Tese Julio Augusto Xavier Galharte
Tese Julio Augusto Xavier Galharte
Tese Julio Augusto Xavier Galharte
DESPALAVRAS DE EFEITO:
OS SILÊNCIOS NA OBRA DE MANOEL DE BARROS
SUMÁRIO
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS................................................................................216
FILMOGRAFIA............................................................. .................231
Palavras chave:
Silêncios – Poesia – Cinema – Manoel de Barros – Literatura
comparada
ABSTRACT
Key words:
Silences – Poetry – Cinema – Manoel de Barros – Comparative
Literature
AGRADECIMENTOS
Certa vez, Drummond afirmou que Barros era o maior poeta vivo do Brasil.
É bem possível que a força e a qualidade poéticas em Manoel, notadas por
Carlos, devam-se em parte aos silêncios que há nos escritos do autor de Livro
sobre nada, cujo nada, inclusive, é definido como um alarme para o silêncio. (LN
– 7).
Os mutismos pululam não só nos já mencionados Concerto a céu aberto
para solos de ave e Livro sobre nada, mas estão em toda a obra de Barros: em O
guardador de águas, Bernardo prende o silêncio com fivela (GA – 35) e sem
mexer com a boca ele tira ardor de pétalas (GA – 35); na Gramática expositiva
do chão, o homem de lata/ se faz um corte/ na boca/ para escorrer/ todo o
silêncio dele (GEC – 27); em Poesias, lê-se: Ai, sossego de terras pisadas por
mim.../ E os silêncios caídos como folhas/ Nos limites de uma tarde aberta... [P –
85].
Largos Silêncios
interpretativos,
Adoçados por funda nostalgia,
Balada de consolo e simpatia
Que os sentimentos meus torna
cativos;
O que é o silêncio?
É melhor reelaborar a pergunta, questionando o que são os silêncios,
pois, assim como na palavra, também na sua ausência podem habitar
variadíssimas significações. Theodor Reik, em seu ensaio “No início é o
silêncio”, apresenta um rol de significados para o mutismo, afirmando que
ele pode ser frio ou aprovador, opressor ou humilde, provocante ou
apaziguador, implacável ou indulgente [Reik, 1989, p. 19].
Assim, os mutismos podem ter sentidos positivos ou negativos e, em
várias passagens de Crime e castigo, de Fiódor Dostoievski, surgem alguns
silêncios muito próximos aos listados por Reik, como o opressor, o
provocante e o implacável.
Raskolnikov assassina as irmãs Aliena e Lisavieta, mantendo por
muito tempo silêncio sobre seu ato, mas sua mãe desconfia que há algo de
errado com o filho e o seu mutismo: Fez-se silêncio. Havia qualquer coisa de
tenso em toda essa conversa, no silêncio, [...]. [Dostoiévski, 2002, p. 238].
Um dia o protagonista do romance vai até o local do crime: Eis
também o terceiro andar; seguir ou não adiante? E que silêncio faz lá, dá
1
O título desta seção foi inspirado no célebre verso de Olavo Bilac: Ora, direis, ouvir
estrelas.
9 9
até medo... [Dostoiévski, 2002, p. 286]. O chefe de instrução, Porfiri
Pietróvitch, por causa de vários indícios, tem certeza de que o assassino é o
estudante. Assim, o silêncio sombrio [Dostoiévski, 2002, p. 276] entremeia
suas conversas, plenas de atritos.
Raskolnikov usa o mutismo como proteção e provocação:
De quando em quando lhe dava vontade de lançar-se
sobre Porfiri e esganá-lo ali mesmo. [...]. Sentia os
lábios ressecados, fisgadas no coração, espuma
coagulada nos lábios. Mas ainda assim decidiu calar e
por ora não pronunciar uma só palavra. Compreendeu
que essa era a melhor tática em sua situação, porque,
além de não deixar escapar nada, ainda iria irritar com
o silêncio o próprio inimigo e, quem sabe, este ainda
acabaria deixando escapar alguma coisa. [Dostoiévski,
2002, p. 351].
2
A pesquisadora comenta o quadro: No mito, a significação prescinde da explicação cabal
de seus modos de significar. Já na tragédia essa explicitação começa a se alargar. [...]. No
caso da filosofia, se passa para um outro discurso, em que se tematiza vastamente o
sentido em sua relação com o ser. Percurso que desemboca nas Ciências Sociais e
Humanas, que se instituem em várias disciplinas diferentes com distintos objetos e
discursos diversos para falarem dessa mesma coisa. Dominado pelas múltiplas
metalinguagens, o fato tem de significar nas diferentes “explicações” que, por sua vez, o
povoam de muitos signos. Exílio do silêncio. [Orlandi, 1993, p. 38-39].
16 16
semânticas da inarticulabilidade na obra andradiana, pois nos “Poemas da
negra”, o sujeito poético afirma que há o mutismo exaltado dos astros
[Andrade, p. 251] e que existe um silêncio nortista muito claro [Andrade, p.
267]. Já em “Atrás da Catedral de Ruão”, de Contos novos, aparecem o
silêncio infeliz [Andrade, 1993, p. 58], os silêncios desagradáveis (Andrade,
1993, p. 63) e o silêncio torvo [Andrade, 1993, p. 69]. No poema “O grifo da
morte”, do Livro azul, aparece o silêncio monótono e, em Clã do jabuti,
surge o silêncio fresco da noite deserta [Andrade, p. 179]. Nesta obra, o
mutismo, ao deslocar-se por Belo Horizonte, muda de sentido de acordo
com os espaços pelos quais passa: Silêncio brincalhão salta das árvores,/
Entra nas casas desce as ruas paradas/ E se engrossa agressivo na praça do
Mercado. [Andrade, p. 184].
No poema “Danças”, o sujeito poético afirma: Converso pouco e
escuto muito [Andrade, 222] e no “Improviso do mal da América”, do
mesmo autor, vem a afirmação: meus ouvidos vão escutar amorosos/ Outras
vozes de outras falas, de outras raças, mais formação, mais forçura.
[Andrade, p. 266]. Em ambos os casos, está evidenciado o silêncio da
escuta.
Macunaíma celebra a dedicação do seu autor em emudecer para ouvir
o Brasil, já que palavras e expressões de diferentes regiões nacionais
aparecem no livro, como do Rio Grande do Sul (piá), de Minas Gerais
Gerais (trens – no lugar de coisas), e do Nordeste (tem mais não, indicando
o fim da história).
Uma das reivindicações mais incisivas de Oswald de Andrade era que
gramáticos e filólogos silenciassem para ouvir o dizer popular, como fica
patente no poema “Pronominais”, do autor de Memórias sentimentais de
João Miramar.
A mesma reivindicação é feita por Mário no artigo “A língua nacional”;
depois de elogiar a mudança à época de alguns filólogos que passaram a
valorizar o dizer popular, nota que o trabalho não está completo: Agora só
nos falta o passo definitivo, que será ver tais e tão doutos filólogos
“errarem” também a colocação dos seus pronomes. “Me parece” que nada
17 17
mais poderíamos desejar então... [Andrade, 1993, p. 178].
Em outro local, a Rússia, e num diverso tempo, o século XIX, Nikolai
Gógol já registrava discursos populares. Mikhail Bakhtin notou a
importância da escuta para os textos desse autor, mostrando que ele era um
exímio audiente das histórias do povo difundidas em feiras e festas.
[Bakhtin, 2002, p. 430].
Bakhtin e sua teoria da paródia [o parodiar é a criação do duplo
destronante, do mundo “às avessas”3] são usados por Arlete Cavaliere, em
seu ensaio “A magia das máscaras”, para analisar “O nariz”, de Gógol.
Arlete observa que os elementos paródicos da narrativa estão
presentes nos vários “cantos paralelos” [vide noção de paródia de Haroldo
de Campos], que se apresentam no espaço do jornal e o vozerio popular, no
dizer textual [o do narrador], no falar de Kovalióv, na voz do nariz, com vida
própria, na presença do discurso auto-reflexivo sobre a própria narração,
etc..
Em “A terrível vingança”, outra narrativa gogoliana, segundo Arlete,
ocorre a presença da História (já que são contados os conflitos entre
cossacos e poloneses/turcos) e do Mito: O mergulho gogoliano no passado
histórico russo o arrasta à esfera mítica. Vimos que o mundo de “A terrível
vingança” é “explicado” expressamente no epílogo, pela voz do bandurrista
que menciona a lenda eslava sobre a traição e inveja entre dois cossacos
irmãos, lenda calcada na mitologia eslava pagã através da figura do
bogatir, o cavaleiro que cavalga as montanhas dos Cárpatos.[Cavaliere,
1990, p. 173-174].
O silêncio da escuta tem destaque no conto “Um casal à moda antiga”,
de Gógol. Nessa narrativa, aparecem Pulkéria e Atanásio, que viviam sob
um encanto inexpremível [Gógol, 1974, p. 70] em sua propriedade, sempre
invadidos por uma sensação deliciosa de quietude [Gógol, 1974, p. 70].
O casal era muito afeito ao mudo ouvir principalmente quando um
deles se dispunha a contar histórias: Atanásio Ivanovitch gostava de estar
sentado curvado e tinha um sorriso quase permanentemente nos lábios,
3
[Cavaliere, 1990, p. 110]
18 18
quer quando contava uma história, quer quando se limitava a escutá-la.
[Gógol, 1974, p. 71].
Atanásio adorava visitas para justamente colocar em ação o exercício
da escuta silente; assim, ele se punha curvado sobre a cadeira, com um
eterno sorriso nos lábios, a escutar muito atento, a beber gulosamente as
palavras do seu hóspede. [Gógol, 1974, 83]. A muda audição permite ao
casal ouvir a fala e o canto da sua casa: A verdade é que cada porta tinha o
seu cantar próprio: a porta do quarto de dormir tinha uma voz aguda de
tenor, a da sala de jantar a voz roufenha dum baixo, a da antecâmara
produzia um som estranho, frágil, queixoso, que escutado com atenção se
acabava por distinguir claramente: pobre de mim, estou gelada.” [Gógol,
1974, p. 74].
A novela O capote é resultado do silencioso e proveitoso ouvir de
Gógol, já que a história escrita foi inspirada em uma outra, oral, que chegou
aos ouvidos do autor: um homem muito economiza o pouco que ganha para
comprar uma espingarda de caça, que é roubada no mesmo dia em que é
adquirida.
O capote conta a história de Akaki Akakievitch, funcionário público que,
depois de investir o pouco que ganhava na reforma de seu capote, vê essa
querida peça de seu vestuário ser roubada em uma praça. Ele se dirige ao
chefe de segurança do município, que o deixa na sala de espera, dias
seguidos, sem atendê-lo: os pequenos são ignorados e seus direitos são
negados. Akaki morre de desgosto e reaparece, em forma de espectro, ao
chefe de segurança, que se desespera numa corrida movida pelo medo e
pela culpa de não ter ouvido o funcionário público4.
O silêncio da escuta, o engrandecimento dos pequenos e o destaque à
4
Victor Brombert, no terceiro capítulo do seu Em louvor de anti-heróis, chama a atenção
do leitor para um personagem secundário, mas importante na narrativa: um rapaz recém-
nomeado na repartição que está prestes a caçoar de Akaki, no entanto, ao se dirigir a ele
ocorre uma verdadeira revelação proveniente de uma força “sobrenatural”
(“neeste'stvennaia”) que permite-lhe ouvir outras palavras por trás do pedido banal de
Akáki para que o deixem em paz. O que o rapaz ouve são as palavras profundas e
pungentes, não pronunciadas mas ressoantes de dolorosa significação: “Eu sou teu irmão”.
E com esta voz saída de trás da voz vem a chocante percepção de quanta “desumanidade”
há nos seres humanos, quanta brutalidade se esconde no que passa por ser sociedade
civilizada e comportamento civilizado. [Brombert, 2001, p. 47].
19 19
fantasmagoria são heranças deixadas a um outro autor russo: Fiódor
Dostoievski. Certa vez, o autor de Humilhados e ofendidos afirmou: Todos
nós viemos do Capote de Gógol.
O audiente mutismo é muito recorrente na obra de Guimarães Rosa.
Os animais da mata escura são alvo dos ouvidos de alguns personagens da
novela “Buriti”: bastando a gente guardar um pouco o silêncio, e o confuso
de sons rodeava, tomava conta. [...]. Da treva, longe submúsica, um
daqueles acreditava perceber também, por trás do geral dos grilos, os
curiangos, os sapos, o último canto das saracuras e o belo pio do nhambú.
[...]. Miguel assestara o ouvido. Orgulhava-se de ainda entender o mundo
de lá. [Rosa, 2006, p. 630]. Ao assestarem o ouvido, em pleno breu noturno
do sertão, Miguel e outros caçadores se dispõem a separar os sons,
tentando reconhecer os bichos que os emitem. Mas quem consegue fazer
isso com maestria, acertando sempre, é Zequiel, o chefe, em suas noites de
insônia. Ele, segundo o narrador, é o homem que chamava os segredos
todos da noite para dentro de seus ouvidos. [Rosa, 2006, p. 657].
O Chefe não sabe ler, mas é o mestre do competente ouvir. Em certa
passagem do escrito, Maria da Glória pergunta: - Que é que adianta,
escutar, essas noites em que o que tem é só chuvarada de chuva? [Rosa,
2006, p. 744]. A resposta do chefe é: Ah, nhãnão, sinhazinha: tem muitas
toadas de chuvas diferentes. [Rosa, 2006, p. 745].
Outro personagem desse texto rosiano, imerso no seu silenciosão
[Rosa, 2006, p. 645], é Iô Liodoro, que se põe a escutar, quieto, as conversas
de suas filhas Maria da Glória, Maria Behú, do amigo Gual e da enteada
Lala. Assim, Liodoro com os ouvidos atentos e com a boca cerrada é um
mistério para os outros, que não conhecem seus pensamentos: ele era
quieto e opaco [Rosa, 2006, p. 686].
Os mutismos têm grande importância em “A menina de lá”, do livro
Primeiras estórias, já que em muitas situações Nhinhinha põe-se avessa à
fala: Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não
incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma,
imobilidade e silêncios. [Rosa, 1988, p. 22].
