ao lado da posse e comércio cativo e bens de raiz.
Nesse sentido, vale destacar que a posse e comercialização de escravos, junto com o
gado e a terra, constituíram os itens de maior valor patrimonial durante o século XIX, mas os
76

escravos responderam pela maior parte dos espólios. Em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz
suspendia o tráfico atlântico, porém aos senhores da região do Alto Sertão baiano, pareceu
sentirem pouco o efeito da lei, posto a continuidade intensa da instituição escravista via
tráfico interno. Esse contexto da segunda metade do século XIX foi crucial para maior
acumulação de fortunas, especialmente em créditos financeiros a juros, investimentos em
bancos, imóveis e outras adaptações rentistas, extemporâneas ao novo capital.

2.4 Perfil populacional e posse escrava nas pequenas, médias e grandes fazendas do
termo de Monte Alto, século XIX

Em 1872, o recenseamento do Brasil registrou 7.723 indivíduos residentes na


Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Gentio, província da Bahia, que pertencia, naquela
época, ao termo de Monte Alto69. Desse conjunto, 1.089 correspondiam à população escrava,
sendo 619 homens e 473 mulheres. Para Monte Alto, totalizaram-se 11.866 pessoas, cuja
população escrava era de 1.105, sendo 645 homens e 460 mulheres 70. Em relação ao estado
civil, observou-se, a partir dos assentos de casamentos, um número de 2.050 pessoas que
contraíram matrimônio, como mostra a Tabela 5, a seguir.

Tabela 5 – Número de casamentos por livro, termo de Monte Alto, 1840-188671

Número de casamentos
Ano
Abs. %
1840-1862 701 34,2
1862-1875 604 29,5
1875-1886 745 36,3
Total 2.050 100,0
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886.

69
No século XIX, a sede da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário do Gentio, pertencente ao município de
Caetité, incorporava, do ponto de vista religioso, várias localidades como: Pindaí, Urandi, Jacaraci, Guirapá e
Mortugaba. De acordo com o mapa das Paróquias, criado entre os anos de 1844 e 1855, a do Gentio foi fundada
a partir de 1848, conforme Resolução 16.11.1848, disponível na APEB. Seção Colonial e Provincial. Série:
Religião. Freguesias. Mç: 5248, 1829 - 1914.
70
Durante o século XVIII, Monte Alto correspondia a uma área pouco povoada e relativamente voltada à
exploração do salitre e economia de subsistência, contudo, dada a falta de registros nos documentos, não se sabe
exatamente a dimensão do conjunto populacional no século XVIII. No entanto, há indícios de que o trabalho
escravo se fez presente desde o processo de colonização na região. Cite-se como exemplo o testamento de
Francisco Pereira de Barros, que deixou registrados 16 cativos em 1735, em sua Fazenda Boa Vista.
Foram localizados, na igreja Santo Antônio, três livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
71

Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, com datas-limites especificadas no Quadro.
77

Relacionando esses dados da Tabela acima com os do censo de 1872, têm-se, entre
homens e mulheres, livres e solteiros, na vila, 7.853 pessoas, e 1.000 escravos solteiros entre
homens e mulheres. Sobre os casados livres, registrou-se número superior àqueles
identificados nos livros de casamentos, sendo 2.546 livres e 99 escravos casados. Ainda, com
relação aos viúvos, homens e mulheres livres, computaram-se 362 pessoas e 06 escravos72.

72
IBGE. Recenseamento do Brasil - Província da Bahia, Monte Alto, 1872.
Quadro 4 – População da Paróquia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto

Fonte: IBGE. Recenseamento do Brasil - Província da Bahia, Monte Alto, 1872.

78
79

Em outras localidades vizinhas a Monte Alto, Neves (2000) identificou, entre a


Freguesia do Gentio, Bom Jesus dos Meiras, Caetité e Boa Viagem e Almas, um total de
4.406 escravos. Somados os números de Monte Alto com os contabilizados por Erivaldo
Neves (2000), mais o número de escravos para Rio de Contas – região também estudada por
Maria de Fátima Pires (2009) e Kátia Lorena Almeida (2012), cujo total era de 3.446 cativos,
para o mesmo período, tem-se o equivalente a 8.957 cativos no Alto Sertão da Bahia, em
1872. A mão de obra cativa estava presente em quase todas as atividades produtivas, quer nas
de cunho doméstico, nos ofícios especializados, quer nas roças de pequenos, médios ou
grandes proprietários do Alto Sertão baiano.
A partir dos dados do censo de 1872, é possível considerar a presença significativa de
cativos disseminados pelos espaços da região. Em Monte Alto, 10% da população
constituía-se por cativos oriundos de vários lugares da África, via tráfico atlântico e de
nascidos no Brasil, principalmente na primeira metade do século XIX, quando a expansão da
agropecuária necessitou de maior número de trabalhadores. A chegada de pessoas de
descendência portuguesa à região, possivelmente filhos de ex-bandeirantes e de gente com
influência política da Casa da Ponte, propiciaram a abertura de estradas vicinais, com o
objetivo não só de promover a ocupação das áreas sertanejas, como visavam acima de tudo,
explorar, controlar e escoar a produção de riquezas da região.73 Ao adquirirem terras nos
sertões trouxeram consigo muitos escravos da África, de regiões decadentes da mineração
(Minas Gerais) e de outros lugares da província baiana74. Com o trabalho e comércio de
escravos, construíram e ampliaram fortunas, fortificaram o poder local, criaram regras
próprias e dinamizaram as relações socioeconômicas, marcadas por forte desigualdade social.
Vejamos o exemplo de um rico fazendeiro, com fortuna considerável, que atuou na região,
que não só trouxe consigo escravarias de vários lugares da África, como aumentou o número
de seus dependentes via crescimento natural e envolvimento com o tráfico atlântico.
No inventário de 1827, Belchior Pereira Guedes teve os bens arrolados por sua
mulher, Anna Clara Xavier Cotrim. Constavam ali 172 escravos disseminados por suas
fazendas, a do Brejo da Carnaíba e a Fazenda do Hospício75. Foi declarado no inventário um
monte-mor estimado em Rs. 45:710$382, sendo Rs. 11:730$000 referentes a escravos e
73
Para saber mais sobre os Caminhos dos Sertões e seu povoamento, sobretudo Monte Alto, ver: NEVES,
Erivaldo Fagundes, MIGUEL Antonieta (Orgs). Caminhos dos Sertões. Ocupação territorial, sistema viário e
intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia. Editora Arcádia, 2007.
74
A Casa da Ponte era um morgado criado nos primórdios da colonização portuguesa no Brasil, com limites
territoriais distribuídos entre os Guedes de Brito e os Garcia D´Ávila – Casa da Torre, cuja sede administrativa
se encontrava em Portugal (NEVES, 2008, p. 67-68).
75
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventários.
Inventariado: Belchior Pereira Guedes. Mç: 03, n.407, 1827.
80

demais valores distribuídos em terra, gado vacum, gado cavalar, ouro, prata, ferramentas,
móveis, dotes, dinheiro, dívidas ativas e passivas. Dos 172 cativos arrolados, três exerciam
funções de vaqueiro: David, Jacinto e Vitorino; e um de arrieiro, o escravo “Lourenço Nação
Banguela”. O escravo Joaquim, crioulo, era o cozinheiro da tropa, o escravo Agostinho,
sapateiro, e o escravo Joaquim, crioulo, alfaiate.
Compor tropa exigia certa confiabilidade dos senhores, pois mobilizava diferentes
negócios a serem encaminhados e resolvidos em Salvador, Recôncavo da Bahia, Minas
Gerais, dentre outros lugares. Conforme Jurema Mascarenhas Paes (2001, p. 69), o arrieiro
era responsável por dirigir a comitiva, “homem prático de viagens, que tinha a seu cargo
também o cuidado dos animais: como auxiliar levava um companheiro selecionado com a
atividade de cozinheiro”. Os escravos Lourenço e Joaquim mantiveram, então, hierarquia
frente a seus pares, com relação de confiança junto a seu senhor. Do sertão, certamente,
Belchior Pereira Guedes encaminhou a produção agropastoril, assim como também cativos
em idade adulta, para venda. De lá para cá, retornavam com mercadorias nacionais e
importadas destinadas às casas de negócio e, assim, por meio das tropas, “conduziram por
conhecidos e desconhecidos caminhos a dinâmica socioeconômica do Brasil, especialmente
das regiões interioranas que mantiveram ativas transações com maiores centros de comércio e
exportação” (RAMOS, 2016, p. 86).
Na relação nominativa das escravarias daquele senhor, constou que a maioria
apresentava faixa etária entre 11 e 45 anos e se ocupava em diversas atividades da fazenda,
podendo ser direcionada à demanda do mercado interno de cativos, e somente sete
apresentavam idade acima de cinquenta anos. Foram registradas 45 crianças entre um e dez
anos de idade, fruto de uniões conjugais ou consensuais entre os escravos. Alguns cativos
foram declarados alforriados e a escrava Mariana, de 18 anos, era casada com José Aurelino,
de 40 anos.
O inventário de Belchior Pereira Guedes forneceu ainda informações preciosas sobre a
naturalidade dos cativos, oriundos de vários lugares da África, assim como suas “nações”–
Uçá, Angola, Benguela, Congo, Nagô, Mina, Samthomé (São Tomé), Jeje, entre outras – e
que, ao chegarem aqui, construíram laços de solidariedade e uniões estáveis, formando
extensa relação de vínculos com crioulos, mulatos, cabras e livres, proporcionando mesclas
biológicas e culturais nos diversos espaços ocupados76. A escrava Natácia, cabra, 30 anos, Rs.

76
Para Hebert S. Klein (1989, p. 13), a nacionalidade, sexo e idade dos escravos eram “determinados
principalmente pelas condições africanas”. Com exceção dos portugueses em Angola e Moçambique, os quais
demonstravam certa familiaridade com as regiões que exploravam, os demais europeus desconheciam o
81

160$000, tivera um filho, Sebastião, mulatinho, 3 anos, Rs. 75$000, e Angélica Mina, 40
anos, Rs. 160$000, mãe de Thereza, crioula, 6 anos, Rs.80$000. Noutro inventário, de
Thomaz Teixeira Camargo, 1820, constou que Maria Angola, 35 anos, Rs. 120$000, oficial
de carpina, era mulher de Manoel, pardo, e Maria, crioula, 25 anos, Rs, 120$000, mulher de
Bernadino, cabra77.
Verifica-se, no Quadro 5 a seguir, a diversidade de nações da escravaria de Belchior
Pereira Guedes, no ano de 1827, demonstrando a conexão do Alto Sertão baiano com os
portos de Salvador e/ou Rio de Janeiro, via compra e venda de cativos. A partir de 1831,
quando ocorreu a proibição do tráfico atlântico, senhores tenderam a homogeneizar os
cativos, denominando todos de africanos, e não mais notificando os lugares de embarque da
África. As fontes documentais evidenciam grandes e médios senhores obedecendo à lógica
das conjunturas da época para camuflar o comércio ilegal.

Quadro 5 – Escravos de Belchior Pereira Guedes - 182778

Origem
Homens Mulheres Total
ÁFRICA
Benguela 07 01 08
Congo do Riacho 02 - 02
Congo 07 02 09
Gegi 03 - 03
Angola 06 03 09
Nagô 02 01 03
Mina 05 02 07
Uçá ou Auçá 09 03 12
Santomé 01 - 01
Total 42 12 54
BRASIL
Crioulo 41 27 68
Mulato 07 10 17
Cabra 15 10 25
Não declarado 05 03 08
Total 68 50 118
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA.
Seção Judiciária: Inventariado: Belchior Pereira Guedes, n. do processo: 407. Mç: 03, 1827.

continente e as peculiaridades dos grupos étnicos, o que resultou em atribuir diferentes classificações aos
africanos capturados como escravos para as Américas. Assim, indicavam bem mais os portos de embarque do
que “a língua geral, o grupo ou identidade nacional” de africanos escravizados. Ver também: SILVA Júnior
Carlos. Tráfico, escravidão e comércio em Salvador do século XVIII; a vida de Francisco Gonçalves Dantas –
Escravidão e suas sombras, EDUFBA, 2012. Nesse artigo, o autor afirma que nações eram categorias étnicas
forjadas pelo tráfico negreiro que, de forma geral, correspondiam a portos de embarques, reinos, regiões, etc. Em
se tratando da vila de Monte Alto, no alto sertão da Bahia, encontramos, em inventários de 1810 a 1830,
escravos de diversas regiões da África, mas, a partir de 1835, a especificação da nacionalidade passou a ser
substituída pelo termo generalizante “africano”.
77
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventariado:
Thomaz Teixeira Camargo. N. do processo: 407. Mç: 02, 1820.
78
Observação: os nomes descritos no quadro acima seguem a mesma forma de escrita nos inventários.
82

Observa-se, no Quadro supracitado, a descrição de 127 cativos pertencentes a Belchior


Pereira Guedes, dos quais 54 foram declarados procedentes de diversos lugares da África:
Costa da Mina, África Centro-Ocidental e Sudão Central. Da Costa da Mina, somaram-se 10
cativos entre homens e mulheres, sendo 03 Jejes e 07 Minas. Da África Centro-Ocidental
registraram-se 28 escravizados, sendo 02 do Congo do Riacho, 09 do Congo, 09 de Angola e
08 de Benguela. Constam ainda 01 da ilha de São Tomé, 03 nagôs, reino de Iorubá e 12 “Uçá
ou Auçá”, região do Sudão Central, transportados via Golfo do Benim79.
Conforme Carlos Silva Júnior (2016, p. 11), no século XVIII, os portos de Salvador,
durante a vigência do tráfico negreiro, representavam “o segundo maior terminal escravista
das Américas, sendo superado apenas pelo do Rio de Janeiro”. Os escravos de nação Mina,
Ardras e Jeje, eram os mais traficados pelos portos de Salvador e considerados naquela época
de “primeira reputação”. Esses escravos da Costa da Mina, quando aportados em Salvador,
eram também distribuídos pelo interior da província, a exemplo de áreas mineradoras, como a
vila de Jacobina e Rio de Contas. Já os cativos das regiões de Cabinda, Congo, Angola e
Benguela saíam do Porto de Luanda e eram, com mais frequência, traficados via portos do
Rio de Janeiro. Ressalva o autor que todos os portos marítimos comercializaram escravos de
distintas etnias africanas, porém havia certa predileção por determinadas etnias, como os da
Costa da Mina, na primeira metade do século XVIII. Contudo, assim que aproximava o século
XIX, e devido às conjunturas políticas e econômicas de certas regiões da África,
transportavam os que estivessem disponíveis no mercado.
A hipótese da disponibilidade era ainda maior para o século XIX, quando as pressões
internacionais para o fim daquele comércio colidiam com a ilegalidade e o contrabando.
Assim, nota-se, de acordo com o quadro de escravarias apresentadas no inventário de
Belchior, que senhores sertanejos recorreram assiduamente ao mercado de escravizados no
Atlântico para investirem na montagem da sua unidade produtiva e comercializá-los. Para
tanto, movimentaram escravos dos dois portos de desembarque, Salvador e Rio de Janeiro,
não demonstrando preferência por escravos de determinada localidade da África,
principalmente na primeira metade do século XIX.
Raphael Freitas Santos e Carolina Perpétuo Corrêa (2008), analisando a posse escrava
na Comarca do Rio das Velhas, província de Minas Gerais, afirmam que, no início do século
XVIII, a Bahia exercia a condição de maior porto receptor de cativos da África Ocidental

79
A identificação das “nações” de origem consta no Inventário de Belchior Pereira Guedes, 1827. As regiões de
embarque, porém, onde foram traficados os cativos na África foram referidas conforme análise de Carlos Silva
Júnior, no texto intitulado “Ardras, Minas, Jejes, ou escravos de primeira reputação: políticas africanas,
tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII”. Almanack. Guarulhos, n. 12, p. 6-33. Dossiê 6.
83

(Benim e Costa do Ouro), mas, na metade do século, mais precisamente em 1740, o porto do
Rio de Janeiro superou o da Bahia, com o incremento de escravos da Costa Centro-Ocidental
no mercado internacional, sendo os portos de Luanda e Angola os principais centros de
distribuição da população de escravizados (SANTOS; CORRÊA, 2008, p. 287)80.
Depreende-se que a região do Alto Sertão baiano, especificamente Monte Alto e
Caetité, tinha localização geográfica considerada estratégica por dar acesso às províncias da
Bahia, Minas Gerais, divisas de Goiás e, pelo médio São Francisco, com a província de
Pernambuco. Tal condição favoreceu traficantes e senhores para que fizessem do lugar um
entreposto para receber e vender cativos dos portos de Salvador, Recôncavo, como também
do Rio de Janeiro. A região não só arregimentou escravarias de etnias e identidades
diferentes, como despertou em muitos senhores e traficantes a habilidade de tirar vantagens
nos negócios relacionados à compra e venda de cativos. Essa evidência também foi notada por
Simony Oliveira Lima (2017, p. 58) quando analisou a carta de alforria da escrava Maria,
registrada em 1830, na vila de Carinhanha, termo limítrofe ao de Monte Alto. Maria era de
Moçambique e tinha sido comprada por D. Bernardina via porto do Rio de Janeiro. A autora
observou que, além do porto da Bahia, os proprietários da região do Médio São Francisco
circulavam por rotas que ligavam as províncias de Pernambuco, Minas Gerais e Bahia para
adquirir escravos desembarcados no porto do Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do
século XVIII.
Assim, o número expressivo de escravos, descrito no inventário post mortem de
Belchior Pereira Guedes, correspondeu a diferentes povos e culturas na composição da
estrutura social da região, formando laços de parentesco e vínculos solidários entre escravos,
forros, livres e pobres no Alto Sertão.
Sobre os crioulos, Parés (2005, p. 88) denomina “o negro de ascendência africana
nascido no Brasil” e, ao analisar a crioulização no Recôncavo baiano, tendo como base
inventários, observou para a Bahia, no início do século XIX, que a crioulização constituía
crescimento vertiginoso junto a outras etnicidades, como mulatos, cabras e pardos, e indicava
limites entre africanos e os nascidos no Brasil, principalmente até o final do século XVIII. A
composição social marcada pela coação hierarquizava indivíduos e, de certa forma,
estabelecia barreiras nos aspectos culturais entre africanos recém-chegados da África e os que

SANTOS, Raphael Freitas; CORRÊA, Carolina Perpétuo. A trajetória econômica da Comarca do Rio das
80

Velhas: Um estudo das estruturas de posse de escravos e as relações com o mercado internacional de escravos
(século XIX). In: PAIVA, Eduardo França, Org.; IVO, Isnara Pereira, Org. Escravidão, mestiçagens e histórias
comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB,
2008, p. 289-291.
84

aqui nasceram. Para o Alto Sertão, essas barreiras não eram tão rígidas, conforme vimos nos
exemplos anteriormente citados.
Para além de Monte Alto, Gabriela Amorim Nogueira (2011, p. 62), estudando os
escravos da Freguesia de Santo Antônio do Urubú de Sima, percebeu, na formação de
fazendas escravistas naquela região, que senhores “fizeram opções diferenciadas, alguns
recorrendo ao tráfico”, enquanto outros optaram pela reprodução natural e que, desde o século
XVIII, o “Certam de Sima” esteve na rota do tráfico atlântico por meio de uma relação direta
entre compradores e vendedores. Demonstrou, por meio dos assentos de batismo e livros de
casamentos, índices elevados de nascidos no interior das fazendas, sobretudo nas grandes
propriedades dos Guedes de Brito, cujo crescimento vegetativo tornou-se maior que os
escravos vindos da África. Em Rio de Contas e Caetité, Maria de Fátima Pires (2009, p. 163-
164) observou recorrência de uniões estáveis e consensuais entre os escravos do sertão e sob o
consentimento de seus senhores. Para a autora, “casais escravos acompanhados de seus filhos
sugerem vínculos mais duradouros e estáveis influenciando as lutas pela preservação da vida
familiar”.
Em Carinhanha, Simony Oliveira Lima (2017), ao analisar o perfil da escravaria da
família Siqueira Brandão, percebeu que a maioria era formada por crioulos e, em menor
número, africanos, característica que se repetiu em outras propriedades, indicando que “a
reprodução natural foi o meio mais utilizado para a conservação e ampliação da posse escrava
na região; e que, ao longo do século XVIII até a primeira metade do século XIX, cativos de
origem africana continuaram sendo adquiridos junto ao tráfico atlântico” (LIMA, 2017, p.
49).
Essa característica do crescimento natural associado ao tráfico atlântico expandiu-se
por vários lugares do sertão, inclusive para Monte Alto, e dela pôde-se extrair que os cativos
constituíram uniões conjugais e consensuais a partir de desejo e negociações com seus
senhores. É certo que senhores se beneficiaram da expansão populacional dos escravos e,
interferindo ou não nessas relações, detinham o controle do direito de propriedade dos
nascidos entre suas escravarias e se serviam deles para aumentar o patrimônio. Entretanto,
estudos historiográficos mais recentes contestam a ideia de reprodução natural como mero
incentivo dos senhores81. Escravizados construíram noções próprias do que queriam para si e,

81
Sobre essa discussão, ver: SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Caminhos e descaminhos da abolição: escravos,
senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão – Bahia, 1850/1888. Tese de Doutorado. Curitiba: UFPE,
2007; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro; PINTO, Fábio Carlos Vieira. Tráfico e famílias escravas em
Minas Gerais: o caso de São José do Rio das Mortes, 1743-1850, p.41 a p.58. In: PAIVA, Eduardo França;
IVO, Isnara Pereira (Orgs.). Escravidão, mestiçagem, e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo
85

ao formarem famílias, contribuíam para solidificar os laços étnicos, de solidariedade e de


pertencimento, seja via matrimônio legal ou união consensual.
A seguir, apresenta-se outra tabela com informações, entre os anos de 1810 e 1850,
sobre as escravarias declaradas em processos de inventários para aquela época. Delas pode-se
afirmar que, entre as de origem africana, havia maior número de homens em relação ao de
mulheres, levando a crer na preferência de senhores do sertão por escravos do sexo masculino
no comércio do tráfico atlântico. A intensa dinâmica agropastoril carecia da mão de obra
cativa na região, mas não necessariamente ao ponto de requerer números tão altos e
especializações tão diversas como verificadas nas fazendas do termo de Monte Alto.
Nas faixas de riquezas dos proprietários, a posse escrava estava entre o patrimônio de
maior valor na composição dos bens daqueles senhores, representando cerca de 30%, seguida
pelo gado vacum, a terra, dívidas ativas, dentre outros investimentos. Tais cifras indicam ativo
comércio de cativos, tanto pelo tráfico atlântico, como pelo interprovincial, sendo essa a
principal fonte de acumulação das fortunas por parte de senhores da região. É preciso
considerar que a entrada de africanos no sertão foi significativa e se estendeu até os anos de
1850, principalmente entre as grandes propriedades, demonstrando o quanto esses senhores
arregimentaram cativos, beneficiando esse comércio.

Tabela 6 – Origem dos escravos entre 1810 – 1850

Origem Homem Mulher Total


África e Brasil N % N % N %
ÁFRICA
Benguela 07 2,5 01 1,5 08 2,5
Congo do Riacho 02 01 - - 02 0,5
Congo 10 4,0 02 3 12 04
Angola 19 7,0 06 9,5 25 8,0
Nagô 11 4,5 03 4,5 14 4,0
Uçá ou Auçá 12 5,0 04 6,5 16 5,0
Mina 14 5,5 04 6,5 18 06
Jeje 03 01 - - 03 01
Guiné 01 0,5 - - 01 0,5
Samthomé 01 0,5 - - 01 0,5
Calabar 05 02 - - 05 1,5
Cabinda 01 0,5 - - 01 0,5
Africano 171 66,5 43 68,5 214 66
Total 257 - 63 - 320 -

Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2008; AMARAL, Sharyse Piroupo. Um pé
calçado, outro no chão: liberdade e escravidão em Sergipe, Cotinguiba, 1860-1900. Salvador: EDUFBA;
Aracaju: Editora Diário Oficial, 2012.
86

BRASIL
Pardo 11 2,5 08 3,0 19 3,0
Crioulo 176 46 148 58,0 324 50,5
Mulato 34 9,0 26 10,5 60 9,5
Cabra 110 28,5 37 14,5 147 23,0
Não declarado 54 14,0 36 14,0 90 14,0
Total 385 255 640
Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários:
1810-1830.

A partir de 1850, na conjuntura da suspensão do tráfico atlântico, senhores do sertão


continuaram lucrando com o comércio interno de cativos. Beneficiados com a expansão das
lavouras cafeeiras no sudeste do Brasil, tornaram-se negociantes intermediários ou diretos,
fato este que alterou as formas de organização de vida de muitos escravos e forros em relação
às famílias, parentesco e laços de amizade. Não que os senhores do sertão tivessem se desfeito
de todos os seus cativos, mas a farta procura por mão de obra no Sul e Sudeste, e o quadro de
mudanças políticas que desencadeavam os processos abolicionistas nas últimas décadas do
século XIX, influenciaram escravistas sertanejos a venderem parte de suas escravarias e, com
isso, lucrarem em outros investimentos.
Como demonstra o Quadro 6 a seguir, havia um número bastante expressivo de cativos
nas fazendas de Monte Alto, conforme inventários post mortem. Todavia, é preciso considerar
que os dados correspondem a uma amostra, já que o recenseamento do Brasil do ano 1872
registrou 1.105 cativos, número elevado se comparado aos dados dos inventários, analisados
nesse quadro, a seguir, do mesmo período. Não obstante, o censo de 1872 registrou escravos
conforme a divisão eclesiástica da Igreja por Paróquia, nesse caso, o número do censo
registrado aqui era referente à “Paróquia Nossa Senhora Mãe dos Homens de Monte Alto”, e
não de acordo com a divisão administrativa do lugar. Sendo assim, é possível que existissem
números bem mais expressivos de cativos para Monte Alto naquele período.
Parte do território da freguesia do Gentio, em 1872, pertencia a Monte Alto e, do
ponto de vista da divisão da Igreja, esse território anexava a Paróquia do Rosário do Gentio,
com registro de 1.089 escravos. Considere-se, ainda, que inventários representavam uma
parcela da população local com bens a serem declarados após o falecimento para legalizar o
processo de partilha entre herdeiros, representando, portanto, um “retrato dos bens ali
arrolados”. Diante desse quadro, podem-se afirmar números bem maiores de proprietários na
região e de posse escrava frente à movimentação de entrada e saída de cativos mediante
compra e venda.
87

Quadro 6 – Número de escravos por decênio de acordo com os inventários

1811 1821 1831 1841 1851 1861 1871 1881


Décadas
1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1888
Escravos 68 373 385 461 381 579 513 183

Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventários. Série: Inventários.
1811-1888.

Na pesquisa em livros de registros de escrituras públicas de Monte Alto, Danielle da


Silva Ramos (2016) sinalizou a lucratividade da venda de mão de obra cativa na década de
1880:
Em 25 de outubro de 1880, Bento Moreira de Magalhães comprou de
Augusto Barboza Madureira um escravo de nome Joaquim, preto, de vinte
anos de idade mais ou menos, matriculado sob o número 2.431 deste
município, pelo preço de Rs.1:550$000. Alguns dias depois, em 02 de
novembro do citado ano, Bento vendeu o mesmo escravo a Cândido Spínola
Castro pelo preço de Rs.1:600$000, tendo um lucro de Rs.50$000 em
relação à primeira compra. A razão dessa revenda não sabemos ao certo,
mas, pelo curto intervalo de tempo, talvez já estivesse nos planos de Bento
Moreira de Magalhães comercializá-lo novamente (RAMOS, 2016, p. 61).

A revenda apontada pela autora trata-se, na verdade, do ativo comércio interprovincial,


e, assim como Antônio Barboza Madureira, outros senhores lucraram com esse comércio.
Isidro José Barbosa, no ano de 1878, passou procuração na Freguesia do Gentio aos senhores
Manoel José da Costa Negraes, Manoel Cândido de Oliveira Guimarães, Joaquim José de
Faria, Lauro Gonçalves Fraga e João Manoel, para que o representassem na Província de São
Paulo, com todos os poderes gerais, a fim de vender e assinar em escritura pública a venda de
sua escrava Benedicta, de cor preta, 33 anos de idade, natural da Bahia, filiação desconhecida,
e Laurência, de cor preta, 12 anos de idade, solteira, filha da mesma Benedicta, ambas
matriculadas no termo de Monte Alto. Os procuradores escolhidos por Isidro José Barbosa
referiam-se, naquela época, a traficantes de cativos entre o Alto Sertão e o sudeste do País.
Monte Alto se distinguia das demais localidades do Alto Sertão por apresentar, em
suas propriedades, um número elevado de escravos sob a posse de grandes e médios senhores,
além do fato de sua localização geográfica ser estratégica na comercialização de cativos via
tráfico atlântico e interprovincial. Enquanto isso, vilas vizinhas também concentraram
escravarias, porém com distribuição menor entre as propriedades, de acordo com estudos
sobre a região82. Conforme classificação contida na Tabela 7, entre 1811 e 1849, aqueles
proprietários com mais de 11 escravos entraram para o grupo, sendo classificados como

Ver: NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura Fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos
82

XVIII e XIX. Salvador EDUFBA, 2005; PIRES, Maria de Fátima. Fios da vida: tráfico interprovincial e
alforrias nos Sertoins de Sima – BA (1860/1920). São Paulo: Annablume, 2009.
88

médios e grandes senhores e, a partir dos cálculos, pode-se afirmar que 40% deles
concentravam 81,4% da escravaria, formando, assim, uma elite sertaneja com grande
acumulação de riqueza na primeira metade do século XIX.

Tabela 7 – Posse escrava por proprietários no termo de Monte Alto

Número de escravos por proprietários


1811 – 1849
descritos nos inventários
NP % NE %
1–5 21 38,2 61 5,0
6 – 10 12 21,8 92 7,3
11 – 20 06 10.9 88 7,0
21 – 50 09 16,4 313 25,2
51 – 100 03 5.5 195 15,7
Mais de 100 04 7.2 495 39,8
Total 55 100 1.244 100
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventários. Série inventários.
1811-1849.
Legenda:
NP = Número de proprietários
NE = Número de escravos
*2 inventários sem escravos para o período
Fonte: Dados da pesquisa

Apenas 7,2% dos senhores concentravam mais de 100 escravos em suas propriedades,
representando 39,8% das escravarias para o período, compondo um dos seus principais
investimentos, já que atendiam tanto às demandas das fazendas, como à comercialização.
Entre outras atividades desenvolvidas por esse grupo (grandes proprietários) estavam, além da
pecuária e algodão, atividades comerciais e financeiras, formando, assim, uma minoria de
homens de grossa aventura, que conciliavam os negócios da agropecuária com atividades de
crédito83. Outras ocupações do ramo de gêneros alimentícios também se incluíam na rotina
daqueles senhores.
Manoel Pereira da Costa teve fortuna arrolada no ano de 1867, cujo valor foi de
Rs.20:660$480. O envolvimento com atividades agropastoris, com 550 cabeças de gado
vacum, produção e comercialização da farinha e algodão, forneceu condições para amealhar
riqueza aliada a investimentos na posse escrava, declarando 27 cativos. Alguns deles foram
direcionados ao mercado, como o escravo Manoel, crioulo, 50 anos, vendido a Rs.400$000,
Antônia, crioula, 30 anos, por Rs.700$000 e Lourenço, crioulo, 40 anos, por Rs.1:000$000.

83
A expressão “homens de grossa aventura” é definida por João Luís Ribeiro Fragoso como um grupo
aristocrático, escravista e latifundiário, cuja hegemonia estava relacionada ao envolvimento desses homens,
comerciantes de grosso trato, no tráfico internacional de escravos, no abastecimento interno e outras atividades
rentáveis e financeiras. Ver: FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e
Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790 – 1830). Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. 1992.
89

Além disso, as atividades de crédito estiveram também permeando a composição e ampliação


da fortuna, cuja dívida ativa foi de Rs.1:578$700, referentes a empréstimos com juros
acrescidos ao valor concedido84.

Tabela 8 – Posse escrava por proprietários do termo de Monte Alto

Número de escravos por proprietários 1850 – 1879


descritos nos inventários
NP % NE %
1–5 59 43.3 129 10
6 -10 21 15.5 148 11.5
11-20 18 13.2 266 20.5
21 – 50 13 9.6 372 28.8
51 – 100 05 3.7 378 29.2
Inventário sem escravos 20 14.7 -
Total 136 100 1.293 100
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventários. Série: Inventários.
1850-1879.
Legenda:
NP = Número de proprietários
NE = Número de escravos
*2 inventários sem escravos para o período.
Fonte: dados da pesquisa

A análise dos dados revela que a posse escrava era mais representativa, em termos de
concentração, nas médias e grandes propriedades do termo de Monte Alto. Apesar de a
maioria dos proprietários ser considerada pequena, o número de cativos distribuídos nessas
propriedades era relativamente baixo, se comparado aos das grandes e médias. A seguir, os
dados apresentados sobre a média e percentual de masculinidade evidenciam essa
distribuição:

Tabela 9 – Média de escravarias por tamanho de propriedade – termo de Monte Alto, 1810-1880

Percentual de
Tamanho do Nº de escravos Nº de Nº total de masculinidade,
proprietário por proprietário propriedades escravos população acima de 12
anos
Pequeno 3 126 402 57,4%
Médio 11 46 528 53,2%
Grande 39 38 1496 64,6%
Total de propriedades 210
Total de Escravos 2.426
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventários. Série: Inventários.
1811-1880.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Manoel Pereira da Costa.
84

Mç:18, 1867.
90

Entre os médios e grandes proprietários, com cativos em idade reprodutiva e hábeis


para o trabalho, tem-se um maior envolvimento na dinâmica voltada ao tráfico interno. Esse
fato exigia de muitos cativos poder de negociação com seus senhores para garantir a alforria
e/ou apenas a permanência de si e dos seus naquelas propriedades. Aqueles comprados no
comércio intraprovincial tinham chances menores de negociação com os comerciantes de
escravos de Monte Alto, assim como cativos de pequenos senhores. Mas nem só o tráfico
constituía ameaça constante, pois a morte de um senhor, as dívidas e as situações de crises
econômicas representavam também instabilidade nas organizações de suas vidas, sejam elas
nas grandes, médias ou pequenas propriedades.
Em 1858, foram arrolados nos bens de Dona Casimira Dantas Prates, esposa de
Tiburtino Moreira Prates, 18 escravos, entre homens e mulheres, de 2 a 50 anos de idade,
além da posse de terras e gado vacum, que compuseram o patrimônio do casal em um valor de
Rs. 25:587$100. Apesar da riqueza apresentada, o casal vivenciou situações de crises
econômicas decorrentes das secas de 1857 a 1861, as quais abalaram algumas atividades
produtivas da região, ampliando as dificuldades econômicas de senhores escravistas 85.
“Muitos procuravam se desvencilhar de alguns cativos, seja como alternativa econômica, seja
pela dificuldade de mantê-los ou mesmo pela combinação de ambos os motivos” (PIRES,
2009, p. 36). Dos 18 escravos de Casimira Dantas Prates, quatro morreram antes da partilha
dos bens, sendo: Jorge, africano, 50 anos de idade, avaliado por Rs.300$000; Felipe, africano,
50 anos, Rs. 50$000; Catarina, mulata, 12 anos, Rs. 1:200$000; e Aprígio, crioulo, 11 anos,
Rs. 1:200$000.
Diante da crise vivenciada, presume-se que a morte dos escravos esteve relacionada a
alguma epidemia ou escassez alimentícia, inclusive, constou no inventário a venda do escravo
Camilo, crioulo, 15 anos, por Rs. 1: 200$000, e Fabiana, crioula, 25 anos, pelo mesmo valor,
Rs. 1:200$000, “para que pudessem sobreviver com a crise alimentícia de 1850”. Os demais
escravos: Florêncio, cabra, 20 anos; Pedro, cabra, 12, anos; e Daniel, cabra, 9 anos, foram
vendidos por Rs. 1:200$000 cada um. José, cabra, 3 anos, Rs.800$000, e Benedito, cabra, 2
anos, por Rs. 500$000. A razão da venda foi declarada pelos herdeiros do inventariante: “por
ser prejudicial, e de grandes inconvenientes a conservação delles, e por ter ocasião a postura
de os vender”. O perfil dos cativos na relação nominativa do inventário demonstrou que a

A proprietária Antônia Barbosa de Andrade, fazenda Lameirão, também sentiu os efeitos da seca. No
85

inventário de seu esposo, Antônio Botelho de Andrade, 1863, destacou a redução do gado vacum em sua
propriedade devido às grandes secas do ano anterior, flagelo “que dizimou todo o gado dos fazendeiros”. Ainda,
as “terras nada têm produzido porque a lavoura desde 1860 nada tem dado”. Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias
Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Inventariado: Antônio Botelho de Andrade Júnior. Mç. 16, 1863.
91

escolha para a venda não foi aleatória, tendo em vista a idade, vigor físico e, provavelmente,
maior preferência no mercado. Dessa forma, permaneceram na fazenda apenas 6 cativos:
Luiz, crioulo, 8 anos, Antônio, crioulo, 30 anos, Jerônimo, africano, 50 anos, Petronílha,
cabra, 20 anos, Maria, cabra, 40 anos e Josefa, cabra, 50 anos. Supõe-se que esses escravos
mantinham maior aproximação com seu senhor e atendiam às suas necessidades diante da
conjuntura vigente.
Além disso, soma-se a essa conjuntura a alteração do valor de cativos na dinâmica
socioeconômica da região. A vigência do tráfico e a crise da seca, as quais dificultavam a
manutenção da escravaria, estimularam aquela senhora a vender parte de seus escravos,
garantindo certa margem de lucro, já que o preço estava em alta com a expansão das lavouras
cafeeiras no sudeste do País. Aliado a essa demanda, o valor atribuído aos escravos levava
em consideração o aprimoramento das funções exercidas e a idade. Maria de Fátima Novaes
Pires (2009) demonstrou a média de preço dos escravos para Rio de Contas e Caetité em
1860, com valores correspondentes a Rs.700$000 para homens e Rs. 600$000 para mulheres,
e o declínio dos preços a partir de 1880, tanto para os homens quanto para as mulheres. O
preço dos escravos seguiu tendência em toda a província baiana na segunda metade do século
XIX.
Essas observações se evidenciam para o termo de Monte Alto, onde os preços
tenderam a aumentar após 1850. Os inventários registraram valores absolutos, arredondados,
sem quebra, exceto aqueles de procedência africana, com problemas de doenças ou
deformações físicas e idade acima de 50 anos, que apresentavam valores muito baixos; os
cativos com idade avançada ou com deformações físicas eram avaliados abaixo de
Rs. 80$000. Aqueles com idade considerada adequada para o trabalho, ou criança com
aspecto físico saudável, representavam média, na primeira metade do século XIX, de
Rs. 300$000 para mulheres e Rs. 400$000 para homens. A lucratividade que senhores
sertanejos acumulavam com cativos jovens, saudáveis e com alguma especialização na
vigência do tráfico interno justifica a concentração e características da posse escrava em
médias e grandes propriedades do termo de Monte Alto.
Após 1850, conforme a Tabela 10, a seguir, os valores se elevaram, se comparados aos
dos períodos anteriores. De acordo com as profissões do cativo, poderiam ser avaliados entre
Rs. 1:000$000 e Rs. 2:000$000. Esses indicadores também foram observados por João José
Reis (1986), quando identificou que os preços para Salvador e Recôncavo da Bahia, na
primeira metade do século XIX, tenderam a subir devido à suspensão do tráfico atlântico e à
92

procura das províncias do Sul e Sudeste com a expansão dos cafezais, como afirma João José
Reis:
Por volta de meados dos anos trinta, a Bahia e outras províncias do Nordeste
se tornariam regiões exportadoras de escravos para o Sul. O valor destes
aumentou muito na Bahia. O preço médio de um escravo era 175$000 em
1810, 200$000 em 1820, 250$000 em 1830 e 450$000 em 1840. Enquanto o
preço subira 30 por cento em vinte anos (1810- 1830), nos dez anos
seguintes (1830 a 1840) ele aumentaria 45 por cento (REIS, 1986, p. 98).
Tabela 10 – Preço, idade média dos escravos, Palmas de Monte Alto – 1811 a 187086.

Idade Idade Idade Idade


Preço Preço Preço Preço
Décadas Homens Média Mulheres Média Crianças Média Idosos Média
Médio Médio Médio Médio
13-40 13-40 0-12 40 a.
1811
17 27 120$000 05 24 138$000 06 08 66$000 04 57 100$000
1820
1821
149 21 162$000 36 26 175$000 71 10 86$000 25 55 267$000
1830
1831
154 26 612$000 99 27 180$000 95 12 145$000 58 58 200$000
1840
1841
120 25 384$000 77 27 369$000 95 12 204$000 90 53 195$000
1850
1851
62 24 309$000 56 25 355$000 107 07 475$000 59 60 95$000
1860
1861 25
139 27 1:062$000 121 642$000 190 08 435$000 124 60 248$000
1870
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Seção: Judiciária. 1 Série: Inventários, 1811 a 1870.

86
Com base em Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 120/121), foi estabelecida a idade de 0 a 12 anos para caracterizar o cativo como criança.

93
94

No espólio de Gerônimo de Araújo Braga, grande proprietário com monte-mor


correspondente a Rs. 56:830$720 no ano de 1858, registraram-se três escravos vaqueiros
avaliados a Rs. 1: 000$000 cada um87. Em 1869, o grande senhor Antônio Pereira de Souza
Costa declarou 77 cativos, destes, os valores mais elevados foram para aqueles que exerciam
a função de vaqueiro, serviço de lavoura, ferreiro e sapateiro, atingindo a quantia de
Rs. 1:000$000, para cada um88. Noutro inventário, de José Barbosa Madureira, negociante
com casa de comércio na vila de Monte Alto e grande proprietário, em 1861, foram arrolados
12 escravos, sendo João sapateiro, de 28 anos, e Faustino crioulo, também sapateiro,
avaliados, respectivamente, por Rs. 2:200$000 e Rs. 2:000$00089.
Os preços no sertão estiveram sintonizados com o mercado nacional e o provincial e,
mesmo após a elevação de valores, os escravistas das áreas sertanejas persistiram na
continuidade da escravidão e em nenhum momento demonstraram interromper o investimento
na mão de obra cativa, já que o tráfico interno se apresentava altamente lucrativo aos
proprietários sertanejos. A diminuição do acesso à posse escrava na região, nas últimas
décadas do século XIX, esteve vinculada não apenas às pressões das leis abolicionistas, mas
também ao intenso comércio de cativos entre o sertão e o sudeste do País.
Conforme se verificou na Tabela 10 (anterior), o percentual de homens praticamente
se equilibrou em relação ao de mulheres, a partir da segunda metade do século XIX, tendo
apenas leve inclinação para maioria de homens. Há indícios na documentação consultada de
que, entre as escravarias de grandes e médias propriedades, a reprodução natural expandiu-se
com maior frequência, fato que favorecia o equilíbrio entre os sexos na região. A
concentração de cativos e as demandas diversificadas de atividades desenvolvidas pelos
escravos de grandes propriedades permitiram maiores chances de organização entre
companheiros de senzalas dentro e fora do espaço das fazendas. A assimetria entre os sexos,
porém, variava de escravaria para escravaria, de acordo com a faixa etária e a naturalidade dos
cativos. Se comparado ao das pequenas propriedades, esse desequilíbrio se acentuava menos
nas grandes e médias escravarias.
Quanto à faixa etária das escravarias por propriedade, presume-se que, a partir do
número elevado de crianças, apresentado na Tabela 11 a seguir, houve crescimento natural

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
87

Inventariado: Gerônimo de Araújo Braga. Mç: 13, n. 378, 1858.


Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
88

Inventariado: Antônio Pereira de Souza Costa. Mç:19, n. 33, 1869.


Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
89

Inventariado: José Barbosa Madureira. Mç:14, n. 279, 1861.


95

entre os cativos, e esse aspecto vinculou-se à construção de espaços organizados pelos


escravos nas convivências do cativeiro, fosse por incentivo ou não dos senhores.

Tabela 11 – Faixa etária de escravarias entre grandes, médias e pequenas propriedades

1811 – 1850
Faixa etária de escravarias Grande Média Pequena
Criança 155 25% 80 27% 42 25%
Adulto 367 58% 178 60% 97 58%
Idoso 102 17% 40 13% 28 17%
TOTAL 624 298 167 1.089
1851 – 1870
Faixa etária de escravarias Grande Média Pequena
Criança 113 28% 246 36% 129 32%
Adulto 188 47% 298 43% 226 55%
Idoso 99 25% 136 20% 58 14%
TOTAL 400 680 413 1.493
1871 – 1888
Faixa etária de escravarias Grande Média Pequena
Criança 71 18% 51 25% 52 33%
Adulto 291 74% 97 48% 67 43%
Idoso 29 8% 54 27% 36 24%
TOTAL 391 202 155 748
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Seção: Judiciária. Série:
Inventários, 1811 a 1888.

