V23n1a04 PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 8

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2003, 23 (1), 22-29

Psicologia Escolar:
Um Duplo Desafio
Resumo: A educação representa a capacidade de um povo organizar-se e construir seu futuro, portanto,
não se realiza ao acaso, mas como consequência de um esforço expressivo. A Psicologia Escolar pretende
facilitar o desenvolvimento humano, mas ainda permanece pouco conhecida. O sucesso no desempenho
do psicólogo escolar exige uma imagem clara de seus principais propósitos, enfrentando um duplo desafio:
ser aceito na escola (sem ter seu papel limitado na busca da promoção do desenvolvimento infantil) e ser
apoiado na organização de atividades preventivas que afetam o curso do desenvolvimento da criança
(envolvendo o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e físico e o enriquecimento da interação social
da criança). Brevemente, o propósito deste estudo é focalizar de forma prática um campo mais eficiente,
amplo e satisfatório para a Psicologia Escolar.
Palavras-chave: Psicologia Escolar, Educação, desenvolvimento infantil.

Abstract: Education is, at the same time, an indicator of the development of a country and a way to its
Luiza Elena Leite progress. It represents a people’s capacity to organize itself and to built its future, so, it doesn’t happen
Ribeiro do Valle randomly, but as a consequence of an expressive effort. School Psychology intends to facilitate human
development, but is not fully understood yet. The successful school psychologist role requires a clear
Psicóloga com image of his primary purposes and faces a double challenge: be accepted in school (without restricting his
especialização em role in order to promote child development) and be helped in organizing preventive activities that affect
Psicologia Clínica e the course of child development (involving cognitive, affective, social and physical development and the
Psicopedagogia. enhancing of the child’s social interaction). Briefly, the purpose of this study is to focus practical assumptions
Mestrado em Psicologia for an effective, broader and more satisfying role for school psychologists.
Escolar pela PUC Key Words: School psychology, Education, child development.
Campinas. Professora da
pós-graduação em
Psicopedagogia na
FUNDEG, em Guaxupé.
Membro da Sociedade
Brasileira de
Neuropsicologia. Autora
do livro “Cérebro e
Aprendizagem: Um jeito
diferente de viver”.
Van Gogh

Os países mais desenvolvidos valorizam a Educação 8-9). O desenvolvimento psicossocial é o estudo


e aqueles que pretendem crescer precisam investir indispensável para a formulação de estratégias eficazes
nela, superar deficiências e expandir sua participação que permitam transcender nossa realidade educacional,
no mundo globalizado. “A criança é o elo mais fraco da qual o psicólogo não pode se alienar. Este estudo
e exposto da cadeia social. Nenhuma nação teórico preocupa-se com a reflexão indispensável à
conseguiu progredir sem investir na infância. A viagem mudança de paradigmas que, no momento, não
pelo conhecimento da infância é a viagem pela garantem campo de trabalho ao psicólogo escolar,
profundeza de uma nação. A situação da infância é apesar da evidente demanda. O psicólogo escolar luta
22 um fiel espelho de nosso estágio de desenvolvimento pela compreensão social de sua função, que esbarra
econômico, político e social” (Dimenstein,1994, p. em dois desafios fundamentais:
Psicologia Escolar: Um Duplo Desafio

