Leher, R. Silva, S. A Universidade Sob Céu de Chumbo, A Heteronomia Instituída Pela Ditaduta Empresarial-Militar

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50 anos do golpe militar

A universidade
sob céu de chumbo:
a heteronomia instituída
pela ditadura empresarial-militar
Roberto Leher
Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
E-mail: [email protected]

Simone Silva
Técnico-Administrativa da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

Resumo: O presente artigo, por meio do método histórico, propugna que a consolidação da
pesquisa e da pós-graduação na segunda metade do século XX esteve associada às contra-
dições provocadas pelo projeto nacional-desenvolvimentista já subordinado ao capitalismo
monopolista. A ditadura empresarial-militar, expressando a supremacia do imperialismo,
engendrou uma contrarreforma sob a égide da heteronomia, erigindo um sofisticado apara-
to de fomento à ciência e à tecnologia que enredou de modo profundo o cotidiano da vida
universitária com a racionalidade da universidade operacional, utilitarista, pragmática. O
estudo realiza um histórico desse processo de heteronomia, discute as formas de repressão
e de cooptação de quadros universitários para o projeto da ditadura e faz indicações sobre
as lutas e resistências que possibilitaram a criação da Associação Nacional dos Docentes
das Instituições de Ensino Superior (ANDES).

Palavras-chave: Universidade. Ditadura Empresarial-Militar. Políticas de Ciência e Tecnologia. Repressão.


Heteronomia. Resistências.

Introdução esteve associada ao capitalismo monopolista sob a


égide da heteronomia, erigindo um sofisticado apa-
Está em curso uma intensa batalha teórica sobre rato de fomento à ciência e à tecnologia que enredou
o significado da ditadura empresarial-militar. O pre- de modo profundo o cotidiano da vida universitária
sente artigo concebe a ditadura no contexto da con- com a racionalidade da universidade operacional,
trarrevolução colocada em marcha pela ação articu- utilitarista, pragmática. O estudo realiza um históri-
lada de frações burguesas locais e dos militares com co desse processo de heteronomia, discute as formas
os núcleos imperialistas dominantes. Neste diapasão, de repressão e de cooptação de quadros universitá-
o texto sustenta que a “reforma” universitária de 1968 rios para o projeto da ditadura e faz indicações sobre

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as lutas e resistências que possibilitaram a criação da mesmo ano para apoiar a formação de docentes para
Associação Nacional dos Docentes das Instituições as universidades e institutos de pesquisa.
de Ensino Superior (ANDES). A principal exceção à lógica militarista na cons-
A expansão da pesquisa e a proliferação de pro- trução de uma universidade com pesquisa sistemá-
gramas de pós-graduação no Brasil são um processo tica, desvinculada da razão militar, estava em curso
singular na história das universidades. Entre as parti- na USP, criada em 1934, orientada pela lógica parti-
cularidades do caso brasileiro é importante destacar cularista dos setores dominantes paulistas, derrota-
que as universidades são instituições tardias, pois cria- dos em 1932, que compreenderam o alcance de uma
das apenas no século XX; a constituição das entida- universidade com pesquisa para a concretização da
des representativas dos cientistas, como a Academia hegemonia burguesa paulistana: daí o lema “A ciên-
Brasileira de Ciências (1916) e a SBPC (1948), igual- cia vencerá!”.
mente são do último século. As primeiras instituições O caráter tardio da universidade não é a única
públicas de fomento à ciência e à tecnologia, como o particularidade do caso brasileiro. A pós-graduação,
Conselho Nacional de Pesquisas (CNP, atual CNPq), antes limitada a raros programas, foi exponencial-
foram criadas em 1951, fundamentalmente, objetivan- mente expandida na década subsequente ao golpe
do o domínio da energia nuclear como conhecimento empresarial-militar de 1964, passando de 36 pro-
geopolítico (1951-54) (em 1951, a área recebeu 65% gramas em 1965 para 669 em 1976, crescimento que
do seu orçamento total, conforme Morel, apud Fer- seguiu vertiginoso até o final da ditadura, em 1985,
nandes, 1990, p. 90-91). A CAPES foi instaurada no quando foram contados 1116 cursos1. E mais intri-