Pode-se aferir que, nas primeiras décadas do século XIX, o total da população cativa
chegou a 1.089 pessoas. Entre o período de 1851 e 1870, ocorreu um sutil crescimento no
número de escravos nas fazendas e, a partir de 1871, os dados do censo aproximaram-se dos
registros das décadas anteriores. O aumento entre o período de 1851 e 1870 deveu-se a vários
fatores, dentre eles, à reprodução natural e ao maior número de inventários com registros de
escravos. No segundo período, ocorreu leve aumento no percentual de crianças entre a
população escrava, se comparado com o primeiro período, de 1811 a 1850, quando esse
percentual era de 25%.
A partir de 1871, na conjuntura das leis abolicionistas e tráfico interno, os indicadores
da Tabela anterior sinalizaram decréscimo de cativos por propriedades, mas, ainda assim,
algumas fazendas mantiveram números elevados até a última década da escravidão. Em meio
à concentração de escravarias observadas, especialmente em grandes e médias propriedades, a
população do termo de Monte Alto ingressou no século XIX sob forte impacto econômico
advindo da vigência e envolvimento de senhores escravistas nas conjunturas do tráfico
atlântico e do tráfico interno, incidindo drasticamente na concessão de alforrias e articulação
96

de redes familiares, posto que senhores arregimentaram escravos não apenas para o trabalho
nas fazendas, mas para comercialização, fazendo da região um importante entreposto
comercial de escravos.
Nessas condições, passaremos a observar, no capítulo seguinte, as estratégias de
negociações de escravos e senhores na luta pela conquista da alforria e manutenção dos laços
familiares de cativos em grandes propriedades, valendo-se, nesse cenário, de múltiplas
estratégias para resistir às vendas compulsórias.
97

3 ARTICULAÇÕES ENTRE SENHORES E ESCRAVOS EM GRANDES


PROPRIEDADES

3.1 Na teia da sobrevivência: alforria, família escrava e redes de relações

O uso e a comercialização da mão de obra escrava em diversas atividades rentáveis


desenvolvidas por grandes senhores forneceram base para a ampliação de fortunas e
consequente formação de uma sociedade escravista no sertão baiano. Não obstante as
imposições de senhores, ávidos por lucros, cativos resistiram às vendas e perturbaram o
domínio senhorial, quando perceberam que as negociações costumeiras se afastavam de suas
expectativas.
Nesse contexto, cativos se mobilizaram e intensificaram estratégias diversas,
valendo-se de rede de relações para alcançar a alforria e escapar das malhas do tráfico e do
cativeiro. A arregimentação de escravos não só para as demandas produtivas locais, mas para
direcioná-los ao mercado, dificultou o acesso à alforria e manutenção dos arranjos familiares.
Rafael, pardo, de 40 anos, cativo do Major Manoel Moreira da Trindade, no ano de 1866, foi
um daqueles escravos que conseguiram tirar um dia da semana para prestar serviço
remunerado fora das atividades de seu senhor. Com isso, acumulou pecúlio para a compra da
manumissão por Rs. 400$000, ficando a dívida a pagar com o trabalho que lhe fosse facultado
no dia de sábado, concedido por seu senhor90.
Assim como Rafael, muitos outros cativos empreenderam ações em busca de uma vida
em liberdade. Mesmo diante do contexto de compra e venda para as regiões do Sudeste, que
dificultava ainda mais a vida em cativeiro, eles buscaram, nas articulações, arranjos e grau de
relações estabelecidas com seus senhores, conciliando interesses de ambas as partes, garantir
certas vantagens e direitos. Manoel Moreira da Trindade era um rico proprietário que esteve
envolvido em diferentes transações comerciais e financeiras. Itens como algodão, aqueles
advindos da pecuária e a farta mão de obra cativa, constituíram base da fortuna acumulada por
aquele senhor. Esses itens possibilitaram relações com credores e comerciantes na região e em
Salvador, como a Firma Antônio Francisco Brandão e Companhia, a quem “devia a quantia

90
Rafael era escravo da fazenda Canabraval, pertencente ao Major Manoel Moreira da Trindade. Fórum Dr.
Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Major Manoel Moreira Trindade, n.304,
1866.
98

de 1:700.000, pouco mais ou menos, para cujo pagamento remetteo da safra deste anno vinte
cargas de algodão”.91
Nessas condições, diversas ações permearam a vida dos escravos para remir-se do
cativeiro ou garantir a permanência junto aos seus familiares. Experiências como a de Rafael
também foram observadas por Mattos (1998), para o município de Rio Claro, província do
Rio de Janeiro, em 1850: cativos do mundo rural “lograram ampliar seus espaços de
autonomia dentro do cativeiro, diferenciando-se do conjunto dos demais escravos,
aproximando-se desta experiência de liberdade e ampliando suas condições de acesso à
compra da alforria”, afirma Hebe Maria Mattos (1998, p. 100).
Acompanhando pistas de escravos em inventários de Monte Alto, outro rico
fazendeiro de nome José Antônio da Silva Castro, inventariado no ano de 1844, cujo
monte-mor equivalia a Rs. 287:371$136, acusa diversos pagamentos a indivíduos que
prestavam serviços para aquele proprietário, inclusive, havia pagamentos feitos a cativos:
dinheiro a Maurício Ferreiro, Rs.16$000; dinheiro à sua escrava, de nome não identificado,
Rs. 36$000, Rs. $360; dinheiro aos carpinas, Rs. 23$000; dinheiro ao marceneiro Henrique
Kroger, Rs. 164$000; dinheiro ao escravo Tibúrcio, Rs. $200; além de vaqueiros, tropeiros,
seleiros, fiandeiras, dentre outros ofícios. O cativo Felisberto acompanhava Gasparino
Moreira Castro, filho de seu senhor, quando o jovem estudava o curso de Direito em Olinda,
por isso precisou ser avaliado às pressas para a continuidade dos estudos de Gasparino92.
O envolvimento de grandes senhores em atividades lucrativas e diversificadas precisou
de aprimoramento de tarefas a serem executadas, especialmente por cativos. Por um lado, esse
aprimoramento pode ser visto como ação estratégica do senhor em agregar maior valor ao
escravo quando direcionado ao mercado, conforme visto, a depender das especializações
desenvolvidas por um cativo, o valor recebido com uma futura venda tendia a ser maior. Por

A Firma Antônio Francisco Brandão e Companhia foi uma das principais firmas que atuaram na região do
91

Alto Sertão baiano, envolvendo-se em várias transações comerciais, sobretudo no comércio de cativos. Pires
(2009, p. 51) evidenciou negócios dessa firma em Caetité com abastado proprietário da família Gomes Neto,
Barão de Caetité, “e outros comerciantes, como o riocontense Antônio Gomes Pereira”, comerciante de fazendas
e secos da Bahia. Sobre a atuação dessa firma em outras localidades do Alto Sertão da Bahia, ver também:
NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros Traficantes: comércio de escravos do Alto Sertão da Bahia para o
oeste cafeeiro paulista. Afro-Ásia, 2000, p.97-128; SANTOS, Paulo Henrique Duque Santos. Légua tirana:
sociedade e economia no alto sertão da Bahia, Caetité, 1890-1930. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2014;
RAMOS, Danielle da Silva. O mundo aqui é largo demais: produção e comércio no termo de Monte Alto, alto
sertão da Bahia, 1890-1920. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2016; LIMA, Simony Oliveira. O
ardente desejo de ser livre: escravidão e liberdade no sertão do São Francisco (Carinhanha, 1800-1871).
Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2017.
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
92

03/1021/1490/01, 1844.
99

outro lado, o aprimoramento abriu espaço que comportava certo grau de mobilidade social ao
cativo, possibilitando algumas flexibilidades nas funções desempenhadas.
Possuir determinadas habilidades de ocupação despertava nos senhores uma forma
lógica de atribuição de valores que hierarquizavam aquele grupo. Dessa relação, muitos
cativos levaram vantagens: constituíam pecúlio, compravam alforrias, formavam famílias e
permaneciam por maior tempo nas propriedades. “As regras do jogo” estavam nas mãos dos
senhores, mas o cativo “dispõe de mil possibilidades de aceitá-las, porém modelando-as”
(MATTOSO, 2003, p. 122).
As escravarias pertencentes a José Antônio da Silva Castro estavam disseminadas por
volumosas propriedades em toda a província baiana. Esse senhor era filho do bandeirante
João Antunes da Silva Castro, casado com Ana Pedrosa de Araçatuba, descendente dos
Raposos Leite.93 Estes, ao se estabelecerem na região de Outeiro em Muritiba, na fazenda
“Tapera”, região de Curralinho (hoje Castro Alves, Bahia), construíram fortunas
consideráveis e tiveram cinco filhos, dentre eles, o mencionado José, que no comando do
Regimento de Cavalaria 43, passou a atuar no sertão e se instalou na Fazenda Cajueiro, Termo
de Monte Alto.
Algumas famílias portuguesas vieram para o Brasil, sobretudo para São Paulo, e
figuraram como bandeirantes na procura de ouro e metais preciosos. De São Paulo
adentraram-se por Minas Gerais e Bahia (Rio de Contas), envolvidos com a extração de ouro,
prata, diamantes e o salitre na Serra de Monte Alto, século XVIII, de acordo com Isnara
Pereira Ivo (2012). Dentre eles: Francisco Pereira Barros, Joaquim Pereira de Castro, João
Antunes da Silva Castro, Pedro Leolino Mariz, Domingues Gomes de Azevedo e Belchior
Pereira Guedes, entre outros. Ao se instalarem no Alto Sertão baiano, construíram suas
moradas, adquirindo terras por compras, heranças, doações e apropriação, permanecendo por
séculos. Construíram fortunas, sobretudo a partir da atuação no comércio de escravos,
exerceram patentes militares, controlaram o poder local; eram comerciantes, latifundiários e
escravistas, cujas fortunas geraram relação de dependentes, como escravos, libertos e livres
pobres. O acesso à terra tornara-se difícil devido a enormes concentrações sob o domínio de
famílias privilegiadas que perduraram por séculos, como a família de José Antônio da Silva
Castro.
A dimensão de redes de negócios e composição fundiária pertencentes àquele senhor
podem ser observadas no Quadro 7 a seguir.

ALMEIDA, Norma Silveira Castro; TANAJURA, Amanda Rodrigues Lima. José Antônio da Silva Castro,
93

O Periquitão. Salvador: EGBA, 2004, p.27


100

Quadro 7 – Fazendas e Imóveis de José Antônio da Silva Castro

Fazendas e Imóveis Localização Procurador


Capitão José Pereira de Mesquita; Dr. Timótheo
Fazenda Cajueiro Monte Alto Vasconcelos Bittencourt; Antônio Botelho de
Andrade.
Dr. Antônio de Souza Spínola; Capitão Jacinto
Fazenda Carnaíba de
Caetité Antonio de Brito; Advogado Ângelo Custódio
Fora
de Mello.
Capitão Plácido de Souza Fagundes; Tenente
Fazenda das Gerais Macaúbas Coronel Raimundo de Souza Fagundes;
Francisco Uruguaia de Almeida.
Fazendas Campo
Santo Antônio do Comandante Superior José Antônio de Araújo
Grande, Volta e Boa
Urubu Guimarães; Capitão José Vicente de Oliveira.
Vista.
Fazendas Rossas
Capitão José Vasconcellos Bittencourt; Capitão
Velhas, Carrapato,
Rio de Contas Francisco de Assis; João Rodrigues da
Capivara, Olho d´Água,
Trindade; Capitão José da Rocha Bastos.
Palmas e Agreste.
Fazendas Retiro,
Sobrado, Mocambo,
Cabeceira e Pindoba. Cachoeira, São Félix
Major Zeferino José de Carvalho; Major
Fazendas à margem do e Villa de Feira de
Francisco de Oliveira Guedes; Dr. Álvaro
Rio Paraguaçu, a do Santana (Recôncavo
Tibério de Mancovo Lima.
Campo do Gado e da Bahia).
Alegre. Três casas de
Sobrado.
Francisco de Vasconcellos Bittencourt Júnior;
Sem descrição dos bens Cidade da Bahia Dr. Aprígio José de Souza; Dr. Vítor de
Oliveira; Procurador José Antônio de Carvalho.
José Maria F. de Souza Pinto; Dr. Gregório do
Corte do Rio de
Sem descrição dos bens Nascimento Silva; Requerente José Moreira
Janeiro
Azevedo; Manoel Francisco de Andrade.
Fonte: APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro.
Classificação: 03/1021/1490/01, 1844.

De acordo com esse Quadro, para cada lugar em que José Antônio da Silva Castro
possuía bens patrimoniais na Província da Bahia e no Rio de Janeiro, foi nomeado um
procurador para inventariar as devidas propriedades. A escolha desses representantes mostrou
articulações desse senhor com indivíduos abastados e de influência política e econômica,
como pode ser observado nos títulos de patentes e formação superior que antecedem seus
nomes: Doutor, Comandante, Major, Capitão, Coronel e Tenente. No Recôncavo da Bahia,
em Cachoeira, o procurador Dr. Álvaro Tibério de Mancovo Lima pertencia à família
proprietária do Engenho Trapiche Mancovo e mantinha relações com diversos negociantes da
praça da Bahia. No arrolamento dos bens desse senhor, constaram itens referentes à compra e
101

venda nas casas de negócios: Lima, Irmãos & Cia, Companhia do Queimado; Anselmo de
Azevedo Fernandes & Cia; Loja de Modas de Paris de J. Rodrigues Teixeira, dentre outras94.
No espólio arrolado, constaram 125 cativos, 6.000 reses de criação, muitos animais
cavalares, como animais de carga, bestas e éguas em propriedades do sertão e Recôncavo
baiano95. A criação extensiva, possibilitada pela posse de diversas propriedades e de recursos
necessários à sua manutenção, justificou lucros auferidos com comercialização para mercados
interno e externo na província baiana. Nas propriedades do Recôncavo baiano, investiu no
plantio e comercialização da cana-de-açúcar e na criação, em menor escala, da pecuária e
gado cavalar, como deu a descrever a posse de “30 arrobas de açúcar, por 96$000 mil reis e
11 burros de tropas” 96.
Em propriedades do sertão, investiu em maior peso no criatório de gado vacum,
cavalar e outras atividades voltadas à casa de negócios e ao plantio de algodão, dando no
inventário “seis cargas de algodão em capunxo avaliada a 12 mil reis cada huma, todas por 72
mil reis”. Na propriedade da Taboca, tinha uma casa velha para escravos e “deu o
inventariante vinte e cinco cargas de algodão em capunxo, que forão avaliados a doze mil reis
cada huma”. Aquele rico senhor não só plantava o algodão, mas também beneficiava,
havendo em sociedade com Clemente Antunes da S. Castro e Antônio Luiz de Avelar uma
“maquina filatoria da Fazenda Gameleira, cuja casa e maquinismo ahi existente pertence a
sociedade, como mostra a escriptura”97.
O algodão, a posse e comercialização de cativos foram elementos de grande
importância na articulação comercial de ricos senhores, na composição e na ampliação das
fortunas. Além disso, investiram também em semoventes (gado vacum e cavalar), atividades
de crédito e concentração de extensas unidades agrárias distribuídas em Monte Alto e outras
localidades, destinadas à economia de abastecimento e de subsistência. Essa diversidade de
investimentos e articulações permitiu caracterizá-los como grandes proprietários, cuja faixa de
riqueza foi de Rs. 15:000$000 a Rs. 50:000$000 e acima de Rs. 50:001$000, conforme se
observa nas Tabelas a seguir.

94
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: Álvaro Tibério de Mancovo e Lima.
Classificação: 01/121/146/02, 1869.
95
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01, 1844.
96
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01, 1844.
97
APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
03/1021/1490/01, 1844.
Tabela 12 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor de Rs. 15:001$000 a Rs. 50:000$000

Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série: Inventários: 1820-1889.

102
Tabela 13 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor acima de Rs. 50:000$000

Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1888.

103
104

As dívidas contraídas, conforme apresentado nas Tabelas 12 e 13 anteriores, revelam o


grau de articulação desses senhores. Mercadorias diversas e empréstimos foram realizados em
várias partes da Bahia. Em Salvador, na casa de comércio de José Raimundo da Silva, José
Antônio da Silva Castro declarou dever itens, como: fitas francesa, moderna, demarcada e
chita escura, que totalizaram o valor de Rs. 151$592. Ao comprar produtos em casas de
negócio em Salvador para revender no sertão, consignava como garantia da dívida algodão
em carga. Assim, registrou e requereu, no inventário, outro negociante da Praça da Bahia
(Salvador), Antônio Ferraz da Motta Pedreira, acusando ter recebido 281 cargas de algodão
consignado98. Nessas transações, exercia o papel de produtor, vendedor e intermediário entre
o sertão e outros lugares da Bahia.
As dívidas passivas somaram o valor de Rs. 27:375$105 e tinham por finalidade
garantir estoque de casas comerciais. Para conseguir credores do porte de Antônio Ferraz da
Motta Pedreira, era preciso exercer certo grau de influência política, econômica e uma rede de
contatos fora dos limites de onde morava. Além do algodão, constou, na lista de dívidas
passivas, a compra “de 2 escravas, por Rs. 600$000”, e dinheiro pago a alguns escravos. A
partir dos indícios, é possível presumir que a compra e a venda de cativos também estariam
entre os negócios lucrativos daquele rico senhor. Certamente, era um comprador de escravos
da praça da Bahia, para distribuir e abastecer propriedades de outros senhores no sertão
baiano.
Na lista nominativa dos 125 escravos descritos na propriedade de sua residência, a
fazenda Cajueiro, apareceram com frequência, cativos de procedência angola, Jeje e nagô, e
aqueles denominados africanos, sugerindo que a compra de escravos para o sertão, pós-Lei de
1831, foi uma realidade. Constaram ainda, no espólio, 34 escravos arrematados em praça
pública por José Antônio da Silva Castro. Ao se observar no Quadro 8 abaixo, têm-se homens
e mulheres, jovens, em idade apta ao trabalho, correspondentes ao perfil do que mais era
procurado no mercado. Denota também número superior de homens em relação às mulheres
na comercialização e que senhores não tinham preferência por escravos crioulos ou africanos
na hora de vender ou comprar, lançavam mão do que estivesse disponível no mercado quanto
à origem de seus escravizados. Todavia, a idade era um fator que chamava atenção entre os
cativos comercializados. A outra questão estava na reprodução natural, sendo notório do
quanto esses senhores se beneficiavam desse dispositivo. Na hora de vender seus cativos,

APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
98

03/1021/1490/01, 1844.
105

jamais se importavam com os vínculos familiares que uniam essas famílias escravas,
causando enormes constrangimentos à vida familiar e à liberdade.
A seguir, verifica-se uma pequena amostra dos cativos arrematados por aquele rico
senhor:
Quadro 8 – Escravos levados à arrematação de José Antônio da Silva Castro - 1844

Nome Idade Nação Preço


Cipriano 14 anos Crioulo 400$000
Antônio 35 anos Pardo 400$000
Alistes 09 anos - 300$000
Francisco 20 anos Crioulo 400$000
Tetuliano 20 anos Crioulo 400$000
João 24 anos Crioulo 450$000
Eva 01 ano Crioulo 300$000
Maria Pedrosa 12 anos Parda 400$000
Tito 17 anos Crioulo 400$000
Quintiliano 16 anos Cabra 400$000
Rita 20 anos Africana 400$000
Gasparino 30 anos Africano 400$000
Benedito Barcelar 34 anos Africano 400$000
Fonte: APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro.
Classificação: 03/1021/1490/01, 1844.

Os jovens escravos de José Antônio da Silva Castro, indicados como arrematados em


seu inventário, sugerem comércio ativo de compra e venda de cativos, alguns pertencentes à
mesma família, como os irmãos Cipriano e Tito, filhos da escrava Eusébia, já Alistes e Alípio,
crioulos, 14 anos, Rs. 400$000, eram filhos da escrava Eufrasina, crioula, 30 anos, avaliada
em Rs.400$000. A arrematação dos jovens escravos elucida a desestruturação da família
escrava diante dos lucros que o tráfico possibilitava aos senhores. As mães dos cativos,
Eufrasina e Eusébia, permaneceram na fazenda sob a posse de algum dos herdeiros, tiveram
que conviver com a dura experiência do desmembramento familiar.
Tudo indica que esse senhor se beneficiou não apenas do comércio cativo, mas
valeu-se da reprodução natural para auferir lucros. Ao adquirir esses cativos, poderia
redirecioná-los para outros lugares, abastecendo a região e outras províncias. Desse modo,
esse senhor escravista atuou de forma intensa em várias rotas do tráfico, fosse atlântico, via
Salvador e Recôncavo da Bahia, fosse por meio do tráfico regional e interprovincial, fazendo
do lugar um entreposto de comercialização de cativos. Senhores sertanejos, como José
Antônio da Silva Castro, eram capitalistas, empreendedores, antenados às conjunturas
106

políticas e econômicas de seu tempo99. Além do poder econômico advindo da posse de


escravos, terra e gado, a maioria desses grandes senhores trazia consigo títulos de patentes e
exerciam funções militares ou em órgãos públicos, além de interferirem no Poder Municipal.
Estudos do Alto Sertão da Bahia têm identificado proprietários com fortunas acima de
Rs. 100:000$000, que atuavam em diferentes setores de negócios rentáveis, contudo não
restritos à agropecuária, também atuavam em transações comerciais de empréstimos
financeiros e na compra e venda de cativos. Danielle da Silva Ramos (2016) identificou, ao
analisar a composição da riqueza para Monte Alto, entre os anos de 1880 e 1920, um grande
proprietário de nome Nicolau José Ribeiro e Silva, residente na Fazenda Malhada do Joazeiro,
cuja fortuna fugia à regra das demais riquezas encontradas para aquela época. De acordo com
a autora, a soma do espólio daquele rico fazendeiro chegou a Rs. 549:769$155, inventariada
no ano de 1897. Entre os bens arrolados, chamaram atenção quantias de dinheiro depositadas
em diferentes lugares e bancos da Bahia.
O volume do dinheiro era proveniente de transações realizadas por remessas de lucros
auferidos em “distintos ramos de negócios” (RAMOS, 2016, p. 112-113). Dentre eles,
pode-se presumir que o tráfico interno de compra e venda de cativos foi elemento de riqueza
importante para a acumulação da volumosa fortuna daquele senhor, uma vez que seu genro,
Sebastião Cardoso de Souza, casado com D. Rita Cândida Ribeiro, apareceu com frequência
representando-o em procurações de compra e venda de escravos de Monte Alto, além do seu
envolvimento direto em tais transações. No ano de 1879, Nicolau Ribeiro e Silva comprou de
D. Ana Joaquina Athayde, na Vila de Carinhanha, sete cativos: Joaquim, pardo, 24 anos;
Marcelino, 14 anos, Eva, preta, 19 anos, Agostinha, preta, 32 anos, Maurícia, preta, 16 anos,
Manoel Luiz, pardo, 21 anos, vaqueiro e Theodora, preta, 24 anos, com duas ingênuas, no
valor total de Rs. 6:200$000. 100 Ao adquirir os cativos, estes foram repassados ao procurador
Carlos Catão de Castro, membro da firma Carlos Catão & Castro, possivelmente, para serem
revendidos em outras províncias. Para Ramos (2016, p. 112), “o grau de tais articulações pode
ter sido fator relevante na configuração da riqueza ao longo dos anos”.
No arrolamento dos bens de Antônio Botelho de Andrade Júnior, em 1863, com
monte-mor no valor de Rs. 59:511$200, constou dever a Nicolau Ribeiro e Silva a quantia de
Rs. 5:092$000. O empréstimo concedido por Nicolau é revelador do seu envolvimento com
lucratividade advinda do tráfico, aplicada em transações financeiras a juros. No auto da

99
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção: Judiciária. Série: Inventários, 1811 a
1880.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira- Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária, Livros de Notas do
100

Tabelionato. Procuração de compra e venda de escravos. Cx. Século XIX.


107

partilha, momento de quitar dívidas, cativos e gado vacum foram direcionados ao pagamento
dos empréstimos contraídos, a exemplo de 20 cativos e 273 cabeças de gado vacum101.
Lycurgo Santos Filho (2012, p. 35), ao caracterizar a rica Fazenda Campo Seco, em
Bom Jesus dos Meiras (atual Brumado), no Alto Sertão da Bahia, pertencente a Manoel de
Lourenço, no início do século XIX, mostrou o quanto esse senhor não só ampliou o
patrimônio, como deixou legado à geração de filhos. O genro e herdeiro da antiga fazenda,
José Pinheiro Pinto, expandiu a capacidade produtiva e realizou inúmeras transações
comerciais entre a região do Alto Sertão e a província da Bahia, com destino aos mercados
interno e externo.
Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 184) evidenciou dois grandes senhores para a
região de Caetité e Rio de Contas, no Alto Sertão baiano, na segunda metade do século XIX,
com características semelhantes às dos descritos acima, o Barão de Caetité, Gomes Neto, com
monte-mor de Rs. 169:000$094, e o Coronel Alves Coelho, com Rs. 186:382$160. Esses
senhores, segundo a autora, demonstraram disposição para o dinamismo na economia da
região, construíram fortunas e souberam conviver com as “distintas oscilações conjunturais”,
sendo a manutenção do trabalho escravo fundamental para o desenvolvimento das atividades
agropastoris. Paulo Henrique Duque Santos (2014, p. 38) também identificou a diversidade de
investimentos entre os anos de 1890 e 1930, no Alto Sertão.
Tais características de grandes fazendas com demandas diversificadas e concentração
de mão de obra cativa serviram como fonte de abastecimento ao comércio regional, provincial
e interprovincial. A posse cativa na região e as ameaças do tráfico obstavam as estratégias e
experiências de vida de escravos ao longo do século XIX, no Alto Sertão baiano, mas não
impediram de negociar com seus senhores e, ao se especializarem em determinadas tarefas e
fortalecerem a teia de relações, dentro e fora do cativeiro, vislumbraram possibilidades de
mobilidade social, a exemplo do pecúlio para compra de alforria, projetando na família a
“esperança” de uma vida melhor, aponta Robert W. Slenes (2010).

3.2 “Que a suplicante queira se libertar”: alforria em grandes propriedades

Diz Antônia Barbosa de Andrade, tutora de seus filhos Anna Carolina


Barbosa de Andrade, Antonio Botelho de Andrade, Eugênia Barbosa de
Andrade, que, tendo por ignorância de direito deixado a declarar nas suas
prestações de contas a troca do escravo Fabrício de idade de 10 annos do

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Botelho de
101

Andrade, 1863.
108

órfão Antonio troca que fez a suppl. Porque o dicto escravinho além da
figura era muito doentio, sofria de asma e seu outro escravinho Juvêncio,
muito boa figura e mais valioso: vem a suplicante assim apelar para a
equidade de Vs. pedindo aprovação do seu procedimento para seu único fim
era evitar qualquer mal que pudesse provir aos órfãos.
Portanto
P. Vsª. Queira deferir com equidade pedida.
Antônia Barboza de Andrade102

Ao prestar contas dos bens dos órfãos Anna Carolina, Antônio e Eugênia, D. Antônia
Barboza de Andrade, viúva do Major Antônio Botelho de Andrade, herdeiro da Fazenda
Lameirão e rico comerciante do termo de Monte Alto, apresentou em processo de inventário,
no ano de 1863, justificativa para a troca do escravo Fabrício, “muito doentio, sofria de
asma”, por outro de nome Juvêncio, “muito boa figura e mais valioso”, ressaltando que a
troca evitaria prejuízos ao órfão. O documento ilustra a preocupação da inventariante em
assegurar a equidade na partilha dos bens entre os demais herdeiros, visto que o escravo
Fabrício, “doente e considerado de má figura”, resultaria em prejuízos por possuir limitações
no desempenho das atividades daquela propriedade e numa futura venda.
Em outro momento, no ano de 1872, o procurador da órfã Eugênia representou, em
audiência na casa do Juiz Sebastião Cardoso Souza, vila de Monte Alto, três escravas: Isabel,
parda, 20 anos; Valeriana, parda, 35 anos; e Victorina, parda, 14 anos103. Essa última foi
adquirida por troca realizada com a venda do escravo Cândido, por receio de perda ou
prejuízo, “visto que o escravinho era fujão, de má índole e tentou até se suicidar uma vez; por
isso, pedia a aprovação do juiz quanto à referida troca por julgar favorável aos interesses da
orphã” 104.
O contexto de valorização da mão de obra cativa diante das transferências para o
sudeste do País, motivadas pela expansão das lavouras cafeeiras, despertou nos senhores
interesse por escravos que atendessem às exigências do mercado e, obviamente, as
substituições dos cativos visavam a esse destino, principalmente por se tratar de escravos
jovens e com idade adequada ao perfil dos senhores escravistas do Sul e Sudeste. Diante
daquele contexto, o fato de um senhor possuir escravo “fujão e má figura” representava
prejuízos, já para o escravo Cândido, a fuga e a tentativa do suicídio simbolizavam resistência
ao cativeiro e à transferência compulsória para outras regiões.

102
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Botelho de
Andrade Júnior. Mç: 16, 1863.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Botelho de
103

Andrade Júnior. Mç: 16, 1863.


104
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Botelho de
Andrade Júnior. Mç: 16, 1863.
109

Perante as armadilhas do tráfico, a alforria tornara-se mais difícil, visto que alcançá-la
envolvia interesses antagônicos: por parte dos senhores, uma concessão limitada, e por parte
dos cativos, uma conquista árdua que requeria esforço e trabalho redobrado. Nesse sentido, a
mobilização de redes de solidariedade funcionava como importante elo de fortalecimento da
identidade individual e coletiva entre cativos, livres pobres e libertos, especialmente na
montagem de estratégias e de diferentes caminhos para permanecerem próximos de seus
familiares.
Na Fazenda Cajueiro, em Monte Alto, propriedade de José Antônio da Silva Castro,
com 125 cativos em 1844, 10 foram alforriados, dos quais sete receberam suas manumissões
mediante compra, evidenciando o quanto aqueles sujeitos sociais manejaram recursos e
estratégias no acesso à liberdade. É bem verdade que esse acesso perpassava por uma relação
de direitos e deveres entre senhor e escravo, posto que, para adquirir a condição de liberto, os
escravos dependiam de décadas de trabalho para amealhar pecúlio e tentar obter a alforria.
Além disso, era preciso uma série de convenções sociais, como a honestidade, a fidelidade e a
deferência para merecerem a recompensa da alforria; do contrário, as ameaças, a altivez e as
inquietações culminariam na recusa da alforria ou na venda “dos maus serviçais”
(WISSENBACH, 1998, p.212). Tais condições dependiam de o cativo aceitar o “código do
bom comportamento” estabelecido no cativeiro para que a recompensa fosse alcançada
(SILVA, 1993, p. 23).

Diz o pardo Ricardo escravo do casal do finado Tenente Coronel José


Antônio da Silva Castro, que, tendo dado em conta de sua liberdade a
quantia de tresentos mil reis ao referido seu senhor, conforme lhe declarou
em verba testamentária, e tendo o supp. sido avaliado pela quantia de
quinhentos mil reis, quantia depositada em juiso os duzentos mil reis
restantes p completar o valor, p q foi acrescentado, a fim de V.Sª mandar
passar sua carta de liberdade, condição esta que o seu finado Sr. impos ao
suppe., como se acha declarado na mesma verba testamentária105.

O documento ilustra o empenho do escravo Ricardo para alcançar a carta de alforria,


sendo preciso submeter-se à condição imposta por seu senhor e, diante da necessidade,
mergulhou “num emaranhado de ações complexas e delicadas, em que ambos estavam,
decerto, conscientes de seu poder de barganha.” (NASCIMENTO, 2014).
O exame em livros de escritura pública do termo de Monte Alto, especialmente
aqueles referentes à compra e venda de cativos e cartas de alforrias, permitiu observar o
registro de 151 escrituras e procurações de compra e venda para a segunda metade do século

APEB. Tribunal da Relação. Série: Inventários. Inventariado: José Antônio da Silva Castro. Classificação:
105

03/1021/1490/01, 1844.
110

XIX. Em relação ao número de alforrias, computaram-se, para o mesmo período, 100


alforrias.
Tabela 14 – Origem e gênero dos alforriados em Monte Alto – 1850 a 1888106

Origem Homem % Mulher %


Africano 08 15 03 06
Crioulo 07 14 17 36
Cabra 03 06 11 23
Preto 04 08 04 08
Pardo 03 06 03 06
Mulato 07 14 02 04
Não declarado 19 37 08 17
Total 51 100 48 100
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias laranjeira – Palmas de Monte Alto. Livros de notas e inventários de 1850
a 1888.

Os números são relativamente baixos se compararmos aos encontrados por


pesquisadores das regiões de Caetité e Rio de Contas:
- Erivaldo Fagundes Neves (2000), com 686 cartas de liberdade, entre os anos de 1840 e
1879;
- Maria de Fátima Novaes Pires (2009), com 407 alforrias, entre os anos de 1870 e 1888;
- Kátia Lorena Novais Almeida (2012, p. 134), com 1.777 cartas de alforrias para o período
de 1800 a 1888.
Presumivelmente, os números para Monte Alto foram bem maiores se considerarmos a
posse cativa disponível nos inventários post mortem. As razões para tal desproporção podem
ser explicadas pelo comércio interno de compra e venda de cativos na região, com lucros
elevados, dificultando a concessão das alforrias, uma vez que os senhores resistiram em
alforriar seus escravos, pois estavam envolvidos no seu lucrativo comércio de compra e
venda.
Além disso, deve-se levar em conta acentuada economia de abastecimento, com
lavouras de algodão e pecuária indicando que, para senhores de Monte Alto, o trabalho cativo
era fundamental no desempenho daquelas atividades, mesmo na segunda metade do século
XIX. A outra hipótese é a de que Monte Alto, ao longo do século XIX, passou por mudanças

Conforme Hebe Mattos, “os termos „negro‟ e „preto‟ foram usados exclusivamente para designar escravos e
106

forros. Em muitas áreas e períodos, „preto‟ foi sinônimo de africano, e os índios escravizados, de „negros da
terra‟.” (MATTOS, 2000, p.17). Entretanto, o que se observou para Monte Alto é que o termo “africano”
relacionava aos escravos provenientes do tráfico atlântico, especialmente, aqueles que entraram na região a partir
de 1831, tática usada para camuflar o comércio clandestino, pois não identificava o lugar de origem da África. Já
o termo “preto”, de acordo documentação analisada, só aparece a partir da segunda metade do século XIX,
sugerindo influência do racismo científico. Vale ressaltar que a compreensão dessas categorias no Alto Sertão
ainda não foi explorada com mais afinco por estudos historiográficos.
111

de comarcas, pois ora pertencia a Macaúbas, Santo Antônio do Urubu, Caetité e Carinhanha, e
ora recriava a sede jurídica na própria vila. Essa alternância de Comarcas pode ter extraviado
documentos. Portanto, teremos aqui apenas amostra das alforrias que foram encontradas nos
livros de notas e inventários, disponíveis no Fórum daquela localidade.
A incidência de manumissões compradas ou condicionais com pecúlio, especialmente
em grandes propriedades, pode ser verificada no Gráfico 3 a seguir107.

Gráfico 3 – Amostra de alforrias entre grandes, médios e pequenos proprietários no termo de Monte
Alto108

Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série: Inventários: 1820 -
1889. Livros Notas, século XIX.

O número correspondente a 56% de alforrias concedidas mediante pecúlio em grandes


propriedades revela o quanto escravos estavam atentos à iminente possibilidade de venda de si
e dos seus para outras regiões, por isso valeram-se de esforço pessoal e coletivo redobrado

107
Sharyse Piroupo do Amaral, analisando cartas de alforrias em Cotinguiba - Sergipe concedidas entre 1860 e
1900, classificou as alforrias compradas como “qualquer alforria concedida pelo senhor mediante recebimento
de algum valor em dinheiro ou em mercadoria”, inclusive aquelas em que o senhor cobrava valor abaixo do
mercado. As cartas condicionais, a autora definiu como toda alforria em que o escravo prestasse algum tipo de
serviço ou dinheiro ao senhor. E as incondicionais, foram aquelas que dispensavam qualquer tipo de obrigação,
fosse em serviços, fosse em dinheiro (AMARAL, 2012, p. 246). Por sua vez, Kátia Lorena Novais Almeida
definiu, para Rio de Contas, na Bahia, da seguinte forma: Incondicionais, as alforrias pagas em dinheiro ou
espécie de acordo com o valor do mercado. As “pagas condicionais”, quando o escravo, além de pagar em
dinheiro, ainda ficava na dependência das condições estipuladas pelo senhor. E, por fim, as alforrias “não pagas
condicionais”, quando isentavam o cativo de dinheiro, porém ele ficava na condição de prestar algum serviço
para o senhor. (ALMEIDA, 2009, p.166). Sobre tipologias de alforrias, ver também Maria de Fátima Novaes
Pires (2009, p. 74). A partir dos três conceitos, optou-se pelo modelo que Sharyse utilizou para Sergipe,
principalmente quanto às alforrias pagas, já que a maioria das alforrias para Monte Alto envolvia pecúlio.
Foram utilizadas para realização do gráfico apenas 97 alforrias registradas em livros de notas e inventários
108

post mortem do termo de Monte Alto, as outras três também são de Monte Alto, mas pertencem ao livro de
tabelionato da Freguesia do Gentio, que pertencia a Monte Alto naquela época.
112

para conseguir comprá-las – esforço que também perpassava por articulação de interesses
senhoriais.
Os negócios do tráfico interno foram altamente lucrativos e intensos na região,
levando senhores a desfazerem-se de seus cativos, antes e depois da Lei de 1871. Por outro
lado, as cartas de alforria com pecúlio de Monte Alto demonstraram escravos inseridos na
economia da região, com perspectivas de melhorar suas vidas distante do cativeiro. Kátia
Lorena Novais Almeida (2009), examinando cartas de alforrias para Rio de Contas, no século
XIX, mostrou que, embora esse tipo de documento não evidenciasse os caminhos pelos quais
os cativos perpassaram para amealhar pecúlio, o ato em si do pagamento é indicativo de que a
economia da região estava em constante movimento, ao ponto de escravos e forros
vislumbrarem essa possibilidade (ALMEIDA, 2007, p. 163-186). Ressaltou a autora que, no
início do século XIX, o Alto Sertão baiano integrou a economia de abastecimento regional e
inter-regional, sendo o algodão, a pecuária e os gêneros alimentícios as principais atividades
produtivas que dinamizaram o comércio.
Essa integração justifica, em parte, a disponibilidade da mão de obra cativa
disseminada em variadas unidades de produção e explica, também, o número de alforrias
alcançadas mediante a compra, “pois uma economia em franca decadência, impossibilitaria
aos escravos acumularem pecúlio e comprarem a alforria” (ALMEIDA, 2009, p. 167).
O pecúlio sempre foi uma prática comum adquirida pelos escravos em suas
negociações com senhores, para a obtenção da alforria. Essa prática, bastante difundida nas
relações costumeiras, se intensificou a partir da segunda metade do século XIX e se tornou
legal com a Lei de 1871, conturbando a autoridade senhorial. Assim, alguns cativos recorriam
à Justiça para formalizar seu pedido de alforria mediante a compra, não só porque desejavam
legalizar o ato em si, mas por receio de que os herdeiros descumprissem o acordo
anteriormente realizado com seu senhor (SILVA, 2000, p. 53).
Essa estratégia foi utilizada pelo casal de escravos Bernardino e Maria, ambos em
idade avançada para os padrões de mercado daquela época. Bernardino tinha 62 anos,
profissão carpina, e foi avaliado em Rs.200$000, sua mulher Maria, 50 anos, avaliada em
Rs. 100$000. Os dois escravos entraram com petição no ato da partilha dos bens de seu
senhor, João José de Oliveira, requerendo carta de liberdade mediante compra. O casal de
escravos permaneceu na Fazenda Campos durante anos e somente em 1855, após o
falecimento do seu senhor, ofertaram aos herdeiros os respectivos valores pela
113

manumissão109. Esses pedidos formais de alforria mediante pecúlio, no momento da partilha


em inventários de grandes senhores, sugerem a existência de acordos preestabelecidos entre o
senhor e o escravo.
Contudo, após a morte, esses acordos poderiam ser rompidos por herdeiros
ambiciosos, fato que alteraria as relações de trabalho e convivência entre os escravizados. Se
os escravos jovens eram os mais cotados para o tráfico, devido à procura do mercado por esse
perfil, os escravos mais velhos também sofriam com os impactos do tráfico, na medida em
que poderiam ser redirecionados a trabalhos mais pesados para atender às demandas das
fazendas. Fica evidente que, ao formalizarem seus pedidos de alforria à Justiça, após anos de
convívio na propriedade, Bernardino e Maria sabiam que era preciso apresentar diferencial na
lida com as atividades e demonstrar plena confiança perante seu senhor, sendo, desta forma, o
pecúlio acumulado resultado de muito esforço pessoal e familiar para alcançar a liberdade,
mesmo que precária.
No sertão do São Francisco, especificamente na freguesia de Santo Antônio do Urubu
de Cima, Napoliana Pereira Santana (2012) identificou cativos inseridos na economia da
região, entre 1840 e 1888, século XIX, com certo grau de autonomia “para cultivar, naquelas
terras, pequenas lavouras destinadas ao próprio consumo e, provavelmente, negociavam, em
tempos de prosperidade, os excedentes de suas produções” (SANTANA, 2012, p. 175). Além
das roças, a autora mostrou escravos vaqueiros conseguindo pequenas economias com
participação “no sistema de sorte ou giz” e, com os ganhos do gado, podiam convertê-los em
pecúlio e comprar a alforria. O personagem Braz foi um daqueles escravos que adquiriu a
alforria mediante a compra, cujo valor, provavelmente, foi oriundo da porcentagem que
recebera na lida e produção do gado de seu senhor. Salienta a autora que a “qualificação
profissional” de vaqueiro o colocava em condição hierárquica em relação aos demais
companheiros de senzala, assim como lhe proporcionava maior confiança na relação com seu
senhor e elevava o seu valor no mercado.
Nos engenhos do Recôncavo da Bahia, B. J. Barickman (2003), ao estudar a região,
percebeu cativos inseridos nas economias de abastecimento, envolvidos desde a formação de
roças à comercialização dos produtos cultivados. É claro que, para isso, precisaram manter
certa relação de confiança com seus senhores, sabendo dos limites impostos. Contudo, mesmo

109
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto. Inventariado: João José de Oliveira,
1855.
114

sendo escravos, não hesitaram em negociar, vislumbrando possibilidades dentro e fora do


cativeiro, sendo a alforria uma delas.
Os indícios de uma pequena economia escrava evidenciada por Barickman (2003)
também foram notados por Walter Fraga (2014, p. 37-39) na mesma localidade, afirmando
que escravos “desenvolveram atividades independentes e alternativas na grande lavoura de
cana”. Eles criaram animais, como gado vacum, galinhas, porcos, “para consumo próprio e
para a venda”. O acesso à pequena economia, mesmo sob a concessão de senhores, implicava
possibilidades no alcance à alforria. Geralmente, cativos produziam nas terras do senhor, mas
existiam outras práticas de pequenos negócios considerados clandestinos, que poderiam
resultar em punições severas aos cativos, por serem vistas como atos de transgressão,
desencadeando conflitos entre senhor e escravo (FRAGA, 2014, p. 40).
Correlacionando os estudos mencionados, semelhantes em vários lugares da Bahia e
do Brasil, é possível estabelecer certa conexão com as cartas analisadas sobre Monte Alto. A
leitura que emerge das manumissões referentes ao período do século XIX mostrou práticas
costumeiras efetuadas entre cativos e senhores, das quais os primeiros lograram algumas
vantagens nas negociações. Quando esses acordos saíam dos limites estabelecidos,
principalmente no contexto da segunda metade do século XIX, a despeito das leis
abolicionistas e das ameaças do tráfico interno, muitos escravos recorriam aos tribunais para
validar a legalidade dos costumes antes adquiridos. Na sequência, apresentam-se outras
movimentações de cativos que tiraram vantagens das relações constituídas com seus senhores,
a fim de conquistar suas alforrias em Monte Alto.
Em 1845, na Fazenda Lameirão, pertencente ao Capitão Joaquim José Barbosa, genro
de José Antônio da Silva Castro, arrolaram-se 117 cativos destinados às diversas ocupações
na fazenda, assim como um monte-mor de Rs. 82: 296$530. Nazária era escrava daquele rico
fazendeiro, casada com o liberto Francisco, cabra, vaqueiro da mesma fazenda, com 50 anos
de idade e doente, conforme consta na lista nominativa das escravarias. Por intermédio do
marido, pleiteou a alforria no momento da partilha dos bens do finado. Constou no livro de
casamento da freguesia de Monte Alto que Francisco era natural de Rio de Contas e Nazária,
natural de Monte Alto, confirmando união estável em 1849, na Matriz de Nossa Senhora Mãe
de Deus e dos Homens de Monte Alto110.

Diz Faustino Mor-ª Castro, tutor de suas sobrinhas, filhas do Cap.ᵐᵒ Joaquim
José Barbosa q‟ havendo tocado em legítima de sua tutellada de nome Elvira

110
Arquivo da Cúria da Paróquia de Santo Antônio – Guanambi/Bahia. Livro de casamento de Monte Alto,
1840-1862.
115

uma escr-ª de nome Nazária, já velha, e avaliada por trezentos e cinquenta


mil reis, sucede que o marido da referida escr-ª a queira liberta, offerecendo
em troca da liberdade dela uma outra escr-ª de nome Marcolina, boa
cozinheira e lavadeira sem vício algum, e q‟ uma semi troca seja vantajosa
p-ª a tutellada do suplicante em rasão da escrava Nazária, além de velha ter
ataque de pensamento que lhe priva prestar os serviços, e a Marcolina dada
em troca ser sem ataques, e estar pela idade em estado de parir, e requer que
o Juiz d‟ rphãos deste termo a anos esteja ans- (sic.) no de Carinhanha,
vem o Supp. requerer a V.S. como provedor em correção seja serv.ᵒ admitir
a dita troca e dar licença ao Supp. para poder fazer, visto q‟ della resulta
vantagem a sua tutellada e ao mesmo tempo em favor da liberdade. É isso.
Villa de Monte Alto, 05 de julho de 1851111.

Francisco, companheiro de Nazária, provavelmente gozava de condição privilegiada


como vaqueiro e liberto, presumindo-se, assim, que foi retribuído pelo seu senhor com o
recebimento de algumas reses diante do serviço prestado. Na lida diária com o gado, era
comum que senhores ofertassem aos seus cativos, via prática de quartações – uma forma de
partilha em que, a cada quatro ou cinco animais nascidos na fazenda, fosse recebido um como
recompensa (MEDRADO, 2012, p. 44-46). Maria de Fátima Pires (2009, p. 155-156) acredita
que essa prática permitiu que vaqueiros acumulassem pequenas economias e conseguissem
ascensão social entre os demais trabalhadores, além de agregar valor monetário, que também
servia como distinção social entre seus pares, devido à responsabilidade e conhecimentos
exigidos.
Francisco chegou, inclusive, a possuir alguns escravos, como a cativa Marcolina,
oferecida em troca da alforria de sua mulher. No documento, o tutor dos órfãos considerava
vantajosa a permuta proposta pelo liberto, uma vez que a escrava Marcolina era dotada de
“boas qualidades” como cozinheira, lavadeira e sem vício algum, além de seu interesse pela
reprodução natural que a jovem escrava poderia render, principalmente em um contexto de
valorização do escravo, frente às demandas da região Sudeste. Por outro lado, a negociação
também beneficiaria o liberto Francisco, por atender à pretensão de liberdade da sua
companheira112.
O processo de partilha dos bens inventariados levara vinte anos, sendo concluído em
1865, sem constar se o pedido da barganha chegou a ser realizado. Provavelmente, o juiz
deferiu a petição requerida, visto haver consentimento entre as partes e o tutor alegava
vantagens na troca das escravas. Entretanto, o que a petição demonstrou eram as possíveis
relações entre senhor, escravos e libertos, para conciliar interesses entre a liberdade e a
111
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventariado: Capitão
Joaquim José Barbosa e Carolina Sofhia Moreira de Castro. N. 025, 1845, p.174.
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Inventariado: Capitão
112

Joaquim José Barbosa e Carolina Sofhia Moreira de Castro. N. 025, p. 174, 1845.
116

propriedade. Com a morte do senhor, Francisco se deparou com o imprevisível destino de sua
companheira, por isso, conclamou a Justiça para mediar a negociação da alforria com os
herdeiros, antevendo as dificuldades que poderia enfrentar.
No desenrolar daquelas ações de partilha, cativos percebiam espaços para conquistar
algumas vantagens, como alforria, casamentos e ascensão em ocupações exercidas nas
fazendas. Ricardo Tadeu Caires Silva, ao estudar vilas localizadas no sul da província da
Bahia, chamou a atenção para um aspecto importante nas negociações entre senhor e escravo
na aquisição da alforria. Segundo o autor, essas negociações estavam pautadas, muitas vezes,
no consentimento do seu senhor, cuja relação de dependência resultava “na perspectiva de que
o esforço pessoal [do escravo] podia valer a pena” (SILVA, 2007, p. 22).
O historiador João José Reis (2016), ao descrever e analisar minuciosamente a vida do
escravo Manoel Joaquim Ricardo, que se tornou rico e liberto na Bahia na primeira metade do
século XIX, destacou alguns casos de cativos que alcançaram ascensão social e se tornaram
senhores de outros escravos. No entanto, sinaliza que a prática de escravos adquirirem outros
escravos e os usarem como moeda de troca para a compra da alforria perpassava pelas
relações estabelecidas com seus senhores, necessárias à ascensão social (REIS, 2016, p. 40).
Em Monte Alto, essas relações também pareciam comuns e, algumas vezes, ultrapassaram o
plano da “convivência harmoniosa”. Os cativos estavam atentos às conjunturas locais e
sabiam, com astúcia, organizar mecanismos de ganhos para si e seus companheiros de
senzalas.
Outra situação de escravo pleiteando a compra da alforria perante a Justiça foi a do
cativo Manoel, de 70 anos, viúvo, feitor da Fazenda Lameirão, que pedira, no momento da
partilha dos bens, a alforria, argumentando ter sido sempre vontade de sua esposa, já falecida.
O juiz aceitou o pedido, concedendo-lhe a liberdade113. A condição de escravo feitor em
propriedades de grande porte sugere que não era “figura ausente” para a localidade. Ser feitor,
vaqueiro, ferreiro, sapateiro, cozinheira, dentre outras ocupações, reforça o argumento de que
exercer função especializada em grandes propriedades hierarquizava e possibilitava algumas
vantagens na ascensão social dentro do cativeiro, ampliando as chances de conseguir alforria.
Como já dito em outras passagens deste texto, essas hierarquias alcançadas pelos
escravos faziam parte de um “campo de força e favor” nas relações construídas com seus
senhores. E aqueles escravos que avançavam no campo do favor ampliavam suas expectativas
em termos de mobilidade social, de teias de relações e do acesso à alforria, porém, como

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Inventariado: Capitão
113

Joaquim José Barbosa e Carolina Sofhia Moreira de Castro. N. 025, p. 174, 1845.
117

afirma Robert W. Slenes (2010), quanto mais esses cativos se aproximavam da “casa grande”,
maiores eram a vulnerabilidade e imprevisibilidade quanto ao seu futuro.
Um escravo feitor, por mais que devesse favor ao seu senhor cumprindo deveres, não
poderia romper os vínculos com os companheiros de senzala. Mesmo ciente de que a função
de feitor poderia lhe render vantagens, como a alforria, muitos daqueles cativos no exercício
de ocupações importantes mantinham também relações com seus companheiros de senzalas e
não se apartaram deles, porque sabiam o quanto esses laços eram fundamentais para a vida em
cativeiro, como depois de alforriado (SLENES, 2010, p. 280). Não resta dúvida de que o grau
de relação mantido com o senhor proporcionaria algumas hierarquias a partir das ocupações
exercidas e podiam, inclusive, contar com maior permanência nos espaços das grandes
fazendas. Em outras palavras, as ocupações exercidas no âmbito das grandes propriedades
forneciam a cativos maiores chances de permanência ao lado de seus familiares, condição
imprescindível para projetar ganhos econômicos e obter a alforria. Esses escravos podiam
contar com alguma mobilidade social, tendo em vista as dinâmicas produtivas das
propriedades, diferente dos cativos de pequenos senhores, que se deparavam constantemente
com a imprevisibilidade.
Desse modo, conseguir tais vantagens e pleitear a alforria exigia dos cativos esforços
que perpassavam por variada rede de relações e articulações construídas dentro e fora do
cativeiro. Ao acompanhar parte da trajetória de Cesário e Josefa, é possível perceber os
meandros da política do favor entre esse casal de escravos e seus senhores na grande Fazenda
Canabraval, ao longo do século XIX.
Os herdeiros de Joaquim Moreira Prates e sua esposa Ignácia da Silva Prates
mantiveram a Canabraval por todo o século XIX. Na identificação de três inventários da
referida fazenda em momentos diferentes – 1835, 1847 e 1866 –, em todos se observou um
número significativo de escravos disseminados pela propriedade. Em 1835, a fazenda
pertencia ao grande fazendeiro Joaquim Moreira dos Santos, cujo monte-mor foi avaliado em
Rs. 72:899$559. No mesmo ano, o escravo Cesário, mulato de 35 anos, fora avaliado por
Rs. 400$000 e, em 1847, em outro inventário, quando do falecimento de Ignácia da Silva
Prates (esposa do primeiro inventariado, em 1835), esse continuava na fazenda e estava
casado com Josefa, crioula, avaliada em Rs. 500$000114. Em 1866, o casal de escravos
pertencia ao Major Manoel Moreira da Trindade, herdeiro da mesma fazenda e, quando este
faleceu, Cesário requereu de Dona Leonarda da Silva Prates (cabeça do casal), a compra da

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventários.
114

Inventariado: Inácia da Silva Prates. Mç: 08, n. 21, 1847.


