ZIZEK, Slavoj. Bem Vindo Ao Deserto Do Real, 2003. FINALIZANDO
ZIZEK, Slavoj. Bem Vindo Ao Deserto Do Real, 2003. FINALIZANDO
ZIZEK, Slavoj. Bem Vindo Ao Deserto Do Real, 2003. FINALIZANDO
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[INTRODUÇÃO]
- “Não que Brecht tolerasse a crueldade da luta, na esperança de que ela trouxesse um
próspero futuro: a dureza da violência pura foi entendida como um sinal de
autenticidade... Não é um caso exemplar do que Alain Badiou identificou como a
principal característica do século XX: a paixão do real? [...] O momento último e
definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade
social diária – o Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada
das camadas enganadoras da realidade” (p.19)
- “Se a paixão pelo Real termina no puro semblante do espetacular efeito do Real, então,
em exata inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta violenta à
paixão pelo Real” (p.23-24)
- “Vejamos o exemplo das pessoas [...] que sentem uma necessidade irresistível de se
cortar [...] trata-se de um paralelo exato da virtualização de nosso ambiente: representa
uma estratégia desesperada de volta ao Real do corpo [...] o corte é uma tentativa radical
de (re)dominar a realidade ou, o que é outro aspecto do fenômeno, basear firmemente o
ego na realidade do corpo contra a angústia insuportável de se sentir inexistente [...]
Dessa forma, apesar de ser evidentemente um fenômeno patológico, o corte é, ainda
assim, uma tentativa patológica de recuperar algum tipo de normalidade, de evitar o
total colapso patológico” (p.24)
- “E não é verdade que o ataque ao World Trade Center tinha, com relação aos filmes-
catástrofe de Hollywood, a mesma relação existente entre a pornografia snuff e os
filmes pornográficos sadomasoquistas comuns? É este elemento de verdade na
declaração provocativa de Karl-Heinz Stockhausen de que o impacto dos aviões contra
as torres do WTC são a obra de arte definitiva: pode-se entender o colapso das torres do
WTC como a conclusão culminante da ‘paixão pelo Real’ da arte do século XX – os
próprios ‘terroristas’ não o fizeram primariamente visando provocar dano material real,
mas pelo seu efeito espetacular” (p.25-26)
- “A verdadeira paixão do século XX por penetrar a Coisa Real (em última instância, o
Vazio destrutivo) através de uma teia de semblantes que constitui a nossa realidade
culminou assim na emoção do Real como o ‘efeito’ último, buscado nos efeito especiais
digitais, em reality shows da TV e na pornografia amadora, até chegar nos snuff movies.
Esses filmes, que oferecem a verdade nua e crua, são talvez a verdade última da
Realidade Virtual” (p.26)
- “[...] Talvez a imagem sádica definitiva, a de uma vítima que não morra de tortura, que
possa suportar uma dor infindável sem a opção da fuga para a morte, esteja também à
espera para se tornar realidade” (p.27)
- “[...] Matrix (1999), levou essa lógica ao seu clímax: a realidade material que todos
sentimos e vemos à nossa volta é virtual [...] quando acorda na ‘realidade real’, o herói,
interpretado por Keanu Reeves, se vê numa paisagem desolada [...] Morpheus, lança-lhe
uma estranha saudação: ‘Bem-vindo ao deserto do real’. Esse resumo não é semelhante
ao que sucedeu em Nova Iorque no dia 11 de setembro?” (p.29-30)
- “Esse paradoxo também indica como se deve entender a noção de Lacan da ‘travessia
da fantasia’ como o momento conclusivo do tratamento psicanalítico [...] é evidente que
ela [psicanálise] deveria nos libertar da influência das fantasias idiossincráticas e nos
permitir enfrentar a realidade como ela realmente é! Mas isso é exatamente o que não
faz parte das idéias de Lacan – ele deseja é quase exatamente o contrário. Na vida
diária, estamos imersos na ‘realidade’ (estruturada e suportada pela fantasia) e essa
imersão é perturbada por sintomas que atestam o fato de que outro nível reprimido de
nossa psique resiste a ela. ‘Atravessar a fantasia’, então, significa identificar-se
totalmente com a fantasia – a saber, com a fantasia que estrutura o excesso que resiste à
nossa imersão na realidade diária [...]” (p.32)
- “O Real que retorna tem o status de outro semblante: exatamente por ser real, ou seja,
em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na
nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto somos forçados a senti-lo como
um pesadelo fantástico. A impressionante imagem da destruição do WTC foi
exatamente isso: uma imagem, um semblante, um ‘efeito’ que, ao mesmo tempo,
ofereceu ‘a coisa em si’. Esse ‘efeito do Real’ não é a mesma coisa a que Roland
Barthes, nos idos da década de 1960, deu o nome de l´effet du réel: pelo contrário, é
exatamente o contrário: l´effet du i´irréel. Ou seja, ao contrário do effet du réel
barthesiano, em que o texto nos leva a aceitar como ‘real’ seu produto ficcional, neste
caso o próprio Real, para se manter, tem de ser visto no espectro do pesadelo” (p.33-34)
- “Aqui a lição da psicanálise é o contrário: não se deve tomar a realidade por ficção – é
preciso ter a capacidade de discernir, naquilo que percebemos como ficção, o núcleo
duro do Real que só temos condições de suportar se o transformarmos em ficção.