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50 anos do golpe militar gante ainda, a expansão da pós-graduação não se deu enfrentar os obstáculos à industrialização e ao desen-
em um contexto reformista burguês, nos moldes de volvimento. Ilustrativo deste posicionamento, físicos
uma revolução burguesa clássica, no bojo da cons- ilustres como José Leite Lopes, Jaime Tiomno e Luís
trução de um projeto autopropelido de nação (casos Marques assessoraram o Conselho Nacional de Eco-
da universidade napoleônica e humboldtiana); ao nomia, objetivando identificar e solucionar os garga-
contrário, a revolução burguesa, em processo, obje- los tecnológicos para a industrialização do país, o que
tivava maior estreitamento com as frações burgue- demandaria uma profunda reforma da universidade,
sas hegemônicas no capitalismo monopolista, isto é, com o fim de torná-la coetânea dos desafios da segun-
com o núcleo imperialista do capitalismo mundial. da etapa de substituição das importações, a produção
Por isso, o caso brasileiro não deixa de ser pleno de de maquinaria pesada (Fernandes, 1990, p. 87).
elementos desconcertantes, contraditórios e aparen- Os obstáculos concretos a uma reforma universi-
temente paradoxais: a consolidação da pesquisa e da tária inscrita no rol de reformas estruturais ficaram
pós-graduação se deu pari-passu à institucionaliza- patentes na derrota em 1961 do projeto liberal da
ção da heteronomia universitária imposta por uma LDB em favor do Substitutivo Lacerda, francamente
severa ditadura empresarial-militar. Assim, mais privatista. Não havia entre as lideranças da burguesia
pesquisa e pós-graduação significaram menos auto- uma efetiva disposição de empreender uma transfor-
nomia universitária, abarcando as suas três dimen- mação radical da universidade, como ficaria eviden-
sões axiais: didático-científica, de gestão financeira e te, após o golpe, no processo de desmonte da UnB,
de meios administrativos para assegurar a liberdade em 1964-1965 (Salmeron, 1999). A falta de apoio das
acadêmica. frações burguesas dominantes locais a tais reformas
Foi na ditadura que esse processo foi consolida- confirmam a impertinência (para as frações bur-
do, conforme os grandes números da pós-graduação guesas vitoriosas no golpe) da substituição das im-
confirmam, mas seria um erro estabelecer uma pe- portações e do projeto nacional-democrático, como
riodização em que o pré-1964 fosse considerado supunham ser possível um arco de forças que reunia
o PCB (conforme a Declaração de Março de 1958),
a SBPC, o ISEB, a esquerda trabalhista, movimentos
Assim, mais pesquisa e pós-graduação significaram sindicais, estudantis e iniciativas populares como o
menos autonomia universitária, abarcando as suas três CPC da UNE, as campanhas de alfabetização e cons-
dimensões axiais: didático-científica, de gestão financeira cientização em curso no Nordeste etc.
e de meios administrativos para assegurar a liberdade Mesmo no período em que se supunham possíveis
acadêmica. as reformas de base, no caso da reforma universitá-
ria, a comunidade científica organizada na SBPC não
contribuiu de modo destacado para constituir uma
como um período de plena liberdade acadêmica, frente ampla em prol da reforma (Fernandes, 1990, p.
apoio público e universal à pesquisa, um tempo de 89), preferindo o apoio de empresários considerados
florescimento do pensamento crítico em todas as es- progressistas, leia-se industriais, em detrimento das
feras da universidade, e o pós-ditadura como o mar- lutas conjuntas com o movimento estudantil (UNE)
co zero da heteronomia. e popular (movimentos de alfabetização popular, sin-
Como assinalado, as primeiras iniciativas públicas dicais, CPC etc.).
de maior envergadura em prol da ciência e da tecno- Os limites reformistas da comunidade científica
logia estavam orientadas por uma ratio militar (geo- devem-se, entre outros fatores, à forma de financia-
política) e pela ideologia do desenvolvimento. Cabe mento à ciência e à tecnologia. No pós-II Guerra,
ressaltar que, para os cientistas participantes desse com o desenrolar da Guerra Fria, muito da pesquisa
processo, o domínio da física nuclear era muito mais universitária dependeu do financiamento de fun-
amplo, pois poderia abrir caminho para a ciência dações privadas estadunidenses, como a Fundação
básica e para a formação de pessoal capacitado para Ford, por exemplo. Certamente, existiram pesquisas,

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auspiciadas por tais fundações e agências de governo, recursos no período anterior ao golpe de 1964.

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que contribuíram para a consolidação da pesquisa no O montante de recursos internacionais permite
Brasil, a exemplo dos avanços na genética (Rockefel- dimensionar o quanto a comunidade acadêmica era
ler), na geologia (USAID) etc., o mesmo podendo ser dependente de tais recursos e dos laços criados com
dito de intercâmbios com universidades estaduniden- as instituições estadunidenses. Em 1965, a Revista Ci-
ses em vários campos do conhecimento. Contudo, o ência e Cultura publicou informações do Defense Re-
apoio dessas fundações pressupunha uma universi- search Office publicizando os investimentos das orga-
dade que não fosse hostil ao imperialismo, inclusive nizações americanas no Brasil no período 1961-1964.
sob a forma do nacional-desenvolvimentismo, ge- Foram disponibilizados 13.703.576 dólares, cerca de
rando contradições e tensões, pois, como assinala- U$ 110 milhões na moeda de hoje, montante que, na
do, importantes setores da intelligentsia universitária época, pode ser considerado relevante, pois sequer
abraçaram tal projeto, a exemplo da UnB e, fora da havia orçamento para pesquisa no Brasil.
universidade, da Petrobras. Não casualmente, parte
relevante dessa intelligentsia foi cassada pela ditadura. Tabela 1: Financiamento estrangeiro a pesquisa
No período pré-1964, em que prevaleceu o finan- (1961-1964)
ciamento das fundações estadunidenses e da USAID, Ford Foundation $ 3.955.000
a ética na produção do conhecimento dependeu, em Rockefeller Foundation $ 1.850.983
grande parte, da ética dos pesquisadores envolvidos e, Kelling Foundation $ 592.157
U. S. Air $ 313.300
em alguns casos, dos representantes locais das referi-
United Nations - Technical Assistance $ 6.502.200
das fundações, engendrando relações sociais contra- U. S. Department of Agriculture $ 248.838
ditórias entre pesquisadores e doadores e, em certos Nat. Institute of Health $ 132.478
casos, conflituosas; afinal, no contexto da Guerra Fria Department of Defense $ 96.320
Atomic Energy Commission $ 12.300
não poderia haver apoio desinteressado.
FONTE: Informações obtidas na Revista Ciência e Cultura da SBPC,
Toda a área de convênios relacionada com a trans-
1965, vol. 17, nº 1.
ferência de conhecimentos foi acompanhada de
perto pelo Departamento de Estado dos EUA, bem Desse modo, antes mesmo do golpe, parte da co-
como por seus órgãos de informação e inteligência. munidade acadêmica já estava fortemente vinculada
Tais formas de colaboração, em que pesem benefí- ao modelo estadunidense e, como assinalado, não
cios localizados, não poderiam concorrer plena- possuía vínculos efetivos com os movimentos refor-
mente para forjar um sistema universitário dotado mistas. Os formuladores das políticas educacionais e
de autonomia efetiva. Para entender o problema da de ciência e tecnologia, comprometidos com a prepa-
heteronomia, é preciso diferenciar: (i) a ação media- ração e a efetivação do golpe, sabiam que a universi-
da pelas fundações estadunidenses e pela USAID em dade poderia ser um celeiro onde aliados e colabo-
sua cruzada anticomunista (Scheman, 1988); e (ii) o radores poderiam ser buscados. Os empresários, os
internacionalismo universitário, presente, por exem- militares e os tecnocratas (seus técnicos títeres, na ex-
plo, nas missões francesas durante a criação da USP pressão de Fernandes, 1984) sabiam que os docentes
ou no aperfeiçoamento de professores no exterior, propensos a apoiar o golpe estavam dispersos e, por
seja em programas de pós-graduação, seja em grupos isso, centros de pensamento como o IPES-IBAD2 se
de pesquisa. Esta distinção não significa que tenha empenharam em estreitar os laços destes intelectuais
inexistido pesquisa eticamente orientada auspiciada com os círculos de tecnocratas envolvidos com a di-
na forma apontada em (i) ou, alternativamente, que tadura empresarial-militar. Certamente, muitos cien-
toda pesquisa advinda de (ii) tenha sido crítica e li- tistas, embora reconhecessem a validade do modelo
vre das influências particularistas, em especial pelo estadunidense, recusaram colaborar com o regime,
contexto de Guerra Fria. As fundações e a USAID ti- buscando o exílio e mesmo resistindo quase que clan-
nham objetivos muito claros ao auspiciar a pesquisa destinamente nos interstícios da universidade e das
no Brasil, ação que envolveu considerável soma de entidades científicas.