118

alforria. Naquela época, apresentava-se com 66 anos e especializado em atividades da


fazenda, como vaqueiro, e ela, costureira, com 45 anos, avaliada em Rs. 700$000. Cesário
adquiriu a alforria no mesmo ano em que a requereu, conforme sinalizou sua senhora “em
vista dos bons serviços prestados” e com consentimento dos demais herdeiros. O casal tivera
uma filha, de nome Valéria, avaliada em Rs. 150$000115.
Ao permanecer por mais de 30 anos na propriedade, Cesário adquiriu, no desempenhar
de sua função, uma relação de proximidade e consequente espaço para pleitear a alforria.
Embora tenha servido à família durante anos, a concessão se deu mediante compra, no ano de
1866. Na trajetória de Cesário, é possível perceber muito esforço para alcançar o ofício de
vaqueiro, juntando quantia suficiente para comprar sua manumissão, isso em meio a um
contexto de ampla valorização da mão de obra cativa diante do tráfico interno. Cesário
necessitou de soma combinada de interesses com seu senhor, já que a alforria “era um
documento com força legal assinado pelas partes envolvidas e com testemunhas” (RUSSELL-
WOOD, 2005, p. 59).
Constou ainda, no inventário daquela fazenda, que os escravos Maria Francisca, cabra,
58 anos de idade, Rs.100$00, Jacinto, africano, 57 anos, Rs. 300$000 e Rita, crioula, 54 anos,
Rs. 100$000, compraram suas alforrias. Em situação ainda mais complexa estava a escrava
Angélica, africana, que também recorreu a petições no espólio da grande Fazenda Canabraval,
no ano de 1847. Ao encaminhar o pedido, declarou sofrer enfermidade crônica e não suportar
o cativeiro, “ainda que muito brando”, motivo pelo qual deixou de ser avaliada durante os
autos de inventário de sua senhora Ignácia da Silva Prates. Angélica fora recusada pelos
avaliadores de estabelecer valor por sua pessoa porque era considerada doente, sendo esta
uma prática comum nos inventários analisados quando escravos apresentavam enfermidades
crônicas, já que, nessas condições, atribuía-se invalidez. Foi oferecida “por sua liberdade”,
porém, a quantia de Rs. 40$000, único dinheiro que possuía116.

Diz Angélica, africana, escrava do casal da falecida D. Ignácia da Silva


Prates que tendo tido a supp. presente aos avaliadores para lhes darem um
valor no inventário a que está procedendo, estes nenhum lhe darão em razão
do seu estado de enfermidade crônica e que a supp. queira se libertar não só
por este solícito desejo de toda a pessoa sugesta como a mesma possui
estado crônico de enfermidade e não lhe permitir suportar o cativeiro ainda
q muito brando, vem perante V.S. offerecer por sua liberdade a quantia de
quarenta mil reis, único dinheiro que possui a supp. e q oferece em troca da

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventários.
115

Inventariado: Major Manoel Moreira da Trindade. Mç: 17, n. 304, 1866.


116
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventários.
Inventariada: Ignácia da Silva Prates. N. do processo: 021, 1847, f. 28.
119

sua liberdade: A supp. requer e // digam os interessados e o curador do


menor.
Canabrabal, 14 de maio de 1847. V. S. se digne deferir mandando juntar esta
aos autos do inventário passando-lhes a carta de liberdade e depositando a
quantia oferecida de que assino a rogo de Angélica Affricana.

A angústia vivenciada por Angélica na busca pela alforria, valendo-se, inclusive, da


menção ao cativeiro como “brando”, é reveladora da dificuldade em alcançá-la, mesmo
estando doente, além de revelar a insegurança que esses cativos enfrentavam diante da
possibilidade de venda. A recusa de sua avaliação dificultaria o alcance da alforria, por isso,
utilizou a estratégia de oferecer todo o pecúlio acumulado para compra, ao tempo em que
reconheceu sua importância, resistindo a manter-se no cativeiro.
A política de domínio senhorial podia ser ardilosa, tanto nas relações costumeiras,
como perante a Justiça, não medindo esforços para que seus interesses fossem preservados, o
que dificultava a consecução da alforria. Entretanto, no convívio cotidiano, cativos puseram
em prática negociações que conduziram a projetos de vida, a exemplo da alforria, valendo-se
de variadas estratégias, inclusive recorrendo à Justiça como forma de legalizar formalmente
seus pedidos, quando se sentiam injustiçados.
Assim, os casos analisados sugerem que escravos do termo de Monte Alto atuaram
com proeza na compra de suas alforrias, quer via hierarquias mediante ocupações exercidas,
quer no acesso à produção agrícola nas propriedades dos seus senhores ou de terceiros. Na
iminência do tráfico interno, em que o preço do cativo na região encontrava-se em alta,
moveram tudo o que fosse possível para acumular o valor do mercado e comprarem suas
manumissões. Nem todos os cativos puderam contar com a mesma oportunidade. Muitos se
desvencilharam do cativeiro onde viviam com familiares, com vínculos étnicos de
pertencimento, para, de forma compulsória, seguir os trânsitos do tráfico. Vale ressaltar que o
alcance às manumissões era desejo de todos os cativos, fossem eles de grandes, médias ou
pequenas propriedades, no entanto, foi justamente em grandes unidades que se observaram
escravos obtendo mais alforria e estabilidade familiar. As alforrias não eram gratuitas, salvo
algumas exceções, e grande parte delas era adquirida por compra, o que exigia, além da
potencialidade produtiva da fazenda, empenho e astúcia redobrada dos escravos para
alcançá-las. Se, para o cativo de grande propriedade, mesmo com a potencialidade produtiva
das fazendas, os senhores dificultavam em concedê-las, que dirá cativos de pequenos
senhores, principalmente por se tratar de uma região fortemente marcada pela atuação do
tráfico interno.
120

3.3 Tráfico interno e (des) arranjos familiares em grandes propriedades

O tráfico atlântico e o interprovincial permitiram lucros vantajosos para os grandes


proprietários e negociantes do termo de Monte Alto e, ao mesmo tempo, provocaram
desespero nas famílias de escravizados, ex-escravos e libertos que tentaram, a todo custo,
impedir que famílias fossem arrancadas das vivências com companheiros do cativeiro, no
sertão baiano. O inventário do Dr. Capitão Antônio Pereira de Castro, em 1870, ilustra as
“vidas partilhadas” de muitas famílias escravas, assim como a precarização da liberdade
frente às fissuras que se estabeleceram com a Lei de 1871117.

Arrematação de escravos: Diz João Pio de Souza Lima que tendo de se


proceder a partilha dos bens deixados por seo finado filho Antônio Moreira
de Castro de Lima em cujo inventário figurão dívidas que para serem pagas
far-se-á preciso deitar em praça os dois escravos de nome Anselmo e André
quer o sulpp que lhe sejão adjudicados os referidos escravos obrigando-se o
supp ao pagamento das respectivas dívidas e para que seja attendido passa a
fazer as seguintes ponderações.
Os referidos escravos são filhos de uma fam escrava pertencente ao supp a q
tem se libertado quase toda a espensas (sic) do pai de‟lla q há pouco acabou
de ser libertada pelo Fundo de Emancipação.
Entretanto esse pai da fa esta e delig ncia de libertar os dois filhos e
não o poder fa er si elles sa re do poder do supp pois que indo a
praça serão arrematados por compradores que os levarão para as
províncias do sul onde se tema impossível ao pai libertá-los qd°
completar a importância do valor dos mesmos.
Portanto espera o supp que Vs em benefício da liberdade tão garantida, hoje
pela lei, e attendendo a que o supp oferece mais sobre o valor do escravo
Anselmo a quantia de 200.000 deixados de lançar sobre o outro por ter sido
avaliado caro, mande adjudicar os referidos escravos ao supp que se obrigará
pelas dívidas...118.

O fragmento acima mostra o desmantelo do tráfico para com uma família de escravos
e libertos no Alto Sertão da Bahia, na segunda metade do século XIX. Nesse caso, trata-se,
especificamente, da arrematação em praça pública, de dois irmãos escravos, André e
Anselmo. Na relação de matrículas do termo de Monte Alto, consta que os cativos eram filhos
de Irineo escravo, e Desidéria, liberta, pertencentes a João Pio de Souza Lima até o ano de
1873. Irineo recebeu alforria por compra, via Fundo de Emancipação, mas seus filhos

117
A expressão “vidas partilhadas” foi retirada do título do artigo de Napoliana Pereira Santana. Vidas
partilhadas: estabilidade familiar escrava no Alto Sertão da Bahia (segunda metade do século XIX). No caso
acima, as vidas partilhadas referem-se à precarização da liberdade no termo da Vila de Monte Alto tanto para a
conquista da alforria como após, quando membros da comunidade escrava, ex-escrava e livres se sensibilizavam
com os que ainda viviam em regime de cativeiro. No exemplo acima, era uma família desesperada com a
possível venda de seus filhos. Dissertação de mestrado defendida no Programa de História Regional e Local.
Santo Antônio de Jesus, 2012. Revista de História, 4,2 (2012), p.63-80. Disponível em:
<http://www.revistahistoria.ufba.br/2012_2/a03.pdf>.
118
Inventário do Dr. Capitão Antônio Pereira de Castro. Fl.33. Ano 1870. Fórum de Monte Alto. Grifos nossos.
121

permaneceram cativos por terem nascido antes da Lei do Ventre Livre, de 1871. Com a morte
de Anna Maria Moreira dos Santos, mulher de João Pio de Souza Lima, em 1873, a família
cativa viu-se fragmentada. Anselmo e André foram doados como dote ao herdeiro Antônio
Moreira de Castro Lima, e Manoel ao herdeiro Pedro de Souza, conforme o diagrama a
seguir.

Figura 7 – Família cativa de Inineo e Desidéria

Desidéria
Irineo (Crioulo)
Liberta em 1873
Senhor : João Pio de Souza
Lima - 1873 Ex- Senhor: João Pio de Souza
Lima

Anselmo (Crioulo - 20 anos) André (Crioulo - 11 anos)


Manoel (Crioulo - 07 anos)
Senhor: Antônio Moreira de Senhor: Antônio Moreira de
Senhor: Pedro de Souza - 1873
Castro Lima - 1873 Castro Lima -1873

Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Série: Inventários. Inventariado: José
Pio de Souza Lima, 1873.

Entretanto, com o falecimento de Antônio Moreira de Castro, a família cativa deparou


com uma situação ainda mais complexa. Diante das dívidas deixadas por esse senhor,
Anselmo e André foram postos para arrematação em praça pública, situação que levou ao
desespero de seus pais, “pois que, indo à praça, serão arrematados por compradores que os
levarão para as províncias do sul”. Por isso, o pai apelou formalmente, comprometendo-se a
pagar a dívida com trabalho redobrado para amealhar pecúlio e assegurar a liberdade dos
filhos. Sidney Chalhoub (2012, p. 259) reitera que o tráfico desestabilizou a organização
familiar de muitos cativos, os quais estavam habituados às práticas de negociação, de drible
ou até mesmo forçadas e aprendidas na luta diária, face aos limites do mundo senhorial.
Em meio à desestabilização provocada pelo tráfico, o plano legal serviu como meio
acionado por cativos para a manutenção da família e da liberdade, “tão garantida hoje pela
lei”. Ireneo conseguiu sua alforria via Fundo de Emancipação por ser casado com uma
escrava liberta e ter filhos, adquirindo prioridades na utilização desse instrumento legal.
Muitos escravos recorriam a essa prerrogativa para obter a liberdade e, ao que parece, foi uma
estratégia bem articulada, em que, nos momentos decisivos da abolição, os vínculos de
solidariedade e cumplicidade tendiam a se fortalecer ainda mais, rompendo com os abusos
senhoriais.
122

A procura por uniões estáveis demonstra o poder de articulação entre cativos que,
historicamente, souberam buscar nesse convívio formas de solidariedade e de apoio mútuo
nas agruras do cativeiro. Nesse sentido, conforme Flávio dos Santos Gomes (2005), nas
últimas décadas do século XIX, existiu um processo de fuga em massa dos escravos nas áreas
urbanas e uma politização dos destinos da sua vida. Não muito diferente foi o abandono de
fazendas por cativos, livres pobres ou libertos, migrando para outros locais distantes do jugo
senhorial, enquanto outros vislumbravam a liberdade e negociavam formas de permanência e
convívio familiar, mesmo que desvinculados do cativeiro (GOMES, 2005).
Assim como se empenharam pela conquista da alforria, encontraram na unidade
familiar outras possibilidades de resistência às condições impostas. As uniões estáveis ou não
no seio do cativeiro apresentavam conotações evidentes de resistência em suas vidas. Isabel
Cristina Ferreira dos Reis (2012, p. 84) conceitua a experiência familiar escrava como toda
forma de união independente do “estatuto jurídico dos indivíduos”, não importando se a união
era legitimada ou consensual, sendo, de fato, indispensável o sentimento de ter uma família e
nela apoiar-se nos momentos de necessidade. Corroborando as ideias de Reis (2012), Raiza
Cristina Canuta Hora (2015), ao estudar casamentos na freguesia da Penha, em Salvador,
entre 1750 e 1810, concluiu que as uniões sacramentadas pela Igreja não eram acessíveis a
toda a população, pois havia questões burocráticas, financeiras e de preceitos instituídos pela
Igreja que impediam tais intentos (HORA, 2015). Mesmo assim, esses obstáculos foram
rompidos, muitas vezes, por boa parte da população de cativos, livres e libertos, os quais
fizeram dos arranjos matrimoniais um “espaço privilegiado para estabelecer e nutrir redes de
sociabilidades” (HORA, 2015, p. 31), ou seja, insere “a família escrava numa perspectiva que
rompe os circuitos da escravidão” (HORA, 2015, p. 16). Para Monte Alto, as uniões
costumeiras ou legitimadas contribuíram para que cativos acessassem a alforria, colaborando
também para resistir às oscilações próprias ao cativeiro.
A autora considera ainda como importantes nas redes familiares as uniões não
consensuais que constituíam maioria naquela freguesia e que, embora houvesse aceitação da
sociedade para esse tipo de união, “a família natural é desprovida de qualquer validade
jurídica, mas tolerada pela sociedade baiana no século XIX” (HORA, 2015, p. 62-63). Sendo
assim, as redes de sociabilidades e laços parentais funcionavam no sentido de ampliar as
possibilidades por melhores condições de vida para si e para os seus. Tais experiências foram
identificadas e compartilhadas entre cativos do termo de Monte Alto em variados momentos
de suas vidas, no decorrer do século XIX, como pontuado na Tabela 15 a seguir.
123

Tabela 15 – Número de casamentos por tamanho de propriedade – termo de Monte Alto, 1810-1880119

Número de
Tamanho da Propriedade Número de Casamentos (%)
Casamentos
Pequeno 03 2,5
Médio 23 19,5
Grande 80 67, 8
Não identificados 12 10,2
Total 118 100
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886. Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte
Alto/BA. Seção: Judiciária. Série: Inventários, 1811 a 1870.

Consta na Tabela 15 o número de 118 casamentos de escravos legitimados pela Igreja


ao longo do século XIX e, desse valor total, 103 das uniões eram de cativos de grandes e
médias fazendas. A incidência desses casamentos, mesmo que considerada baixa em relação à
população absoluta de casados livres do termo de Monte Alto, de 2.546, de acordo com o
censo de 1872, revelou o quanto o sacramento matrimonial poderia ser vantajoso para
escravos e libertos: além de significar maior tempo de permanência nas fazendas, solidificava
os vínculos étnicos e de parentesco entre os companheiros de cativeiro, o acesso à pequena
economia e, possivelmente, a obtenção da alforria.
Em amostra de livros de batismos do termo de Monte Alto, de 1858 a 1863,
registrou-se um total de 524 assentos de batismos, dos quais, 197 se referiam a escravos,
sendo que 194 indicavam filhos de uniões consensuais, constando apenas o nome da mãe. Os
dados mostraram significativa parcela de escravos construindo redes familiares extensas por
meio de união consensual ou legitimada120.
Outras localidades do Alto Sertão também verificaram maior recorrência de
casamentos e estabilidade entre grandes e médias propriedades, apesar de haver uma
predominância de pequena posse escrava. Para Caetité e Rio de Contas, Maria de Fátima
Novaes Pires (2009, p. 166) sugeriu que “senhores mais abastados, aqueles cuja atividade se
dirigia para a pecuária e à comercialização através das tropas e boiadas, conseguiram manter
mais integrados os seus plantéis – inclusive constituídos com famílias – mesmo nos anos

Com base na análise da composição da riqueza no termo de Monte Alto, foram definidos como pequenos
119

proprietários aqueles lavradores, posseiros, roceiros, que contaram com uma modesta mobilização de recursos e
atividades produtivas, computadas num monte-mor de até Rs.5:000$000. Os médios proprietários representam
comerciantes de gêneros agropastoris, cativos e produtos manufaturados, que contaram com o domínio de
extensas propriedades rurais, gado vacum e considerável posse cativa, com fortuna avaliada entre Rs.5:001$000
até Rs. 15:000$000. Já os grandes proprietários se caracterizam como uma elite escravista e latifundiária, que
investiu comumente na posse e comércio de escravos, atividades comerciais e financeiras, grandes extensões de
terra e criação de gado vacum, com fortuna acima de Rs. 15:001$000.
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
120

Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.


124

finais da escravidão”. No Sertão de Cima do São Francisco, no século XIX, Gabriela Amorim
Nogueira (2011) observou, quanto às grandes propriedades dos Guedes de Brito, concentração
de escravos que criaram entre si laços familiares, encontrando 45 registros de casamentos de
escravos e 137 uniões conjugais, indicadas pela filiação dos batizados.
Modo geral, os estudos sobre a família escrava na Bahia indicam baixo índice de
uniões legitimadas pela Igreja, se comparadas às ilegítimas (SCHWARTZ, 1988;
MATTOSO, 1992; FARIAS, 1998; REIS, 2007). Apesar de haver, desde 1720, legislações
que garantissem direito ao escravo de casar, escolher seus pares e permanecer juntos, a saber
– As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Código 1720 –, essas instruções
pouco interferiram nos arranjos domésticos dos escravos, uma vez que “a proteção legal das
famílias escravas só passou a existir no Brasil em 1869” (RUSSELL-WOOD, 2005, p. 250).
Antes desse período, prevaleciam negociações de cunho paternalista entre senhores e
escravos, sendo que esses últimos participavam ativamente de suas escolhas, “afinal, é difícil
acreditar que uma política de casamentos forçados, sem base alguma nos desejos dos
trabalhadores, pudesse ser eficaz” (SLENES, 2011, p. 102). Sendo assim, pode-se dizer que
constituir famílias se destacou como marcador importante na vida dos escravos de Monte Alto
e em outros lugares do Brasil. A Tabela 16 a seguir apresenta a relação entre cônjuges
legítimos e condição jurídica em termo de Monte Alto, entre 1840 e 1886.

Tabela 16 – Cônjuges legítimos por livro X Condição jurídica, termo de Monte Alto, 1840-1886

Condição Total de
Ano
Escravo Livre Liberto SD casados
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1840- 1862 92 1.242 01 66 1401
1862-1875 54 1.152 - 02 1.208
1875- 1886 43 1.434 02 10 1.489
Total 189 3.828 03 78 4.098
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886.

Trilhando pistas dos assentos de casamento e batismo do termo de Monte Alto entre
1840 e 1886, verificou-se que a população era formada por indivíduos diversos na
composição social: escravos, livres e libertos. Apesar de haver números significativos da
população branca e detentores das maiores fortunas, o censo de 1872 demonstrou que a
população livre, em sua maioria, se declarou como parda, constituindo 63% da população
absoluta livre naquele período. Tais números são reveladores de matizes diversos na formação
social daquele lugar, não somente em termos de condição jurídica, como também pela cor.
125

Isso não quer dizer que as marcas das diferenças se atenuaram, mas não dá para negar a
predominância de uma população de cor como consequência das interações sociais. Homens e
mulheres, pardos, mulatos, cabras, africanos e crioulos compuseram o perfil daquela
sociedade.
Desse modo, computaram-se, entre os anos de 1840-1886, 189 cativos casados, entre
homens e mulheres, representando 4,6 % da população absoluta de casados. Já os casados
livres totalizaram 3.823 homens e mulheres. A população absoluta que contraiu matrimônios
legitimados – ou seja, escravos e livres casados – totaliza 4.098 nubentes. Se compararmos a
quantidade de escravos casados com as uniões entre livres, concluímos que o número de
casamentos consagrados pela Igreja entre cativos era relativamente baixo para Monte Alto, no
século XIX.
Quanto à escolha de escravos por seus parceiros, pode-se afirmar que não havia
predileção, ocorrendo, portanto, uniões entre indivíduos de diferentes estatutos jurídicos, pelo
menos, a partir de 1840, período em que se encontraram registros em livros de casamento da
freguesia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens. Embora não tão frequentemente,
escravos casavam com livres e forros. Em 1844, na matriz de Nossa Senhora Mãe de Deus e
dos Homens de Monte Alto, Gregório Ribeiro, cativo, uniu-se à Carlota Maria dos Santos,
forra. No mesmo ano, na freguesia de Riacho de Santana, Francisco José de Souza, livre, filho
legítimo, casou-se com Joanina, escrava de Maria Francisca121.
À medida que decrescia a população escrava na região, nas décadas finais do século
XIX, os registros de casamentos apresentaram maiores incidências dessas uniões mistas. A
atuação do Fundo de Emancipação na região de Monte Alto, a partir de 1871, tinha como
pré-requisito para alforriar pelo Fundo: ser escravo casado, com filhos, cujo parceiro fosse
livre ou liberto122. Com o intuiuto ou não de assegurar preferência frente à liberdade via
Fundo de Emancipação, os matrimônios representaram estratégias e arranjos que foram
elaborados visando conferir sonhos e projetos de vida própria. Soma-se a essa questão a
ampliação da Lei do Ventre Livre, de 1871, de proteger escravos casados e com filhos para
que permanecessem juntos, além das ameaças do tráfico, que, de certo modo, despertavam
nos escravos a busca por parceiros, temendo serem vendidos por seus senhores. Assim, o

121
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1844-1862.
Sobre a atuação do Fundo de Emancipação na Província da Bahia, ver: REIS, Isabel Ferreira Cristina. A
122

família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de
Campinas, 2007; NETO, José Pereira de Santana. A alforria nos termos e limites da lei: o fundo de
emancipação na Bahia (1871- 1888). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2012 ;
126

casamento influía na demanda por melhores condições de vida, inclusive a alforria. E, mesmo
diante da demografia do tráfico interprovincial, na região, escravos, sobretudo de grandes e
médias propriedades constituíram relações familiares estáveis escolhidas, muitas vezes, pelos
próprios escravos, o que permitiu a formação de extensos laços de parentesco, de compadrio e
de fortalecimento de grupos étnicos por gerações entre escravos, livres pobres e forros. Esses
homens e mulheres escravos e libertos ocupavam espaços na dinâmica social do lugar, as
quais se conectavam por redes de solidariedade e proteção, inclusive espiritual.
No que se refere à origem e à cor, os assentos de casamentos também mostraram que
havia leve inclinação dos escravos na escolha de seus parceiros de origem ou grupos étnicos
dentro do próprio convívio. Contudo, isso não era uma regra imposta e, a depender da
situação, essa união acontecia entre parceiros pertencentes a grupos diferentes, conforme
mostra a Tabela 17 a seguir123.
Tabela 17 – Cor dos cônjuges, termo de Monte Alto, 1840-1886

Homens Mulheres Total por cor


Cor/Origem
Abs. % Abs. % Abs. %
Cabra 18 11 29
Parda 04 - 04
Crioula 21 23 44
Africano 07 05 12
Sem informação 45 47 91
Total 95 85 180
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886.

Presume-se, diante dos poucos indícios encontrados, que as uniões mistas, em maior
ou menor proporção, constituíam realidade para Monte Alto, além de evidenciar que as
escolhas não estavam atreladas apenas à vontade senhorial. O senhor podia até manifestar se
deveria ou não consentir na sacralização do casamento perante o padre, mas as fontes indicam
que a escolha dos parceiros era dos escravos, inclusive, de uma propriedade para outra, não
muito incomum, isso valia tanto para os casados legitimados quanto para as uniões não
consensuais.
No ano de 1844, na freguesia de Riacho de Santana, Carlos, filho de Ignácia, cabra,
escravo de Francisco Manoel da Silva Ribeiro, casou-se com uma escrava de Anacleto

123
No entanto, essa questão da cor nem sempre era declarada na hora do casamento e, mesmo as que eram
identificadas, não se pode tomar como certas. A cor e a nação nem sempre correspondiam aos grupos étnicos do
cativeiro e apresentavam-se alternadas a depender do documento e compreensão do tabelião e do responsável
pela Igreja para registrar esses assentos, quer fosse de casamento, quer fosse de batismos.
127

Gonçalves da Costa124. E, no ano de 1886, na matriz de Monte Alto, Domingos, escravo de


José da Costa Santos, celebrou o enlace matrimonial com Benedita, escrava de João Pereira
Teixeira125. Com ressalva de alguns casos citados, a maioria dos matrimônios legitimados
pela Igreja com relação à escolha dos companheiros se dava dentro da mesma propriedade,
sobretudo nas grandes e médias, cuja disponibilidade de parceiros era maior.
A movimentação de cativos via tráfico se intensificou a partir de 1850 entre as
províncias brasileiras, garantindo a continuidade da instituição escravista até o ano de 1888.
Esse contexto criou obstáculos nos arranjos das negociações, alterando as relações entre
senhor e escravo, pautadas em direitos costumeiros. Entretanto, apesar da consequência do
tráfico nas vivências das famílias cativas, é preciso considerar inúmeras iniciativas
empreendidas por aqueles sujeitos na continuidade dessas relações.
A durabilidade das relações verificadas nas médias e grandes fazendas do termo de
Monte Alto representou indício de que a constituição da família escrava, legitimada ou não,
estava imbricada tanto nos projetos dos cativos como nos interesses senhoriais. Embora a
permanência da família nas propriedades perpassasse por negociações, muitos cativos se
aproveitaram de pequenos espaços deixados por seus senhores para prestar queixas das
injustiças com as quais deparavam e, consequentemente, oportunizar maiores perspectivas de
livrar a si e seus familiares do cativeiro. Além disso, os documentos evidenciaram que os
núcleos familiares formados nos espaços das fazendas se mantiveram e sucederam ao longo
dos anos, passando por gerações.
No dia 13 de junho de 1843, depois de conferidas as “canônicas administrações” da
Igreja, de realizado o ritual da confissão, da comunhão, e sem que houvesse “impedimento
algum”, o padre José de Souza Lima compareceu à Igreja Matriz de Nossa Senhora Mãe de
Deus e dos Homens de Monte Alto para confirmar o ato religioso do enlace matrimonial entre
Domingos e Ludivina, escravos da Fazenda Canabraval, pertencente à Dona Inácia da Silva
Prates126. O casal recebeu as bênçãos de núpcias na presença das testemunhas Miguel Araújo
e Manoel da Rocha Pinho, conforme o registro no livro de assento de casamentos daquela
época.

124
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1844-1862.
125
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1865-1886.
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa
126

Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1862.


128

A família de Faustino e Dorotheia, escravos do grande proprietário Joaquim Pereira de Castro,


também foi uma das comtempladas. Esse casal formou vínculos de parentesco que se
estendiam para além da fazenda onde viviam, interações essas que resultaram em negociações
elaboradas pelos cativos com senhores na iminência de construir projetos de vida, com vistas
a melhores condições. Na Figura 8 a seguir, há representação gráfica da família que
permaneceu por mais de quarenta anos na Fazenda Jacaré.
Figura 8 – Rede Familiar de Faustino e Dorotheia

Faustino e Dorotheia
(cabra) 1848

Nicolau - cabra Maria - cabra Auta - cabra Roberto - pardo


Nasc. - 1857 Nasc. - 1858 Nasc. - 1862 Nasc. - 1874

Batizada por Bento


Batizado por José Pires Batizada por Antônio da
Monteiro de Magalhãaes Batizado por Francisco e
(livre) e MARQUEZA Silva Mendes e D. Ana
e D. Emiliana Alves de Ludivina (escravos)
ESCRAVA Pereira Castro
Magalhães Castro

Filho: Alexandre Filho: Jesuíno - preto Filha: Bernarda - parda


Nasc. - 1874 Nasc. 1874 (Ingênuo) Nasc. 1874 (Ingênnua)

Batizado por Apolimarco


Batizado por Faustino e
Pereira da Silva e Eria
Dorotheia
Pereira Marinho

Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de casamentos da Freguesia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1840-1886.
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção: Judiciária. Série: Inventários, 1811 a 1870.

129
130

O casal recebeu os sacramentos em 1848, na propriedade de seu senhor, na Fazenda


Jacaré. Constam, nos livros de batismo de 1858 a 1863, e de 1862 a 1875, quatro filhos do
casal, tendo sido todos batizados no mesmo lugar em que seus pais se casaram. Como se
observa na figura apresentada anteriormente, membros daquela família permaneceram juntos
por longo período, fortalecendo laços consanguíneos, de compadrio e de amizade. A extensão
dos laços familiares se estreitou na medida em que as filhas do casal, Maria e Auta, cabra,
tiveram filhos.
Faustino e Dorotheia presenciaram o nascimento de seus netos, inclusive, batizaram o
neto Alexandre, em 1874, alforriado na pia batismal por ser de ventre livre. Outro aspecto a
ser observado refere-se à recorrência de companheiros do cativeiro como padrinhos de seus
filhos, a exemplo de Francisco e Ludivina, escolhidos por Faustino e Dorotheia para
batizarem o filho Roberto, em 1874, também alforriado na pia batismal. Já o filho Nicolau foi
batizado por José Pires, livre, e por Marqueza, escrava de outro senhor, Antônio Dias da Silva
e Edivirgens Correia de Lacerda127.
Era fato comum escravos mudarem de senhores ao longo de suas vidas, seja pelo ato
da partilha dos bens do falecido, seja pelas vendas efetivadas por senhores, como aconteceu
com a escrava Marqueza. Essa situação não impediu que escravos mantivessem contato com
seus antigos companheiros de cativeiro. Marqueza não só batizou o filho do casal Faustino e
Dorotheia como também criou vínculos com escravos de seu novo senhor. Um olhar atento às
atas de batizandos de Monte Alto, em 1861, aponta que Marqueza apadrinhou Martiniano,
crioulo, filho da escrava Cassemira, juntamente com o escravo Sipião. Naquele dia,
Cassemira levou, ainda, ao batismo seu outro filho, João, crioulo (5 meses), sendo padrinhos
Joaquim de Souza Matos e Francisca da Silva.128 A relação de Marqueza com outros escravos
mostrou que a divisão da convivência mútua no cativeiro era rotina na vida de subalternos,
mas não impediu que vínculos de pertencimento e de amizade continuassem existindo, como
lembrou Ivanice Teixeira Silva Ortiz (2014, p. 44): escravos encontraram brechas para visitar
“parentes residentes em outras propriedades diferentes da sua” e, nesse caso, Marqueza
representou exemplo dessa mobilidade, ao circular por vários espaços da fazenda, inclusive de
outros senhores.

Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
127

Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863, 1862-1875.


Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
128

Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.


131

A ligação nominativa entre inventários, livros de notas, batismos e casamentos sugeriu


que, na trama do compadrio, ficou confirmada relação de proximidade, solidariedade e
proteção necessária ao amparo das diferentes situações vivenciadas no cativeiro. Dessa forma,
as atas de batismo do termo de Monte Alto indicam que os escravos construíram laços e
vínculos com escravos, senhores, libertos e livres, inclusive de fazendas adjacentes, assunto
este que será melhor debatido no tópico seguinte.
Perseguindo a trajetória de Dorotheia e Faustino, é possível perceber que o casal
vivenciou situações diversas advindas do comércio de escravos que impactaram a vida em
cativeiro, principalmente no que se refere à manutenção da unidade familiar na segunda
metade do século XIX e o alcance da alforria. Entretanto, apesar da dependência da mão de
obra escrava e da recusa da elite agrária em extirpar o cativeiro, direcionando-se sempre para
a continuidade e a prorrogação da abolição, foi no século XIX que se expandiram as
possibilidades de cativos reunir condições e acionar a Justiça para negociarem suas alforrias
(GRINBERG; PEABODY, 2013, p. 106). A documentação analisada para o termo de Monte
Alto não difere dessa perspectiva, senhores relutaram em conceder alforrias e não hesitaram
em recorrer a processos impetrados por seus escravos.
Baseando-se nos estudos de Robert W. Slenes e Robert Conrad, Richard Graham
(2002) estimou que, após a suspensão do tráfico atlântico, em 1850, cerca de 10 mil escravos
foram comercializados por ano via tráfico interno, correspondendo a 200 mil escravos
comprados e vendidos entre as províncias do Império do Brasil, na segunda metade do século
XIX. Robert Conrad conclui que esse número pode ter sido o dobro dos valores estimados por
Slenes. Para o autor, a falta de dados censitários no Brasil impossibilita cifras exatas da
dimensão quantitativa do tráfico interno, mas é certo que contribuiu para a derrocada da
escravidão no Brasil, acelerando a luta pela abolição, principalmente por parte dos cativos,
que resistiram aos desarranjos familiares por meio de ações mais diretas, desestabilizando o
poderio senhorial, complementa Richard Graham (2002, p. 121). Para Ricardo Tadeu Caires
Silva, “a partir de 1870, a Justiça passou a ser um instrumento privilegiado para a manutenção
das libertações” (SILVA, 2007, p. 138) e que “as experiências e práticas sociais de resistência
cotidiana dos cativos” foram fundamentais na preservação da família, de seus direitos e dos
laços culturais.
As fontes documentais do termo de Monte Alto sugerem que muitos senhores não se
desfizeram totalmente dos seus escravos, mas, atraídos pela oferta vantajosa dos senhores das
províncias do Sul e Sudeste, viram no tráfico interno formas de auferir altos lucros.
Paralelamente ao lucro, havia, ainda o desespero de perderem os investimentos feitos na
132

compra dos seus escravos, frente às pressões das leis abolicionistas e da resistência cotidiana
de cativos. O tráfico dificultava a concessão das alforrias e a manutenção da integralidade das
famílias e, diante dos obstáculos enfrentados, os escravos intensificaram ações mais diretas no
empenho daquilo que consideravam direitos, inclusive acionando a Justiça para formalização
de seus pedidos de alforrias, como vimos na história da escrava Inês, no segundo capítulo
desta tese, e de tantas outras histórias analisadas aqui.
Assim, a família de Dorotheia e Faustino deparou com situações de impasses entre a
escravidão e a liberdade. De um lado, as leis abolicionistas abriam perspectivas de alcance da
alforria, de outro, se viam ameaçados frente à vigência do tráfico interno. No ano de 1881,
uma filha do casal, Auta, mãe de duas ingênuas e ainda pertencente à família Castro, foi
vendida, juntamente com seus filhos, para o Major Alberto Moreira Castro, negociante e
morador da cidade de Lençóis, na Bahia. A Lei do Ventre Livre, de 1871, resguardava o
direito da mãe em permanecer ao lado dos filhos menores de 12 anos, entretanto, não se sabe
se após a venda essas garantias foram, de fato, asseguradas. O tráfico interno abalou a
estrutura familiar, rompendo com os arranjos simbólicos, rituais e de solidariedades
estabelecidos no cativeiro129.
Considera-se, ainda, que vínculos de amizade e afetividade da extensa família de
Dorotheia e Faustino não se restringiram aos laços consanguíneos. A trajetória de Marqueza,
madrinha de Nicolau, filho do casal de escravos, evidenciou as diversas nuances com que se
deparavam os cativos. Marqueza nascera na Fazenda Jacaré, em 1849, mesmo lugar em que
vivia a família de Dorotheia e Faustino. No ano de 1857, pertencia a Antônio Dias da Silva e
à sua mulher Edvirgens Correa de Lacerda, moradores do distrito de Boqueirão das Palmeiras,
termo de Monte Alto. Os acervos históricos indiciam que Marqueza, mesmo pertencendo a
outro senhor, não perdeu o contato com os companheiros da senzala onde nasceu e,
certamente, circulava naquele espaço. Não foi por acaso que Marqueza foi escolhida para
fazer parte do círculo de convivência de Dorotheia e Faustino130. A história de Marqueza será
retomada no último capítulo desta tese. A escrava recorreu aos tribunais de Monte Alto para
manutenção da liberdade, devido à tentativa de reescravização por parte dos herdeiros após a
morte de seu senhor.

Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Livros de Notas, século XIX, 1881.
129

Documentação não Catalogada.


Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção: Judiciária. Série: Inventários, 1811 a
130

1870. Inventariado: João Pereira de Castro, Mç: 9, 1849; Inventariado: Estevão da Silva Pimentel, Mç: 13,
1857;Inventariado: Antônio Dias da Silva, Mç 18, 1867.
133

Ser cativo de grandes e médias propriedades de Monte Alto implicava oportunidades


na estabilidade familiar e no alcance da alforria. A capacidade produtiva e o tamanho da posse
escrava verificada naqueles espaços possibilitavam ampla rede de convívio e,
consequentemente, formação de laços familiares duradouros. Embora a família trouxesse
vantagens, se relacionarmos a política de domínio dos senhores aos projetos dos escravos,
este(s), “ao avançar [em] no caminho do favor, ficava [m] cada vez mais vulnerável [éis], pois
tinha [m] mais a perder” (SLENES, 2010, p.276). Apesar disso, sabemos que a família foi
muito importante na vida de escravos, inclusive por impulsionar suas alforrias, e se tornou
ainda mais significativa com a intensificação do comércio de escravos, ameaçando a vida de
todos aqueles que serviam (direta e indiretamente) a grandes, médias e pequenas propriedades
(GONÇALVES, 2017, p. 264).
A especialização em determinados ofícios foi também um diferencial nas relações
entre senhores e escravos, resultando (em muitos casos) em estabilidade familiar e no direito
de juntar pecúlio para compra da alforria. Essas experiências cotidianas resultantes do “campo
do favor” favoreciam, sobretudo, a cativos que mantinham maior contato com os seus
senhores.
As experiências de escravos mencionadas ao longo do texto indicam que cativos
construíram mecanismos de negociação e redes de relações nos espaços de convivência do
cativeiro. As fontes eclesiásticas (assentos de casamento e batismo), inventários e livros de
notas confirmaram que a vida em família era crucial para amealhar pecúlio e obter a alforria.
Os senhores de grandes propriedades podiam até interferir nesses arranjos, ao criar teias de
dominação e deveres, porém essas intervenções serviam como estímulo para articularem
recriações de padrões de vida, a exemplo dos laços de parentesco e compadrio.

3.4 Uma rede bem tramada: laços de família, compadrio e amizade

(...) Antero - Expliquemos melhor. Admitamos que eu te queira comprar


porque me simpatizei contigo, mas como sei que és um moleque inteligente,
respeito a tua vontade ou, por outra, desejo que me sirvas de boa vontade;
isso não é razão para que sejas grato e me queiras servir?
Francisco – O meu destino é outro.
Antero – É outro o teu destino! Vejamos qual.
Francisco – Tenho de ser liberto.
Antero – É a eterna cantiga! Decerto possuis cabedais, tens dinheiro bastante
para comprar a tua carta.
Francisco – Meu padrinho prometeu alforriar-me.
Antero – Teu padrinho? (zombando) Algum negro velho que possui alguma
roça, cevados e cobres em cumbuca.
134

(GUMES, 1920, p.8).131

Antero e Francisco são dois personagens do drama literário “A Abolição”, do escritor


João Gumes (1920), morador da vila de Caetité, naquela época. Nele, Gumes estabelece
diálogo entre o comprador de escravos Antero e o cativo Francisco, ambos com visões
diferentes entre escravidão e liberdade. O drama, escrito em 1888-1889, reportou ao ano de
1876, uma época marcante nas experiências de vida escrava no Alto Sertão da Bahia. A
intensa migração compulsória provocada pelo tráfico interno e as esperanças de maiores
chances de liberdade com a Lei do Ventre Livre, de 1871, tornaram-se via de mão dupla entre
senhores e escravizados. O personagem Francisco tinha esperança de que seu padrinho lhe
presentearia com a compra da carta de liberdade e, depositando toda confiança nele, ousou
desafiar o traficante, replicando seu desejo. Mesmo desdenhando, Antero sabia da
possibilidade de Francisco obter a alforria, posto ser comum cativos pleitearem a liberdade
mediante compra naquela região, logo inferiu que a ajuda de Francisco provinha de “algum
negro velho que possuía roça, cevados e cobres em cumbuca”, mostrando intrinsecamente
preocupação quanto aos arranjos e laços de escravizados no empenho de se livrar do cativeiro.
Escravos, no Alto Sertão da Bahia, recorreram a estratégias variadas para obter
vantagens individuais e coletivas. Não foram poucas as redes de relações construídas em
cativeiro e fora dele. O pecúlio para a compra da alforria, a especialidade de ocupações, o
casamento matrimonial celebrado pela Igreja Católica, dentre outras, foram estratégias usadas
por cativos no intuito de se inserirem socialmente. Os laços de parentesco, amizade e
compadrio foram basilares na organização de redes e fortalecimento mútuo, capazes de
ultrapassar as distinções civis e legais entre escravos, libertos e livres (RUSSELL-WOOD,
2005, p. 269). O tráfico, embora ameaçasse a separação desses sujeitos, de um lado, por outro
servia de impulso às aspirações de cativos desejosos de redimir a escravidão. À medida que
escravos e libertos se uniam para a compra da alforria, do direito de viver ao lado das
famílias, da escolha estratégica de padrinhos e madrinhas para batizar seus filhos, ampliavam-
se as chances de ultrapassar os limites do cativeiro.
Em Monte Alto, as esparsas fontes documentais de assentos de batismos
demonstraram números significativos de relações sociais entre escravizados em torno da
família, sendo o ritual do batismo uma das estratégias para ampliar redes de convivência e de
proteção. O compadrio exercia o papel político, moral e de proteção aos afilhados e
compadres, por isso a escolha perpassava pela confluência de interesses e vantagens de si e

131
Transcrição em manuscrito feita por Maria Belma Gumes Fernandes, 2013.
135

dos seus (GONÇALVES, 2017, p. 214). Nesse caso, o apadrinhamento ganhou espaço
privilegiado na estratégia de escravizados por melhores condições de sobrevivência e acesso à
alforria. Assentos de batismos da freguesia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de
Monte Alto, na segunda metade do século XIX, indicaram, reiteradas vezes, famílias de
escravizados legítimas ou consensuais estabelecendo uma gama de relações com indivíduos
de diferentes estatutos jurídicos, principalmente com a escolha de padrinhos para seus filhos.
Na Fazenda Cajueiro, do rico proprietário Faustino Moreira Castro, caracterizada no
primeiro capítulo, foi realizada a celebração do batismo de nove escravos, no ano de 1858. Na
celebração do ritual, todas as crianças batizadas foram declaradas como filhos naturais.
Apenas para duas crianças, as mães escolheram senhores como padrinhos: Antônia, parda, 01
ano, filha natural da escrava Silvéria, com os padrinhos Alberto Moreira Castro e Elvira
Barbosa Castro; e Margarida, crioula, 08 meses, filha da escrava Deodata, sendo padrinhos
Francisco Pereira Castro e Dona Sophia Moreira Castro132. Os demais escravos preferiram
convidar seus próprios companheiros de senzala para apadrinhar seus filhos. O escravinho
Roque, crioulo, filho de Sebastiana, escrava de Faustino Moreira Castro, foi apadrinhado por
Antônio e Luciana, também escravos. Tudo indica que a escolha dos cativos daquela
propriedade por padrinhos de diferentes estatutos jurídicos, como senhores, libertos e
escravos, representou variadas estratégias na ampliação das redes de relações e,
possivelmente, expectativas de obter vantagens material e espiritual que contribuíssem para
melhores condições de vida dos filhos e familiares, a exemplo da alforria.
Aproximar-se do senhor e tê-lo como padrinho ou compadre constituía privilégio e
distinção entre os demais escravos. Já a escolha de padrinhos e compadres do cativeiro
implicava também vantagens, geralmente apadrinhavam os que tivessem maior aproximação
com a família do batizando, exercessem alguma ocupação especializada na fazenda,
possuíssem maior idade, fossem respeitados perante o grupo, com grau de influência nas
relações estabelecidas que distinguissem socialmente dos demais. Ressalte-se que essas
estratégias de escolhas dos padrinhos e compadres ocorriam em todos os tamanhos de
propriedade, fossem elas grandes, médias ou pequenas. No entanto, a presença de cativos
apadrinhando outros cativos foi significativa nas grandes propriedades e, certamente, esse
aspecto sugere que a política de domínio senhorial, de conceder alguns “privilégios” a seus

132
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.
136

cativos, de certa forma, influenciava a proteção, o poder de barganha e de negociações entre


afilhados, compadres e senhores.
De qualquer forma, o que se observa aqui são os vínculos que aqueles cativos
estabeleceram no sentido de alargar as redes de relações, sendo a família e as relações de
compadrio cruciais na realização de tais desejos. Vale ressaltar, ainda, que o índice de uniões
consensuais naquela fazenda (Cajueiro) prevalecia, inferindo-se que nem sempre os senhores
interferiam nas uniões ou incentivavam os casamentos consagrados pela Igreja. O contexto de
elevação de preços de escravos, motivado pelo tráfico, conforme dito em várias passagens
neste texto, é outro motivo para que eles buscassem alianças entre companheiros. Fortalecer
esses laços de compadrio, amizade e parentesco tornava-os mais coesos e articulados no
amealhar pecúlio para comprar suas alforrias, protegerem-se de maus-tratos, resistir ao
cativeiro e às injustiças fora dos limites de suas relações. O lucro advindo do tráfico
sobrepunha-se às relações de afetividade, pelo menos para os senhores, e essas condições
poderiam gerar, em algum momento, tensões e resistência por parte dos cativos. Outrora, a
união familiar ajudava a tornar menos desgastante o enfrentamento das dificuldades
vivenciadas, portanto, era também desejo dos escravos.
O rompimento brusco de famílias cativas poderia trazer-lhes perturbações, fugas,
ameaças, sabotagens e outras formas de resistências e, para evitar maiores constrangimentos,
senhores concediam certos privilégios àqueles cativos que seguiam o plano do favor. A partir
de 1869, instituiu-se a lei que proibia a venda separada de marido e mulher ou de pais e filhos.
Antes dessa lei, escravos casados e postos à venda em separado eram obstada pela Igreja,
mas, no plano do domínio privado, nem sempre respeitavam tais orientações e, no caso de
Monte Alto, na conjuntura específica do tráfico, dificilmente os senhores deixariam de apartar
seus cativos. Somente com a Lei de 1871, os escravos puderam contar com o dispositivo legal
na garantia de permanecer ao lado do companheiro e filhos com menos de 12 anos de
idade.133
O exemplo dos escravos da Fazenda Cajueiro se repetiu para outras grandes
propriedades. Na Fazenda Campinas, do Capitão Custódio Pereira Pinto, em 1859, entre

Para saber mais sobre a Lei de 1869 e a de 1871 e a regulamentação do Fundo de Emancipação, criada em
133

1872 para libertar, com prioridade, escravos casados, seguindo-se os que têm filhos nascidos livres, “depois, os
que têm filhos menores de 8 anos, casais cujos filhos tenham sido alforriados e ainda não chegaram aos 21
anos” (MATTOSO, 2003, p.127), ver também: GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de
mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; SLENES, Robert W. Na
senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. ed.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
137

quatro crianças batizadas, os padrinhos também eram cativos: o batizando Maurício, crioulo,
01 ano, filho natural da escrava Laurinha, apadrinhado por Vicente, cabra, 48 anos, vaqueiro,
avaliado em Rs. 600$000 e Thereza, cabra, 64 anos, avaliada em Rs.100$000. O batizando
João, cabra, filho da escrava Matildes recebeu as bênçãos do escravo Paulino, mulato, 74
anos, oficial de ferreiro, e de Desidéria, cabra, 68 anos. Vitória, crioula, 12 anos, filha da
escrava Marcolina, também foi batizada pelos escravos Justiniano, crioulo, 35 anos, vaqueiro,
e Carlota, cabra, 62 anos, forra. Observe-se o perfil dos padrinhos escolhidos pelos pais dos
afilhados, geralmente eram pessoas mais velhas do grupo, com certa hierarquia nas funções
exercidas. A propriedade contava com 50 cativos, e o que chama a atenção é a procedência
cor/nação entre eles, apenas 02 africanos, 07 mulatos e os demais, cabras e crioulos.
Provavelmente, esse grupo de cativos tinha uma linhagem de parentescos muito grande entre
si e as redes de relações se constituíam com maior força no eito da fazenda.
Ao que parece, o tamanho da posse escrava influenciou a escolha de comadres e
compadres. Escravos de grandes propriedades tinham maiores chances de escolher como
padrinhos de seus filhos o próprio companheiro de cativeiro. Cativos de propriedades menores
não tinham tantas opções assim, por isso ampliavam esses laços com escravos, livres ou
libertos de outras propriedades, devido ao número reduzido de cativos, da vulnerabilidade do
tráfico, de crises financeiras dos senhores e da partilha dos bens entre herdeiros.
Não foram encontrados todos os livros de registros de batismos da freguesia, daí, a
análise centrou-se apenas em dois livros correspondentes aos períodos de 1858-1879 e 1873-
1879. Dentro desse período, 10 anos ficaram sem análise, sendo impossível obter leitura da
população absoluta com registros de batismos. Portanto, optou-se apenas por amostragem da
realidade social naquele contexto, as esparsas fontes forneceram indícios preciosos da
experiência de vida familiar de escravizados, que enxergaram no compadrio oportunidade de
ampliar as redes de relações pessoais e coletivas. A realização do ritual criava esperanças de
amparo nos momentos de necessidades, de resistência ao cativeiro e proteção para si e os
seus. A Tabela 18, a seguir, com algumas observações sobre os registros de batismos de
Monte Alto.
138

Tabela 18 – Batizados de Monte Alto – Filhos legítimos X Filhos naturais (1858 – 1879)

Sem
Filhos legítimos Filhos naturais Total
Condição identificação
Qtd. % Qtd. % Qtd. % Qtd. %
1858 -1863 0,0% 0,0% 0,0%
Batizandos
3 0,2% 197 20,2% - 200 7,0%
escravos
Batizandos
446 23,5% 394 40,5% - 840 29,2%
livres
1873 -1879 0,0% 0,0% 0,0%
Batizandos
9 0,5% 46 4,7% - 55 1,9%
libertos
Batizandos
1.440 75,9% 336 34,5% - 1776 61,9%
livres
Total 1.898 100% 973 100% 2871 100%
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de
Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.

