Lourenço Mutarelli de Corpo Inteiro

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Lourenço Mutarelli de corpo inteiro

26/11/2014
Ney Anderson

Fotos do autor: Fliplorto/divulgação

Por Ney Anderson


Lourenço Mutarelli é um grande nome da literatura brasileira surgido na
virada dos anos 2000. O autor de cinquenta anos começou a trajetória
produzindo quadrinhos na década de 1980, onde até hoje é reverenciado pelo
traço peculiar dos desenhos e das histórias sombrias, conquistando os principais
prêmios da área. Com cinco romances publicado, três deles adaptados para o
cinema e teatro, Lourenço está escrevendo outros dois romances com o mesmo
estilo que lhe rendeu fama de cult. Suas histórias passeiam entre o escatológico
e o sombrio, com personagens angustiados, transitando na linha tênue entre a
solidão e a morte. Nessa grande entrevista exclusiva para o Angústia Criadora,
durante a Fliporto, ele fala sobre os novos projetos, faz uma análise da carreira
e da própria vida, principalmente da infância, período conturbado para o escritor,
e de como a arte o libertou da depressão. Mutarelli ainda comenta as adaptações
das suas obras para o cinema e conta como foi seu primeiro contato
extraterrestre.

Entrevista:

Escrever para mim é a forma que eu tenho de pensar mais profundamente


sobre qualquer coisa.

ANGÚSTIA CRIADORA – Sua literatura sempre teve um aspecto mais


estranho, sombrio. Algo que não é tão comum entre os escritores brasileiros.
Como nasceu esse estilo?
LOURENÇO MUTARELLI – Eu sempre digo que bebo muito na minha
infância quando escrevo, mesmo nos quadrinhos que fazia. Isso tem muito a ver
com minhas impressões do mundo. Eu tinha uma impressão muito sombria do
mundo. Distorcida. Então, acho que minha obra reflete muito isso, as minhas
primeiras impressões do mundo, da sociedade, da igreja. Eu sempre via,
principalmente quando eu era novo, um aspecto muito sombrio em tudo.
AC – Mas que infância era essa de que você fala tanto?
LM – Eu era muito solitário e tinha alguma coisa artística em mim, acho
que meu olhar, minha observação. Mas isso não era visto de uma forma boa,
mesmo pelos meus pais, porque eu era um menino estranho, muito fechado,
isolado, estudava em colégio de padre e existia uma repressão muito grande.
Era também a época do regime militar, onde existia repressão em tudo. São
coisas que me pressionaram mesmo e que refletem muito no meu trabalho. Nos
quadrinhos esse aspecto era mais forte ainda, pois tinha menos humor. Na
literatura tem uma ironia em tudo isso. A literatura foi me suavizando. Não tem
uma visão tão sombria, mas sempre que escrevo vem muito disso.
AC – O que as pessoas achavam nesse primeiro momento, quando você
começou a produzir?
LM – Eu tive dificuldade em começar a publicar meus quadrinhos
justamente por isso, porque achavam muito estranho, não tinha a ver com o que
era produzido no Brasil e com a linha editorial. Então, como o forte era o humor,
eu tentei investir nesse caminho, mas também não me encontrei muito. Quando
fiz meu primeiro álbum, Transubstanciação, que eu assumi mesmo o meu estilo,
justamente isso começou a me destacar, conseguir algum espaço, uma
diferença, um estilo mesmo.

AC – Mesmo com esse aspecto sombrio, você trabalhou um tempo nas


oficinas do Maurício de Souza. Como foi aliar a sua personalidade artística com
aquele trabalho específico?
LM – Eu já tinha tido outros trabalhos, mas aquele foi o meu primeiro
trabalho importante. Só tive subemprego, mesmo depois do Maurício, eu não
tinha nenhuma habilidade, não sabia datilografar e outras competências para
arrumar um emprego melhor. O Maurício foi uma oportunidade ideal de trabalhar
com o que eu sabia, porque trabalhava na parte de cinema, desenhando e depois
fui fazer cenários e pintura. Era um trabalho que pagava legal e algo que eu sabia
fazer. O universo era totalmente diferente do meu, mas até nisso eu ganhei um
espaço, porque teve um episódio que o Cascão foi parar no inferno. Aí eles
pediram para eu desenvolver o inferno. Teve outro episódio na gruta do ogro que
também fiz. Profissionais incríveis tinham lá, gente muito talentosa. Eu nunca
havia lido turma da Mônica, mas era um trabalho. No estúdio do Maurício existia
uma gibiteca, foi lá onde eu conheci um quadrinho mais contemporâneo. Me deu
vontade de fazer quadrinhos.
AC – Mas o Maurício já conhecia o seu trabalho?
LM – Na verdade não. Quando eu entrei lá levei um portfólio com vários
desenhos, que tinham um pouco da atmosfera deles. Mas o que avaliaram foi a
questão técnica. Fiquei lá uns três anos, sempre saia e voltava, porque eu me
cansava em trabalhar um universo que não era o meu. Essa época eu estava na
faculdade e desenha com um material muito ruim, no Maurício era o melhor
material possível. Então foi muito bom para mim.
AC – E depois desse período no Maurício de Souza?
LM – Depois dele fui trabalhar numa farmácia. Eram sempre subempregos
mesmo, até começar os quadrinhos, que eu consegui me manter também por
causa da minha mulher, que me bancava, pois ela trabalhava e me permitiu que
fizesse o meu trabalho.
AC – Você veio dos quadrinhos, que também tem esse aspecto
underground, noturno, puxando para histórias de suspense e terror, e em 2002
publicou O cheiro do ralo. Essa mudança, você já falou, foi bem significativa no
aspecto do reconhecimento público. Mas você diria que sempre existiu essa veia
literária/romancista, mesmo produzindo quadrinhos?
LM – A minha mulher sempre falava isso. Desde do meu primeiro álbum,
que ela disse ler como um livro. Depois ela foi ver os desenhos. Eu não tinha
essa noção, mas tinha uma grande influência da literatura, lia muito, e também
do cinema. Para mim nos quadrinhos não eram diferente. Mas nunca tive
coragem de escrever um livro, por respeitar demais a literatura. Na primeira
Balada Literária quando fui convidado por Marcelino Freire, ele falou que eu tinha
que ler um conto, para apresentar melhor o meu trabalho. E na literatura eu
nunca escrevi texto curto, são sempre romances. Mas nos quadrinhos eu tinha
histórias curtas, então eu peguei só o texto de uma história e li. Sendo que o
desenho era muito importante. Outro dia eu fiz essa mesma apresentação, li
primeiro o texto como um conto, depois apresentei projetando a história com a
imagem. São dois universos muito distintos, mas sempre existiu uma base
literária, porque o quadrinho tem que ter mesmo. No quadrinho você não é
julgado criticamente, acaba sendo um laboratório onde se experimenta muito. A
mudança dos quadrinhos para a literatura foi brusca.
AC – Seu universo literário não difere muito dos quadrinhos. Ambos
possuem algo escatológico, mas que nunca causaram repulsa nos leitores. Muito
pelo contrário, os livros, por exemplo, são devorados com ânsia pelo seu público.
Como justifica toda essa admiração pela sua obra?

