ZIZEK, Slavoj. Bem Vindo Ao Deserto Do Real, 2003. FINALIZANDO

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ZIZEK, Slavoj.

Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e


datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003.

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[INTRODUÇÃO]

- “Num diálogo clássico de uma comédia de Hollywood, a mocinha pergunta ao


namorado: ‘Você quer casar comigo?’ ‘Não’. ‘Ora, pare de enrolar! Quero uma resposta
direta’. De certa forma, a lógica subjacente está correta: a única resposta aceitável para a
moça é ‘Quero!’, e, assim, qualquer outra coisa, inclusive um ‘Não!’ definitivo é
percebida como evasão. A lógica oculta é evidentemente a mesma que está por trás da
escolha imposta: você tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a
escolha certa [...] E não é exatamente o que se dá com a escolha entre ‘democracia e
fundamentalismo’? Não é verdade que, nos termos desta escolha, é simplesmente
impossível escolher o ‘fundamentalismo’? O que é problemático na forma como a
ideologia dominante nos impõe esta escolha não é o fundamentalismo, mas a própria
democracia: como se a única alternativa ao ‘fundamentalismo’ fosse o sistema político
da democracia parlamentar liberal” (p.17)

[PAIXÕES DO REAL, PAIXÕES DO SEMBLANTE]

- “Não que Brecht tolerasse a crueldade da luta, na esperança de que ela trouxesse um
próspero futuro: a dureza da violência pura foi entendida como um sinal de
autenticidade... Não é um caso exemplar do que Alain Badiou identificou como a
principal característica do século XX: a paixão do real? [...] O momento último e
definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade
social diária – o Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada
das camadas enganadoras da realidade” (p.19)

- “Se a paixão pelo Real termina no puro semblante do espetacular efeito do Real, então,
em exata inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta violenta à
paixão pelo Real” (p.23-24)

- “Vejamos o exemplo das pessoas [...] que sentem uma necessidade irresistível de se
cortar [...] trata-se de um paralelo exato da virtualização de nosso ambiente: representa
uma estratégia desesperada de volta ao Real do corpo [...] o corte é uma tentativa radical
de (re)dominar a realidade ou, o que é outro aspecto do fenômeno, basear firmemente o
ego na realidade do corpo contra a angústia insuportável de se sentir inexistente [...]
Dessa forma, apesar de ser evidentemente um fenômeno patológico, o corte é, ainda
assim, uma tentativa patológica de recuperar algum tipo de normalidade, de evitar o
total colapso patológico” (p.24)

- Hoje encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas


propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem
álcool... E a lista não tem fim: o que dizer [...] da doutrina de Colin Powell da guerra
sem baixas (do nosso lado, é claro), uma guerra sem guerra; da redefinição da política
como a arte da administração competente, ou seja, a política sem política [...]” (p.24)

- “Para a grande maioria do público, as explosões de WTC aconteceram na tela dos


televisores, e a imagem exaustivamente repetida das pessoas correndo aterrorizadas em
direção às câmeras seguidas pela nuvem de poeira da torre derrubada foi enquadrada de
forma a lembrar as tomadas espetaculares dos filmes de catástrofe, um efeito especial
que superou todos os outros, pois – como bem sabia Jeremy Bentham – a realidade é a
melhor aparência de si mesma” (p.25)

- “E não é verdade que o ataque ao World Trade Center tinha, com relação aos filmes-
catástrofe de Hollywood, a mesma relação existente entre a pornografia snuff e os
filmes pornográficos sadomasoquistas comuns? É este elemento de verdade na
declaração provocativa de Karl-Heinz Stockhausen de que o impacto dos aviões contra
as torres do WTC são a obra de arte definitiva: pode-se entender o colapso das torres do
WTC como a conclusão culminante da ‘paixão pelo Real’ da arte do século XX – os
próprios ‘terroristas’ não o fizeram primariamente visando provocar dano material real,
mas pelo seu efeito espetacular” (p.25-26)

- “A verdadeira paixão do século XX por penetrar a Coisa Real (em última instância, o
Vazio destrutivo) através de uma teia de semblantes que constitui a nossa realidade
culminou assim na emoção do Real como o ‘efeito’ último, buscado nos efeito especiais
digitais, em reality shows da TV e na pornografia amadora, até chegar nos snuff movies.
Esses filmes, que oferecem a verdade nua e crua, são talvez a verdade última da
Realidade Virtual” (p.26)
- “[...] Talvez a imagem sádica definitiva, a de uma vítima que não morra de tortura, que
possa suportar uma dor infindável sem a opção da fuga para a morte, esteja também à
espera para se tornar realidade” (p.27)

- “A mais recente fantasia paranóica americana é a de um indivíduo que vive numa


pequena cidade paradisíaca da Califórnia e que de repente começa a suspeitar que seja
falso o mundo em que vive, um espetáculo montado para convencê-lo de que está
vivendo num mundo real, ao passo que todos a sua volta são na realidade atores e extras
de um gigantesco espetáculo” (p.27)

- “A experiência subjacente a Time Out of Joint e a O show de Truman é que o paraíso


capitalista e consumista da Califórnia, em toda a hiper-realidade, é de certa forma irreal,
sem substância, carente de inércia material. E a mesma desrealização do horror
continuou depois do colapso do WTC: apesar de se repetir constantemente o número de
vítimas – 3.000 -, o que impressiona é ser tão pequena a quantidade de carnificina
exibida – não se vêem corpos desmembrados, não há sangue, nem os rostos
desesperados de pessoas agonizantes num claro contraste com as catástrofes do Terceiro
Mundo, em que se faz questão de mostrar a imagem de algum detalhe mórbido:
mulheres bósnias violentadas, homens com a garganta cortada. Essas imagens são
sempre precedidas por um aviso de que ‘as imagens mostradas a seguir são
extremamente chocantes e podem afetar crianças – uma advertência que não se viu nas
reportagens sobre a destruição do WTC. Não seria isso prova adicional de como,
mesmo nesse momento trágico, persiste a distância que nos separa deles, da realidade
deles: o verdadeiro horror acontece lá, não aqui” (p.27-28)