● Sua inclusão na escola, para que seu trabalho não valorizado, sem campo de atuação em meio à vasta
termine distorcido ou limitado no campo competitivo carência existente. Por que isso acontece?
que envolve a afirmação de papéis de poder. Sua
participação, com o corpo docente, em programas O psicólogo escolar tem sua especialidade ainda
de intervenção pode permitir que, juntos, promovam pouco difundida. Apenas em 1990, com a
o desenvolvimento infantil, de forma que Psicologia e formalização da Associação Brasileira de Psicologia
Pedagogia se complementem, alcançando os objetivos Escolar e Educacional (ABRAPEE), houve possibilidade
idealizados. de fortalecimento desse campo de atuação no Brasil,
conforme Pfromm Netto (1995) comenta: “o
● Sua atuação preventiva, mais ampla, envolvendo surgimento da ABRAPEE constituiu o coroamento dos
a escola e a família, que precisam valorizar e esforços de todos quantos vinham se empenhando
compreender a necessidade de sua participação, não para dar uma posição de relevo à Psicologia Escolar
apenas remediativa ou voltada para a clínica, em nosso meio para consolidar seu status de área de
portanto, delimitando uma área especial da atuação, de investigação científica e de preparo
Psicologia que diferencie seu papel.
profissional”.
Entre os integrantes do EFA (Education for All,
Numa perspectiva histórica da Psicologia Escolar no “A criança é o elo
Tailândia, 1990), o Brasil foi um dos países que
campo internacional, Batsche e Knoff (1995, p. 569- mais fraco e exposto
apresentaram alta taxa de analfabetismo e, “mesmo
570) enfatizam a tendência inicial da realização de da cadeia social.
avançando muito nos últimos 10 anos, ainda está
longe de onde precisamos chegar”, conforme diagnósticos classificatórios para encaminhamento de Nenhuma nação
afirmação do Ministro de Educação, no Relatório crianças a classes especiais, a partir de uma lei conseguiu progredir
Brasileiro EFA, em 2/02/2000. A situação escolar americana de 1975 (Public Law 94-142, apud sem investir na
brasileira exige mudanças e muito esforço tem sido Hightower, Johnson e Haffey, 1995) destinada a infância. A viagem
feito no sentido de diminuir a defasagem existente garantir a Educação para crianças com deficiências. pelo conhecimento
nas diversas regiões que representam nosso imenso A atuação do psicólogo escolar era, marcadamente, da infância é a
território, mas, mesmo conseguindo-se resultados remediativa e focalizada no indivíduo, uma vez que viagem pela
positivos, como o crescimento do número de a tendência psicometrista predominava, enquanto a profundeza de uma
matrículas e queda na distorção idade-série, houve prática da Psicologia se apoiava na aplicação de testes. nação. A situação
uma tendência geral de rebaixamento dos resultados Nessa tentativa de participar do corpo administrativo
da infância é um fiel
na avaliação dos testes de português e matemática, escolar, o psicólogo precisava limitar-se ao cliente-
espelho de nosso
conforme conclui o Sistema Nacional de Avaliação aluno, evitando interferir nas decisões docentes, como
estágio de
da Educação Básica (SAEB, 2000) com os dados se o seu campo de estudo pudesse estar alheio à
desenvolvimento
obtidos em pesquisa do ensino no Brasil através do influência do ambiente. Entretanto, os problemas
econômico, político
censo educacional de 1999. Ainda, segundo a análise escolares como evasão, repetência, diferenças sociais,
dos dados da pesquisa do SAEB, a cultura da e social” .
associados aos avanços da ciência, levaram o
repetência, já inexistente em países avançados, mas psicólogo a buscar um outro nível de contribuição
permanente aqui, leva pais e professores a Dimenstein
eficaz. O modelo clínico passou a ser criticado na
responsabilizarem o aluno pelas eventuais escola porque não questionava o sistema escolar
deficiências em seu aprendizado, o que, ao invés de (Andaló, 1984, p.43-46). Surgiu a preocupação em
contribuir para a melhoria do desempenho do aluno, valorizar o processo de aprendizagem, priorizando-
acaba por desmotivá-lo, podendo levar até mesmo se uma atuação mais abrangente e indireta, voltada
à evasão escolar.
para programas de treino para alunos com
dificuldades, preparação e treinamento de
Muito tem sido feito para que a escola não se preste
professores, o que Almeida e Guzzo (1992, p.126)
a selecionar os mais capazes e eliminar quem
apontam como um salto marcante que resultou em
enfrenta dificuldade para aprender e, em vez disso,
incorporar todos os alunos. A pesquisa educacional, “uma prática mais incisiva, presente e eficiente da
nos últimos anos, tem procurado revelar aspectos Psicologia no contexto educativo”. O psicólogo
dos bastidores da sala de aula e do funcionamento tornou-se requisitado como um solucionador de
da escola, da atuação dos professores bem-sucedidos, problemas, numa intervenção remediativa, porém
dos processos que produzem à patologização da com foco de atuação institucional.
aprendizagem, de questões relativas à didática do
professor, entre outros. A mobilização pelo A mudança para um enfoque preventivo decorre,
desenvolvimento nacional precisa rever pontos segundo Almeida e Guzzo (1992), de movimentos
negligenciados nessa luta. Para alterar radicalmente da Educação e da Psicologia, rompendo com uma
resultados negativos, há necessidade de um esforço visão reducionista para lançar-se em objetivos amplos,
social, principalmente por parte daquele a quem onde a saúde mental passou a ter relevância,
cabe o papel de especialista na problemática da abarcando a responsabilidade pelo desen-volvimento
escola, o psicólogo escolar, profissional imprescindível integral dos educandos. A prevenção primária, 23
nesse momento e, contraditoriamente, pouco embora mais difícil, procura mudar a
Luiza Elena Leite Ribeiro do Valle

incidência de novos casos, intervindo proativamente, interação entre as características individuais do


