Caminhos de Construção Da Pesquisa em Ciências Humanas
Caminhos de Construção Da Pesquisa em Ciências Humanas
Caminhos de Construção Da Pesquisa em Ciências Humanas
HUMANAS
A IMPORTÂNCIA DO MÉTODO
UAL o que se pode emprestar à noção de método? Trata-se de conceito que comporta múltiplas Nestes
casos, sempre é bom começar por um di• cionário especializado. Lalande assinala: esforço para atingir um fim,
investigaçào, estudo: caminho pelo qual se chega a um determinado resultado; programa que reguIa
antecipadamente uma de operações a executar. assinalando certos erros a evitar'. Método indwa, portanto.
estrada, via dc acesso c, simultaneamente, rumo, discernimento dc dires•ào. Concluindo. com as palavras dc
Marilena Chaui, "metbo• dos significa uma investigaçio que segue um modo ou uma maneira planejada e
determinada para conhecer alguma coisa; procedimento racional para o conhecimento um percurso fixado'.
O método assinala, portanto, um percurso escolhido entre outros possíveis. Nio é sempre, porem, que o
pesquisador tem consciência de todos os aspectos que envolvem este seu caminhar; nem por isso deixa de
assumir um método. Todavia, neste caso, corre muitos riscos de não proceder criteriosa e coerentemente com
as premis. sas teOncas que norteiam seu pensamento. Quer dizer, o método nio representa tiosomente um
caminho qualquer entre outros, mas um caminho seguro, uma via de acesso que permita interpretar com a
mator coerência e corresào possíveis as questoes sociais propostas num dado estudo. dentro da perspectiva
abraçada pelo pesqulO Oblcto da metodologia e, 0 de estudar as possibilidades explicativas
dos diferentes métodos, situando as peculiandades de cada qual, as diferenças, as divergências, bem como os aspectos
em comum.
Expoentes das ciências humanas têm reconhecido que as questões suscitadas pelo método, não obstante sejam
extremamente relevantes na pesquisa, nem sempre têm recebido a atençio que mereceriam de alguns pesquisadores.
Curioso é notar que esse tipo de desatenção possa estar, de alguma forma, vinculado á prática de se estudar
metodologia. Wnght Mills constata que:
"Muitos autores instintivamente começam atacando os problemas do método de forma acertada. Mas depois de
estudarem metodologia, eles se tornam conscientes de numerosas armadilhas e outros pengos que os esperam. O
resultado é que perdem a Sua Segurança interior e desviados ou tomam inadequadas.
Diante disso, recomenda um cuidado especial aos pesquisadores. 0 de buscar fundamento nos autores
expressivos que semearam o terreno para nós e que. fortale• cidos por essa empreitada, cada qual possa ser também
seu "próprio teórico c seu próprio metodólogo"4. Numa perspecto•a ampla, isso que sc dá entre os filósofos, como
mostra Marilena Chauí, ressalvando entretanto que, no sentido estrito, "obom método é aquele que permyte conhecer
verdadeiramente o maior número de coisas com o ntcnor número dc regras"'. Mais recentcmcntc, a autora acrescenta
que Sc é verdadeiro que as ciências do homem comportam vários ramos específicos, de acordo com seus ObietOS e
métodos, essa especificidade nao deveria inibir aproximações en• as arcas, pois: as ciências humanas tendem
apresentar resultados mais completos e satisfatórios quando trabalham interdisciplinarmente, de modo a abranger os
múltiplos aspectos simultâneos e sucessivos dos fenómenos estudados:'
Assim, feitas estas considerações. cspcra•sc que leitores c pesquisadores, longe de sc apartarem da
metodologia, dela se aproximem lapidando artesanalmente a Cons. truçàO de seus estudos, sem perder de Vista a
ideia de totalidade que recobre as Cias humanas.