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Repressão e heteronomia Tais nexos aconteceram de modo institucional,
mas também de forma sub-reptícia na institucio-
As resistências existiram e foram relevantes. Os nalidade, com a colaboração de reitorias, diretores
acadêmicos mais estreitamente vinculados ao projeto e chefes de departamentos, a exemplo da demissão
nacional-desenvolvimentista, expresso, por exemplo, de um grande número de docentes que não possuía
na UnB, na SUDENE, no ISEB, na UNE e nos movi- vínculos estáveis com as instituições e que puderam
mentos populares, foram prontamente identificados ser afastados por atos ditos administrativos. Estima-
como potenciais inimigos do golpe. No primeiro ano tivas conservadoras confirmam mais de 300 casos
da ditadura, 85 foram cassados, entre os quais se des- de afastamento de docentes universitários no país
tacam Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire. durante a ditadura4, muitos deles indicados em reu-
Entidades como a SBPC, que, no momento do gol- nião de departamentos, como os da Medicina da USP
pe, mantiveram relativo silêncio, em 1965 já expres- (Fernandes, 1984) ou por decisão de chefes de de-
savam preocupação com os afastamentos e com os partamento, como Eremildo Luis Vianna, no IFCS-
Inquéritos Policiais Militares, especialmente na UnB, -UFRJ; este número não compreende os que, por
instituição em que mais de 80% dos seus docentes fo- terem suas vidas ameaçadas ou não vislumbrarem
ram expulsos ou se viram forçados a sair (Salmeron, condições mínimas de liberdade, se viram forçados
1999). Repressão que atingiu de modo especialmente a abandonar a universidade (como os 225 docentes
violento também os estudantes, pois mais de 250 fo- da UnB que saíram após a demissão de 15 colegas).
ram expulsos em 1969. Objetivando impor o silêncio Ademais, inexiste levantamento completo sobre os
sobre o movimento estudantil, em 1964 foi instituída docentes e os estudantes assassinados, a exemplo da
a Lei Suplicy de Lacerda, criando o Diretório Nacio- professora Ana Rosa Kucinsky, do Instituto de Quí-
nal dos Estudantes (sob estreito controle e vigilância mica da USP, e de seu companheiro, o físico Wilson
das reitorias), proibindo greves e propagandas par- Silva, e de Vladimir Herzog (Comunicação USP e
tidárias nas entidades estudantis e, em 1969, foi edi- FAAP), totalizando, entre estudantes, docentes e téc-
tado o Decreto 477 voltado mais diretamente para a nicos, 47 mortos na USP5 e, na UFRJ, ao menos 25
repressão estudantil. pessoas já comprovadas.
Seria um erro compreender que, na perspectiva dos
interesses burgueses, o processo de repressão a profes-
Com o AI-5/1968, mais 168 professores universitários e de sores e estudantes significou destruição; ao contrário,
institutos públicos de pesquisa foram cassados, inclusive cabe aqui a expressão consagrada por Schumpeter de
os 10 cientistas da Fiocruz, no que ficou conhecido como “destruição criadora”. Ao mesmo tempo em que a re-
o “Massacre de Manguinhos”. Paulatinamente, foram pressão foi recrudescida, o governo e seus apoiadores
sendo erigidas finas teias de relações entre os aparatos avançavam na contrarreforma da universidade, um
de repressão do Estado, como o SNI, DOPS, CENIMAR, e a objetivo perseguido de modo diligente desde os pri-
vida cotidiana das universidades.
meiros meses da ditadura. Como assinalado, a pós-
-graduação, como lócus da pesquisa sistemática, era
Com o AI-5/1968, mais 168 professores universi- reduzida antes de 1964 e o governo necessitava de
tários e de institutos públicos de pesquisa foram cas- nichos capazes de formar pessoal com maior sofistica-
sados, inclusive os 10 cientistas da Fiocruz, no que ção para erigir a infraestrutura indispensável ao capi-
ficou conhecido como o “Massacre de Manguinhos” . 3
talismo monopolista, em áreas como energia, agricul-
Paulatinamente, foram sendo erigidas finas teias de tura, engenharias, telecomunicações etc.
relações entre os aparatos de repressão do Estado, Um primeiro passo foi conduzir a pós-graduação
como o SNI, DOPS, CENIMAR, e a vida cotidiana ao modelo tido como recomendável, o estaduniden-
das universidades. A partir de 1970 foram criadas 35 se, e guiá-la pelo objetivo estratégico da formação de
Assessorias Especiais de Segurança e Informações capital humano. Este foi o sentido de sua regulamen-
(AESIs ou ASIs) nas principais universidades do país. tação através do Parecer nº 977/65 e o financiamento