isto é, antes que os distúrbios ocorram (Knoff, 1995). desenvolvimento, temperamento e motivação e
São diversas as vantagens: específicos fatores ambientais encontrados em casa
e na escola. Nesse contexto, qual a atuação do
● As competências podem ser aumentadas por meio psicólogo escolar?
da educação.
O psicólogo pode interferir nos fatores de proteção
● O treino pode auxiliar pessoas a desenvolver que podem ser desenvolvidos, voltando-se para os
estratégias competitivas contra círculos viciosos de aspectos resilientes, que não perdem a estrutura em
efeitos negativos ou situações estressantes de vida. situação de estresse, olhando-se para o sucesso e não
para o fracasso escolar. Os fatores orgânicos
● O ambiente pode ser modificado para reduzir ou (distúrbios, dificuldades ou características individuais)
conter circunstâncias prejudiciais. e os fatores de estresse ( que incluem as experiências
vividas em sua rede social e conseqüências da
● Sistemas de apoio podem ser desenvolvidos mais exposição aos conflitos ambientais) atingem,
amplamente. inevitavelmente, as pessoas até antes do nascimento,
mas na fase pré-escolar ou escolar, quando o
A prática de ação dos psicólogos escolares se voltou desenvolvimento biopsicossocial permite que a
para a escola fundamental (Witter et alii., 1992; criança se insira na comunidade que a rodeia, o seu
Guzzo e Weschler, 1993) e o modelo clínico de ajustamento social e saúde mental estarão tomando
intervenção continuou predominando, mas com a forma, determinando seu futuro. O exposto não
nova concepção do contexto educacional, afetado (resiliente) tem fatores de proteção, que
acreditando-se na promoção de saúde, que passou precisam ser analisados para que se possa fazer a
a representar um recurso indispensável na expectativa prevenção de risco.
de um desenvolvimento satisfatório.
A prevenção se preocupa com grupos de alto risco
A saúde é um processo complexo, qualitativo, que (como nas escolas municipais que atendem a uma
define o funcionamento completo do organismo, população de poucos recursos financeiros e culturais
integrando de forma sistêmica o somático e o e com pouca proteção para lidar com colapsos
psicológico, formando uma unidade onde um atua individuais decorrentes de desemprego, vícios,
sobre o outro. Além disso, o indivíduo é influenciado problemas de saúde física ou mental, etc.) e
pelas interações pessoais e transações com o meio; preocupa-se em construir forças adaptativas através
por isso, para compreender o desenvolvimento da educação para reduzir o estresse social,
emocional, é preciso ter em mente uma perspectiva administrando-o (Fergays, 1982, pp. 209-210).
biopsicossocial, de aspectos que interagem e se
complementam no sujeito em formação. Não só o A idéia geral, atrás da promoção de saúde, é
indivíduo é modelado pelo ambiente, como também aumentar as habilidades, força ou adaptação de
o modela, e isso acontece para cada um de forma grupos determinados, isto é, focalizar os aspectos
diferenciada, conforme descreve Rey (1993). positivos de saúde ou ajustamento, conforme destaca
Durlak (1998). Segundo ele, a prevenção primária é
Ainda segundo Rey (1993), o desenvolvimento de a intervenção na população normal , que se destina
um sólido sistema de interesses, de capacidade para a prevenir a ocorrência de futuros problemas. A
decisões, da segurança em si mesmo, de uma auto- prevenção secundária é a intervenção na população
valorização adequados são, entre outros indicadores, com problemas iniciais para evitar o desenvolvimento
aspectos psicológicos indispensáveis a um de conseqüências mais sérias. Os fatores biológicos
desenvolvimento saudável. O processo de ensino individuais estão envolvidos num processo holístico
deve desenvolver operações que estimulem a porque os comportamentos antissociais afetam as
autonomia, a eliminação do medo, a segurança, a outras pessoas (Magnusson, Klinteberg & Statin,
flexibilidade e o afã da busca, aspectos psicológicos 1994); dessa forma, as diferenças individuais precisam
que caracterizam uma personalidade sadia. A escola ser estudadas nos procedimentos preventivos
deve criar toda uma cultura de educandos para suas (Eysenck & Eysenck, 1985). Cabe à saúde mental
relações pessoais, e as crianças e jovens devem positiva uma preocupação com o desenvolvimento
aprender a comunicar-se, com a estimulação do da criança, especialmente levando-se em conta que
diálogo e da capacidade de se colocar no lugar do “a formação da personalidade não ocorre como um
outro. A educação moral deve surgir através da processo espontâneo, mas organizado e orientado
reflexão de atividades e enfatizar a necessidade de através de ações e atitudes concretas e, também, pode
ser autêntico, de que se formem pessoas capazes de ser projetado e avaliado” (Rey, 1993). A maneira
assumir seus sentimentos e suas decisões, expressá- como cada um vê a si próprio depende também do
24 los e defendê-los. O sucesso ou fracasso escolar da modo como é visto pelos outros. O modo como os
criança pode ser conceituado como o resultado da traços
Psicologia Escolar: Um Duplo Desafio