20 20
Essa criança oscila entre o verbo osbscuro e a mudez:
Não que parecesse olhar ou enxergar de
propósito. Parava quieta não queria bruxas de
pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha
onde se achasse, pouco se mexia. - “ninguém
entende muita coisa que ela fala...” - dizia o Pai,
com certo espanto. Menos pela estranhez das
palavras, pois só em raro ela perguntava, por
exemplo: - Ele xurugou?” - e vai ver, quem e o
quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do
juízo ou enfeitado do sentido. (Rosa, 1988, p. 22)
MUDEZ NA MIRA
5
Devo a Mariarosaria Fabris a indicação desse periódico.
6
Quando ocorre a invenção do cinema falado, há uma grande divisão entre os cineastas:
alguns acreditavam que a palavra empobreceria a comunicação fílmica, como Charles
Chaplin, por exemplo.
32 32
O olhar pode, por exemplo, ser o indicativo da morte de um corpo,
como mostra Laura Mulvey, no seu livro Death 24x a second: stillness and
the moving image. A estudiosa mostra que em “Psicose”, de Hitchcock7, a
morte revela-se na personagem estática em baixo da água movente do
chuveiro, mais especificamente nos seus parados olhos.
Nesse sentido, há um exemplo nacional digno de destaque; em 1965,
no filme Grande sertão: veredas, adaptação dos irmãos Geraldo e Renato
dos Santos Pereira para o romance de Guimarães Rosa, um dos integrantes
de um bando de sertanejos, interpretado por Milton Gonçalves, é alvejado
por jagunços inimigos. Ele, ao morrer nos braços de Riobaldo (Maurício do
Valle), tem um close nos olhos estatelados e pétreos em contraposição aos
olhos de Riobaldo que se dirigem para frente e, depois, para os lados. Nesse
caso, o movimento ocular acusa a presença da vida de alguém que ao mirar
sua frente se certifica da morte do outro e, ao fitar os lados, pensa nas
significações e dimensões do óbito.
A imobilidade e o movimento serviram de base para um curta-
metragem de Roberto Santos, de 1969, no qual o foco era também Grande
sertão: veredas. O filme “A João Guimarães Rosa” foi feito a partir de closes
parados e moventes de fotografias de Maureen Bisiliat, mostrando o sertão
brasileiro, enquanto se ouvem trechos escolhidos por Roberto da obra
rosiana mencionada.
O comunicativo olhar de Maria Schell fez com que ela se tornasse a
grande estrela de Noites brancas, de Luchino Visconti. Paulo Emílio Salles
Gomes, em seu ensaio “Infidelidades de Visconti”, observa que na
viscontiana adaptação cinematográfica para a novela de Fiódor Dostoiévski,
o foco das atenções sai do personagem masculino (que é também narrador
no texto do autor russo) para recair, no filme, sobre a personagem feminina,
Nastienka, que se torna Natália, com alto poder de silenciosa expressão em
seu rosto. A atriz Maria Schell surpreendeu em sua interpretação, criando
problemas ao diretor, sempre devido ao excesso e nunca à falta de
expressão [...]. Paulo Emílio afirma que Visconti se propôs a valorizar ao
7
Esse diretor explorou o tema do mutismo em seu filme “I confess”, de 1953, traduzido no
Brasil como “A tortura do silêncio”.
33 33
máximo os belos olhos da atriz. O título brasileiro da película, [logo que foi
lançado no Brasil] “Um rosto na noite”, tem sua razão de ser: durante uma
hora e tanto a fisionomia de Maria Schell não nos dá trégua e é inutilmente
que ansiamos por um instante de contemplação pacífica. [Gomes, 2002, p.
29].
No poema “Piedosa”, de Cruz e Sousa, exalta-se o silêncio ligado ao
olhar: Sinto os teus olhos fluidos, de onde emerge/ Uma graça, uma paz,
tamanho encanto. Na poética do Cisne Negro, por meio da mirada do outro,
pode-se avistar um tempo e um espaço diferentes:
OLHOS
A Grécia d’Arte, a estranha claridade/ Daquela
Grécia de beleza e graça,/ Passa, cantando, vai
cantando e passa/ Dos teus olhos na eterna
castidade. [...] Da Atena flórea todo o viço louro/ E
as rosas e os mirtais e as pompas douro,/ Odisséias
e deuses e galeras.../ Na sonolência de uma luz
aziaga,/ Tudo em saudade nos teus olhos vaga,/
Canta melancolias de outras eras... [Sousa, 2000,
p. 153].
índios, como Hans Staden, citado nesta nota de Ubirajara: Mal nascia a criança logo se
lhe punha nome. Hans Staden achou-se presente numa dessas ocasiões. Convocou o pai
aos mais próximos vizinhos de dormitório, pedindo-lhes para o filho um nome viril e
terrível: não lhe agradando nenhum dos propostos, declarou que ia escolher o de um de
seus quatro antepassados, o que daria fortuna ao rapaz, e repetindo-o em voz alta o
mancebo que aos seus títulos ia acrescentando um por inimigo que trazia para casa a
ser imolado. Também a mulher tomava adicional apelido quando o marido dava uma
festa antropófaga. De objetos visíveis se tirava o cognome, determinando o orgulho ou a
ferocidade a escolha. [Alencar, 1980, 13-14].
43 43
Toda a arte de Kafka consiste em obrigar o leitor
a reler. Os desfechos de suas histórias – ou sua
falta de desfecho – sugerem certas explicações,
mas estas nunca são claras o suficiente. Somos
pois obrigados a reler suas histórias de um novo
ângulo do qual estas explicações podem parecer
melhor justificadas. Algumas vezes há uma dupla
ou tríplice possibilidade de interpretação, daí a
necessidade de duas ou três leituras. [Camus,
apud: Barbosa, p. 61-62].
O narrador conta que esse seu amigo inventou uma nova língua,
chamada desesperanto, e que, quando falava português, muitas pausas
entrecortavam seu discurso. Tais pausas podem ser lidas como lacunas
semânticas que pedem a complementação do ouvinte. O próprio romance é
assim: pleno de espaços em branco, deixados à disposição de quem lê para
sua complementação com palavras, interpretações.
O filósofo Sciacca afirma: Aquilo que eu escrevo parte do silêncio
intraduzível e retorna, como palavra, no silêncio de quem está lendo,
fermentando palavras novas diferentes das minhas. [Sciacca, p. 30].
O dizer silencioso que se faz no intervalo é comentado por Orlandi: o
silêncio é a “respiração” (o fôlego) da significação; um lugar de recuo
necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido.
[Orlandi, 1995, p. 13].
44 44
Eni afirma que esse silêncio lacunar ou elíptico ocorre com muita
freqüência em tempos de censura política. A estudiosa mostra que, para
fazer uma crítica ao regime ditatorial e militar brasileiro, os artistas
serviram-se do não-dito, do implícito, como J. J. Veiga, em Sombras de Reis
Barbudos, já que, com sutileza, a atmosfera dos tempos da ditadura é
referida na separação entre os homens por meio de muros que se erguem. A
arbitrariedade dos governantes e a sua constante ameaça são
metaforizadas, no romance, pela proibição de plantio de legumes no quintal.
[Orlandi, 1995, 118-119]. A crítica observa que técnicas parecidas são
usadas por Chico Buarque nas suas letras de músicas desse período.
Com relação ao célebre músico, isso foi reiterado por Adélia Bezerra
de Meneses, em Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque.
Nesse estudo, a crítica observa que a palavra cálice da famosa canção desse
compositor, em parceria com Gilberto Gil, pode ser ouvida como cale-se e
aponta os possíveis sentidos desse mutismo: Evidentemente, num primeiro
nível, uma decodificação político-social do poema se impõe, e é cristalina:
trata-se do silêncio imposto, da Censura do Governo Médici (o poema é de
73) que silencia a voz do poeta. Mas não apenas a ela: o arbítrio da
representação silencia – no limite com o silêncio definitivo da morte – todos
aqueles que ousassem falar. [Meneses, 1982, p. 95].
Adélia compara esse mutismo que se afigura, conforme a letra de
Chico, como o monstro da lagoa, com as imagens de um conto de Edgar
Alan Poe chamado “O silêncio”. Nele, o narrador afirma que o demônio uma
vez contou-lhe uma de suas experiências: estava às margens do rio Zaire, na
Líbia, quando viu gravada num rochedo a palavra DESOLAÇÃO. Desceu
para o pântano e viu um homem que impôs a “maldição do tumulto” a todos
os elementos da natureza que começaram a emitir altos ruídos. Em seguida,
irritado, aquele homem lançou a “maldição do silêncio” e as letras do
rochedo mudaram para SILÊNCIO. O final se dá com estas palavras do
demônio: E o homem estremeceu, voltou o rosto e pôs-se em fuga,
precipitadamente; e nunca mais o tornei a ver. [Poe, apud: Meneses, 1982,
p. 98].
45 45
À escrita de Chico Buarque adequam-se as palavras de Roland
Barthes, em “Escrever a leitura”: Ao ler, nós também imprimimos certa
postura ao texto, e é por isso que ele é vivo. Ou seja, o teórico francês se
refere ao vívido dinamismo de alguns textos que convidam o leitor a
participar da sua construção semântica.
A idéia do livro vivo já havia sido divulgada anteriormente por John
Milton, mas num outro sentido: Livros não são coisas absolutamente
mortas: contém um espécie de vida em potência tão prolífica quanto a da
alma que os engendrou. E mais: eles preservam, como num frasco, o mais
puro e eficaz extrato do intelecto que os produziu.
A potência da leitura é comentada por vários escritores que
manifestam a sua paixão pelos livros11; Carlos Drummond, por exemplo,
refere-se a eles como amigos, na crônica “O sebo”: Para onde foram os
livros usados, os que tinham na capa esse visgo publicitário, as brochuras
encardidas, as encadernações de pobre, os folhetos, as revistas do tempo de
Rodrigues Alves? Tudo isso também é gente, na cidade das letras, [...]. Vem
para a minha estante, Marcelo Gama, amigo velho, ou antes, volta para ela,
de onde não devias ter saído12.
Marcel Proust, em Sobre a leitura, também menciona esses
companheiros que se dispõem em estantes, mas aponta uma diferença entre
os amigos de papel e tinta com relação aos de carne e osso: Esses amigos
[os livros], se passamos a noite com eles, será porque realmente temos
vontade de fazê-lo. Não os deixamos, pelo menos estes, senão com remorso.
Os olhos servem para ler livros ou corpos. A silenciosa comunicação
facial, por exemplo, foi alvo de estudo do Abade Dinouart, no século XVIII,
11
Título de uma obra que coleta depoimentos, crônicas, poemas e outros tipos de textos
nos quais seus autores mostram sua afeição pelo ato de ler.
12
A “paixão pelos livros” se deixa ver/ler em um outro texto de Drummond, a “Biblioteca
verde”: Papai, me compra a Biblioteca Internacional de/ Obras Célebres./São só 24
volumes encadernados/ em percalina verde./ Meu filho, é livro demais para uma
criança./ Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo./ [...]/ Rio de Janeiro? Aqui é o
Coronel./ Me mande urgente sua Biblioteca/ bem acondicionada, não quero defeito.[...]/
Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,/ fino caixote de alumínio e pinho./ [...]./ Chega
cheirando a papel novo, mata de pinheiros toda verde. / [...] leio, leio. Em filosofias/
tropeço e caio, cavalgo de novo meu verde livro, em cavalarias/ me perco, medievo; em
contos, poemas me vejo viver. Como te devoro, verde pastagem. Ou antes carruagem/ de
fugir de mim e me trazer de volta à casa a qualquer hora num fechar de páginas/[...].
[“Biblioteca verde”, de Carlos Drummond de Andrade].
46 46
em seu texto, A eloqüência do corpo. O estudioso afirma: [os mais
ignorantes] reconhecem no rosto a devoção, a dissipação, a alegria, a
tristeza, a cólera, a compaixão.13
Assim, a face pode, sem a palavra, expressar-se, como se nota nesta
passagem de Lavoura arcaica: que rostos mais coalhados, nossos rostos
adolescentes em volta daquela mesa [Nassar, 1982, p. 41].
As mãos, também, no seu silêncio, manifestam sentidos, como mostra
Michele Federico Sciacca, em seu livro Linguagem e silêncio: Um gesto das
mãos seguidamente traduz melhor a plenitude silenciosa de nossa
interioridade. [Sciacca, 1966, p. 39].
Em Lavoura arcaica, aparecem as mãos terníssimas [Nassar, 1982, p.
58] ou as mãos entregues a um gesto fúnebre [Nassar, p.125] ou
empenhadas em um gesto de reprimenda [Nassar, 1982, p. 41]. Essa parte
do corpo manifesta o estado de espírito do seu portador: Sua mão [do irmão
do narrador] [...] se retraindo calada e pressurosa, era a mão assustada da
família saída da mesa dos sermões. [Nassar, 1982, p. 41].
Essa obra de Raduan Nassar e também Um copo de cólera tiveram
adaptações cinematográficas. No caso de Um copo de cólera, a proximidade
do discurso dos personagens com a linguagem fílmica é mencionada por
eles próprios: enxotado pela consciência coletiva, que jamais tolera o fraco,
você só tinha de morar no mato; [...], só podia ser este o teu ‘destino’: viver
num esconderijo com alguém da tua espécie – Lúcifer e seu cão hidrófobo...
que pode até dar fita de cinema... há-há-há... [Nassar, 1995, p. 64].
Outros sentidos são possíveis para os muitos silêncios e alguns deles
foram percebidos na obra de Manoel de Barros, se bem que por
pouquíssimos críticos, como será visto na próxima seção.
13
[Dinouart, L´éloquence du corps, p. 22. Apud: Courtine, Jean-Jacques & Haroche,
Claudine. “Apresentação”, In Dinouart, 2001, p. XXVII].