O ARTESÃO INTELECTUAL
Wright Mills reflete com beleza e mestna sobre este modo de proceder e discorrt sobre vários aspectos
relevantes: a relação entre o tema de pesquisa e a biografia do pesquisador. a importáncya de coligir anotações em
arquivos. cugdados com 0 levantamento dc dados c a produção de novas fontes, a importância de exercitar a i
maginasào criadora, a atenção com a linguagem, recusando a afetação e o hermetismo, além da reabilitação da
pesquisa como prática artesanalmcntc construída. Nada substitui sua leitura' e tentaremos demonstrá-lo, realizando
incursão l'geira a estes pontos. Uma questão fundamental se refere as relações entre 0 tema eleito para pesquisa e a
vida do pesquisador. "Os pensadores mais admiráveis" — ensina o autor — "não separam seu trabalho de suas vidas,
Encaram ambos demasiado a sério para permitir tal dissocias çáo, e desgam usar cada uma dessas coisas para o
enriquecimento da outra
Ademais, promover a consonáncta entre pesquisa e biografia é altamente estimulante, pois atribui vida ao estudo,
retirando da produçào intelectual pcriras de artificialismo, que recobrem parte da pesquisa académica ou, senão isso,
que acabam contnbuindo para a representação social da universidade como redoma, imagem que ainda encontra
ressonância no conjunto da socwdadc.
Um cuidado. todavia, parece necessário: a reiteraçáo mecânica da exFriéncia pode levar ao conformismo, à
reproduçao da mesmice diante de situações completa. mente diversas. Por isso. previne 0 autor. convém manter uma
relação ambígua Com a experiência: "ser ao mesmo tempo confiante e cético; essa a marca do trabalhador maduro"'.
Resumidamente: a incorporaçio da expenéncta vivida pode conferir alma à pesquisa, mas ceder is verdades
cristalizadas, a fórmulas vulgares, a esquemas reducionistas, mesmo que supostamente didáticos, tudo isso pode trazer
0 resultado inverso, 0 da
Na elaboraçáo dos arquivos, o autor recomenda não descurar nem mesmo dos minúsculos detalhes, das coisas
momentaneamente vagas. Futuras associações criativas podem desvandar nexos hoge não percebidos. Importante
também é ser criterioso e absolutamcnte honesto ao coligir ou ao produzir dados, como no caso das entrevistas, por
exemplo. Elas não sio feitas apenas com bons roteiros, previamente testados e rnelhorados, mas com atitudes éticas em
relação às pessoas pesquisadas. Voltaremos a este ponto mais adiante, com o auxílio das reflexões de Oswaldo Elias
Bons pesqutsadores, esclarece Wright não se limttam à observância de gras, mesrno porque na malona das
vezes experimentam Sltuaçóes que os manuais não poderiam antecipar. Além do que, pesquisar não sc restringe a
absorver técnicas e pô-las em prática. O cultivo da capacidade Imagtnadora separa o técnico do pesquisador; Somente
a engenhosidade saberá promover a associação de coisas, que poderíamos sequer intentar pudessem um sc
compor, num dado cenário social. aprimorar a percepção, refinar a sensibilidade, ampliar horizontes de
compreensão, diante de práticas, pequeninas na sua forma, calorosas e desprendidas no seu intimo.
Nervos sachos. entre tantos outros escritos de Walter Benjamin. exemplifica com inigualável encanto isto que
estamos tratando. Refere-se relas.io entre a cultura Visual e 0 cotidiano das pessoas. com base em exposição
organizada por Ernst Nio objetiva despejar informaçix•s aos expectadores na vá tentativa de torná-los
especialistas; pretende actonar o interesse dos vis'tantes para que dal' náo sagam do mesmo jeito que entraram. Cada
proposta está orientada para rechaçar o distancta• mento e a indiferença, almejando a coniunçáo entre arte,
conhecimento e vida prática. Donde as surpresas, o aconchego dos cenários e peças, a mobilização elegante e
criativa para prender a atenção, sem vamals perder a leveza. Assim, para representar o consumo dc um alcoólatra
num dado período. fez A ma» comum seria acomodar um Conjunto considerável de garrafas de vinho ou
aguardente. AO invés disso, coloca, ao lado do quadro Com a um todo gasto e dobrado: a conta da
Coerente com tal encaminhamento, Wnght Mills sublinha a necessidade de se seguir, sempre possível, o
emprego da linguagem clara e simples. Nio é nada fácil, mesmo porque práticas antenores consagraram linguagens
esFCificas conforme a área: 0 pstcologués, 0 economés. 0 sociologués e assim por diante. Entenda-se bem: se trata
de vulgarizar questões e conceitos, mas de sempre sc esforçar para enunciá-los Com a clareza e linguagem simples.