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oriundo das parcerias com as agências internacionais foi precedida pelos contratos com os EUA destina-

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foram os caminhos traçados para consolidar o ensi- dos ao planejamento da educação e execução orça-
no superior e a pós-graduação no Brasil, o que gerou mentária, através dos acordos MEC-USAID. Pode-se
um crescimento quantitativo. Este parecer não fez afirmar que a Lei 5.540, de 28 de novembro de 1968,
nenhuma tergiversação sobre suas intenções. Títu- institucionalizou de modo combinado (pois expres-
lo de um dos tópicos: “Um exemplo a ser seguido - a sa posicionamentos de formuladores brasileiros
norte-americana”. e estadunidenses) todas essas iniciativas contrarre-
formistas.
Sendo ainda incipiente a nossa experiência
em matéria de pós-graduação, teremos [...] ao analisar o Relatório do Grupo
de recorrer inevitavelmente a modelos de Trabalho da Reforma Universitária. Ao
estrangeiros para criar nosso próprio sistema. compará-lo com o Relatório MEC-USAID
O importante é que o modelo não seja objeto para o ensino superior, notamos de imediato
de pura cópia, mas sirva apenas de orientação. as grandes semelhanças: a concepção
Atendendo ao que nos foi sugerido pelo empresarialista da universidade e o paradigma
aviso ministerial, tomaremos como objeto explícito da universidade norte-americana a
de análise a pós-graduação norte-americana, mostrar o caminho para a brasileira. Em reforço
cuja sistemática já aprovada por uma longa a esse (pré) conceito, o Relatório MEC-USAID,
experiência tem servido de inspiração a outros só publicado em 1969, dizia que a versão
países (PARECER Nº 977/1965). preliminar havia sido levada como subsídio ao
Grupo de Trabalho da Reforma Universitária
A intervenção estadunidense neste período não (CUNHA, 1988, p. 24-25).
era privilégio do Brasil; outros países da América La-
tina também conviviam com esse tipo de ingerência, A consolidação e o crescimento quantitativo da
seja a partir do financiamento e da organização de universidade e da pós-graduação se dão sob a égide
golpes militares, seja como no caso do Projeto Ca- autocrática, desvinculado de um projeto autoprope-
melot (Horowitz, 1969), criado em 1964, com recur- lido de desenvolvimento científico comprometido
sos do Special Operations Research Office-Soro, do com os problemas atuais e futuros dos povos. O cres-
Exército dos Estados Unidos, porém operado pela cimento acelerado da pós-graduação, por isso, apro-
American University of Washington, com o objetivo
de avaliar a possibilidade de guerras nacionais nos Criadas as normas para a expansão da pós-graduação, o
países da América Latina, a capacidade dos governos próximo passo da ditadura foi se apropriar dos anseios
de prevê-las e a probabilidade de que estes governos sociais, em especial, estudantis, da noção de reforma
pudessem constituir um sistema capaz de obter in- universitária, ressignificando o seu conteúdo e adotando
formações essenciais para o controle da situação. medidas presentes na UnB que, recontextualizadas,
Criadas as normas para a expansão da pós-gradu- poderiam garantir a legitimidade da “reforma”.
ação, o próximo passo da ditadura foi se apropriar
dos anseios sociais, em especial, estudantis, da no- fundou a heteronomia da universidade vis-à-vis ao
ção de reforma universitária, ressignificando o seu Estado e ao capital. Ainda que, contraditoriamente,
conteúdo e adotando medidas presentes na UnB que, tenha propiciado condições de pesquisa teórica rele-
recontextualizadas, poderiam garantir a legitimidade vante, especialmente na ciência básica, contribuindo
da “reforma”. A Comissão Meira Mattos (dezembro para a formação de pesquisadores, socializou muitos
de 1967) e, a seguir, o Grupo de Trabalho da Reforma dos novos pesquisadores em conformidade com uma
Universitária (julho de 1968), como iniciativas que, racionalidade tecnicista, não crítica, frente ao padrão
embora não plenamente coincidentes, tinham como de acumulação do capital expropriador e explorador
meta fazer o ajuste da universidade brasileira aos re- da grande massa popular, difundido como “milagre
quisitos do capitalismo monopolista. econômico” realizado com um enorme custo socio-
Além de permanentemente acompanhada pelos ambiental, em especial sobre os movimentos do cam-
intelectuais estadunidenses, a Reforma Universitária po e sobre os povos indígenas.