- “Não se trata apenas de Hollywood representar um semblante da vida real esvaziado


do peso e da inércia da materialidade – na sociedade consumista do capitalismo recente,
a ‘vida social real’ adquire de certa forma características de uma farsa representada, em
que nossos vizinhos se comportam ‘na vida real’ como atores no palco... Mais uma vez,
a verdade definitiva do universo desespiritualizado e utilitarista do capitalismo é a
desmaterialização da ‘vida real’ em si, que se converte num espetáculo espectral” (p.28)

- “[...] Matrix (1999), levou essa lógica ao seu clímax: a realidade material que todos
sentimos e vemos à nossa volta é virtual [...] quando acorda na ‘realidade real’, o herói,
interpretado por Keanu Reeves, se vê numa paisagem desolada [...] Morpheus, lança-lhe
uma estranha saudação: ‘Bem-vindo ao deserto do real’. Esse resumo não é semelhante
ao que sucedeu em Nova Iorque no dia 11 de setembro?” (p.29-30)

- “Não se tratou apenas do fato de a mídia nos bombardear constantemente com a


ameaça terrorista; essa ameaça tinha uma representação libidinal – basta lembrar a série
de filmes, desde Fuga de Nova Iorque até Independence Day. É essa a lógica que se
oculta por trás da associação frequentemente mencionada entre os ataques e os filmes-
catástrofe de Hollywood: o impensável que havia acontecido era o objeto da fantasia, e
assim, de certa forma, os Estados Unidos haviam transformado em realidade as suas
fantasias, e esta foi a grande surpresa” (p.30)

- “O traço definitivo entre Hollywood e a ‘guerra contra o terrorismo’ ocorreu quando o


Pentágono decidiu convocar a colaboração de Hollywood: a imprensa informou que, no
início de outubro de 2001, havia se estabelecido um grupo de autores e diretores,
especialistas em filmes-catástrofe, com o incentivo do Pentágono, a fim de imaginar
possíveis cenários de ataques terroristas e a forma de lutar contra eles” (p.30)

- “[...] definir a forma como Hollywood poderia colaborar na ‘guerra contra o


terrorismo’, ao enviar a mensagem ideológica correta não apenas para os americanos,
mas também para o público hollywoodiano em todo o mundo – a prova empírica
definitiva de que Hollywood opera de fato como um ‘aparelho ideológico de Estado’”
(p.30-31)

- “Teríamos, portanto, de inverter a leitura padrão, segundo a qual as explosões do WTC


seriam uma intrusão do Real que estilhaçou a nossa esfera ilusória: pelo contrário –
antes do colapso do WTC, vivíamos nossa realidade vendo os horrores do Terceiro
Mundo como algo que na verdade não fazia parte de nossa realidade social, como algo
que (para nós) só existia como um fantasma espectral na tela do televisor -, o que
aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse fantasma da TV entrou na nossa
realidade. Não foi a realidade que invadiu a nossa imagem: foi a imagem que invadiu e
destruiu nossa realidade (ou seja, as coordenadas simbólicas que determinam o que
sentimos como realidade)” (p.31)

- “Não se trata, evidentemente, de uma espécie de jogo pseudopós-moderno de redução


do colapso do WTC à mero espetáculo da mídia, de vê-lo como uma versão-catástrofe
dos snuff movies; o que devíamos nos ter perguntado enquanto olhávamos para os
televisores no dia 11 de setembro é simplesmente: Onde já vimos esta mesma coisa
repetida vezes sem conta?” (p.31)

- “O fato de os ataques de 11 de setembro terem sido a matéria de fantasias populares


muito antes de realmente acontecerem oferece mais um exemplo da lógica tortuosa dos
sonhos: é fácil explicar o fato de os pobre de todo o mundo sonharem em se tornar
americanos – mas como sonham os americanos abastados, imobilizados no seu bem-
estar? Sonham com uma catástrofe global que viria destruir suas vidas. Por quê? É disso
que trata a psicanálise explicar por que, no meio da riqueza, somos assombrados por
pesadelos catastróficos” (p.31-32)

- “Esse paradoxo também indica como se deve entender a noção de Lacan da ‘travessia
da fantasia’ como o momento conclusivo do tratamento psicanalítico [...] é evidente que
ela [psicanálise] deveria nos libertar da influência das fantasias idiossincráticas e nos
permitir enfrentar a realidade como ela realmente é! Mas isso é exatamente o que não
faz parte das idéias de Lacan – ele deseja é quase exatamente o contrário. Na vida
diária, estamos imersos na ‘realidade’ (estruturada e suportada pela fantasia) e essa
imersão é perturbada por sintomas que atestam o fato de que outro nível reprimido de
nossa psique resiste a ela. ‘Atravessar a fantasia’, então, significa identificar-se
totalmente com a fantasia – a saber, com a fantasia que estrutura o excesso que resiste à
nossa imersão na realidade diária [...]” (p.32)

- “[Boothby] [...] uma fantasia é simultaneamente pacificadora, desarmadora (pois nos


oferece um cenário imaginário que nos dá condição de suportar o abismo do desejo do
Outro) e destruidora, perturbadora, inassimilável na nossa realidade” (p.32-33)

- “O Real que retorna tem o status de outro semblante: exatamente por ser real, ou seja,
em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na
nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto somos forçados a senti-lo como
um pesadelo fantástico. A impressionante imagem da destruição do WTC foi
exatamente isso: uma imagem, um semblante, um ‘efeito’ que, ao mesmo tempo,
ofereceu ‘a coisa em si’. Esse ‘efeito do Real’ não é a mesma coisa a que Roland
Barthes, nos idos da década de 1960, deu o nome de l´effet du réel: pelo contrário, é
exatamente o contrário: l´effet du i´irréel. Ou seja, ao contrário do effet du réel
barthesiano, em que o texto nos leva a aceitar como ‘real’ seu produto ficcional, neste
caso o próprio Real, para se manter, tem de ser visto no espectro do pesadelo” (p.33-34)
- “Aqui a lição da psicanálise é o contrário: não se deve tomar a realidade por ficção – é
preciso ter a capacidade de discernir, naquilo que percebemos como ficção, o núcleo
duro do Real que só temos condições de suportar se o transformarmos em ficção.
Resumindo, é necessário ter a capacidade de distinguir qual parte da realidade é ‘
transfuncionalizada’ pela fantasia de forma que, apesar de ser parte da realidade, seja
percebida num modo ficcional” (p.34)