LM – Não sei. Mas o meu quadrinho sempre teve muita influência do


expressionismo alemão, que tem essa relação. Assim como eu amava Kafka.
Acho que meu universo tem um paralelo com isso, tem a influência e acaba tendo
uma aproximação. A minha visão de mundo também batia com a deles. Aí você
acaba entrando num nicho de pessoas que gostam disso. Por isso que deve ter
alguma aceitação. Eu não tinha um público grande, mas era um público fiel, o
que possibilitava de ir lançando os livros, porque não dava lucro mas também
não dava prejuízo. Logo os meus fãs compravam o que saía e pagam o que a
editora tinha investido para imprimir. Então para eles (editoras) era bom também.
AC – Quem te descobriu na literatura?
LM – Marçal Aquino, Ferréz, Marcelino Freire. Eles começaram a me
divulgar no meio literário. Mas a adaptação do Cheiro do Ralo, claro, me trouxe
outro público.
AC – Hoje você acha que tem um público literário grande?
LM – São dois públicos bem distintos. A literatura é difícil de mensurar. Eu
tenho um livro que vende muito bem, que é A arte de produzir efeito sem causa,
talvez por ter ficado em terceiro lugar no Portugal Telecom, deve ter sido indicado
em faculdade. Por isso eu acho que venda tanto. Nada me faltará, por exemplo,
é um livro que vendeu muito pouco, passou quase em branco. Talvez ele não
tenha sido tão trabalhado, ou quando saiu não tenha tido muito espaço, não sei
ao certo. Muita gente não conhece esse livro. O natimorto, por exemplo,
reeditado pela Companhia das Letras, levou por volta de quatro a cinco anos
para esgotar uma tiragem de cinco mil livros. Mas O cheiro do ralo, o filme,
ampliou muito o meu público. Eu nunca imaginei que alguém fosse ver o filme e
querer ler o livro depois. Muita gente foi atrás do livro depois de conhecer o filme.
Atraiu muita gente querendo saber o que faço fora da história daquele filme. A
arte… já foi reimpresso duas vezes e vendeu até hoje por volta de onze mil
exemplares. Por isso que eu não sei dimensionar o meu público, a quantidade
de leitores que eu tenho. É difícil saber.
AC – Em relação a Arte de produzir efeito sem causa, seu campeão de
vendas, tem também a questão do filme baseado nesse romance recentemente.
LM – O filme passou em branco e é uma livre adaptação, é muito diferente
do livro. Eu acho que não refletiu em vendas, ajudou porque tinha esgotado e
reimprimiram novamente, então foi bom porque trouxe o livro de volta.
O Grifo de Abdera nos dedos de Mutarelli

AC – Mas você gostou dessa adaptação? Inclusive o título foi modificado


para Quando eu era vivo.
LM – Eu gostei que mudou o título, pois é uma adaptação muito distante.
Eles perderam coisas que para mim é essencial do livro. Mas é aquela coisa, eu
vendi o direito e foi adaptado. O filme é do diretor, com o olhar dele. Mas não me
agrada nenhum um pouco. De todas as adaptações para o cinema dos meus
livros eu acho essa a mais distante possível de mim. Não me identifico em nada.
AC – Porque não gostou no filme?
LM – Primeiro a Sandy (cantora, que atua no longa) cantando três
músicas. Depois a ingenuidade do filme, o final mesmo é totalmente o contrário
do livro. No filme é um mundo muito menor, é tudo dentro da família. O Júnior,
personagem principal, para mim é fundamental no livro, quando começa a
receber coisas pelos correios de um remetente anônimo. No filme não tem isso.
Era a mãe dele que compunha uma canção. No livro era uma estudante de arte,
no filme é uma estudante de música, justamente para a Sandy poder cantar. É
um filme que não me tocou em nada.
AC – Para quem não leu o livro é um filme bom, não sua opinião?
LM – Não consigo dizer. Eu gosto muito do primeiro filme do Marco Dutra,
Trabalhar cansa, (diretor de Quando eu era vivo). Se o livro não fosse uma
adaptação da minha obra talvez eu tivesse gostado. Eu não sei dizer que é bom,
porque esse (A arte de produzir…) é o meu livro preferido. É o único livro que eu
já reli três vezes. A primeira vez que eu reli foi quando lancei em Portugal e as
entrevistas eram muito específicas sobre o livro. A segunda vez foi quando o
romance tinha sido reimpresso e a terceira antes do filme estrear, pois queria me
lembrar da história toda. As três leituras foram sempre muito boas, eu gosto
muito dele. Embora, por opção, é um livro onde eu suprimi muito de uma coisa
mais poética, que eu usei no Cheiro do ralo, e no Natimorto, principalmente, e
até um pouquinho no Jesus Kid. Mas nesse livro eu optei por suprimir isso para
experimentar. Esse romance é o meu primeiro livro em terceira pessoa. Mas é
isso, o filme é muito distante das sementes mais importantes do livro, que não
florescem no filme.
AC – O que as pessoas falaram do “Quando eu era vivo”?
LM – Pouquíssima gente viu, foi um filme muito pouco visto. Me choca
que algumas pessoas que gostam do livro gostaram do filme. Pessoas mais
próximas não gostaram. De qualquer forma, não obtive muito retorno. Eu gosto
do Antônio Fagundes no filme, acho ele muito bom. O Marat Descartes (Júnior),
que eu adoro, me incomodou bastante por conta da peruca que colocaram nele.
Aquilo ficou roubando minha atenção. A verdade é que meu santo não bateu
com o filme. Eu vi na pré-estreia e não pretendo ver nunca mais.
AC – Você disse que já releu várias vezes A arte…, mas teve vontade de
modificar alguma coisa no romance?
LM – Não. Uma coisa que aconteceu relendo esse livro é que as vez eu
começava a reler e não lembrava de tudo. Aí na hora da leitura eu ficava
pensando “será que eu fiz tal e tal coisa mais na frente?” E quando eu chegava
mais na frente eu tinha feito. Conforme eu ia avançando eu ficava pensando
nessas questões. Eu gosto muito dele. Mesmo quando eu não gosto eu acho
importante também, é sempre um caminho, eu faço o livro pela experimentação.
Tenho um olhar muito mais crítico com meu quadrinho, porque é um trabalho
muito pesado e o desenho é uma coisa evidente. Em alguns casos eu refazia o
quadrinho, deixaria muito melhor, talvez. Na literatura minha relação é melhor.
AC – E qual o livro que você menos gosta da sua obra?
LM – Miguel e os demônios é o que menos gosto, por ser um livro
encomendado para um filme. Eu fiz esse livro para transformarem em roteiro,
mas eu queria voltar nele, porque precisava trabalhar um pouco mais. Mas o Luiz
Schwarcz, editor da Companhia das Letras, leu e quis publicar. Quando vejo
esse romance penso que poderia ter trabalhado mais nele.