47 47
14
Essa lista pode ser atualizada com a inclusão do nome da cantora e compositora Ana
Carolina que, na faixa “Notícias populares”, do seu CD “Dois quartos”, lançado em 2006,
canta: Tudo se acaba, olha o noticiário/ Água se acaba, se acaba a prece do vigário/ Eu
quero ser a mendiga suja e descabelada/ Dormindo na vertical/ E entender como a vida
de alguém se acaba antes do final/ Prefiro Lou Reed no Velvet Underground; gosto de
Sylvia Plath, T. S. Eliot, Emily Dickinson, Lucinda, Adélia, Manoel de Barros/ Serão
eternos pra mim. [Ana Carolina].
51 51
Entre um filme e o outro, houve um considerável aumento de
interesse pelos escritos de Barros, pois se até o final dos anos 80, época de
“Caramujo-flor”, os leitores eram poucos e eram escritos escassos artigos
de jornal ou revista sobre o poeta, isso muda a partir da década seguinte, e
da posterior (quando é lançado “500 almas”), pois o público leitor aumenta
e surgem não só artigos na imprensa como também ensaios mais detidos
sobre a obra do autor; além disso, aumenta consideravelmente o número de
dissertações e teses sobre ele.
Esse recente, mas expressivo, interesse sobre o poeta, verificado na
produção crítica sobre sua obra, pode ser constatado em uma Dissertação
de Mestrado, voltada para a recepção da sua obra: O inventário
bibliográfico sobre Manoel de Barros, de Walquíria Gonçalves Béda,
defendida em 2002, na UNESP, campus de Assis. O trabalho é dividido em
duas partes, na primeira aparecem resenhas de Walquíria a partir dos
textos sobre Barros e, na seguinte, são anexados os ensaios e as entrevistas
mais representativos.
Há, também, leitores de Barros no exterior, como os franceses, pois
alguns de seus poemas foram lançados em uma coletânea, organizada por
Renata Pallottini, que assina a introdução, na qual afirma: Le poéte, née en
1916, reste fidèle à la beauté de sa terre natale et écrit une poésie
originale, tellurique, pleine de souvenirs de ses fleuves et de son peuple.15
A revista francesa Infos Brésil publicou o artigo “L'exercice poétique
de l'innocence”, no qual se lê: Les poèmes de Manoel de Barros sèduisent
dès la première lecture par leur fraîcheur, leur candeur, leur noveauté. [...].
Ses poèmes sont extrêmement travaillés, polis même dans leur apparent
spontanéité. [INFOS BRÉSIL, apud: Castro, 1992, p. 61-62].
O livro das ignorãças foi traduzido para o francês, o que foi
comentado pelo seu autor: “La Parole sans limites” está bem traduzida.
Gostei. Virei um cuiabano em Paris. [Barros, apud: Alves, 2003].
Na Itália, Ana Thereza Vieira publicou uma coletânea de poemas de
autores brasileiros contemporâneos, que ela traduziu para o latim. O título
15
Pallottini, Renata. Anthologie de la poésie brésilienne. Tradução: Isabel Meirelles.
Édition bilingue. Paris, editions Chandeigne, 1998, p. 343, apud: Vasconcelos, 2002, p. 8.
52 52
do livro é Rotae temporis e entre os autores incluídos estão Adélia Prado,
Ferreira Gullar e outros. A tradutora escolheu, de Manoel de Barros, um
trecho do livro Poesias, intitulado “Fragmentos de canções e poemas”, que
passou a ser “Fragmentis canticorum et carminum”. Cito dois trechos em
que aparece o silêncio:
[...]. Aperta/ sum, ut nocturna folia,/ ad astra. Os
meum taciturnum.
[Aberta estou, com pétalas, noturnas, para os
astros. Minha boca silenciosa]. [Barros, apud:
Vieira, 2001, p.74-75].
16
Pode-se pensar em uma outra diferença entre os escritores: no imaginário místico
rosiano, influenciado por várias crenças, entra a referência ao diabo, enquanto na obra
manoelina esse termo só aparece na forma de substantivo composto: pobre-diabo.
56 56
diferença entre eles é também apresentada: Enquanto a poesia de Barros é
feita de coisas em estado de natureza, a de Haroldo de Campos pesquisa
galáxias cristalinas. [Costa, 1997, p. 163].
Giovanni Ricciardi, no ensaio “A lesma e o Pau-mulato: dois projetos
para uso da natureza”, associa Barros ao escritor paraense Benedito
Monteiro, no sentido de que ambos têm a noção de desgaste da palavra e
que para renovar a linguagem é preciso inserir na escrita, respectivamente,
a fala do pantaneiro e o dizer do homem amazônico.
17
Barros em entrevista a José Castelo (18/10/1997), O Estado de São Paulo, apud:
Landeira, 2000.
60 60
Landeira nota também o Manoel leitor dos dicionários, valorizando a
observação de Cynara de Meneses: ela viu na estante do autor um
dicionário ‘desbeiçado’ e com a lombada torta [apud: Landeira, 2000] por
causa do seu uso freqüente.
Alguns críticos escreveram na orelha dos livros de Barros questões
dignas de serem mencionadas, como Anna Regina Accioly, em Gramática
expositiva do chão. A crítica destaca a importância da releitura dos escritos
manoelinos: Manoel de Barros descobriu o milagre da multiplicação das
leituras: sua poesia não se esgota, e maravilha sempre quem a lê, com
encanto impossível de se acabar [Accioly, orelha de GEC].
Talvez o movimento da releitura seja requerido pela complexidade do
texto manoelino em si, pleno de neologismos e de palavras arcaicas. O
talento manoelino de criar novas palavras e retomar as que não são muito
usadas contemporaneamente foi ressaltado por Antonio Houiass, no texto-
orelha da primeira edição de O guardador de águas, publicado pela Art
Editora, em 1989. O crítico e filólogo afirma: Manoel de Barros é um
usuário ou utente ou utilizante ou criante de palavras – havidas, havíveis –
que sangram, sorriem, safadeiam, sacaneiam, lirizam, luziluminam que
convidam o leitor a gozar – na bruteza da vida que corre – a infinita graça
da disponibilidade mental para o gratuito. [Houaiss, orelha de GA].
Um outro motivo para a necessidade das releituras do texto manoelino
pode ser encontrado no comentário de Lucia Castello Branco na orelha de
Livro sobre nada: as armadilhas verbais e as diversas referências a outros
escritos: Ali nos litorais da escrita, um lápis atravessa a paisagem da
memória: corta, recorta, assinala, sublinha, rasura. São epígrafes, citações,
referências, notas de pé de página que oferecem falsas pistas ao leitor,
traçando o movimento de uma segunda mão que escreve, nos espaços
paratextuais, o desnome desse sujeito poético desacontecido. [Branco,
orelha de LN].
Lucia afirma ainda que naquele livro a primeira pessoa se evidencia
seja quando o poeta cita seus próprios versos de obras anteriores, seja
quando o nome próprio do autor se assina em “idioleto manoelês archaico”.
61 61
Mas, se o que se escreve é um desnome que aponta, não só para a
vacuidade – o nada -, como para a alteridade - “o melhor de mim sou Eles” -,
o “eu” afinal não passa de mais um dos retratos que o lápis esquecido na
península da memória será capaz de inventar. [Branco, orelha de LN].
Adalberto Müller Júnior, no texto-orelha “Em pleno uso de poesia”, do
livro Matéria de poesia, afirma que Barros mantém a frase num espaço de
tensão permanente entre o obscuro e o iluminante, dando no leitor a
sensação de que foi quebrado “quebraram dentro dele um engradado de
estrelas”. [Müller Júnior, orelha de MP].
O crítico afirma ainda que em sua obra aparecem diversos tipos de
“loucos de água e estandarte”, andarilhos-poetas que perambulam num
mundo às avessas, vivendo numa espécie de terceira margem entre o
mundo e o imundo, entre o primitivo e o civilizado. [Müller Júnior, orelha de
MP].
Ana Miranda, na orelha de Tratado geral das grandezas do ínfimo,
destaca o ver: Você vai voar um vôo de conhecer um mundo que fica não só
lá embaixo na terra, no caracol, no pantanal e nem nas nuvens que correm
o céu todo do azul, mas um mundo que nunca esteve em lugar algum,
porque está só nas rodas de vidro dos olhos do passarinho porque este
passarinho sabe tudo o que não vê, e o que não é, por tanto ser. Nos olhos
do passarinho tudo está, e o que é visto lá do alto no vôo explica tudo tanto
que o mistério abrirá o seu coração por palavras que são chaves que abrem
amores e lágrimas, e as palavras que ainda não nasceram e são todo o
impossível da vida e são a vida em orvalho, rastros, ventos, sonhos. [Ana
Miranda, na orelha de TGGI].
A crítica observa, também, a importância do silêncio da escuta: Você,
que vai ler este livro, [...]. Você escutará o silêncio das pedras, das águas
dos chapéus, e o silêncio do seu próprio vôo. [Ana Miranda, na orelha de
TGGI].
Nesses textos-orelhas mencionados, aparece uma questão importante
e pouco trabalhada pelos outros críticos: o efeito do escrito manoelino no
leitor. Já com relação aos outros ensaios, evidencia-se o próprio Manoel
62 62
leitor, seja de dicionários, de Vieira, de Caeiro, de Drummond e de outros, o
que não poderia ser diferente, pois a erudição manoelina não pode ser
ignorada.
A tese “A poética de Manoel de Barros e a relação homem-vegetal”
[FFLCH-USP], escrita em 2006 e defendida no ano seguinte, por Nery Nice
Biancalana Reiner trata da presença de elementos vegetais nos escritos
manoelinos, comparando-os com textos de Cecília Meireles, do escritor
moçambicano e de outros. Suas reflexões sobre esse assunto, tomando um
poema de O livro das ignorãças, serão mostradas no quarto capítulo desta
tese.
*****
Uso as palavras
para compor os meus silêncios.
[MII].
OBRAS SILENCIADAS
14
Mário-pega-sapo realmente existiu, como afirma meu pai, Julio Galharte, que sempre o via
pedir para entrar nos quintais de vários moradores da cidade de Corumbá, para pegar sapos; isso
ocorria principalmente em tempos de chuva. Era visto pelas esquinas acariciando os bichos.
54 54
[PCP- 40].
O olhar de Barros já era incansável na busca de livros nacionais e
estrangeiros bem como na busca de imagens das mais diversas artes visuais. Não
por acaso Pedro Lobo, ao compor a fotografia que estampa a capa das últimas
edições de Poemas... escolheu um olho para representar a obra. Olho que, com o
mundo em sua íris, alarga-se no mirar buscando letras, números e imagens do
universo com suas estrelas.
Em 1942, é publicado Face imóvel, que foi enviado por Barros a Mário de
Andrade, pois existe um volume dessa obra no acervo da biblioteca do autor de
Paulicéia desvairada, presente no Instituto de Estudos Brasileiros, na
Universidade de São Paulo.
Há uma dedicatória de Barros para Andrade, em que se apreende o silêncio
gestual e a inarticulabilidade da escuta de uma autor preocupado com a
oralidade (ler é ouvir):
Mario de Andrade, quantas vezes, nesta minha
admiração por você, fiquei vendo seus gestos de longe,
ouvindo sua voz... Parecia-me, a mim, que quem
escrevia aquelas coisas não era um homem de carne e
osso.
of. o autor Manoel de Barros. Rio, 16-10-42.
Escritório Irmãos Barros Ltda. Mato Grosso –
59 59
Corumbá.
O título desse livro de Barros dialoga com o de uma obra do célebre autor
modernista, pois ele já havia publicado, em 1941, o seu Poesias, reunindo textos
de Paulicéia desvairada, Clã do jabuti, Remate de males, A costela do grã cão e
Livro azul.
Uma outra obra também incluída em Poesias, de Mário, é O losango cáqui,
que é citada em Poesias, de Barros, de uma maneira peculiar: a forma
geométrica é a mesma, mas sua cor é mudada:
NA ENSEADA DE BOTOFOGO
Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja...
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.
no livro de Barros, pois, apesar de o título apontar para Poesias, há uma “Crônica
do Largo do Chafariz” e um conto, ou melhor, um continho:
CONTINHO À MANEIRA DE KATHERINE MANSFIELD
Perdera mais aquele seu dia encantador que, bem
usado, poderia, quem sabe? Transformar-se em
alguma coisa útil ou de cristal.
Perdera-o entre sonhos e perguntas.
E agora a noite era dos sapos.
E sua boca cheia quase foi entrando para o reino
vegetal, escorrendo seiva
E entoando sumarentos beijos. Ela desconfiava.
Os ramos sempre tratavam de adormecer os seus
pássaros, friorentos, agasalhando-os.
Dava vontade de saltar pelos muros do quintal
onde estava
Ganhar a rua e errar pelos cantos, entre
pessoas...
Os braços crescendo, espalhando-se, lavavam-na
toda de enormes silêncios.
Seus pés na areia fofa dormiriam... Como raízes?
Sombras acordavam nas trepadeiras.
Se os pensamentos tivessem voz despertariam
com certeza os galos nas cercas
E as borboletas no pé de tamarindo, e todos os
patinhos que estavam dormindo debaixo das árvores.
Lúcia passeia amorosamente seus dedos pelos
troncos revelhos, - e sobe.
Agora seu quarto parece impregnar-se de um
cheiro bom de mato...
Compêndio para uso dos pássaros foi publicado em 1961 e um volume dele
foi oferecido por Barros a Guimarães Rosa e está disponível no Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Na dedicatória, lê-se:
Ao meu amigo João Guimarães Rosa, êsses meus inhos
engenheiros, engenheirinhos. Com os agradecimentos
pela pg. 10 e um abraço do seu constante admirador
Manoel de Barros
Rio, 27, 6, 61
O silêncio lacunar que se faz nas frestas de uma palavra, está presente,
pois o termo repositório tende a gerar repercussões pedindo para o leitor
interpretá-lo.
Em Matéria de poesia, lê-se: É nos rotos que os passarinhos acampam! [MP
– 26]. Esse verso faz parte do poema “Com os loucos de água e estandarte” e,
nele, é mencionado reiteradamente um homem chamado João, que bem pode ser
o João de Cruz e Sousa, por causa desses rotos, já que eles estão presentes no
poema Litania dos pobres, do Cisne Negro: Os miseráveis, os rotos são as flores
dos esgotos/ São espectros implacáveis/ Os rotos, os miseráveis./ São prantos
negros de furnas/ Caladas, mudas, soturnas. [Sousa, 2000, p. 148].