Conforme essa tabela, os batismos de legitimados, entre a população livre, pela Igreja
Católica foram superiores aos de filhos naturais, constando apenas o nome da mãe. Já para a
população escrava, esses números se invertem: encontrou-se maior número de filhos naturais
que de legitimados. Do total de batizados identificados, os batizandos escravos representaram
7%, os livres, 91,1% e os batizandos libertos, 1,9%. Entre os batizandos escravos, apenas
1,5% são filhos legítimos, enquanto os 98,5% restantes são de filhos naturais. Já entre os
batizandos livres, 72,1% são de filhos legítimos e 27,9%, de filhos naturais; e entre os
libertos, 16,4% são legítimos e 83,6% são naturais. Os filhos legítimos representaram 66,1%
dos batizandos e os filhos naturais, os 33,9% restantes.
A composição de filhos legítimos é feita por 99,4% de batizandos livres, 0,2% de
batizandos escravos e 0,4% de batizandos libertos. Finalmente, entre os filhos naturais, 20,2%
são escravos, 75,0% são livres e 4,8% são libertos. A baixa legitimidade de crianças escravas
se explica devido à burocracia e exigência imposta pela Igreja Católica, a despeito das taxas
de despesas pela realização do ato religioso, ou simplesmente pelo escravo não desejar
submeter ao ritual. Somam-se a essas questões as distâncias das fazendas que certamente
dificultavam o deslocamento do pároco para celebrar o ritual e
vice-versa. Por isso, a maioria dos batismos ocorria por atos de desobriga, em celebrações
festivas na matriz, nas capelas ou casas dos proprietários, necessitando, portanto, de
organização de calendário para a celebração do ritual. Há, ainda, a preferência dos lugares de
batismos, levando a crer que a religiosidade católica implicava preceitos, pedidos de proteção
139

divina, graças recebidas que eram “pagas” com promessas em lugares considerados sagrados,
a exemplo do Santuário de Bom Jesus da Lapa, Bahia. Eram comuns romarias em grupos
deslocarem-se para esse Santuário e realizarem os rituais naquele lugar.
Apesar de alguns obstáculos sinalizados e que impediam as uniões legítimas, os dados
disponíveis permitem-nos afirmar que o batizado se estendia também aos filhos de uniões
consensuais de escravizadas e libertos, inserindo o indivíduo na condição de reconhecimento
perante a sociedade, com nome e afirmação dos preceitos católicos. A escrava Ignácia
representa essa realidade: ao batizar seu filho André, cabra, de 01 ano, escolheu para
padrinhos o escravo Antônio e Lina, liberta134. Ignácia era escrava de Manoel Pereira Pinto,
proprietário da Fazenda Jacaré, no ano de 1861. Ter padrinhos significava afirmar a
existência de pais espirituais e materialmente proteger os afilhados, já que os padrinhos
exerciam o papel de tutores da cristandade. Ressalte-se que, entre escravizados, o batizado
representava status social e esperança de melhores chances de vida a si e aos seus filhos.
Logo, “socialmente, o batismo podia ser uma ponte para ser acolhido ou não entre os cristãos”
(ORTIZ, 2014, p. 50).

Tabela 19 – Condição jurídica e cor dos batizandos em Monte Alto

Cor Quantidade %
Branca 216 7,52%
Parda 417 14,52%
Cabra 9 0,31%
Crioulo 19 0,66%
Mulato 1 0,03%
Preto 15 0,52%
Não declarado 2194 76,42%
Total 2871 100,0%
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros
de assentos de batismos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto,
1858-63.

Quanto à cor, entre os que declararam, os pardos se destacaram com 14,52%, os


brancos representaram 7,52% e os crioulos, pretos, cabras e mulatos, 0,52%, 0,31% e 0,03%,
respectivamente. A predominância da cor parda talvez se explique pela abrangência da
categoria, típica do final do período colonial, utilizada, inicialmente, “para designar a cor mais

134
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.
140

clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a ascendência europeia de alguns


deles” (MATTOS, 2000, p.17). Verifica-se, ainda, que 76,42% não declararam a cor, esse
percentual era composto pela população escrava, pelos nascidos de ventres livres, um “filho
adulterino”, filhos naturais e pais incógnitos.

Tabela 20 – Condição jurídica dos batizandos - Termo de Monte Alto, 1858 – 1879

Condição Total de
Ano Escravo Livre Liberto SD batizados
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1858-
200 100% 840 32,2% - 49,5% - - 1.040 37,5%
1863
1873-
- - 1.776 67,8% 55 50,5% - - 1.831 62,5%
1879
Total 200 100% 2.616 100% 55 100% - - 2.871 100%
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.

No que se refere à condição jurídica dos batizandos, nota-se que, entre a população
absoluta, a quantidade de assentos de batismos foi de 2.871, sendo que os livres foram em
número superior, representando 62,5% da população batizada. Em seguida, os escravos, com
37,5 % e, por último, os libertos, 5%. Apesar da predominância dos livres no acesso do ritual
do batismo, as fontes evidenciam diferentes sujeitos participando da celebração, inclusive
escravos e livres de outras famílias e proprietários. Os diversos matizes de condição jurídica
ampliavam as possibilidades de inserção social, de autonomia e de futuras esperanças. Esses
vínculos de alianças sociais, de amparo às necessidades e à sobrevivência visavam conseguir
barganhas nos momentos de tensão e aflição. Pode-se dizer que o ritual do batismo, entre
escravos, livres e libertos, ultrapassou os limites das fazendas, revelando mobilidades,
hierarquias e fortalecimento da comunidade cativa. Assim fez Vitória, escrava do Capitão
Tiburtino Moreira Prates, proprietário da Fazenda Pé da Serra, quando batizou seu filho
Benedito, de 04 anos. Vitória convidou para padrinhos de seu filho o livre Antônio da Costa
Mello e Maria, escrava de José da Silva Nunes. Nesse sentido, “(...) o compadrio
interpropriedade revela, sobretudo, a manutenção de vínculos de amizade ou até mesmo de
parentesco entre escravos dispersos por diferentes fazendas e sítios” (SANTANA, 2012, p.
68). A Tabela 21, adiante, mostra o estatuto jurídico dos padrinhos e madrinhas dos
batizandos de Monte Alto.
141

Tabela 21 – Estatuto jurídico dos padrinhos e madrinhas dos batizandos em Monte Alto, 1858 – 1879

Padrinhos Madrinhas Total


Estatuto jurídico
Qtd % Qtd % Qtd %
Escravos 72 28,1% 84 34,3% 156 31,1%
Livres 168 65,6% 141 57,6% 309 61,7%
Libertos 4 1,6% 9 3,7% 13 2,6%
Sem identificação 12 4,7% 11 4,5% 23 4,6%
Total 256 100,0% 245 100,0% 501 100,0%
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia
de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.

Embora a maioria de padrinhos e madrinhas dos batizandos escravos fosse composta


por pessoas livres, num percentual de 61,7%, o número de padrinhos e madrinhas escravos é
bastante significativo, correspondendo a 31,1%. Esse relevante número de escravos
escolhidos por outros escravos para apadrinhar foi predominante em grandes fazendas, em
face da disponibilidade das escravarias.
Os padrinhos representavam um grupo hierarquizado socialmente, os convites para o
apadrinhamento consistiam em estratégias de escolhas, o que significavam ampliar redes de
relações não apenas de sangue, mas espirituais, além de reiterar grupos “de convívio formados
por laços sociais significativos, envolvendo cativos de diferentes escravarias, bem como
libertos e pessoas livres”, realçou Luiz Augusto Ebling Farinatti (2012, p. 144).
Com base nas evidências, podemos dizer que, nas grandes fazendas, havia um
compadrio bem articulado entre parentes e companheiros de senzala. O exemplo abaixo
representa bem essa afirmativa entre os escravos da Fazenda Gonçalo, de Antônio Pereira de
Souza Costa. O cruzamento de dados sobre as escravarias daquele senhor, em inventários,
assentos de batismos e casamentos, indicou que aqueles cativos construíram uma rede bem
tramada de relações dentro e fora do cativeiro. Constavam, no ano de 1869, 77 escravos
pertencentes àquela propriedade e um monte-mor de Rs. 75: 347$000. Tratava-se de 35
homens, 22 mulheres e 20 crianças abaixo de 12 anos. Havia, ali, 15 escravos africanos, com
idade avançada, demonstrando o quanto aquele senhor fez uso do tráfico atlântico. Os demais
foram classificados como mulatos, crioulos e cabras. Apenas dois escravos possuíam a união
legitimada pelo sacramento da Igreja: Alexandrina, casada com Luiz, cabra, em 1858, na
Fazenda do Poço Comprido; o casal tinha uma filha de nome Juliana, que não constava mais
na relação dos escravos inventariados no espólio, aberto em 1869; e Joana, crioula, casada
com Eugênio, cabra, em 1860.
142

Nos registros de assentos de batismos, constaram oito famílias de uniões consensuais


que, juntamente com os filhos, participaram do ritual de batismo naquela fazenda. O
interessante aqui são as extensas redes familiares e de compadrio formadas entre aqueles
cativos. Alexandrina e Luiz escolheram os escravos Paulina e Procópio, crioulo, de 48 anos,
serviço de lavoura, para abençoar sob os “santos olhos” sua filha Juliana. Alexandrina
também foi madrinha do filho de Rita, africana, 50 anos de idade. O afilhado era Marcolino,
crioulo, 13 anos, avaliado em Rs. 750$000, cujo padrinho era outro cativo de nome João,
africano, 50 anos de idade.
O mesmo fez a escrava Joaquina, como veremos na figura abaixo:

Figura 9 – Família escrava da Fazenda Gonçalo - 1869

Joaquina
(africana)
40 anos -
500$000
Félix - Crioulo Felippa -
10 anos Crioula
Batizado em 12 anos
1861 Batizada em
1858

Padrinhos
Padrinhos

Antônio
Cambaca Raimundo Ana - Crioula
Africano - 69 (liberto) 55 anos
anos Tereza africana
64 anos Cozinheira
Serviço de 78 anos -
Doente Serviço de
lavoura lavoura

Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa
Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.

Muitas histórias poderiam ser aqui contadas, dadas as diversas relações criadas pelos
cativos em suas interações com livres, libertos e senhores, questão que será mais bem tratada
no próximo capítulo. Pelo exposto até agora, resta-nos pensar que o poder senhorial podia até
interferir nas escolhas dos escravos – e o fizeram, com ameaças de separação de suas famílias,
143

por meio das vendas com o tráfico, com castigos, com a divisão das heranças e nas
dificuldades financeiras –, mas não impediu que cativos e libertos elaborassem projetos de
vida diferentes dos seus. E, diante de cada contexto, esses mesmos senhores também
recuavam frente às pressões dos escravos, pois temiam motins, fugas, revoltas, dentre outras
possíveis formas de resistência. Cativos de Monte Alto criaram redes de relações, de
mobilidade social dentro dos limites das propriedades e fora deles, conforme vimos na
trajetória de Marqueza e tantos outros escravos. As relações familiares, legítimas ou
consensuais, de parentesco e de compadrio congregaram, assim, interesses maiores, o alcance
da alforria e melhores condições de vida para si e para os seus, mesmo diante das dificuldades
impostas a partir da força do tráfico interno na região.
144

4 ESCRAVOS EM PEQUENAS E MÉDIAS PROPRIEDADES

4.1 “Existe u único be elhor, e de valor”: co posição da rique a de médios e


pequenos proprietários

Cumprir com o processo de autos de inventário post mortem nem sempre representava
ganhos às partes interessadas. Para indivíduos de pequena posse, esse ato poderia apenas ser
suficiente para custear o procedimento, pois “implicava gastos para a família do falecido,
tanto para o pagamento das custas do processo quanto para a regularização da situação com a
fazenda” (DANTAS, 2007, p. 80). Entretanto, ainda que os investimentos e recursos
estivessem longe dos alcançados por proprietários abastados, importantes atividades foram
mobilizadas por pequenos proprietários, gerando, inclusive, reivindicações entre os herdeiros
no momento da partilha dos bens.
Com o falecimento de Lourenço Dias Guimarães, iniciou-se, no ano de 1855, o
processo de avaliação. Entre bens de raiz, imóveis e gado cavalar, constou apenas uma parte
de terras na Fazenda Santa Rosa, denominada Mato Grosso, uma casa velha, cargas de
algodão e cavalos, que somaram, em média, Rs. 600$000. A posse de três cativos –
Benedicto, crioulo, de 02 anos, avaliado a Rs.600$000, Joanna, crioula, 10 anos, Rs. 550$000,
e Cassimira, crioula, 50 anos, Rs. 70$000 – equivaleu a mais da metade da riqueza
inventariada, calculada em Rs.1:742$000. No momento da partilha, o herdeiro Joaquim Dias
Guimarães entrou com petição para que o valor da escrava Joanna crioula fosse dividido
igualmente entre todos os herdeiros, com esta justificativa: “Para que ninguém fique no
prejuízo, sendo esta escrava um único bem melhor, e de valor”.
Diante da iminência de serem prejudicados na divisão dos bens arrolados, herdeiros
como Joaquim Dias Guimarães se valiam de reivindicações. De fato, os escravos
correspondiam ao item de maior relevância na composição da riqueza no grupo dos pequenos
proprietários, ao lado da posse de diminutas partes de terra, a criação de algumas cabeças de
gado bovino e cavalar e pequenas dívidas ativas, entre outros bens de menor valor,
compuseram um monte-mor de até Rs. 1:000$000 a Rs. 5:001$000, como pode ser observado
nas Tabelas 22 e 23 a seguir.
Tabela 22 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor até Rs. 1:000$000

Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.

145
Tabela 23 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 - Faixa de monte-mor de Rs. 1:001$000 a Rs. 5:000$000

Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.

146
147

Ao acompanharmos os valores e os bens que compuseram os patrimônios dos


indivíduos de menores posses no termo de Monte Alto, veremos que, apesar de possuírem
certa diversidade nos investimentos, pequenos proprietários não levavam uma vida tão fácil.
A manutenção da sobrevivência e as possibilidades de angariar quantias vinham da produção
agrícola, criação de algumas reses e vendas de mantimentos no comércio local. Os dados das
Tabelas 22 e 23 indicam a predominância dos escravos, imóveis e semoventes como aqueles
de maior importância na composição do patrimônio. Desses itens, os cativos possuíram maior
destaque. Com a morte de Thereza Virgem do Nascimento, no ano de 1851, seus bens foram
arrolados pelo companheiro, Estêvão Rodrigues dos Santos, compondo um valor de
Rs. 1:400$000. Na Fazenda Capoeira, possuíam uma parte de terras, criavam algumas cabeças
de gado vacum e ali residiam e tocavam as parcas atividades produtivas com três dos cinco
cativos que possuíam: Faustino, crioulo, 30 anos, avaliado a Rs. 450$000, Agostinho,
africano, 50 anos, a Rs.150$000, e Justina, 20 anos, a Rs. 500$000. Além deles, foram
descritas Martinha, 01 ano, Rs.120$000, e Maria, crioula, 11 meses, Rs.80$000.
Presumivelmente, filhas de Justina com Faustino.135
A posse da família cativa fornecia meios de ampliar o patrimônio. Em 26 de julho de
1867, após 15 anos do auto de inventário, foi apresentada uma declaração indagando a
procedência do juiz, com inúmeras irregularidades, entre elas, os questionamentos acerca dos
preços dos escravos, incompatíveis com os valores de mercado da época, e a ocultação de
informações referentes a gastos e destino do escravo Faustino. Na divisão dos bens, o viúvo e
inventariante, Estêvão Rodrigues dos Santos, recebeu os escravos Agostinho e Justina, sendo
esta dividida com a herdeira Cândida, que ficou com o valor de Rs.150$000 e Estêvão, com a
quantia de Rs. 300$000. A herdeira Flausina recebeu a escrava Martinha, e à herdeira Maria
foi deixada a escrava Maria crioula. Nota-se a ausência do escravo Faustino na partilha dos
bens, levando os herdeiros a questionarem as irregularidades do processo, característica
comum a indivíduos de pequenas posses, quando faleciam.
A posse de um, dois ou mais escravos contribuía não apenas para a manutenção da
pequena produção, aliviando o trabalho árduo, reduzindo as horas de labuta da casa e das
roças, eram, sobretudo, investimentos com vista à melhoria das condições socioeconômicas,
já que, no contexto florescente do tráfico interprovincial, indivíduos de pequenas posses
vislumbraram na venda do cativo meio que favorecesse sobrevivência menos constrangida por

Fórum Dr. Alcebíades Dias laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
135

Inventariado: Thereza Virgem do Nascimento, 1851.


148

despesas, dívidas e possibilidade de ganhos. Por isso, havia as constantes reivindicações e


esforço para manter os escravos, a exemplo de José de Souza Góes, morador no Sítio do
Bezerro, que se valeu de empréstimo para compra de um cativo de nome Manoel, por
Rs.500$000. Como possuía três cativos, Pedro africano, Siríaco e Raimunda, o investimento
na compra de Manoel ampliou o patrimônio possuído. Mais tarde, Manoel foi vendido por
Rs. 700$000, tendo o senhor lucro de Rs.200$000, dinheiro que foi utilizado para o
pagamento do empréstimo136.
Embora José de Souza Góes tenha conseguido fazer uma revenda com preço maior do
que fora investido, a margem de lucro foi reduzida diante do empréstimo contraído. A
disposição de recursos em mãos de pequenos proprietários era limitada, mas, a depender do
contexto de produção econômica, conseguiam manter alguns cativos e prosperidade. Desse
modo, havia uma linha tênue entre a possibilidade de enriquecimento e a de empobrecimento.
A esse respeito, Robert W. Slenes pontua:

Quando o pequeno produtor do século passado adquiria alguns escravos para


aplicá-los na agricultura comercial, é provável que assumisse riscos,
especialmente grandes (ainda mais se contraísse dívidas para isso), pois
empatava recurso numa máquina produtiva que poderia desaparecer de uma
hora para outra, dada a sua grande suscetibilidade à morbidez e à
mortalidade, e a sua possibilidade de fuga (SLENES, 2004, p.245).

Apesar de o autor pesquisar na região de Campinas, sudeste do Brasil, os aspectos


notados por ele, acerca de pequenos proprietários, também podem ser percebidos em Monte
Alto. A posse e a manutenção cativa em pequenas propriedades possuíam alguns limites e
nem sempre podiam contar com ascensão social bem-sucedida. Na iminência de perder o
investimento realizado no escravo Manoel, José de Souza Góes o vendeu “porque este estava
muito fujão, evitando, assim, o prejuízo”.137 Como afirma Slenes, a morbidez, a morte, a fuga,
dentre outras questões, como a seca para regiões sertanejas, ofereciam riscos de
vulnerabilidade aos senhores de pequenas posses, diferentemente daqueles “senhores médios,
e, em particular, para os grandes, o risco de investimento era mais previsível” (SLENES,
2004, p.245).
Mesmo assim, pequenos proprietários se arriscavam investir na posse escrava, pois
sabiam que o contexto de valorização proveniente do tráfico poderia lhes render certas

Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
136

Inventariado: José de Souza Góes, Mç: 11, 1854.


Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
137

Inventariado: José de Souza Góes, Mç: 11, 1854.


149

vantagens, considerando, conforme Alex Andrade Costa, que possuir escravos estava
relacionado não apenas ao exercício de atividades, mas também a bens de capital,
procedimento “com o qual investiam esperando algum retorno financeiro que poderia vir com
a venda ou alforria paga” (COSTA, 2016, p.104). Para senhores menos remediados, investir
em cativos incorreria em riscos, já que o cativo poderia fugir ou morrer, entretanto, em
regiões como o Alto Sertão baiano, devido à valorização e procura nas províncias do Sul e
Sudeste, despertou nos senhores de parcos recursos o emprego nesse bem de capital. A
depender do momento, os lucros eram garantidos, obtendo maior facilidade de desfazê-lo para
cobrir alguma dívida, socorrer em situações de extrema necessidade ou investir em outros
empreendimentos.
É importante assinalar que apenas alguns menos afortunados não possuíam escravos,
porém tinham outros bens significativos, a exemplo de algumas reses. Joaquim Ticá da Silva,
quando faleceu, deixara sete vacas paridas, sete garrotes, quatro vacas solteiras e dois
cavalos138. O gado representara um elemento de riqueza quase que necessário na vida do
sertanejo. De seus derivados, retirava o couro, o leite, o requeijão, o queijo, a manteiga, além
de contarem com a carne, útil para o consumo interno. Dos inventários analisados para o
termo de Monte Alto, havia apenas o de Henrique Ribeiro de Magalhães sem bens declarados.
Em 1867, sua mulher declarou que seu marido a deixou em estado de extrema pobreza, sem
bem algum e com três filhos pequenos para cuidar139.
No Alto Sertão, específico Caetité e Rio de Contas, Maria de Fátima Novaes Pires
(2009, p.116/117) observou, a partir da segunda metade do século XIX, que a posse escrava
continuou até a véspera da abolição, com média entre cinco e dez cativos por senhor e uma
faixa de valores do monte-mor em “nível não superior a cinco contos de réis”. Os poucos
cativos serviam nas tarefas rotineiras de pegar água, cortar lenha, cuidar dos animais, preparar
a terra, plantar, colher e, quando os senhores não conseguiam adquirir um mínimo de
escravos, recorriam à contratação de diaristas ou jornaleiros. A autora elucida ainda a
continuidade da instituição escravista entre pequenos produtores, sitiantes, roceiros, médios e
grandes fazendeiros, o que permitiu certa flexibilidade nas relações estabelecidas entre esses
sujeitos.

Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
138

Inventariado: Joaquim Ticá da Silva. N. do processo 145, 1860.


Fórum Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série: Inventários.
139

Inventariado: Henrique Ribeiro de Magalhães. N. processo 236, 1867.


150

Esse percentual equivaleu à grande maioria dos espólios analisados pela autora para as
regiões citadas linhas atrás, correspondendo a 60% dos inventários analisados. Entretanto, os
valores obtidos por ela diferem dos analisados para Monte Alto, por encontrar número de
escravos e faixa de riqueza muito superior nos espólios computados. Por exemplo, a
classificação de pequenos, para Monte Alto, equivaleu a um médio senhor para Caetité. Em
Monte Alto, as primeiras faixas de riqueza corresponderam até Rs. 1: 000$000, a segunda, de
Rs. 1: 001$000 a Rs. 5: 000$000. Os dados comparados permitem-nos observar diferenças
peculiares entre as condições econômicas das vilas vizinhas, ao longo do século XIX,
inferindo atenção às especificidades de cada local.
Na Tabela 24 a seguir, é possível perceber o escravo também como item de maior peso
na constituição do patrimônio de médios proprietários ao longo do período analisado. Apenas
entre as décadas de 1840-1849 e 1880-1889, representou o terceiro maior valor. Com posse de
11 a 20 escravos, médios proprietários mantiveram atividades lucrativas no Alto Sertão e na
capital da província e Recôncavo baiano. As dívidas ativas constituíram indicadores
importantes da atuação desses indivíduos na produção e comercialização de produtos
agropastoris e de cativos.
Tabela 24 – Distribuição dos bens inventariados por faixa e período de 1820 a 1889 – Rs. 5:001$000 a Rs. 15:0000$000

Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Série Inventários: 1820-1889.

151
152

As fontes documentais, além de revelarem o quanto médios proprietários estiveram


desenvolvendo atividades lucrativas a partir da posse cativa, gado e terra, indiciam relações
cotidianas entre escravos e senhores, demonstrando algumas rotinas de trabalho, formas de
alimentação e condições de mobilidade e estabilidade que permearam aqueles espaços. Nos
espólios de Monte Alto há indícios, ainda que sutis, de pequenas relações de escravos
pertencentes a médios proprietários negociando com senhores de pequenas posses. O escravo
Francisco devia ao pequeno proprietário Eusébio Rodrigues Montalvão, em 1851, uma carga
de algodão. Francisco era escravo de D. Joana e certamente essa senhora permitiu que o seu
escravo realizasse o cultivo de uma roça de algodão para si 140.
Ressalva-se, para Monte Alto, que médios senhores possuíam bens de riqueza
significativos, ora se aproximando das condições socioeconômicas de grandes proprietários,
ora de pequenos proprietários. Os bens arrolados de D. Joana, moradora da Fazenda Malhada
Grande, somaram um monte-mor de Rs. 11:050$700. Na relação nominativa do inventário,
constaram 19 cativos, sendo três tropeiros e um vaqueiro, que evidenciam envolvimento na
dinâmica econômica da região. Francisco, cabra, 40 anos, Rs. 500$000, era um dos tropeiros,
por isso, desfrutou da relação de proximidade, ao ponto de conseguir cultivar roça para si e
amealhar pecúlio para investimentos em outras atividades.
O contato do cativo com sua senhora se vinculou mediante uma relação de “força e
favor”: ao ceder espaço para Francisco cultivar roça de algodão e comercializá-lo, D. Joana
preservava seus interesses em manter por perto o cativo no desempenho da atividade tropeira,
importante fonte de acumulação de riqueza para ela. Francisco, por sua vez, vislumbrava
meios de ampliar suas redes de relações e assegurar vantagens para si. Após a morte de D.
Joana, ele continuou na fazenda, sob propriedade do viúvo, José Porfírio de Magalhães, que,
no decorrer do processo, vivenciou situações de crise, sendo necessário vender alguns cativos
para manutenção da família. Os autos de inventário não mencionam quais escravos foram
vendidos, pode-se presumir que Francisco não foi um deles, pois mantinha relação de
confiança com seu senhor, era tropeiro e possuía idade avançada, mas não consta se ele
adquiriu a alforria, mesmo que desfrutasse de hierarquia em relação aos demais companheiros
de senzala, chegando, inclusive, a possuir pecúlio, proveniente de roças de algodão cultivadas
para si 141.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
140

Inventariado: Eusébio Rodrigues Montalvão. Mç: 10, n. 427, 1851.


Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
141

Inventariado: D. Joana da Rocha Ribeiro. Mç: 12, n. 140, 1856.


153

Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p. 140) observou, para Caetité e Rio de Contas,
indícios de escravos beneficiando-se de “roças”, e muitos senhores viram nessa prática “uma
opção vantajosa, porque os isentavam de mantê-los”. Ressalta ainda que a oportunidade de
cativos trabalharem por conta própria possibilitava reunir pecúlio e, com isso, adquirir a
alforria mediante a compra.
Embora o viúvo de D. Joana fosse um médio proprietário, não conseguiu manter toda
a escravaria ao passar por período de dificuldades ocasionado pela seca, enfrentando situação
similar à dos pequenos proprietários. Essa instabilidade de médios senhores oscilava e, a
depender, uns prosperavam, outros enfrentavam crises, como o viúvo de D. Joana. Todavia,
aqueles senhores tidos como médios contavam com maior disposição de recursos para superar
momentos difíceis, dispondo, inclusive, de alguns cuidados para manter seus cativos. José
Pedreira de Cerqueira, em 1874, teve riqueza arrolada no valor de Rs. 10:005$000, constando
em anexo contas e despesas realizadas com escravos em sua propriedade142. Nos itens
apresentados no Quadro 9 a seguir, é possível observar a alimentação dos cativos, à base de
carnes de péssima qualidade, como um quarto de ossos, sal, feijão, rapadura, farinha e arroz.
Esse inventário traz informação extra sobre o cotidiano escravo, visto que o casal falecido não
deixou herdeiros e era natural de Santo Amaro, na Bahia.

Quadro 9 – Despesas feitas com os escravos do falecido José Pedreira de Cerqueira, 1874

Setembro de 1872/Dia 09 Valor


Mantimentos comprados 4$000
1 quarto de ossos 3$000
Novembro Dia 05
Quatro rapaduras 2$240
1 prato de sal 1$800
Toucinho 1$000
Dia 20
2 pratos de sal a 1.600 3$200
4 pratos de feijão 2$000
2 raspaduras 1$120
1/² prato de sal $800
Toucinho 1$000
Remédio para o escravo Thomaz 10$000
Somma 30$160
Mantimentos para sustento dos mesmos escravos 2
rezes e destas vendi pª da conto supra o.
1 quarto de carne 6$000
Couros 5$000
11$000

142
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: José Pedreira de
Cerqueira. Mç: 22, 1874.
154

Tenho a haver 19$160


Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: José Pedreira de
Cerqueira. Mç: 22, 1874.

Mais uma vez, as fontes evidenciam que cuidar das doenças de escravos e da
alimentação constituía práticas de grandes ou médios fazendeiros. E mesmo que houvesse
certo receio com a alimentação, esta era insuficiente e precária para a rotina pesada do
trabalho. A distribuição dos alimentos crus, como feijão, toucinho, rapadura e carne com
ossos, indica que cativos complementavam sua alimentação de outras formas. Presume-se que
a caça, a pesca, o plantio de algumas roças para si e a criação de animais miúdos, como
galinhas, porcos, dentre outros, serviam à necessidade diária dos cativos. Possivelmente, os
cuidados daquele senhor se relacionavam à intenção de comerciar seus escravos e, prevendo
as exigências do mercado por prioritariamente jovens, robustos e mais produtivos para o
trabalho, dispusera de certos cuidados: alimentação, saúde física, como o fez com a compra de
remédio, por Rs.10$000 para o escravo Thomaz. Vale lembrar, que o cuidado se associava
também à necessidade de reter cativos para o desempenho de atividades nas fazendas.
Ainda, sobre os escravos desse senhor, as fontes indicaram que, no mesmo ano, alguns
foram levados à arrematação pública, sendo nove escravos, filhos de duas escravas. Tanto as
mães dos cativos quanto os filhos foram arrematados por propostas de cartas fechadas, dentro
das formalidades legais. Adelaide, preta, de 32 anos, solteira, foi vendida juntamente com os
cinco filhos. O mesmo foi feito com a escrava Porfíria, preta, de 36 anos, também solteira,
arrematada com seus três filhos menores pelo traficante de escravos, Bruno Cardozo de
Souza.

Registro de escravos para arrematação:

Transcrição da Audiência do dia seis de agosto de mil oito centos e setenta e


quatro. Juízo o senhor Souza e Costa [...] proposta do cidadão Bruno
Cardoso de Souza offerecendo mil e vinte réis sobre a avaliação de quatro
centos mil réis dada a escrava Adelaide crioula e seus filhos menores, Isabel,
Tertulina, e Bernadina.- Isabel avaliada por quatro centos mil réis, digo, por
quatro centos e cinqüenta mil réis- Tertulina, avaliada por duzentos e
cinqüenta mil réis, e com o lance de um conto duzentos e cinqüenta e um
mil e vinte réis,- proposta acculta pelo juiz, que mandou se recolheu a
referida quantia dentro do prazo de vinte quatro horas, e pagar as devidos
direitos, segundo prescreve o artigo[...]E todas estas quantias provenientes
das arrematações dos escravos, seminoventes e móveis, na sua totalidade de
duzentos, digo, totalidade de dois contos trezentos e dezenove mil seiz
centos e vinte réiz,[...]143.

143
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: José Pedreira de Cerqueira.
Mç: 22, 1874.
155

Diante do número de procurações e escrituras de compra e venda de cativos no Alto


Sertão da Bahia, em especial nas regiões de Caetité e Monte Alto, no século XIX, é possível
fazer algumas inferências acerca desse comércio, por outro lado, “a conjuntura do tráfico não
desmotivou as comunidades escravas a lutarem pela permanência e alcance da alforria”
(SILVA, 2008, p. 28), contrariamente, a motivação das vendas via tráfico ampliou as redes de
sociabilidade entre os escravos com espaços de amplas redes e noção dos seus “direitos”.
Robert W. Slenes (2011) observou para Campinas que a distribuição de alimentos
pelos senhores não passava de “rações” e essa prática não era acessível a todos os escravos,
geralmente, se estendia a cativos casados ou que tivessem filhos, e substituía uma refeição
cozida, se o escravo casado almoçasse na casa do senhor e recebesse alimentos, as demais
refeições teriam de ser preparadas por eles em suas choupanas ou senzalas. Para Monte Alto,
o documento não explicita quais escravos receberiam os alimentos do médio proprietário José
de Cirqueira Pedreira, mas certamente havia regras e nem todos os cativos contavam com
esses cuidados. Cativos de médios e grandes senhores, porém, se beneficiaram de algumas
vantagens fora do espaço da casa grande.
Escravos de senhores pobres provavelmente não usufruíam de cuidados com a saúde e
alimentação como alguns cativos de grandes ou médios senhores, o que os levava a
recorrerem a tratamentos de benzedeiras, ervas medicinais, e a caçar e cultivar roças para
sobreviverem. Pequenos proprietários produziam em pequena escala, mas não deixavam de
investir em produção rentável, como o gado, plantio de algodão e gêneros alimentícios para
consumo interno. Muitos senhores de pequenas posses estiveram ligados, assim, a importantes
atividades produtivas da região, a exemplo do algodão e do gado, itens presentes nos espólios.
Mas quando estes faleciam, deixavam algumas dívidas que, normalmente, eram pagas com a
venda de escravos, visto serem “bens” de maior valor e altamente procurados no mercado.
Relações de negócios entre senhores, escravos, livres e libertos fizeram parte do
cotidiano dos indivíduos em busca de mobilidade social, tanto em posses maiores como
menores, entretanto, apresentaram singularidades diante da situação socioeconômica
verificada em cada uma delas. Práticas cotidianas estabelecidas entre senhores e escravos
denotam complexas relações vivenciadas por cativos em propriedades com parcos recursos,
compreendê-las é necessário para se ter ideia da dimensão da escravidão em Monte Alto. A
posse escrava incidia em mobilidade social, porém não era garantia de estabilidade, posto que,
em momentos de crise econômica, cativos poderiam contribuir para a ascensão ou para o
empobrecimento, sobretudo, de pequenos proprietários.
156

4.2 Vivências escravas em pequenas posses: tráfico e família escrava

Ilm Sr. Dr. Juiz dos Órfãos Suplente:


Diz João Pereira de Castro Filho, credor cessionário nos bens do casal do
finado Dionísio Barros de Oliveira, q tendo este juiz mando por em Asta
pública todos os bens do casal para pagamento dos credores, sucede, que a
escrava de nome Francisca, que foi avaliada, se achava grávida, e que a dita
escrava tinha já parido um filho, que esteja amamentando, e se acha nesta
villa, é o requerimento do suppᵒ. que V.S. digne-se mandar proceder na
avaliação do filho para ir a praça, juntamente com a mãe e que torna
inseparável, e evitar assim grandes despesas com uma nova praça, só para
ele. É isso.144
05 de junho de 1852.

Ter cativos significava não somente usá-los para o trabalho cotidiano nas fazendas,
serviam também como moeda de troca nas transações comerciais, principalmente nas
hipotecas, como garantia de pagamento, em empréstimos financeiros e podiam até ser
alugados para prestarem serviços a outros senhores (LIMA, 2017, p. 82). A comercialização
de escravos de Monte Alto, às regiões vizinhas e outras províncias, mostrou a complexidade e
os constantes trânsitos que marcavam as experiências do cativeiro. Conforme busquei
demonstrar no capítulo anterior, cativos de grandes propriedades forjaram, dentro de certos
limites, redes de relações extensas e acumularam pecúlio para a aquisição da alforria, ainda
que essas relações fossem desiguais. Mesmo com dificuldades impostas pelo tráfico interno,
cativos formaram famílias extensas, especializaram-se em ocupações variadas e foram à
Justiça quando entendiam que senhores extrapolavam nas decisões de seus interesses.
Demostraram, assim, importantes estratégias de resistência ao cativeiro. Diante de tais
evidências, podemos afirmar que cativos de pequenas posses tinham as mesmas
possibilidades, já que seus senhores não dispunham de recursos variados?
A anotação anterior, disponível no inventário de Dionísio Barros de Oliveira, senhor
de parcos recursos, que deixou muitas dívidas a credores em Monte Alto quando faleceu,
aponta momentos tensos entre escravos de pequenos senhores. O monte-mor computado
chegou a Rs. 1:218$000, distribuído entre algumas cabeças de gado vacum, terras e oito
escravos. Cinco desses escravos foram levados para hasta pública e arrematados por credores
para o pagamento de dívidas, restando apenas três crianças cativas que não foram vendidas.
João Pereira de Castro Filho foi um daqueles credores de Dionísio e, diante da morte do
devedor, entrou com petição na Justiça de Monte Alto para embargar os recursos deixados
pelo falecido. E logo tratou de levar os escravos do devedor a pregões em praça pública,

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Dionísio Barros de
144

Oliveira. Mç: 11, 1852.


157

dentre eles, a escrava Francisca, 30 anos, avaliada por Rs. 400$000, e sua filha, conforme
juntada de justificativa nos autos, alegando que a escravinha devia ser vendida “juntamente
com a mãe e que torna inseparável, e evitar assim grandes despesas com uma nova praça, só
para ele” 145.
Muitos cativos foram levados para locais distantes, face o tráfico interno, rompendo
vínculos e redes familiares. A história que emerge do documento não tratava apenas de uma
exceção de pequenos senhores vulneráveis a crises financeiras. A venda da cativa Francisca
juntamente com a filha representou drama de muitos outros escravos e ofereceu olhar mais
atento para as relações de poder que se constituíam por senhores, para com escravizados,
livres pobres e libertos. É uma história que despontou em meados de 1850, cujo contexto
social era marcado pela suspensão do tráfico atlântico, pela expansão do tráfico
interprovincial, de que senhores sertanejos se beneficiaram. É importante lembrar que a
reprodução natural entre cativos favoreceu economicamente, a certo modo, alguns
proprietários. A preocupação em leiloar mãe e filha “inseparável” deixa explícito o desejo de
repor o valor emprestado a Dionísio perante uma venda rápida e sem perdas financeiras. A
experiência de Francisca e sua filha, levadas a pregões da Praça de Monte Alto, é elucidativa
do quanto o comércio de escravos despertava controle de poder senhorial sobre seus
subalternos.
Como dito em outros momentos deste trabalho, a família era crucial para a vida em
cativeiro, sendo esse vínculo uma das maiores conquistas dos escravizados, resultado de
muito esforço e negociação com seus senhores, ainda que implicasse uma relação pautada
pela “força e favor”, em que “a família escrava transformava os cativos em reféns tanto dos
seus próprios anseios quanto do proprietário” (SLENES, 2004, p.276).
Em propriedades de Monte Alto, proprietários, procuradores e intermediários nos
negócios do tráfico ignoravam a existência de vínculos familiares, camuflando suas intenções,
para que as conexões do comércio não fossem impedidas. Esses senhores e traficantes de
escravos eram residentes na região do Alto Sertão baiano, tinham fazendas, escravarias e se
envolveram intensamente naquela atividade atraídos por lucros com o suprimento de
demandas nas províncias de Sudeste e outros lugares146. Nas procurações, notam-se diversos
trânsitos de escravos de vários lugares da Bahia ilustrando as muitas idas e vindas do ativo
comércio, visto serem “bens” de maior importância entre proprietários da região. Pequenos

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Dionísio Barros de
145

Oliveira. Mç: 11, 1852.


