A Justiça de Rawls e o Pós-Positivismo
A Justiça de Rawls e o Pós-Positivismo
A Justiça de Rawls e o Pós-Positivismo
principais críticos.
proceduralismo. 6. A justiça de J. RAWLS. 6.1 Justiça como equidade. 6.2 Alguns dos
1. Introdução
humana, e que milhares de anos não conseguiram apontar sequer uma pretensa uniformidade
O movimento filosófico depois da Segunda Grande Guerra inicia uma nova reflexão
do direito e da sua função social, voltando à cena a discussão dos princípios e das regras
precursores de uma verdadeira teoria dos direitos fundamentais, que marca a virada kantiana.
humana preconizada outrora, colocando o homem como fim do direito, não meio. É o pós-
Busca nas concepções kantianas a noção da indispensabilidade de tratar o homem como fim
da justiça, não meio. Resgata o homem como objetivo maior da sociedade, enquanto o centro
de toda a racionalidade, não obstante acidamente criticado, inclusive por quem o atacaram por
Este estudo tem por proposta analisar as concepções de justiça e sua relação com o
pós-positivismo, em especial a doutrina de RAWLS com seus críticos e seguidores, que sem
Desde a concepção cósmica, pela qual justo seria que cada coisa ocupasse seu lugar
delineamento de justiça. Logo destacaram os seus aspectos sociais, aplicando-se aquela noção
cósmica aos seres humanos em que dada uma ordem social aceita, qualquer alteração dela
seria injusta. Depois a justiça como equilíbrio no intercâmbio de bens entre os membros da
sociedade. Se houvesse desequilíbrio haveria injustiça, que deveria ser compensada. Neste
sentido chegou-se a considerar justo vingar o dano em igualdade “olho por olho, dente por
dente”. A distinção sofista entre o que é “por natureza” e o “por convenção” abalou a sua
noção, ao considerar que a justiça é “por convenção”, ou seja, algo seria justo quando se
chegasse a um acordo sobre o que fosse justo, e injusto quando se concordasse que fosse
injusto. Em contraposição PLATÃO declarou que a justiça seria condição para a felicidade,
pois, conforme SÓCRATES, o homem injusto não poderia ser feliz. Interessou-se pela justiça
estado. Considerou a justiça como uma virtude extrema, cujo exercício deveria ser levado às
últimas conseqüências, ainda que o mundo perecesse (fiat iustitia, pereat mundus).
concepções cristãs superaram as clássicas gregas pela caridade e pela misericórdia, pois o
essencial seria amar. A justiça daria a cada um o que fosse seu. Na caridade, até mais que o
devido! O primado da caridade, porém, não impediu SANTO TOMÁS considerar a justiça
desenvolvida por GROTIUS, entendeu a justiça fundada na lei natural, onde as leis positivas
seriam justas somente na medida em que estivessem de acordo com aquela lei. HOBBES
pareceu defender uma concepção de justiça baseada no poder absoluto do soberano, que
representaria o acordo dos membros da sociedade para se evitar a guerra de todos contra todos
sociedade delegariam poderes ao soberano absoluto, cujas leis deveriam ser obedecidas, ainda
que não fossem justas, pois ninguém teria direito a desobedecê-las ou criticá-las.
Os utilitaristas, como HUME, consideraram, embora por razões distintas, que o justo
Era a justiça equiparável à utilidade pública, fundada na premissa do maior bem possível para
indivíduo dentro de uma sociedade. Na maior parte dos casos tratam de uma distribuição de
idéia de justiça freqüentemente apresentada como modelos para sua aplicação, consoante o
movimentos.
seu aspecto assumido supostamente de dar a cada um o que lhe for devido, o que estaria,
segundo AMARTYA SEM, na base de todas as suas diversas teorias. PERELMAN, por
exemplo, afirma haver seis tipos de noção de justiça: i) a cada um o mesmo, ii) a cada um
segundo seus méritos, iii) a cada um segundo seus atos, iv) a cada um segundo suas
necessidades, v) a cada um segundo sua posição e, vi) a cada um segundo o que é atribuído
pela lei. Todas as acepções seriam incompatíveis entre si, mas haveria algo em comum
quando decidido aplicar sobre elas uma formalização suficiente. Daí seu conceito de justiça
5
como um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial
Como muitos outros filósofos1, KANT pensava que a moralidade poderia resumir-se
obrigações, que chamou imperativo categórico, assim expressado: age apenas segundo aquela
máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal (Fundamentação da
Metafísica dos Costumes de 1785). Depois complementou que o princípio moral essencial
afirmaria: age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem,
sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Ele acreditava que a moralidade exigiria
tratar as pessoas sempre como um fim e nunca apenas como um meio, significando
exatamente que o valor dos seres humanos estaria acima de qualquer preço. Não tinha em
mente apenas um efeito retórico, mas sim um juízo objetivo sobre o lugar dos seres humanos
Haveria dois fatos importantes sobre as pessoas que apoiassem, do seu ponto de
vista, este juízo. Primeiro, uma vez que as pessoas têm desejos e objetivos, as outras coisas só
teriam valor para elas em relação aos seus projetos. As meras coisas, incluindo os animais que
não são humanos, teriam valor apenas como meios para fins, sendo os fins humanos que lhes
dariam valor. Um manual de xadrez só teria valor para quem pretendesse, como objetivo, se
tornar um melhor jogador. Mas de nada valeria para quem, por exemplo, não jogasse nem
quisesse jogar xadrez. Segundo, e ainda mais importante, os seres humanos teriam um valor
intrínseco, isto é, dignidade, porque seriam agentes racionais livres com capacidade para
1
Segundo RACHELS, James. Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves. Excerto retirado da obra
Elementos de Filosofia Moral, Lisboa: Gradiva, 2004
[http://www.criticanarede.com/fa_13excerto.html, em 7/4/2004].