Além desse João, ele pode ser também o Cabral de Mello, pois no poema há
muitas pedras e rio. Pode ainda ser o João Wenceslau, filho do autor cuiabano.
Um outro João seria o Guimarães, já que se lê: Gosto de santo e de boi.
Assim, João se abre para muitas possiblidades de sentido garantidas pelos
silenciosos zeros (João) que pedem complementação do leitor. O zero tem
graficamente grande proximidade com a letra O, talvez por isso Rimbaud
associou-a ao mutismo, no poema “Vogais”: A negro, E branco, I rubro, U verde,
O azul,/ Ainda desvendarei seus mistérios latentes [...]/ O, supremo Clamor cheio
de estranhos versos,/ Silêncios assombrados de anjos e universos;/ - Ó! Ômega, o
sol violeta dos Seus olhos! [Rimbaud, 1993, p. 37].
Há, também, em Matéria de poesia, a inarticulabilidade dos que não têm
voz socialmente:
As coisas jogadas fora
têm grande importância
72 72
É mostrado o que mais pode se tornar poesia: coisa ordinária, coisa sem
préstimo, caco de vidros, garampos (talvez seja uma forma popular ou
adulterada de grampos), retratos de formatura, o que não se pode vender no
mercado (como o coração verde dos pássaros), sapatos, adjetivos etc.
Em um trecho do livro, lê-se: Muita coisa se pode fazer pela poesia: [...].
Comer as botas, o resto em Carlitos. [...]. [MP – 15].
277] com a a cor do êxtase [GA – 285]. Está também nos mutismos dos quadros e
das esculturas de Amedeo Modigliani, associados às criações imagéticas dos
vôos das garças do Pantanal: De cantos portanto não é que se faz a beleza desses
pássaros. Mas de cores e movimentos. Lembram Modigliani. Produzem no céu
iluminuras. E propõem esculturas no ar. A elegância e o Branco devem muito às
garças. Chegam de onde a beleza nasceu? [GA – 271].
Em 1990, todas as obras de Manoel de Barros até então publicadas foram
compiladas num único volume intitulado Gramática expositiva do chão: poesia
quase toda, contando com a capa e as ilustrações de Poty.
Há uma introdução de Berta Waldman, na qual são apresentadas as
recorrências imagéticas e temáticas do escritor, além de apresentar o diálogo da
sua escrita com a de outros autores. O pantanal, segundo a crítica, é importante
fonte de inspiração para Barros já que é reino prenhe de riqueza visual, táctil,
olfativa [Waldman, 1990, p. 15], no qual se opera a passagem cíclica da morte à
vida, apontando para a constante mutação das coisas. [Waldman, 1990, p. 27].
Ao final do livro, são reunidas várias entrevistas por escrito de Barros; em
uma delas, publicada anteriormente no Correio Brasiliense, o autor comenta
sobre o seu silêncio em público:
Eu gosto de ser recolhido pelas palavras. E a
palavra falada não me recolhe. Antes até me
deixa ao relento. O jeito que eu tenho de me
ser não é falando; mas escrevendo. Palavra
falada não é capaz de perfeito.
Quando não se comunica pela escrita, ele o faz pela leitura: Pelo meu
temperamento de tímido, que é uma sem-graceira demais, nunca funcionou o
diálogo pessoal entre mim e os outros poetas. Senão que só pelo diálogo livresco.
[...]. Em livro sou íntimo deles, e os converso e os aprovo ou desaprovo, e rio
com eles. [PQT – 326]. A lista de autores citados por Barros, ao longo dessas
entrevistas compiladas, é enorme: Thomas Mann, Gilberto Freyre, Goethe,
Machado de Assis, Walter Benjamim, Cesário Verde, Federico Garcia Lorca, Leo
Spitzer, Casimiro de Abreu, Camilo Castelo Branco, Virgílio, Camões, Gaston
Bachelard, Homero, Mário de Sá Carneiro, Barthes, Aristóteles e outros.
76 76
Querido Manoel:
1 6
A expressão em itálico é de Regina Pontieri, que é título de seu livro publicado pela Editora
Perspectiva.
81 81
caras a ele: ver, rever e transver: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação
transvê./ É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades./
Fazer cavalo verde, por exemplo./ Fazer noiva camponesa voar – como em
Chagall./ Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar.
[LN – 75].
Assim, é preciso puxar o alarme do silêncio para desformar, feito Chagall. A
capa de Livro sobre nada traz aos olhos do leitor o silêncio da desforma de Wega
Nery e os seus “Pássaros na madrugada”. A artista criou outras quatro
ilustrações que separaram as seções da obra.
O olho do sujeito poético de Livro sobre nada atém-se a leituras muitas,
citando Antônio Vieira, Charles Baudelaire, William Shakespeare, Gustave
Flaubert e os existencialistas.
A declaração de José de Alencar de que não só obras francesas o
inspiraram a escrever, mas também o grande livro sem palavras que é a natureza
brasileira aproxima-se deste verso de Livro sobre nada: Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Nessa obra existe não só a leitura, mas também a desleitura: A voz do meu
avô arfa. Estava com um livro debaixo/ dos olhos. Vô! O livro está de cabeça para
baixo. Estou/ deslendo. [LN – 29-30].
Transver e desler são ações silenciosas muito caras aos seres de Livro
sobre nada. O sujeito poético retorna à infância, e a inarticulabilidade está
presente em quase todas as suas recordações: lembra do seu avô que, além de se
divertir com as desleituras, tentava vender urinóis usados e era difícil de ser
definido por palavras já que era o próprio indizível pessoal. [LN – 27]. Do diário
da sua irmã, Bugrinha, copia esse registro: Hoje completei 10 anos. Fabriquei
um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim: “De noite o silêncio
estica os lírios”.[LN – 33]. Do seu Mano Preto, o sujeito se recorda desta frase:
Grilo é um ser imprestável para o silêncio.
A procura do silêncio da infância do sujeito poético associa-se à busca da
infância da humanidade, por isso ocorre um retorno a um horizonte primordial. O
sujeito poético afirma: Escrevo o idioleto manoelês archaico. [LN – 43]. Assim,
necessário se faz o arcaico para se encetar uma viagem ao princípio do verbo:
82 82
Carrego meus primórdios num andor./ Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo./ Chegar ao criançamento das palavras./ Lá
onde elas ainda urinam na perna. / Antes mesmo que sejam modeladas pelas
mãos. Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem./ Pegar no
estame do som. / Ser a voz de um lagarto escurecido./ Abrir um descortínio para
o arcano. [LN – 47].
Em Livro sobre nada busca-se o silêncio dentro das palavras. Preciso de
atrapalhar as significâncias [LN – 43], afirma o sujeito poético, alertando o leitor
sobre seu gosto de dificultar os sentidos em seu discurso. Em uma outra
passagem da mesma obra, insiste-se nesse tipo de advertência: Não tenho
habilidade para clarezas. [LN – 51].
Em 1999, é lançado o primeiro livro infantil de Barros, Exercícios de ser
criança, no qual aparecem duas histórias: “O menino que carregava água na
peneira” e “A menina avoada”. A primeira mostra um menino que gostava mais
do vazio do que do cheio [ESC – sem paginação]. O vazio sendo parente do
silêncio requer preenchimentos, aqueles feitos pelos bordados que compõem as
ilustrações do livro executados pela família Dumont: a mãe Antônia e suas filhas
Angela, Marilu, Martha e Sávia sobre desenhos do irmão Demóstenes.
Também incentivado pela mãe, o menino da história se torna um poeta e
tem uma descoberta: No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo. [ESC – sem paginação].
83 83
Na segunda história, “A menina avoada”, uma garota conta que seu irmão
costumava levá-la num caixote com rodas de lata de goiabada, que imaginavam
ser puxado por dois bois. Os meninos cruzavam um rio inventado, chegando ao
fim do próprio quintal.
Apela-se para a pintura (em Livro sobre nada) ou para o bordado (em
Exercícios de ser criança), puxando o alarme do silêncio, porque a palavra já não
tem mais seu vigor, ela sofreu um processo de deterioração, de esvaziamento, até
mesmo a palavra amor, como se vê em Ensaios fotográficos, de 2000:
[...] Minha idéia era de fazer alguma coisa ao jeito de
tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o
abandono, como as taperas abrigam. [...] O abandono
pode ser também de uma expressão que tenha entrado
para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra
que esteja sem ninguém dentro. [...] digamos a palavra
AMOR. A palavra está quase vazia. Não tem gente
dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra
amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio
pode nascer de um monturo. [EF – 31].
fotografia de uma árvore. Deus pode ser encontrado mais na experiência do que
no discurso: entre ouvir as palavras dos padres do internato ou fazer um estágio
de árvore, o irmão do sujeito poético opta pela segunda alternativa. Assim, vale
mais a experiência mística silente do que a verbal:
Um passarinho pediu a meu irmão para ser a sua
árvore./ Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele
passarinho./ No estágio de ser essa árvore, meu irmão
aprendeu de sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para
santo mais do que os padres lhes ensinavam no
internato./ aprendeu com a natureza o perfume de
Deus. Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu
melhor o azul./ E descobriu que uma casca vazia de
cigarra esquecida no tronco das árvores só presta para
poesia./ Que justamente aquela árvore na qual meu
irmão se transformara, envaidecia-se quando era
nomeada para o entardecer dos pássaros./ E tinha
ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradeceu a Deus aquela permanência em
árvore porque fez amizade com muitas borboletas. [EF –
63].
Tratado geral das grandezas do ínfimo foi lançado em 2001 e, pelo título,
anuncia-se o foco do seu conteúdo: o minúsculo. Ele é perseguido ao longo de
toda a obra, já que o olhar do sujeito poético, entre o menor e o maior, opta pelo
primeiro:
SOBRE IMPORTÂNCIAS
Uma rã se achava importante/ Porque o rio
passava nas suas margens./ O rio não teria
grande importância para a rã/ Porque era o rio
que estava ao pé dela./ Pois Pois. [...] Em Roma, o
que mais me chamou atenção foi um prédio que
ficava em frente das pombas./ O prédio era de
estilo bizantino do século IX. Colosso!/ Mas eu
achei as pombas mais importantes do que o
prédio. Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na
Cordilheira dos Andes./ Achei o sabiá mais
importante do que a Cordilheira dos Andes./ [...].
[TGGI – 35].
86 86
palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos
passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos
ser
eternos.
Eternos como uma fuga de Bach. [TGGI – 13].
Pássaros do pantanal,
ilustrados por Edvaldo Jacinto Correia,
no livro Águas.
Se Águas é uma obra para ver, há uma outra, do mesmo ano, 2001, que é
para escutar: é o CD “Manoel de Barros por Pedro Rangel e Manoel de Barros”,
que é o volume oito da “Coleção poesia falada”, lançada pela Luz da Cidade
Produções Artísticas Fonográficas.
Escritos de vários tempos podem ser ouvidos pela voz do seu autor e,
preponderantemente, pela voz do ator Pedro Rangel, que oferece às palavras
manoelinas um sotaque carioca. No caso de Barros, o sotaque carioca também
está presente, já que ele morou no Rio de Janeiro, mas ele se mistura ao modo
pantaneiro de falar.
O CD tem trilha sonora de Renato Piau e foi idealizado e produzido por
Paulinho Lima. Há, nele, um comentário de Walter Lima Júnior, que se serve de
expressões manoelinas dos livros Retrato do artista quando coisa e O livro das
ignorãças, dos quais pertencem a maioria dos textos lidos: O produtor Paulinho
Lima não poderia ter escolhido melhor voz e sensibilidade que a de Pedro Paulo
Rangel para “corromper o silêncio das palavras”, de Manoel de Barros, o poeta
que enxerga o cheiro do sol. A intimidade do ator com o dizer nos restitui a
paisagem de pequenas criaturas, de latas tristes, de rios que são cobras de
vidro, do ínfimo que habita o quintal pantaneiro deste aventuroso Manoel
desregulador da natureza. [Lima Júnior, no encarte do CD].
Ilustração de Ziraldo
17
O texto publicado em Compêndio... é praticamente o mesmo reeditado como Poeminhas
pescados numa fala de João, pois ocorre apenas uma alteração: o acréscimo destes versos: A
noite caiu da árvore./ Maria pegou ela pra criar/ e ficou preta... [PPFJ – sem paginação].
92 92
Bonassi e João Gilberto Noll, entre outros. Em seu livrinho, Barros celebra a
pequenez: Dou importância às miudezas./ Sou um apanhador de desperdícios/
que nem as boas moscas. [TS – sem paginação].
“Parrrede!”
Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
–Corrumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
Decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
– Decorrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
Embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado
solitário!
E fiz de montão.
– Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o silêncio
das paredes. [MII – sem paginação].
CABELUDINHO
Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me
apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi
estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu
voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me
fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval:
aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó
entendia de regências verbais. Ela falava de sério.
Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição
deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E
fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras
é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de
rir. De outra feita, no meio da pelada um menino
gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não
disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe
um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas
férias a brincar de palavras mais do que trabalhar
com elas. Comecei a não gostar de palavra
engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar.
Aprendi nessas férias a brincar de palavras pelo que
elas entoam do que pelo que elas informam. Por
depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai
morena, não me escreve/ que eu não sei a ler. Aquele
a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a
solidão do vaqueiro. [MII – sem paginação].
Afirma ainda que tudo que os livros ensinavam ele já aprendera nos
espinhos e nas fontes. O silêncio das borboletas tem sua força: Vi uma
borboleta/ sentada nos braços da manhã./ Ela estava parada/ embaixo de outra
borboleta./ Não faziam barulho/ Nem piscavam./ Só o vento arregaça as saias
delas. [CUPT – sem paginação].
Na quarta capa do livro Barros comenta sobre a arte de sua filha, Martha
Barros, ilustradora daquele livro: A linguagem desta pintora é metafórica. Ela
faz metáfora de pássaros, de peixes, de conchas, de sapos. E muitas descoisas.