Questi»es complexas podem ter tratanrnto nioreducionista. usando-se clareza dc expressão. de modo a que também
sc possa entender a complexidade em sua plenitude. Escorregar a toda hora para o Ininteligivel, recorrer a jargões,
abusar de estrangeirismos, criar supostas novas quando uma acomodaçào crianva talvez fosse possivel
em português, ou. espectalmente. quando tudo isto é feito a pretexto de rtgo% como sc a produção científica
devesse Fx•rmanecer rnatéria de apreensão seletiva e assim distinguircom prestigto e a quem a realiza, ai o nó da
questáo. Fazer um estudo compreensivel nio é algo que, apnortstkarnente, ser associado superfic.alidadem
"Escrever" , ensina Wnght MIIIs. "é pretender a atençáo dos leitores" Fazê-lo com desembaraço. sem desvtos
banalizadores, é traballY' de lapidaçào para a vida toda. Que o digam os literatos!
Todos esses aspectos Convergem para a necessidade de o pesquisador se assumir como artesão pertinaz.
paciente, atento, sensivel e, ao mesmo tempo, despretensioso, zelador do consórcto entre teona e pratica, reservando
exemplos probantes a cada movimento importante de sua reflexio. As ciências humanas, ao serem exercidas como
oficio, permitem que cada pesquisador se sinta parte integrante da tradição clássica. podendo fazer reviver. dentro de
nós e entre nós, aqutlo que dc mais alentador condição humana podc oferecer.
Não é dificil encontrar quem conceitue método como um conjunto de técnicas, mas isso Significaria operar
uma enorme redução naquilo que podc representar. Método envolve, sim, técmcas que devem estar sintonizadas
com aquilo que se propõe; mas, além disso, diz respeito a fundamentos e processos, nos quais se apóia a reflexão.
Ao se falar, por exemplo, em método Paulo Freire de aprendizagem, a discussio seria muito redutora se apenas
aludisse aos recursos e instrumentos de que se vale para promover a alfabetização; seria necessário ir além para
perceber o embasa• mento teórwo, que dá suporte e consistência ao método. De que modo encara a educação?
Quais os pressupostos da relação entre educador e educandos? Como tais questócs podem interferir na produção
do saber? E assim por diante.
A superação do entendimento meramcntc instrumental da metodologia. como se ela apenas representasse
um conjunto de técnicas das quais o pesquisador pudesse dispor, independemente de suas concepções acerca do
mundo e das relações entre sujeito e obieto de pesquisa, reafirma a importância de uma reflexão, capaz de dar
Conta dos procedimentos pelos quais se constrói uma pesquisa em ciências hu• manas.
Pesquisar se aprende mediante o próprio fazer, enfatizam os especialistas; nada poderia substituir esta
prática':. Mesmo porque muitas situações Inusttadas esperam pelo pesquisador no decorrer dos variados
momentos de seu trabalho e, como se deduz. elas mio estão, c nem sequer poderiam estar. previamente
decodificadas em manual algum. para obter depoimentos na forma dc entrevista, por exemplo, como se deveria
proceder? Bastaria chegar diante dos a scrcm pesquisados c iniciar, o quanto antes, a entrevista para nio tomar
tempo nem do entrevistado ou tampouco do pesquisador? Depende. O pesquisador — e somente ele — poderia
identificar a dinánuca mals profícua, que resguardasse a integridade da maneira de ser dos suicitos pesquisados.
No estudo da cultura popular, por exemplo, uma referência segura vem de Oswaldo Elias Xld.eh, Seu modo de
proceder reltera a importancta da considerasao ao outro. Mostra que há: s 1,..1 um momento para a narração. Há
uma situa. sio particular cm que a histór.a pode ser contada, respeitando-se o Contexto cultural do grupo e isso o
que realmente importa para o pesquisador, Se ele souber se situar dentro do contexto estudado, Se recortar a dos
entrevistados por critérios arbitrários e exteriores e, sobretudo, se não quiser corrigir os depoimentos, saberá
distinguir cm que momento os sulc•ltos estudados podem se expressar livremente' I." Em razão disso, vale a pena
retomar colocas,io dc Perseu Abramo, valorizada
pelo acrésclmo que lhe fez Gabriel Cohn: "0 melhor aprendizado da pesquisa social é fazê-la"; mas,
O método existe para ajudar a construir uma representação adequada das questoes a serem estudadas. Ele foi
constituido no âmbito de um movimento cula origem remonta aos séculos XVI e XVII e que valorizava a
capacidade do pensamento ra• cional. Acreditava-se que, pelo uso da razão, seria possível homens Conhe• cer o
mundo mas, além disso. transformá-lo. Esse discernimento que associava a razio dos hornens à possibilidade dc
provocar mudanças na vida social ii significava o questionamento do saber diletante e contemplativo.