- “E essa idéia também nos permite retornar ao exemplo das pessoas que se cortam: se o
verdadeiro contrário do Real é a realidade, isso significaria que, ao se cortar, elas na
realidade estão tentando fugir não somente da sensação de irrealidade, da virtualidade
artificial do mundo em que vivemos, mas do próprio Real que explode sob a forma de
alucinações descontroladas que começam a nos assombrar quando perdemos a âncora
que nos prendem à realidade?” (p.34)

- “Em seu seminário (inédito) sobre a angústia (1962-63), Lacan especifica que o
verdadeiro objetivo do masoquista não é gerar jouissance no Outro, e sim criar-lhe
angústia. Ou seja, apesar de o masoquista se submeter à tortura do Outro, apesar de
desejar servir ao Outro, é ele próprio quem define as regras de sua servidão; portanto,
apesar de parecer oferecer-se como instrumento da jouissance do Outro, ele expõe
efetivamente seu próprio desejo ao Outro e assim cria no Outro a angústia – Para Lacan
o verdadeiro objeto da angústia é a (excessiva) proximidade do desejo do Outro” (p.36)

- “[...] a verdadeira escolha com relação ao trauma histórico não está entre lembrar-se
ou esquecer dele: os traumas que não estamos dispostos a ou não somos capazes de
relembrar assombra-nos com mais força. É necessário então aceitar o paradoxo de que,
para realmente esquecer um acontecimento, precisamos primeiramente criar a força para
lembrá-lo. Para responder a este paradoxo, devemos ter em mente que o contrário de
existência não é inexistência, mas insistência: o que não existe continua a insistir para
passa a existir [...]” (p.37)

- “Numa leitura notável das “Teses sobre Filosofia da História”, de Walter Benjamim,
Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária
presente repete e redime as tentativas fracassadas do passado: “os sintomas – traços do
passado que são retroativamente redimidos pelo ‘milagre’ da intervenção revolucionária
– ‘não são atos esquecidos, mas, pelo contrário, as omissões de ação que ficaram
esquecidas, a incapacidade de suspender a força da ligação social que inibe os atos de
solidariedade com os outros da sociedade’” (p.37)

- “O problema com a ‘paixão do Real’ do século XX não é o fato de elas ser uma paixão
pelo Real, mas sim o fato de ser uma paixão falsa em que a implacável busca do Real
que há por trás das aparências é o estratagema definitivo para evitar o confronto com
ele – como? Comecemos pela tensão entre o universal e o particular no uso do termo
‘especial’: quando dizemos que ‘existem fundos especiais’, queremos dizer fundos
ilegais, ou no mínimo secreto [...] quando um jornalista ou policiais a uma ‘técnica
especial de interrogatório’, está se referindo à tortura ou a outra pressão igualmente
ilegal. (E não se pode esquecer que as unidades responsáveis por matar e cremar nos
campos de concentração nazistas eram chamadas de Sonderkommando, unidades
especiais)” (p.39)

- “O núcleo da ‘paixão pelo Real’ é essa identificação com – esse gesto heróico de
assumir integralmente – a obscenidade suja do outro lado do Poder: a atitude heróica de
que ‘alguém tem que fazer o trabalho sujo, então, mãos à obra!’, uma espécie de reverso
espelhado da Bela Alma que não aceita se reconhecer no seu resultado. Vemos essa
atitude na admiração direitista pela comemoração dos heróis prontos a fazer o trabalho
sujo necessário: é fácil fazer uma coisa nobre pela pátria, até sacrificar a própria vida
por ela – é muito mais difícil cometer um crime pela pátria... Hitler sabia muito bem
como fazer esse jogo duplo com relação ao Holocausto, usando Himmler para expor o
‘segredo sujo’. Em seu discurso para os líderes da SS em Posen, no dia 14 de outubro de
1943, Himmler descreveu abertamente o assassinato em massa de judeus como ‘uma
página gloriosa na nossa história, uma página que nunca foi, nem jamais poderá ser
escrita’” (p.45)

- “Devemos aqui abandonar a metáfora padrão do Real como a Coisa aterradora que não
se é capaz de enfrentar cara a cara, como o Real definitivo oculto sob camadas de véus
imaginários e/ou simbólicos: a própria idéia de que sob a aparência enganadora oculta-
se uma Coisa Real definitiva, horrível demais para que possamos encarar diretamente, é
a aparência definitiva – a Coisa Real é um espectro fantasmático cuja presença garante a
consistência de nosso edifício simbólico, permitindo-nos evitar sua inconsistência
constitutiva (‘antagonismo’). Tomemos a ideologia nazista: o judeu como seu Real é um
espectro evocado para esconder o antagonismo social – ou seja, a figura do judeu nos
permite perceber a totalidade social como um Todo Orgânico” (p.46-47)

[REAPROPRIAÇÕES: A LIÇÃO DE MULÁ OMAR]

- “O ridículo do ataque americano ao Afeganistão é um exemplo: se a maior potência do


mundo bombardeia um dos países mais pobres, onde os camponeses mal conseguem
sobreviver em montanhas estéreis, não estamos diante de um exemplo definitivo de
acting out impotente? O Afeganistão, por outro lado, é o alvo ideal: um país já reduzido
a ruínas, sem infraestrutura, repetidamente destruído pela guerra ao longo das duas
décadas... Não podemos deixar de pensar que a escolha do Afeganistão também foi
determinada por considerações econômicas: não é melhor manifestar a própria contra
um país para qual ninguém dá importância e onde não há mais nada a destruir?” (p.51)

- “Não é ironia definitiva o fato de, já antes do bombardeio americano, Kabul já estar
igual ao sul de Manhattan depois de 11 de setembro? A ‘guerra contra o terror’ funciona
então como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura
convicção de que nada mudou realmente” (p.51)