146
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas, 1878 a 1884.
158

senhores se inseriram na dinâmica do tráfico, repassando cativos a traficantes e firmas


especializadas para revenderem em outros lugares.
Nos registros de notas da freguesia do Gentio, termo da cidade de Caetité, em 1880, o
pequeno proprietário Isidro José Barbosa concedeu todos os poderes aos procuradores:
Manoel Cândido de Oliveira Guimarães, Joaquim José de Farias, Lauro Gonzalez e José
Manoel, para vender e assinar, na província de São Paulo, a escritura pública da escrava
Benedita, natural da Bahia, de filiação desconhecida, e de sua filha Laurência, de doze anos,
solteira, ambas matriculadas na vila de Monte Alto.147 Aquela escrava possuía vínculos com
outros companheiros de cativeiro. Sua venda, juntamente com a filha, foi um ato não apenas
doloroso, com lembranças aos familiares, mas servia de alerta à comunidade cativa para
fortalecer os vínculos e criarem estratégias variadas como prevenção de que outros pudessem
cair também nas malhas do tráfico.
De acordo com Ricardo Tadeu Silva (2007, p. 68), “a maioria das vítimas também
eram adquiridas junto a lavradores e fazendeiros de pequenas posses”, principalmente em
períodos de secas prolongadas, em que esses senhores não tinham capital para suportar as
dificuldades, sendo obrigados a se desfazerem de seus poucos recursos para saldar dívidas.
Ressalta, ainda, que esses senhores vendiam também escravos dentro da mesma região a
outros senhores mais ricos e estes revendiam a intermediários, auferindo lucros exorbitantes.
Desse negócio, construíram fortunas, ao tempo em que desestabilizaram muitas organizações
do viver escravo na região. Somam-se a isso as fugas dos escravos, as mortes e as tensões da
partilha dos bens entre herdeiros, aspectos que sempre marcavam a imprevisibilidade da vida
em cativeiro.
Na vila do Brejo Grande, a escrava Clementina, de cor preta, 16 anos, solteira, foi
vendida para os ditos traficantes e, em 1880, o mesmo ocorreu com a escrava Anna, solteira,
parda, 26 anos, juntamente com a filha Eva, matriculada na região de Lençóis, Chapada
Diamantina, na Bahia.148 Em 1877, o vendedor Alferes Pedro Pereira da Silva Castro vendeu
ao comprador Tenente Manoel Cândido de Oliveira Guimarães duas escravas, uma de nome
Joana, crioula, de vinte anos, a outra, sua filha Vicência, cabra, de cinco anos149. No ano de
1880, Gabriel Pereira de Souza passou uma procuração para seis procuradores dando poderes

Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas, 1878 a 1884.
147
148
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884).
149
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de notas. Cx: Século XIX, 1875 a
1879.
159

para vender a escrava Margarida, de vinte e quatro anos, acompanhada do ingênuo de nome
Domingo. 150
Como se observa, esses traficantes atuavam ativamente na região do Alto Sertão
baiano, com patentes de tenente, coronel, alferes, capitão, quando não eram eles mesmos
fazendeiros ou tocavam grau de parentesco a grandes senhores. Tais condições favoreciam a
atuação deles, não só referente às relações pessoais, quanto à facilidade no desenrolar das
transações de procurações em cartório local. Sem contar que muitos desses traficantes
fartaram-se nos contrabandos para burlar o fisco. Erivaldo Fagundes Neves (2000) denotou,
em estudos sobre o tráfico interno para Caetité, cidade vizinha de Monte Alto, no século XIX,
fortes vínculos entre proprietários e traficantes de escravos e ainda observou que alguns dos
nomes pertenciam a familiares residentes em Caetité e região como: “Costa Negrais, Oliveira
Guimarães, Teixeira Lacerda, Vasconcelos Bittencourt”, entre outros (NEVES, 2000, p. 118).
Muitos desses traficantes identificados por Neves (2000) estão presentes nas
procurações de Monte Alto e apresentavam similaridades nas características dos que atuavam
em Caetité, a exemplo de Manoel Cândido de Oliveira Guimarães. Em 1880, ele apareceu ao
lado de mais seis procuradores comprando cativos de senhores da região de Monte Alto. A
cativa Margarida, 24 anos, acompanhada do ingênuo Domingo, estava no rol das negociações.
151

Essas relações entre senhores do Alto Sertão baiano e traficantes implicava maiores
proximidades das vilas, roças e povoados. Maria de Fátima Novaes Pires assevera que
“senhores mais abastados mantinham fazendas em ambas as localidades e também grandes
proximidades em variados momentos da vida política” (PIRES, 2009, p. 57). Esse contato
favoreceu traficantes de escravos, prioritariamente, nos disfarces dos registros cartoriais, que,
movidos pelo lucro, sonegavam de todas as maneiras possíveis o Fisco Imperial. E isso só se
concretizou devido à rede de pessoas interessadas e compactuadas nos mesmos interesses,
incluindo nesse caso a proteção de alguns funcionários de cartório. Essa circunstância da
proteção de escrivão de cartórios pode ser percebida na grande incidência de procurações de
compra e venda de cativos, na freguesia de Gentio, que, até 1876, pertencia a Monte Alto,
sendo depois anexada a Caetité. Presume-se que a localização da freguesia entre as duas
cidades, aliada à ao fato de ser próxima do caminho para a província de Minas Gerais,
constituía bom lugar de disfarce e invisibilidade na realização das transações comerciais.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de notas. Cx: Século XIX, 1880.
150

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livros de notas. Cx: Século XIX, 1880.
151
160

Grandes traficantes de escravos, inclusive, tinham residência fixa nessa freguesia, a exemplo
de João José de Farias e Leolino Ribeiro e Silva.
Na Freguesia do Gentio, o vendedor Honorato Pereira de Castro outorgou, em
escritura pública, ao comprador Theóphilo Monteiro de Magalhães, a venda da escrava
Sancha, apta para o serviço de lavoura, pelo preço de Rs. 400$000, acompanhada de duas
ingênuas de nomes Emília e Christina152. O auge do tráfico para o sertão baiano foi na década
de 1870, que coincidia também com a implementação da Lei de 1871, o que ampliou as ações
de escravos na Justiça em busca de suas manumissões e da garantia da continuidade dela, face
às ameaças de senhores trapaceiros na tentativa de rescindir alforrias duramente conquistadas.
Como se pode notar, e que é asseverado por Ricardo Tadeu Caires Silva, o tráfico
interno “causou nos escravos enormes sequelas físicas e, sobretudo, psicológicas, na medida
em que estes eram retirados do convívio de seus parentes e familiares e obrigados a
reconstruir suas vidas em outras paragens” (SILVA, 2007, p. 126). O tráfico não só
desestabilizou arranjos familiares existentes, como qualquer condição de “práticas de
dominação específica”, adquiridas no interior das relações costumeiras com senhores, por
meio de negociação ou resistência e, que, de certa forma, impuseram alguns limites à política
de domínio senhorial (CHALHOUB, 2012, p. 259).
Para Robert W. Slenes (2004), ao tempo em que a família servia aos interesses
senhoriais, diante do aumento da posse cativa, ela poderia contrariar tais perspectivas com a
ampliação das redes de parentesco, compadrio e solidariedade, garantindo certo espaço de
mobilidade social e maiores chances de auferir a alforria. Se escravos foram vendidos e
arrancados da convivência familiar, outros permaneceram e fortaleceram laços de identidade
com companheiros de cativeiro.
No que se refere ao casamento legitimado pela Igreja, esse pareceu ser mais
significativo em médias e grandes propriedades, embora não ficasse descartada a
possibilidade de cativos de pequenos senhores contraírem o matrimônio religioso, já que o
casamento constituía meios de assegurar vantagens individuais, alcance da alforria e de
outras formas de inserção social. Alex Andrade Costa (2016, p.123/124) aponta que havia nas
pequenas propriedades pouca incidência, devido a dois fatores possíveis: desequilíbrio da
razão entre os sexos e estratégias dos senhores em evitar casamentos de escravos entre
propriedades variadas “com o objetivo de resguardar futuros negócios.” Apesar de o autor
analisar uma região com características diferentes das de Monte Alto, as diminutas uniões

152
Cartório de Registro Cível - Ceraíma, Distrito de Guanambi/BA. Livro de Notas (1878 a 1884), f. 19 e v.19,
1879.
161

legitimadas também foram percebidas em pequenas propriedades, contudo, observa-se que as


uniões consensuais sobrepuseram e algumas delas ocorriam com cativos de outras
propriedades.
No sítio Barreiro dos Coqueiros, no ano de 1862, após o falecimento de D. Maria
Ignácia Nunes, deu-se início à abertura de inventário, com monte-mor declarado em
Rs.2: 655$000 e seis escravos, sendo a cativa Brízida, africana de 60 anos, avaliada por
Rs. 150$000, e Luzia, crioula, 24 anos, por Rs. 900$000. Os demais escravos eram crianças
entre 02 e 09 anos de idade. Com a morte da proprietária, Brízida, Luzia e Maria, de 07 anos,
foram vendidas e os valores recebidos, divididos entre os herdeiros, restando, apenas, dois
escravinhos que mais tarde foram dados aos herdeiros. Interessante que aquela pequena
proprietária não tinha na lista nominativa escravo homem adulto, levando à hipótese de que as
crianças nascidas na propriedade eram fruto de relações consensuais com escravos de outros
senhores, o que não era incomum, devido a pouca opção de escolhas de parceiros nas
pequenas propriedades, daí, a ampliação de redes fora dos limites senhoriais.
Conforme dito em capítulo anterior, o número de uniões legítimas entre cativos de
pequenos senhores foi menor em relação ao de grandes senhores. Por conseguinte, cativos de
pequenas posses constituíram famílias, em sua maioria, fruto de relações ilegítimas, o que não
significou ausência de uniões estáveis e presença paterna. Muitas dessas famílias tinham o
destino passageiro de convivência, dado o tráfico interno e a partilha dos bens, que
geralmente eram vendidos para serem repartidos em valores monetários, entre os herdeiros.
Assim, a partilha dos bens entre herdeiros de pequenos senhores marcava também situação de
vulnerabilidade na vida de famílias escravas.
Quando da morte de Euzébia Maria da Conceição, os parcos bens possuídos deveriam
ser divididos entre nove herdeiros. A quantia arrolada foi apenas de Rs.1: 160$000, sendo a
maior parte do montante referente a quatro cativos153. Jerônimo, africano, 35 anos, pareceu
manter união estável com a escrava Honória, 25 anos, crioula, e dessa relação tiveram uma
filha de nome Eva, de um ano de idade. Essa família foi dividida, quando a sua senhora
faleceu, visto a quantidade de herdeiros e, possivelmente, a venda dos escravos para repartir
os valores devidos, já que a quantidade de cativos e bens deixados pela falecida era
insuficiente.
Situação idêntica foi a da pequena proprietária Ana Maria da Conceição, em 1841,
moradora no sítio do Enxu, que arrolou quatro escravos e um monte-mor de Rs. 1: 228$360

153
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
1841. Maço 06.
162

para dividir entre seis herdeiros: Manoel, 24 anos, crioulo, avaliado em Rs. 350$000,
mantinha união com Maria, africana, Rs. 350$000, de 18 anos. Desse casal nasceram duas
crianças: Balbina, crioula, 01 ano, e Justina, crioula, 02 meses, evidenciando união estável
desmantelada no momento da morte dos senhores. Havia ainda a prática de dotes, distribuídos
entre filhos, quando casassem, e a arrematação desses escravos para o pagamento de dívidas
deixadas pelo falecido.
Jonis Freire, estudando famílias escravas de três grandes senhores da Mata Mineira
oitocentista, afirmou:
O ato da partilha dos bens de um proprietário foi, sem dúvida, um dos
momentos que mais causou expectativas e tensões para os escravos e suas
famílias. A possibilidade de esfacelamento dos laços consanguíneos e
fictícios sempre presentes chegava ao seu ápice no momento da morte de
seus senhores, quando os cativos se deparavam com aquilo que eles temiam
muito: a venda para um dono novo e desconhecido (FREIRE, 2010, p. 14).

Para o autor, o tamanho da posse cativa interferiu na estabilidade familiar dos escravos,
e, costumeiramente, a morte de um senhor podia ou não gerar tensões nas negociações por
permanência junto aos familiares. Entretanto, entre pequenos senhores, muitas dívidas
ficavam pendentes, levando os herdeiros a venderem os cativos, arrematarem-nos para o
pagamento de dívidas ou repartirem entre si. Havia outras negociações internas em que
cativos de pequenos senhores eram vendidos para grandes senhores, com a finalidade de
serem pagas as dívidas contraídas.
Nesse caso, alguns desses escravos poderiam permanecer na mesma localidade, sem
perder o contato com seus antigos companheiros e, presumivelmente, adquiriam uniões com
livres, mas a venda de um escravo de pequeno senhor para um grande senhor não significava
garantias de permanência na propriedade, dado o envolvimento desses grandes proprietários
com firmas especializadas no tráfico interprovincial e, como dito anteriormente, era comum
repassarem esses cativos a preços superiores aos valores adquiridos. Por exemplo, no ano de
1872, o Capitão João Pereira de Mesquita teve seus pequenos bens arrolados no valor de
Rs. 2: 175$000, sendo que o maior valor do patrimônio era investido em oito escravos em sua
propriedade. Conjectura-se que esse senhor passou por dificuldades financeiras e, no final da
vida, deixou parcos recursos. O título de capitão sugere que ele não era tão pobre assim em
anos anteriores ao seu falecimento.
Ao registrar o espólio do falecido, a inventariante Adélia Carolina de Freitas Mesquita
justificou ter vendido alguns bens para pagamento de dívidas que existiam antes do
inventário: uma casa situada na Rua do Conde d´Eu, naquela vila, 10 burros, 4 cavalos, alguns
163

acessórios da casa e algumas joias de ouro e prata. Justificou, ainda, a venda dos seguintes
escravos: Roque, vendido para o grande proprietário da Fazenda Cajueiro, Faustino Moreira
Castro, para pagamento de dívidas contraídas, o escravo Bernardo, vendido para o Capitão
Joaquim Pereira de Souza Costa, e o escravo Cândido, entregue a João de Barros, também
para quitar dívidas.154 Os demais escravos ficaram sob o poder da inventariante, por esta não
ter herdeiros e apenas o cativo Moisés, crioulo, de cinquenta anos, foi alforriado por
recomendação do falecido.

Quadro 10 – Escravos que permaneceram com a herdeira Adélia Carolina de Freitas Mesquita -1872

Nome Idade Valor Outras informações


Dionísia cabra 38 anos 500 mil Cozinheira
réis
Eufrásia cabra 28 anos 600 mil Engomadeira, lavadeira, e de todo o
réis serviço.
Catharina cabra 26 anos 550 mil Serviço mestiço
réis
Juliana crioula 5 anos 225 mil Filha da escrava Dionísia
réis
Estanislao crioulo 3 anos 250 mil Filho da escrava Dionísia
réis
Joanna Crioula 3 anos 50.000 mil Atacada de syphilis
réis
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Série: Inventário de Capitão João
Pereira de Mesquita, 1872.

Os escravos que ficaram com a inventariante do Capitão João Pereira de Mesquita não
resultaram de uma escolha aleatória, tratava-se de cativas mulheres, em idade reprodutiva e
que poderiam lhe render um bom negócio no futuro, a exemplo da cativa Dionísia, cabra, de
38 anos de idade e mãe de dois escravinhos, Juliana, crioula, cinco anos, avaliada em
Rs. 225$000, e Estanislão, crioulo, três anos de idade, por Rs. 250$000. Havia ainda a escrava
Joana, de três anos, avaliada por Rs. 50$000 e que sofria de Sífilis, situação que a colocava
em valores bem abaixo dos estipulados para os demais escravos crianças; presume-se que a
referida escrava era filha de outra escrava da inventariante. A fonte permite elucidar, ainda, as
profissões das cativas voltadas a diversos afazeres domésticos, como cozinhar, engomar,

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Série: Inventário de Capitão João Pereira
154

de Mesquita, 1872.
164

lavar, e para todo o serviço diário da rotina do pequeno sítio, bem como a relevância da
mulher escrava na localidade e as múltiplas pluralidades de modelos familiares.
Acerca desta questão, Sheila de Castro Farias, pontua que o casamento legitimado não
era acessível somente à elite branca e que estudos da historiografia brasileira mais recente
encontraram número considerável de crianças livres e libertas, com registros de batismos e
pais casados, fogos chefiados por mulheres e forte presença de concubinato, relativizando e
desmistificando, assim, a noção do casamento e da família extensa como modelos que
caracterizavam somente as elites brasileiras (FARIA, 1997, p. 255-256). Para a autora, os
escravos encontraram condições possíveis de organização social dentro e fora do cativeiro,
pluralizando as noções de família através de grupos variados de origem étnica.
Esses escravos que não caíram na malha do tráfico tiveram seus destinos, às vezes,
partilhados por meio de heranças ou dotes, levando-os a pertencer a outro dono, situação que
não o fazia perder o contato direto com os antigos companheiros, ou manterem-se
geograficamente próximos a parentes e amigos. Assim, as relações de proximidade, amizade e
solidariedade se estendiam a escravarias de propriedades diferentes, tendo a família e o
compadrio importantes vínculos no fortalecimento desses laços. Em Monte Alto e cidades
vizinhas, o comércio de cativos impactou, e muito, os arranjos familiares e, sem sombra de
dúvidas, grandes, médios e pequenos proprietários se envolveram diretamente com essa
atividade, daí, aqueles escravos pertencentes a senhores de pequenas posses sempre levarem
desvantagens na hora de negociar a sua permanência, embora essas relações não deixassem de
existir.
Escravos africanos e crioulos nascidos aqui logo se inseriam nas atividades das
fazendas, demarcando espaços de conquistas, hierarquias e organização familiar. Muitos
sabiam que suas vivências por aquelas fazendas podiam ser passageiras, dado o intenso
comércio via tráfico, crises financeiras, secas, estiagens prolongadas e partilha dos bens que,
volta e meia, desestruturavam qualquer tipo de organização montada no cativeiro. Em meio a
tais circunstâncias, deixaram registros de suas experiências de vida coletiva e individual,
reconstituindo laços de fortalecimento entre si e os seus, mesmo que os limites impostos pelos
senhores deixassem marcas indeléveis a vidas de muitos escravos, valendo isso para cativos
de grandes, médias ou pequenas propriedades.
No ano de 1872, inventariaram-se os bens de Dulino Correia de Lacerda, morador do
Sítio Jatobá, com uma casa velha e mobília simples. Na descrição dos bens feita pela viúva
inventariante, D. Dolina Teixeira de Camargo, constaram uma casa de morada, algumas
ferramentas, dívidas contraídas e a posse de cinco cativos: Maria Rosa, crioula, 35 anos,
165

Rs. 500$000, serviço doméstico, e seus filhos, Eduardo, crioulo, 6 anos, Rs. 400$000,
Domingas, crioula, 4 anos, Rs. 250$000, Hylaria, crioula, 2 anos, Rs. 120$000, e Mathildes,
crioula, Rs. 200$000. Apesar das dívidas contraídas e da partilha dos bens entre os herdeiros
do casal, os órfãos Luiz, Balduíno, Deslisando e Generosa, a família cativa permaneceu sob a
posse da viúva Dolina Teixeira de Camargo.155 Nesse cenário, que compunha o cotidiano dos
escravos, é possível que a senhora Dolina Teixeira de Camargo tenha preservado a família
cativa para fins de melhor desenvolver as atividades agrícolas em sua propriedade, já que
preferiu entregar outros bens de valor aos herdeiros, sabia também que a reprodução natural
dos cativos poderia lhes render lucros. No caso, a cativa Maria Rosa, com quatro filhos, sem a
presença de cativos homens naquela propriedade, indica que ela mantinha relação consensual
com parceiros de outras propriedades.
Assim, escravos de pequenos proprietários, como João Pereira de Mesquita e Dulino
Correia de Lacerda, pareciam não ter tantas opções na escolha de companheiros para manter
uniões estáveis ou consensuais, dentro de uma mesma propriedade se comparado às grandes e
médias fazendas, mas esses homens e mulheres escravo(a)s buscaram parceiros fora da
propriedade de seu senhor, inferindo redes de relações constituídas, em sua maioria, com
livres e forros. Nesse sentido, Robert W. Slenes (2010) notabilizou que se a casa grande
convergia parte das relações estabelecidas com seus cativos para interesses próprios, estes
desfrutaram também de vantagens, que incentivaram a identidade individual e coletiva,
inclusive ao aderir à instituição familiar.

4.3 Alforria em pequenas propriedades

Luizina comprou a alforria bem antes de a sua senhora, Anna Domingues de Almeida,
falecer e, mesmo com a carta em mãos, continuou morando na propriedade, ao lado da filha,
de nome Maria, cabra, fruto de relação consensual. Luizina, crioula, tinha 24 anos, avaliada
em Rs. 300$000, e pertencia a Anna Domingues de Almeida, proprietária de oito cativos, com
um monte-mor concluído no ano de 1844, avaliado em Rs. 2: 638$000. Quando sua senhora
morreu, deparou-se com situação típica de outros escravizados em propriedades de Monte
Alto: geralmente, herdeiros ignoravam a alforria de ex-escravos no ato de partilha dos bens
patrimoniais, reinserindo-os no cativeiro. Em 1848, ela foi entregue ao comendador Antônio

155
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Série Inventários.
Inventariado: Dulino Correia de Lacerda, Maço 23, 1872.
166

Botelho de Andrade, provavelmente para pagamento de dívida deixada pela falecida. Esse
senhor era um rico proprietário e negociante da região, pai de Antônio Botelho de Andrade
Júnior e Ezequiel Botelho de Andrade, traficantes de escravos e donos da Fazenda Lameirão,
quando contraiu matrimônio com D. Antônia Barbosa de Andrade. Ezequiel era aquele senhor
que enfrentou disputas judiciais com a escrava Inez, apresentada no primeiro capítulo desta
tese.
Na Fazenda da Serra do Tanque, a pequena proprietária se dedicava à criação de
quarenta cabeças de gado vacum e à produção agrícola. Em 1844, quatro dos cinco cativos
arrolados eram responsáveis pelo trabalho nessa propriedade. Após o falecimento de Anna
Domingues de Almeida, os cativos foram divididos entre os herdeiros da seguinte maneira:
Procópio, crioulo, 20 anos, Rs.400$000, Domingas, crioula, 15 anos, Rs.300$000, e Fabiana,
crioula, 23 anos, Rs.300$000, ficaram sob a posse do viúvo Francisco José do Amaral. À
herdeira Lina foi dada a escrava Luizina, crioula, 24 anos, Rs.300$000; ao herdeiro
Bernardino, o escravo Ricardo, 5 anos, Rs. 200$000; à herdeira Maria Madalena, a cativa
Marcolina, crioula, 2 anos, Rs. 180$000; à herdeira Jesuína, o escravo Irineu, crioulo, 02
meses, Rs. 50$000; e à herdeira Maria, a escrava Venância, 6 anos, Rs.260$000.
No decorrer do processo, já em 1848, o inventariante declarou o nascimento de mais
quatro cativos: Maria, cabra, filha de Luizina, que se achava forra, Rozinda, crioula, 3 anos,
Benjamim, crioulo, 2 anos, Irina, 1 ano, e Eugênia, 1 mês, filhos da escrava Fabiana,
presumivelmente frutos da relação com o escravo Procópio. Nota-se que os cativos em idade
adulta, Fabiana e Procópio, ficaram sob a posse do viúvo, talvez por manterem relação estável
e em condições de reprodução natural, o que poderia, assim, ampliar sua escravaria.
Após a partilha dos bens, a herdeira Lina justificou que uma de suas escravas, de nome
Lirina, estava em condições de fuga, por isso, requeria que a escrava fosse presa em lugar
seguro, “para que impeça que se evada e que não fique em prejuízo”. Ainda em 1848, Lina
viu-se novamente em situação de prejuízo, visto que a escrava Luizina, recebida como
herança, já havia sido alforriada antes da morte de sua mãe, Anna Domingues Almeida.
Contudo, Lina depositou a escrava Luizina sob o poder do Comendador Antônio Botelho de
Andrade, para pagamento de dívida contraída.
O inventariante, Francisco José do Amaral, reclamou que a referida escrava tinha sido
liberta e, quando o juiz avaliou o caso, constatou a alforria de Luizina, anulando um ano
depois, em 1849, o depósito da escrava já em mãos de Antônio Botelho de Andrade. E para
compensar o prejuízo da herdeira Lina, valeu-se de outros escravos nascidos no Sítio Tanque
da Serra, após a abertura do inventário. Era o auge do tráfico interprovincial e, certamente, os
167

herdeiros, diante dos parcos recursos deixados pela falecida, viam na partilha dos cativos
meios de ampliar o patrimônio. A tentativa de quebrar o acordo realizado entre Luizina e sua
senhora, ainda que a liberta tivesse pagado pela sua alforria, denotou a vulnerabilidade e
precarização das alforrias em Monte Alto. Além do alto custo realizado pela escrava para
amealhar o pecúlio, tivera que deparar com situação embaraçosa: o risco de perder a
manumissão, conquistada a duras penas.
A história de Luizina aconteceu entre o final do ano de 1849 e início de 1850,
momento da proibição do tráfico atlântico, quando a região do Alto Sertão da Bahia vivenciou
a continuidade da força da escravidão mediante o tráfico inter e intraprovincial, situação que
despertou maiores ambições de lucro por parte dos senhores escravistas, tornando a conquista
da alforria mais difícil. Entretanto, alguns cativos conseguiram êxitos nas negociações com
seus senhores ou nos tribunais, quando estes não cumpriam os acordos estabelecidos por meio
do direito costumeiro. Todavia, é preciso destacar que o tráfico interno, sem sombra de
dúvidas, interferiu e muito no acesso à alforria, principalmente entre escravos de pequenos
senhores. As secas nas décadas de 1850 e 1860 provocaram queda brusca de produção
econômica no sertão, sendo os pequenos proprietários os mais atingidos com esse problema.
Com poucos recursos, não conseguiam superar os momentos de crise e, como o mercado de
escravos estava em alta, não hesitaram em se desfazer de seu “bem mais valioso”, o cativo.
Esses senhores contraíam muitas dívidas com médios e grandes senhores, hipotecavam seus
cativos como garantia do pagamento e, quando morriam, era preciso levar os cativos a leilões,
ou eram dados como pagamento das dívidas a credores. Daí, a dificuldade para a aquisição da
alforria em Monte Alto, principalmente para escravos de pequenos e médios senhores.
O tráfico interferiu de forma violenta nas vivências escravas e, consequentemente, no
acesso às manumissões. Diante de contextos difíceis como esse, os escravizados envidaram
esforços redobrados para fazer valer seus desejos. Além de contar com a dificuldade de juntar
pecúlio, muitos deparavam ainda com a negação da conquista por parte de seus senhores, o
que provocava embates jurídicos e tensões no âmbito das propriedades. Soma-se a essa
questão a escassez de pequenos senhores em adquirirem cativos mediante o tráfico
clandestino, após 1850, o que deve ter interferido na manutenção da posse escrava, visto os
altos preços e as parcas condições financeiras, sendo penosa a concorrência com senhores
mais afortunados.
Porém, mesmo diante de todas essas dificuldades, observa-se, para Monte Alto, que a
posse escrava foi substancial nos assentamentos de bens contidos nos inventários. Ao que
pareceu, a posse cativa atingiu a todas as camadas sociais e era símbolo de distinção social, ao
168

menos, em termos de valores patrimoniais. Ter cativos conferia status e garantia ao


proprietário, segurança e liquidez em dinheiro, já que havia grande procura no mercado. As
hipotecas provenientes de empréstimos financeiros, as trocas de mercadorias, os leilões em
praça pública, a procura dos mercados no sul e sudeste do País, tudo isso despertava cobiça na
aquisição desse “bem” de capital, visto ser aceito em qualquer canto do Brasil. Assim, o
indivíduo mais pobre da região, incluindo aqui o escravo, ao mais abastado aplicavam
investimentos na posse escrava e, no caso dos pequenos senhores, esse investimento também
girava com rapidez, posto ganhar lucro ou usá-los para pagamento de dívidas.
Se o escravo constituía “bem” de capital valioso para os indivíduos daquela época, em
Monte Alto, obviamente, as negociações em torno das alforrias eram mais complexas,
principalmente se levarmos em conta cativos de pequenos senhores, pois estes, diante das
dificuldades financeiras, recorriam à venda de seus escravos para se socorrerem das crises.
Por isso, grande parte das alforrias para a região foi adquirida por compras, não se
descartando aqui casos de cativos premiados pelos chamados “bons serviços”, mas, em sua
maioria, eram necessárias astúcia e habilidades para alcançá-las. O direito costumeiro
perpassava por uma série de requisitos, impostos na lógica das convivências de escravos,
senhores e forros, com avanços ou recuos nas negociações.156 Faz-se importante mencionar
que o direito costumeiro, “mesmo não se tratando de códigos legais, essas práticas também
tinham suas regras de funcionamento e aplicação, regras que não podiam – e não eram –
ignoradas pelos envolvidos” (JESUS, 2007, p. 46).
Para o norte de Minas Gerais, Jesus (2007, p. 147) assinalou que havia muitas formas
de senhores negociarem com seus cativos, por meio do costume, considerado direito
adquirido nas relações de sobrevivência. O pecúlio, nesse caso, foi inserido como resultado de
negociações constantes de senhores e escravos no Brasil, entre tantos outros costumes. Até
mesmo o embate jurídico assentava, em sua maioria, em cima destas questões usualmente
corriqueiras e negociadas entre senhores e escravos. Era nas brechas dos costumes,
conquistados a duras penas, que escravos lutavam diariamente para serem respeitados, uma
vez que o processo de relacionamentos entre senhores e escravos envolvia trocas culturais,
acordos, negociações, tensões e laços de solidariedade e conflitos.
Esses costumes aproximavam senhores e cativos, mesmo que fosse com interesses
antagônicos, mas necessários nas negociações para o alcance da liberdade. O pagamento da

Conforme Thompson (1998, p.89), “o costume vigorava no contexto de normas e tolerância sociológicas.
156

Vigorava igualmente na rotina cotidiana de ganhar o sustento. Era possível reconhecer os direitos costumeiros
dos pobres e, ao mesmo tempo, criar obstáculos ao seu exercício.”
169

alforria favorecia o senhor, visto que ele não perderia o investimento feito com o escravo; por
sua vez, o ato de pagar significava e muito para o escravo, pois era evidente que, ao juntar
pecúlio, alcançava a condição de negociar a liberdade, demonstrando habilidades e estratégias
de vida naquele momento. A ameaça do retorno ao cativeiro era sempre uma situação
embaraçosa, colocando em risco a vida e projetos de muitos escravizados e libertos. Como diz
Victor Santos Gonçalves (2017, p. 173), a “zona entre a escravidão e a liberdade foi marcada
pela incerteza social da sociedade brasileira oitocentista”. Nesse sentido, a escravidão tinha
limites além da legalidade, pois as populações negras e libertas conviviam sempre com o
fantasma do retorno ao cativeiro e de um Estado omisso e fiador da propriedade escrava.
Tudo isso colocava em perigo “a liberdade limitada” e precária (GONÇALVES, 2017).
Foram intensas as lutas e estratégias de escravizados em Monte Alto, na tentativa de se
verem distantes do cativeiro, principalmente a partir de 1840, quando o tráfico interprovincial
garantiu a continuidade da escravidão no sertão baiano, despertando nos senhores lucros e
ambições pessoais de enriquecimento. Por isso, as lutas constantes dos cativos não só para
obter o alcance à alforria como para assegurar o direito à continuidade dela.
Outra característica dos modos de alforriar entre pequenos senhores diz respeito às
relações de afetividade, embora não tão explícita nas cartas ou inventários. A comoção na
hora da morte poderia levar senhores a conceder alforrias a cativos, o que, mais tarde, geraria
tensões entre os herdeiros. Quando José Temothio Ferreira dos Santos faleceu, deixou um
monte-mor avaliado em Rs. 2: 807$420, oito cativos para serem divididos entre a viúva, um
filho menor e mais duas pessoas citadas em testamento: João Pereira Teixeira e o Comandante
João Caetano Xavier da Silva. Na hora da morte, declarou em testamento que, se o filho
menor morresse, os bens deixados seriam repartidos entre os escravos, concedendo-lhes a
alforria. Declarou que já havia concedido alforrias quando sua primeira mulher faleceu, a
pedido dela, e outra alforria a pedido do seu pai, e deixava também livre a escrava Allana,
africana, 50 anos de idade, avaliada em Rs.100$000, e Justiniano, cabra, 60 anos,
Rs. 120$000, “machucado de um lado do rosto”. Os demais escravos foram vendidos em
leilão: o escravo Joaquim, africano, 60 anos, e a escrava Custódia, crioula, 25 anos, avaliada
em Rs.400$000, por esta apresentar “condições de fuga” e por temer que o menor ficasse em
prejuízo.
Essas ações de comoção gerariam mais tarde, quando da abertura do processo de
partilha dos bens entre herdeiros, questionamento sobre a veracidade das alforrias, ao ponto
de se tentar retorná-los ao cativeiro. A morte de um senhor de pequenas posses e o
endividamento geraram instabilidade na vida dos cativos, visto que, em algumas situações, os
170

credores exigiam que o mínimo do patrimônio existente fosse leiloado em praça da vila de
Monte Alto, com a finalidade da quitação das dívidas contraídas em vida.
O exemplo nos remete, ainda, a pensar sobre a interferência senhorial no destino dos
cativos, de modo que, mesmo na hora da morte, a expectativa de uma política paternalista
estava sempre explícita ou implícita no ato de consecução da alforria. Termos como “pelos
bons serviços prestados”, “como se do ventre livre nascesse”, “remuneração dos serviços
prestados” expressavam um ato de doação, comoção, mas também de domínio e prevalência
da vontade senhorial. Para receber alforria nessas condições, era preciso uma relação de
fidelidade mútua entre senhor e escravo e nem sempre os escravos eram respeitados pelos
herdeiros, após a morte do falecido. Nessas condições, Simony de Oliveira Lima, estudando
alforrias de escravizados entre pequenos senhores, em Carinhanha, região vizinha de Monte
Alto, também constatou:
Como a prática da alforria se desenrolava em âmbito privado, cabia ao
senhor decidir sobre a concessão ou não do pedido de liberdade. Dessa
forma, os cativos, juntamente àqueles que os assessoravam na escrita dos
pedidos de alforria, utilizavam de argumentos que evidenciavam o
paternalismo presente na relação senhor-escravo. Destacando, também, o
lugar de submisso que o escravo deveria exercer perante o seu senhor, aquele
a quem deveria dispensar respeito e gratidão. Essa foi uma das alternativas
utilizadas, no entanto, é preciso destacar que outras estratégias foram
adotadas e muitos dos processos judiciais movidos por escravos com vistas a
alcançarem a liberdade comprovam essa questão (LIMA, 2017, p. 148).

Muitos cativos se esforçavam para amealhar o pecúlio e comprar suas manumissões,


outros se valiam de estratégias de aproximação e fidelidade para serem recompensados com a
alforria. Vale ressaltar: cativos que recebiam a alforria pelo reconhecimento dos “bons
serviços” e sem pagamento eram, geralmente, aqueles com idade avançada e crianças na pia
batismal. Dificilmente, cativos em idade reprodutiva ou aptos para o trabalho conseguiam
manumissões nestas circunstâncias, sobretudo os de pequenos senhores, em Monte Alto.
Assim, foi a carta de liberdade passada por D. Lina Roza de Jesus à sua escrava Luíza,
crioula, 40 anos, em 1871. A carta foi redigida com o seguinte teor:157

„de me servir durante minha vida e depois de finda essa, servir também a
meu filho e Reverendo Alexandre da Silva Leão por tempo de dez anos
sucessivos, que serão contados da data de meu falecimento à completar-se o
tempo declarado, ficando porém à vontade do dito filho, ser ou deixado de
ser completados, os dez annos marcados por mim para a dita escrava servi-
lo‟.

Livro sem capa, Tabelionato de Monte Alto, ano de 1871.


157
171

Nesse caso, a negociação ou imposição por parte dos senhores eram uma constante na
vida dos escravos, revelando abuso na relação estabelecida nos momentos das concessões e,
de certa forma, “o estatuto jurídico coadunava com essa classe senhorial no procedimento de
acumulação de propriedade ilegal” (CHALHOUB, 2012, p.229). Essa situação de
complexidade e de precarização das alforrias ocorria com maior frequência com senhores de
pequenas posses. Nesse caso, era preciso uma “boa” relação existente entre as duas partes
para que a alforria fosse alcançada. E isso vale até para as manumissões compradas, posto que
as relações de pequenos senhores apresentavam caráter menos disciplinador se comparadas às
de grandes proprietários. Para Victor Santos Gonçalves:

A obrigatoriedade que os ex-escravos tinham de acompanhar seus senhores


ou outros membros da família era uma estratégia de dominação eficaz, na
medida em que refletia uma determinação forçosa do plano de controle
senhorial. Dessa maneira, as alforrias sem pagamento pecuniário não podem
ser consideradas gratuitas, pois, na maioria dos casos, os escravos
continuavam obrigados a cumprir certos rigores do acordo formal entre
senhores e subalternos (GONÇALVES, 2017, p. 179).

Essas histórias que emergem dos inventários demonstram intensa vulnerabilidade de


cativos em pequenas propriedades, situação que tendeu a piorar a partir de 1840, com a
intensificação do comércio interno de escravos. Em outras palavras, os cativos pertencentes a
pequenos proprietários estiveram mais vulneráveis à venda e esfacelamento de laços
familiares. Os que permaneciam por maior tempo podiam construir vínculos na lida diária
com seus senhores e laços solidários com outros companheiros de senzala, entretanto, após a
morte do seu senhor, a situação deles tornar-se-ia tensa ou vantajosa. Sidney Chalhoub (2012)
pontua que as desavenças entre casais ou herdeiros poderiam oferecer algumas oportunidades
para os escravos, a depender da relação de forças do domínio senhorial ou da atuação deles no
interior do cativeiro. Em alguns momentos, cativos levavam vantagens no pleito pela alforria,
em outros, poderiam incorrer em descumprimento das negociações “resultando em ameaça à
liberdade conquistada” (CHALHOUB, 2012, p. 270). A assertiva do autor, se comparada com
as inúmeras atuações de cativos de Monte Alto em busca da alforria, permite-nos afirmar que
tais características foram mais recorrentes em grandes propriedades. Os pequenos não
dispunham de tantas vantagens assim, devido às instabilidades financeiras de seus senhores e
ao ativo tráfico interno na região, entre outras questões de cunho local que poderiam interferir
direta ou indiretamente na vida daqueles indivíduos.
Nos momentos de crise, como as secas, geralmente eram vendidos para pagamento de
dívidas, a fim de suprir necessidades da casa ou para aquisição de outro bem. No auto de
172

inventário de Maria Teresa, em 1849, cuja riqueza atingiu o modesto valor de Rs. 1: 049$000,
além de parcos bens, foram arrolados no espólio oito escravos. Destes, Nicolau, 20 anos,
avaliado em Rs. 150$000, e Faustino, 22 anos, avaliado em Rs. 160$000, foram destinados ao
pagamento de dívidas158.
Vale ressaltar: o argumento de que cativos de grandes e médias fazendas recorriam a
negociações em busca de alforria e constituição de famílias, com maior êxito, não isenta
perceber que, no termo de Monte Alto, entre os pequenos senhores, com posse de um a dez
escravos e faixa de riqueza de até Rs. 1: 000$000 a Rs. 5: 000$000, as negociações também
não existissem. Para escravo de senhor de pequena posse, os inventários denunciam algumas
tensões conflituosas entre herdeiros e a vulnerabilidade desse senhor em desfazer-se de seus
cativos com maior frequência, principalmente nos momentos de crises financeiras, deixando
sempre pendências de dívidas a credores em praça pública.
Há, nos livros de notas de Monte Alto, outro caso, semelhante ao da liberta Lirina:
herdeiros recorrendo à Justiça na tentativa de revogar a carta de alforria de escravos, que os
considerava bens de herança. Na procuração, davam todos os poderes, ou substabeleciam aos
procuradores para reverter a carta de alforria adquirida, conforme segue: no ano de 1882,
última década da escravidão, compareceram ao cartório do termo de Monte Alto os senhores
de nome Bibiano de Souza Brito e Antônio de Souza Brito, outorgando procuração a cinco
procuradores com o seguinte teor:

[...] „aos quais concedem todos os poderes em direito permitidos para que
defenderão o direito dos mesmos outorgantes em todos as causas cíveis,
commerciais ou crimes, especialmente para qualquer dos seus ditos
procuradores possa perante o juízo competente propor a ação de nulidade
da carta de liberdade passada clandestinamente aos escravos Tiburtino,
Galdino, David, Desidério, Francisco, Luzia, Rosa pertencentes aos
outorgantes e a sua irmã Maria Clara de Anunciação como únicos filhos
legítimos e herdeiros de sua finada Mae Dona Maria Luiza da Conceição e
reduzir os mesmos escravos a escravidão, em que desde nascidos
viveram, podendo seus procuradores por ellles substabelecidos,
empregarem para este fim todas e quaiquer recursos em direito
permitidos, aggravar, allegar, suspeição, appelar, fazer seguir a
apellação, jurar, processar os autores e testemunhas da referida cartas,
e quaisquer pessoas que tenhão concorrido para o acto de tal alforria
clandestina, de que tenha dado origem a mesma: protestar e tudo
assignar e seguir até mais alçada; para o que lhes concedem todos os
poderes [....]159.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária: Inventariado: Maria
158

Teresa. Mç: 09, n. do processo 436, 1849.


159
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Livro de Notas. Fonte: Livro de Notas de
Registro cível, 1882.
173

Mesmo que a senhora tivesse concedido a alforria aos cativos, por motivos quaisquer
que fosse, havia sempre o perigo de esses mesmos senhores ou herdeiros desfazerem de suas
decisões, reconduzindo à condição de escravizados. No exemplo acima, é possível que a ação
conjunta dos escravos contasse com a ajuda de alguém que conhecia os trâmites da Justiça
para a elaboração da carta de alforria coletiva. No livro de notas de Monte Alto, consta a carta
dos escravos alforriados passada por D. Maria Luíza da Conceição, que seria a mãe dos
herdeiros, uma pequena proprietária com monte-mor declarado em Rs. 4:761$000.160 O
documento sugere que não havia motivos para que a carta fosse considerada “clandestina”.
Por que, então, o registro da carta no cartório? Quem concedeu essa carta? O oficial estaria,
nesse caso, também envolvido na ação?
A procuração, além de contraditória, demonstrou que os herdeiros não concordaram
com a atitude de sua mãe em conceder alforria aos escravos, refutando dúvidas quanto ao fato,
e, pelo que se procedeu, souberam muito bem disfarçar para o tabelião sobre os envolvidos no
processo da alforria.
É evidente, ainda, a maneira meticulosa com que o cartório elaborou a procuração, de
forma que o texto repassasse poderes ilimitados aos procuradores para localizar os escravos
libertos e retorná-los ao cativeiro, confirmando as assertivas de Sidney Chalhoub (2012), de
que muitos escravos libertos eram confundidos e levados de volta à reescravização. Por sua
vez, a ação dos cativos foi bem pensada e elaborada para que não deixasse pista, daí, o
desespero dos senhores e a relutância nos tribunais. Ao recorrerem à Justiça, outorgaram
procuração a cinco procuradores para empreender caçada aos escravos, recurso difícil de ter
dado certo, pois era comum cativos fugirem em massa para quilombos à beira do Rio São
Francisco ou para outros lugares que garantissem certa segurança e evitar retorno ao cativeiro.
Essas ações dos herdeiros mostram o quanto senhores resistiram à abolição da escravatura e
não mediram esforços para retornar ex-escravo ao cativeiro.
O objetivo ao vender os ingênuos, que acompanhavam as mães, era evitar maiores
despesas, já que essas crianças, nascidas após a Lei do Ventre Livre, ficariam a cargo de seus
senhores, pois, ao completarem oito anos, facultava-se em lei a prestação de serviços entre
oito e 21 anos. Na verdade, era um hábito recorrente dos senhores utilizarem esses serviços
em benefício próprio, inclusive vendendo-os juntamente com suas mães, explicam Keila
Grinberg e Sue Peabody (2013). A vida dos escravos tornou-se ainda mais precária com o
incremento do tráfico interno elevando as tensões sociais entre senhores e escravos nos

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariada: D. Maria Luiza da
160

Conceição, 1860.
174

tribunais, a partir da conjuntura da Lei de 1871. Muitos escravos foram arrancados do


convívio familiar, outros, que permaneceram nas propriedades de Monte Alto, apesar da
violência e submissão, fortaleceram vínculos de solidariedade existentes nas relações com
livres e libertos para dirimir as agruras do cativeiro, por meio de longas e renhidas estratégias
de luta contra o domínio senhorial.
Para Sharyse Piroupo do Amaral, antes da promulgação da Lei de 1871, conceder a
alforria era uma prerrogativa de domínio senhorial feita a seus escravos quando estes fossem
merecedores de tal prêmio, assim, teriam que pautar-se em uma relação de obediência,
respeito e disciplina ao trabalho. E, mesmo sob pagamento, “não deixava de ser um
instrumento de dominação”, posto ser do senhor a decisão ou não de conceder a alforria
(AMARAL, 2012, p. 205). A consecução da alforria não impedia que o ex-escravo retornasse
ao cativeiro, diante de ingratidão ou qualquer ato que o senhor considerasse desleal. Como
não havia até aquele período lei que autenticasse o direito, este se concentrava na relação dos
costumes, cabendo pouca interferência do Estado nessas relações, salvo as situações em que o
cativo comprovasse na Justiça a recondução ao cativeiro, considerado por ele injusto. Como a
tentativa do retorno ao cativeiro representava realidade, muitos libertos recorriam aos
tribunais, com ajuda de curadores para provar o direito conquistado, ações que tramitaram de
Norte a Sul do País nos tempos da escravidão.
Sharyse Piroupo do Amaral aponta ainda que a Lei de 1871 ampliou as ações na
Justiça, assim como as práticas costumeiras entre senhores e escravizados, instituindo o
“reconhecimento do pecúlio, a compra da alforria sem consentimento do senhor, o fim da
revogação da alforria por ingratidão” (AMARAL, 2012, p.209), entre outras vantagens, além
da matrícula dos cativos e a criação do Fundo de Emancipação. Com isso, as possibilidades
para adquirirem suas manumissões se ampliaram, ao tempo em que colocavam em xeque os
costumes, antes centrados na relação de confiança entre senhor e escravo. Para Campinas,
Robert W. Slenes nos diz que a política de domínio senhorial apoiava-se numa relação de
força e favor, dialeticamente costurada entre senhor e escravo, sendo que essa relação se
estendeu pós-Lei de 1871, com a chegada dos trabalhadores imigrantes na região sudeste do
Brasil. Nesse sentido, embora os cativos tivessem alcance à alforria e êxito na sua consecução
via garantias legais, a força dos senhores sobre os cativos continuaria “uma barreira forte
contra uma reforma na área, que, na verdade, explodiria as bases do poder privado”
(SLENES, 2004, p.264).
A procuração analisada acima elucida que, independentemente de os cativos
alcançarem a alforria, clandestina ou não, o poder senhorial ainda constituía obstáculo para a
175

total eficácia da Lei de 1871, no termo de Monte Alto, tendo em vista a ação de nulidade
movida pelos herdeiros de Dona Maria Luíza da Conceição para “reduzir os mesmos escravos
à escravidão, em que desde nascidos viveram”. Mesmo diante do estado precário da liberdade
com que se depararam os cativos em e após a conquista de direitos, eles empreenderam ações
individuais ou coletivas na busca por direitos na instância da Justiça, ações essas que,
progressivamente, tinham a finalidade de fragilizar, de maneira gradual, a escravidão e a
política de domínio senhorial. Ricardo Tadeu Caires Silva (2000) não hesita em dizer que os
escravos foram à Justiça em busca de liberdade e não raro tiveram que enfrentar a arrogância
de seus senhores, apesar da proteção da lei. Mesmo sob a pressão das leis emancipacionistas,
é possível verificar, na documentação analisada, a continuidade do trabalho cativo na região
até os últimos anos da escravidão. A manutenção da posse foi preservada por senhores na
garantia de utilizar os ex-cativos em trabalhos de diaristas, agregados e/ou por meio de
contratos a preços irrisórios. Em Monte Alto, o inventário de Antônio Rodrigues de Souza,
no ano de 1889, portanto após a abolição, por intermédio de uma ação na Justiça, movida
pelos herdeiros dos bens do falecido, demonstrou, no ato da prestação de contas, a trajetória
de muitos indivíduos livres e as relações constituídas entre os diferentes sujeitos sociais:

Declarou que entrando na posse e responsabilidade dos bens descriptos no


inventário, e havendo urgente necessidade de certas, despezas para salvar-se
o gado e animaes a sua entrega foi obrigado a vender onze rezes e matar
quinze durante quinze mezes que está a entrega dos bens, nem só para
sustentação de vaqueiros empregados na fazenda como para accorrer certas
despezas que não se podia deixar de fazer, importando as onze reses
vendidas em 173.000. Fazendo as seguintes despezas: Pagou a Faustino
Souza de treze meses de serviço a quantia 52.000 [...] ao Tabelião
Martiniano Pereira de Castro, que o finado era devedor, 25.000. [..] A João
José Barboza por ter limpado does tanques, 15.000. [...] A Victorinna
Felippa de Jezus, como cozinheira para vaqueiro, 9.000. [...] A João José
Barboza, vaqueiro da Fazenda, a quantia de 63.000. [...] Somando-se
essas parcelas, totalizou: 173.120. É sabido que ano passado não havia água
para dar ao gado vaccum e cavalar, que caminhavão de fazenda em fazenda
mortos de sede.
O tanque da referida Fazenda tinha secado, e com uma pequena despeza para
se limpar daria agoa que chegava para o gado beber, e por isso deliberei a
fazer a despeza de 1.500 com o Senhor João José Barboza para fazer esse
serviço, e possa assegurar que foi uma das cousas de salvar o gado.
Ora, contestar-se essa despeza, parece até incrível.
Os 9.000 pagos a cozinheira em trez mezes, e contestados pelo nobre
procurador também era uma despeza necessária, porque sendo eu um homem
solteiro, e por essa razão sem ter quem nada me faz era preciso ter uma
pessôa para cozinhar, não só para mim como para os demais empregados da
fazenda, e por isso alluguei a 3.000 por mes.
Estas despezas feita por conta e em beneficio de todos os herdeiros do cazal
devem sair de minha algibeira? O meretissimo Senhor Juiz que tem
176

caracterizado os seus actos com toda justiça deliberará como entender


razoável161.

O trabalho de contratos, aluguel, diarista ou prestação de serviços no pós-abolição,


possivelmente, ocupou boa parte dos ex-cativos, cujas moradas se fixavam nas fazendas e
sítios do termo de Monte Alto. As fontes sugerem novas relações de trabalho, em fins do
século XIX. Muitos libertos “continuaram a viver e desempenhar suas atividades na região”,
“construindo relações, negociando e enfrentando as dificuldades impostas cotidianamente”
(RAMOS, 2015, p 08/09).
Há, no documento, indícios da experiência social de ex-escravos e pobres livres no
cotidiano das fazendas do termo de Monte Alto. Por meio dessa mão de obra, muitas
propriedades mantiveram ativas as produções econômicas, havendo continuidade de uma
relação de dependência, via aluguel ou contrato de serviços de diarista, meeiros, agregados ou
sitiantes. Ainda que esses indivíduos tivessem pequenas propriedades, recorriam à prestação
de serviços a terceiros, como atividade extra para garantir o sustento da família. Os
pagamentos recebidos por Faustino Souza por treze meses de serviço, Rs. 52$000; João José
Barboza, por ter limpado dois tanques, Rs.15$000 e por serviços como vaqueiro,
Rs.63$000; Victorinna Felippa de Jezus, como cozinheira para vaqueiro, Rs. 9$000,
demonstram como esses trabalhos eram extenuantes, porém necessários à garantia da
sobrevivência.
Desvencilhar-se do cativeiro antes da abolição e nos anos iniciais que se sucederam a
ela, sem sombra de dúvidas, foi uma prática marcada por estratégias bem elaboradas e
reelaboradas por cativos na relação com seus senhores, ora com êxito, ora com disputas
acirradas, desencadeando ações violentas. Nessas relações, cativos de propriedades de Monte
Alto tiveram vivências marcadas pela conjuntura do tráfico, que impactara diretamente o
alcance da alforria e modos de viver, sobretudo em pequenas propriedades, cuja
vulnerabilidade tornava-se mais intensa devido às escassas condições econômicas, agravadas
por dívidas e crises financeiras, valendo-se os senhores da venda de cativos para suprir as
necessidades básicas, pagamento de empréstimos contraídos e evitar prejuízos. Somam-se a
essas questões o embate e as tensões entre herdeiros no momento da partilha dos bens. Tudo
isso ocasionava embaraços e dificuldades no alcance da alforria e de outras formas de
ampliação dos espaços de negociação.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
161

Inventariado: Antônio Rodrigues de Souza. Mç: 38, 1889.


177

Lembre-se, no entanto, que, quando os anseios dos cativos se tornaram distantes do


campo do favor, muitos deles recorreram a fugas ou à Justiça para livrarem-se do cativeiro.
Na construção de pequenos espaços, escravos elaboraram importantes vínculos familiares no
cativeiro e, para além dele, relações de solidariedade e compadrio, uma vez que manter os
laços com os companheiros de cativeiro, forros e livres pobres significava assegurar melhores
condições de sobrevivência, identidade e pertencimento diante de um contexto imprevisível.