Resumindo, é necessário ter a capacidade de distinguir qual parte da realidade é ‘
transfuncionalizada’ pela fantasia de forma que, apesar de ser parte da realidade, seja
percebida num modo ficcional” (p.34)
- “E essa idéia também nos permite retornar ao exemplo das pessoas que se cortam: se o
verdadeiro contrário do Real é a realidade, isso significaria que, ao se cortar, elas na
realidade estão tentando fugir não somente da sensação de irrealidade, da virtualidade
artificial do mundo em que vivemos, mas do próprio Real que explode sob a forma de
alucinações descontroladas que começam a nos assombrar quando perdemos a âncora
que nos prendem à realidade?” (p.34)
- “Em seu seminário (inédito) sobre a angústia (1962-63), Lacan especifica que o
verdadeiro objetivo do masoquista não é gerar jouissance no Outro, e sim criar-lhe
angústia. Ou seja, apesar de o masoquista se submeter à tortura do Outro, apesar de
desejar servir ao Outro, é ele próprio quem define as regras de sua servidão; portanto,
apesar de parecer oferecer-se como instrumento da jouissance do Outro, ele expõe
efetivamente seu próprio desejo ao Outro e assim cria no Outro a angústia – Para Lacan
o verdadeiro objeto da angústia é a (excessiva) proximidade do desejo do Outro” (p.36)
- “[...] a verdadeira escolha com relação ao trauma histórico não está entre lembrar-se
ou esquecer dele: os traumas que não estamos dispostos a ou não somos capazes de
relembrar assombra-nos com mais força. É necessário então aceitar o paradoxo de que,
para realmente esquecer um acontecimento, precisamos primeiramente criar a força para
lembrá-lo. Para responder a este paradoxo, devemos ter em mente que o contrário de
existência não é inexistência, mas insistência: o que não existe continua a insistir para
passa a existir [...]” (p.37)
- “Numa leitura notável das “Teses sobre Filosofia da História”, de Walter Benjamim,
Eric Santner desenvolve a noção benjaminiana de que uma intervenção revolucionária
presente repete e redime as tentativas fracassadas do passado: “os sintomas – traços do
passado que são retroativamente redimidos pelo ‘milagre’ da intervenção revolucionária
– ‘não são atos esquecidos, mas, pelo contrário, as omissões de ação que ficaram
esquecidas, a incapacidade de suspender a força da ligação social que inibe os atos de
solidariedade com os outros da sociedade’” (p.37)
- “O problema com a ‘paixão do Real’ do século XX não é o fato de elas ser uma paixão
pelo Real, mas sim o fato de ser uma paixão falsa em que a implacável busca do Real
que há por trás das aparências é o estratagema definitivo para evitar o confronto com
ele – como? Comecemos pela tensão entre o universal e o particular no uso do termo
‘especial’: quando dizemos que ‘existem fundos especiais’, queremos dizer fundos
ilegais, ou no mínimo secreto [...] quando um jornalista ou policiais a uma ‘técnica
especial de interrogatório’, está se referindo à tortura ou a outra pressão igualmente
ilegal. (E não se pode esquecer que as unidades responsáveis por matar e cremar nos
campos de concentração nazistas eram chamadas de Sonderkommando, unidades
especiais)” (p.39)
- “O núcleo da ‘paixão pelo Real’ é essa identificação com – esse gesto heróico de
assumir integralmente – a obscenidade suja do outro lado do Poder: a atitude heróica de
que ‘alguém tem que fazer o trabalho sujo, então, mãos à obra!’, uma espécie de reverso
espelhado da Bela Alma que não aceita se reconhecer no seu resultado. Vemos essa
atitude na admiração direitista pela comemoração dos heróis prontos a fazer o trabalho
sujo necessário: é fácil fazer uma coisa nobre pela pátria, até sacrificar a própria vida
por ela – é muito mais difícil cometer um crime pela pátria... Hitler sabia muito bem
como fazer esse jogo duplo com relação ao Holocausto, usando Himmler para expor o
‘segredo sujo’. Em seu discurso para os líderes da SS em Posen, no dia 14 de outubro de
1943, Himmler descreveu abertamente o assassinato em massa de judeus como ‘uma
página gloriosa na nossa história, uma página que nunca foi, nem jamais poderá ser