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50 anos do golpe militar O esforço de ampliação da base de apoio ao pa- Desenvolvimento - PED (1968-1970) e tinha como
drão de acumulação empreendido pela ditadura em- perspectiva principal constituir um instrumento de
presarial-militar e de expansão da pesquisa, inserida apoio à C&T que pudesse ter expansão nacional. Seu
no II Plano Nacional de Desenvolvimento como um objetivo era formular programas de investigação de
objetivo estratégico, exigiria reequilibrar os termos temáticas que possibilitassem o desenvolvimento
repressão-persuasão, ampliando os meios persua- do país nas áreas consideradas estratégicas: astrono-
sivos, reduzindo, a partir de 1975, os meios aberta- mia, matemática, física, química e tecnologia, além
mente coercitivos, em prol de formas mais sutis de de biologia e ciências sociais e de uma preocupação
coerção, como a imposição de agendas, prioridades, particular com a região amazônica.
metas, por meio de constrangimentos econômicos Com efeito, o realinhamento da C&T nas políti-
(Leher e Silva, 2011). Daí a prioridade do governo cas do governo militar exigiria recursos financeiros
ditatorial no controle mais estreito e orgânico dos ór- e mecanismos de controle para garantir a eficácia
gãos de fomento. pretendida. A reconfiguração da Capes e do CNPq
Os antigos conselhos precisavam se adaptar à de autarquia para fundação de direito privado foram
nova situação do país. Logo após o golpe, o CNPq decisivas para o estabelecimento de uma nova meto-
sofreu a tentativa, inicialmente, sem sucesso, de ser dologia de financiamento da pesquisa, assim como a
transformado em fundação. Já a Capes teve seu pa- criação de outros órgãos já com características cla-
pel de Campanha transformado em Coordenação ras de agências de financiamento, como a Fundação
e, posteriormente, em órgão executivo das políticas de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fa-
do MEC. O plano quinquenal para a pós-graduação pesp), o Programa de Expansão Tecnológica (Pro-
foi instituído a partir do Programa Estratégico de tec), órgão do Banco Nacional do Desenvolvimen-
to (BNDE), a Financiadora de Projetos (Finep) e o
Fundo Nacional de Desenvolvimento de Ciência e
Tecnologia (FNDCT). Esta última pode ser con-
siderada a política mais definitiva de siste-
matização de financiamento.
Em 1971, a Finep assumiu a Secreta-
ria Executiva do FNDCT, provocando
uma grande mobilização na comunidade
científica ao financiar a implantação de
novos grupos de pesquisa e programas,
a expansão da infraestrutu-
ra de C&T e

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a consolidação da pesquisa e da pós-graduação. Sua O plano seguinte foi brindado com uma impor-

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tarefa foi além da distribuição de recursos, incluindo tante reformulação no CNPq, em 1974, que passa a
a análise da viabilidade de projetos de investimen- ser denominado Conselho Nacional de Desenvolvi-
to para o Ministério de Planejamento. As políticas mento Científico e, no ano seguinte, sob justificativa
de C&T sempre estiveram vinculadas à ideia de de- de maior agilidade operacional e sem as resistências
senvolvimento, porém, no período da ditadura, este verificadas em 1964, é transformado em fundação de
processo foi planificado. A cada plano de desenvolvi- personalidade jurídica de direito privado e é vincula-
mento do país, desde o PED, foram elaborados planos do diretamente à recém-criada Secretaria de Planeja-
de desenvolvimento das políticas de C&T. Avançando mento (Seplan/PR), ligada à Presidência da Repúbli-
na política de planificação da distribuição dos recur- ca, o que significava seu deslocamento para o centro
sos, em 1972 foi criado o Sistema Nacional de Desen- das decisões econômicas do país.
volvimento Científico e Tecnológico (SNDCT) com a
Pode-se afirmar que a Seplan era a
meta de incentivar a pesquisa no setor privado. Atu-
representação da consolidação do Estado
ando em conjunto com o Ministério do Planejamen- tecnocrático. Era ela o centro do poder e da
to, objetivava realizar estudos relativos à formação articulação entre os ministérios, empresas
de política nacional de desenvolvimento científico privadas e estatais e a responsável por coordenar
e desenvolver, a partir de seus órgãos, acessórios
através da realização de pesquisas por sociedade de
como o Ipea – Instituto de Pesquisa de Economia
economia mista e empresas do setor privado, com a Aplicada, planos de execução orçamentária e
articulação com órgãos de pesquisa governamentais. projetos, acompanhando-os detalhadamente.
O I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) Por este quadro e pelo entendimento de que
(1972 a 1974) priorizou a orientação de transferência os avanços tecnológicos do país tinham uma
relação direta com o crescimento econômico
de tecnologia para o país, projeto que foi incorpora-
e, principalmente, pelas suas características de
do ao Plano Básico de Desenvolvimento Científico e centralização, estabeleceu-se uma vinculação
Tecnologia – I PBDCT (1973-1974). Submetido ao entre o CNPq e a Seplan. Além desta mudança,
Ministério do Planejamento e Coordenação Geral o CD – Conselho Deliberativo do CNPq
foi substituído pelo Conselho Científico
em articulação com o CNPq, dedicava-se ao desen-
e Tecnológico – CCT, órgão máximo de
volvimento de novas tecnologias, basicamente Ener- assessoramento do CNPq (SILVA, 2012,
gia Nuclear e Pesquisa Espacial, novas indústrias na p. 103, 104).
área de eletrônica, química, aeronáutica e no forta-
lecimento da capacidade de absorção e criação de
tecnologia pela empresa pública e privada. Outro Outro elemento importante no plano era o engajamento do
elemento importante no plano era o engajamento setor produtivo. Foi necessário o fortalecimento financeiro
do setor produtivo. Foi necessário o fortalecimen- e institucional para a consolidação de infraestrutura
to financeiro e institucional para a consolidação de de pesquisa científica e tecnológica com o intuito de
infraestrutura de pesquisa científica e tecnológica integrar a indústria, a pesquisa e a universidade. Para tal
com o intuito de integrar a indústria, a pesquisa e a empreendimento, a dimensão das dotações orçamentárias
universidade. Para tal empreendimento, a dimensão foi de um grau inédito no Brasil.
das dotações orçamentárias foi de um grau inédito
no Brasil. Para avaliar a ordem de grandeza dos va-
lores destinados aos programas brasileiros, pode-se Em 1976, o CNPq adotou uma tabela de classifica-
mencionar que o programa global de apoio técnico ção de áreas, que aparentemente serviria apenas para
da ONU ao mundo ‘subdesenvolvido’ foi de cerca de avaliar os resultados das políticas de expansão. No
US$ 320 milhões ou Cr$ 1,9 bilhões anuais, enquanto entanto, ela serviu como base para o estabelecimento
que o I PBDCT contou com dispêndios federais no de um critério hierárquico e supostamente merito-
biênio de 1973-1974 na ordem de Cr$ 4,3 bilhões, ou crático, efetivado pelos comitês assessores organiza-
seja, Cr$ 2.150 bilhões anuais (valores de 1973). dos por áreas do conhecimento.