particulares de cada criança são recebidos pelo psicológicos relacionados ao desenvolvimento infantil
professor e pelos grupo em que se insere tem um e às influências ambientais que o atingem, mas
grande impacto na formação de sua personalidade também voltados para a situação de aprendizagem
e sua auto-estima, já que sua identidade está em e dos aspectos psicopedagógicos envolvidos. A
construção. Das experiências vividas, emerge o atuação orientada para o grupo de alunos, não apenas
autoconceito que cada um tem de si, que vai para “alunos problemas”, pode permitir que o
delimitar sua competência em realizar tarefas e professor perceba as crianças em seu jeito individual
relacionar-se com as demais pessoas no meio social de ser, transpondo os muros da escola para conhecer
a que pertence. sobre o aluno mais do que o currículo escolar
determina e, dessa forma, melhorar o seu
Concordando com a importância do período escolar, desempenho, envolvendo-se em seus interesses e
Gridley, Mucha e Hatfield (1995) afirmam que as
realidades (Ribeiro do Valle, 2001). As melhores
pesquisas, em geral, podem trazer informações
práticas na adoção de programas de prevenção (
confiáveis para aumentar as chances de sucesso das
Hightower, Johnson e Haffey, 1995) sugerem,
crianças na escola, oferecendo aos pais e professores
inicialmente, a identificação das necessidades pela
instrumentos para adequar experiências e planos
análise dos sistemas e programas e pela revisão de
curriculares às necessidades individuais. A essência “O psicólogo precisa,
da prevenção secundária é a identificação precoce informações relevantes para que se estabeleça um
relacionamento entre o psicólogo escolar e os então, não apenas
de problemas e a intervenção antes que estes se
de conhecimentos
tornem severos. Nos estágios iniciais, as intervenções
psicológicos
podem encurtar a duração e a intensidade dos
relacionados ao
problemas, e quanto mais novas as crianças, maior
flexibilidade psicológica, permitindo prognósticos mais desenvolvimento
favoráveis. infantil e às
influências
Ainda assim, a mudança de paradigmas na atuação ambientais que o
do psicólogo escolar, minimizando atividades diretas atingem, mas
(solução de problemas) e indiretas (aconselhamentos) também voltados
relacionadas a tratamentos de reabilitação para para a situação de
desenvolver programas preventivos, focalizados em aprendizagem e dos
grupos em que os problemas estão apenas aspectos
começando ou antes que ocorram, exige uma psicopedagógicos
transformação nas expectativas de resultados envolvidos. A
imediatos em favor de procedimentos que possam atuação orientada
fortalecer adequadamente os passos do programa, para o grupo de
orientando as pessoas envolvidas no processo. Vários alunos, não apenas
fatores se encontram presentes na inter-relação que para “alunos
ocorre na aprendizagem escolar, tanto na sala de aula problemas”, pode
(professor, metodologia, colegas) como na família, permitir que o
ou seja, influências extrínsecas ao aluno. O enfoque professor perceba as
da atuação dos psicólogos escolares estaria muito
crianças em seu jeito
mais próximo de uma atitude de interlocução junto
individual de ser,
aos educa-dores, discutindo e refletindo sobre as
transpondo os muros
práticas educacionais na complexidade das relações
que ocorrem no cotidiano escolar (Machado e Souza, da escola para
1997), devendo centralizar-se na competência funcionários da escola, baseados em confiança, conhecer sobre o
estimuladora da pesquisa e incentivando com respeito, boa comunicação e compreensão, que aluno mais do que o
engenho e arte a gestação de sujeitos críticos e auto- contribua efetivamente para a introdução do currículo escolar
críticos, participantes e construtivos, como afirma procedimento. Cada passo deve ser cuidadosamente determina e, dessa
Demo (1993, p. 103). avaliado e compreendido tanto na introdução do forma, melhorar o
programa quanto em sua manutenção e constante seu desempenho,
O psicólogo escolar deve, entre outras atribuições, monitoração, garantindo eficácia. O problema da envolvendo-se em
investigar melhor o processo de construção do seriedade da atividade científica tornou-se crucial, seus interesses e
conhecimento, enfocando os tipos de conhecimento segundo Morin (1998), e o psicólogo escolar, mais realidades”.
trazidos pela criança ao iniciar sua aprendizagem do que nunca, necessita de pesquisas como material
formal na escola e o que ocorre durante o processo, indispensável de trabalho na promoção da saúde na Ribeiro do Valle
segundo Brambilla (1997). A conduta do professor e escola e, é claro, na vida futura das crianças, não
o seu perfil pessoal interferem e têm peso significativo limitando seu campo de ação a “problemas de
para o desenvolvimento e o desempenho dos alunos aprendizagem” que não podem ser recortados do
(Andreazzi, Jacarini e Prigenzi – 1994). O psicólogo restante do ambiente. E será suficiente que o 25
precisa, então, não apenas de conhecimentos psicólogo escolar atue sobre o ambiente da escola?
Luiza Elena Leite Ribeiro do Valle