Representava, também, uma cunha na supremacia das interpretações teocêntricas. propugnando a desvinculação
da produção do saber da órbita eclesiástica para que ela pudesse se constituir no intenor do universo secular. O
surgimento das academias laicas trazia, portanto, ou• tra possibilidade interpretativa, buscando para
os dramas sociais na prós pria dimensio humana de existência, sem a interferência dos componentes extra.
terrenos,
Cuidou-se, então, de construir meios confiáveis para observar, para promover experimentos. bem como para
elaborar hipóteses e princípios. O desenvolvimento destes instrumentos foi conconutantC ao das técnicas;
postulava-se, afinal, uma cién• cia de intervensáo, que fosse atuante na prática e que estivesse, a um Só tempo,
smtomZada com a expansão capitaltsta e com 0 aumento da capacidade produtiva. Ordenar as coisas, sistematizá-
las, identificar unidade e diversidade. mensurar, decompor 0 todo em partes, analisar — eh resumidamente a
empreitada que sc quena consolidar.
Quem iria operacionalizar o método? A resposta a esta questio põe em evidência a figura do sujeito do
conhecimento, Trata-se de alguém com existência corpórea, versado nas habilidades há pouco enunciadas,
dcscioso dc fazer valer sua formaçio cientifica para elaborar um saber que não só fosse capaz de dar explicasóes
convincentes sobre determinadas questões sociais mas que, sobretudo, pudesse ser aplicado para interferir no
rumo das coisas.
Quando o desenvolvimento metodológico sc torna recurso imprescindível para insinuar. estabelecer ou
mesmo iusrifwar intervenções modificadoras da sociedade, as relações entre e sociedade se alteram: a produç•áo
do saber se consagra como fonte de poder. Sem perder de VISta que esta união entre conhecimento e política
faz, ainda, em meto ao embate travado com as origens teológicas do saber.
Não deixa de ser cunoso notar, com Maria Sylvia dc Carvalho Franco, que a esse movnnento dc
dessacralização do conhecimento correspondeu a sacralização do tra 1101 Foram veementemente contestados 0
contemplaOvo, 0 as festas, as formas de ocupação do tempo economicamente improdunvas, ao mesmo po em
que se cultuava a disciplina do corpo e do pensamento, a mecanização do corpo pela técnica e o adestramento da
mente pelo método. A construção deste de pensar foi Concomttante à ascensão burguesa e à constituição das
bases jurídicas em que se assentou sua emergência como força politica preponderante.
Variadas formas de enfrentamento não impediram que o Dezenove assistisse à consolidação do proieto burguês.
Política e ciência recebem enfim o reconhecimento generalizado como instrumentos capazes de promover o domínio
da natureza e de disctplinar os homens da produtividade e da acumulação. Estava. definitivamente interiorizado nos
homens o relógio moral desta outra dinâmica, como diria Edward Palmer Thompsont•.
Auguste Comte, por sua vez, perseguindo a tarefa de delimitar o espaço da fisica social, esnpula na segunda do
Curso de filosofia o caminho da ciência leva previsão e dai à açiO, compondo a trilogia:- saber.
preveq agir.
Desde fins do Dezoito, os homens da ciência podem ser considerados como figuras poderosas e dominadoras,
capazes de tudo entender c submeter as suas explica• soes, com o concurso do método. NO caso das ciências
humanas, porém, um paradoxo se interpõe: afinal é do homem que se trata. Isto quer dizer que o homem se torna, ao
mesmo tempo. sujeito e objeto na investigação científica.