4.4 Na teia da sobrevivência: escravos, libertos e livres pobres

Podemos, assim, dizer que os sujeitos sociais de Monte Alto compunham-se de gente
como escravos, libertos e livres, e, embora houvesse espaços demarcados na composição
social e uma relação de deferência entre subalternos e senhores, escravos, libertos e livres
pobres se inseriram na dinâmica social e econômica da região, resistindo e se acomodando aos
contratempos de suas vivências.
E o que pensar dos cativos, libertos e livres pobres que viviam nas roças? Esses
indivíduos também constituíam redes de relações pela sobrevivência, pautada em situações de
acomodação ou de resistência, a depender das necessidades e lutas diárias. Escravos e livres
pobres dividiam tarefas e rotinas da vida, assim como vivenciavam tensões conflituosas,
condição inerente a qualquer sociedade, fosse rural ou urbana. “Não se pode pensar em
ausência de conflitos em sítios ou roças menores; as tensões foram inerentes à sociedade
escravista, que gerou, por isso mesmo, necessidades de dinâmicas mediações” (PIRES, 2009,
p. 207).
Nos espaços de trabalho, as redes de relações constituídas entre escravos, libertos e
livres pobres mostraram articulações na lida dos roçados, no plantio, na busca do gado, no
pegar água, lenha, cortar madeira, tirar o leite, em atividades de caça, nos alambiques, no
fabrico artesanal, dentre muitas outras atividades que faziam parte do cotidiano rural. Por
outro lado, as vicissitudes do dia a dia, principalmente em relação à carência de alimentos,
poderiam ocasionar conflitos e tensões entre aqueles indivíduos. As dificuldades de acesso à
terra, a falta de aguadas e de espaço para cultivar seus mantimentos motivavam, às vezes,
disputas acirradas, importantes à sobrevivência pessoal e familiar.
Nesse sentido, a historiografia tem demonstrado inúmeros casos de escravizados,
libertos e livres pobres atuando na luta pela sobrevivência, sendo necessário, em alguns
momentos, deparar com situações tensas para preservar o mínimo de limite conquistado,
178

afirmam Maria Cristina Cortês Wissenbach (1998), Walter Fraga (2014), Maria de Fátima
Novaes Pires (2009), Alex Andrade Costa (2016), Maria Odila Silva Dias (1998) e Maria
Helena P. T. Machado (1987). Um caso envolvendo tensões entre escravos e livres ocorreu no
ano de 1853, quando Antônio Pereira Pinto, livre pobre, acompanhado de sua mulher e de
uma sobrinha, entrou numa roça para furtar mandioca, sendo os três logo repelidos pelo
escravo Venâncio, que vigiava a roça e desferiu mortalmente uma facada em Antônio Pereira
Pinto.
Em seguida, o escravo foi capturado e preso162. A atitude de defesa do cativo
Venâncio demonstrou que ele se dedicava, em horários noturnos, a proteger a propriedade de
seu senhor e evitar que alheios lhe furtassem algo. Possivelmente, Venâncio adquiriu, nas
relações constituídas com seu senhor, o direito de plantar para si e criar algumas reses, prática
muito comum nas relações senhor-escravo em Monte Alto. O senhor permitia ao escravo
plantar uma roça e amealhar pequena economia, costume que ampliava as chances de angariar
recursos para a compra da alforria pessoal e de seus familiares.
Não se sabe se a roça de mandioca vigiada por ele era do próprio escravo, nem a qual
senhor o cativo pertencia; a esse respeito, a correspondência policial nada mencionou,
entretanto, pelo horário de trabalho e pela atitude de Venâncio, tudo indica que a roça era
mesmo dele, conquistada com muito esforço, ao ponto de virar a noite vigiando-a para evitar
prejuízos. Certamente, o cativo contava com aquela colheita para angariar alguns pecúlios e
negociar a sua alforria. Muitos escravos do sertão exerciam funções no serviço de lavouras e,
em alguns casos, trabalhavam também para si, quando o senhor o permitia.
Não era à toa o sacrifício de Venâncio em vigiar sua roça de mandioca, porque sabia a
importância que a pequena economia tinha para complementar seu sustento, comercializando
o excedente. O ato de vigiar roças durante a noite também foi apontado por Maria de Fátima
Novaes Pires (2009, p. 222) quando estudou Caetité e Rio de Contas, mostrando como esse
costume fazia parte da luta pela sobrevivência e da precária condição de vida entre escravos,
libertos e pobres livres:

„Eugênio Pé-liso não hesitou em partir para a roça de João Rodrigues da


Costa („empregado público da dita freguesia‟ ) a fim de „furtar mandiocas‟.
Recebeu na ocasião um tiro que o deixou „sego do Olho‟, conforme o corpo
de delito realizado na pessoa de Pé-liso, „[...] Que encontraram um homem
de cor preta em volto em uma coberta de algodão‟ (PIRES, 2009, p. 222).

162
APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província (1849-1854), n. 5689.
179

Pelas entrelinhas, os documentos analisados por Pires e o caso de Venâncio exposto


ficou evidenciado que o cultivo de mandioca entre escravos e pobres livres era atividade
primordial na dieta e comercialização daquelas populações subalternas. As crises provocadas
pelas secas e as dificuldades econômicas de pequenos senhores revelam quão difícil era a vida
para essas categorias sociais que, diante da escassez de alimentos, diante da fome e da
esperança de conquistar pecúlio para a compra da alforria, da ameaça de serem vendidos via
tráfico interno, da instabilidade com a morte de seu senhor, colocavam em risco iminente a
vida, por isso recorriam a situações extremas de violência, como as descritas acima. As
dificuldades econômicas refletiam-se no cotidiano das populações mais pobres de Monte
Alto, levando à formação de uma rede de contatos e relações diante da exigência da pobreza.
Tanto o escravo Eugênio quanto Venâncio tiveram destinos trágicos e, no ato de
defenderem-se, viram seus sonhos e projetos de luta pela sobrevivência desmancharem-se.
Soma-se a essas dificuldades a característica econômica da região, marcada pela concentração
de terras nas mãos de grandes e médios proprietários, vinculadas a uma política de “força e
favor”, que em nada protegia os desiguais. Na certeza de acentuadas dificuldades, procuravam
a todo modo lançar mão do que fosse possível para sobreviver. A luta pela sobrevivência
tinha essas nuances, ora de ganhos, ora de frustações e atos extremos. A seguir, um processo-
crime envolvendo pessoas livres nos últimos anos da escravidão denota as contradições de um
viver marcado pela pobreza e subalternidade na vila de Monte Alto.

Ilm.ᵒ Senhor delegado de polícia.


Levo ao conhecimento de Vsa que hoje às 11 horas do dia mais ou menos,
estando eu na porta de caza de Ignácio de tal, onde se achavam muitas
pessoas e entre estes Ignácio Roiz Nogueira, foi quando passou Severiano
com um cabo de xicote – Ignácio perguntou-lhe, negro quem é canalha, e
nesse interin Ignácio puxou por uma faca dando-lhes duas facadas e
recebendo uma cacetada, não sendo morto a Severiano por seu agressor
porque eu tomei a faca de Ignácio. Ignácio recolheu para o interior de sua
caza a fim de evitar sua morte. Depois do recolhimento do mesmo,
Severiano em caza de Ignácio porta vem chegando. Deocídio Pereira Castro
armado de uma pistola a qual sendo vista por mim e mais pessoas que ali
estavão, tomei-a com a fim de evitar maior conflito. Presenciarão o fato;
Juvêncio Fernandes da Rocha. Eu João Pereira de Magalhães; Capitão
Pacífico José de Lima, Jerônimo de Lulu, José Saldanha, Ignácio Porto,
Benedito Porto e José Roiz Porto (irmãos) e Ludgero afilhado de Ignácio.163
Monte Alto, 21 de outubro de 1887.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Processo-crime.
163

Autuação: Severiano José da Costa Farias e Ignácio Rodrigues Nogueira. Documento não catalogado. 21 de
outubro de 1887.
180

A pequena vila de Monte Alto, em fins do século XIX, continuava sendo um lugar em
que moradores pareciam conhecer uns aos outros. A aproximação era comum, ao ponto de
chamarem-se por apelidos, traços físicos, insultos nos hábitos pessoais, na identificação de
parentescos, pelo nome, sobre o que faziam e se eram do lugar, conforme o teor do
documento acima: “João de Lulu”, “Ludgero afilhado de Ignácio”, “capitão Pacífico José de
Lima” e assim por diante. Escravos, forros e pobres livres estavam inseridos na dinâmica da
vila e conforme as formas de tratamento, por apelidos ou provocações, como ocorreu com
Severiano, de ter sido insultado como “negro sem vergonha”. A cor da pele e a condição
econômica determinavam a hierarquia social daqueles indivíduos, entretanto, não impediam
que eles circulassem por espaços diversos e almejassem maior mobilidade social, ainda que
precária.
A fonte documental que segue, no desenrolar deste texto se refere a um processo-
crime que trata da desavença entre Ignácio Roiz Nogueira, sapateiro, 21 anos, casado, filho de
Theodório Roiz Nogueira, oficial de justiça, natural e morador da freguesia de Monte Alto; e
Severiano José da Costa Farias, 42 anos, casado, operário, natural da freguesia, filho de
Francisco José Martins, que “vive de viagem”.164 O crime ocorreu no ano de 1887, véspera da
abolição da escravatura. Houve troca de palavras ofensivas entre os envolvidos, tendo como
desfecho um golpe de faca desferido por Ignácio em Severiano e, segundo as testemunhas,
“não sendo pior porque os companheiros a tomaram”. A troca de palavras se deu porque
Deoclídio Pereira Castro perdera uma faca, e esta foi encontrada por Severiano, que ficou
com a posse dela. Sabendo que Severiano encontrou a faca, Deoclídio mandou Ignácio ir com
outro companheiro à casa de Severiano buscar o objeto perdido. Severiano recusou-se a
devolver “faca nenhuma para canalha”, respondeu que entregaria ao próprio dono, alegando,
em outro momento do processo, ressentimentos por palavras ofensivas ditas por Ignácio.
Mais tarde, Severiano devolveu a faca ao legítimo dono e, ao sair da casa de um
amigo, circulou pela rua em que morava Ignácio, a quem chamou de canalha. Ao passar pela
casa de Ignácio, que se encontrava com outros conhecidos na calçada, foi surpreendido com
palavras de insultos, chamando-o de negro e perguntando “se tinha o atrevimento de chamá-lo
de canalha e se servia ganhar um couro”, logo investindo sobre ele. Alega Severiano que, para
se defender, deu uma cacetada em Ignácio e este o esfaqueou. Socorrido pelos amigos,
Severiano não chegou à morte, sendo preso juntamente com Ignácio, em flagrante. No

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Processo-crime.
164

Autuação: Severiano José da Costa Farias e Ignácio Rodrigues Nogueira. Documento não catalogado. 21 de
outubro de 1887.
181

depoimento prestado ao delegado, Severiano afirmou manter desavenças com o réu e que a
abordagem de Ignácio foi proposital, avançando com ofensas, chamando-o “de negro sem
vergonha”.
O exame de processos-crime é bastante usado pela historiografia brasileira,
principalmente para entender indícios das experiências concretas dos diversos sujeitos sociais,
sejam eles escravos, forros, senhores e livres. Essas experiências articulavam, de forma
dinâmica e contraditória, as mais variadas dimensões do social. Para Maria de Fátima Novaes
Pires (2003), as tensões conflituosas e cotidianas se enquadravam nas condições de vida
social por divergências e manutenção de prerrogativas, que, por sua vez, resultavam em
cursos violentos. Assim ela se expressa:

Os insultos, calúnias e difamações, constantes em toda a vida social, foram


potencializados nas sociedades escravistas diante da dominação senhorial e
da violência em todas as suas esferas. Principalmente para segmentos sociais
pobres, destituídos de condições materiais dignas e sob o estigma da cor, o
resguardo de condutas morais tacitamente aceitas, e ainda o escamoteamento
de supostos „deslizes‟, além de caros nesse meio, radicalizaram as tensões
internas (PIRES, 2003, p. 230).

Foi em meio a insultos que Severiano e Inácio se viram envolvidos em confusão tensa,
resultando em ofensas pela condição social e de cor. Muitas testemunhas se fizeram presentes
nesse episódio do crime, eram homens casados, solteiros e um viúvo, alguns moradores da
freguesia, um da vila de Caetité e outro da vila da Barra. Em depoimento ao delegado e,
posteriormente, ao juiz, as testemunhas se identificavam como vaqueiros, comerciante,
pedreiro, lavrador, operário, artista, jornaleiro, porém, em nenhum momento, a cor deles foi
declarada, situação curiosa para esse processo-crime, já que em outros analisados ao longo do
século XIX a cor do indivíduo era registrada. Suspeito que fosse pelo fato de o conflito girar
em torno de um insulto racista, talvez as autoridades quisessem omitir esse pormenor para
camuflar tal ato, diante das pressões e leis que sinalizavam aos ouvidos os ecos da abolição.
O crime mostrou indícios do convívio social de variados sujeitos sociais na vila de
Monte Alto, em finais do século XIX, ao tempo em que fez transparecer as sutilezas da vida,
marcada por contratempos de uma sociedade violenta, arrogante e hierarquizada, deixando
evidentes “padrões de deferência social em que deviam aos brancos”, assinala Maria Cristina
Cortez Wissenbach (1998, p. 210). As camadas subalternas, como escravos, forros e livres de
cor, deparavam constantemente com insultos sobre a sua condição social e cor da pele,
destacando que os valores escravocratas estavam distantes de se desenraizarem das
182

representações sociais daquela época, tal como observou Wissenbach na província de São
Paulo:

A familiaridade trazida pelas ruas, a extrema exposição de uns e as aparições


esporádicas de outros, as relações interpessoais e o conhecimento mútuo não
transformavam, de forma alguma, a sociedade citadina num mundo marcado
pela igualdade; pelo contrário, as desigualdades sociais, as hierarquias, as
distinções de classe, raças e condições se faziam sentir nesse contexto. Eram
demarcadas e mediadas por uma série de convenções sociais, que os
estudiosos identificaram como sendo as regras de polidez da sociedade
brasileira dessa época (WISSENBACH, 1998, p. 212).

Quem fez os ferimentos foi Ignácio, com provocações, insultando-o repetidas vezes.
Os ataques de Severiano, representados em palavras, refletiam o pensamento da maioria da
sociedade daquela época, relutando na preservação da escravatura. Severiano era negro livre
e, por estar com 42 anos, supõe-se ter sido escravo ou descendente, sabendo o quanto o
estigma da cor e da condição social importava para si e seus companheiros. Daí, resistir aos
impropérios dos insultos, às “convenções sociais” que essa mesma sociedade mediava, não se
acomodando às situações impostas, destacou Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998, p.
214).
Aspecto interessante nesse processo-crime era a forma como as relações sociais se
constituíam na pequena vila, no contexto da abolição da escravatura e, apesar de Severiano
resistir aos insultos de Ignácio, foi apreendido pelo delegado local, que declarou prisão por
flagrante. Na cadeia, Severiano se deparou com situação ainda mais complexa, isto é, por ser
réu primário e não ter cometido crime de morte, a lei permitia o direito de liberdade, caso
tivesse como pagar a fiança, mas a pobreza extrema impossibilitava-lhe tal condição. Por
isso, recorreu à estratégia de amealhar o valor para sair da prisão contando com a ajuda de
dois senhores escravistas e ricos da vila – José Barbosa Madureira e Alferes Venceslau
Antônio Lellis de Farias – conforme elucida a petição abaixo.

Ilm.ᵒ Sem.ᵒ, Dr. Juiz Municipal.


Venha nos autos – Monte Alto, 31 de outubro de 1887.
Diz Severiano José da Costa Farias – prezo, pobre que achando-se recolhido
a cadeia desta vila acusado por leve contusão feita a Ignácio Roiz Nogueira e
querendo a supp. prestar fiança provisória para livrar-se solto visto ser o
crime afiançado oferecer de conformidade com o art. 33 e seus parágrafos do
Reg. Nᵒ 4824 de 22 de novembro de 1871, para garantia da quantia que por
Sª for fixada a referida fiança a Alferes Vesceslau Antônio Lellis de Farias e
José Barbosa Madureira, pessoas estas reconhecidamente abonadas e
183

residentes nesta vila. E como o supp é pobre, não dispõe de recursos


pecuniários como prova o documento justo, requer.165
15 de fevereiro de 1888.

Noutra petição, Severiano reforçou sua condição de pobreza e pediu que fosse
abonada a taxa da fiança, não tendo, contudo, êxito no pedido. Assim, os senhores foram até o
juiz efetuar o pagamento da fiança, arbitrado em Rs.300$000. A condição de pobreza de
Severiano o levou à dependência de outros, para amealhar pecúlio e livrar-se da cadeia,
situação bastante real para muitas das populações negras que, ao saírem da escravidão,
continuavam na linha da precarização social, relativamente distinta dos demais moradores de
Monte Alto, em particular, os mais abastados.
Ainda que fosse livre, a condição social de Severiano não permitia que a resistência
fosse além. Nesse caso, optou pela linguagem da resistência e, ao mesmo tempo, das
estratégias de acomodação como mecanismos de sobrevivência. Não dá para saber o grau de
relação entre ele e os fiadores, ao arranjarem pecúlio para tirá-lo da cadeia, mas há indicativo
de que a devolução do valor do empréstimo poderia ser feita por meio de trabalho ou serviço
de favor, afeição e fidelidade. No contorno das adversidades e dificuldades, as aspirações de
Severiano pela liberdade confluíam para a dependência e supostas “benevolências” de
senhores ricos, tornando mais penosa sua condição de vida, não só material, mas também no
reconhecimento da identidade pessoal. A relação de “força e favor” ainda minava as bases
sociais daqueles indivíduos, estendendo-se por longos anos, mesmo com a abolição da
escravatura.
A análise do processo-crime induz a pensar o mesmo que Maria Cristina Cortez
Wissenbach (1998) observou para São Paulo, quando estudou crimes naquela região
envolvendo escravos, libertos e livre pobres. Para a autora, havia poucas distinções que
separavam escravos de libertos e pobres livres e mesmo os que dependiam das atividades de
ganho viviam em condições precárias. Para garantir a sobrevivência, apoiavam-se nos demais
companheiros, a exemplo de dividir as tarefas com escravos, as moradias coletivas, o
envolvimento em relações pessoais, de compadrio, de afeto e/ou de tensão. Esses negros
livres formavam juntamente com os cativos “o contingente de artesãos, de vendedores
ambulantes e, como trabalhadores braçais ou mestres, os operários das obras públicas da
cidade” (WISSENBACH, 1998, p. 53).

165
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Processo-crime.
Autuação: Severiano José da Costa Farias e Ignácio Rodrigues Nogueira. Documento não catalogado. 21 de
outubro de 1887.
184

As reflexões da autora remetem-nos à vida de Severiano, operário da pequena vila de


Monte Alto, que, sem sombra de dúvidas, compartilhava com companheiros escravos e
libertos as mesmas lutas pela sobrevivência, ou seja, resistir à dominação escravista, a
precariedade de vida e insultos gerados dessa exclusão. Por meio das testemunhas, a cor e a
condição social de Severiano foram reveladas, ao relatarem os fatos e motivos da não
devolução da faca. A outra pista está na relação entre Severiano e os senhores, mostrando o
quanto a relação de “força e favor” nas vivências sociais dos subalternos ainda prevalecia,
mesmo em condições de livre (SLENES, 2004).
Outro aspecto a considerar para escravos de pequenas posses se refere aos arranjos
internos estabelecidos por meio do compadrio. Se as uniões legitimadas pela Igreja não foram
comuns para esses cativos, o batismo pareceu cruzar todas as camadas sociais daquela época.
Ao se inserirem nesse ritual, vislumbraram possibilidades de redes espirituais, solidárias, de
amizades e materiais, com libertos, livres pobres e até com seus senhores, para criar maiores
vínculos. Os arranjos com libertos e livres eram necessários para conseguir suprimentos
imediatos, como alimentação, pecúlio, proteção para evitar a venda, assim como alternativas
para ampliar chances de obtenção da alforria. Esses cativos de pequenos senhores levavam
desvantagens em relação aos escravos de grandes fazendas, que podiam contar com maior
mobilidade social, advinda das uniões legitimadas e das dinâmicas econômicas das fazendas,
por isso encontravam nos vínculos com livres meios de inserção social, de maiores alianças,
laços solidários, dirimindo, assim, a situação de pobreza extrema.
Para Alex Andrade Costa (2016, p. 114-115), o compadrio foi um dos principais meios
utilizados pelos cativos para a constituição de redes de solidariedade e de sobrevivência entre
populações pobres, sobretudo escravos. Acrescenta que, entre 1800 e 1849, 78% dos escravos
escolheram padrinhos de condição livre e que, apesar de os cativos de senhores de pequenos
recursos viverem situação difícil e complexa, muitos daqueles escravos encontraram
alternativas para galgar pecúlios e obter a alforria. Nesse sentido, a formação de “alianças
parentais espirituais” servia como canais de ligação para a liberdade, mas é importante
lembrar que essas relações sociais eram marcadas por uma trajetória de vida e oportunidades
limitadas, de exploração e condições de pobreza extrema.
Muitos escravos recorriam ao sacramento católico do batismo no intuito de multiplicar
as redes de parentesco, de interesses pessoais e coletivos para auxiliar e resistir às intempéries
do cativeiro, assim, o compadrio significava ampliação de alianças sociais, políticas e de
vantagens espirituais (GONÇALVES, 2007). A esse respeito, segue um exemplo das redes de
relações sociais que os cativos de um pequeno senhor de Monte Alto construíram: no ano de
185

1975, Marçal Roiz Monção, pequeno proprietário do Sítio Pé da Serra, permitiu que fosse
realizado o batismo de duas ingênuas – Cassiana, 07 anos, sendo padrinhos Norberto Bispo do
Espírito Santo e Luíza Maria, e para a outra filha, Canuta, 10 anos, convidaram como
padrinhos Emigídio da Silva Fiuza e Thereza de Jesus (Figura 10, adiante). Os pais das
batizandas eram os escravos Vicente, 50 anos, casado com Francisca, de 29 anos. O casal de
escravos teve cinco filhos e escolheu pessoas livres para abençoá-los. Supõe-se que alguns
daqueles padrinhos fizessem parte de um grupo de subalternos livres pobres na região de
Monte Alto, sendo que as relações de proximidade aconteciam em função das labutas
cotidianas pela sobrevivência166.
A Figura 10, adiante, mostra organograma referente aos escravos de Marçal Roiz
Monção.
Figura 10 – Escravos de Marçal Roiz Monção - 1875

Francisca
(preta) Vicente (crioulo)
Idade: 29 anos Idade: 50 anos

Angela (preta) Cassiana Bernadina Faustino


(ingênua) Canuta (ingênua)
(ingênua) (crioulo)
Idade: 13 anos Idade: 10 anos
Idade: 07 anos Idade: 01 ano Idade: 17 anos

Padrinhos: Padrinhos:
Noberto Bispo Emigídio da
do Spírito Santo Silva Fiuza e
e Luiza Maria Joana Thereza de
Jesus

Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/ BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863 e Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de
Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Marçal Roiz Monção, 1875.

Rastrear a vida de escravos de pequenos senhores de Monte Alto foi muito difícil,
pois, nos livros de casamentos e batismos da região mencionada fizeram constar poucos
registros de escravos desses pequenos proprietários. Para Monte Alto, o tamanho da posse
escrava influenciou, e muito, as decisões dos escravos, principalmente com referência a
uniões legítimas, batismos e escolhas dos padrinhos. Por exemplo: era mais comum que
escravos de grandes propriedades tivessem maiores chances de escolhas de seus parceiros,

Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/ BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
166

Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.


186

dada a disponibilidade, sendo que os rituais sacramentados eram celebrados com maior
frequência nas capelas de sítios e fazendas da região, através dos atos de desobriga.
Geralmente, quem organizava o festejo religioso eram senhores de grandes propriedades, mas
cativos de pequenos senhores também transitavam nesses espaços, embora com menos
frequência, já que, para ter acesso aos rituais, era preciso a permissão de seus senhores e,
como estes não dispusessem de condições econômicas suficientes para promover a
celebração, limitavam o acesso de seus cativos à participação dos atos de proclamas.
No ano de 1861, no sítio da Pindoba, D. Maria Luíza da Conceição, pequena
proprietária – já mencionada no item sobre alforrias em pequenas propriedades, quando
concedeu a alforria coletiva aos escravos, tachadas pelos herdeiros como ato clandestino –,
permitiu que a escrava Faustina batizasse sua filha Maria, de 10 anos.167 Escolheram como
padrinhos Benedito Dias Guimarães e sua mulher Angélica Maria de Jesus. O mesmo fizera
sua outra escrava, de nome Joaquina, quando batizou Ana, com idade de 10 anos, tendo como
padrinhos João José da Silva e sua mulher, Francisca Maria de Jesus, ambos considerados
livres. Como se observa, havia relacionamentos interpropriedades entre as famílias de
escravizados, sugerindo amplas redes de relações necessárias à sobrevivência e à mobilidade
social, inclusive entre escravos de pequenos senhores. A extensão das redes possibilitava
maiores espaços de sociabilidade, “dando significados próprios aos seus projetos de vida”
(GONÇALVES, 2017).
Quanto às mães, escravas de pequenos senhores, apresentavam aparentemente maior
inclinação para filhos naturais, ou seja, filhos de mães solteiras. As uniões consensuais
prevaleciam, embora essa condição não confirme ausência dos pais. Como havia menos
possibilidades de uniões entre cativos de pequenos senhores, devido ao número reduzido
naquelas propriedades, é possível afirmar que boa parte das relações acontecia fora da
propriedade senhorial, podendo ser entre a vizinhança, com cativos de outras propriedades e
que tocavam parentescos com seus senhores ou mesmo com ex-escravos e livres pobres.
É preciso assinalar, ainda, que o comércio de escravos, no início da segunda década
do século XIX, tinha como maior alvo a procura por escravos homens, fator considerável para
pensar o significativo número de filhos naturais, apenas com a presença das mães. Contudo,
tanto em grandes propriedades como em pequenas, o número de crianças nascidas, durante a
vigência do século XIX, foi considerável e exprimiu a busca de relacionamentos não só entre
escravos, mas estendeu-se a forros e livres, dentro e fora do cativeiro. A intimidade dos

Igreja Santo Antônio – Guanambi/ BA. Livros de assentos de batismo da Freguesia de Nossa Senhora Mãe de
167

Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1863.


187

apadrinhamentos, quando da escolha de indivíduos de estatutos livres nas cerimônias para


batizar seus filhos, revela como essas relações sociais e redes de alianças ocorriam tão
corriqueiramente no cotidiano de escravizados, inclusive para escravos de pequenos senhores.
Stuart B. Schwartz (1988, p. 311), ao estudar a vida escrava no Recôncavo da Bahia,
afirmou que “a baixa incidência de uniões legitimadas pela Igreja Católica não é, de modo
algum, uma medida da realidade escrava e da capacidade de criar e manter laços de afeição,
associação e sangue”. Esses laços de criar, manter afeição e vínculos de parentesco estiveram
sempre presentes e permanentes na vida dos cativos. O autor observou que, entre cativos da
zona rural, em sua maioria, os filhos eram de pais não casados, mas isso não significou
ausência de famílias e vínculos duradouros entre parentescos. E mesmo que as uniões
legitimadas dependessem da permissão de seus senhores, e sem ela a Igreja não referendava o
ato, cativos criavam meios de “tornar conhecidos seus desejos” (SCHWARTZ, 1988, p. 318).
Para isso, criaram inúmeras estratégias que iam desde a resistência a barganhas variadas para
alcançarem suas vontades. Os senhores preferiam ceder na maioria das vezes a ignorar o
desejo do escravo.
Maria de Fátima Novaes Pires (2003, p. 84), acredita que a recorrência de uniões
consensuais poderia estar nas “sérias dificuldades em manter uma vida familiar sob a
escravidão”. Cativos enfrentavam muitas dificuldades, que englobavam a falta de moradia por
espaços autônomos, a carência de recursos e as ameaças de vendas, dissolvendo grupos
familiares com probabilidade de vendas de filhos, cônjuges, entre outros membros.
Entretanto, a autora observou presença significativa de uniões legítimas, numa incidência de
108 casamentos para Caetité e Rio de Contas e constatou nos registros de casamentos e
batismos grande circularidade de “escravos ao lado de forros, trabalhadores livres e pobres,
como padrinhos e cônjuges” (PIRES, 2003, p. 83).
Na região de Santo Antônio do Urubu, Napoliana Pereira Santana identificou, entre os
anos de 1840 e 1880, ampla mobilidade espacial entre escravos de propriedades diferentes.
Cativos não só se relacionavam com parceiros de outros lugares, propriedades e sítios, como
“transitavam de uma propriedade para a outra, para participar de cerimônias e festejos
religiosos” (SANTANA, 2012, p. 60). Ao analisar 300 atas de batismos, a autora notou
grande incidência de filhos naturais, com predominância de uniões consensuais nos
relacionamentos familiares, sendo que 89,7% de crianças batizadas eram filhos de mães
solteiras, ou seja, com uniões não legitimadas pela Igreja Católica. As crianças, frutos das
uniões sacramentadas pela Igreja, corresponderam a 10,3%. Para a autora, havia um silêncio
presente nas fontes eclesiásticas, que, por sua vez, apresentavam limitações no que se refere à
188

vida mais ampla dos núcleos familiares de escravizados. Mesmo assim, encontrou 27 uniões
legitimadas para o período estudado, os dados confirmaram vida ativa e mobilidade social dos
cativos, inclusive em uma região de intenso tráfico interno.
Com números que se assemelham aos verificados por Santana (2012), para a freguesia
de Carinhanha, os registros de batismos, em 1835, apontaram percentual elevado de crianças
escravas e libertas correspondentes a crioulos, representando 93,44% e os demais, 6,6% de
africanos, conforme análise de Simony Oliveira Lima (2017), sendo que as mães residiam na
sede da vila, em fazendas ou pequenos sítios. Constatou ainda que a maioria dos batizandos
era formada por filhos naturais, com 79,31% de registros constando apenas o nome materno, o
que significou número considerável de mulheres nos assentos, já os legítimos representavam
20,96%. A autora destacou a importância da reprodução natural na preservação da posse
escrava na região, cujos senhores lucravam, e muito, e que “as crianças poderiam permanecer
em sua propriedade até atingiram o tempo de iniciação ao trabalho, ou até mesmo serem
vendidas em tenra idade” (LIMA, p. 75-76). As mulheres escravas tinham filhos em idade
precoce, a partir dos doze anos de idade, sendo a procriação, dentro dos limites, incentivada
pelos senhores.
A vulnerabilidade de estarem sujeitos a vendas com maior frequência e a situações
variadas, demonstradas ao longo deste texto, tornava a vida daqueles subalternos ainda mais
complexa, frente às dificuldades impostas. Assim, tanto o curto prazo de permanência nas
mãos daqueles pequenos senhores, em face da conjuntura do tráfico interno, na região, quanto
à pobreza de boa parte daquelas populações limitava o acesso aos rituais sacramentados e
legitimados pela Igreja Católica.
Se, para escravos de grandes senhores, a obtenção das alforrias e a manutenção da
família eram difíceis, a situação para os cativos de pequenos senhores era ainda pior, daí, o
fortalecimento de uma rede de relações sociais, como o apadrinhamento de seus filhos, com
pessoas livres e libertas. A conexão entre escravos de pequenas propriedades com o mundo
livre era intensa e constituía, sem dúvidas, estratégia de sobrevivência, de fortalecimento e de
estreitamento de elos, mas não podemos perder de vista o fato de que senhores também
motivavam o acesso ao ritual com o objetivo de controlar e reforçar o poder de domínio. Ou
seja, “o compadrio promovia o estreitamento dos laços paternalistas entre cativos e
proprietários, entre livres e escravos, entre senhores e subalternos” (GONÇALVES, 2017, p.
217).
Por fim, o que se pretendeu discutir neste capítulo se refere às dificuldades com que
cativos de pequenos senhores deparavam frente às vicissitudes da vida sertaneja,
189

principalmente a dificuldade de negociar com seus senhores a alforria. Diante das ameaças do
tráfico interno, que mexia drasticamente nos modos de viver daqueles que permaneciam nas
propriedades, não era incomum que, entre o cativeiro, se espalhassem notícias da crueldade
do tráfico, causando-lhes pânico quanto os efeitos dessa política ardilosa dos senhores.
Ressalte-se que cativos de grandes propriedades também caíam na malha do tráfico e seus
senhores resistiram à concessão das alforrias, mas a dinâmica produtiva dessas fazendas,
vislumbrada pelos cativos, criou maiores expectativas de mobilidade e meios para obter a
alforria, além da integralidade de algumas famílias conquistada ferrenhamente nas duras
negociações com seus senhores. Indícios dispersos da documentação, porém valiosos,
mostraram que cativos e forros, mesmo diante da impossibilidade de negociar com senhores,
frente à negativa de mantê-los alforriados e à iminência de suas vendas, resistiram a esses
expedientes cruéis, ora cometendo homicídios, com fugas, tentativas de suicídios e estratégias
variadas, ora com ações mais enérgicas na Justiça (ações de liberdade), para alcançar, ou
manter, a continuidade da alforria, como veremos no capítulo que segue.
190

5 VIVÊNCIAS E QUERELAS COTIDIANAS DE SENHORES, ESCRAVOS E


LIBERTOS NAS PROPRIEDADES DE MONTE ALTO

5.1 “Co o a inha tropa se vai de orando”: ambientes, moradas e vivências cotidianas

Morar em fazendas, nos limites urbanos, sítios ou chácaras demonstrava envolvimento


constante de pessoas, que lidavam com atividades diversas entre o urbano e o rural. A lida
cotidiana nas moradias, propriedades e posses variadas permitiu que indivíduos interagissem
em graus e condição social distintos, incluindo dependentes: escravos, forros e livres pobres
que ali se estabeleciam, perambulavam ou trabalhavam naquelas propriedades. Nesses
espaços, práticas cotidianas iam se estreitando e formando redes de sociabilidades, arranjos
familiares, de compadrio, espaço de querelas, de abrigo e proteção.
Foi na concretude da vida cotidiana e da luta pela sobrevivência que esses homens e
mulheres escravos e forros construíram formas próprias de organização social e cultural.
Nesse vai e vem de diferentes pessoas e lugares, redes de relações se formaram, umas mais
afetuosas, outras de negociações e aquelas de momentos conturbados, com querelas e
contestações das experiências do vivido. Entretanto, conforme lembra Maria Odila Leite da
Silva Dias:
O descortinar as estruturas do quotidiano ao nível da organização domiciliar,
familiar e das parentelas e vizinhanças constitui terreno difícil, onde a
historiografia penetra esporadicamente com resultados brilhantes, porém
sempre com enormes dificuldades de documentação (DIAS, 1995, p. 51).

Nos cenários de estruturação do cotidiano, a fazenda servia como lugar essencial de


trocas culturais, religiosas e de outras variadas formas de interações entre os diferentes
sujeitos sociais, na medida em que esse lugar também gerava recursos financeiros necessários
ao sustento de todos os que dela dependiam. Além da fazenda, “espaços das ruas e das roças
aparecem como vitais aos expedientes de sobrevivência de segmentos sociais mais pobres.
Não unicamente em sua materialidade, mas como lugares de trabalho e encontros
diversificados” (PIRES, 2009, p.238). Tudo em torno dela, “casas e quintais, formas de trocas
e de relações de vizinhança, enfim, formas de viver pouco distinguem esses dois espaços que
artificialmente separamos: o urbano e o rural”, (MENESES, 2011, p.63).
Nos inventários compulsados, as descrições das fazendas, sítios e pequenas roças
denotaram práticas de convivências que interagiam constantemente com os núcleos urbanos.
Mesmo as mais afastadas mantinham organização e negócios que permitiam estreita
vinculação com a sede da vila. Grandes proprietários possuíam imóveis e casas comerciais
191

nas vilas, mas muitos deles moravam nas sedes dos casarões das fazendas, com benfeitorias,
de onde retiravam a maior parte dos proventos para o sustento e comercialização. As figuras
abaixo são representativas das sedes de duas grandes propriedades de Monte Alto, no século
XIX.
Figura 11 – Casarão da Fazenda Lameirão

Fonte: TEIXEIRA, Domingos Antônio. Respingos Históricos. Acervo da Biblioteca do IF Baiano – Campus
Guanambi. Gráfica e Editora Arembepe, 1967.

Figura 12 – Casarão da Fazenda Poço Comprido

Fonte: TEIXEIRA, Domingos Antônio. Respingos Históricos. Acervo da Biblioteca do IF Baiano – Campus
Guanambi: Gráfica e Editora Arembepe, 1967.

Como se pode notar, alguns casarões apresentavam estilo rústico, outros, mais
sofisticados, e serviam de habitação para toda a família, agregados e escravarias alojavam-se
em cômodos anexos ou mais afastados desses espaços. O estilo arquitetônico dos casarões,
192

em sua maioria, era feito de adobe, com muitas janelas, portas, senzalas, quartos para
servidão, acompanhados de paióis, casa de farinha, engenho para o fabrico da rapadura e
melaço, dentre outras repartições. Construíam-se ainda reservatórios de águas nos lugares
mais baixos dos terrenos: açudes, tanques, cacimbas, a fim de se precaverem dos períodos
longos de estiagem. No inventário de um grande senhor de terras, Custódio Pereira Pinto,
1861, a descrição da casa de morada, situada na fazenda Campinas, se resumia da seguinte
forma:
Uma casa de telhas, com portas e cinco janelas de frente, rebocada, caiada e
pintada a óleo com outras casas pequenas e acessórios de despejo e servidão
a ela unidas senzalas e muros neste sítio das Campinas avaliada em
2:000$000 contos de réis.” 4 currais de páo a pique e caiçara e uma manga
de caiçara; dois currais velhos na lagoa do Bebedor na fazenda Campinas168.

Eduardo França Paiva, estudando a respeito das moradas nas Minas Gerais do século
XVIII, afirmou:

O espaço da casa não servia, portanto, apenas como habitação. Servia


também como local de lazer, de manifestações culturais, de esconderijo e
onde podia ser produzida parte do sustento cotidiano (PAIVA, 2008, p.168).

Há de se pensar ainda sobre o espaço das senzalas, lugar de abrigo dos escravos, que
significava não somente um lugar de pobreza e péssimas condições de higiene, mas de
vínculos afetivos e étnicos, de tensões e contradições entre companheiros de cativeiro.169 Nas
grandes propriedades de Monte Alto, quase todos os senhores que possuíam cativos
afirmaram em seus inventários a existência de senzalas ou quartos de servidão. Sabe-se pouco
sobre o ambiente de convivência entre os cativos nas senzalas, uma vez que as disposições
dos bens inventariados apenas descreviam a sua existência, sem dar muitos detalhes das
formas de organização de vida no interior daquelas construções. Senzalas com cobertura de
telhas constituíam exceção para a realidade das propriedades sertanejas e, geralmente, são
identificadas em posses de senhores abastados.
Ademais, ao que parece, essas moradias obedeciam a um padrão de construção
coletiva e poucos escravos não faziam parte dela, a exemplo daqueles que eram escolhidos
por senhores para prestarem serviços nas casas, como cozinheira, lavadeira, cuidadores de
crianças (filhos de senhores), como ama de leite ou babás, da condição de lacaio, tropeiro,
entre outras atividades. Daí, inúmeras recorrências em inventários de senhores abastados

168
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: Custódio Pereira Pinto, 1861.
Para saber mais sobre a arquitetura das senzalas, ver: SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças
169

e recordações na formação da família escrava. Campinas – SP: Editora da Unicamp, 2011.


193

dando a descrever a existência de quartos de servidão, aspecto que os distinguia dos demais
proprietários, em especial, daqueles de parcos recursos. 170 Em alguns casos, a casa de morada
de um pequeno senhor era construída de enchimento, assim como as senzalas. Havia, porém,
nítidas distinções na estrutura e organização do espaço, visto que se tornava um lugar privado,
enquanto os cativos eram obrigados a viverem amontoados e sem conforto algum.
No inventário de João Pereira Teixeira da Costa, consta que todo o seu patrimônio fora
avaliado em Rs. 5:623$494 e que sua casa de morada era estruturada com uma porta e uma
janela na frente, quatro portas no interior e construída de enchimento 171. O mesmo se verifica
no inventário de Maria Ignácia Nunes, em 1862, que deu a descrever uma casa coberta de
palha e feita de enchimento, mais uma parte de terra situada no Barreiro dos Coqueiros e um
cavalo. Somados os bens da inventariada, chegou-se ao valor de Rs. 2:655$000172.
Com relação aos médios proprietários, mesmo com pertences de valor, é possível notar
que a casa de morada, em alguns casos, representava um espaço simples e com pouca mobília,
como foi o caso de Ignácio Corrêa de Lacerda. Nos autos de inventário, consta uma casa de
morada, com mobília, situada na Fazenda Mamonas, avaliada em Rs. 300$000, quantia
insignificante se comparada a outros bens de riqueza que esse senhor possuía, como o escravo
de nome Faustino, cabra, vaqueiro, de 38 anos, avaliado em Rs. 1:000$200.

Deu mais uma casa de esteios de telas, com casas de despejo, cozinha,
senzalas, fábrica de farinha, neste sítio das Mamonas, com todos os
utensílios de serviço domésticos, mesa, bancos, camas e demais acessórios, o
que deram o valor a todos de trezentos mil réis que sai173.

Não somente as moradas, mas o território que demarcava a propriedade como um


todo, foram espaços de experiências vividas. Nos anos iniciais da década de 1840, constou, no
inventário do Capitão José Antônio da Silva Castro, troca de variadas correspondências entre
sua esposa, D. Joana de São João Castro, e o médico da família, Dr. Pedro da Silva Rego,

170
No dicionário de escravidão negra no Brasil, Moura (2013) descreve a senzala como lugar de habitação dos
escravos, de um modo geral. Lugar sempre rústico, desconfortável, feito de taipa, coberto de palha, sem
condição nenhuma de conforto, trancada com cadeado pelo feitor para evitar a fuga dos escravos. “Num espaço
de vinte metros, em média, moravam inúmeras famílias de escravos, homens, mulheres e crianças sem nenhum
vínculo de parentesco”, por isso, tiveram que inventar outras formas de sociabilidades e “estabelecer um código
de linguagem comum”, ou seja, um “dialeto das senzalas” (MOURA, 2013, p. 375).
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
171

Inventariado: João Pereira Teixeira da Costa. Mç: 24, n. 335, 1873.


Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
172

Inventariada: Maria Ignácia Nunes. Mç:15, n. 297, 1862.


173
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: Ignácio Corrêa de Lacerda, n. 296, 1862.
194

provavelmente da região de São Félix, Recôncavo baiano. As mensagens enviadas apontam


fragmentos das vivências entre indivíduos que circulavam pelo espaço da sede da grande
propriedade Cajueiro, naquela época. Ao tratar das enfermidades sofridas, D. Joana solicitava
do médico remédios para sua doença, da filha Sophia e de alguns escravos.

Confiada na bondade de Vª.Sª sempre lembrada dos favores q de Vª. Sª


tenho recebido, me animei ao enviar a Vª. Sª o negro Mathias e a negra
Rosalina para Vª.S.ª as receber em sua casa, e cuidar que eu me obrigo
por ter qualquer despesa que Vª. Sª com os ditos fizer, ficando eu
obrigada a pagar. Eu continuo os mesmos ataques e agora bastante me tem
perseguido, por isso vou pedir lhe que me mande duas pílulas Nº 2 e Nº 3
que tomei para ir paliando, tenho estado com a língua cortada e bastante
dolorosa. A menina Sophia acaba de tomar os últimos remédios que Vª. Sª
deixou no mesmo estado, nem sido menstruada, sendo algumas vezes o
ventre enxado, tem sofrido, digo, está agora com segundo ataque [...] e dores
no ventre Vª Sª de novo a recebe que esta me obrigo a saldar os remédios
que forem aplicados a mim, a minha família, já que aqui veio Jacinto e a
menina diz que não toma remédios dado por outra pessoa. Como a minha
tropa se tenha demorado, se não vier até o fim do mês, em fevereiro
mando hum próprio embolçar Vª Sª da quantia que lhe sou devedora. O meo
estômago encomoda a Vª Sª pedindo uma garrafa de Lixir. (Grifo meu).
Cajueiro, 02 de Março de 1843.174

Ao que parece, a família de D. Joana mantinha, havia certo tempo, estreito contato
com o médico Pedro da Silva Rêgo. Outra correspondência, em 1843, denota que o médico de
São Félix atendia a pacientes no sertão: “como se vai demorando a sua vinda a Caetité, não
175
quero retardar o pagamento da conta que a senhora D. Joana ficou responsável” . Apesar
das distâncias que separavam as propriedades de demais vilas, famílias abastadas como a de
D. Joana contavam com meios eficazes de viabilizar pedidos, remessas de produtos, dentre
outras necessidades. Intercâmbios entre o rural e o urbano se fizeram constantemente, através
de indivíduos encarregados pelas tropas ou aqueles que circulavam pelo ambiente interno das
propriedades e de maior confiança dos proprietários.
Destaca-se, aqui, que a travessia entre o sertão e outras paragens demandava
indivíduos habilidosos, que soubessem conduzir as tropas cargueiras. Nesse caso, tais
atividades foram executadas, em sua maioria, por escravos e libertos que se destacavam dos
demais companheiros de cativeiro por assumir função especializada, hierarquizando-se em
relação aos demais, característica peculiar a escravos de grandes e médias propriedades. Não

APEB. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro.
174

Classificação: 03/1021/1490/01. Mç:14, n. 19, 1844.


APEB. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro.
175

Classificação: 03/1021/1490/01. Mç:14, n. 19, 1844.


195

se descarta, contudo, a possibilidade de senhores de parcos recursos possuírem cativos com


alguma habilidade específica e, inclusive, poder alugá-los para angariar ganhos.
O negro Mathias e a negra Rosalina, certamente, contavam com condição privilegiada
entre os demais escravos, ao ponto de D. Joana solicitar do médico que os recebesse “em sua
casa, e cuidar que eu me obrigo por ter qualquer despesa que V . S com os ditos fizer”. Aos
escravos de confiança, geralmente, se atribuía um valor maior de mercado, por isso os
senhores tinham certa preocupação com os cuidados de eventuais moléstias. Em 1842, D.
Joana já havia encaminhado outro escravo para tratamento com o médico da família,
pedindo-lhe “o favor de receber um escravo que com esta, vá apprezentando a casa pª lhe
aplicar remédios q fação dezaparecer uma inflamação de garganta que o opprime”176.
Em 03 de março de 1843, após a morte de D. Joana, seu companheiro, José Antônio da
Silva Castro, encaminhou correspondência novamente ao Dr. Pedro da Silva Rêgo,
agradecendo-lhe pelo “curativo da velha que veio sã, da mesma forma faço quanto o escravo
Mathias”, e que se o “outro da garganta já estiver são pode vir por este todas as contas do
curativo de todos eles”.177 Por ser um bem valioso, a saúde dos cativos não deixava de ser
percebida pelos seus senhores, principalmente entre cativos em tenra idade, adequados à
venda no mercado, de confiança e que tivesse certa habilidade específica. As mulheres cativas
em idade reprodutiva possivelmente recebiam alguns cuidados nesse sentido. Essa atenção se
intensificou, sobretudo a partir de 1840, com a vigência maior do tráfico interno na região. No
entanto, as fontes documentais de Monte Alto, especialmente os inventários e processos-
crime, demonstraram que nem todos os cativos tinham tratamentos dispensados como o
“negro Mathias e a negra Rosalina”, citados acima. No rol das descrições dos cativos, era
comum apresentarem algumas doenças crônicas e deformidades no corpo por castigos físicos
ou acidentes no desempenho de suas atividades exaustivas. Sobre essa questão, o inventário
de um grande proprietário da Fazenda Campinas, Custódio Pereira Pinto, no ano de 1861,
descreveu, no arrolamento dos bens do inventariado, a existência de 50 cativos e muitos deles
sofriam de enfermidades e falta de cuidados.178 A cativa Clarismunda, cabra, 14 anos,
avaliada em Rs 1:000$000, sofria de moléstia de pele. Alexandrina, cabra, 24 anos, tinha uma
perna queimada. O cativo Justino, 35 anos, vaqueiro, “sofrendo do peito”, e o cativo Vicente,
cabra, vaqueiro, de 48 anos, tinha uma perna quebrada. Para Caetité e Rio de Contas, Pires

APEB. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro.
176

Classificação: 03/1021/1490/01. Mç: 14, n. 19, 1844.