Imagens trazidas por rastros de suas memórias afetivas. Martha trabalha com
técnicas de acrílico sobre telas, e sobre tecidos em trapos, pedaços de sacos de
aniagem, restos de feltro de chapéus velhos e outras superfícies que busca nos
porões. Usa cores que me fazem lembrar dos índios Terenos. Eles faziam
metáfora também de suas cores. Vermelho era sangue de arara; verde, sangue
de folha; amarelo, sangue de sol; e azul, sangue do céu. A linguagem desta
pintora tem um estilo rigorosamente pessoal. Martha não copia a natureza, ela
desfigura os seres e as coisas. Martha faz descoisas com encantamento de poeta.
(Manoel de Barros, outubro de 2001).
Em 2004, surgem os Poemas rupestres, em que, como o título já aponta,
reina a despalavra associada aos desenhos das cavernas: A gente pintava nas
pedras a voz. [PR – 21].
O mutismo pantaneiro é mostrado, num contexto em que a fauna busca sua
sobrevivência:
CREME
Sucuri pegou um bezerro/ E deu um forte abraço nele./
Foi se enrolando no corpo/ do bezerro/ Foi apertando o
abraço apertando/ Até quebrar todo osso do bezerro./ O
bezerro virou um creme. Eu estava perto. Eu assisti. O
silêncio do bezerro nem mexia./ Depois a cobra engoliu
o creme. [PR – 63].
UM SONGO
Aquele homem falava com as árvores e com as/ águas/
ao jeito que namorasse./ Todos os dias/ ele arrumava as
tardes para os lírios dormirem./ Usava um velho
regador para molhar todas as/ manhãs os rios e as
árvores da beira./ Dizia que era abençoado pelas rãs e
pelos/ pássaros./ A gente acreditava por alto./ Assistira
certa vez um caracol vegetar-se/ na pedra/ mas não
levou susto./ Porque estudara antes sobre os fósseis/
lingüísticos/ e nesses estudos encontrou muitas vezes
caracóis/ vegetados em pedras./ Era muito encontrável
isso naquele tempo./ Até pedra criava rabo! A natureza
era inocente.
P. S.:
Escrever em Absurdez faz causa para poesia/ Eu falo e
escrevo Absurdez. Me sinto emancipado. [Barros, 2006,
p. 29].
mutismo pré-verbal alojado nesse caracol vegetado na pedra, que consta nos
fósseis lingüísticos. Também, nessa publicação, são apresentadas três entrevistas
do escritor; em uma delas, Barros fala do seu olhar e do seu ouvir, ligados ao
local de seu nascimento: Pantanal é o lugar da minha infância. Recebi as
primeiras percepções do mundo no Pantanal. Meu olhar viu primeiro as coisas do
Pantanal. Minhas ouças ouviram primeiro os ruídos do mato. [Barros, 2006, p.
29]. .
******
de Luis Melodia,
do seu CD “Retrato do artista
quando coisa”].
QUIETOS QUADROS
Machado surge aqui com uma citação bastante imagética e que suscita a idéia
de que para chegar a um ponto específico passa-se por outro diferente. Seria o
caminho das metáforas? Ou das armadilhas verbais que confundem o leitor?
Seja qual for a resposta, é importante observar que os silêncios aliados à
ambigüidade e às mensagens do subtexto estão presentes tanto na obra
machadiana quanto na manoelina.
A obra de Machado está plena de alusões ao mutismo da escuta, como se
viu no primeiro capítulo, nas audições de D. Paula, por exemplo. Esse tipo de
silêncio está presente no Retrato..., de Barros, num poema em que a frase
machadiana volta a aparecer: Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:/ Vou
pertencer você para uma árvore./ E pertenceu-me./ Escuto o perfume dos rios./
Sei que a voz das águas tem sotaque azul./ Sei botar cílio nos silêncios./ Para
encontrar o azul eu uso pássaros./ Só não desejo cair em sensatez./ Não quero
a boa razão das coisas./ Quero o feitiço das palavras. [RAQC – 61].
São mencionados, diretamente, no manoelino Retrato..., Camões,
Casimiro de Abreu, Kant, Darwin, Francis Ponge, Roquete-Pinto; mas a força
do diálogo desse poeta com outros autores está no silêncio, ou seja, as
relações do seu texto com outras obras se fazem no subtexto.
O só sei que nada sei, de Sócrates, por exemplo, parece ser recuperado
nesse verso com sentido próximo: O que resta de grandezas para nós são os
desconheceres. [RAQC – 35].
Em outro poema do livro, Guimarães Rosa é citado:
Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no
meio da Ilha Lingüística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
Pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
Sabedoria se tira das coisas que não existem
A tarde verde no olho das garças não existia
Mas era fonte do ser.
Era poesia.
Era o néctar do ser.
Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda, Manoel
Ela tem um bonito corpo fônico além do
propriamente.
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
93
O verde do mato que parece estampar-se nos olhos dos pássaros gerou
muita prosa para Guimarães, vide as descrições dos vegetais em suas obras,
como em “São Marcos”, de Sagarana, por exemplo. São dessa mesma cor os
olhos de Diadorim (que têm grande destaque em Grande sertão: veredas:
Diadorim me segurou com os olhos) e a fita usada por uma menina que não
tem chapeuzinho, muito menos vermelho, para ver a sua vó moribunda. O
grande lobo, em “Fita verde no cabelo”, é a morte que imobiliza a mulher idosa
e a fita verde da menina fica no caminho, indicando um rito de passagem: ela
tem que enfrentar o óbito com madureza e não mais com “verdez” infantil.
Além disso, Nhinhinha, do conto “A menina de lá”, de Primeiras estórias, pede
que sejam verdes os enfeites brilhantes a serem colocados no seu caixão rosa,
quando ela morrer.
É necessário pensar sobre o título dessa obra de Manoel de Barros, mas
antes de refletir sobre quando um artista torna-se coisa, o que será feito na
próxima seção, parece importante atentar para o vocábulo retrato, que
também gerou poesia para Augusto Frederico Schimit:
RETRATO
Ele era da raça dos que suportam todo o peso da
vida/ Era da raça dos que não se queixam/ Dos que
sorriem diante do destino adverso/ Viveu em silêncio
grandes horas amargas/ E ninguém conheceu as
devastações/ O efeito dos golpes que lhe foram
vibrados, as suas ruínas, os seus deuses mutilados, os
túmulos que estavam nele ninguém desvendou/ Tudo
ficou escondido,/ Tudo ficou defendido pela sua
máscara tranqüila/ No entanto, ninguém amou mais
profundamente do que ele amou./ [...]./ A amargura
não fermentou na sua alma/ O ressentimento não
94
Barros opta pela poesia, na qual insere elementos de prosa, mas elabora um
livro bem menos extenso.
Com relação ao silêncio a obra manoelina está mais próxima a de um
outro irlandês: Samuel Beckett, como se pode ver a seguir.
DESDIZER EM REIFICAÇÃO
O inseto escolhido para tema é o mesmo, mas a extensão dos dois textos
é contrastante: o escrito manoelino está mais condizente com a proporção da
mosca, ou seja, ele é bem menor que o beckettiano. Há apenas dez palavras
no poema do autor brasileiro enquanto aparecem cinqüenta e uma, no do
escritor irlandês.
A busca do ínfimo é uma fixação de Barros e Beckett, no entanto, no caso
de Manoel, ela está desde a primeira obra, com a escolha da poesia, como
gênero, que mesmo mesclada a elementos da prosa nunca gerou livros longos.
Em Livro sobre nada, uma constatação: a minha diferença é sempre menos.
Barros nunca escreveu um romance, o que Beckett fez várias vezes. E,
como se um romance fosse pouco, Beckett escreveu uma trilogia: Molloy,
Malone morre e O inominável.
Uma divergência entre o escritor brasileiro e o autor irlandês: enquanto
nos escritos de Beckett habita um pessimismo que apresenta seres e “terras
devastadas”, à moda eliotiana, existe nos textos de Barros um telurismo que
colore de positividade a vida de seus cenários e entes, inclusive dos seus
insetos.
Se no poema de Barros a mosca estava associada à imobilidade (Na beira
da mosca/ o céu parou/ o dia parou), no de Beckett há o movimento do
pequeno bicho nas suas antenas enlouquecidas e na sua boca a sugar o vazio.
No entanto, a imobilidade acaba chegando a ele com a morte: com um frágil
piparote ela cai.
piparote assassino. Em Retrato do artista quando coisa, as moscas não são alvo
de piparotes e sim objeto de amor: Já posso amar as moscas como a mim
mesmo. [RAQC – 11].
Além da fixação por insetos, como as moscas, há em Barros e Beckett o
gosto pelo silêncio, inclusive, com destaque para uma de suas facetas: o
indesignável:
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas)-/sem
nome./ Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé./
[...]. Ficou certo pois não/ que as moscas iriam
iluminar/ o silêncio das coisas anônimas./ Porém,
vendo o Homem/ que as moscas não davam conta de
iluminar o/ silêncio das coisas anônimas-/ passaram
essa tarefa para os poetas. [CCASA – 49].
Em Livro sobre nada, lê-se: sei de Baudelaire que passou muitos meses
tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que
harmonizasse os seus conflitos. Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a
dor. Essa antítese o acalmou. (LN – 49).
Enquanto o nome não surgia, havia o silêncio do inominável, que pode
estar associado também à sugestão das entrelinhas, ao silêncio do subtexto:
Melhor que nomear é aludir.(LN – 68).
Ou seja, sua morada passa a ser só o seu chapéu. Barros cria muitos
seres em iguais condições:
JOAQUIM SAPÉ
Os ornamentos de trapo de Joaquim Sapé já
estavam
criando cabelo de tão sujos.
Joaquim atravessava as ruelas da Aldeia como se
fosse
um Príncipe
Com aqueles ornamentos de trapo.
Quando entrava na Aldeia com o saco de lata às
107
costas
Crianças o arrodeavam.
Um dia me falou, esse andarilho (eu era criança):
- Quando chove nos braços de uma formiga, o
horizonte diminui.
O menino ficou com a frase incomodando na cabeça.
Como é que esse Joaquim Sapé, que mora
debaixo
do chapéu, e que nem tem aparelho de medir céu,
pode saber que os horizontes diminuem quando
chove nos braços de uma formiga?
Se nem quase formiga tem braço!
Igual quando ele me disse que do lado esquerdo do
sol voam mais andorinhas do que os outros
pássaros?
Pois ele não tinha aparelho de medir o sol, como
Podia saber!
Ele seria um ensaio de cientista?
Ele enxergava prenúncios! [TGGI – 37, o grifo é
meu].
Assim, esse ser sem casa tem esse nome que pode soar como ironia,
recurso muito usado na obra beckettiana, mas parece que, nesse universo
manoelino, tem sentido místico, porque a natureza presente no sapé está do
lado de um nome de santo: Joaquim.
Um traço de distinção entre a obra beckettiana e a manoelina: Barros não
escreveu seus textos em uma língua estrangeira, o que ocorreu várias vezes, no
caso do escritor irlandês, que redigiu várias obras em francês como O
inominável.
Um trecho dessa obra beckettiana é usado como epígrafe de Concerto a
céu aberto para solos de ave, de Manoel: Devo falar agora de mim, isso seria
um passo na direção do silêncio...
Mutismo e estatismo aparecem conjugados nesse livro de Beckett. Tais
elementos também se amalgama, no poema de Barros em análise: Sentado
sobre uma pedra estava o homem. A pedra é mais silenciosa do que a mosca,
com seu zinir e seus movimentos. Assim, quietez e imobilidade podem ser
108
A imagem shakesperiana do pai morto que vem falar com o filho vivo tem
grande repercussão na obra beckettiana. O branco, muitas vezes, nesses
textos servem como metáfora para essa dimensão fantasmal.
O enunciador da nouvelle “O calmante”, de Beckett é um morto e nesse
114
19
Beckett, Samuel. “Fingal” in: More pricks than kicks, p. 27. A tradução é minha.
116
20
Mariarosaria fez essas observações na defesa de minha tese, no dia 28 de agosto de 2007.
117
TÁCITO ÊXTASE
Nesse quadro, pode-se ver a cor do êxtase [GA – 285], para usar uma
expressão do sujeito poético de O guardador de águas.
O êxtase no poema em análise, já havia aparecido no livro manoelino
Concerto a céu aberto para solos de ave, de 1991:
....................................................................
............................................
Eu vi um êxtase no cisco!
................(CCASA – 37).
grego ekstasis: sair, partir e analisa “O êxtase”, de John Donne, “Em uma noite
escura”, de San Juan de la Cruz e uma cena do terceiro ato de “Tristão e
Isolda”, de Richard Wagner.
ele e seus colegas arrancam risos de toda a sala de aula com suas piadas e
ridicularização do autoritarismo de muitos dos professores, cuja palavra mais
repetida é “Silêncio!”.
No Brasil, o autoritarismo escolar se serviu de livros didáticos que
continham frases como “Ivo viu a uva”. Essa frase e aqueles que serviam dela
para tentar padronizar os pensamentos das pessoas são criticados neste poema
de Retrato...:
[...]. Não aguento ser apenas/ um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta
lápis, que vê a uva etc. etc. [...]. [RAQC – 49]
música.
se suicidou, jogando-se num rio, aos quinze anos. As palavras da morta são
essas: Aqui tudo é cinza, tudo é silêncio.
Há vários outros silêncios em “Julieta dos espíritos”, um deles é o da
personagem Arlette, que mora na casa de Suzy. Durante todo o filme ela, que
já havia tentado o suicídio por três vezes, permanece muda.
A quieta Arlette.
outros.
Nessa história felliniana, um jornalista faz uma pesquisa sobre agências
matrimoniais. Inventa que tem um amigo que sofre de licantropia que quer se
casar, mesmo sendo perigoso. A empresa oferece seu serviço, apresentando ao
rapaz uma moça. Quando ele pergunta a ela por que aceitou ter uma futura
experiência que a colocaria em risco, a moça afirma que o motivo é que o
casamento a tiraria da miséria e da fome.