Além da escola, a família é um importante elemento da escola, permitindo-lhes redimensionar sua atuação
na promoção da saúde porque nela se forma e se em parceria na busca do aproveitamento escolar e
desenvolve a personalidade das crianças, sendo, no desenvolvimento dos filhos. O psicólogo escolar
também, o grupo social onde o homem expressa sua precisa ter conhecimentos sobre a influência da família
maior intimidade e espontaneidade, pois, como no desempenho da criança para delinear as
grupo, a família tem liberdade para definir seu próprio intervenções casa-escola em busca da inserção da
sistema de normas, estilo de vida etc., como afirma criança nas relações éticas e morais que permeiam a
Rey (1993). As interações sociais que acontecem a sociedade que as envolve.
uma criança desde o seu nascimento vão favorecer
o processo de construção do conhecimento Para compreender melhor o significado, para a criança,
do papel da família e da sua relação com a escola,
pode-se recorrer a Bronfenbrenner (1996), que
contribuiu com a visão ecológica no estudo do
desenvolvimento humano, onde destaca o aspecto
mutável, tanto do ambiente como do indivíduo. Ele
define o desenvolvimento como uma mudança no
modo como a pessoa percebe e atua sobre o ambiente,
que, por sua vez, envolve uma correspondência mútua
entre um conjunto de sistemas organizados nos
seguintes níveis: Microssistema (um ambiente
determinado), Exossistema (não contém a criança, mas
a influencia), Macrossistema (o mais geral),
Mesossistema ( relaciona dois ou mais ambientes do
microssistema, como a relação entre família e escola).

Quatro tipos gerais de inter-relações citadas por


Bronfenbrenner (1996, p. 161-162) podem ilustrar a
relação família-escola, que são a participação
multiambiente, ligação indireta, a comunicação inter-
ambiente e o conhecimento inter-ambiente. A
criança vivencia o impacto entre os valores da escola
e da família e deve atender às expectativas de cada
um, ajustando o seu comportamento. O potencial
desenvolvimental em um Mesossistema é aumentado
se:

● as exigências de papel nos diferentes ambientes


são compatíveis;

● os relacionamentos encorajam a confiança mútua


e positiva;

● permitem um consenso de objetivos e equilíbrio


de poder favorável à pessoa.

Para que a família, escola ou qualquer outro sistema


possa proporcionar desenvolvimento, depende da
qualidade de relações estabelecidas com o outro
Microssistema, de forma que haja comunicação
permitindo-lhe testar, reformular e organizar a conjunta e informação. A disponibilidade de
realidade à sua volta, levando-a ao amadurecimento ambientes apoiadores úteis permitirá o desempenho
cognitivo e à formação de bases para novas mais afetivo na educação, por isso o psicólogo escolar
aprendizagens. insere-se como mediador entre os Mesossistemas para
que se complementem, favorecendo preven-
Wise (1995) considera que a comunicação entre o tivamente a criança. O potencial desenvolvimental
psicólogo escolar e os pais é importante para que de um ambiente aumenta em função do número de
dividam informações sobre a criança: a impressão vínculos apoiadores e, “entre esses sistemas, o familiar
positiva dos pais sobre os cuidados que o filho recebe é o que adquire o papel mais relevante no que se
permite que possam seguir as recomendações, abrindo refere à educação e assim, na atualidade, vê-se a escola
26 caminho para a cooperação e para uma melhor e a família em inter-relação contínua” (Bassedas e
comunicação com os professores e demais membros colaboradores, 1996, p. 26).
Psicologia Escolar: Um Duplo Desafio