escrita’” (p.45)
- “Devemos aqui abandonar a metáfora padrão do Real como a Coisa aterradora que não
se é capaz de enfrentar cara a cara, como o Real definitivo oculto sob camadas de véus
imaginários e/ou simbólicos: a própria idéia de que sob a aparência enganadora oculta-
se uma Coisa Real definitiva, horrível demais para que possamos encarar diretamente, é
a aparência definitiva – a Coisa Real é um espectro fantasmático cuja presença garante a
consistência de nosso edifício simbólico, permitindo-nos evitar sua inconsistência
constitutiva (‘antagonismo’). Tomemos a ideologia nazista: o judeu como seu Real é um
espectro evocado para esconder o antagonismo social – ou seja, a figura do judeu nos
permite perceber a totalidade social como um Todo Orgânico” (p.46-47)
- “Não é ironia definitiva o fato de, já antes do bombardeio americano, Kabul já estar
igual ao sul de Manhattan depois de 11 de setembro? A ‘guerra contra o terror’ funciona
então como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura
convicção de que nada mudou realmente” (p.51)
- “Ao contrário de Marx, que acreditava que na noção de fetiche como um objeto real
cuja presença estável ofusca sua mediação social, seremos forçados a afirmar que o
fetichismo atinge seu apogeu precisamente quando o fetiche em si é ‘desmaterializado’,
transformado numa fluida entidade virtual ‘imaterial’; o fetichismo do dinheiro há de
culminar com sua passagem à forma eletrônica, quando desaparecem os últimos
vestígios de sua materialidade – somente nesse estágio ele será capaz de assumir a
forma de uma presença espectral indestrutível. E o mesmo não vale com relação à
guerra? Longe de apontar para a guerra do século XXI, a explosão e colapso das torres
gêmeas do WTC em setembro de 2001 fora, pelo contrário, o último grito espetacular da
guerra do século XX. O que nos espera é algo muito mais estranho: o espectro de uma
guerra ‘imaterial’, em que o ataque é invisível – vírus, venenos que podem estar em
qualquer lugar ou em nenhum lugar. No plano da realidade material visível, nada
acontece, nenhuma grande explosão; ainda assim o universo conhecido começa a
desmoronar, a vida a se desintegrar” (p.53)
- “Estamos entrando numa nova era de guerra paranóica em que a principal tarefa será
identificar o inimigo e suas armas” (p.53)
- “E não é a obversão dessa onipresença paranóica da guerra invisível exatamente a sua
dessubstancialização? Assim como bebemos cerveja sem álcool ou café sem cafeína,
temos agora a guerra esvaziada de sua substância [...] uma guerra sem baixas (do nosso
lado)” (p.53)
- “Essa noção de ‘choque de civilização’, entretanto, deve ser rejeitada de pronto: o que
vemos hoje são, pelo contrário, choques no interior de cada civilização. Ademais, um
exame perfunctório da história comparada do Islã e do cristianismo nos informa que o
‘histórico dos direitos humanos’ (para usar um termo anacrônico) do Islã é muito
melhor do que o do cristianismo: em séculos passados, o Islã sempre foi mais tolerante
com as outras religiões do que o cristianismo” (p.57)
- “O que não se pode deixar de ter em mente acerca do Afeganistão é que, até a década
de 1970 – ou seja, antes da época em que o país se envolveu na luta das superpotências
-, ele era uma das sociedades maometanas mais tolerantes, com uma tradição secular:
Kabul era conhecida como uma cidade de vibrante vida cultural e política. O paradoxo,
portanto, é que a ascensão do Talibã, essa aparente ‘regressão’ ao
ultrafundamentalismo, longe de expressar tendência ‘tradicionalista’, foi o resultado de
o país ter caído no vórtice da política internacional – foi não somente uma reação a ela,
mas também um resultado direto do apoio das potências estrangeiras (Paquistão, Arábia
Saudita e os próprios EUA)” (p.59)
- “Então, o que dizer da frase que reverbera por toda parte: ‘Nada será como antes,
depois do 11 de setembro’? Significativamente, essa frase nunca é elaborada – é apenas
um gesto vazio de dizer uma coisa ‘profunda’ sem realmente saber o que se quer dizer.