Isso deixa o rapaz atônito e mudo. Sua narração final mostra a seguinte
situação: Voltamos para casa em silêncio. Sentia que devia dizer alguma coisa
não para me justificar, mas para ajudá-la. Gostaria de lhe dizer que tivesse
mais confiança em si, que olhasse em volta que abrisse os olhos às infinitas
possibilidades de encontros que a vida oferece a cada dia. Mas tudo isso me
parecia retórico e era, sobretudo, inútil. As dificuldades imediatas, as
angústias cotidianas a serem superadas, iriam continuar a ser, para ela, a
única coisa importante e real. Não disse nada. Só quando nos deixamos lhe
desejei sinceramente boa sorte.
Retomando os silêncios de “Julieta dos espíritos”, há o das artes visuais,
ou seja, aquele que substitui palavras por formas, como é o caso da escultura.
Uma amiga da protagonista quer criar “A escultura de Deus quando coisa”,
pois afirma: Vamos desenvolver a dimensão física de Deus! Temia Deus. Ele me
oprimia, assustava. E por quê? Eu o imaginava em forma abstrata. Mas não.
Deus é o mais belo corpo que existe. Em minhas estátuas, Ele é físico,
corpóreo, de forma perfeita, para que eu possa desejar até como amante.
Julieta vê a concretude, a coisa, mas também vê o diáfano, a
imaterialidade, o que justifica o título do filme. A visão, nos seus mais diversos
sentidos, parece fundamental na biografia de Federico Fellini. Talvez a intensa
dedicação a ela tenha contribuído para que o diretor tenha sido chamado de
visionário, classificação com a qual não concordava: Os críticos, quando falam
de meu cinema, usam o termo visionário, mais em sentido literal do que
figurado... não levam em conta o fato de que para mim, a luz é mais
importante do que o argumento; a luz é fundamental para o cinema, é o estilo,
o sentimento de um cineasta. Com a luz pode-se fazer tudo. [Fellini, apud:
Fabris, 2004, p. 6].
134
*****
Capa da edição da
Record de LI.
A obra está
dividida em três partes:
“Uma didática da
invenção”, “Os delimites
da palavra” e “Mundo
13 133
3
pequeno”. E, para cada seção, há um desenho feito por Manoel de Barros.
da natureza.
Aqui, Barros mostra um homem com um braço curto e o outro longo, o que
pode ser uma metáfora que representa o horror à simetria da escrita manoelina
ou a idéia, que vem da Antiguidade, de que o poeta é um mediador entre a esfera
13 134
4
terrena e a divina.
30
Bíblia de Jerusalém, p. 218.
13 137
7
O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que
primeiro em água e luz. Depois árvore. Depois
lagartixas. Apareceu um homem na beira do rio.
Apareceu uma ave na beira do rio. Apareceu a
concha. E o mar estava na concha. A pedra foi
descoberta por um índio. O índio fez fósforo da
pedra e inventou o fogo pra gente fazer bóia. Um
menino escutava o verme de uma planta, que era
pardo. Sonhava-se muito com pererecas e com
mulheres. As moscas davam flor em março.
Depois eoncontramos com a alma da chuva que
vinha do lado da Bolívia – e demos no pé.
(Rogaciano era índio guató eme contou essa
cosmologia.) [LI – 95].
31
Manoel de Barros em entrevista. Couto, J. G. “Manoel de Barros busca na ignorância a fonte
da poesia”. Folha de São Paulo, 14/11/1993, p. 8-9, Livros.
14 141
1
Mas esses minúsculos seres somem da sua visão: o pai, irritado com a
sujeira que as crianças fizeram, tentando alimentar os filhotes, impede-as de ir à
cozinha, onde estão os gatinhos. Depois, definitivamente, os pequenos rebentos
não mais podem ser vistos pelas crianças: eles são devorados pelo cão Nero, que
chega à casa com o tio dos meninos. Ao saberem disso, os pais de Nina e Vânia
riem, o que gera estranhamento por parte dos infantes, cujo sentimento está
próximo só ao do animal, ou seja, da aflita parturiente: Nero vai caminhando
junto à mesa, agita a cauda e lambe-se, satisfeito consigo mesmo... Unicamente a
gata está intranqüila. Andando de rabo espichado, olha com desconfiança para
as pessoas e mia tristemente. [Tchekhov, 2005, p. 153-154].
O miado da gata sem palavras expressa seu sentimento, o que é
compreendido pelas crianças. A linguagem da compaixão, nesse conto, só é
possível de ser difundida entre as crianças e esse animal, assim como o dizer das
gaivotas é entendido por Sombra-Boa.
Para Jacques Derrida, em O animal que logo sou, a linguagem dos bichos
realmente é aquela que está mais próxima à da poesia. O pensador afirma: [...]
um dia, há cerca de dez anos, dei a palavra ou dei lugar a um pequeno ouriço,
um bebê ouriço, talvez, diante da questão O que é poesia?32 Pois o pensamento
do animal, se pensamento houver, cabe à poesia. [Derrida, 2002, p. 22].
Uma família de felinos na poesia é mencionada por Derrida: “O gato”, de
32
Derrida, J. “Che cos'è la poesia”: In: Points de suspension. Paris: Galilée, p. 303. (N. T.)
14 144
4
Rilke, e “O gato”, de Baudelaire, cujo olhar é associado ao da amada e há uma
observação importante: Para dizer as mais longas frases, / Ela não tem
necessidade das palavras. [Baudelaire, apud: Derrida, 2002, p. 21].
Derrida afirma que ao olhar, em silêncio, um gato, sente-se também olhado
por ele, e, contrariando Descartes, percebe que, muitas vezes, vê o bicho como
superior ao homem. A nudez, própria do animal, é geradora de incômodo
pudoroso e depois de inveja nesse ser humano que olha e pensa.
O filosófo mostra que, para pensadores como o próprio Descartes e Kant,
por exemplo, os animais não detinham linguagem nenhuma, eles estavam, pois,
condenados ao silêncio, à mudez. No entanto, para Montaigne – que, segundo
Derrida, é tanto pré-cartesiano como anticartesiano – os animais têm linguagem,
só que não é a mesma do homem. Derrida observa que gato e silêncio se
encontram em uma expressão popular: o gato comeu sua língua?
Retomando o conto “Acontecimento”, Otto Maria Carpeaux, ao analisar
esse escrito, encerra seu ensaio com as palavras de Biéli, indicando que o limite
e o cinza dos contos tchekhovianos podem se abrir para a amplidão e para a
rutilância: Os personagens de Tchekhov dizem coisas estúpidas e fazem coisas
estúpidas; comem, dormem, vivem entre as suas quatro paredes e andam em
caminhos cinzentos – mas esses caminhos cinzentos também são os da
verdadeira Vida e podem levar a um ponto em que as quatro paredes já não nos
apertam. Continuamos cinzentos; sua luz pode ser um crespúsculo sem remédio,
mas esse crespúsculo também é um reflexo de espaços eternos. [Biéli, 1960, p.
66].
A eternidade e a abertura dos contos tchekhovianos são observadas por
Elena Vassina, que mostra que esse escritor nunca sugere soluções para os
problemas tão difíceis da vida, por isso, muitas obras não têm desfecho,
terminam em reticências, como o fluxo natural da vida. Através do indefinido e
do infinito, sempre presentes na narrativa de Tchekhov, suas obras ficam ligadas
com a eternidade da própria vida, com aquela luz divina que sempre se sente nas
verdadeiras obras de arte que ultrapassam o seu tempo. [Vássina, 2004, p. 16].
Elena percebe que no teatro se dá o mesmo: O estado do espírito nos
dramas de Tchekhov é exatamente aquilo que liga o instante presente com a
14 145
5
eternidade, por isso suas peças sempre têm um final aberto. [Vássina, 2004, p.
19].
“A gaivota” é um exemplo disso, já que se “encerra” com o suicídio de
Trigórin. O crítico Rubens Figueiredo, em posfácio da sua tradução desse
drama, comenta: Em uma composição desse tipo, mesmo que sobrevenha ao
final um acontecimento de impacto – como é o caso em A gaivota –, não haverá
um desfecho propriamente dito. Tal acontecimento, por mais dramático que
pareça, por mais sofrimento que concentre em si, não representa nem solução,
nem desvelamento, nem catarse. O espectador subentende que a mesma crise e
o mesmo desajuste prosseguirão intactos e apenas se agravarão na vida futura
dos personagens. [Figueiredo, 2004, p. 110].
Tchekhov afirmou que encerrou essa peça em pianíssimo e usava a mesma
estratégia para seus contos, que tinham uma estrutura diferente daquela
proposta anteriormente por Edgar Alan Poe. A tendência do autor russo é de
contrariar a receita de “Filosofia da composição”, do escritor norte-americano,
para quem os contos deviam ter final em fortíssimo, ou seja, deviam ser
conclusivos ou apoteóticos e sua qualidade seria medida a partir da sua
capacidade de prender a atenção do leitor, que deveria lê-los em uma só
assentada [Poe, 2000, p. 40]. Poe entende que seu texto “O corvo” segue essa
receita.
Os urubus manoelinos são parentes não dos corvos poeanos mas das
gaivotas tchekhovianas, ou seja, a força dos escritos de Barros está no seu final
que aclama a inconclusibilidade como os epílogos do autor russo 33. Em Tratado
33
Tchékhov mostra sua maestria no final em pianíssimo, o que se pode notar em “Uma criatura
enigmática”. Nessa narrativa, aparecem uma personagem feminina sem nome e, justamente, um
escritor de contos, que se encontram em um trem. O final da narrativa é este: O leque quebrado
cobre o rostinho bonito. O escritor apóia a cabeça cheia de pensamentos, suspira e põe-se a
meditar com ar de psicólogo experimentado. A locomotiva apita e solta um longo chio de vapor,
enquanto o sol poente tinge de vermelho as cortinhinhas da janela... (Tchekhov, 1991, p. 15). Na
metade do conto, a portadora do leque quebrado e do rostinho bonito comenta ao escritor de
contos que se sente como um personagem dostoievskiano: Eu sou uma sofredora bem ao estilo de
Dostoiévski... (Tchekhov, 1991, p. 13). A natureza enigmática desse conto está na forma do
escrito, já que as reticências estão no seu meio, pedindo ao leitor para ler Dostoiévski nas suas
entrelinhas, bem como no final, silenciando sobre muitos dos significados da personalidade da
personagem principal. Entregue à mudez da reflexão, o escritor pensa nas palavras daquela
mulher que havia se casado com um militar que não amava para tirar sua família da miséria.
Quando ele morreu, sentiu-se livre, mas novamente arranjou um problema: - Um outro velho
rico... [Tchekhov, 1991, p. 15].
14 146
6
geral das grandezas do ínfimo, Sabastião ouve conversamentos dos urubus:
O URUBUZEIRO
Meu amigo Sabastião estourou a infância dele e
mais duas pernas
No mergulho contra uma pedra na Cacimba da
Saúde. Quarenta anos mais tarde Sabastião
remava uma canoa
no rio Paraguaio
E deu o barranco de uma charqueada.
Sabastião subiu o barranco se arrastando como
um
caranguejo trôpego
Até a casa do patrão e pediu um trabalho.
O patrão olhou para aquele pedaço de pessoa e
disse:
Você me serve para urubuzeiro.
(Urubuzeiro era tarefa de espantar os urubus que
atentavam nos tendais de carne.)
Trabalho de Sabastião era espantar os urubus.
Sabastião espantava espantava espantava.
Os urubus voltavam de bandos.
Sabastião espantava espantava.
Um dia pegaram Sabastião a prosear em
estrangeiro
com os urubus.
Chegou que Sabastião permitiu que os urubus
fizessem farra nas carnes.
Os urubus faziam farra e conversavam em
estrangeiro
com Sabastião.
Veio o patrão e mandou Sabastião para o
manicômio.
No manicômio ninguém compreendia a língua de
Sabastião
De forma que Sabastião despencou do seu normal
E foi encontrado na rua falando sozinho em
estrangeiro. [TGGI – 21-22].
Há também assonâncias:
(Urubuzeiro era tarefa de espantar os urubus que
Atentavam nos tendais de carne.) [TGGI – 21].
[...]
E foi encontrado na rua falando sozinho em
estrangeiro. [TGGI – 21-22].
34
Essa afirmação de Andrei foi feita no curso de pós-graduação “A imagem artística do mundo
na literatura russa do século XIX”, realizado no segundo semestre de 2005, na Universidade
de São Paulo.
15 150
0
O gênero conto por si já é afeito ao silêncio do inacabado, já que, ao
eliminar muitas palavras, busca o suscinto e acaba por incidir nas elipses,
apresentando ao leitor personagens em situações tão fundamentais, quanto,
muitas vezes, enigmáticas.
Nas vinhetas de Siron Franco, vêem-se animais como gato, cachorro, peixe
e ema, bem como objetos domésticos, como xícara, pires, faca. Há também um
bebê, um pião, um sapato, um dado etc. Destaco o bule, pois ele foi pintado por
um artista muito admirado por Barros que exalta seus azuis em Matéria de
poesia:
Ilustração de Ziraldo
para O fazedor de amanhecer, de Barros.
Kurosawa encontra com Van Gogh e conversam um pouco. O pintor diz que
16 165
5
quando vê uma paisagem bela ele quer devorá-la. Afirma que lhe resta pouco
tempo e deve pintar como uma locomotiva. Akira pergunta se ele está
machucado, apontando para a faixa em sua cabeça. Van Gogh responde que no
dia anterior, ao tentar fazer seu auto-retrato, não gostou de como sua orelha
ficou pintada, por isso eliminou-a.
Em seguida, sai, dizendo que o sol o impele a pintar. Kurosawa se vira para
o sol, para olhá-lo e depois percebe que Van Gogh não está mais à vista. Começa,
então, a procurá-lo e as paisagens pelas quais passa são os quadros do pintor.