Há necessidade de se compreender o contexto do psicossocial (resultantes das interações ambientais e


desenvolvimento infantil, com sensibilidade para as familiares), destacando-se: desestruturação familiar,
características típicas ou atípicas que ocorrem insegurança, retraimento, agressividade. Na avaliação
indiferentes às variáveis de idade, sexo, cultura etc., fonoaudiológica, das 159 crianças 41 apresentavam
interpretando os dados a partir dessa perspectiva. alguma alteração na leitura, na escrita ou na elaboração
Em um estudo realizado sobre um serviço municipal de textos, além de outras 17, com predominância de
em Poços de Caldas, criado em 1992, pioneiro no dificuldades relacionadas à audição.
Brasil no atendimento multidisciplinar integrado a
crianças com dificuldades escolares (Cemada), Os resultados levantados no Cemada mostram a
através de uma equipe de saúde especializada em
necessidade de atuação multidisciplinar na
aprendizagem (neurologista, assistente social, 3 Há uma carência de
compreensão e inserção de crianças que não
psicólogos, 3 fonoaudiólogos e 1 pedagogo) que definição de
acompanham o ritmo comum do ensino. Esse
atuam em interação com as famílias e escolas visando modelos de atuação
levantamento possibilitou, também, notar os
à solução dos problemas, pôde-se chegar a do psicólogo escolar
conclusões interessantes (Ribeiro do Valle, 2000). aperfeiçoamentos que se fazem necessários nesse no Brasil, o que
Foram pesquisadas 159 crianças (46 meninas e 113 serviço, em dois níveis: no encaminhamento das dificulta a
meninos) entre 3 e 14 anos de idade. Todas as crianças pelas escolas (porque a demanda é muito identificação de
crianças examinadas apresentavam queixa de superior à capacidade de atendimento) e na habilidades na
dificuldade escolar, sendo repetentes ou não, mas prevenção (uma vez que a maioria dos problemas prática para que ele
com problemas relacionados à alfabetização ou a mereceria uma intervenção anterior ao possa atender às
aspectos anteriores a essa aquisição. Os dados foram estabelecimento do quadro). Acredita-se, entretanto, exigências diversas
coletados do livro de registros do Cemada, de março que esses dois aspectos estão interligados e no contexto de
de 1999 a março de 2000, onde constam os denunciam a ausência do psicólogo escolar, que relações que se
resultados dos exames realizados por cada membro poderia atuar no ambiente natural da criança (na estabelecem em
da equipe e o procedimento recomendado. O escola e junto à família) tanto na prevenção como na torno da criança.
número de crianças encaminhadas pelas escolas com solicitação de avaliações específicas, realizando as
problemas no aprendizado mostrou-se bem maior orientações à escola e à família antes que a criança
com relação ao sexo masculino: (29% de meninas, sofresse frustrações e desencantos que corrompessem
71% de meninos). De acordo com os resultados dos sua auto-estima e determinassem sua marginalização.
exames neurológicos, o número de distúrbios A prevenção, antes de ser um procedimento
orgânicos observados não se apresentou muito alto aplicável, “é conseqüência de uma conjunção social
(27 crianças dos 159 encaminhamentos). Verificou-
e política referendada num compromisso com a
se uma grande incidência de dificuldades referentes
cidadania em seus mais variados aspectos (Belisário,
ao amadurecimento neuro-psicomotor, mas estas,
além de obedecer a um ritmo específico de criança 1992).
para criança, ainda sofrem influência da estimulação
ambiental (93 no total). Guzzo (1990), Marchesi e O psicólogo escolar precisa, portanto, articular os
Martin (1995) definem essas dificuldades de diversos ângulos de uma pluralidade de vozes e estilos
aprendizagem como desordens que acontecem no que compõem o mundo da criança. Como afirma
processo de aquisição de aprendizagem de um modo Morin (1995), o problema não está em que cada
geral, não necessariamente como conseqüência das um perca sua competência, mas em que a desenvolva
causas endógenas/orgânicas, mas, sim, provenientes suficientemente para articulá-la com outras
de fatores variados que podem ser mais facilmente competências (disciplinas e conhecimentos) que,
removidos ou eliminados. Ainda assim, esses ligadas numa cadeia, formariam o anel completo e
processos correspondem a uma dificuldade funcional dinâmico, o anel do conhecimento.
das habilidades cognitivas, que obedecem a um
comando cerebral que se mostra em atraso quando Concluindo, percebe-se que há uma carência de
comparado com a maioria de crianças dessa faixa definição de modelos de atuação do psicólogo escolar
etária, o que as deixa em desvantagem numa no Brasil, o que dificulta a identificação de habilidades
avaliação que não valorize o seu próprio ritmo. Ao na prática para que ele possa atender às exigências
mesmo tempo, em vez de serem apartadas de seu diversas no contexto de relações que se estabelecem
ambiente, elas necessitam, ao contrário, de uma em torno da criança (Del Prette e Del Prette, 1996).
participação e de um envolvimento maior para Esse problema não pode ser resolvido sem uma
superar seus próprios limites, onde a auto-estima, ampliação no atual espaço de ação desse profissional.
que normalmente se machuca nas frustrações, É tempo de rever os impedimentos que obscurecem
precisa ser o suporte para sua mudança. sua possibilidade de exercer os trabalhos sociais que
lhe cabem, sua ausência na educação pública, sua
Na avaliação psicológica, as crianças se situaram, em limitada participação no ensino particular.
geral, na classificação intelectual correspondente à
média. Do total, 122 crianças apresentavam A escola é um espaço vital para a promoção da saúde 27
dificuldades emocionais, quase todas de fundo e é preciso construir uma prática voltada para
Luiza Elena Leite Ribeiro do Valle