Jesus Kid também vai ser adaptado para o cinema. Ainda sem previsão
de lançamento
AC – Em relação ao romance “Jesus Kid”, qual a importância que ele tem
na sua obra?
LM – Eu gosto muito dele. O Jesus Kid foi roteirizado e deve ser filmado
a qualquer momento. O ator Sérgio Marone comprou os direitos e está tentando
captar recursos. Eu não reli esse livro, mas eu li o roteiro, que é muito fiel. Acho
muito divertido. Inclusive, uma parte do Jesus Kid escrevi no Recife. Na época
estava ministrando uma oficina literária na cidade durante cinco dias e escrevia
bastante no hotel onde fiquei hospedado. O curioso é que no quarto do hotel
tinha uma banheira e na hora que fui tomar banho não havia a tampinha que
prende a água (como acontece no livro). Aconteceu só uma vez, mas o
recepcionista ficou muito desconfiado, entregou outra tampinha muito
contrariado. Essa história acabou entrando no romance. Me divertir escrevendo,
lavei muita roupa suja com as pessoas que encomendaram o texto. É um livro
que eu gosto muito. Ele é bem-humorado e esse romance tinha que ter um final
feliz e foi engraçado fazer, pois meus finais são sempre sem esperança.
AC – O Nada me faltará foi o seu trabalho mais ousado, já que é todo
montado apenas com diálogo?
LM – Cada livro para mim tem que ser uma experimentação. Nada me
faltará é totalmente inspirado na música minimalista. O Philip Glass (compositor
americano), não gosta do termo minimalista, ele diz que faz música com
estruturas repetidas. Isso me fascinou, eu quis escrever um livro com o mínimo
possível. O mais legal desse texto foi o processo de fazer e depois enxugar o
máximo para ver com quanto ele se matinha de pé, com o mínimo. Foi uma
experiência boa de fazer, radical, apesar de não ser um dos meus livros
preferidos.
AC – Vem mais coisas radicais por aí?
LM – Estou escrevendo um que é bem radical. Um livro truncado, de muita
pesquisa, e que flui muito bem. Às vezes eu digo que escrevo para quem não
gosta de ler, porque eu detestava ler os parnasianos, por que as coisas não
andavam. O importante para mim sempre foi fazer a história fluir. Mas estou
escrevendo um livro agora que o texto é engessado.
AC – Que livro é esse?
LM – É o romance do projeto Amores Expressos, da Companhia das
Letras, que eu fiz uma primeira versão. Eles (Cia das Letras) não gostaram,
depois mexi e não gostei e resolvi deixar para lá. Abandonei a ideia, deixei esse
livro guardado para ser publicado depois. É um romance póstumo, chamado
Ninguém gritava na ponte. Um romance ruim, forçado, não está numa boa
frequência. Eu escrevo como um escritor e depois eu leio como um leitor. Queria
apenas me livrar do texto. É importante, pois o erro te leva para outro caminho.
Aí peguei outra ideia e o novo vai se chamar Livro IV e/ou o Filho mais velho de
Deus. Estou adorando esse livro, eu escrevo sorrindo. É uma bobagem, uma
brincadeira, uma história sobre reptilianos, seres de outros planetas em forma
de réptil, e sexo anal. A grosso modo é isso, um cara de Minnesota (EUA), com
um amigo próximo que fala ter visto um disco voador. Aliás, um parêntese, meu
sonho era ver um disco voador e eu vi no Recife no ano passado (2013). Foi
quando estava chegando na boate Iraq, onde me chamaram para um bate-papo.
Foi lindo ter visto, era um objeto redondo com uma luz azul muito forte. Então,
voltando ao romance, o personagem do livro tem um amigo que diz ter tido uma
experiência desse tipo. O meu maior desafio é o seguinte, eu não acredito nos
reptilianos, o narrador não acredita e o protagonista também. Mas quero
construir uma dúvida em algum momento. Por isso que é um desafio grande. Na
história, o amigo do protagonista diz que viu essas coisas extraterrestres e
entrega um envelope para ele junto com um número, e fala para ele ligar se algo
acontecer e entregar o envelope para o contato. O protagonista está com a vida
bem parada e o amigo some, aí ele liga para o número, entrega o envelope.
Nesse momento, oferecem para ele uma nova identidade num esquema de
proteção. Não do governo, e sim de um grupo particular. Ele fica fascinado com
essa ideia de ter uma nova identidade, aceita e vai para Nova York. O livro é
muito em torno das experiências desse cara, vivendo num grupo de pessoas
estranhas, fanáticas com essa questão de óvnis, e ele tendo que se adaptar com
um novo nome, nessa nova cidade. A história de amor, exigência do projeto do
Amores Expressos, surge quando o protagonista começa a ter uma relação de
fachada com uma mulher, pois faz parte da proteção, e ele se apaixona por ela,
mas logo depois passa a desconfiar que a mulher seja um reptiliano.
filme e peça baseados no livro homônimo

AC – A linguagem permanece a mesma dos seus livros anteriores?