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50 anos do golpe militar Retoma-se mais uma vez a questão Diante da debilidade do III PBDCT, o governo
apresentada por Bourdieu (1983). Os comitês ditatorial encaminhou o I Plano de Apoio ao De-
assessores são formados por membros do
senvolvimento Científico - PADCT (1982), criado
campo científico que detêm o poder de analisar
e propor uma hierarquia entre os campos do para facilitar a obtenção de empréstimos interna-
saber, entre os cientistas e entre temáticas a cionais, concebido como um instrumento de ação
serem pesquisadas. E que desembocará na complementar às agências de financiamento e com
preocupação de Merton na composição do
metas pré-definidas a alcançar. A aprovação final do
Effect Matheus, que aponta o estabelecimento de
grupos de pesquisas de primeira classe que terão primeiro empréstimo e a renovação do contrato só
sempre uma boa avaliação, salvo problemas ocorreram após o fechamento dos acordos da dívida
muito graves, e, portanto, sendo beneficiados externa brasileira. A presença do Banco Mundial, já
com as mais altas quantias de financiamento
existente há pelo menos três décadas, foi intensifica-
(SILVA, 2012, p. 106).
da no financiamento e na determinação das políticas

O II PBDCT (1976-1979), diferente do I PBDCT, de C&T.

priorizava as políticas industrial e agrícola em detri- Em 1985, foi criado o Ministério de Ciência e Tec-

mento da pesquisa científica. Porém, seguia a política nologia – MCT, constituindo um ‘novo marco’ para a

de alinhar a universidade, empresas e setores públi- história da C&T no Brasil baseado nos mesmos argu-

cos e privados nos trilhos definidos para a atividade mentos que sempre circundaram a C&T: o fortaleci-

de C&T. O III PBCDT (1980-1985) teve sua vigência mento da educação e da pesquisa como elemento de

no período de crise política e financeira e direcionou desenvolvimento do país sem romper as barreiras da

o grosso dos recursos para a EMBRAPA, que, no pe- dependência tecnológica e científica.

As nações capitalistas desenvolvidas e,


principalmente, as nações hegemônicas do
O setor produtivo privado, por sua vez, pouco contribuiu mundo moderno podem financiar os progressos
para a absorção do pessoal altamente qualificado globais da ciência e da tecnologia avançada
e para a instalação de uma nova infraestrutura de (...). As nações subdesenvolvidas precisam pôr
pesquisa e desenvolvimento, confirmando que não é a em primeiro plano seus objetivos nacionais
e, portanto, para elas o processo interessa na
indução a partir da universidade que poderia modificar o
medida em que, através da modernização ou
padrão tecnológico das empresas, o que, após 1985, da racionalização do ensino e da expansão da
determinará medidas ainda mais diretamente vinculadas pesquisa científica e tecnológica, elas conseguem
ao setor produtivo. melhores condições de participação do fluxo
do padrão de civilização de que participam.
Isto significa que, para elas, o que entra em
ríodo 1981-1984, possuía um orçamento superior ao jogo, na fase da negação e de superação do
do CNPq e, neste, os recursos para ciência aplicada subdesenvolvimento, é o grau de autonomia
cultural relativa que alcança (ou pode alcançar)
eram cada vez maiores do que os de ciência básica:
por meio da educação escolarizada, da ciência
em 1984, 40% maiores (Fernandes, 1990, p. 157). e da tecnologia avançada (FERNANDES, 1975,
Um balanço dos três PBDCT indica que, apesar de p. 88-89).
toda a pressão por parte do governo, grande parte da
pesquisa seguiu localizada nos cursos de pós-gradu- De forma distinta da busca “de autonomia
ação. O setor produtivo privado, por sua vez, pouco cultural”, o aparato de fomento à C&T erigido no
contribuiu para a absorção do pessoal altamente qua- período ditatorial institucionalizou a heteronomia
lificado e para a instalação de uma nova infraestrutu- estrutural da universidade frente ao Estado, aos go-
ra de pesquisa e desenvolvimento, confirmando que vernos e aos interesses particularistas do capital.
não é a indução a partir da universidade que poderia Difundiu um ethos acadêmico, referenciado no prag-
modificar o padrão tecnológico das empresas, o que, matismo e no utilitarismo, que naturaliza a associa-
após 1985, determinará medidas ainda mais direta- ção entre conhecimento e capital humano, inserindo
mente vinculadas ao setor produtivo. as universidades nos circuitos de regulação da força