- “Ao contrário de Marx, que acreditava que na noção de fetiche como um objeto real
cuja presença estável ofusca sua mediação social, seremos forçados a afirmar que o
fetichismo atinge seu apogeu precisamente quando o fetiche em si é ‘desmaterializado’,
transformado numa fluida entidade virtual ‘imaterial’; o fetichismo do dinheiro há de
culminar com sua passagem à forma eletrônica, quando desaparecem os últimos
vestígios de sua materialidade – somente nesse estágio ele será capaz de assumir a
forma de uma presença espectral indestrutível. E o mesmo não vale com relação à
guerra? Longe de apontar para a guerra do século XXI, a explosão e colapso das torres
gêmeas do WTC em setembro de 2001 fora, pelo contrário, o último grito espetacular da
guerra do século XX. O que nos espera é algo muito mais estranho: o espectro de uma
guerra ‘imaterial’, em que o ataque é invisível – vírus, venenos que podem estar em
qualquer lugar ou em nenhum lugar. No plano da realidade material visível, nada
acontece, nenhuma grande explosão; ainda assim o universo conhecido começa a
desmoronar, a vida a se desintegrar” (p.53)

- “Estamos entrando numa nova era de guerra paranóica em que a principal tarefa será
identificar o inimigo e suas armas” (p.53)
- “E não é a obversão dessa onipresença paranóica da guerra invisível exatamente a sua
dessubstancialização? Assim como bebemos cerveja sem álcool ou café sem cafeína,
temos agora a guerra esvaziada de sua substância [...] uma guerra sem baixas (do nosso
lado)” (p.53)

- “Uma superpotência bombardeia um deserto desolado e, ao mesmo tempo, é refém de


uma bactéria invisível [Antraz] – é essa, não a explosão do WTC, a primeira imagem da
guerra do século XXI” (p.54)

- “O artifício narrativo assim mobilizado é emprestado de muitos filmes de horror, ou de


westerns, em que um grupo de personagens simpáticos está cercado por um Inimigo
invisível que é apenas ouvido ou visto de relance como sombras e manchas [...]” (p.55)

- “Essa noção de ‘choque de civilização’, entretanto, deve ser rejeitada de pronto: o que
vemos hoje são, pelo contrário, choques no interior de cada civilização. Ademais, um
exame perfunctório da história comparada do Islã e do cristianismo nos informa que o
‘histórico dos direitos humanos’ (para usar um termo anacrônico) do Islã é muito
melhor do que o do cristianismo: em séculos passados, o Islã sempre foi mais tolerante
com as outras religiões do que o cristianismo” (p.57)

- “Sob a oposição entre sociedades ‘liberais’ e ‘fundamentalistas’, ‘McWorld versus


Jihad’, oculta-se um embaraçoso terceiro termo: países como a Arábia Saudita e
Kuwait, monarquias profundamente conservadoras, mas aliado econômicos dos
americanos, completamente integrados ao capitalismo ocidental [...] É uma velha
história, cujo infame primeiro capítulo, depois da Segunda Guerra Mundial, foi o coup
d´etat orquestrado pela CIA contra o governo democraticamente eleito do primeiro-
ministro Muhhamed Hidayat, em 1953 – ali não havia ‘fundamentalismo’, nem mesmo
uma ‘ameaça soviética’, apenas um despertar democrático, baseado na idéia de que o
país deveria assumir o controle de suas reservas de petróleo e quebrar o monopólio das
companhias ocidentais” (p.58-59)

- “O que não se pode deixar de ter em mente acerca do Afeganistão é que, até a década
de 1970 – ou seja, antes da época em que o país se envolveu na luta das superpotências
-, ele era uma das sociedades maometanas mais tolerantes, com uma tradição secular:
Kabul era conhecida como uma cidade de vibrante vida cultural e política. O paradoxo,
portanto, é que a ascensão do Talibã, essa aparente ‘regressão’ ao
ultrafundamentalismo, longe de expressar tendência ‘tradicionalista’, foi o resultado de
o país ter caído no vórtice da política internacional – foi não somente uma reação a ela,
mas também um resultado direto do apoio das potências estrangeiras (Paquistão, Arábia
Saudita e os próprios EUA)” (p.59)

- “Quanto ao ‘choque de civilizações’, é bom lembrar a carta de uma menina americana


de sete anos cujo pai era piloto na guerra do Afeganistão: ela escreveu que – embora
amasse seu pai, estava pronta para deixá-lo morrer, a sacrificá-lo por seu país. Quando o
presidente Bush citou suas palavras, elas foram entendidas como manifestação ‘normal’
de patriotismo americano; vamos conduzir mental simples e imaginar uma menina árabe
maometana pateticamente lendo para as câmeras as mesmas palavras a respeito do pai
que lutava pelo Talibã – não é necessário pensar muito sobre qual teria sido nossa
reação: mórbido fundamentalismo islâmico [...] Toda característica atribuída ao Outro já
está presente no coração mesmo dos EUA. Fanatismo assassino? Existem hoje nos EUA
mais de dois milhões de ‘fundamentalistas’ populistas de direita que também praticam
seu próprio tipo de terror, legitimado pelo (seu modo de entender o) cristianismo” (p.60)

- “Então, o que dizer da frase que reverbera por toda parte: ‘Nada será como antes,
depois do 11 de setembro’? Significativamente, essa frase nunca é elaborada – é apenas
um gesto vazio de dizer uma coisa ‘profunda’ sem realmente saber o que se quer dizer.
Assim, nossa primeira reação a ela deveria ser: ‘É mesmo? E se nada epocal aconteceu
no dia 11 de setembro? E se – como parece demonstrar a exibição maciça de
patriotismo americano – a experiência dramática do 11 de setembro serviu apenas como
um artifício para a ideologia hegemônica americana ‘retornar ao básico’, reafirmar suas
coordenadas ideológicas básicas contra a tentação antiglobalista e outras tentações
críticas? [...] Poderiam ter aproveitado a oportunidade – mas não o fizeram; pelo
contrário, optaram por reafirmar seu compromissos ideológicos tradicionais: abaixo os
sentimentos de culpa com relação a miséria do Terceiro Mundo, agora nós somos as
vítimas” (p.63)

- “Não sabemos ainda quais serão as consequências desse acontecimento para a


economia, a ideologia, a política e a guerra, mas uma coisa é certa: os EUA, que até
hoje achavam que era uma ilha protegida desse tipo de violência, vendo-a apenas da
distância segura da tela do televisor, estão agora diretamente envolvidos” (p.65)
- “[...] os dois lados não são realmente opostos, eles pertencem ao mesmo campo.
Resumindo, a posição a ser adotada é aceitar a necessidade de lutar contra o terrorismo,
mas redefinir e expandir os termos, de forma a incluir também (alguns) atos dos
americanos e de outra potências ocidentais: a opção entre Bush e Bin Laden não é nossa
escolha; os dois são ‘Eles’ contra Nós. O fato de o capitalismo global ser uma totalidade
significa que ele é uma unidade dialética de si mesmo e de seu outro, das forças que
resistem a ele por razões ideológicas ‘fundamentalistas’” (p.67)