a interlocução com outras áreas de conhecimento, por idéias que não encontram caminhos
para articular com outras competências uma ética correspondentes aos desejos de mudanças. O
de transformação social e um novo conceito de saúde, reconhecimento de estruturas próprias de cada
conforme aponta Branco (1999): “A saúde envolve a localidade não pode ser ignorado na imposição de
eliminação da fome, da miséria, da ignorância e de modelos prontos, em lugar da estimulação à criação
qualquer forma de opressão. O compromisso do de soluções adequadas a cada situação. O
psicólogo só pode ser com a mudança social” (p. 34). atendimento psicológico na escola precisa antever
Cabe-lhe pesquisar, intervir, planejar e promover a as dificuldades para resolvê-las, mas também precisa
saúde mental no contexto escolar que, obviamente, oferecer suporte às necessidades especiais para as
não se aparta do restante do ambiente que envolve
quais o psicólogo deve estar capacitado. O
o aluno. O duplo desafio que se ergue diante do
movimento contra a patologização do erro, visando
psicólogo escolar, o de afirmar-se no seu espaço de
a encarar nele um degrau e não um final de caminho,
trabalho para lidar com os aspectos psicológicos e
educacionais que envolvem o desenvolvimento afasta a criança da tendência de responsabilizá-la pelo
infantil e sua adaptação no mundo, faz parte do seu fracasso do processo de ensino, mas o atendimento
campo de atuação. a patologias também pode ser necessário, justamente
para oferecer recursos de adaptação ou reabilitação,
No Brasil, contamos com leis criteriosas que desde que não seja o alvo limitado de ação do
“A saúde envolve a
defendem os direitos das crianças, mas que não são profissional de uma instituição. As controvérsias
eliminação da fome,
regulamentadas e, portanto, não funcionam. existem e precisam ser discutidas. São elas que
da miséria, da
Problemas reais como repetência ou inclusão de tornam cada chegada uma nova partida, um espaço
ignorância e de
alunos são resolvidos com determinações teóricas que a mais a pesquisar. A existência de conflitos pode
qualquer forma de não oferecem respaldo estrutural para atender às ser justamente o fator que torna a presença do
opressão”. exigências práticas que acompanham projetos psicólogo necessária em ambiente multidisciplinares
utópicos. Profissionais competentes ficam “ilhados” e, mais ainda na escola, onde se constrói uma nação.
Branco