LM – No livro anterior eu já tinha retomado um pouco da poesia no meu
trabalho, nesse novo tem muita brincadeira com a língua, apesar de muito humor
e bastante pesquisa sobre esses assuntos de óvnis e de répteis. Ele tem muita
poesia também. Algumas pessoas estão lendo e não estão achando a leitura
fácil. A minha mulher me disse que é um livro que só eu vou gostar e sorrir, mas
é um livro que me basta, estou fazendo para mim mesmo. Já estou quase na
metade. Deve sair em 2016.
AC – Como avalia esse projeto do Amores Expressos e a cidade de Nova
York, lugar para onde foi enviado?
LM – Primeiro eu achei uma ideia maravilhosa, em ter que ficar um mês
em outra cidade, sem necessariamente falar a língua local e também não
conhecer o lugar. Eu falo apenas umas doze palavras em inglês, mas eu me virei
lá. Quando me convidaram, falei que queria ir para Beja, uma cidadezinha no
Alentejo, em Portugal, que eu passei dez dias e amei. Aí eles me mandaram
para Nova York, que é um lugar onde não tinha a menor vontade de conhecer.
Isso foi ruim para mim. Tudo que eles têm de mais legal não me interessa, tenho
desprezo por aquela cultura da aparência, pelo o que se vende e se acha
bacana. Fui para lá e tive o meu primeiro bloqueio criativo e voltei a beber depois
de quinze anos. Aí em tive que voltar para Nova York um ano depois para tentar
resolver o meu livro. Nessa segunda vez foi mais atraente, pois ir para lá
bebendo deixou a cidade bem mais interessante e divertida. Mesmo assim ela
não me ganhou, não mudou a impressão que eu tinha, pelo contrário, reforçou
demais tudo o que pensava sobre ela. É um lugar que a gente já conhece, somos
bombardeados todos os dias de informação sobre aquele país.

Filme baseado no primeiro livro do autor, com Selton Mello no papel


principal

AC – A experiência literária, no entanto, foi válida?


LM – Extremamente válida. Eu queria escrever um outro livro sobre essa
experiência. A editora tentava fazer com que a gente não ficasse em hotel, para
vivermos melhor o cotidiano. Fiquei no apartamento de um russo que iria passar
um mês fora. Eu nunca tinha tido problema com a solidão e lá fiquei afetado pela
solidão, que não era minha. O russo se chama Ilía, tenho até um projeto de livro
que se chama A solidão de Ilía. Lá tinha os desenhos das filhas dele na parede,
e muitas outras coisas que remetiam a solidão. Então aquilo começou a me
afetar. Eu tenho muita vontade de escrever sobre isso. A experiência foi muito
rica, principalmente para nós escritores, que todas as coisas servem de
repertório e bagagem. Acho que o romance Livro IX e/ou o Filho mais velho de
Deus vai ser um bom livro.
AC – E o livro que vai lançar agora em 2015? Do que se trata?
LM – Esse próximo livro, O grifo de abdera, que é o nome de uma moeda
grega, partiu de uma encomenda do cineasta Fernando Sanches, que queria
filmar Miguel e os Demônios, mas estava um pouco enrolado o contrato com a
editora, e me pediu para escrever o que eu quisesse para ele filmar. Então eu fiz
um livro com três estruturas: um conta a história do verdadeiro Mutarelli, o outro
conta o que deve ser filmado, que é uma história de amor, e o último é uma
história em quadrinhos encartada de oitenta páginas, falando sobre um dos
personagens, que no processo meio doentio produz um quadrinho totalmente
sem sentido. O romance vai juntar essas três coisas. É um livro onde eu retomei
um pouco da poesia e revisitei a minha obra e o lado bom da minha infância, da
vivência do bairro onde moro. O personagem principal do romance recebe uma
moeda grega de 411 anos antes de Cristo como pagamento de algo que ele não
sabe o que é. Aí ele vai tentar descobrir esse mistério e as coisas mudam muito
a partir desse fato. O quadrinho incluso foi um processo totalmente experimental,
eu iria extrair o texto e jogar os desenhos fora,mas gostei tanto do processo que
resolvi encartar como sendo de um dos personagens.
AC – Você disse certa vez que não se achava um escritor de verdade.
Ainda continua com essa mesma opinião depois de vários livros publicados?
LM – Não, minha opinião mudou. Hoje eu me considero um escritor.
Mesmo. Eu escrevia meus livros muito rápido, agora levo muito mais tempo.
Gosto de ficar trabalhando mais, ajustando.
AC – Porque você falava que não era um escritor? Qual era a sua ideia
sobre o ofício?
LM – Eu não entendia muito o que era ser escritor, eu mitificava um pouco
esse ofício. Como hoje a maioria dos meus amigos são escritores, isso foi se
desmistificando. A minha própria maneira de viver é como um escritor mesmo.
Coleciono coisas. Tudo acaba virando matéria prima, vou colecionando e
pensando em juntar para fazer um mosaico ficcional. Tem a ver até com a forma
que se vê o mundo, eu vejo o mundo como um escritor.
AC – Aliás, você disse a mesma coisa em relação à atuação nos filmes
que participou. Também não se considera um ator, no sentido clássico de se
entregar ao um papel? Como avalia esse lado na sua carreira?
LM – Eu só trabalho agora com a Anna muylaert. Filmei com ela no
começo do ano, um papel bem grande, e até o final do ano faço outro papel,
dessa vez pequeno. Ela me dá muita liberdade. Eu falo sempre que eu acabei
entrando no mundo do cinema como um policial infiltrado. Estava escrevendo a
minha peça de teatro quando me convidaram para participar de um curta como
ator, eu achei que poderia ser mais uma experiência para o escritor. Trabalhei
em vários curtas, mas não trabalho mais, só com a Ana. Não sou um ator, sou
um canastrão.