- “Depois de criar um fantasma para combater o comunismo, eles o transformaram em


seu principal inimigo. Consequentemente, mesmo que o terrorismo nos mate a todos, a
guerra americana contra o terrorismo não é a nossa luta, mas uma luta interna do
universo capitalista. O primeiro dever de um intelectual progressista (se é que esse
termo tem ainda hoje algum significado) não é lutar as lutas de seu inimigo por ele”
(p.68)

- “Longe de ser um reino antigo, isolado do alcance da modernização, até recentemente


intocado pela história, a própria existência do Afeganistão é o resultado desse jogo de
potências estrangeiras. O que mais se aproxima do Afeganistão na Europa seria a
Bélgica [...] se essa imagem dos belgas como comedores de chocolate e exploradores de
crianças é um lugar-comum criado pela mídia, também o é a imagem do Afeganistão
como o país do ópio e da opressão feminina. É como a velha anedota: ‘Os judeus e os
ciclistas são a raiz de todos os nossos problemas!’ ‘Por que os ciclistas?’ ‘Por que os
judeus?’” (p.73)

- “As ‘férias da história’ dos EUA foram uma farsa: a paz americana foi comprada com
catástrofes que aconteciam por toda a parte” (p.73)

[A FELICIDADE DEPOIS DO 11 DE SETEMBRO]

- “Em psicanálise, a traição do desejo tem um nome preciso: felicidade” (p.77)

- “Num sentido lacaniano estrito do termo, deveríamos então postular que a ‘felicidade’
se baseia na incapacidade, ou aversão, do sujeito de enfrentar abertamente as
consequências de seu desejo: o preço da felicidade é permanecer o sujeito preso à
inconstância do desejo. Na vida diária, (fingimos) desejar coisas que na verdade não
desejamos, e assim, ao final, o pior que pode nos acontecer é conseguir o que
‘oficialmente’ desejamos. A felicidade é, portanto, intrinsecamente hipócrita: é a
felicidade de sonhar com coisa que na verdade não queremos” (p.78-79)

- “Quando a esquerda bombardeia o sistema do capital com exigências que este


evidentemente não consegue atender (Pleno emprego! Manter o Estado assistencialista!
Todos os direitos aos imigrantes!), ela está fazendo um jogo de provocação histérica de
dirigir ao Mestre uma exigência que lhe será impossível satisfazer, expondo assim sua
impotência. Mas o problema dessa estratégia não é apenas o fato de o sistema não ser
capaz de atender a essas demandas, mas, além disso, o fato de que aqueles que as
manifestam na verdade não desejarem que elas se realizem” (p.79)

- “Em 1994, quando já se previa uma nova onde de imigração de Cuba para os EUA,
Fidel Castro avisou aos EUA que parassem de incentivar os cubanos a emigrar, Cuba
deixaria de tentar contê-los, o que Cuba cumpriu alguns dias depois, embaraçando os
EUA com milhares de visitantes indesejados... Isso lembra a mulher que respondeu a
um homem que a insultava com insinuações machistas: ‘Cale a boca, ou te obrigo a
fazer aquilo de que você se gaba’” (p.79)

- “[...] O problema com essa solução é que eu sei que o Outro sabe (a verdade sobre a
minha doença), e isso estraga tudo, por me expor à tortura de horríveis suspeitas [...]
Lacan chamou a atenção para a condição paradoxal desse conhecimento do
conhecimento do Outro” (p.80)

- “Nesse ponto, é claro, impõe-se uma crítica óbvia: não seria essa tolerante sabedoria
de Hollywood uma caricatura de estudos pós-coloniais verdadeiramente radicais? Para
tanto, deveríamos responder: seria mesmo? Na verdade, existe mais verdade nessa
caricatura simplificada e sem vida do que na mais elaborada teoria pós-colonial: pelo
menos Hollywood destila a mensagem ideológica real do jargão pseudo-sofisticado. A
atitude hegemônica de hoje é a da ‘resistência’ – toda a poética das multidões marginais
dispersas, as sexuais, étnicas, e de estilos de vida (gays, doentes mentais, prisioneiros...)
‘resistem’ – desde os gays e lésbicas até os survivalists da direita -; então, por que não
inferir a conclusão lógica de que esse discurso da ‘resistência’ é a norma hoje e, como
tal, o principal obstáculo à emergência do discurso que realmente colocaria em questão
as relações dominantes? Então, a primeira coisa a fazer é atacar o próprio cerne dessa
atitude hegemônica, a noção de que o ‘respeito pelo Outro’ é o axioma ético mais
elementar” (p.85-86)
- “[...] o limite da radical alteridade do Outro? Não devemos jamais reduzir o Outro a
nosso inimigo, a defensor do falso conhecimento, e assim por adiante: nele ou nela
sempre há de existir o Absoluto do impenetrável abismo de outra pessoa. O
totalitarismo do século XX, com seu milhões de vítimas, mostrou o resultado último de
seguir até o fim o que nos parece uma ‘ação subjetivamente justa’ – e portanto não deve
causar espanto que Badiou acabou por apoiar diretamente o terror comunista” (p.86-87)

- “É precisamente essa a linha de raciocínio que devemos rejeitar; consideremos o caso


extremo, uma luta mortal e violenta contra um inimigo fascista. Devemos mostrar
respeito pelo abismo da radical Alteridade da personalidade de Hitler oculto sob todos
os seus atos de maldade? Seria a este caso que deveríamos aplicar as famosas palavras
de Cristo sobre ter ele vindo trazer a espada e a divisão, e não a unidade e a paz: por
causa do nosso amor pela humanidade, até mesmo (o que restar dela) pela humanidade
dos próprios nazistas, devemos lutar contra eles de forma absolutamente cruel e
desrespeitosa. Em resumo, o sempre citado provérbio judeu sobre o Holocausto
(‘Quando alguém salva um homem da morte, está salvando toda a humanidade’) deve
ser completado por: ‘Quando alguém mata um único inimigo da humanidade, está
salvando toda a humanidade’. A verdadeira prova ética é não somente a disposição de
salvar as vítimas, mas também – talvez até mais – a dedicação implacável à aniquilação
dos que fizeram as vítimas” (p.87)