Assim, nossa primeira reação a ela deveria ser: ‘É mesmo? E se nada epocal aconteceu
no dia 11 de setembro? E se – como parece demonstrar a exibição maciça de
patriotismo americano – a experiência dramática do 11 de setembro serviu apenas como
um artifício para a ideologia hegemônica americana ‘retornar ao básico’, reafirmar suas
coordenadas ideológicas básicas contra a tentação antiglobalista e outras tentações
críticas? [...] Poderiam ter aproveitado a oportunidade – mas não o fizeram; pelo
contrário, optaram por reafirmar seu compromissos ideológicos tradicionais: abaixo os
sentimentos de culpa com relação a miséria do Terceiro Mundo, agora nós somos as
vítimas” (p.63)
- “As ‘férias da história’ dos EUA foram uma farsa: a paz americana foi comprada com
catástrofes que aconteciam por toda a parte” (p.73)
- “Num sentido lacaniano estrito do termo, deveríamos então postular que a ‘felicidade’
se baseia na incapacidade, ou aversão, do sujeito de enfrentar abertamente as
consequências de seu desejo: o preço da felicidade é permanecer o sujeito preso à
inconstância do desejo. Na vida diária, (fingimos) desejar coisas que na verdade não
desejamos, e assim, ao final, o pior que pode nos acontecer é conseguir o que
‘oficialmente’ desejamos. A felicidade é, portanto, intrinsecamente hipócrita: é a
felicidade de sonhar com coisa que na verdade não queremos” (p.78-79)
- “Em 1994, quando já se previa uma nova onde de imigração de Cuba para os EUA,
Fidel Castro avisou aos EUA que parassem de incentivar os cubanos a emigrar, Cuba
deixaria de tentar contê-los, o que Cuba cumpriu alguns dias depois, embaraçando os
EUA com milhares de visitantes indesejados... Isso lembra a mulher que respondeu a
um homem que a insultava com insinuações machistas: ‘Cale a boca, ou te obrigo a
fazer aquilo de que você se gaba’” (p.79)
- “[...] O problema com essa solução é que eu sei que o Outro sabe (a verdade sobre a
minha doença), e isso estraga tudo, por me expor à tortura de horríveis suspeitas [...]
Lacan chamou a atenção para a condição paradoxal desse conhecimento do
conhecimento do Outro” (p.80)
- “Nesse ponto, é claro, impõe-se uma crítica óbvia: não seria essa tolerante sabedoria
de Hollywood uma caricatura de estudos pós-coloniais verdadeiramente radicais? Para
tanto, deveríamos responder: seria mesmo? Na verdade, existe mais verdade nessa
caricatura simplificada e sem vida do que na mais elaborada teoria pós-colonial: pelo
menos Hollywood destila a mensagem ideológica real do jargão pseudo-sofisticado. A
atitude hegemônica de hoje é a da ‘resistência’ – toda a poética das multidões marginais
dispersas, as sexuais, étnicas, e de estilos de vida (gays, doentes mentais, prisioneiros...)