Cena do filme Natimorto, onde Lourenço contracenou com mais de seiscentas


baratas
AC – A impressão é que você se entrega muito quando está atuando.
LM – Em tudo o que faço me entrego totalmente, mergulho no papel. Mas
não tenho técnica, propriocepção. O que estou fazendo eu não vejo
corporalmente como está sendo na hora. Com a Anna muylaert eu gosto de fazer
porque ela não quer ouvir uma palavra do roteiro, por já entender a história toda.
Então ela diz para a gente falar o que acha que o personagem deve dizer. Isso
me fascina muito. As vezes existem cenas muito difíceis que eu não gosto de
pensar, apenas na hora da ação mesmo eu vejo como o personagem vai
resolver. Aí é muito emocionante, adrenalina pura, o coração dispara. Minha
primeira participação grande em longa-metragem foi no Cheiro do Ralo, já tinha
feito uma ponta em Nina, também de Heitor Dália, mas não entrou.
AC – O Natimorto é bem significativo na sua trajetória, por ser sua maior
atuação em longa? Você gostou do resultado?
LM – Eu recebi muitas críticas negativas de amigos meus. Isso me fez
perder um pouco do prazer, que até então era divertido. Eles falaram que eu
estou péssimo no filme, que não deveria ter feito. Me magoou muito, porque me
entreguei completamente. Preciso de uns dez anos para rever o Natimorto para
saber se fui tão mal assim. Eu gosto bastante do papel que fiz no É proibido
fumar,da Anna muylaert, uma cena que eu faço com a Pitty. Gosto muito
também de uma participação no curta Pugile, de Danilo Solferini, que eu faço um
palhaço satânico e um mendigo que vai assaltar crianças.

Transubstanciação é o quadrinho mais aclamado do autor


AC – O cinema, inclusive, foi importante para as pessoas conhecerem seu
trabalho como romancista. Você diria que literatura, cinema e teatro (no qual
você também atuou) quase sempre partem do mesmo princípio, que são as
histórias propriamente ditas?
LM – Tudo isso tem muito em comum, mas um exemplo que eu dou é uma
cena do Natimorto que tive que contracenar com seiscentas baratas em cima de
mim. A concentração é tão forte quando estou atuando ou escrevendo que se
tornam coisas em comum. Naquele momento do Natimorto eu consegui fazer
uma cena linda, ainda que repugnante. É isso, a arte é quase um ilusionismo, de
querer contar uma história, fazer alguém ver alguma coisa que você quer dividir.
AC – Você não gostou do Quando eu era vivo. Como avalia a adaptação
das suas outras obras para o cinema. Na sua visão, os diretores conseguiram
captar bem o universo dos romances?
LM – Eu adoro o Cheiro do Ralo. Quando eu vi o primeiro corte do
Natimorto com a equipe na cabine, também gostei, apesar de ser bem
problemático no começo. O que desagrada no filme é justamente a crítica que
sofri sobre minha atuação. Não do filme em si ou do olhar do diretor.
AC – Suas atuações no cinema e no teatro, de alguma forma, são
importantes para a produção dos seus livros? O que consegue extrair dessas
experiências?
LM – Eu tenho muita vontade de escrever sobre um personagem ator.
Mesmo não sendo ator eu vivi os bastidores dos filmes, das peças, é um universo
muito fascinante. Quando escrevi A arte de produzir efeito sem causa, por
exemplo, eu criei os gráficos do personagem Júnior, que não iria fazer, apenas
idealizar. Eu comecei a tentar entendê-lo. Dormi algumas noites no sofá pequeno
para saber como era para ele dormir no sofá pequeno. O de Nova York, quando
tive o bloqueio criativo, eu andei pelas ruas tentando atuar como o personagem,
entender a cidade como o personagem. Então uma coisa meio física veio do
cinema para a minha literatura. No Grifo de Abdera o protagonista tem relação
muito forte com uma caixa d’água, que é muito importante desde minha infância.
Muitas vezes quando eu parava para tomar um café, eu ia lá dar uma olhada
nela. Talvez por ter atuado, as vezes meu corpo me leva até caixa d’água para
fumar um cigarro e olhar para ela. Quando eu volto trago alguma coisa para o
livro, mesmo sem querer.
AC – Deve ser uma loucura escrever um livro e depois ser o personagem
daquela mesma história. Como se sentiu?
LM – No Cheiro do Ralo o segurança do livro era tão diferente no filme.
Então levei como uma brincadeira. No Natimorto eu vivi realmente um
personagem meu, só que o objetivo era me aproximar do personagem do diretor,
que não era o meu, tinha diferença no olhar dele. A ideia era chegar no que o
diretor queria. Foi fascinante. Eu estava tão mergulhado que não vivenciei como
o escritor deveria ter observado. O autor do livro no filme é uma espécie de
mascote, como se eu tivesse dando um aval.

A Companhia das Letras fez a compilação da trilogia do detetive Diomedes,


esgotada há alguns anos

AC – Qual a adaptação literária que gostou bastante?