Em sua autobiografia, o diretor afirma: Depois de ver uma monografia de
Cézanne, eu iria sair caminhando e as casas, ruas e árvores – tudo – parecia uma
pintura de Cézanne. O mesmo ocorreria quando eu olhei um livro de pinturas do
Van Gogh... Elas mudaram a forma que o mundo real olhava para mim. Parecia
completamente diferente do mundo que eu usualmente via com meus próprios
olhos. [Kurosawa, apud: Richie, 1996, p.222].
Ao final do episódio de “Sonhos”, Akira vê Van Gogh sumir no topo de um
morro; então, vários corvos aparecem. A última seqüência mostra o cineasta
vendo o quadro “Corvos sobre campos de trigo”, do pintor holandês.
O mutismo do olhar dá a base para uma outra colorida história sonhada, só
que com proporções catastróficas. Dois homens e uma mulher com dois filhos
assistem às explosões de um vulcão e vêem nuvens coloridas invadirem tudo. Um
dos homens afirma que é responsável por aquilo e explica: As nuvens. A
vermelha é plutônio 239. Um décimo milionésimo de grama causa câncer. A
amarela é estrôncio 90. Entra em você e causa leucemia. A roxa é césio 137.
Afeta a reprodução. Produz mutações. Faz nascer monstruosidades. [...]. A
radioatividade era invisível. Por causa do perigo, eles a coloriram. Mas isso só
permite que você saiba qual o tipo vai matá-lo. É o cartão de visita da morte.
16 166
6
Fotograma de “Sonhos”.
O ato é infracional, pois sua mãe havia dito que isso não poderia ser visto;
o menino, cuja presença acaba sendo notada pelas raposas, volta para casa e sua
mãe o espera, dizendo que uma raposa furiosa o procurava, dizendo que ele
devia se matar por ver o ato interdito ou então devia procurá-la para pedir
desculpa, ao fim do arco-íris. Mas adiantava: raposas são difíceis de perdoar. O
final em aberto desse episódio, como os dos contos de Tchékhov, mostra o
menino, em meio a flores multicoloridas, olhando o arco-íris e se dirigindo ao seu
final.
16 168
8
Akira Kurosawa afirmou que seu filme realmente faz jus ao título: são
sonhos que teve ao longo de sua vida. Se sonho e invenção são um pouco
parentes já que seriam imagens que a alma viu, então esse episódio do diretor se
parece com um poema de Tratado geral das grandezas do ínfimo. Nele, um
menino também adentra um verde espaço (não a floresta japonesa, mas o
matagal do Pantanal brasileiro), depara-se com a presença animal (não as
raposas e sim uma onça) depois se encontra com sua mãe. A diferença, além da
espacial e dos animais em questão, é que no filme isso é sonhado, enquanto no
poema isso é inventado:
INFANTIL
O menino ia ao mato/ E a onça comeu ele./ Depois
o caminhão passou por dentro do corpo do/
menino/ E ele foi contar para a mãe./ A mãe disse:
Mas se a onça comeu você, como é que/ o
caminhão passou por dentro do seu corpo?/ é que
o caminhão só passou renteando meu corpo/ E eu
desviei depressa./ Olha, mãe, eu só queria
inventar uma poesia./ Eu não preciso de fazer
razão. [TGGI – 29].
O chão tem gula de meu olho por motivo que meu/ olho tem escórias de
árvore./ O chão deseja meu olho vazado pra fazer parte do cisco que se acumula
debaixo das árvores. A idéia de morte permeia esses versos, do poema em
análise, já que o sujeito poético antevê o que ocorrerá com seus olhos: serão
devorados pela terra e incorporado ao cisco que se acumula debaixo das árvores.
Homem e a terra tornar-se-ão um amálgama em contato com as raízes da árvore.
No meu morrer tem uma dor de árvore. Um homem com uma dor de
árvore, ou melhor, um menino com uma dor de árvore é visto em um episódio do
filme “Sonhos”, de Akira Kurosawa. Essa criança vê seis meninas num grupo em
que está também a sua irmã. Vai à cozinha e traz algo para elas beberem e
comerem e se dá conta que falta uma.
Sua irmã diz que ele está delirando e volta a conversar com as colegas. O
menino revê a garota dentro e fora da casa; ele a segue.
16 169
9
Ela vai para o lugar em que estavam vários pessegueiros, que foram
cortados. Os espíritos desses pessegueiros estão lá e o “líder” deles culpa o
menino pela sua extinção, mas um outro espírito afirma que ele não só foi
contrário ao desmatamento como tentou impedi-lo. Então o líder afirma que ele
queria os pêssegos e o menino diz que pêssegos podem ser comprados e
pergunta: quem pode comprar um pessegueiro em flor?
Assim, os espíritos dizem que ele pode vê-los pela última vez, tocam,
dançam enquanto essas imagens e as dos pessegueiros em flor se alternam para
o olhar do menino. Terminada a música e a dança, eles somem do campo da sua
visão.
Fotogramas de “Sonhos”.
Em outro trecho da obra de Barros, lê-se: As coisas que não têm nome são
mais pronunciadas por crianças. [LI – 13].
O boiadeiro Malafincado gostava de desnomear, assim como os sete
samurais, do célebre filme de Kurosawa. Um deles pede aos outros que o
desnomeiem, ou seja, ofereçam a ele um nome diverso do que tinha:
- Qual seu verdadeiro nome?
- Não me lembro. Me dê um bom nome.
17 171
1
- Kikuchiyo. Isso o transforma.
Fotograma de “Sonhos”.
Essa situação reflete uma visão budista em que a morte é vista como
motivo de contentamento já que se chegou ao final de uma etapa, que por sua
vez pertence a um contexto mais amplo: o das reencarnações. Um velório com
direito a “comes e bebes” é visto no filme “Viver”, de Kurosawa.
O silêncio está presente em vários filmes de Kurosawa. Em “Rapsódia em
agosto”, a viúva de um homem morto no borbardeio de Nagasaki recebe,
costumeiramente, a visita de uma mulher com a mesma realidade. Elas passam
horas em pleno emudecimento.
17 172
2
Os bugres estão mais próximos do grau zero de uma palavra, que é buscado
em O livro das ignorãças:
Minha voz inaugura os sussurros. [LI – 63].
A idéia dos índios de que todas as coisas da natureza têm alma está
presente em vários escritos manoelinos e também em O livro das ignorãças:
Depois encontramos com a alma da chuva que vinha do lado da Bolívia – e demos
no pé. (Rogaciano era índio Guató e me contou essa cosmologia.) [LI – 95].
O panteísmo indígena está presente em Cantigas por um passarinho à toa:
Quando a parede da tarde ruiu/ o homem falou:/ Hoje
Ele chove!/ E Deus choveu na roça do homem./ E o
homem agradeceu aquela graça como quando o azul
se abre para nós.
Cipriano falou:
Mais alto do que eu só Deus e os passarinhos. A
dúvida era saber se Deus também avoava ou se Ele
está em toda parte como a mãe ensinava. Cipriano era
um indiozinho guató que aparecia no quintal, nosso
amigo. [...]. Outro dia a gente destampamos a cabeça
de Cipriano. Lá dentro só tinha árvore árvore árvore
nenhuma idéia sequer. Falaram que ele tinha
predominâncias vegetais do que platônicas. Isso era.
O vermelho, o amarelo, e o azul são muito usados pelo Akira pintor, que
deu forma a cenas e personagens na liguagem da arte pictórica. Essas três cores
17 179
9
resultam no marrom, que foi usado nesse quadro para representar a terra, na
pintura do diretor para “Ran”.
O gosto de Barros pela cultura popular foi notado pelo célebre editor e
colecionador de livros, pois as ilustrações que escolheu para a capa são
18 180
0
xilogravuras populares catalães, retiradas da revista O cavalo de todas as cores,
número 1, publicada em Barcelona por João Cabral de Melo Neto, em janeiro de
1950.
Barros, em uma carta a Mindlin, comenta a capa:
Caro amigo Mindlin,
Estou ainda encantado pelo trabalho dos editores. A
capa cor de terra, que é a cor do que me tem. Depois a
mesma cor nas maiúsculas do texto, como a acentuar o
gosto pelo chão. Depois mais a escolha iluminadora da
xilogravura, que ilustra bem o decomportamento da
minha poesia botando língua para o estabelecido.
(Barros, apud: Kikuchi (org.), 2004, p. 152).
Fotograma de “Rashomon”.
Fotogramas de “Madadayo”.
Sonhar colorido é uma realidade de um filme anterior a “Sonhos” e
“Madadayo”: “Kagemusha”.
18 183
3
Fotogramas de “Kagemusha”.
*****
mas parece que em Arranjos para assobio ele tem seu ápice. Millôr Fernandes,
que elaborou sua capa, o notou, observando a complexidade dessa poesia de
Barros:
[Manoel de Barros] Um tremendo poeta. Ele vive na
região do Pantanal, é fazendeiro, gosta de bichos. Um
dia ele mandou me pedir uma capa de livro. [...]. Aí,
ao ler a poesia dele, eu descobri que era atualizada,
complicada.
Barros optou por uma trilha nova: associar esse pássaro à obscuridade.
Assim, em Arranjos para assobio, tem-se o sabiá com trevas, ou seja, o escritor
que tende ao enigmático, que foge do óbvio.
Esse sabiá dá preferência ao que está em baixo das coisas. Seria uma
metáfora para o silente subtexto?: A essa vida em larvas que lateja debaixo das
árvores, o sabiá se entrega./ aqui desabrocharam carolas de jias! [AA, in: PQT
-211].
Sentidos silenciados podem ser encontrados na profundidade que a
superfície esconde ou podem ser entrevistos nas ínfimas rachaduras: Nas
fendas do insignificante ele procura grãos de sol.
Esse, então, é o trabalho do leitor: procurar, no mínimo dito, significados
não ditos que se ampliam em dimensões solares.
A força está, então, no não expresso, por isso o sujeito de Arranjos para
182
assobio afirma que o que há de mais intenso no dizer do poeta, o sabiá, são
suas trevas silentes: É ínvio e ardente o que o sabiá não diz. [AA – 36].
Se o poeta é um sabiá com seu canto obscuro e sem verbo, ele também
tem parentesco com a pedra: Um homem que estudava formigas e tendia para
pedras,/ me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO/ CONHECIDO:/ Só me preocupo
com as coisas/ inúteis. [AA – 9].
Um verso de Alberto Caeiro é citado: Pedras fazem versos? Pergunta de
Fernando Pessoa. [AA – 38]. Se fazem, devem evidenciar inarticulabilidades,
principalmente os ligados aos significados. Para silenciar, usando o verbo, o
sujeito poético de Arranjos... se propõe a distorcer as palavras: Amo arrastar
algumas delas no caco de vidro/ envergá-las pro chão, corrompê-las – Até que
padeçam de mim e me sujem de branco. [AA – 19].
Essa distorção das palavras, que as aproxima do silêncio, continua a ser
feita na segunda parte do livro “Glossário de transnominações em que não se
explicam algumas delas (nenhumas) ou menos”. É dado um verbete e depois é
mostrada a sua significação, no entanto, a explicação desexplica, ou seja, o
esclarecimento obscurece, porque o que importa é o lirismo e o não entender.
Manoel faz, pois, o caminho contrário dos dicionários, apesar de imitá-los na
estrutura. Tomemos o termo boca, que Tetê Espíndola musicou e cantou no
filme “Caramujo flor”:
Boca, s. f.
Brasa verdejante que se usa em música
Lugar de um arroio haver sol
Espécie de orvalho cor de morango
Ave-nêspera!
Pequena abertura para o deserto [AA – 44].
Cisco,
s. m.
Pessoa esbarrada em raiz de parede
Qualquer indivíduo adequado a lata
Quem ouve zoadas de brenha. Chamou-se de
O CISCO DE DEUS a São Francisco de Assis
Diz-se também de homem numa sarjeta
38
Elena afirmou isso no curso de Pós-Graduação “Folclore, literatura popular e literatura
erudita: problemas de linguagem nas abordagens teóricas russas do século XX”, oferecido no
primeiro semestre de 2003, na Universidade de São Paulo.
186
africana, são descritas em Livro sobre nada: Lembrei que Picasso depois de
ver as formas bisônticas na África, rompeu com as formas naturais, com os
efeitos de luz natural, com os conceitos de espaço e perspectiva, etc etc. E
depois quebrou planos, ao lado de Braque, propôs a simultaneidade das visões,
a cor psíquica e as formas incorporantes. (LN – 74).
A simultaneidade das visões em Picasso é buscada pelo enunciador de
Memórias inventadas: a segunda infância: Tentei montar com aquele meu
amigo que tem um olhar descomparado, uma Oficina de Desregular a
Natureza. Mas faltou dinheiro na hora para a gente alugar um espaço. Ele
propôs que montássemos por primeiro a Oficina em alguma gruta. [...]. Por
último aproveitamos para imitar Picasso com A moça com o olho no centro da
testa. Picasso desregulava a natureza, tentamos imitá-lo. Modéstia à parte.
[MISI – sem paginação].
O Pierrô de Picasso se expressa melhor em inseto. Assim, melhor do que
se expressar em português, árabe, francês, russo etc... Ele opta por falar em
inseto.
O artista usou uma borboleta em uma de suas composições.
que deve ater-se aos detalhes do escrito que contêm o não dito39.
Um homem-inseto surge em Arranjos para assobio num poema da
primeira parte de Arranjos... Agora a associação é feita com a vespa: Usado
por uma fivela, o homem tinha sido escolhido, desde criança, para ninguém e
nem nunca. De forma que quando se pensou em fazer alguma coisa por ele,
viu-se que o caso era irremediável e escuro. Ou uma vespa na espátula. [AA –
17].
Parte da obscuridade de Arranjos para assobio se deve à enorme
incidência de citações explícitas e implícitas a outros autores e a outras obras.
Além do heterônimo pessoano Alberto Caeiro, outras vozes são ouvidas no
livro.