14 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #54


de trabalho. Mesmo a autonomia constitucionalmen- sidades de pessoal formado com maior sofisticação

A universidade sob céu de chumbo


te assegurada posteriormente, em 1988, nasce como científica. Desse modo, a exponencial privatização da
letra morta, tal a assimilação da crença de que a hete- educação foi mais um dos acres frutos da ditadura
ronomia é um dado a não ser problematizado. empresarial-militar.
O abandono do objetivo da autonomia cultural
levou a ditadura a optar por uma massificação re-
lativa da educação superior, um dos impulsionado- Resistências e lutas
res da contrarreforma de 1968, em virtude das lutas
dos chamados excedentes, por meio da expansão da As resistências das universidades, de seu movi-
rede privada, preferencialmente, pela proliferação mento docente, estudantil e técnicos e administrati-
de cursos de curta duração. O GT sobre a Reforma vos foram de crucial importância nas lutas contra a
Universitária e, em outros termos, o Relatório Atcon, ditadura, mas, como lembra Fernandes (1984), não
convergiram na avaliação de que algumas universi- podem ser vistas de modo desvinculado das lutas de-
dades deveriam ser escolhidas como centros de exce- cisivas empreendidas pelos trabalhadores, desde as
lência, dotadas de recursos adicionais para a pesquisa greves de Osasco em 1968 que inspiraram, inclusive,
e a pós-graduação. Em nenhum momento a ditadura a organização da Associação Nacional dos Docentes
admitiu a ideia de que a pressão por mais vagas na das Instituições de Ensino Superior (ANDES) em
educação superior poderia ser assimilada pela ex- 1981 e, antes, das Associações de Docentes. Flores-
pansão das universidades públicas. A opção pelo se- tan Fernandes (1984, p. 19) considerou o surgimen-
tor privado foi inequívoca. Isenções tributárias foram to da ANDES como “um bom salto” na direção de
concedidas para os que tivessem seus filhos matricu- uma maior articulação das lutas universitárias com
lados nas organizações de ensino privadas, isenções as lutas por outro projeto de universidade afim aos
que se estenderam às próprias empresas, ainda que anseios dos trabalhadores.
abrigadas sob o manto da filantropia. Foi aberta uma A expansão das universidades – ainda que mui-
linha de crédito subsidiado pelo Estado para que os to modesta frente às necessidades da juventude e a
consumidores provenientes de famílias sem recursos despeito do deslocamento crescente da demanda
pudessem adquirir a mercadoria educacional, por reprimida por vagas para as organizações privadas
meio do Crédito Educativo. Reunidas, tais medidas – possibilitou considerável ampliação do corpo do-
impulsionaram de modo extraordinário a expan- cente das Federais, das Estaduais e das privadas e o
são privada. Em 1975, as privadas já dividiam meio número de estudantes saltou de pouco mais de 140
a meio as matrículas com as públicas e alcançando, mil em 1964 para mais de 1,4 milhão em 1985.
no início dos anos 1980, mais de 60%. A exemplo do A partir das manifestações da crise econômica do
Programa Universidade para Todos (2004), a justifi- capitalismo mundial na segunda metade dos anos
cativa para tais medidas em favor da privatização foi 1970, os docentes que lutavam contra a ditadura
a necessidade de ‘democratização’ urgente do acesso passaram a se organizar nas Associações de Docen-
à educação superior, sem que com isso o setor públi- tes com reivindicações concretas, como: concursos
co necessitasse ser ampliado, pois os poucos “centros públicos; efetivação dos docentes que não puderam
de excelência” bastariam para dar conta das neces- realizar concursos (em virtude da inexistência dos