Além disso, sendo o suietto do conhecimento representado pela figura do homem•cienttsta, ele em tese pode
tudo, mas, ao exercitar este poder. pr1SIOnct• ro de uma situação que, supostamente, é capaz de controlar e,
portanto, dorntnaL Como assim? Ê que. ao submeter 0 real ao método — supondo-o neutro e eficiente para
desvendar as tramas soc%us em sua transparência plena e exata — o sulcito do conhecimento é conduzido a olhar a
sociedade como quem a vé de fora, de longe, ostentando olímpica cxrcnortdade. Neste empreendimento, recorta,
disseca, decompix e manipula o real em partes, deseioso de melhor analisá-lo. Esta pratica, aparentemente rigorosa e
acética, acaba por mutilar o universo social, imobilizando-o. O mundo social aparece congelado. sem contradições,
sem lutas, sem enfrentamentos, sem paradoxos. C a mortificação do ol"eto. Os homens transformam-se em obletos
inertes. tal qual Cadáveres, prontos rara o da anatomta, nas mios do médico legista ou do
patologista. "A bem dizer" — esclarece Claude Lefort — —a ilusão começa quando imaginamos que de um lado há
os fatos e de outro a teoria c quando dissimulamos a posição em razão da qual esta divisão aparece. Somos entào
forçados a descrever o movimento do conhecimento como se nele não tomássemos parte e fixar sua origem de um
lado ou do outro.
O estudo de metodologia cm ciências humanas necessitaria ser cuidadoso e zelar para que homens concretos,
suleltos c objctos dc suas indagações, não fossem mutila. dos ou, entio, nio se tornassem obvetos mortos nas mios
de cientistas dispostos a fazer da ciência outro poderoso instrumento de dominasao. Lucien Febvre se dedicou á
questio, que está na base da construçào do saber: "O que vós chamais fatos? Que colocaríeis por trás desta
pequenina palavra 'fato'? Pensais que Os fatos sio dados à históna Como realidades substancta1S, que o tempo
enterrou mais ou menos profun'lamente e que se trata tio simplesmente de desterrar. de limpar e de apresentar em
bela estampa a vossos contemporâneos? Ou cntio retomais à vossa conta a palavra dc Berthelot. exaltando a
química no dia scgumtc ao dc seus primeiros tnunfos — a quinuca, sua química, a única entre todas as ciências,
dizia ele orgulhosamente, que fabrica seu obicto, No que Berthelot se enganou. porque todas as ciências fabricam
seu obieto"".
É possível promover uma ruptura com estas práticas dominadoras? Sim e nio, poderíamos dizer. Se a ideia
de ciência social estiver multo Vinculada àquela prove• nicnte das ciências dos fenómenos naturais, haverá nitida
discordância com estas colocações. Se, ao contrário, 0 objetivo ajustar as possibilidades explicativas das ciências
humanas aos limites da peculiaridade que existe em sc ter, simultaneamente, o homem como suieito c obieto, a
resposta Se encaminhana para uma ruptura. Mesmo assim, resta contudo a indagaçáo: como promovê-la?
Vános caminhos sio possíveis. Um deles está em estudar c reflenr acerca das implicações dos fundamentos
teórico-metodológicos que empregamos e assumimos para nós como adequados e convenientes. O leque de
possibilidades é variado: passa pelas fontes e as ciladas que escondem para um entendimento que supere as
aparências e penetre nas entranhas dos reais interesses em jogo. nas açóes dos suieitos interIcxurores numa dada
época; pelo processo de produção do cog/wcimento, ou seja pela transformasio dos dados, com a mediação de
conceitos, em interpretações de um determtnado tema social; pelo âmbito, quer dizer, pela abrangência que se
postula para a pesquisa; além, ainda, da reflexão em torno das relações entre e obieto do conhecimento e as
decorrências ai implícitas.
Tendo em v Ista que nosso dlrecaonamento no horizonte das ciências humanas, uma possibilidade fértil pode
justamente ser esta, a reavaliação critica das relações entre sujeito e obieto do conhecimento. Esse trilhar se inicia,
segundo indica Marilena Chaui>', pela recusa do autontansmo da verdade, ou, em outras palavras pela relativização
da figura soberana do sujeito do conhecimento, que determinados métodos evidenciam.
A mesma autora nos lembra, retomando os gregos antigos, que pensar é promo• Ver um passeio da alma!'.
Como aqui se trata de estudar diferentes propstas teóricos metodológicas, fundamentando-se na leitura, intelecção,
dvscussáo e elaboração de associações possivels, dialogando Com autores consagrados, ler é o passo inicial."Ler"
— prossegue ela, em outra formulação — "é aprender a pensar na esteira deixada pelo pensamento do outro. Ler é
retomar a reflexão de outrem corno maténa-pnma para o trabalho de nossa própria reflexão.