- “Unbreakable [Corpo Fechado] (de M. Night Shyamalan, 2000) é paradigmático da


moderna constelação ideológica no contraste mesmo entre forma e conteúdo [...] Por
que Bruce Willis resiste a levar um tiro? Teria ele medo de morrer, ou teria medo de ter
uma prova incontestável de ser invencível? E não é exatamente este o mesmo dilema de
Kierkegaard relativo à ‘doença até a morte’? Temos medo de descobrir não que somos
mortais, mas, pelo contrário, que somos imortais” (p.88)

- “Em resumo, a verdadeira função desses deslocamentos e subversões é exatamente


tornar relevante para nossa era ‘pós moderna’ a história tradicional e dessa forma evitar
que ela seja substituída por uma nova narrativa. É natural, portanto, que o final do filme
[Shrek] seja um versão irônica de ‘I´m a Believer’, velho sucesso dos Monkees da
década de 1960: hoje, os crentes são assim – zombam de suas crenças, apesar de
continuar a praticá-las, ou seja, apoiar-se nelas como a estrutura oculta de suas práticas
diárias” (p.90)
- “[...] o mesmo não se aplica à ideologia da democracia liberal? Quem finge levar a
sério a ideologia liberal hegemônica não pode ser ao mesmo tempo inteligente e
honesto: ou é estúpido ou um cínico corrompido. Portanto, se me permitem uma alusão
de mau gosto ao Homo Sacer de Agamben, quero afirmar que o modo liberal dominante
de subjetividade hoje é o Homo Otarius: ao tentar manipular e explorar os outros, acaba
sendo ele o verdadeiro explorado. Quando imaginamos estar zombando da ideologia
dominante, estamos apenas aumentando seu controle sobre nós mesmos” (p.90)

- “A democracia é hoje o principal fetiche político, a rejeição dos antagonismos sociais


básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo
social é reduzido a uma multidão pura passível de ser contada, e aqui também o
antagonismo é suspenso. Há uma década, durante as eleições para governador do Estado
da Luisiana, quando a única alternativa ao ex-KKK David Duke era um democrata
corrupto, muitos carros exibiam o adesivo: ‘Vote no ladrão – é importante!’” (p.98)

- “Esse é o grande paradoxo da democracia: dentro da ordem política existente, toda


campanha contra a corrupção terminada cooptada pela extrema direita populista. Na
Itália, o resultado último da campanha das ‘mãos limpas’ que destruiu o velho
establishment político baseado na Democracia Cristã foi a chegada de Berlusconi ao
poder; na Áustria, Heider legitimou sua subida ao poder em termos de combate à
corrupção [...]” (p.98)

- “A ordem política democrática é por sua própria natureza suscetível à corrupção. A


escolha última é: aceitamos e endossamos essa corrupção com um espírito de sabedoria
resignada e realista, ou reunimos a coragem para formular uma alternativa de esquerda à
democracia para quebrar esse círculo vicioso de corrupção democrática e a campanha
direitista para se livrar dela?” (p.99)

[DE HOMO OTARIUS A HOMO SACER]

- “O resultado último da subjetivação global não é o desaparecimento da ‘realidade


objetiva’, mas o desaparecimento de nossa própria subjetividade, que se transforma num
capricho fútil, enquanto a realidade social continua seu curso. Aqui fico tentado a
parafrasear a famosa resposta do interrogador a Winston Smith, que duvida da
existência do Big Brother (‘É você quem não existe!’): a resposta correta às dúvidas pós
modernas acerca da existência do grande Outro é que o próprio sujeito não existe... [...]”
(p.106)

- “De forma mais geral, não é a mesma lição de Adorno e Horkheimer em Dialética
do esclarecimento? As principais vítimas do positivismo não são confusas noções
metafísicas mas os próprios fatos; a busca radical da secularização, o desvio em direção
à própria vida mundana, transforma a vida em si num processo ‘abstrato’ anêmico – e
essa reversão paradoxal está evidente na obra de Sabe, onde a afirmação irrestrita da
sexualidade esvaziada dos últimos vestígios de transcendência espiritual transforma a
própria sexualidade num exercício mecânico desprovido da autêntica paixão sexual”
(p.108)

- “O resgate do soldado Ryan, de Spielberg, é o exemplo mais recente dessa atitude


sobrevivencialista com relação à morte, com a apresentação ‘desmistificadora’ da
guerra como uma matança sem sentido que nada pode justificar – e, assim, o filme
oferece a melhor justificativa para a doutrina militar de ‘Zero baixa do nosso lado’ de
Colin Powell. Aqui, não estamos confundindo a versão fundamentalista cristã e
abertamente racista de ‘defesa do Ocidente’ e a versão liberal tolerante da ‘guerra contra
o terrorismo’, que se propõe a salvar os próprios maometanos da ameaça
fundamentalista: por mais importante que seja a diferença entre elas, as duas estão
envoltas na mesma dialética autodestrutiva” (p.110)

- “Os excluídos são não apenas os terroristas, mas também os que se colocam na ponta
receptora da ajuda humanitária (ruandenses, bósnios, afegãos...): o Homo sacer de hoje
é o objeto privilegiado da biopolítica humanitária: o que é privado da humanidade da
completa por ser sustentado com desprezo. Devemos assim reconhecer o paradoxo de
serem os campos de concentração e os de refugiados que recebem ajuda humanitária as
duas faces, ‘humana’ e ‘desumana’, da mesma matriz formal sociológica” (p.111)

- “[...] os EUA se opuseram absolutamente à noção de os ataques ao WTC serem


considerados atos criminosos apolíticos. Ou seja, o que está surgindo como terrorista
contra quem se declara guerra é exatamente a figura do Inimigo político, excluído do
espaço político propriamente dito” (p.113)
- “A principal imagem do tratamento das ‘populações locais’ como Homo sacer talvez
seja a do avião de guerra voando sobre o Afeganistão: nunca se sabe se ele vai lançar
bombas ou pacotes de alimentos” (p.114)