‘resistem’ – desde os gays e lésbicas até os survivalists da direita -; então, por que não
inferir a conclusão lógica de que esse discurso da ‘resistência’ é a norma hoje e, como
tal, o principal obstáculo à emergência do discurso que realmente colocaria em questão
as relações dominantes? Então, a primeira coisa a fazer é atacar o próprio cerne dessa
atitude hegemônica, a noção de que o ‘respeito pelo Outro’ é o axioma ético mais
elementar” (p.85-86)
- “[...] o limite da radical alteridade do Outro? Não devemos jamais reduzir o Outro a
nosso inimigo, a defensor do falso conhecimento, e assim por adiante: nele ou nela
sempre há de existir o Absoluto do impenetrável abismo de outra pessoa. O
totalitarismo do século XX, com seu milhões de vítimas, mostrou o resultado último de
seguir até o fim o que nos parece uma ‘ação subjetivamente justa’ – e portanto não deve
causar espanto que Badiou acabou por apoiar diretamente o terror comunista” (p.86-87)
- “De forma mais geral, não é a mesma lição de Adorno e Horkheimer em Dialética
do esclarecimento? As principais vítimas do positivismo não são confusas noções
metafísicas mas os próprios fatos; a busca radical da secularização, o desvio em direção
à própria vida mundana, transforma a vida em si num processo ‘abstrato’ anêmico – e
essa reversão paradoxal está evidente na obra de Sabe, onde a afirmação irrestrita da
sexualidade esvaziada dos últimos vestígios de transcendência espiritual transforma a
própria sexualidade num exercício mecânico desprovido da autêntica paixão sexual”
(p.108)
- “Os excluídos são não apenas os terroristas, mas também os que se colocam na ponta
receptora da ajuda humanitária (ruandenses, bósnios, afegãos...): o Homo sacer de hoje
é o objeto privilegiado da biopolítica humanitária: o que é privado da humanidade da
completa por ser sustentado com desprezo. Devemos assim reconhecer o paradoxo de
serem os campos de concentração e os de refugiados que recebem ajuda humanitária as
duas faces, ‘humana’ e ‘desumana’, da mesma matriz formal sociológica” (p.111)
- “O problema com o uso da noção de Homo sacer proposta por Agamben é o fato de
ela estar inscrita na linha da ‘dialética do Esclarecimento’ de Adorno e Horkheimer, ou
do poder disciplinador e do biopoder de Michel Foucault: os tópicos dos direitos
humanos, democracia, domínio do direito e outros se reduzem em última análise a uma
mascara enganosa para os mecanismos disciplinadores do ‘biopoder’, cuja expressão
última é o campo de concentração do século XX. A escolha subjacente aqui parece ser
Adorno e Habermas: seria o projeto moderno de liberdade (política) uma falsa aparência
cuja ‘verdade’ é corporificada por sujeitos que perderam até o último vestígio de
autonomia por estarem imersos no ‘mundo administrado’ do capitalismo recente, ou os
fenômenos ‘totalitários’ seriam meras testemunhas do fato de que o projeto político da
modernidade continua inacabado?” (p.115)
- “[...] artigos como o de Alter, que não defendem totalmente a tortura, mas que apenas
a introduzem como tópico legítimo de debate, são ainda mais perigosos que uma defesa
explícita: enquanto – ao menos no momento – a defesa explícita é chocante demais e
será portanto rejeitada, a simples introdução da tortura como tópico legítimo de
discussão nos permite manter a consciência limpa (‘É claro que sou contra a tortura –
mas não faz mal algum simplesmente discuti-la)” (p.124)
- “O problema para os ‘legalistas’ era não a natureza das medidas, nem a redução do
anti-semitismo em si, mas a preocupação de não serem tais medidas previstas em lei –
estavam assustados em ter de enfrentar o abismo de uma decisão que não fosse coberta
pelo Outro da lei, pela ficção legal da legitimidade” (p.126)
- “[...] a lição a ser aprendida – de Carl Schmitt – é que o divisor amigo/inimigo nunca é
apenas uma representação de uma diferença factual: o inimigo por definição, pelo
menos até certo ponto, invisível; parece um de nós; não pode ser reconhecido
diretamente – essa é a razão por que o grande problema ou tarefa da luta política é
oferecer ou construir uma imagem irreconhecível do inimigo (o que também justifica o
fato de os judeus serem o inimigo par excellence: não se trata apenas de eles ocultarem
a própria imagem ou contornos – é o fato de não haver nada sob sua aparência enganosa
[...]” (p.130)
- “[...] quando Milosevic acusa em Haia o ocidente de adotar dois pesos e duas medidas,
lembrando aos líderes, lembrando aos líderes ocidentais que há menos de uma década,
quando já sabiam dos crimes de que hoje o acusam, eles o saudaram como o
pacificador; quando ameaça convocá-lo ao banco das testemunhas, ele está coberto de
razão” (p.146)
- “[...] quando Fukuyama fala do ‘islamofascismo’, devemos concordar com ele – com a
condição de usarmos o termo ‘fascismo’ de forma muito precisa: como o nome da
tentativa impossível de ter um ‘capitalismo sem capitalismo’, sem os excessos de
individualismo, desintegração social, relativização de valores e assemelhados” (p.155)
[O cheiro do amor]
- “Resumindo, não é verdade que hoje, nesse nossa resignada era pós-ideológica que
não admite Absolutos, os únicos candidatos a Absoluto são os atos radicalmente maus?