Supôc ultrapassar muitas práticas enviesadas, tais como: ler modo exterior, sem se importar em distinguir as
peculiaridades do texto em si; ler ptnçando o que interessa, segundo a conveniência do (muito descuidado) leitor;
ler de maneira frag ria, Sem recompor o encadeamento das ideias pelas quais um autor constrói seu pensar;
ler um texto usando lentes c referenciais estranhos ao autor que o concebeu.
Longe disso, ler implica identificar os significados que o autor confere às questóes estudadas. A boa colheita
na leitura, explica Alfredo BOM, está em distinguir e escolher adeq uadamente os sentidos originalmente
propostos.
"A palavra que eu leio (lego: colho) na sua ingrata renitência sobre a págma do livro desafia-me como a
pergunta da Esfinge: a resposta pode variar ao infinito, mas o enigma é sempre o mesmo: o que eu quero dizer? Ler
é colher tudo quanto vem escnto. Mas, interpretar eleger (ex-legere: escolher). na messe de possibilidades
semânticas, apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer?"" para
interpretar, respeitando aquilo que um autor quis realmente dizer, é impor• cante decifrar o enigma do texto: o que
diz o autor e, metodologicamente, por que ele o faz deste modo. Esse é um exercicio que requer mais que paciência
e perseverança. Supõe uma mentalidade alargada. como diria Hannah Arendt, capaz não só de apre• ender as
diferenças entre este ou aquele autor, mas de saber admirar um texto bem concebido, mesmo que e principalmente
quando nio haja concordância com a Orienração teórico-metodolóyca à qual nos filiamos. Prelulgar ou então fugir à
verdade inerente ao texto são procedimentos que todos nós pesquisadores precisamos a todo custo evitar. por isso, é
fundantental o trabalho de reconstruir com nossa Imaginação o itinerário de construção do pensamento do outro,
tratando de nio desfigurá-lo. É um encaminhamento de trabalho que respeita a integridade do todo c que, portanto,
relativiza o ptnçar fragmentado de partes, a compreensão apressada ou mestno a leitura exterior, que pede ao texto
categorias e desenvolvimentos que ele nunca poderia ter, pois jamais fizeram parte dos horizontes do autor que o
concebeu, Outro cuidado é com as associações. Em reiteradas vezes, por comodidade, ingenuidade ou por razões
inconfessáveis, incorremos no engano de fazer colagens de citações sem respeitar as especificidades do movimento
de pensar dos autores. Uma simples e úniCa palavra assume significados inteiramente distintos, harmonizando-se
ao contexto em que estiver situada. por exemplo: Durkhelrn sublinha a necessidade de se tratar o fato social como
coisa. Trata-se de algo inteiramente diverso da coisificaçào das rela sociais, que aparece na conceituação
marxista. Convém, pois, estar atento às diferenças e identificá-las bem, em vez de tentar escamoteá-las. Um leitor
diligente pode, por outro lado, descobrir que mesmo autores de tendências antagónicas alimentam, aqui e ali,
pontos em comum. Mas este discernimento só aparece quando há clareza das diferenciações e, portanto, quando iá
nos mostramos capazes dc praticar uma leitura que respeite a interioridade do texto.
Autor algum gostaria de ser entendido em acepções que nunca originalmente foram suas; além disso, parte
deles pode nem mais estar neste mundo para poder defendepse. DO mesmo modo, seria desalentador para qualquer
estudioso tecer Conynt.irtos sobre esta ou aquela fonte e ser considerado um mau leitor. sela por distorcer Seia por
trair o significado que o autor quis Impnnur ao seu texto. para evatar estes e outros tantos dissabores, uma saída é
acompanhar atentamente as construções teórico-metodológicas dos textos, mergulhando em sua dinâmica interior.
A recom• pensa virá do próprio exercicio em si, que cultiva a ética na construção do saber, e das múltiplas
descobertas que o texto, ao menos potencialmente, pode ensqar. Diante de autores que se tornaram referências
básicas, como é o caso dos que aqui estio reproduzidos, sempre se pode esperar que suas páginas acolham muitos
tesouros. Tal qual ocorre, todavia, na velha fábula lembrada por Walter a bênção de encontrá-los não
podena estar em consumi-los. E sim em desvendá-los no exercicio de um trabalho silente, atento, perseverante,
engenhoso e, por isso mesmo, quem sabe até divertido.