- “A estranha ‘coincidência de opostos’ atingiu o máximo quando, em abril de 2002,


Harald Nasvik, membro direitista do parlamento da Noruega, propôs George W. Bush e
Tony Blair como candidatos ao Prêmio Nobel da Paz, citando o papel decisivo dos dois
na ‘guerra contra o terrorismo’ como a maior contribuição à paz nos nossos dias – o
velho lema orwelliano ‘Guerra é paz’ finalmente se torna realidade” (p.114)

- “O problema com o uso da noção de Homo sacer proposta por Agamben é o fato de
ela estar inscrita na linha da ‘dialética do Esclarecimento’ de Adorno e Horkheimer, ou
do poder disciplinador e do biopoder de Michel Foucault: os tópicos dos direitos
humanos, democracia, domínio do direito e outros se reduzem em última análise a uma
mascara enganosa para os mecanismos disciplinadores do ‘biopoder’, cuja expressão
última é o campo de concentração do século XX. A escolha subjacente aqui parece ser
Adorno e Habermas: seria o projeto moderno de liberdade (política) uma falsa aparência
cuja ‘verdade’ é corporificada por sujeitos que perderam até o último vestígio de
autonomia por estarem imersos no ‘mundo administrado’ do capitalismo recente, ou os
fenômenos ‘totalitários’ seriam meras testemunhas do fato de que o projeto político da
modernidade continua inacabado?” (p.115)

- “Um bom exemplo é a coluna de Jonathan Alter na revista Newsweek, ‘Tempo de


pensar a tortura’, cujo ominoso subtítulo é ‘Trata-se de um mundo novo, e a
sobrevivência talvez exija antigas técnicas que pareciam estar fora de questão’ [...] A
obscenidade dessas propostas é escandalosa. Primeiro, por que usar os ataques ao WTC
como justificativa? Não existem crimes muito mais horrorosos acontecendo em todo
mundo o tempo todo? Segundo, qual a novidade dessa idéia? A CIA já vem ensinando
há décadas aos aliados militares dos americanos na América Latina e no Terceiro
Mundo a prática da tortura?” (p.123)

- “[...] artigos como o de Alter, que não defendem totalmente a tortura, mas que apenas
a introduzem como tópico legítimo de debate, são ainda mais perigosos que uma defesa
explícita: enquanto – ao menos no momento – a defesa explícita é chocante demais e
será portanto rejeitada, a simples introdução da tortura como tópico legítimo de
discussão nos permite manter a consciência limpa (‘É claro que sou contra a tortura –
mas não faz mal algum simplesmente discuti-la)” (p.124)

- “[...] no início de abril, quando os americanos prenderam Abu Zubaydah, que se


presumia o segundo em comando na Al-Qaeda, a pergunta ‘Devemos torturá-lo?’ foi
discutida abertamente no meios de comunicação de massa [...] Donald Rumsfeld
afirmou que sua prioridade eram as vidas americanas, não os direitos humanos de um
terrorista importante, e atacou os jornalistas por manifestarem essa preocupação pelo
bem-estar de Zubaydah, abrindo assim caminho para a tortura [...]” (p.125)

- “O problema para os ‘legalistas’ era não a natureza das medidas, nem a redução do
anti-semitismo em si, mas a preocupação de não serem tais medidas previstas em lei –
estavam assustados em ter de enfrentar o abismo de uma decisão que não fosse coberta
pelo Outro da lei, pela ficção legal da legitimidade” (p.126)

- “O inesperado precursor dessa ‘biopolitica’ paralegal em que as medidas


administrativas substituem gradualmente o domínio do Direito foi o regime autoritário
de direita de Alfredo Stroessner no Paraguai durante as décadas de 1960 e 70, que
trouxe a lógica do estado de exceção ao mais extremo absurdo. Sob Stroessner, o
Paraguai era – em termos da ordem constitucional – uma democracia parlamentar
‘normal’ com a garantia de todas as liberdades; como, entretanto, conforme a alegação
de Stroessner, vivemos todos em estado de emergência por causa da luta mundial entre
a liberdade e o comunismo, a implementação total da constituição era sempre adiada e
proclamado um permanente estado de emergência [...] O paradoxo é que esse estado de
emergência era o estado normal, ao passo que a liberdade democrática ‘normal’ era uma
exceção de curtíssima duração” (p.127)

- “A resposta é clara: quando uma instituição estatal proclama o estado de emergência,


ela o faz, por definição, como parte de uma estratégia desesperada para evitar a
verdadeira emergência e ‘retornar ao estado normal das coisas’. Há uma característica
comum a todas as proclamações reacionárias de ‘estado de emergência’: foram todas
dirigidas contra a agitação popular (‘confusão’) e apresentadas como medidas para
restaurar a normalidade. Na Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile e na Turquia, os
militares proclamaram um estado de emergência a fim de controlar o ‘caos’ da
politização generalizada [...] Em resumo, a proclamação reacionária do estado de
emergência é uma defesa desesperada contra o verdadeiro estado de emergência”
(p.128)

- “[...] a lição a ser aprendida – de Carl Schmitt – é que o divisor amigo/inimigo nunca é
apenas uma representação de uma diferença factual: o inimigo por definição, pelo
menos até certo ponto, invisível; parece um de nós; não pode ser reconhecido
diretamente – essa é a razão por que o grande problema ou tarefa da luta política é
oferecer ou construir uma imagem irreconhecível do inimigo (o que também justifica o
fato de os judeus serem o inimigo par excellence: não se trata apenas de eles ocultarem
a própria imagem ou contornos – é o fato de não haver nada sob sua aparência enganosa
[...]” (p.130)

- “[...] o ‘reconhecimento do inimigo’ é sempre uma atividade performativa que, ao


contrário das aparências enganosas, traz à luz ou constrói o ‘verdadeiro rosto’ do
inimigo” (p.130)

- “Quando o Inimigo opera o point de capiton lacaniano do nosso espaço ideológico, é


para unificar a multidão de adversários políticos com quem interagimos em nossas lutas.
Assim, o stalinismo da década de 1930 construiu a agência do Capital Monopolista
Imperialista para demonstrar que os fascistas e os social-democratas (‘social-
democratas’) são ‘irmãos gêmeos’, as ‘mãos direitas e esquerda do capital
monopolistas’. Assim o próprio nazismo construiu o ‘plano plutocrático-bolchevista’
como o agente comum que ameaça o bem-estar da nação alemã” (p.131)