ANDES-SN n agosto de 2014 15


50 anos do golpe militar mesmos e dos famigerados atestados de bons ante- cassados (readmissão automática e imediata dos pro-
cedentes ideológicos fornecidos pelo DOPS que im- fessores cassados), luta que foi ampliada posterior-
pediam qualquer docente inconformista, crítico ao mente na forma da consigna “Anistia Ampla, Geral e
modelo em curso, de se inscrever nos concursos); Irrestrita!”, enfrentamento necessário tendo em vista
e, finalmente, unificação da carreira dos docentes as restrições à anistia pretendidas pelo governo Gei-
das universidades autárquicas e fundacionais. De sel, situação denunciada em 1978 pela ADUFRJ com
uma entidade associativa, a ANDES incorporava o apoio da Sociedade Brasileira de Física. Em 1978, a
método de luta da classe trabalhadora, por meio de reunião anual da SBPC abrigou o encontro que pos-
greves, manifestações e congressos orientados por sibilitou a criação da Associação Nacional de Docen-
análises de conjuntura crescentemente classistas, lu- tes das Instituições de Ensino Superior, formalmente
tas que aconteceram ainda na vigência da ditadura, criada em 1981 (Fernandes, 1990).
que possibilitou crescente consciência política em As fraturas entre os setores burgueses que apoia-
seus militantes, processo que levará a embates sobre ram a ditadura foram alargadas pelas lutas, manifes-
a natureza sindical (centrada no trabalho) ou asso- tações, greves e jornais dos sujeitos que até então esta-
ciativa (parte da sociedade civil liberal-democrática), vam sob o controle repressivo e político da ditadura,
que, após a Constituição de 1988, possibilitou a sua eclodindo o ‘Novo Sindicalismo’ e a reorganização de
conversão em Sindicato Nacional (1991). movimentos camponeses, estudantis e urbanos. No
Em meio à reorganização das lutas dos professo- início dos anos 1980, percebendo o ascenso das lutas
res, estudantes e da própria comunidade científica sociais, os setores dominantes lograram estabelecer
na SBPC, começaram a surgir os primeiros dossiês como narrativa a dita teoria do autoritarismo que
sobre a ditadura. A Associação dos Docentes da USP encontrou eco em meios acadêmicos, nos meios de
publicou “O livro negro da USP: o controle ideológi- comunicação que até então estavam a serviço da dita-
dura, entre “brasilianistas” e no MDB e que alcançou
hegemonia sobre quais as tarefas da dita transição.
As fraturas entre os setores burgueses que apoiaram a Esse movimento possibilitou uma transição pelo alto,
ditadura foram alargadas pelas lutas, manifestações, situação que manteve inalterados os principais pila-
greves e jornais dos sujeitos que até então estavam sob res da política educacional e de ciência e tecnologia.
o controle repressivo e político da ditadura, eclodindo o A heteronomia seguirá como a marca do capitalismo
‘Novo Sindicalismo’ e a reorganização de movimentos dependente no cotidiano das universidades.
camponeses, estudantis e urbanos. Na universidade, o contraponto frente ao suposto
consenso sobre a necessidade de superar o autorita-
rismo, via abertura democrática, mas sem alterações
co na universidade” (1978), os professores da UFMG econômicas e políticas que fizessem o acerto de con-
publicaram o texto “UFMG: resistência e protes- tas com o capitalismo dependente, passou a ser orga-
to” (1979) e a Associação de Docentes da UFRGS, nizado principalmente na ANDES, na UNE e na FA-
o texto “Universidade e repressão: os expurgos na SUBRA. O aparente consenso da reforma do governo
UFRGS” (1979). A Associação de Docentes da UFRJ Sarney, por meio do GERES, confirmava a força da
reintegrou os docentes cassados na Associação, em permanência dos fundamentos do modelo estaduni-
ato marcadamente político. dense recontextualizado pela ditadura. Desde então,
A luta dos docentes para lograrem representação uma tarefa histórica da luta dos trabalhadores resta
própria foi possível, em grande parte, em virtude da em aberto: a reforma radical das universidades.
massificação das reuniões da SBPC a partir da segun-
da metade da década de 1970, especialmente após a
inclusão das ciências sociais e humanas. Nestas reu-
niões fervilharam os debates e, a partir de 1978, en-
trou na agenda a anistia aos cientistas e professores

16 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #54


notas 4. Algumas instituições e unidades foram severamente

A universidade sob céu de chumbo


atingidas após o AI-5. A Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP perdeu catedráticos
como Florestan Fernandes e seus assistentes, tais
1. Capes - Situação atual da Pós-Graduação, Apêndice como Fernando Henrique Cardoso e Octavio
B Séries Históricas. Disponível em: Ianni  (repressão que alcançou outros pesquisadores
<http://pdi.ufabc.edu.br/wp-content/ com trabalhos vinculados a Florestan, como Miriam
uploads/2011/09/Plano-Nacional-de-P%C3%B3s- Limoeiro Cardoso, IFCS-UFRJ), e, também, na área
Gradua%C3%A7%C3%A3o-2011-2020-Volume-I.p de filosofia, Bento Prado Jr. e José Arthur Giannotti.
df>. Antes, em 1964-65, sete professores da Faculdade
de Medicina da USP foram afastados, como Erney
2. IPES – Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais e Plessmann de Camargo, Thomas Maack, Michel
IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática Rabinovitch, Isaias Raw, Luiz Rey e Pedro Henrique
criados em 1961, objeto do clássico estudo de Saldanha.
Dreyfuss: 1964, a conquista do Estado.
5. Marcos Pivetta, O impacto na academia Pesquisa
3. O número de professores cassados, levantados FAPESP, Edição 218 - abril de 2014. Disponível em:
por Morel (apud Fernandes, 1990, p. 135), é parcial. <http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/04/24/o-
Muitos outros foram forçados ao exílio, outros impacto-na-academia>. Acesso em: 6 maio 2014.
foram demitidos, pois tinham contratos precários,
como muitos na UnB, na UFRJ etc. As comissões da
verdade, recentemente instituídas nas universidades,
poderão atualizar essas informações cruciais.

BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.) Sociologia. São Paulo: Ática, 1983,
p. 122-155.
BRASIL. Parecer nº 977/65. Brasília: MEC/CEF,1965.
CUNHA, L. A. A universidade reformanda. O Golpe de 1964 e a Modernização do Ensino Superior.
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referências ANDES-SN n agosto de 2014 17

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