APEB. Seção Judiciária. Série: Inventários. Inventariado: Capitão José Antônio da Silva Castro.
177

Classificação: 03/1021/1490/01. Mç: 14, n. 19, 1844.


Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
178

Inventariado: Custódio Pereira Pinto. Mç: 14, n. 19, 1861.


196

(2003, p. 185-189) descreveu um caso de tortura, que o escravo Martinho sofreu, porque
contrariou a vontade do seu senhor. Martinho queria casar e não teve o consentimento, propôs
pagar pelo seu valor, o que também foi negado e ainda teve que deparar com castigos
horrendos, sendo torturado ao ponto de perder os dedos da mão, simplesmente por ter
manifestado seus desejos e desafiado a autoridade senhorial.
Em pequenas propriedades, limitações eram impostas quanto ao acesso a recursos
variados para o tratamento de moléstias. Presume-se que escravos e forros de grandes
senhores, ao experimentarem formas de procedimentos que prometiam curar as enfermidades,
apropriavam-se desse saber, reinterpretando-o e difundindo-o entre os demais companheiros,
inclusive àqueles de pequenos senhores, informa Carla Berenice Starling de Almeida (2010,
p. 74). Essas experiências poderiam ser adquiridas e ampliadas por escravos e outros
indivíduos que se incumbiam do ir e vir entre o sertão e lugares mais afastados, assim como
lugarejos vizinhos, pois influíam não só em mobilidade física, mas em trânsitos de ideias,
proximidades nas relações cotidianas, saberes e práticas culturais, entre as populações dessas
regiões.
Por sua vez, batismos e casamentos registrados nas fontes eclesiásticas do termo de
Monte Alto mostraram, na celebração desses rituais, forma de inserção social e encontros de
diferentes indivíduos. O casamento legitimado pela Igreja, sem dúvida, representou um dos
momentos festivos, de sociabilidade, de vínculos afetivos e de manifestação religiosa. Do
mesmo modo, pode-se pensar sobre os batismos: esses rituais não só visavam disciplinar os
indivíduos socialmente nos sacramentos da Igreja Católica, como aferiam “pactos de alianças
entre famílias, assim como à clientela”, (FRAGOSO, 2014, p. 23).
Independentemente do significado particular que cada um ou o grupo atribuía a esses
rituais, era momento aguardado por todos, sobretudo nos espaços das grandes e médias
propriedades, que, de maneira geral, viabilizavam com maior frequência a participação de
escravos e forros nessas manifestações religiosas. Com “a devida cumplicidade da população
local”, os padres registraram, nas paróquias, vestígios da vida dos indivíduos que socialmente
comungavam da mesma religião. Ao fazerem isso, classificavam os participantes quanto à
condição social, “costumeira, vivida na freguesia”, como a qualificação social dos pais e
padrinhos, dos escravos, forros, donas, capitães, fidalgos, livres pobres e demais (FRAGOSO,
2014, p. 23).
Essas manifestações religiosas foram constantes na vida dos sujeitos sociais do termo
de Monte Alto. No ano de 1858, na Fazenda Cajueiro, de Faustino Pereira Castro: o padre da
paróquia dirigiu-se até a propriedade daquele rico senhor para celebrar o ritual do batismo de
197

09 escravos seus.179 Na escolha dos padrinhos, os cativos recorreram a pessoas ligadas ao


parentesco de seus senhores, como Alberto Pereira Castro e Elvira Barbosa Castro, para
apadrinharem seus filhos, mas a escolha recaiu, principalmente, entre seus próprios pares de
cativeiro, característica muito comum entre escravos de grandes senhores. Da mesma forma,
em 1861, na Fazenda Poço Comprido, do Major Antônio Pereira da Costa, retratada na Figura
12, páginas atrás, realizou-se também o ritual em sua propriedade. O cativo João, filho da
escrava Auta, teve como padrinhos os escravos Raphael e sua mulher Josefa. Já o cativo José,
filho de Margarida, escolheu os também escravos Vicente e Elitéria para lhe porem a bênção
dos santos óleos.
Muito mais que exercer trabalho exaustivo, cativos e forros se inseriam em todos os
espaços de construção social, ao longo do século XIX. Observar aspectos da organização dos
espaços nas grandes, médias e pequenas propriedades permite-nos compreender nuances das
relações entre cativos e senhores no desempenho das atividades cotidianas, o que propiciava
construção de vínculos afetivos, arranjos de sobrevivência e estratégias para o alcance da
liberdade, constituição de casamentos e o vislumbre em aprimorar-se no exercício de certas
atividades. Para João José Reis e Eduardo Silva (1989), foi no cotidiano e na dinâmica do
espaço dessas propriedades que as possibilidades diversas de relações com senhores, forros e
livres pobres se engendraram, ora com negociações, coexistência e acomodações, ora com
tensões, repressões e embates acirrados na luta por aquilo que o cativo considerava direito de
si e dos seus, a exemplo dos enfrentamentos com senhores, pelo direito de garantir a
continuidade da alforria, como se verá nos tópicos que seguem.

5.2 “E ne deve escravidão a algué ”: escravizados e forros nos tribunais de Monte


Alto

No ano de 1844, a senhora D. Cristina Fernandes de Barros procurou rescindir a


alforria que sua mãe concedera à parda Maurícia, como consta no processo de libelo
peticionado na vila Monte Alto. Maurícia impetrou, com a ajuda de seu curador, Manoel
Dantas Barbosa, a ação de libelo, para impedir a rescisão da alforria, conseguida há alguns
anos. D. Cristina Fernandes de Barros era proprietária da Fazenda Boqueirão, termo de Monte
Alto, naquela época, e, conforme indicia a fonte documental, após desavenças com o tio (o

179
Fonte: Igreja Santo Antônio – Guanambi/BA. Livros de assentos de batismos da Freguesia de Nossa Senhora
Mãe de Deus e dos Homens de Monte Alto, 1858-1879.
198

qual tinha posse sobre a parda), resolveu reconduzir Maurícia ao cativeiro.180 Maurícia foi
declarada de cor parda, de idade de 12 anos e mantinha sob a guarda de si a carta de liberdade
adquirida em 1837, por negociação entre sua mãe e a mãe de D. Cristina, ambas falecidas.
A liberta era filha natural de um neto de D. Cristina, de nome Francisco Fialho, e, por
desavenças de sua suposta senhora com familiares, passou a ser perseguida com ameaças de
retorno ao cativeiro, já que, naquela altura, usufruía da condição de livre. Maurícia
encontrava-se em poder de um tio, que a recebeu em sua casa, quando D. Cristina a impediu
de viver sob o mesmo teto que ela, alegando não querer “gente forra em sua casa”, como
consta no documento abaixo:

P. q‟ D. Cristina Frz‟ de Barros depois de libertada a parda Maurícia, por


essa forma, e de mui pouca idade q‟ apenas teria, não quis em sua casa e
poder, e a mandou a entregar por Francisca de tal a Cypriano de Souza Neto,
tio da mesma Maurícia, e mais dizendo- lhe que criasse e educasse, q‟ já lhe
havia feito o benefício que podia, e que não queria gente forra em sua casa,
ordenando e a mesma Innocência que não voltasse com ela e que não
receberia, a que foi presente Joaquim da Costa e Souza, que então se achava
em casa de Cypriano181.

Com receio da reescravização e sem perspectiva de conciliação, Maurícia contou com


a ajuda de um curador, alegando que “nem deve escravidão a alguém”. Na imprevisibilidade
do futuro, acionou a Justiça para tentar garantir o direito adquirido. A compra da alforria pela
mãe de Maurícia certamente se deu através de longas negociações com sua senhora e, embora
Maurícia fosse legalmente forra, corria o risco de ter sua alforria invalidada, desencadeando
embates em prol da manutenção da liberdade. Assim, procurou a Justiça na iminência de
solucionar o problema, pois não mais queria submeter-se à crueldade do cativeiro. Muito
possivelmente, Maurícia, naquela altura da vida, sabia que o tráfico interno despontava com
toda força na região, a partir de 1840, trazendo maiores preocupações à vida dos escravizados
no sertão baiano.
Sidney Chalhoub (2007, p. 220) enfatiza que,

na década de 1840, o Estado imperial havia se transformado em fiador da


escravidão, tornando-se omisso no combate ao contrabando de africanos e
adotando medidas para possibilitar a legalização da propriedade escrava
ilegalmente adquirida.

180
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844. O inventário de
D. Cristina Fernandes de Barros não foi localizado, entretanto, a classificação como grande fazendeira deve-se
ao fato de a riqueza inventariada pelo filho de D. Cristina Fernandes de Barros, que dá continuidade ao processo
após a morte de sua mãe, ser de Rs. 24:000$892, em 1873.
181
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844.
199

Isso fez aumentar, ainda mais, a vulnerabilidade de ex-cativos e libertos de retornarem


ao cativeiro, provocando insegurança entre eles. O Estado apresentava postura dúbia no
tocante à escravidão e ao destino dos cativos. De um lado, “articulava e disponibilizava
meios” para alcançarem a liberdade, de outro, utilizava-se das mesmas instituições, como a
Justiça, para garantir “a continuidade da hegemonia senhorial”, e foi essa contradição que
abriu espaços para muitos escravos recorrerem à Justiça (CHALHOUB, 2007, p.220).
Não há como saber as motivações de D. Cristina em tentar reconduzir Maurícia à
escravidão; na ação de libelo constaram, apenas, desavenças familiares. Presume-se que, por
negar-se a aceitar a liberta como parente de sangue, carregava ressentimentos quanto à cor e
condição social, ou era movida pela ganância diante do tráfico interno, vislumbrando a
possibilidade de lucro que poderia obter com a venda da escrava, daí, a perturbação ao direito
adquirido da liberta – a alforria. Não se descarta, ainda, a possibilidade das conhecidas
“desobediências e ingratidões” que enquadravam cativos no “mau comportamento”, mesmo
alforriados. Talvez fossem exigidas de Maurícia obediência e prestação de serviços e a liberta
se recusou a dar satisfação e, tampouco, gratidão, que comumente marcavam as relações entre
senhores, escravos e forros. Naquela altura, Maurícia já tinha motivos suficientes para
contestar os favores de sua ex-senhora.
Maurícia enfrentou longo percurso nos tribunais e, no interstício do julgamento, D.
Cristina veio a falecer. Com o parecer conclusivo do juiz municipal dando ganho de causa à
liberta, caberia a D. Cristina, já falecida naquele momento, pagar as custas do processo. Seu
filho, Luiz Fernandes da Rocha, herdeiro e grande proprietário escravista da região, contudo,
ficou inconformado com a decisão judicial. Assim, assumiu a continuidade do processo,
apelando ao Tribunal da Relação da Bahia, a fim de ganhar tempo quanto às despesas e evitar
que Maurícia gozasse da plena condição de liberta.
O fato, julgado em segunda instância, baseou-se em um modelo de acórdão da
Suprema Corte do Rio de Janeiro, no qual o juiz do Tribunal de Relação da Bahia validou a
decisão da instância de Monte Alto, garantindo a Maurícia a continuidade da condição de
forra. Sua história repercutiu em manchetes dos diários da Corte do Rio de Janeiro e no jornal
O Guaycuru, que, naquela época, publicou nota acerca da ação de libelo, em 02 de outubro de
182
1847 . A reportagem tratou apenas do recurso impetrado por Luiz, com decisão favorável

182
Hemeroteca Nacional. O Guaycuru – 1844 a 1860. Ano 5. Número 447, de 22 de outubro de 1847. Disponível
em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=709794&pesq=Vila>.
200

pela Justiça da vila de Monte Alto à ex-escrava183. Presume-se que Luiz Fernandes da Rocha
mantinha influência com outras pessoas na capital da província baiana, levando o caso ao
conhecimento da imprensa, no intuito de ser favorecido.
A apelação de Luiz Fernandes da Rocha fundamentou-se em duas questões: o
julgamento do mérito, que deu sentença favorável a Maurícia, e a condenação das custas
processuais. A postura do apelante era, no mínimo, indevida, no que se referiu às custas do
processo, quando recorreu ao Tribunal da Relação do Estado para reverter a sentença do Juiz
de Monte Alto, tendo em vista que, em regra, a autora do processo (Maurícia) não possuía
recursos suficientes para arcar com as despesas cobradas. O valor a pagar só podia ser de
responsabilidade do senhor, já que tentou reconduzir a forra à condição de sua propriedade.
Com a pretensão de retorná-la ao cativeiro, não haveria por que questionar o valor a
ser pago, a cativa passaria a ser sua propriedade e, ainda que possuísse o pecúlio, caso o
houvesse acumulado nas fímbrias do domínio senhorial, do ponto de vista legal, o pagamento
não caberia à escrava, existindo dispositivo que a protegia de tal condenação. Somente a partir
de 1871 é que o pecúlio passou a constar na legislação como um direito legal do cativo. A
esse respeito, Sidney Chalhoub, analisando o caso da escrava Fortunata, pontua: “[...] as
economias dos escravos, assim como a alforria mediante indenização de preço, eram práticas
cotidianas relativamente comuns, porém não foram objeto de legislação específica antes de
1871” (1990, p. 108). Quanto ao mérito, caberia talvez o recurso, uma vez que era prática de
senhores, por motivos quaisquer que “ferissem” os acordos no campo do favor, rescindir o ato
concedido ao escravo, principalmente se o alforriado não tivesse como provar sua condição de
liberdade. Nesse caso, também, não era devida a ação, pois Maurícia provou a existência da
carta de liberdade e com causa ganha em primeira instância.
Depreendem-se, da narrativa acima, as vulnerabilidades em torno da liberdade de
cativos e forros que se defrontavam com ameaças de retorno à escravidão, “[...] por mais que
os escravos se empenhassem em reduzir o perigo em suas vidas”, confirma Robert W. Slenes
(2010, p.280). Por isso, acionaram a Justiça e elaboraram estratégias de resistências cotidianas
não só dentro do cativeiro, mas em graus variados de articulações e tensões com senhores. Na
premência de assegurar o direito conquistado, Maurícia não se intimidou frente à vida
embaraçada, reclamando com embates jurídicos a continuidade da manumissão. Sua história,
assim como a de outros escravos e escravas, é reveladora de um cotidiano de lutas, de
conquistas e de fracassos nas relações com seus senhores em Monte Alto. Se a autoridade

183
A reportagem tratava sobre atos oficiais do interior e foi mencionada na ata da sessão de 18 de agosto de 1847
do Tribunal de Relação da Bahia, incluída a história do processo de Maurícia.
201

senhorial canalizava vantagens para si, cativos interpretaram de outro modo seu cotidiano
escravista e lançaram mão de variadas estratégias, inclusive junto à Justiça, na garantia
daquilo que consideravam direito pleno.
Outra questão que merece pontuar acerca do processo de Maurícia são as diferentes
concepções de liberdade entre o curador (defensor da liberta) e o procurador de Luiz
Fernandes da Rocha. A concepção desse em nada correspondia aos anseios de escravos e
libertos. Para o curador:
A liberdade, esse dom naturalmente sublime, e precioso que encanta a todo o
gênero de viventes, q‟ abaixo todos os corações bem formados, e que tantos,
e tão sábios patronos tem sido sempre a seu lado, se não vê na presente causa
à penas a recosta no fraco arrimo intelectual de um pobre e simples curador
sem princípios e sem prática judicial; tendo por única defesa a Lei que a
protege, e os poucos, porém verdades documentos, em que basêa o seu
direito184.

Concluiu o curador, na defesa, que esperaria ser ouvido, e que a sua curatelada
Maurícia fosse julgada livre de toda escravidão, gozando da antiga liberdade conquistada
havia mais de oito anos, cabendo à Ré, se condenada, pagar as custas do processo. Na ordem
do trâmite, seguem contra-argumentações do procurador, defensor da Ré, alegando ser
indubitável o dom sublime e precioso da liberdade e, com ela, todas as comoções se abraçam,
pois a “liberdade emana do céu e encanta os viventes”, porém a pretendida liberdade não
existia, mas, sim, trapaças e engano.

Em cujos termos a Ré implora e espera q‟ tanto da notória inexperiência e


inabalável integridade do julgamento, julga de nenhum efeito a questão pela
falta de prova da parda Maurícia , tanto de fato, como de direito; julgando a
Maurícia sujeita a Ré; mandando que ella se faça entrega ao seu senhor
como legítimo herdeiro universal de D. Cristina; condenando a Maurícia a
pagar as custas pela notória malícia com q‟ perturbou o domínio de seu
senhor185.

Existem, nas falas, conflitos quanto à primazia da liberdade: o curador apelando para a
naturalidade da liberdade como algo “sublime e precioso que encanta a todos”, e o procurador
da Ré argumentando, em teoria, que, de fato, “é sublime e encantadora” e que vem dos céus,
contudo, na causa específica, tratava-se de efeito prático e de direito de propriedade
individual. Nesse caso, é possível perceber o quanto as noções da liberdade se distanciavam
do desejo que os cativos alentavam, pois, tanto por parte do curador como por parte do

APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
184

Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844.
APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Ação de liberdade. Interessados: Rocha, Luiz Fernandes
185

Barros, Cristina Fernandes de Barros, Monte Alto. Classificação 41/1441/10, folhas soltas, 1844.
202

procurador, as considerações não condiziam com a realidade cotidiana que cativos tinham
sobre si. Mesmo que a liberdade fosse princípio defendido e constitucionalmente legalizado
como direito natural e inalienável, na prática, era custosa e requeria esforço e astúcias dos
escravos para alcançá-la.
Embora liberta, Maurícia não podia contar com a condição de livre, ao menos no
aspecto moral e reconhecimento de seus ex-donos. Assim, para provar a posição de liberta,
necessitou de outra pessoa, nesse caso, a presença de um curador para representá-la e ser
ouvida. O direito à propriedade privada ditava as regras do jogo e sempre caminhava na
contramão dos interesses dos cativos. Por isso, a ocorrência de tensões, motins, assassinatos,
conflitos, sublevações, a recorrência à Justiça, as fugas de toda ordem, bem como as
estratégias variadas de negociações entre escravos, livres pobres e forros nos embates com os
senhores. A insegurança e privações, na vida de escravos e libertos, fizeram com que eles
investissem ainda mais no fortalecimento dos laços com os companheiros de cativeiro,
familiares e vizinhança. Essas relações eram importantes para potencializar seus projetos de
vida em liberdade.
A trajetória de Virgínia, que nasceu em 1862, após o arrolamento dos bens do falecido
Ignácio Corrêa de Lacerda, médio fazendeiro, proprietário da Fazenda Mamonas, cujo
monte-mor declarado foi de Rs. 8:807$440, é outra situação embaraçosa vivenciada por
cativos da região, para fazer valer sua alforria perante os tribunais. Virgínia nasceu depois da
morte de seu dono, por esse motivo, não foi declarada no inventário, ficando a cargo da viúva
do casal, Margarida Moreira da Silva, conferir-lhe a alforria, uma vez que era desejo de sua
mãe, escrava, pagar pela manumissão da filha. Com base no trâmite do processo,
encaminhou-se petição ao juiz para estabelecer a data, hora da avaliação e a descrição da
cativa, para, assim, a suplicante, mãe da escrava Virgínia, depositar o valor e entregar-lhe a
carta de alforria. Sua senhora declarou, ainda, que não haveria dolo ou prejuízo aos herdeiros,
e que sua atitude era um ato de “extrema amizade consagrada à suplicante”186.
O Juiz dos Órfãos designou o pedido para o dia 14 de junho de 1865, atribuindo um
valor de duzentos mil réis, pago pela mãe da escrava, Chrispiana. Não contava a inventariante
que, mais tarde, no ano de 1866, outro juiz analisaria o inventário, identificando falhas na
condução do processo. De fato, existiam outras alforrias também concedidas a escravos de D.
Margarida e, sobre todas elas, o juiz declarou irregularidade nos trâmites legais da condução,
alegando que as alforrias foram concedidas por “impulso de caridade” quando a inventariante

186
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: de Ignácio Corrêa de Lacerda. Mç:15, n. 296, 1862, p. 27 a 28.
203

aceitou o preço oferecido pelos escravos. De acordo com o juiz, a sentença não poderia ser
acatada devido à existência de órfãos e herdeiros ausentes.
A irregularidade devia-se ao fato de os tutores não terem autorizado a concessão da
alforria e, assim, o juiz declarou que, “nessa matéria de alforria existe, é verdade, a
compaixão, mas o juiz é a lei viva, e deve rigorosamente sob pena sujeitar-se a abrir as portas
aos maiores abusos e escândalos”187.
Enquanto tramitava o processo, anos se passaram até que D. Margarida resolveu,
novamente, recorrer ao tribunal com outras petições, dessa vez, com argumento contrário à
alforria de Virgínia. Justificou passar por crises “não só pelo seu mau estado de saúde, como
pelos inconvenientes das secas”. Logo, resolveu vender a pequena Virgínia, justificando a
venda pela garantia da subsistência de sua família, avaliando a cativa em quatrocentos mil réis
– o dobro da primeira avaliação. Nesse caso, caberia à mãe da escrava o ônus de pagar
novamente o preço que dera pela nova avaliação. O juiz atendeu à peticionária e, mediante o
pagamento da diferença em relação ao primeiro valor atribuído, depositado pela mãe da
escrava, Chrispiana, foi deferido o pleito da alforria, em 12 de julho de 1870.
Como se observa, ao longo do processo, D. Margarida assumiu posição contrária à
decisão com que havia se comprometido inicialmente. Após a morte de seu marido, a família
passou por crises financeiras com o arrastar dos anos, caminhando para a falência. As
dificuldades conjunturais acentuadas pela seca, associadas ao auge do tráfico interno, que
elevou o preço dos cativos, fizeram com que D. Margarida mudasse de ideia quanto à alforria
de Virgínia, colocando-a à venda pelo valor atualizado de mercado.
Naquela época, a menina ainda dependia dos cuidados da mãe (Chrispiana, crioula),
que vivenciou a experiência de ver sua filha em disputa judicial. Certamente, a infância de
Virgínia foi marcada por uma série de situações de difícil entendimento para uma criança e
com árdua tarefa para sua mãe. O caso levou mais de uma década e, com a devida atenção ao
documento, percebe-se morosidade e abuso de poder no desempenho dos tribunais, já que o
juiz deixou clara sua posição hierárquica, ao afirmar que “o juiz é a lei viva”. Chrispiana e sua
filha Virgínia continuaram no cativeiro e, quando a mãe apelou à Justiça, tinha a esperança de
que o destino de suas vidas pudesse solucionar-se, no entanto, não havia ainda, naquela época,
base legal de garantia da alforria, tudo dependia do consentimento de seus senhores.
Cabia à Justiça decidir o processo, visto que, no âmbito privado, não houve
cumprimento do acordo negociado. Apelar para a instância judicial dependia da sensibilidade

187
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: Ignácio Corrêa de Lacerda. Mç: 15, n. processo 296, 1862.
204

do juiz, favorável ou não à causa dos escravos. A prerrogativa de ser “a lei viva” norteia uma
ideologia de persistência na manutenção da escravatura, visto que as autoridades locais eram
também senhores escravistas e, conforme o próprio juiz afirmou, sua posição evitaria outros
“abusos e escândalos”, ou seja, coibir as negociações entre escravos e senhores que vinham
paulatinamente se ampliando, a partir da segunda metade do XIX.
Ressalte-se que o período de 1850-1870 foi, para a região do Alto Sertão baiano,
momento de intenso comércio de escravos, via tráfico interno, despertando em senhores de
grandes, médias e pequenas propriedades a avareza de lucros provenientes desse negócio.
Eram frequentes as declarações de juízes de Monte Alto questionando a veracidade das
informações e a falta de esclarecimentos sobre bens arrolados nos espólios, principalmente
referentes à descrição de escravos, com valores acima ou abaixo dos estipulados na época,
sonegação da quantidade exata de cativos, vendas sem consentimento dos herdeiros,
arrematação e hipotecas indevidas.
Um exemplo dessas declarações está no inventário de José de Souza Góes, pequeno
proprietário com um monte-mor de Rs. 3: 246$550, no ano de 1854188. Somente em 16 de
abril de 1866, o juiz expediu um documento questionando as informações acerca do preço do
escravo Manoel, de 14 anos, avaliado em Rs. 700$000. Para o juiz de Monte Alto, o valor era
considerado acima do mercado, e a venda, justificada por motivo de fuga do escravo não o
convencia, desconfiando até da ação do escrivão, o que não era surpresa, para uma localidade
pequena, em que todos se conheciam e alguns fossem favorecidos nas aproximações.
Observa-se que os casos citados, sob a revisão judicial, levavam anos para chegarem à
sentença, tempo suficiente para senhores mudarem os rumos da condução de um processo,
obtendo informações privilegiadas em contato com pessoas dos cartórios e comarcas em
geral. Recorremos a Sidney Chalhoub (1990, p. 122): libertar “os escravos não esbarrava
apenas na avareza dos herdeiros, mas no próprio pacto de classe que garantia a continuidade
da escravidão”.
Os impasses entre a propriedade privada e os princípios da liberdade contradiziam-se e
se deparavam com constantes ambiguidades na jurisprudência, ainda que a base de
argumentação das disputas, entre senhores e cativos, se fundamentasse nas razões do direito
legal. Nessa situação limite, as ações de liberdade serviram de balizas ao mexerem nas
convicções mais íntimas referentes à continuidade ou não da escravidão (CHALHOUB,

188
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Seção Judiciária. Série: Inventários.
Inventariado: José de Souza Góes. Mç: 11, n. 125, 1854.
205

1990). Tais comportamentos mostravam o quão difícil era a luta pela alforria e, mais ainda, a
garantia de usufruir o direito de conquista, um dilema árduo para cativos e forros.
Foram localizadas quatro ações de ex-cativos, levando senhores aos tribunais para
impedir a reescravização, ao contrário dos pedidos de alforrias, em inventários, que eram
muitos, principalmente entre escravos de grandes senhores. Mesmo assim, não se pode
afirmar que, em Monte Alto, existiu pouca incidência desses casos. Conforme já falado em
outros momentos deste estudo, parte da documentação do Alto Sertão baiano possivelmente
se perdeu nas mudanças de comarcas pelas quais vilas e freguesias se alternavam, no século
XIX, e sabe-se que nem todos os cativos, após a alforria, ficaram próximos de seus ex-
senhores.
Alguns daqueles alforriados devem ter procurado outros espaços alternativos,
evadindo-se da violência e do trabalho extenuante a que eram submetidos, buscando outras
vias de sobrevivência independentes do ex-senhor.189 Mas boa parte deles continuou
mantendo relação de favor com seus senhores, pois as grandes extensões de terras estavam
sob controle desses fazendeiros, que necessitavam de gente para prosseguir na organização
produtiva de suas propriedades e, como as alforrias eram precárias, acabavam conduzindo os
forros e pobres livres à dependência, especialmente daqueles que tivessem terra para
trabalhar, morar e dela sobreviver. Isso vale, inclusive, para senhores de pequenos recursos. A
esse respeito, Flávio Gomes (2005, p. 12-13) menciona: “Havia muita expectativa a respeito
do controle da população recém-libertada, principalmente nas áreas rurais”. Explica o autor
que, nos anos finais da abolição, rondou na mentalidade da época “o fantasma da desordem e
do caos econômico” entre os que defendiam a manutenção da escravidão.
Maria de Fátima Novaes Pires (2003, p. 113-114) sinalizou apenas dois casos de ações
de liberdade, nos autos analisados, para Caetité e Rio de Contas, na segunda metade do século
XIX, porém notou variados momentos de tensões entre senhores e escravos no sertão, e, em
muitos deles, cativos “buscaram a instância judicial como mediadora”. Tendo em vista uma
vasta documentação da província da Bahia, Ricardo de Tadeu Caires Silva (2000) encontrou
inúmeros casos de escravizados acionando a Justiça. Salienta o autor que essas ações se
expandiram para o interior e citou, como exemplo, “mais de uma dezena de processos”
movidos por escravos na Justiça de Caetité, cidade vizinha de Monte Alto, no século XIX.

189
Maria de Fátima Novaes Pires (2009, p.117) identificou para Caetité e Rio de Contas a permanência de
escravos no mesmo local, trabalhando por jornais (diárias).
206

Para Carinhanha, Simony Oliveira Lima (2017) também encontrou quatro ações de liberdade
para a localidade.
Márcio de Souza Soares (2009) - Campos de Goitacazes – pontuou, para o fim do
século XVIII e início do século XIX, sudeste do País, alguns forros convivendo com ameaças
de retorno ao cativeiro, mas considerou que essas ocorrências de ações de liberdade eram
relativamente baixas e insuficientes para sustentar crenças generalizadas de ameaça à vida de
forros e cativos, embora reconhecesse a tenacidade dos escravos como protagonistas de ações
diversas, no empenho de alforrias.
Para o autor, libertos estavam atentos à alforria e senhores não tinham interesses em
romper com as concessões. A ameaça recaía, basicamente, naqueles forros que mudavam de
lugar de origem, sendo a distância, aspecto que os tornaria suspeitos e conduzidos à prisão até
que se comprovasse a liberdade. Soares (2009) valeu-se de comparações com outros estudos,
mostrando, na maioria dos casos, compromisso nos acordos firmados entre senhores e cativos.
Assim, localizou apenas três casos de anulação de alforrias e cita que Kiernan, em Parati
(1798 e 1822), verificou apenas seis casos de reescravização, Karasch (2000), com treze
situações semelhantes de um total de 1.319 alforrias analisadas para o Rio de Janeiro, na
primeira metade do século XIX. Sidney Chalhoub (1990) contou apenas com um caso e
Sheila de Castro Faria (1997), quatro casos, de um montante de 17.500 cartas analisadas. Na
visão de Soares (2009), esses exemplos tratam de referências esparsas e impedem
generalizações da ampla ameaça sofrida pelos forros quanto ao retorno ao cativeiro.
De fato, não se pode generalizar o argumento da ameaça assustadora na vida dos
forros e libertos, até porque, como reconhece o próprio autor Soares (2009), os libertos
possuíam tenacidade nas relações estabelecidas e estavam atentos às ações trapaceiras de seus
ex-senhores. Quando caíam na armadilha do possível retorno ao cativeiro, não hesitavam em
fazer conciliações e, sempre que possível, recorriam, com ajuda de curadores, à instituição
jurídica do Estado, na garantia daquilo que haviam conquistado. Entendiam, a seu modo, o
que era a Justiça e conheciam as regras, notadamente construídas nas práticas costumeiras e
da representação legal, a partir de 1871.
Casos de rompimentos de acordo por parte de senhores, mesmo que esporádicos,
representaram realidade nos quatro cantos do Brasil, ou seja, no período da escravidão, as
ações de liberdade e ameaças acompanharam o cotidiano dos libertos e forros.190 No Alto

190
A existência de indícios de cativos acionando a Justiça remonta desde o século XVII, mas foi no decorrer do
século XIX que a prática tornou-se mais recorrente. Muitos escravos, ao reunir condições, como o amealhar
pecúlio, puderam negociar com seus senhores a alforria e, quando essas negociações não fossem possíveis,
207

Sertão da Bahia, embora ainda careça de pesquisas nessa área, os casos localizados
evidenciam situações emblemáticas de instabilidade vivenciadas por muitos cativos em suas
práticas cotidianas, quer fossem em grandes propriedades, quer fossem em médias e
pequenas.
A ameaça de retorno ao cativeiro possivelmente assustava os demais companheiros e
os colocava em vigilância constante frente às ações que, porventura, senhores viessem a
praticar, principalmente em face ao tráfico interno. Impactava, ainda, no comportamento e
expectativa de escravos e forros, uma vez que, para receber a alforria, cativos utilizavam
vários expedientes nas negociações com seus senhores: contar com o favor e, caso esse dever
antes e depois da alforria fosse descumprido, entraria o uso da força senhorial, recolocando-o
no cativeiro. Assim, independentemente de ser cativo ou forro, a luta pela liberdade marcou
profundamente a experiência de vida de todos aqueles que direta ou indiretamente se
envolviam nos projetos de sua liberdade e a de seus familiares.
Outro caso de escrava nos tribunais de Monte Alto tratou-se de Marqueza, já
mencionado anteriormente neste texto, por seu grau de influência nas redes de relações com
outros cativos, batizando filhos e apadrinhando outros em várias propriedades de seus antigos
senhores. No dia 13 de outubro de 1873, no termo de Monte Alto, Marqueza, escrava de
Antônio Dias da Silva, requereu, junto ao Tribunal de Justiça daquela vila, a “justificação da
manutenção de liberdade”.
A escrava, com trinta anos de idade, cabra, fiandeira, mãe de duas filhas, Felipa
(alforriada) e Joana (deficiente de um braço), vivenciou uma situação embaraçosa no processo
de reconhecimento da alforria. Antônio Dias da Silva declarou em testamento que, por
vontade, deixava Marqueza forra, assim como sua filha de nome Felipa, a quem já havia
passado carta de liberdade, porém, depois de escrito o testamento, naquele momento não
“acharão naquelas vizinhanças pessoas desimpedidas e aptas que se prestassem e pudessem
servir de testemunhas”, por isso, na presença do Escrivão de Paz, declarou verbalmente e
perante testemunhas (testamento nuncupativo) que concedeu alforria à Marqueza e sua
filha.191
Zeferino Correa de Lacerda, herdeiro do falecido, não reconheceu a condição de
liberta, reconduzindo-a ao cativeiro. No decorrer dos autos de inventário, Marqueza foi
declarada como bem do casal, permanecendo por mais de três anos no cativeiro, até que o

recorriam aos tribunais para provar seus direitos. Na segunda metade do século XIX, especificamente a partir de
1860, essas ações em tribunais aumentaram consideravelmente (GRINBERG e PEABODY, 2013, P. 110- 111).
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira. Palmas de Monte Alto/BA. Auto-Crime: Manutenção de liberdade, 1873.
191

Documentação não Catalogada.


208

escrivão que havia presenciado o desejo expresso do testador Antônio Dias da Silva
denunciasse o fato à Justiça, alegando ter a suplicante incontestável direito à sua liberdade.
Era desejo de Marqueza sair do poder do herdeiro Zeferino Correa de Lacerda,
comprometendo-se, inclusive, a depositar e requerer o que fosse a bem de seu direito. O juiz
de Monte Alto foi favorável ao processo movido pela escrava, validando a carta de alforria192.
Vale lembrar que Marqueza foi uma daquelas escravas atentas ao contexto das leis
abolicionistas, sobretudo a Lei do Ventre Livre, que ampliava o direito de cativos recorrerem
à Justiça, principalmente em situações de reescravização.
Keila Grinberg e Sue Peabody (2013) identificaram, ao longo do século XIX, números
crescentes de processos judiciais de escravos recorrendo à Justiça para a obtenção das
alforrias e argumentam que a frequência de ações deveu-se em função de muitos escravos
passarem a acreditar “ter reunido condições para serem considerados livres”. Assinalam as
autoras:
As evidências documentais existentes sobre as ações de liberdade
demonstram que, assim como nas práticas de coartação, a relação entre
senhores e escravos envolvia, além de conflitos, muitas negociações.
Embora os conflitos e negociações fossem desiguais – os senhores tinham
uma probabilidade muito maior de saírem vencedores nestas disputas –, é
importante ressaltar que, muitas vezes, o escravo conseguia provar seus
direitos nos tribunais, conseguindo sua liberdade (GRINBERG; PEABODY,
2013, p. 107).

Correlacionando a análise de Grinberg e Peabody com as ações de liberdade acima


analisadas, de fato, a concessão da alforria dependia do poder senhorial e as ações impetradas
por cativos na Justiça de Monte Alto, com ou sem êxito, foram marcadas por acirradas tensões
e conflitos latentes. É importante notar, nas experiências de Maurícia, Virgínia e Marqueza,
que a alforria foi adquirida através de pagamento pecuniário, conseguida com muito empenho
por essas mulheres, evidenciando a importância da inserção em atividades que possibilitaram
a formação de pecúlio e a negociação para a compra da manumissão.
Diante da produção econômica local, baseada na policultura, com destaque para o
algodão, muitas escravas se envolveram em atividades da tecelagem, conforme se observa em
inventários de grandes e médios senhores. No inventário do Major Manoel Moreira da
Trindade, em 1866, Fazenda Canabraval, declarou-se a posse de 79 cativos envolvidos nas
atividades produtivas: pecuária, lavoura algodoeira, tropeirismo, fabrico de ferramentas, entre
outras. Do total de cativos arrolados, 36 eram mulheres, sendo algumas com função não

Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Auto Crime: Manutenção de Liberdade, 1873.
192

Documentação não Catalogada.


209

especificada, mas, em sua maioria, desempenhavam atividades de tecelagem; 15 foram


descritas como costureiras e as demais, cozinheiras (cinco), serviço doméstico (uma) e
engomadeiras (duas).
Para Rio de Contas e Caetité, a historiadora Maria de Fátima Pires identificou, em
processos-crime e cartas de alforria, ofícios de mulheres negras e pobres. Segundo a autora, as
fontes analisadas registraram escravas, forras e ex-escravas constantemente envolvidas na
vida social, lutando pela sobrevivência, criando seus filhos, estes, muitas vezes, sem a
companhia dos pais. Enfrentavam, com perspicácia e versatilidade da vida, os percalços e
desafios colocados no dia a dia. Requisitavam-se mulheres para o trabalho doméstico e das
roças, onde atuavam na lavoura, na carpina, em engenhos, casas de farinha, cuidavam de
animais domésticos (porcos e galinhas) que podiam assegurar “[...] algum dinheiro, „vintém
da sobrevivência‟, para compras no comércio local, diversões e, quando economizado, servia
de pecúlio para a conquista de alforrias” (PIRES, 2009, p.223).
Outros estudos na Bahia têm destacado a relevância do papel social das mulheres
escravas e forras, no século XIX. De acordo com análise de Kátia Mattoso, mulheres “negras
e mulatas livres, além de fazerem também esses trabalhos artesanais [bordado, costura e
preparo de petiscos], podiam ser lavadeiras, passadeiras e engomadeiras” (MATTOSO, 1992.
p, 536). Descreve ainda a autora que, em “42% dos casos, os grupos domésticos eram
chefiados por mulheres, 71% das quais eram solteiras, muitas com filhos”, e que, em
Salvador, era frequente a mulher assumir sozinha o seu destino e o de seus filhos
(MATTOSO, 1992, p. 171). Observa-se que muitas assumiam o papel de responsável pelo
sustento e manutenção do ambiente familiar.
Outrora, essas características dos variados ofícios, entre as mulheres negras, não se
restringiram à Bahia. Maria Odila Silva Dias afirma que, em São Paulo, no século XIX, as
mulheres também exerceram atividades nessas funções, como tecelãs, fiandeiras e costureiras.
Muitos desses ofícios eram desempenhados na fabricação doméstica, visando suprir sua
própria necessidade (DIAS, 1995, p.225).
A luta pela sobrevivência culminava em relações tensas no convívio entre vizinhanças,
escravos, livres e forros, implicando ora auxílio mútuo, ora inserção forçada, ainda que essas
relações fossem marcadamente desiguais. A violência e a pobreza marcavam a vida de muitas
mulheres escravas ou forras, que assumiam a liderança das famílias, em geral, sem a presença
de companheiros, principalmente entre aquelas que pertenciam a senhores de parcos recursos.
Por isso, a sobrevivência perpassava por uma “árdua luta quotidiana”, e era justamente na
trama dessas relações pessoais que muitos encontravam espaços de mobilidade social (DIAS,
210

1995, p. 238). Alisson Luiz Freitas de Jesus, afirmar que “o acesso à Justiça é mais uma
realidade, constituindo-se em mais um exemplo da mobilidade e complexidade da escravidão
brasileira” (JESUS, 2007, p. 50).

5.3 Fundo de Emancipação: Família escrava e alforria

Havendo-se sussitado [sic] diversas dúvidas sobre a inteligência do art. 27


no 1 do Decreto no 5.135 de 13 de Novembro de 1872, que estabelece de 1ª
classe os escravos ou escravas casadas com pessoas livres ou libertas a fim
de serem libertadas pelas quotas do fundo de emancipação, e sempre se
reproduzindo essa classe em virtude dos diverços casamentos que
continuadamente se avultão de Escravos ou Escravas com pessoas livres ou
libertas, ficando assim sempre prejudicados os do 1° no 1°art. E decreto
citado, visto nunca se esgotar os da classe dos casados, como já tive a honra
de expor a Vexa essa dúvida a fim de que Vexa se digne resolve-la em sua
sabedoria .193

A correspondência datada do dia 03 de março de 1883, enviada por Ernesto Pereira de


Souza, vice-presidente da Junta de Monte Alto, enfatizou o número crescente de casamentos
entre cativos com pessoas livres e libertas naquela localidade. O Decreto 5.135, de 13 de
novembro de 1872, estabeleceu prioridades na composição das famílias que pleiteavam as
alforrias. No topo da classificação, estavam os escravos de diferentes senhores e seus filhos,
depois, os que tinham filhos ingênuos, seguidos pelos que tinham filhos livres ou escravos
menores de 21 anos e, por último, as mães solteiras com filhos menores e os casados sem
filhos. Assim, não era qualquer escravo que poderia concorrer às quotas do Fundo de
Emancipação. Escravos com histórico de fugas, embriaguez, com sumário de culpa ou
condenados, estavam literalmente excluídos do direito. 194
A finalidade do Fundo era destinar recursos para a indenização dos senhores pela
libertação dos cativos, captados por meio das taxas de matrículas dos escravos, de impostos,
doações, multas e outras contribuições. O montante desses recursos era repartido
proporcionalmente ao número de escravos que cada vila, município ou freguesia possuía. O
repasse era realizado por etapas, denominado de cotas, e os valores que sobrassem na
localidade beneficiada poderiam ser utilizados no ano seguinte. Em seguida, era necessário

193
APEB - Seção de Arquivo Colonial e Provincial, Presidência da Província, Judiciário (Escravos: Assuntos)
1880-1888, Maço 2900. Apud REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão:
Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas. 2007, p.203.
194
Segundo o historiador Pereira Neto (2012, p.38), o Decreto 5.135, de 23 de novembro de 1871, estabelecia,
em seu artigo 28, a criação, nos municípios do Império, das Juntas de Emancipação, com a finalidade de
classificar os escravos que poderiam libertar-se pelo Fundo. De acordo com o autor, o Fundo funcionava nos
municípios e vilas da seguinte forma: primeiramente, era preciso criar uma Junta composta por agentes do setor
administrativo e judiciário dos municípios, como promotores públicos, presidentes da Câmara e o coletor de
rendas. Na ausência destes, haveria uma substituição legal, com outros componentes que fariam parte da referida
Junta, e ainda um juiz de paz para ajudar nos registros das atas.
211

que os escravos estivessem regularmente matriculados por seus senhores com informações
precisas sobre a vida. Essas informações baseavam-se, normalmente, em nome, cor, idade,
estado civil, naturalidade, filiação, aptidão para o trabalho, profissão, sexo e algumas
observações no final, caso necessário. Era com base nesses dados que a Junta determinava
quais os cativos que se enquadravam na exigência do regulamento, comenta Fabiano Dauwe
(2010).
Cabia à Junta priorizar as características e estabelecer os critérios de acordo com o
regulamento do Fundo, assim como decidir quais escravos estariam contemplados a receber a
alforria, apesar de a visão senhorial do “bom escravo” prevalecer. Dessa forma, o primeiro
critério consistia na valorização das uniões matrimoniais, enquadrando os cativos nos
“padrões e normas” de convivência da época. Para José Pereira de Santana Neto (2012),
normalmente, a prioridade destinava-se aos escravos casados com outros livres ou libertos e
que tivessem filhos. Em seguida, os que possuíssem pecúlio, independentemente de serem
casados ou não, e disciplinados no trabalho.
Mesmo antes de 1871, conforme se observou em documentação analisada nos
Capítulos III e IV deste estudo, houve números consideráveis de escravos que mantinham
uniões legitimadas ou consensuais com seus pares, forros e livres e pobres, em Monte Alto.
Essa incidência explica a preocupação do vice-presidente da Junta, Ernesto Pereira de Souza,
em afirmar: “visto nunca se esgotar os da classe dos casados”, com ampliação dessas uniões a
partir da atuação do Fundo de Emancipação na região. Obviamente, o Fundo despertou
nesses cativos a busca de alforrias contempladas por essa política apoiada pelo Estado.
Conforme Ricardo Tadeu Caires Silva:

Os escravos, por seu turno, não perderam a oportunidade e aquiesceram à


oportunidade de mostrar que eram formalmente casados, ou ainda de
legitimar as uniões consensuais em que viviam e, em outros casos, casar-se e
assim obter maiores chances de conseguir a alforria mais rapidamente.
(SILVA, 2007, p.201)

Nesse sentido, Dauwe (2010) chama a atenção para a relevância dessa forma de
alforria, pois ela caminhou lado a lado com a Lei do Ventre Livre e era, de certa forma, uma
maneira instituída pelo Estado para amenizar as tensões entre escravos e senhores, visto que,
na segunda metade do século XIX, recorrer à Justiça para garantir a alforria tornou-se prática
comum entre os escravizados.195 Por esse motivo, o próprio Estado imperial, com o intuito de

195
Dentre os estudos que sinalizam a existência do Fundo de Emancipação para o sertão da Bahia, estão os
trabalhos: PIRES, Maria de Fátima Novaes (2009, p. 94). A autora identificou para Rio de Contas a incidência
de uma carta pelo Fundo; SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos,
212

evitar uma relação de desgaste com senhores escravistas, procurou maneiras gradativas e
legalistas com a intenção de garantir “[...] a manutenção da „paz no campo‟ por meio de
critérios de classificação de escravos moralmente orientados”, disse Fabiano Dauwe (2010,
p.10).
No entanto, a vigência da Lei de 1871 e a aplicação do Fundo de Emancipação pouco
alteraram a política da “força e favor” entre senhores e escravos. Ao que pareceu, revestiu-se
de nova roupagem, coadunada com a tutela do Estado, visto que a nova lei não obrigava
senhores a concederem a alforria e incentivava-os ao recebimento de indenizações. A seguir,
tem-se cópia de procuração passada por Dona Maria Joaquina de Castro, outorgando plenos
poderes a pessoas de sua confiança, negociantes ou firmas especializadas, para a retirada do
valor da indenização na capital da província da Bahia, como se vê no documento:

Procuração bastante em nota que faz Dona Maria Joaquina de Castro, como
abaixo se declara;
Saibam quantos este público instrumento de procuração bastante em notas
virem em que no anno do nascimento de nosso senhor Jesuz Christo de mil
oitocentos e oitenta e um dos quatros dias do mez de novembro do dito anno,
nesta Villa de Monte Alto em meo cartório compareceu como outorgante a
viúva Dona Maria Joaquina Pereira de Castro, reconhecida pela própria e
pelas testemunhas no fim assignados perante as quais disse que nomeava e
constituía por seus bastantes procuradores e onde mais convier com poderes
de substabelecer aos senhores, Antonio Gomes dos Sanctos & Companhia,
a quem concede os poderes necessários para o fim especial de receber na
thesoraria geral desta Província a quantia de oitocentos e quarenta e cinco
mil reis que a outorgante tem de haver em qualidade de senhora do escravo
Francisco, preto, com a idade de trinta e nove annos, matriculado sob
número dois mil cento cinqüenta e um da ordem da matrícula deste
município, cazado com a liberta Luiza Corrêa de Lacerda, o qual foi
alforriado pelo juiz de Orphãos desta Villa por conta do Fundo de
Emancipação, e arbitrando em novecentos mil reis, tendo o mesmo
escravo cinqüenta e cinco mil reis de pecúlio, para o que o procederão os
ditos procuradores e substabelecidos requerer o que preciso for, dar quitação,
e uso de todos os recursos attinentes ao dito fim [....]196.