LM – Uma adaptação que gosto muito é Naked Lunch (traduzido no Brasil
como Mistérios e Paixões), dirigido por David Cronenberg. Esse filme é uma
mistura do romance O almoço nu, de William Burroughs, com a vida do autor.
Eu adorei a série Berlin Alexanderplatz, dirigida por Rainer Werner Fassbinder.
Eu gosto também da adaptação da Insustentável leveza do ser, que achei mais
legal o filme do que o livro. Tem filme que gosto tanto que não vou ler o livro,
como o Laranja Mecânica. Por isso que achei que ninguém iria ler o Cheiro do
Ralo, porque as vezes o filme é tão fascinante que se basta.
AC – Você foi um jovem com alguns problemas de relacionamento, utilizou
medicamentos muito fortes, várias drogas e teve uma depressão profunda. Fazer
quadrinhos foi uma forma de exorcizar todos os demônios e continua até hoje
através dos livros?
LM – Por outro lado era uma prisão, pois eu tinha que trabalhar, no
mínimo, doze horas por dia. Era uma forma de não viver. Passei um período,
antes do Cheiro do Ralo, que não saía de casa. Fui mudando. Eu tinha uma vida
muito solitária, éramos eu, minha mulher, meu filho e dois amigos. O filme
o Cheiro do Ralo me trouxe para um mundo muito maior. Hoje tenho incontáveis
amigos que eu vejo com frequência. Eu vivo mais, não consigo ficar dez horas
preso desenhando. Minha mão não aguenta. Então a literatura é muito mais
fascinante para mim. É importante dizer que meu trabalho me salvou. Claro que
eu me tratei, tomei remédio por 28 anos, fiz análise, mas o meu trabalho foi o
que mais me ajudou a melhorar como pessoa, e a tirar as nuvens negras sobre
mim. Algumas pessoas ainda me veem como uma pessoa reclusa, tímida. Não
sou mais assim, tenho uma vida e adoro poder vivenciar tudo isso.
AC – Mas ainda hoje exorciza alguma coisa com a literatura?
LM – Sem dúvida. Ainda tem questões que eu limpo e volta a ser
acumulada uma coisa escura, que tenho que colocar para fora através da arte.
AC – Em outras entrevistas você falou que boa parte dos quadrinhos que
produziu foi com inspirações autobiográficas. Você ainda continua bebendo
dessa mesma fonte pessoal para escrever suas obras?
LM – Sempre confundiram muito meu estado mental com autobiografia.
Existe uma autobiografia sensorial. Muito do que está nos livros e nos quadrinhos
tem a ver com o que vivia, mas não sobre o que vivia de fato. O meu quadrinho
preferido Caixa de Areia, que vai ser relançado no próximo ano (2015), é uma
falsa autobiografia. Eu usei minha casa como cenário e minha família como
personagens, mas quase nada ali é verdadeiro, só os ruídos externos que
atrapalham o personagem são reais. Eu fiz histórias autobiográficas para a
cybercomics, que reuni depois no quadrinho Mundo Pet. São as únicas histórias
com algo de autobiografia. Agora, eu misturo uma ou outra vivência minha com
o personagem, e não dá para saber o que verdade ou ficção. Eu bebo das
minhas vivências. Escrever para mim é a forma que eu tenho de pensar mais
profundamente sobre qualquer coisa. Algo que me vem a ideia, se eu quero
aprofundar escrevo.

AC – É até um clichê a pergunta, mas cada escritor tem um processo criativo


diferente. Como você parte de uma ideia até a concepção do livro propriamente
dito?
LM – No livro de Nova York eu tive que entregar uma sinopse de cinco
páginas, com começo, meio, fim e discrição dos personagens. Eu matei o livro
nessas cinco páginas, porque não gosto de escrever dessa forma, é muito
burocrático para mim. Gosto de ir descobrindo a história, não tenho essa coisa
de saber o final do livro. O Marçal Aquino fala que a história vai sendo contada,
é a mesma coisa comigo. Claro que preciso fazer escolhas. Adoro esse
processo, para mim é isso o que motiva a escrever. Agora, cada livro é uma
experimentação. O Livro IV e/ou o Filho mais velho de Deus, por exemplo,
nasceu quando eu estava sozinho em casa, a noite, zapeando por esses canais
do tipo Discovery, e estava passando um documentário sobre sereias. Ele é tão
bem construído, o documentário, que levanta a possibilidade de realmente
existirem sereias. Foi aí que nasceu o livro, quando eu resolvi escolher uma coisa
que eu achava ridícula e tentar criar uma credibilidade. Esse era o desafio, falar
de algo do qual eu não acredito, mas tentar ver como podia tornar isso por um
minuto algo possível de ser verdade.
AC – Você tem uma teoria interessante que é sobre seu ambiente de
trabalho ter que ser opressivo para fazer da arte um ponto de fuga para a mente.
Isso se revela diretamente nos personagens, que sempre surgem em situações
desconfortáveis, em acontecimentos urbanos estranhos, e muitas vezes estão
na encruzilhada entre solidão e morte. Explique melhor como é essa teoria.
LM – Eu trabalho numa jaula, decorada como uma masmorra, só tem
coisas sombrias lá. É muito importante esse trânsito. Eu sou muito divertido na
minha casa, eu gosto de um ambiente bom na minha residência, mas para o
trabalho eu preciso de um lugar pesado. O fato de ter uma jaula, que é um quarto
de empregada, sem janela, com grade, me faz entrar lá e mudar minha maneira
de ser. A gente vive no mundo que faz tudo para nos distanciar de nós mesmos.
São contas para pagar, transporte e muitas outras coisas. Na jaula eu me desligo
completamente do mundo, vou ouvir música e me ambientar naquele universo
que tem a minha cara. Só que esse ano teve uma infestação de cupim e eu tive
que sair de lá. Estou trabalhando na sala, está sendo péssimo para mim. Uma
peça, que é um santuário pagão, levei para a sala com medo dos cupins
acabarem com ele, e minha mulher não gostou daquilo na sala, ela diz que o
objeto não pertence ao ambiente. Mas é muito importante para mim, pois tem
uns bonecos que me ajudaram bastante, porque eu era uma criança muito
sozinha e ficava brincando com os bonecos de Forte Apache, inventando
histórias. Eu retomo um pouco disso no Grifo de Abdera. Esse santuário me dá
uma energia, da mesma forma quando alguém para na frente na imagem de um
santo e sente uma força vindo de lá, esse bonequinho é uma espécie de santo
para mim. Então meu trabalho vai muito por essa linha, de profanar o sagrado e
por outro lado sacralizar o profano, essa coisa misturada do que acredito ser
importante para minha vida.