28
Psicologia Escolar: Um Duplo Desafio

Luiza Elena Leite Ribeiro do Valle


Rua Goiás 77, CEP. 37701 005 Poços de Caldas- MG
Tel.: 35 37222793

Recebido 18/12/00 Aprovado 22/11/02

ABRAPEE. (1991). Constituição e Estatuto da Associação Brasileira screening. In: A. Thomas e J. Grimes, ed. (1995). Best practices in Referências
de Psicologia Escolar e Educacional, Campinas. school psychology. 3ª ed. Washington: NASP.
bibliográficas
Almeida, L., Guzzo, R. S. L. (1992). A relação psicologia e Guzzo, R. S. L. (1990). Dificuldade de aprendizagem: uma
educação: perspectiva histórica do seu âmbito e evolução. Estudos contribuição ao diagnóstico psicoeducacional. Relatório do CNPQ.
de Psicologia, 9 (3), 117-131.
Guzzo, R. S. L. e Weschler, S. M.(1993). O psicólogo escolar no
Andaló, C. S. de A. (1984). O papel do Psicólogo Escolar. Brasil - cap. III, in: Guzzo, R. S. L. e Weschler, S. M., Psicologia
Psicologia: Ciência e Profissão, 4 (1), 43-46. Escolar: Padrões e práticas em países de língua espanhola e
portuguesa. Campinas: Átomo.
Andreazzi, L., Jacarini, C.S., Prigenzi, L., (1994). Criatividade e
conduta participativa em sala de aula. Resumos – II Congreso Hightower, D., Johnson, D., Haffey, W. (1995). Best practices in
Nacional de Pré-Escolar. Campinas: PUC-Campinas. adopting a prevention program. In: A. Thomas e J. Grimes ed.
Best Practices in School Psychology. 3ª ed. Washington: NASDP.
Bassedas, E., Huguet, T., Marrodan, M., Olivan, M., Planas, M.,
Rossel, M., Seguer, M. e Vilella, M. (1996). Intervenção educativa Knoff, H. (1995). Best practices in personality assessment. In: A.
e diagnóstico psicopedagógico. Porto Alegre: Artes Médicas. Thomas e J. Grimes ed. Best practices in school psychology. 3ª ed.
Washington: NASDP.
Batsche, G., Knoff, H. (1995). Best practices in linking assessment
to intervention. In: A. Thomas e J. Grimes, ed. Best practices in Machado, A. M., Souza, M. P. R. (orgs.). (1997). Psicologia escolar:
school psychology. 3ª ed. Washington: NASP. em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Belisário, M. de A. (1992) Saúde Mental. Em R. H. de F. Campos; Magnusson, D., Kinteberg, B., Sattin, H. (1994). Juvenile and
G.A. V. da Silva; M. de A. Belisário; M. H. C. Moreira; C. R. Darwin; persistent offenders: behavioral and psychological characteristica.
E. D. Gontijo; J. M. Pinto. Psicologia: possíveis olhares outros In R. D. Ketterlinus, Lamb, J. ed. Adolescent problem behaviors.
fazeres. Belo Horizonte: CRP, 4ª Região. Hillsdale. NJ: Erlbaum.

Brambilla, L. H. (1997). Adaptação da Bacil: Bateria de avaliação Marquesi, A. M. Souza, M. P. R. (orgs.) (1995) Da terminologia do
dos comportamentos iniciais de leitura. Dissertação de Mestrado. distúrbio às necessidades especiais. Em: J. Palacios; A. Marquesi
Campinas: PUC-Campinas. (orgs). Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades
educativas especiais e aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes
Branco, M. T. (1999) Psico-higiene e Psicologia institucional, 3ª Médicas.
ed., Porto Alegre: Artes Médicas.
Morin, E. (1998). Ciência com consciência. Tradução de Maria D.
Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento Alexandre e Maria Alice Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes
Médicas. Pfromm Netto, S. (1995). Editorial Informativo ABRAPEE, 3 (6),
1995, 1.
EFA (Eduaction for all). (1990) Reunião Mundial naTailândia.
Brasília: MEC. Rey, F. G. (1993). Personalidad, salud y modo de vida. Mexico:
Unan Iztacala.
Demo, P. (1993) Desafios modernos na educação. Petrópolis:
Vozes. Ribeiro do Valle, L. E. L. (2000). Alfabetização: dificuldades
observadas em crianças da rede municipal de Poços de Caldas em
Del Prette, Z. A. P., Del Prette, A. (1996) Habilidades envolvidas avaliação multidisciplinar. Manuscrito IPF, PUC, Campinas.
na atuação do psicólogo escolar e educacional. IN S. Weschsler
(org.). Psicologia escolar: pesquisa, formação e prática. Campinas: Ribeiro do Valle, L. E. L. (2001). Desenvolvimento sócio-emocional
Alínea. da criança na educação infantil: uma perspectiva preventiva.
Dissertação de Mestrado. PUC, Campinas.
Dimenstein, G. (1994). O cidadão de papel: a infância, a
adolescência e os direitos humanos no Brasil. São Paulo: Ática. SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica). Censo
1999. Brasília: INEP.
Durlak, J. (1998). A successful prevention programs for children
and adolescents. New York: Plenum. Wise, P. S. (1995). Best practices in communicating with parents.
In: A. Thomas e J. Grimes. Best practices in school psychology. 3ª
Eysenck, H.J. & Eysenck, M.W. (1985). Personality and individual ed. Washington: NASP.
differences: a natural science approach. London: Plenum.
Witter, G. P. et alii (1992). Atuação do psicólogo escolar e
Fergays, D. G.(1982). Environmental influences and strategies in educacional no Brasil: perspectivas através de textos (1980-1992)
primary prevention. New England: Vermont. Cap. 2, in: CPF, Psicólogo brasileiro: construção de novos espações,
Campinas, Átomo: 23053. 29
Gridley, B.; Mucha, L.; Hatfield, B. Best practices in preschool

Você também pode gostar