O valor requerido pela senhora para retirada da quota do Fundo de Emancipação, na


capital da Província, referiu-se ao valor atribuído ao cativo Francisco, preto, 39 anos, casado

senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese de doutorado - Universidade
Federal do Paraná, 2007. O autor encontrou para Caetité 95 cartas pelo Fundo de Emancipação e aponta que
Carinhanha foi o primeiro município na Bahia a conceder alforria pelo Fundo, no ano de 1877 (Silva, p. 211);
SANTANA NETO, José Pereira de. A alforria nos termos e limites da lei: o fundo de emancipação na Bahia
(1871-1888). Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2012. Ver mais autores que
discutem o Fundo de Emancipação: CONRAD, Robert Edgar. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; DAUWE, Fabiano. Liberdade inconveniente: os múltiplos
sentidos da liberdade pelo Fundo de Emancipação de escravos. In: X Encontro Estadual de História. Santa Maria
– RS, 26 a 30 de julho, 2010.
196
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Livro de Notas, 1880.
213

com a liberta Luíza Corrêa de Lacerda, arbitrado em Rs. 900$000 pela Junta de Classificação
do Fundo. Francisco dispunha de pecúlio no valor de Rs. 50$000, ficando o restante a ser
pago pelo Estado. Certamente, o cativo já se havia utilizado de outros expedientes para
negociar a alforria com sua senhora, contudo, o preço elevado no mercado, face ao tráfico
interno e à relutância de senhores em persistir na continuidade da escravidão, impossibilitou
que as expectativas de Francisco, quanto à alforria, fossem alcançadas.
Não foi possível saber se a união de Francisco com a liberta Luíza se consumou antes
da Lei de 1871 ou se ele se apressou em legitimar a união após conhecimento das chances de
conquistar a liberdade pelo Fundo de Emancipação. Assim, “caso a negociação cotidiana
falhasse e o escravo não tivesse um pecúlio suficiente para intentar na justiça uma ação de
liberdade, restava-lhe ainda a possibilidade de recorrer ao fundo, na esperança de conseguir
completar esse valor”, como assinala Ricardo Tadeu Caires Silva (2007, p.196).
Por sua vez, pode-se se inferir o incentivo de Dona Maria Joaquina de Castro ao seu
escravo para receber a indenização, posto que ele não contava com economia suficiente para a
compra da manumissão. Diante da possibilidade de conciliação dos interesses, ambos se
beneficiaram da política instituída pelo Estado. Por ser casado com a liberta, Francisco tinha
prioridade no pleito que o Fundo oferecia. No entanto, Isabel Cristina Ferreira dos Reis (2007,
p.2005) afirma que o casamento entre escravo e liberto poderia implicar desvantagens,
sobretudo porque o liberto ficaria vulnerável aos favores do senhor de seu companheiro,
muitas vezes submetido à exploração e a controle por parte de seus senhores.
Não há como negar que a lei proporcionou certa ampliação de expectativas ao alcance
da alforria, mobilizando boa parte de escravos a recorrerem à Justiça para assegurar,
legalmente, aquilo que já consideravam um direito adquirido, anteriormente, nas práticas
costumeiras de negociações com seus senhores. Acionar a Justiça implicava também entraves
burocráticos de toda natureza, com tensões e morosidade nas decisões dos tribunais, mas é
certo que a percepção dos escravos se distanciava dos interesses de quem lutava pela
continuidade da escravidão.
Se os casamentos foram incentivados pelos senhores ou não, o que importa são as
estratégias e arranjos elaborados no intuito de conferir sonhos e projetos de vida próprios de
escravizados. Para Lucimar Felisberto dos Santos (2009, p. 37), “o significado das escolhas
por parte dos cativos, certamente, tem sentido que dialoga com suas próprias experiências e
expectativas”. Possivelmente, a maioria deles convivia, havia tempo, com seus parceiros, por
meio de relações consensuais e, com os dispositivos da Lei de 1871, oficializaram as uniões.
214

Não se faz referência aqui apenas ao casamento monogâmico, mas também às variadas
formas de convivência consensuais, étnicas, por meio da religião, de laços solidários e de
outras formas de convívio social197. Conforme apontou Hebe Maria Mattos (2009), a família
escrava foi reconhecida pela Lei de 1871 como:

elemento de classificação e hierarquização da escravaria. Por meio dessas


famílias organizaram-se listas de matrículas, criadas a partir do Fundo de
Emancipação, que relacionavam separadamente, famílias e indivíduos
escravos (MATTOS, 2009, p. 22).

Livros de notas de Monte Alto constataram a atuação da Junta de Classificação do


Fundo de Emancipação, concedendo alforrias indenizadas pelo Estado.

Juizo de Órphãos da vila de Monte Alto, 15 de abril de 1885.


Illm° e Ex-° sem-°
Tendo a junta de classificação de escravos deste município concluídos os
trabalhos da mesma no dia 4 do corrente mez e nesse dia officiado a este
juízo, emittindo cópia da acta da reunião instalada no dia 3 de março, e foi
dado encerrado os trabalhos, fora por este juiz em audiência especial do dia
10 do corrente mez declarados libertos os escravos Martiniano, de quarenta
anos e dois anos de idade, pertensente a Amâncio Rodrigues da Silva, e a
escrava Juliana, de trinta e quatro annos de idade, pertensente a Joaquim
Gomes de Menezes, tendo afficiado naquela mesma audiência os respectivos
editaes, convidando-os os referidos senhores para na audiência seguinte
comparecerem com os libertos a fim de receberem as cartas e dellas fazer
entregar os libertados, pelo que na audiência do dia 13 do corrente mez forão
por este juízo entregues aos confortantes cartas de liberdade aos ditos
senhores e por estes ahi mesmo entregues as cartas aos libertados; bem como
a aquelles passarão os recibos dos pecúlios que de seus escravos havião
recebidos, cujos recibos se achão archivados em juízo, e de cujo termo de
audiência do dia198.

Após o consentimento do senhor conforme os trabalhos da Junta, e dados estes por


encerrados, prosseguem na página seguinte da ata os acordos para a concessão da alforria e,
pelo que consta no documento, o escravo Martiniano era casado com uma mulher livre, de
cuja união nasceram três filhos também livres. Declarou ainda o senhor de Martiniano que
este estava avaliado por Rs. 300$000, e que o escravo pagaria o pecúlio no valor de
Rs. 100$000, conforme lhe foi comunicado pela mesma Junta.
Quanto à escrava Juliana, do proprietário Joaquim Gomes Menezes, era solteira, de
cor parda e tinha uma filha ingênua, de nome Thomazia. Argumentava o senhor de Juliana
que sabia de uma sobra da cota do Fundo de Emancipação do ano anterior, no valor de
“duzentos e sessenta e dois mil, seiscentos e cinco réis”. Declarou, ainda, que a referida
197
Sobre as diferentes formas de convívio social e uniões estáveis, ver: REIS, João José. Rebelião Escrava no
Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo: Brasiliense. 2. ed., 1987.
198
Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ BA. Livro de Notas, 1880.
215

escrava possuía pecúlio de “trezentos e trinta e quatro mil réis” e foi avaliada por “seiscentos
mil réis”, cabendo ao Fundo pagar o restante devido. A Junta concordou com o pedido e
incluiu a escrava no número da segunda ordem da classificação por não haver reclamações de
classe superior.199 Conforme se vê, ter pecúlio significava meio caminho andado para obter a
alforria. A escrava Juliana, não poderia ser incluída na primeira classe do Fundo, por não ser
legalmente casada e a prioridade era para casados com livres e que tivessem filhos. Ao que
pareceu, a dificuldade de amealhar pecúlio foi fator de interfêrencia no acesso às cotas. Não
foi por falta ou desinteresse de cativos casados concorrer às cotas, e sim pela política de
senhores em contemplar cativos que dispusessem de alguma quantia. Sobre isso, Ricardo
Tadeu Caires Silva observou que cativos com economias disponíveis saíam na frente daqueles
que não tivessem algum recurso para ofertar, frisando que essa possibilidade foi usada por
senhores e cativos (SILVA, 2007, p. 195).
A procura por uniões estáveis evidencia poder de articulação das comunidades cativas
que, historicamente, souberam buscar nesse convívio formas de solidariedade e de apoio
mútuo dentro ou fora do cativeiro. O documento a seguir trata da sexta cota do Fundo enviada
pela Junta de Monte Alto ao presidente da província da Bahia e da relação de escravos
alforriados, no ano de 1885. Dos sete escravos alforriados, todos eram casados com livres ou
libertos e possuíam filhos. Nessa cota, não consta pecúlio por parte dos cativos, uma vez que
para essa lista existiu consentimento e acordo dos proprietários.
Ao mesmo tempo, percebe-se a estratégia dos escravos em procurar parceiros livres e
libertos, visando ao alcance da liberdade, ou que, já vivendo em relações consensuais e com a
possibilidade da indenização, oficializaram suas uniões. Todavia, é preciso atentar-se para
algumas ressalvas referentes aos interesses senhoriais, nas diminutas alforrias premiadas pelo
Fundo de Emancipação. Em Monte Alto, o alcance das alforrias pelo Fundo denotou
interferência de senhores em contemplar alguns cativos no recebimento do benefício. Em
todos os casos encontrados, tratavam-se de cativos de grande e médio senhor e, como afirma
Isabel Cristina Ferrreira dos Reis (2007), os casamentos entre escravos e livres poderia não
ser vantajoso para o parceiro livre. Mesmo após a abolição, esses indivíduos continuavam
submetidos à política dos favores senhoriais, posto que o escravo companheiro negociou a
concessão da alforria sob o preço de muita gratidão e deferência.
Por outro lado, muitos escravos recorriam a essa prerrogativa para adquirir a liberdade
e, ao que pareceu, foi uma estratégia bem articulada, em que, nos momentos decisivos da

APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Série Governo da província – Judiciário: Juízes Monte Alto,
199

1871-1889.
216

abolição, os vínculos de solidariedade e cumplicidade tendiam a se fortalecer ainda mais,


rompendo com os abusos senhoriais.
Quadro 11 – Província da Bahia – Município de Palmas de Monte Alto: escravos libertados por conta do Fundo de Emancipação em audiência do dia 16 de abril de 1885

Fonte: APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. Série Governo da província – Judiciário: Juízes Monte Alto, 1871- 1889.

217
218

Conforme o Quadro 11, o cativo Faustino, de 63 anos, casado com liberta, foi
contemplado pelo Fundo, em 1885, com um valor de indenização de Rs. 178$000. Presume-
se que Faustino, por ser escravo de confiança do seu senhor, continuou prestando serviços na
mesma propriedade, já que seu senhor, o Tenente Antônio Rodrigues Malheiros, era rico
proprietário e comerciante entre a região de Monte Alto e Rio Pardo de Minas. No seu
espólio, em 1908, foi declarado um monte-mor de Rs. 60:005$210. Somente em dívidas
ativas, ele tinha a receber na praça Rs. 27:774$536, referentes à agiotagem e negócios
realizados em feira de gado e outras atividades. Declarou, ainda, gastos com a feira de gado e
com vaqueiros que pegavam vacas e cuidavam dos animais. Observa-se, nesse inventário, a
movimentação de senhores ricos após a abolição da escravidão, ativos na economia da
região.200 E muitos daqueles prestadores de serviços eram ex-escravos que permaneceram nas
propriedades, provavelmente dentro dos mesmos padrões do favor.
Os demais senhores, descritos no referido quadro, eram ricos fazendeiros, como os
Laranjeiras, Pereira Castro e Andrade. Chama atenção, ademais, na relação dos alforriados
pelo Fundo de Emancipação, o valor repassado pelo Estado à vila de Monte Alto, um
montante de Rs. 2:428$333, considerado muito pouco para que parcela significativa dos
escravizados alcançasse a alforria, ficando nítida a não acessibilidade a todos os cativos.
Importante dizer que esse montante foi dividido entre sete cativos de senhores diferentes e
isso denota que também não era qualquer senhor que tinha acesso às cotas. Grandes senhores
disputavam a largada da concorrência, o que dificultava o acesso a cativos de pequenos
senhores.
Certamente, os sinais da abolição definitiva, pelo menos do ponto de vista legal,
reforçavam a relutância à continuidade da escravidão e, cientes de que não seriam
indenizados, disputavam qualquer valor disponibilizado pelo Estado para não ficarem no
prejuízo. A quantia repartida e os valores atribuídos aos cativos da sexta cota eram muito
abaixo do que se costumava arbitrar nas avaliações de cativos para a região e, mesmo que as
vendas do tráfico tenham diminuído naqueles anos de 1885, é possível inferir que os senhores
utilizaram essa estratégia, de declinar o preço, somente para receber a cota. Na prática, é
possível que alguns deles tenham mantido relação de dependência com seus antigos senhores
e devessem algum valor, favor, em troca da permissão da alforria.

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira - Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Antônio Rodrigues
200

Malheiros, 1908.
219

5.4 Criminalidade escrava: outras formas de resistência

Era o ano de 1850, época em que a escrava Angélica, africana, de trinta anos de idade,
assassinou sua senhora, de nome Maria de Tal, mulher de Modesto Rodrigues de Monção,
médio fazendeiro, residente na localidade de Barreiras, distrito de Monte Alto201. Angélica foi
julgada como ré no crime e, no interrogatório feito pelo delegado, assumiu a culpa com
notável desembaraço. Afirmou ter matado sua senhora à noite, quando esta se encontrava
dormindo, desferindo-lhe pancadas com uma mão de pilão, justificando o ato por ter sido
amarrada. Diante da confissão do crime e da confirmação das testemunhas e demais pessoas
envolvidas no processo, o juiz de Monte Alto pronunciou a prisão da escrava, enquadrando-a
no Art. 192 do Código Penal da época, com as circunstâncias de agravos do Art. 16 1.ᵒ, 7.ᵒ,
8.ᵒ, e 15 do mesmo Código.202

Ato de interrogatório à Ré Angélica:


[...] foi interrogado pela maneira seguinte; perguntado onde estava no dia da
morte de sua senhora, respondeo que estava junto com Maria dormindo no
quarto. Perguntado quem tinha matado. Respondeo que tinha sido ella Ré
que a tinha matado. Perguntado com que instrumento a tinha matado,
respondeo que com uma mão de pilão. Perguntado se ella estava dormindo,
ou acordada quando ella matara; respondeo que estava dormindo;
perguntado qual motivo que teve de matar sua senhora; respondeo que por
ter sua senhora lhe amarrado e mais não depor e não lhe ser perguntado (...)
203
.

201
O processo-crime pode ser definido como um instrumento jurídico que visa desvendar e enquadrar crimes nos
padrões de regras do Código Penal da época. Para tanto, pressupõe formalidades técnicas na instauração do
corpo processual a depender do tempo, lugar e tipologia do crime. Para o século XIX, autores que trabalharam
com esse tipo de documento definiram basicamente que o processo se compõe de sumário de culpa – “conjunto
de peças que autorizam a denúncia e justificam a pronúncia do acusado nos crimes previstos pelo Código
Criminal”. Em seguida, procede-se ao julgamento com a fala do réu, das testemunhas, juramentos, configuração,
julgamento e punição ou absolvição do criminoso (WISSENBACH, 1998, p. 40) e (PIRES, 2003, p. 107). Nem
sempre o crime deflagrado no inquérito da polícia desencadeava-se em processo e, quando resultava na
condução da continuidade das investigações em processo, em alguns casos, ocorriam contradições nos conceitos
usados pela Justiça, na omissão ou alteração dos fatos pelas testemunhas que reconduziam a novos julgamentos,
alterando assim o transcurso das investigações. Os crimes poderiam ser classificados como de ordem pública,
contra pessoas e a propriedade. Como fonte de apreensão histórica, os processos-crime contribuíram “na
elaboração de uma história social”, como evento histórico e realidade. É também no exame desses documentos
oficiais que se observa o comportamento das camadas dominantes, bem como as experiências e práticas
cotidianas dos grupos marginalizados e anônimos (MACHADO, 1987, p.22-23). Conclui a autora que o processo
criminal é um mecanismo de controle social por parte do aparelho judicial, impõe um padrão de linguagem
específica da jurisdição entre a mediação do escrivão, réu, testemunhas e o registro escrito. Apesar do caráter
normativo e sempre em busca da verdade, o documento permite adentrar os aspectos da vida cotidiana, no dia a
dia dos implicados, na vida íntima das pessoas, bem como investiga laços de parentesco e convivência social
entre as partes interessadas.
202
APEB. Seção Judicial. Processos-crime, classificação. Est. 12/464/04, n. 2585, 1870.
203
APEB. Auto Crime – Homicídio. Angélica (escrava), Monte Alto, 1850.
220

Depreendem-se do caso referido algumas análises consideráveis para o contexto das


relações senhor e escravos da época, em Monte Alto. A ocorrência de homicídios, atos
violentos ou insubordinações representava ameaça constante para os proprietários de
escravos, que esperavam dos órgãos de polícia medidas eficazes no controle de tais atos, a fim
de evitarem o incentivo a outros cativos de fazerem o mesmo e, consequentemente, uma onda
de pânico generalizada. A conivência das autoridades municipais com senhores de escravos e
ações rigorosas da polícia em “manter as atividades repressoras dentro do estrito cumprimento
da lei” eram preocupações constantes nos relatórios das chefias de polícia, diz Maria Helena
P. T. Machado (2009, p. 348). Em relação a isso, não há dúvidas de que os crimes praticados
por escravos deveriam ser punidos à risca das leis, para que servissem de lição a outros
cativos que, porventura, viessem a fazer o mesmo.
Matar senhores, fugir, desferir atos contra feitores e administradores das fazendas
“significava libertar-se de um cruel regime de trabalho e de vida” e, muitas vezes, os
homicídios levavam à prisão, o que, em certos casos, era preferido pelo réu ao invés de ter
que conviver com o amargo castigo dos seus senhores. Nesse sentido, Célia Maria Marinho de
Azevedo (2004, p. 164-171) enfatiza que, em São Paulo, nos relatos de crimes de escravos,
matarem senhores e feitores entre outras vítimas evidenciava que esse ato era “apenas para
escapar à fazenda e ganhar a prisão” (AZEVEDO, 2004, P. 164). O motivo de tais
preferências era que os cativos não só pretendiam escapar-se dos maus-tratos, como sabiam
que, em algumas situações, as penas ocorriam temporariamente devido à falta de braços nas
fazendas, ou talvez pelo descrédito de a instituição escravista proporcionar esperança de
anistia às galés, quando a escravidão fosse extinta. Entretanto, para os senhores, a pena das
galés podia, a depender do contexto, não ser um caminho favorável, visto que os cativos já
eram, por imposição da instituição escravista, destituídos de qualquer situação de
reconhecimento humanitário, eram propriedade particular, cabendo esse direito de posse ao
senhor em conduzir seus destinos. Por isso, a prisão serviria apenas para afastá-los dos
trabalhos forçados, prejudicando o desempenho das unidades produtivas, afiança Lana Lage
da G. Lima (1981).
Essa pareceu ser a situação do cativo Ciríaco e seu senhor. Em 1870, Ciríaco, solteiro,
vaqueiro, 49 anos de idade, escravo de Joaquim Pereira de Magalhães, grande proprietário da
Fazenda Muquém, termo de Monte Alto, foi acusado de ter furtado um touro e uma novilha
no curral de um senhor vizinho. Conforme depoimento das testemunhas, essa era uma prática
recorrente do cativo e, por este motivo, o juiz de Monte Alto o condenou à penalidade de dois
anos e um mês de prisão com trabalho e multa de 12 1/3 do valor furtado, grau médio do art.
221

25. E, em virtude do art. 60 do seu Cód. Crime, condenado a 200 açoites a serem recebidos no
quarto da cadeia. Ao senhor do réu ficariam as despesas do processo e ele ficaria obrigado,
por termo, a trazer o escravo com um ferro no pescoço, no espaço de 2 a 3 meses. Mas como
o senhor não concordou com a sentença do juiz municipal, apelou para o Superior Tribunal da
Relação204.
O procurador do réu, contratado pelo senhor de Ciríaco, arguiu no processo várias
situações que considerava, no mínimo, contraditórias: a começar pelas testemunhas, que
apresentavam provas inverídicas, a falta de exame de corpo de delito no processo, situações
de que a fazenda estava sendo espionada por outros escravos do queixoso e que, pela mísera
condição do réu, não havia motivo para que, sem provas cabais, fosse submetido ao horrível
suplício do art. 60, “e que já devera ter sido riscado do nosso bello código penal,” como já
haviam sido arrancados das praças públicas os bárbaros e repugnantes pelourinhos205.
Os açoites usados como castigos legítimos pelos senhores “imprimiam no corpo de
homens e mulheres as marcas da crueza da vida social sob a escravidão”, afirma Maria de
Fátima Novaes Pires (2003, p. 117). As marcas de torturas variavam conforme o grau do
crime, causando, nos escravos, constrangimento e sofrimento, limitando o cativo à mobilidade
física e social, além de servir de exemplo aos demais cativos, a fim de evitar que ações
semelhantes viessem a ocorrer.
Não ficou claro no processo se Ciríaco chegou a receber os castigos determinados na
sentença, provavelmente, a intervenção imediata de prosseguir o processo serviu para
prorrogar o prazo da condenação e punição severa. Em se tratando de um escravo, certamente
a nomeação do procurador partiu do seu senhor, que se sentiu injustiçado na sentença e
constrangido por ter que arcar com as despesas do processo. Soma-se, ainda, o fato de que as
marcas de ferro no corpo de um cativo, além de ser constrangimento para o senhor,
incorreriam em perda do valor que, para aquela época, se apresentava em alta no mercado.
Ciríaco exercia a profissão de vaqueiro, atividade que o promoveria a preços altos, chegando
a Rs. 1: 000 $000 e 1: 500$000 um escravo no termo, entre as décadas de 1860 e 1880.

APEB. Série Seção Judicial – Tribunal da Relação – Furto. Interessado: Almeida, Jesuíno Eugênio E. Monte
204

Alto. Classificação 12/464, n. de folhas 128, 1870.


205
Maria de Fátima Novaes Pires (2003, p. 105) notifica que, até 1824, “as mutilações em escravos
desobedientes eram autorizadas: marcas a ferro em fogo, esmagamento de dedos, por algemas de tarraxas, corte
de orelhas, amputação parcial dos pés, não eram raros.” Acrescenta ainda que o chicote era o instrumento
preferido dos senhores para castigar os cativos e a prática do uso do chicote só veio a ser banida a partir de 1886.
Quanto à Lei de 1835, que definia o grau dos castigos e da pena de morte, passou a ser alterada a partir de 1857,
resguardando as penalidades máximas de assassinatos às galés perpétuas, e não mais à pena de morte. Para
saber mais sobre a punição de escravos, ver: LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. Rio
de Janeiro: Achiamé, 1981, p.43 -58.
222

Ciríaco era escravo de confiança, especializado em uma profissão essencial para um senhor
com criação de gado vacum.
Nessas circunstâncias, justifica-se a “proteção” recebida e, obviamente, a condenação
do cativo causaria prejuízos ao senhor, por isso, ele recorreu da sentença. De acordo com
Lana Lage da Gama Lima (1981), a pena de galés perpétua, aplicada a homicídios de feitores,
senhores e insurreições de escravos, nem sempre agradava a senhores escravistas, pois,
“embora a reconhecesse como pena grave para os homens livres, argumentavam que para os
negros não constituíam dano algum, servindo somente para afastá-los das fazendas,
prejudicando seus senhores” (LIMA, 1981, p.46).
Entretanto, para alguns cativos, e a depender da situação, optar pelas galés significava
arriscar outra opção de vida; mesmo que o lugar fosse insalubre, era preferível a conviver com
maus-tratos e trabalho extenuantes. Era também uma forma de resistir ao cativeiro, de
desestruturar o monopólio do domínio senhorial, por isso, muitos senhores preferiam
aumentar o reforço nas fazendas com a presença de feitores e instaurar sua punição própria,
sem necessariamente recorrer à prisão.
A presença de feitores no controle e vigilância de escravos foi opção de alguns
grandes senhores do termo de Monte Alto, a exemplo de Faustino Moreira Castro, dono da
Fazenda Cajueiro, em 1866, que dispunha, naquela época, de 55 escravos em sua propriedade.
O escravo Manoel, “Mulato de Sancta Anna”, de 65 anos de idade e avaliado em
Rs. 300$000, foi declarado feitor da referida fazenda; outras grandes unidades da região
também indicaram em espólios a figura do feitor. A presença desse personagem, ainda que
fosse também uma propriedade senhorial, mas que, ao assumir essa função, se hierarquizava
em relação aos demais companheiros de cativeiro, demonstra o quanto senhores abastados de
Monte Alto optaram pela instalação da punição própria em suas propriedades. A atuação da
polícia para Monte Alto era pouco eficaz, visto não possuir cadeia adequada, dispor de pouco
aparato policial para efetivar as execuções, sem contar a dificuldade de adentrar as extensas
localidades na captura de infratores, pois as estradas e caminhos, naquela época,
encontravam-se em péssimas condições, dificultando os trabalhos do diminuto aparato
policial, daí, senhores escravistas exerciam a própria punição.206
Os relatos de correspondências da polícia sobre o interior registraram insucessos nas
capturas dos criminosos. Em todos os quadros demonstrativos de ocorrências, a situação de
obstáculos que os policiais e os delegados enfrentavam no interior era corriqueira. O

APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série: correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
206

enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província, n. 5689, 1849-1854.


223

Ministério da Justiça exigia relatórios de crimes, infração de posturas, responsabilidade dos


empregados públicos não privilegiados e dos submetidos ao conhecimento do juiz207. Havia
sempre, nas correspondências emitidas, queixas quanto às distâncias da capital da província, à
falta de correios eficientes em alguns municípios, à morosa comunicação com as câmaras
longínquas. Tudo isso constituía motivo de retardamento das informações enviadas e,
geralmente, as notícias chegavam um ano depois do ocorrido. Os oficiais da polícia
mencionavam que “a falta de profundos sentimentos de religião, de bem dirigida instrução de
trabalho, respeito” e “a falta de prisões seguras nas vilas do centro da província” eram as
causas dos delitos que se cometiam em “graves ofensas às leis e à moral”.
Recordemos o caso de Angélica. Era escrava de uma média proprietária, que tinha a
mão de obra escrava como bem de maior valor. Na política de domínio, comumente, escravos
estabeleciam uma relação de favor e gratidão com seus senhores, entretanto, nem todos foram
cooptados por essa política. Como afirma Robert W. Slenes (2010, p.282), havia tensões na
comunidade cativa e na relação com seus senhores. Angélica insere-se nessa condição: ao ser
castigada, não suportou os abusos cometidos por sua senhora, assassinando-a. Além disso,
ocorria a tensão em volta da ameaça de venda de escravos, principalmente aqueles que não
seguissem à risca o “bom comportamento” eram alvos imediatos da vulnerabilidade e castigos
físicos.
É preciso considerar que, mesmo diante dos códigos de leis de repressão rigorosa aos
crimes cometidos por escravos, essas ações de criminalidade permeavam as experiências de
vida de escravos e forros entre fazendas, sítios e lugares por onde perambulavam 208. No

207
APEB. Relatório ao Ints° Ministro da Justiça em mapear estatísticas na conformidade do regulamento n.1200,
Art.181. Correspondências da polícia, 1848.
208
Lei de 04 de junho de 1835, em seu “Art. 1ᵒ. Determina as penas com que devem ser punidos os escravos,
que matarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; e estabelece
regras para o processo. Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por
qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa
physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a
administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento, ou offensa physica forem leves,
a pena será de açoutes a proporção das circumstancias mais ou menos aggravantes. Art. 2º Acontecendo algum
dos delictos mencionados no art. 1º, o de insurreição, e qualquer outro commettido por pessoas escravas, em que
caiba a pena de morte, haverá reunião extraordinaria do Jury do Termo (caso não esteja em exercicio) convocada
pelo Juiz de Direito, a quem taes acontecimentos serão immediatamente communicados.” Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM4.htm>. Acesso em: 11 fev. 2016. A lei aqui foi copiada na
íntegra, de acordo com o site do Planalto. Essa lei é referida por vários pesquisadores que estudam criminalidade
escrava. Antes dessa, vigorava a Lei de 29 de março de 1719, que “proibia aos mulatos, e pretos escravos o uso
de facas e outras armas sob pena de 10 anos de galés (PIRES, 2003, p.105)”. Acrescenta a autora que, em 1749,
a lei de proibição do uso de armas foi estendida aos forros e negros livres. A autora menciona ainda que, até
1824, prevaleciam as determinações de mutilações, como marcas de ferro quente, esmagamento de dedos, corte
das orelhas, amputação parcial dos pés e o uso irrestrito do chicote. Até 1876, os crimes cometidos por escravos
eram punidos com a pena de morte, que, a partir daí, foi abolida dos códigos criminais. Porém, desde 1857, a
pena de morte havia sido substituída pelas galés perpétuas. Em função das leis, nota-se no sertão que as
224

decorrer do processo-crime da escrava Angélica, foi possível identificar, entre os relatos das
testemunhas, duas declarações importantes a respeito do fato: uma, da primeira testemunha,
de nome Joaquim Rodrigues da Trindade, de qualidade pardo, casado, morador das Barreiras,
distrito da vila, de profissão lavrador, respondeu afirmativamente, justificando-se pela razão
do que a acusada havia dito, pela própria boca, a outras pessoas. A segunda testemunha
também indicou aproximação com a escrava Angélica. Era Marçal Roiz Munção, solteiro, de
qualificado como pardo, morador das Barreiras, onde vivia da criação de gado e lavoura e
tinha 33 anos de idade. Ao ser interrogado se sabia ou ouviu dizer se a Ré cometeu o crime,
respondeu “que ouviu da boca da mesma Ré quando foi presa”. Perguntado se sabia o motivo
pelo qual a mesma Ré, conforme lhe tinha dito, cometeu o crime, respondeu “que na véspera
sua senhora lhe tinha dado humas bofetadas”209. Os fatos acima testemunham que Angélica
havia planejado o crime e não hesitou em contar para seus conhecidos. Evidenciam, ainda,
que a escrava mantinha relações de amizade fora do âmbito do seu senhor, inclusive com
pessoas livres e/ou ex-escravos, e suas ações não resultaram em espanto para a vizinhança. A
escrava fizera questão de espalhar os maus-tratos que vinha sofrendo, obviamente revelando
seu plano de resistência.
Similar à ação conflituosa protagonizada por Angélica, o incidente a seguir, ocorrido
no ano de 1849, na vila de Caetité, vizinha a Monte Alto, reforça “comportamentos extremos”
de escravos frente à força senhorial. No dia dois de julho, às 11 horas da manhã, dois pretos
escravos, de nomes Custódio e Braz, atacaram o Tenente Alexandre José Pinheiro, dentro de
sua própria roça, “o qual, auxiliado por E. Fellipe Nery da Cruz, resistiu aos agressores, que
lhes dispararam 03 tiros”. Apenas um caroço de chumbo acertou a pálpebra do olho esquerdo
de Pinheiro. Após o ato, os mesmos negros foram à casa do ajudante José Pinheiro Pinto e, na
ausência deste, tentaram tirar da casa duas escravas e amásias dos agressores. Os demais
escravos da casa resistiram e não aceitaram a fuga. No dia seguinte, os mesmos escravos
rechaçados retornaram ao local e atearam fogo na cobertura da casa. Em seguida, foram
capturados, mas, posteriormente, conseguiram fugir.210
Os escravos possuíam armas de fogo e facão e, na fuga, deixaram uma arma, um
facão, duas zagaias e 40 e tantas balas, muita pólvora e chumbo, além de roupas e produtos

autoridades passaram a se preocupar com as prisões dos escravos e livres que cometessem crimes. Porém, vale
sinalizar que nem sempre os infratores dos crimes eram capturados. A ineficiência das cadeias, distâncias da
província, a morosidade de comunicação e habilidades para adentrar os cerrados e catingas extensas das áreas
sertanejas foram fatores de fracasso nas apreensões dos criminosos.
APEB. Auto Crime – Homicídio. Angélica (escrava), Monte Alto, 1850.
209

APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série: correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
210

enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província, n. 5689, 1849-1854.


225

comestíveis. Mesmo com o incidente, no terceiro dia após os conflitos, foram apreendidas as
duas escravas pela polícia e, por ocasião do fogo ateado à casa do senhor, outras duas ficaram
feridas. Continuaram a perseguição aos escravos tidos como réus do crime, “a fim de não se
211
agregarem a eles outros escravos” . Mais uma vez, é notória a apreensão senhorial diante
das ações de “rebeldia” dos escravos e a preocupação da polícia com a possibilidade de
ampliação desses atos a outros cativos, ainda que alguns deles preferissem continuar na órbita
do favor, estando menos dispostos a arriscar confrontos, como fizeram os cativos que não
aderiram à fuga, segundo Robert W. Slenes (2010, p. 281).
Chama a atenção, nos dois casos analisados, o grau de articulações que escravos
mantinham dentro e fora do cativeiro com seus pares, livres pobres e forros. Percebe-se, nas
atitudes de Angélica, a mobilidade física além do espaço privado de sua senhora, ao
compartilhar com amigos e vizinhos os castigos recebidos e planejamento de suas ações,
demonstrando ampliação e fortalecimento de redes de relação que iam de encontro à política
do cativeiro. Mais ainda, a fuga planejada por Custódio e Braz é reveladora da importância de
articulações e mobilidade com indivíduos de diferentes condições sociais. Conseguir roupas,
alimentos, armas e, certamente, abrigo após a fuga, exprime sólida rede de relação.
Entretanto, em algumas situações verifica-se que relações de tensão e conflitos
também faziam parte das vivências cotidianas entre os escravos. A persistência do sofrimento
levava ao desespero e a atitudes de crimes hediondos cometidos por eles, ao acreditarem que
estariam dirimindo vicissitudes impostas a suas vidas. Em Umburanas (atual Urandi), o
escravo Clementino assassinou os escravos de nomes Leandro e Miquelina Maria de Jesus 212.
E, no ano de 1851, na vila de Carinhanha, a escrava Sérgia matou o filho menor de três anos,
de nome Porfírio, torcendo-lhe o pescoço e, em seguida, a mesma escrava tentou se afogar no
rio, sendo salva e recolhida para a prisão213. Verificam-se, nesses crimes, as dificuldades
enfrentadas e como as tensões vividas no cativeiro se refletiam fora do âmbito do convívio
social. A tentativa de suicídio da escrava Sérgia, ao tirar a vida do seu filho e, em seguida, a
sua vida, significou modos de livrar-se do cativeiro, dos abusos de senhores e senhoras, que
forçavam a trabalhos extenuantes, ou a venda, separando os cativos de seus familiares.

APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série: correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
211

enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província, n. 5689, 1849-1854.


APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
212

enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Nᵒ 5689, 1849-1854.


APEB. Seção de arquivos colonial e provincial: Série correspondências, registro, relatório, ofícios e mapas
213

enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Nᵒ 5689, 1849-1854.


226

Ao articular com outros estudos sobre o Alto Sertão e com o contexto macro das
relações escravistas no Brasil, verifica-se o quanto cativos se imbuíam de uma consciência
individual com grandes implicações no coletivo. Pesquisas recentes evidenciam diretrizes que
marcaram as formas de controle social e a reprodução da ordem escravista, contextualizando-
as no tempo e espaço em que as formas de resistência aconteceram, atentando sempre aos
pormenores imperceptíveis e às singularidades históricas de cada região. Consideradas pelas
elites dominantes como atos criminosos, para os cativos, forros e livres pobres, tensões
conflituosas foram alternativas de alcance da liberdade.
A “rebeldia” escrava se fez sentir também em outras formas de manifestação
cotidiana, inclusive contra proprietários de pequenas posses, a exemplo das fugas para os
quilombos, e senhores apressando as vendas de seus cativos devido à dificuldade de controlar
ações mais enérgicas de resistência, que cresciam sem precedentes. Em 1855, o inventário de
Prudêncio Gomes dos Santos, pequeno proprietário, com monte-mor arrolado no valor de
Rs. 1: 460$000, deixara registrado que o escravo Faustino, de 12 anos, foi vendido por
Rs. 400$000 porque era muito fujão214. As mesmas disposições encontram-se no inventário de
José Themotheo Ferreira dos Santos, também pequeno proprietário, com riqueza avaliada em
Rs. 2:807$420, no qual, em 1845, consta uma petição do tutor de um menor, requerendo
autorização da venda da escrava Custódia, sendo que esta vinha “apresentando condições de
fuga” e o tutor temia que o menor ficasse em prejuízo215.
Cativos de grandes propriedades também fizeram uso da fuga como estratégia de se
livrar do cativeiro, como alguns pertencentes ao Major Manoel Moreira da Trindade, grande
proprietário da Fazenda Canabraval, que, no ano de 1866, possuía 79 escravos, com quatro
fugidos: Pedro, crioulo, de 45 anos, fugido havia cerca de quinze anos, Gonçalo, cabra, de 40
anos, Felipe, crioulo, de 35 anos, fugido havia cinco anos, e Severino, cabra, de 60 anos.216
Escravos do sertão ensejaram fugas, cometeram atos de insubordinação, assassinatos e
suicídios por não compactuarem com os maus-tratos de senhores escravistas e pelo desejo de
viver fora do cativeiro. Contaram, para isso, com a ajuda de outros companheiros e, na
maioria das situações, o que era encarado pelas autoridades como violência, tratava-se, na
verdade, de dura resistência e de descumprimento às normas instituídas; em outras situações,

Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Prudêncio Gomes de
214

Souza. Mç:12, 1855.


Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: José Themotheo Ferreira
215

dos Santos. Mç:07, 1845.


Fórum Dr. Alcebíades Dias Laranjeira – Palmas de Monte Alto/BA. Inventariado: Major Manoel Moreira
216

Trindade, n.304, 1866.


227

a resistência assumia o caráter de descumprimento passivo, da sutil sabotagem, da evasão e do


engano. Muitas vezes, para evitarem confrontações diretas com as autoridades, optaram pelo
silêncio, cujos resultados foram também significativos e eficazes.
Ao avaliar revoltas camponesas, James Scott (2011, p. 222-223) identifica momentos
em que os camponeses optaram pela resistência cotidiana e, em outros, pelo processo
silencioso e gradativo, pela contestação direta nas relações de propriedade. Nesse sentido,
afirma o autor que a resistência cotidiana é informal, dissimulada, persistente e preocupada
com ganhos imediatos. Ela produz uma resposta rápida e feroz, mas é cautelosa ao se
aventurar na contestação direta contra as definições formais de hierarquias e poder. Assim
evidencia Scott:
Para a maioria das classes subalternas que, de fato, tiveram historicamente
escassas possibilidades de melhorar seu status, essa forma de resistência foi
a única opção. O que pode ser realizado no interior dessa camisa de força
simbólica é, não obstante, até certo ponto, um testemunho da persistência e
inventividade humana [...] (SCOTT, 2011, p.223).

Foram essas pequenas aberturas que permitiram delinear indícios da vida escrava, de
forros e livres pobres no termo de Monte Alto. As histórias retiradas de fragmentos esparsos
da documentação ensejaram evidências das relações senhor-escravo na região, considerando a
interferência da grande, média e pequena posse no desenrolar das inúmeras ações de cativos
na busca por alforria e estabilidade familiar. Mesmo que tenham sido ações individuais, as
práticas cotidianas de resistência revelaram que o mundo dos escravos ansiava por interesses
muito diferentes dos de seus senhores e os escravos não pouparam esforços para alcançar
conquistas. As encruzilhadas eram muitas, nem por isso se perderam no caminho.
Muitos senhores, na iminência dos riscos, pressionaram as autoridades municipais e
judiciárias para programar medidas eficazes de controle social, como os códigos de posturas,
as prisões em galés, apreensão dos crimes e punições rígidas. Quando houve fragilidade
dessas instituições, preferiam agir por conta própria, criando mecanismos individuais de
conter as práticas de insubordinações, fugas e demais ações praticadas por cativos e que
fossem consideradas crimes.
Verificou-se a existência de ações imprevisíveis de determinados indivíduos que
recorriam a crimes para sanar situações consideradas abusivas. No convívio das relações
humanas, a violência foi um recurso utilizado no sertão, pelo fato de que as distorções sociais
entre indivíduos ricos e pobres eram bastante acentuadas, além da convivência mútua, de
simplicidade nos modos de vida e de uma tímida mobilidade social marcada pela pobreza.
Situações que, de certa forma, eram percebidas pelos escravos, forros e livres pobres e, como
228

consequência, levavam ao desgaste de seus senhores, os prejudicados contestando a ordem


instituída, as normas e costumes estruturados sob o prisma da hierarquização e de dominação.
Desse modo, Sílvia Hunould Lara (1998, p. 21) enfatiza que é “na dinâmica de seus
confrontos cotidianos, nas relações de luta e resistência, acomodamentos e solidariedades
vividas e experimentadas por aqueles homens e mulheres coloniais” e, sobretudo na luta dos
desiguais, que os conflitos se delineiam. A violência estaria nas especificidades das vivências
cotidianas.
Para o sertão das Minas Gerais, Alisson Luiz Freitas de Jesus denotou, a partir da
análise de dois processos-crime, o quanto a violência era um aspecto que marcava o cotidiano
de escravos, libertos e homens livres daquela região. Para o autor, o uso da violência “teve
papel significativo nas relações sociais” e na conformidade da identidade sertaneja, no século
XIX (JESUS, 2007, p. 75). Recorrer à violência poderia implicar a resolução de querelas ou,
pelo menos, era esse o significado que os diferentes sujeitos atribuíam a situações complexas
nas relações diversas em que se envolviam cotidianamente.
As ações de liberdade de Inez, da parda Maurícia, de Virgínia e de Marqueza, assim
como o crime da escrava Angélica, entre outros citados, ultrapassaram o universo das relações
paternalistas e evidenciam convivência complexa entre senhores, escravos e forros. As
histórias aqui apresentadas demonstraram que, além de uma rede ampla de espaços
negociados pelos escravos com seus senhores, havia momentos de tensão para fazer valer os
direitos conquistados, quando senhores descumpriam acordos das relações do favor. Assim, a
gama de situações e combinações sociais vivenciadas por escravos e forros mostra a
complexidade do mundo escravista. As relações senhor, escravo, forro e livre pobre os
aproximavam no campo do “favor”, mas também incorriam em desafetos; “no empurra-
empurra de todo dia, marcado por imprevisibilidades irritantes as reações iradas não deveriam
ser nada incomuns” (LIBBY, 2008, p. 37). Ficou evidente, ainda, nas trajetórias dos cativos
demonstradas ao longo desse texto, uma relação cotidiana, de complexas e variadas
negociações e resistência na convivência com seus senhores, sempre na iminência de se
verem livres do cativeiro, ou tornarem suas vidas menos fadigosas.
229

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A posse cativa, indubitavelmente, foi marcador essencial na constituição das fortunas


dos proprietários do termo de Monte Alto, ao longo do século XIX, pois esteve entre o
patrimônio de maior valor na composição dos bens daqueles senhores, representando cerca de
30%, seguida pelo gado vacum, a terra, dívidas ativas, dentre outros investimentos. Tais cifras
indicam ativo comércio de cativos, tanto pelo tráfico atlântico, como pelo interprovincial; esse
comércio de compra e venda de cativos envolveu ricos e pobres da região. O tráfico interno
fez com que senhores escravistas dificultassem ainda mais a concessão das alforrias e se
desbaratasse a vida familiar de muitos cativos, que havia tempos se inseriram em práticas
costumeiras, ainda que as relações se baseassem na política da força e favor. Por isso, a
alforria tornou-se mais custosa e requereu dos cativos maiores esforços de negociação, astúcia
e às vezes de tensões e conflitos para impor limites à política ardilosa de seus senhores.
Ao compor uma região geograficamente favorecida pelos limites territoriais e seus
caminhos de acesso à Província Mineira, dentre outros, o termo de Monte Alto contou ainda,
na primeira metade do século XIX, com destaque econômico advindo, sobretudo, da produção
algodoeira e pecuária, e junto a esse dinamismo, número significativo de cativos.
Envolvendo-se com tais atividades e detentores dos principais bens de produção, senhores
abastados acumularam riqueza, poder e prestígio, representando pequena parcela dos
indivíduos que habitavam o termo de Monte Alto. Era com eles que se concentrava a maior
parte das escravarias e fortunas. A disponibilidade de extensos latifúndios, da produção
diversificada, voltada não só para o cultivo da agricultura (algodão) e da pecuária, mas
também para a subsistência, aliada ao significativo comércio de compra e venda de cativos,
forneceu lucros e concentração de riquezas a esses homens de poder.
Nos espólios de grandes, médios e pequenos senhores da região, observaram-se níveis
de posses de escravos variados, o que mostrou o acesso à mão de obra escrava por boa parte
da população daquela região. Nesses espaços, cativos foram hábeis ao perceberem a dinâmica
econômica das propriedades, especialmente aqueles pertencentes a grandes e médias
fazendas, que dispunham de condições favoráveis a maior mobilidade social dos cativos,
astúcia nas negociações e possibilidades de manutenção da integralidade familiar. Daí,
aqueles escravos pertencentes a senhores de pequenas posses levarem desvantagens na hora
de negociar a sua permanência, embora essas relações não deixassem de existir.
As crises provocadas pelas secas, a escassez de alimentos, a fome, a ameaça de serem
vendidos via tráfico interno, a instabilidade com a morte de seu senhor, colocavam em risco
230

iminente a vida e a esperança de conquistar pecúlio para a compra da alforria, por isso
recorriam a situações extremas de violência imediata, em alguns casos, para atenuar a vida
cruel do cativeiro. As dificuldades econômicas de pequenos senhores revelaram o quanto
difícil era a vida para essas categorias sociais que, diante de tais evidências, encontraram, nos
arranjos cotidianos, rede de contatos e fortaleceram suas ações com pobres livres e forros para
atenuar a vida imprevisível no cativeiro.
A compreensão dessas teias de relações da sobrevivência só foi possível quando se
enveredou por caminhos diversos, elegendo e cruzando diversas fontes históricas, para
entender os indícios das experiências sociais, ora envolvidas por vínculos de solidariedade,
ora de tensões e contradições no modo de viver. Ao depor sobre essas relações, a
documentação em evidência mostrou os graus de proximidade, de vizinhança, e o significado
de ser escravo em pequena, média e grande propriedade. Nas experiências de vida coletiva e
individual, construíram laços de fortalecimento entre si e os seus, mesmo que os limites
impostos pelos senhores deixassem marcas indeléveis nas vidas de muitos deles.
Desse modo, diante da conjuntura do tráfico interno, esses homens e mulheres atuaram
com astúcia e desenvoltura no que queriam para si e pelos seus. Foram também responsáveis
pela manutenção da unidade familiar no cativeiro, e simultaneamente atendiam a seus
senhores, e fizeram desse instrumento medida eficaz para o alcance da alforria, das
contestações e da resistência aos abusos senhoriais, sobretudo em grandes e médias
propriedades.
Assim, o contexto do tráfico interno, em Monte Alto, tornou-se ainda mais custosa o
alcance à alforria e a integralidade da família escrava, sobretudo entre aqueles cativos
pertencentes a senhores de parcos recursos. Por constituir um bem de maior valor nos espólios
de senhores de grandes, médias e pequenas propriedades e pela ampla procura nos mercados
do Sul e Sudeste do país, no século XIX, era comum que esses senhores recorriam à venda de
seus cativos para obter lucros, cobrir despesas ou investir em outros negócios. No caso dos
senhores de parcos recursos à volatilidade das vendas era uma questão de necessidade, frente
às crises financeiras que assolavam constantemente suas rotinas. Havia ainda, às frequentes
intrigas entre herdeiros e por isso não hesitavam em desfazer desse bem de maior liquidez,
colocando em vulnerabilidade as formas de organização e convivência do cativeiro. Escravos
de grandes senhores também eram vítimas do tráfico interno, mas o número considerável da
posse na mão daqueles senhores facilitava o acesso a distintas alternativas, entre elas, a
compra da alforria e maior tempo de permanência familiar entre eles. A capacidade
econômica das grandes propriedades, a utilização de terras para o plantio e a criação de
231

animais (gado vacum, cavalar e etc), são fatores que influenciaram na vida cotidiana de
escravos e em maiores chances para negociarem a alforria, ainda que essas possibilidades
estivessem imersas no campo da “força e do favor”.
Por fim, registramos que este estudo constituiu esforço despendido diante do
amontoado de fontes inéditas, ainda não catalogadas e sem o devido cuidado, basicamente,
inventários, livros de notas e processos-crime do termo de Monte Alto, no Alto Sertão da
Bahia, ao longo do século XIX, em que se constatou a existência de números significativos de
fazendas e sítios com muitas histórias sobre as relações senhor/escravo, forros e livres pobres.
232

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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b) Arquivo da Cúria da Paróquia de Santo Antônio – Guanambi/Bahia

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