Nada me faltará foi uma grande experimentação do autor, um romance apenas


com diálogos

AC – Consegue escrever em qualquer lugar ou apenas na jaula ou


próximo dela?
LM – Eu acabei de chegar de viagem e não consegui escrever nada, levei
trabalho, mas não saiu nada. O Livro IV e/ou o Filho mais velho de Deus, por
algum motivo, preciso que seja em casa mesmo, tenho um monte de pesquisa
para fazer na internet, e muitos livros para consultar. Eu me sinto mais
concentrado lá.
AC – As situações que aparecem nos seus romances são perfeitamente
verossímeis, mas tem toda uma pegada de absurdo e surreal. Por que preferiu
seguir por esse caminho desde o começo?
LM – Por me fascinar mesmo. Quando você está desestabilizado
psiquicamente tudo é mais sombrio e possível. Você vê coisas que se estivesse
bem não veria, pensa coisas que não pensaria. Desde de uma paranoia
conspiratória, suicídio, desconfiar de pessoas muito próximas, até achar que a
realidade é uma ilusão. Meus personagens estão sempre nesse limite, a três
passos de uma crise irreversível que eles vão viver, onde vou acompanhá-los
por um tempo nisso.

AC – Lógico que não apenas os aspectos pessoais são importantes para compor
uma história. Existe também a influência externa, de outros autores. Quais
escritores fazem parte do seu universo literário?
LM – Eu não sei. Tem vários momentos com vários autores. Descobri há
três anos o Kurt Vonnegut, quem me indicou foi o Antônio Prata, por achar que
tem muito a ver com minha literatura, e tem mesmo, embora eu nunca tenha lido,
e apesar de ser algo diferente, ele trabalha o humor e o registro, a repetição das
palavras. No “Livro IV….” tem uma homenagem ao Vonnegut, o personagem
sempre fala dele. Kafka foi outro escritor, quando eu li era a mesma sensação
do mundo que eu tinha. Nunca mais reli Kafka. Foi incrível ler Os demônios do
Dostoiévski também. Teve uma época que fiquei totalmente contaminado por
William Burroughs, era uma influência psíquica, hoje não mais. Tento não me
influenciar, não seguir ninguém. Admiro, mas estão apenas nos meus altares.
AC – Mas você deve ler bastante coisa.
LM – Tem fases que sim. Esse ano eu li pouquíssimo. Não consigo, por
exemplo, ler no calor, não suporto o calor e não me concentro. Mas quando
começo a ler não paro. Eu li recentemente Berlin Alexanderplatz, de Alfred
Döblin, e amei. Fui para Portugal e comprei esse livro com uma tradução muito
mais poética. Acabei de ler Bom dia, Camaradas do Ondjaki, gostei muito. É
sobre a infância, mas uma infância bem diferente da minha, é tão calorosa,
compartilhada. É bonito ver como ele, Ondjaki, conseguiu encapsular isso até os
dias de hoje. Meu filho está escrevendo o segundo livro, ele não publicou ainda,
mas lê muito e acabou de terminar Misto Quente, do Charles Bukowski, e estou
lendo para conversar sobre o livro com ele. Quando estou escrevendo muito eu
não consigo ler, porque eu começo a analisar o livro não como um leitor comum,
eu adoro me perder como um leitor, não ficar analisando como o cara escreveu.
Eu sou muito exigente com os livros que leio, nas primeiras dez páginas o livro
tem que me conquistar ou então eu largo. Leio poucos contemporâneos, mas
acompanho o trabalho do Marçal Aquino, Marcelino Freire, amo o romance
Nossos Ossos, adoro a música que o Marcelino sabe utilizar nos livros dele,
principalmente o romance que falei, me emocionou bastante.
AC – Em 2011 você voltou ao universo próximo dos quadrinhos
publicando a história ilustrada Quando Meu Pai se encontrou com um ET fazia
um dia quente. Pretende publicar outras coisas do gênero?
LM – Esse quadrinho foi uma chantagem, me ofereceram um dinheiro
absurdo par fazer. Eu gosto do resultado, não gostei do processo. Achei que não
era a hora de ter voltado, mas fiz, foi um trabalho. Esse outro quadrinho que vem
encartado no próximo livro é algo muito mais visceral e interessante, além de
estar no contexto do romance.
AC – Você já disse que não gostava de internet, muito menos de redes
sociais. No entanto, tem um perfil no Facebook. Qual o motivo da mudança de
opinião?
LM – Eu sempre tive distância da internet, embora sempre utilizei para
comprar muito livro. Não só livro como também máquina de lavar, geladeira etc.
Eu detestava e-mail, achava um saco, o Orkut também. Quando comecei a dar
aulas, eram muitos e-mails de alunos e eu tinha que responder. Só respondo
meu e-mail apenas coisas de trabalho e alunos. O Facebook eu não tinha, mas
um cara usava meu nome, minha foto e postava umas coisas lá como se fosse
eu. Isso começou a incomodar, eu denunciei e o cara saiu. Depois de um mês
surgiu outro fake. Foi quando resolvi entrar na rede social. Gostei muito no
começo e agora já não tenho tanto prazer, porque tem muita gente chata pedindo
para que eu leia livros. Só te convidam e pedem, essa é a parte chata. O Grifo
de Abdera é uma parceria minha com o Mauro Tule Cornelli, um alter-ego meu,
criado para o livro. Ele tem uma página no Facebook, foi por isso que entrei na
rede social também. É um anagrama de Lourenço Mutarelli. Tudo o que ele posta
eu amo, tem a ver com meus livros. Ele é mais chato do que eu, mais careta. Ele
é o verdadeiro Mutarelli, eu que viajo e dou entrevista, sou um tiozinho que
aparece em outros livros, porque ele pagou uma pinga para eu sair numa foto
que ele não queria aparecer. Só que esse cara (eu) fica viajando e falando
besteira e isso o incomoda. O Livro IV… é dedicado ao Google, Google Tradutor,
Google Street View, Wikipédia, por ser feito disso, a minha relação com a internet
mudou completamente. Eu só não tenho paciência de ficar perdendo tempo.
Tenho hora para entrar no Facebook, sou muito focado. Não é uma coisa que
me pega ou vicia. Eu sou um cara compulsivo e poderia ficar horas lá dentro da
rede social.