Em um número especial da Poetique, André Topia, no ensaio
“Contrapontos joycianos” explica como é esse obscuro emaranhado de
referências textuais em T. S. Eliot, James Joyce e Ezra Pound:
O estatuto do citacional é o lugar simultaneamente
central e problemático em que se joga a escrita
desde o fim do século XIX. De fato, cada vez mais o
texto literário se inscreve numa relação com a
multidão dos outros textos que nele circulam. Ao
tornar-se o receptáculo móvel, o lugar geométrico
dum fora-do-texto que o percorre e informa, deixou
de ser um bloco fechado por fronteiras estáveis e
instâncias de enunciação claras. [...] Disso é
testemunha a sua perplexidade face a obras como
The waste land de T. S. Eliot, Ulisses de Joyce ou os
Cantos de Pound.[Topia, s. d., p. 171].
39
Katherine Mansfield também usou esse inseto para escrever um texto pleno de silêncios: o
conto “A mosca”. Nele, o velho Woodifield senta-se diante de seu chefe e conversa. Quer falar
algo, mas não se lembra do que é; depois de vários assuntos ligeiros, recorda-se: suas filhas
viajaram para Bélgica para visitar o túmulo de Reggie e do lado dele estava o túmulo do filho
do chefe. Esse comentário gera silêncios: O velho Woodifield fez uma pausa, mas o chefe não
respondeu nada. Apenas um tremor de pálpebras indicou que ele tinha ouvido. [...] “Você
nunca foi lá, não é?”/ “Não, não”. [...]/ “São quilômetros de cemitério [...] e tudo parece um
jardim. Com flores, em todos os túmulos. Alamedas bonitas, largas.”/ Mais uma pausa se fez.
[Mansfield, 2005, p. 261]. Depois que Woodifield saiu, seu chefe nota que uma mosca tenta
sair do seu tinteiro; ele pega uma pena, retira-a de lá e a coloca em pedaço de mata-borrão,
observando todo os primeiros movimentos difíceis do inseto, tentando a custo tirar com as
patinhas da frente tirar a tinta da cara, como um gatinho que se lambe. Depois de muito
trabalho sofrido, quando ela está prestes a voar, o homem, mergulha a pena na tinta e deixa
cair uma gota pesada sobre o pequeno bicho. A luta do inseto para se livrar da morte e o
desejo do homem de observar a sua reação diante daquela vicissitude ciclicamente se repetem
por mais três vezes e se interrompem. O homem joga no lixo o cadáver e o mata-borrão, pede
um novo à secretária e, aí, sente uma repentina infelicidade, mas logo se desvencilha dela,
tentando lembrar do que pensava antes do surgimento da mosca.
188
Não por acaso, Joyce e Eliot são citados em Arranjos para assobio. Na
terceira parte do livro, “Exercícios Cadoveos”, lê-se:
Estes inutensílios foram colhidos entre os mitos
Cadiuéus, narrados pelo Professor Darcy Ribeiro.
Resguardando-se petulância e distância, exercitou-
se aqui a moda posta em prática por Eliot
incorporando à sua obra versos de Shakespeare,
Dante, Baudelaire. E o que fez um pouco James
Joyce aproveitando-se de Homero. E ainda o que fez
Homero aproveitando-se dos rapsodos gregos. Ai
pobres Cadoveos! Este bugre Aniceto aí da frente é
que vai perpetuar vocês? Nem xum.
Fica patente, então, uma perseguição à palavra cada vez mais antiga, ou
seja, o discurso de um autor é associado ao dos seus antecedentes até que se
atinja o princípio: a expressão primitiva, próxima do silêncio, que é
representado no espaço em branco.
Assim, muitas palavras de Eliot vieram de Shakespeare, Dante e
Baudelaire. Muitas palavras de Joyce vieram de Homero. Muitas palavras de
Homero vieram dos rapsodos gregos. E todas essas palavras são perpetuadas
pelo silêncio da linguagem pré-verbal do índio Aniceto.
Os primevos inutensílios de Aniceto ficam no mesmo patamar de
importância do Ulisses, de Joyce, e do Terra desolada, de T. S. Eliot (é nesse
poema que o autor norte-americano cita Shakespeare, Dante, e Baudelaire,
nomes que aparecem nesse poema de Barros). Assim, o índio, tratado pela
sociedade como um ser menor (não por acaso seu nome é Aniceto, que lembra
inseto), cria coisas tão grandiosas quanto as duas obras célebres
mencionadas.
O amálgama entre os reinos animal, vegetal, mineral e hominal é próprio
da cultura indígena. Não por acaso, em “Exercícios adjetivos”, a quarta parte
de Arranjos..., aparece uma casa terena. Os índios Terena, com exceção de um
189
grupo que vive no interior de São Paulo (Áreas Indígenas Araribá e Icatu),
vivem em Mato Grosso (na margem esquerda do alto rio Paraguai) e em Mato
Grosso do Sul (a leste do rio Miranda e a oeste (na Reserva Indígena Kadiwéu).
O processo de adjetivação de um substantivo é a base de “Exercícios
adjetivos”; assim, além da casa terena, aparecem os barrancos ventados, as
pernas areientas de um lagarto, as rolinhas casimiras, uma voz pelada de peixe
e nem mesmo o silêncio escapa dessa dinâmica: ele é rubro.
Na quinta e última parte, homônima ao livro, o silêncio é mencionado em
“O pulo”: Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo/ sapo ficou teso de
flor!/ e pulou o silêncio.[AA – 71]. Em outro poema, um prisioneiro
cumprimenta respeitosamente as moscas, inclusive por que elas anunciam a
morte que está próxima: Na cela de Pedro Norato, 23 anos de reclusão; a
morte sesteava de pernas abertas.../ Sem amor é que encontramos com Deus, -
me diz./ O mundo não é perfeito como um cavalo, - me diz./ Vê trinos de água
nos relógios./ E para moscas bate continências. [AA – 67].
Se as moscas, que na primeira parte do livro, eram portadoras de rios e
ao fim dele são dignas de continências, se o pierrô de Picaso se expressa
melhor em inseto, se surgem homens-vespas, se o nome do índio é Aniceto.
Então, faz-se necessário observar os sentidos do verbete inseto, que serão
analisados na próxima seção.
Inseto, s. m.
Indivíduo com propensão a escória
Pessoa que se adquire da umidade
Barata pela qual alguém se vê
Quem habita os próprios desvãos
Aqueles a quem Deus gratificou com a
sensualidade
[vide Dostoievsky, Os Irmãos Karamazov] [AA –
45].
a mim que se refere o verso. Todos nós, nós os Karamazov, somos assim; e
também dentro de ti, que és um anjo, vive o inseto, que engendra tempestades
no teu sangue. A beleza... é uma coisa tremenda e espantosa. Tremenda
porque é infinita, e não se pode defini-la, porque Deus não nos propôs senão
enigmas. Nela os extremos se reúnem, nela todas as antíteses vivem juntas.
[Dostoiévski, 1952, 1.o vol., p. 241-242].
Esse trecho do livro dostoievskiano chamou a atenção de Barros, tanto
que ele inseriu sua idéia principal no poema em análise: Aqueles a quem Deus
gratificou com a sensualidade/ [vide Dostoievsky, Os Irmãos Karamazov] [AA –
45].
A complexidade dos personagens dostoievskianos – que apresentam uma
beleza na qual todas as antíteses vivem juntas – contamina o sentido do
verbete em questão, que pode tornar-se ainda mais denso e difícil se se pensa
no seu primeiro enunciado: Indivíduo com propensão a escória.
Se Dostoievski é mencionado nas linhas do poema, pode-se aguçar o
olhar para tentar enxergar nas entrelinhas dele a presença de Franz Kafka e
sua A metamorfose. Gregor Samsa, ao se transformar em inseto, não gera mais
a renda da família. Assim, recebe o desprezo dela, ou seja, é um indivíduo com
propensão a escória.
Em Arranjos para assobio, lê-se este outro poema:
Quando houve o incêndio de latas nos fundos da
Intendência, o besouro náfego saiu/
caminhando para alcançar meu sapato (e eu lhe
dei um chute?)/ Parou no ralo do bueiro, olhoso
como um boi/ que botaram no sangradouro
dele/ [Intrigante: não sei de onde veio nem de
que lado de mim entrou esse besouro. Devo ter
maltratado com os pés, na minha infância,
algum pobre-diabo. Pois como explicar/ o olhar
ajoelhado desse besouro?)/ Com seu casaco
preto, chamuscado nas pontas, ele em seguida
nafegou no rumo do jardim e entrou no porão
de um coreto por onde se comeu como um
papel sem gosto/ De manhã, catando pelas ruas
toda espécie de coisas que não pretendem,
sempre eu revejo esse ente que tem por abrigo
o céu, como conchas ao contrário]. [AA, in: PQT
– 203].
192
43
Antonio Vieira, em “O sermão de Santo Antonio” ou “O sermão aos peixes”, depois de
afirmar que um único tubarão devora vários peixes pequenos, faz a seguinte crítica: mais justo
seria o contrário. Manoel de Barros, no processo de miniaturização desse Tratado...,
transforma o tubarão em caranguejo e os peixes, em formigas. O que não ocorre no Sermão do
orador português, no texto manoelino acontece: a justiça e a fome, ligadas aos ínfimos, são
saciadas.
44
Joelice é mestranda na PUC - SP e estuda esse texto clariciano. Ela fez essa observação em
conversa ocorrida em fevereiro de 2007.
197
com asas longas, que podem ser gaivotas ou urubus, o que não é difícil de
aceitar, já que a morte é um tema recorrente ao longo do romance.
Essa capa, com apelo para a luminosidade, é uma reelaboração daquela
da primeira edição, da Editora Agir. Há três cores: o preto, o verde e
provavelmente o branco, que hoje é bege no volume que manuseei45.
45
Agradeço a Joelice Barbosa por me emprestar a raridade.
200
47
O olhar avesso ao verbo está presente: trocaram um olhar sem palavra, sem sentido
traduzível. [Lispector, 1999, p. 213]. Em outro trecho, instaura-se o mutismo para a escuta da
própria interioridade: Esmeralda quedava-se pensativa ouvindo seu silêncio sem entender.
[Lispector, 1999, p. 219].
203
A própria sétima arte, segundo Buñuel, pode gerar quietudes: Creio que
o cinema exerce um poder hipnótico sobre os espectadores. Basta observar as
pessoas que saem de uma sala de cinema, sempre em silêncio, a cabeça baixa
e o ar distante. [Buñuel, 1988, p. 95].
O cinema de Buñuel está pleno de silêncios, como aqueles de “Um cão
andaluz”: o filme é mudo (não há sonorização e a palavra aparece raramente
nas poucas legendas), traz imagens (in) quietas (como a do personagem
masculino que tem sua boca apagada) e carrega-se de elementos obscuros, não
óbvios, confirmando que, para Buñuel, a evidência/ não interessava. [AA – 15].
Nos filmes falados do diretor, que vieram depois de “Um cão andaluz”,
como nota a estudiosa Erika Savernini, primeiro surge a imagem e
posteriormente o verbo, como é o caso do quase-documentário “Terra sem
pão” sobre Las Hurdes, região ao norte da Espanha: O comentário do narrador
só entra depois que a informação visual foi assimilada pelo espectador,
ressaltando fatos escondidos sob a superfície imagética. [...]. Em um dado
momento, mostra-se o plano de uma mulher, claramente envelhecida, com uma
criança ao colo; passados alguns instantes, o narrador revela que aquela
senhora (que o espectador identifica como uma velha) tem apenas trinta e
poucos anos. [Savernini, 2004, p. 82-83].
“O diário de uma camareira” parece ser um dos filmes em que os
mutismos mais se evidenciam. Logo no início da película, tem-se o silêncio da
incomunicabilidade. Celestine, ao chegar à cidade em que vai trabalhar, é
recebida por Joseph, que a leva de coche até a casa dos Monteils. Ela diz: O
campo é sempre um pouco melancólico. A resposta é o silêncio. Ela tenta mais
uma vez: As pessoas não se divertem muito por aqui. A resposta é, novamente,
o silêncio.
É possível que Celestine tenha ouvido essa conversa atrás da porta, pois
em uma outra situação ela o fez. A sua patroa a chama e pede que não use
perfume; Celestine responde que sim e sai. Em seguida, o marido pergunta à
esposa: Você não está exagerando? A resposta é: A garota do ano passado me
custou 1500 francos. Esse valor talvez seja correspondente a um aborto, já que
Monsieur Monteil já havia engravidado outras camareiras. Ele diz: Querida,
uma garota como Celestine, que vem de Paris! Só Deus sabe o que ela fez! As
doenças que pegou! E você me acusa...?
Passados alguns dias, Monteil aborda Celestine e ela mostra o quanto
tem o ouvido fino: desvencilha-se dele, diz que é uma garota suja, que pegou
sífilis e depois o xinga.
O ouvir e o ver de Celestine são requisitados pelo vizinho e inimigo de
Monteil, o ex-oficial Mauger, que pede para incriminá-lo no caso de Claire.
Mauger costuma jogar lixo na casa do seu adversário. Às vezes, arremessa
pedras, como num dia em que acerta o vidro das plantações, no qual passeiam
várias formigas.
208
O ato de mirar insetos está presente desde seu primeiro filme, “Um cão
andaluz”, cujo roteiro é também de Salvador Dali.
48
Salvador Dali espalhou formigas por várias de suas obras, como no célebre quadro “A
persistência da lembrança” e também num desenho cuja imagem acabou sendo incorporada no
roteiro de “Um cão andaluz”.
214
A camareira aprecia ler, tanto que em uma noite, ao servir um chá, ela
tenta ver o que está escrito num livro aberto, mas se depara com o olhar de
ferro [Nassar, 1995, p. 80] de Rabour, parecido com aquele de Um copo de
cólera, de Raduan Nassar, comentado no primeiro capítulo desta tese.
216
Fotograma de “Nazarin”.
À GUISA DE DESCONCLUSÃO
Barros declara seu amor aos mudos pedaços de pessoas, como os entes
beckettianos, e, na silente escuta e na quietez do mirar, mostrando a
necessidade de sair de si, amalgamando-se de compaixão ao que vê e ao que
ouve, principalmente aos que têm voz pequena.
221
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“Trono manchado de sangue”. [1857]. DVD, Continental, S. D.
“Viver” [1952]. DVD, Media Group, S. D.
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DE FEDERICO FELLINI
DE LUIS BUÑUEL