Essa condição negativa e teológica do Holocausto encontra sua expressão máxima em
O que resta de Auschwitz de Giorgio Agamben [...]” (p.160)
- “[...] existe prova melhor do que, em alguns estudos culturais de hoje, o Holocausto
ser de fato elevado à categoria de Coisa, percebido como o Absoluto negativo? E nos
diz muito a respeito de constelação de que o único Absoluto é o Mal sublime e
irrepresentável” (p.160)
- “[...] cínico argumento nazista citado por Primo Levi e outros: ‘O que estamos fazendo
com os judeus é tão irrepresentável em seu horror que, mesmo que alguém sobrevivesse
aos campos, seria impossível aos que não estiveram lá acreditar nele – hão de declará-lo
mentiroso ou louco!’. O contra-argumento de Agamben é: de fato, não é possível dar
testemunho do horror de Auschwitz – mas e se essa impossibilidade mesma estiver
corporificada num sobrevivente? [...]” (p.162)
- “[...] é possível lê-la de duas formas opostas: como expressão conceitual de uma
posição extrema que deveria então ser explicada em termos de uma análise histórica
concreta; ou, numa espécie de curto-circuito ideológico, como uma visão de estrutura
apriorística do fenômeno de Auschwitz que desloca, torna supérflua – ou pelo menos
secundárias – essa análise concreta da singularidade do nazismo como projeto político e
de por que ele gerou o Holocausto” (p.162)
- “[...] em vez de continuar presos num assombro debilitante diante do Mal Absoluto, o
assombro que nos impede de pensar no que está ocorrendo, devemos nos lembrar de que
há duas formas fundamentais de reagir a eventos traumáticos, que causam angústia
insuportável: a forma do supereu e a forma do ato. A forma do supereu é
precisamente a do sacrifício aos deuses obscuros de que fala Lacan: a reafirmação
da violência bárbara da selvagem lei obscena para cobrir o vazio do fracasso da lei
simbólica. E o ato? Um dos heróis da Shoah, na minha opinião, foi a famosa bailarina
judia que, num gesto de humilhação especial, foi convocada por um grupo de oficiais do
campo para dançar para eles [...] Enquanto prendia a atenção deles, tomou rapidamente
a metralhadora de um dos guardas e conseguiu matar mais de uma dúzia antes de ser ela
própria abatida a tiros” (p.165)
- “A reação americana mais fundamental (pelo menos) desde a Guerra do Vietnã não
seria a surpresa de saber que não são amados pelos que estão fazendo pelo mundo?
Tentamos ser bons, ajudar os outros, trazer a paz e a prosperidade, e veja só o que
recebemos em troca...” (p.168)
- “[...] abordagem da cultura contemporânea que passava ao largo da doxa pós moderna
própria ao relativismo reinante. Via fundada em um duplo recurso, em que um certo
resgate da tradição dialética hegeliana se encontra com uma, até então inédita, ‘clínica
da cultura’ de orientação lacaniana” (p.180)
- “[...] o que realmente marca Zizek é sua maneira de recorrer à psicanálise e à tradição
dialética a fim de resgatar o projeto racionalista moderno com suas aspirações de
aspirações de emancipação e reconhecimento, assim como sua força crítica da
alienação” (p.180)
- “É exatamente neste ponto que entra o Lacan hegeliano de Zizek. O filósofo esloveno
percebeu rapidamente que a leitura dialética de Lacan poderia fornecer uma teoria do
sujeito prenhe de consequência políticas e apta a guiar práxis sociais na
contemporaneidade” (p.182)