AC – Você demora quanto tempo escrevendo um livro. Isso varia de um para o


outro?
LM – O Cheiro do Ralo foram cinco dias. Eu levei mais dez dias
trabalhando nele. O Natimorto eu comecei e só retomei um ano depois, aí
quando peguei acabei em quinze dias. Jesus Kid escrevi em quinze dias. Miguel
e os Demônios em um mês. A arte…. eu levei um ano por conta da pesquisa. O
Grifo de Abdera três meses. Agora, o Livro IV… comecei em julho e vai ser
preciso mais um ano trabalhando nele. Tenho gostado de um ano para trabalhar
os livros novos. Hoje me levanto por volta das oito horas, trabalho até meio-dia,
depois paro para almoçar e fico escrevendo até duas da tarde. Se o envolvimento
for grande leva mais tempo o processo. No dia seguinte eu leio o que escrevi e
faço ajustes.
AC – Você revisa os livros?
LM – Não reviso e nem conheço muita coisa da estrutura gramatical da
nossa língua. Escrevo muito de ouvido e depois o livro vai para o revisor. O
Cheiro do Ralo, a primeira edição, não tinha revisor na editora, saiu da maneira
que escrevi. Sei que tem muitos erros. Mas não quero estudar porque meu texto
flui dessa forma. O importante para mim é contar a história. A língua é viva. Eu
escrevo a língua que falo, acho isso importante. Mas, claro, tudo vai passar por
uma revisão e tem que coisas que vou brigar para não tirar, por conta da
sonoridade, da melodia do texto. As vezes trocam uma palavra e a música do
romance é cortada.
AC – Já está dando para viver exclusivamente de literatura?
LM – Não vivo e não conheço ninguém que viva só de literatura. Eu me
sustento com as oficinas de quadrinho que ministro. Tem mês que não tem nada
e tenho que correr atrás para conseguir alguma coisa. Esse ano de 2014 foi um
dos piores financeiramente por causa da Copa do Mundo, depois as eleições.
Praticamente três meses sem trabalho nenhum. Quando não tem oficina eu
tenho que arrumar ilustração, porque a literatura não me sustenta. Ganhamos
apenas 10% do preço de capa, os livros são caríssimos, por volta dos R$ 40, e
só ganhamos R$ 4. Ainda por cima se vende muito pouco no Brasil.
AC – Existe alguma previsão de tradução de seus livros?
LM – A arte de produzir efeito sem causa iria sair na Argentina, por conta
da crise não saiu, mas já está traduzido. O Cheiro do Ralo vai ser publicado na
França próximo ano. O intercâmbio é muito importante. Quando você viaja, vai
dar uma palestra, e tem o livro traduzido todo mundo quer, agora quando não
tem o livro as pessoas não tem como acessar o trabalho. Complica demais.
AC – Você acha válida que uma pessoa descubra um determinado livro e
leia todos os outros do autor?
LM – Eu faço isso. Adoro descobrir um autor que já morreu, aí eu quero
ler a obra inteira quase como um livro só. Isso para mim é demais. É como a
gente faz com músicos, teatro, diretores de cinema. Se for sair um filme novo do
Paul Thomas Anderson eu vou assistir. Seguir algum artista é normal. O único
cara que destruiu a imagem que eu tinha dele, pode parecer até careta da minha
parte, foi o Wood Allen, por conta do abuso sexual com a filha adotiva. Aquilo
corrompeu a imagem que eu tinha. Muitos filmes do Wood Allen eu gosto muito,
embora sejam datados, são legais apenas naquele momento. Mas eu perdi
totalmente o respeito e admiração por ele. Se o cara é louco e faz uma coisa
improvável acho até legal, mas algo desse tipo do Wood, ou então uma atitude
racista de alguém que eu admirava, azeda a relação na hora.
AC – Muitos artistas começam a carreira tentando buscar algo maior no
futuro, uma conquista artística. Você pensa nessas coisas, está buscando algo
maior artisticamente no futuro? Pensa sobre isso?
LM – Não penso nisso. No Grifo de Abdera o Mauro Tule fala um pouco
que todo o livro é mais ou menos o mesmo livro. Só quem em giros diferentes.
O meu primeiro quadrinho o Transubstanciação foi o meu melhor quadrinho
durante muito tempo. Nunca atingi em outro quadrinho o que alcancei nele, mas
isso não me incomoda de jeito nenhum. Eu tenho uma busca de alguma coisa.
Escrevo porque quero e preciso, mas não tenho a ambição de fazer a grande
obra da minha vida. Vou escrever enquanto tiver prazer nisso.
AC – Do que você não gosta?
LM – Eu não gosto quando muda o tratamento comigo. As vezes as
pessoas me tratam mal sem saber que sou eu, quando sabem mudam o
tratamento na hora, vem me bajular. Eu detesto isso. Se não gostou de mim não
precisa bajulação. Não acho que sou melhor do que ninguém. Assim como tenho
amigos escritores, também tenho amigos foram desse universo. Mas até quando
estou com meus pares não conversamos sobre literatura. Já o pessoal dos
quadrinhos só fala esse assunto do trabalho deles. Eu nunca fiz parte do grupo.
AC – Como acha que sua obra merece ser definida?
LM – Eu não sei como dizer, mas a minha obra tem uma entrega profunda
e uma investigação sobre as minhas sombras. Não sei me definir. Nunca tive
muita pretensão, sigo essas coisas que aparecem. Não me importa em ter uma
obra vasta, eu vou fazendo. Talvez esteja muito colado na minha obra para poder
defini-la. Só sei que estou muito em paz com a minha obra, eu não me orgulho
e nem me envergonho dela. Existe uma entrega profunda em cada trabalho. A
minha obra representa muito do meu mundo interior. As pessoas me respeitam
até demais, tenho um status tipo cult entre os leitores. Tem aqueles fãs mais
antigos que na hora que eu fui para Companhia das Letras falaram que estava
me vendendo. Mas continuo fazendo a mesma coisa da época dos fanzines, sem
concessão nenhuma. Falo sobre muitas coisas que acho interessantes,
divertidas e que muitas pessoas não falam. O que mais me orgulha é ser mais
radical do que quando comecei. Eu tenho uma alma meio Punk.

Fonte: https://www.angustiacriadora.com/2014/11/lourenco-mutarelli-de-
corpo-inteiro/
Acesso em: 11/11/2019

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