[De homo sacer a próximo]

- “[...] quando Milosevic acusa em Haia o ocidente de adotar dois pesos e duas medidas,
lembrando aos líderes, lembrando aos líderes ocidentais que há menos de uma década,
quando já sabiam dos crimes de que hoje o acusam, eles o saudaram como o
pacificador; quando ameaça convocá-lo ao banco das testemunhas, ele está coberto de
razão” (p.146)

- “[...] quando Fukuyama fala do ‘islamofascismo’, devemos concordar com ele – com a
condição de usarmos o termo ‘fascismo’ de forma muito precisa: como o nome da
tentativa impossível de ter um ‘capitalismo sem capitalismo’, sem os excessos de
individualismo, desintegração social, relativização de valores e assemelhados” (p.155)
[O cheiro do amor]

- “O pior a fazer com relação aos acontecimentos de 11 de setembro é elevá-los à


condição de Mal Absoluto, um vácuo que não pode ser explicado nem dialetizado.
Classificá-los na mesma categoria que o Shoah é uma blasfêmia: o Shoah foi cometido
metodicamente por uma vasta rede de appartchicks do Estado e seus esbirros que, ao
contrário dos que atacaram as torres do WTC, não tinham aceitação suicida da própria
morte [...] ‘banalidade do mal’ inexiste no caso dos ataques terroristas: os perpetradores
assumiram integralmente o horror de seus atos; esse horror é parte da atração fatal que
os leva a cometê-los” (p.158)

- “Por que se deveria privilegiar a catástrofe do WTC em relação, digamos, ao


genocídio dos hutus pelos tutsis em Ruanda em 1994? [...] é longa a lista de países onde
o sofrimento era, e é, incomparavelmente maior que o sofrimento em Nova York, mas a
população não teve a sorte de ser elevada pela mídia à categoria de vítimas sublimes do
Mal Absoluto” (p.159)

- “Resumindo, não é verdade que hoje, nesse nossa resignada era pós-ideológica que
não admite Absolutos, os únicos candidatos a Absoluto são os atos radicalmente maus?
Essa condição negativa e teológica do Holocausto encontra sua expressão máxima em
O que resta de Auschwitz de Giorgio Agamben [...]” (p.160)

- “[...] existe prova melhor do que, em alguns estudos culturais de hoje, o Holocausto
ser de fato elevado à categoria de Coisa, percebido como o Absoluto negativo? E nos
diz muito a respeito de constelação de que o único Absoluto é o Mal sublime e
irrepresentável” (p.160)

- “Para entender essa questão, devemos considerar os dois aspectos do tempo


‘impossibilidade’: primeiro, a impossibilidade como o simples obverso da necessidade
(‘não poderia ter sido de outra forma’); então, a impossibilidade é o limite impensável
da própria possibilidade (‘uma coisa tão impossível não poderia acontecer; ninguém
pode ser tão mau’) – em Auschwitz, os dois aspectos são coincidentes” (p.161)

- “[...] cínico argumento nazista citado por Primo Levi e outros: ‘O que estamos fazendo
com os judeus é tão irrepresentável em seu horror que, mesmo que alguém sobrevivesse
aos campos, seria impossível aos que não estiveram lá acreditar nele – hão de declará-lo
mentiroso ou louco!’. O contra-argumento de Agamben é: de fato, não é possível dar
testemunho do horror de Auschwitz – mas e se essa impossibilidade mesma estiver
corporificada num sobrevivente? [...]” (p.162)

- “[...] é possível lê-la de duas formas opostas: como expressão conceitual de uma
posição extrema que deveria então ser explicada em termos de uma análise histórica
concreta; ou, numa espécie de curto-circuito ideológico, como uma visão de estrutura
apriorística do fenômeno de Auschwitz que desloca, torna supérflua – ou pelo menos
secundárias – essa análise concreta da singularidade do nazismo como projeto político e
de por que ele gerou o Holocausto” (p.162)

- “[...] em vez de continuar presos num assombro debilitante diante do Mal Absoluto, o
assombro que nos impede de pensar no que está ocorrendo, devemos nos lembrar de que
há duas formas fundamentais de reagir a eventos traumáticos, que causam angústia
insuportável: a forma do supereu e a forma do ato. A forma do supereu é
precisamente a do sacrifício aos deuses obscuros de que fala Lacan: a reafirmação
da violência bárbara da selvagem lei obscena para cobrir o vazio do fracasso da lei
simbólica. E o ato? Um dos heróis da Shoah, na minha opinião, foi a famosa bailarina
judia que, num gesto de humilhação especial, foi convocada por um grupo de oficiais do
campo para dançar para eles [...] Enquanto prendia a atenção deles, tomou rapidamente
a metralhadora de um dos guardas e conseguiu matar mais de uma dúzia antes de ser ela
própria abatida a tiros” (p.165)

- “A reação americana mais fundamental (pelo menos) desde a Guerra do Vietnã não
seria a surpresa de saber que não são amados pelos que estão fazendo pelo mundo?
Tentamos ser bons, ajudar os outros, trazer a paz e a prosperidade, e veja só o que
recebemos em troca...” (p.168)

[POSFÁCIO – A política do Real de Slavoj Zizek, de V. Safatle]

- “[...] abordagem da cultura contemporânea que passava ao largo da doxa pós moderna
própria ao relativismo reinante. Via fundada em um duplo recurso, em que um certo
resgate da tradição dialética hegeliana se encontra com uma, até então inédita, ‘clínica
da cultura’ de orientação lacaniana” (p.180)

- “[...] o que realmente marca Zizek é sua maneira de recorrer à psicanálise e à tradição
dialética a fim de resgatar o projeto racionalista moderno com suas aspirações de
aspirações de emancipação e reconhecimento, assim como sua força crítica da
alienação” (p.180)

[A negação como ato político]

- “É exatamente neste ponto que entra o Lacan hegeliano de Zizek. O filósofo esloveno
percebeu rapidamente que a leitura dialética de Lacan poderia fornecer uma teoria do
sujeito prenhe de consequência políticas e apta a guiar práxis sociais na
contemporaneidade” (p.182)

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