6
tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objetivos e guiar a sua conduta
pela razão. Uma vez que a lei moral seria a lei da razão, os seres racionais seriam a
encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir seria as
dever, fazê-lo. Se não existissem seres racionais a dimensão moral do mundo simplesmente
desapareceria. Não faria sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de
coisa valiosa entre outras. Eles são os seres para quem as meras coisas teriam valor, e são os
seres cujas ações conscientes teriam valor moral. Conclui que o seu valor tem de ser absoluto,
e não comparável com o valor de qualquer outra coisa, significando o dever estrito de
respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal e, em geral, empenhar promover a realização
Mas a sua idéia tem uma implicação mais profunda, pois os seres humanos são
racionais, e tratá-los como fins em si significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca se
poderia manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar os objetivos, por melhores que
empréstimo, embora sabendo que não conseguiria pagá-lo. Em desespero, cogita fazer uma
precise do dinheiro para um propósito meritório — tão bom, na verdade, que poderia
amigo, estaria apenas a manipulá-lo e a usá-lo como um meio. Por outro lado, como seria
tratar o seu amigo como um fim? Suponha que dissesse a verdade, porque precisava do
dinheiro para um certo objetivo, mas não seria capaz de devolvê-lo. O seu amigo poderia,
então, tomar uma decisão sobre o empréstimo. Poderia exercer os seus próprios poderes
racionais, consultar os seus próprios valores e desejos, e fazer uma escolha livre e autônoma.
Se decidisse emprestar o dinheiro para o objetivo declarado, estaria a escolher fazer seu esse
7
objetivo. Dessa forma, não estaria a usá-lo como um meio para alcançar o seu objetivo, pois
seria agora igualmente o objetivo dele. É isto que pretendia quando afirmou que os seres
racionais têm sempre de ser estimados simultaneamente como fins, isto é, somente como seres
positivismo jurídico decorreu da importação das idéias do positivismo filosófico para criar
uma ciência jurídica com características análogas às ciências exatas e naturais2, buscando uma
pretensa objetividade científica, com ênfase à realidade observável que apartou o direito da
moral e dos valores transcendentes. Teve em KELSEN, com a sua Teoria pura do direito, o
a filosofia dos juristas no começo do século XX, quando se pretendeu reduzir o Direito ao
conjunto de normas em vigor, talvez influenciado na Europa continental pelos efeitos dos
políticos de seu tempo, que, num sentido ou noutro, procuravam funcionalizar o direito em
socialismo)”.3 Não obstante se revelou numa ideologia movida por juízos de valor, cujo
2
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro. RDA, Rio de Janeiro, 225: 5-37, jul./set. 2001.
3
HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia. Portugal :
Publicações Europa-américa, 1997.
4
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. nota 2.
8
O momento histórico posterior à 2ª guerra mundial serviu para inspirar um novo
movimento para reflexão do direito e da sua função social, sua interpretação com a definição
moderno que os alemães chamaram de virada kantiana, com a Constituição sendo encarada
pessoa humana, identificado como um espaço de integridade moral a todas as pessoas pelo
fato de simplesmente existirem, cujo núcleo seria o mínimo existencial. Ainda realça o acesso
Direito.
Com ele a discussão ética volta ao Direito. O pluralismo político e jurídico, a nova
5
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. nota 2.
9
hermenêutica e a ponderação de interesses são componentes dessa reelaboração teórica,
Apresenta-se menos conformado e mais crítico em relação ao senso comum, com tendência a
problematizar tudo o que possa ser visto como uma imposição ao quotidiano. No domínio do
planificador — do Estado.7
prioritária da reflexão atual que, segundo CALSAMIGLIA8, seriam problemas surgidos com
positivismo admitiria que as fontes do direito poderiam responder a muitos problemas, pois
poderia dizer que existe um esforço pela busca de instrumentos adequados para a sua solução.
legislador como objeto de análise das normas, não se podendo, porém, qualificar de
equivocada a solução dos juízes ao criar o próprio direito. Por outro lado, contrariamente ao
campo jurídico, havendo uma relação intrínseca entre o direito e a moral. Arremata,
afirmando que o principal ataque dos pós-positivistas tem como objetivo a tese da discrição
judicial, e para atacá-la se vêm obrigados a por em questão tanto as teses das fontes sociais do
4. A superação do utilitarismo
6
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. nota 2.
7
HESPANHA, António Manuel. op. cit. nota 3.
8
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. DOXA, 21 : 209-219, 1998.
10
uma base de comparação entre instituições e práticas sociais alternativas, mas insatisfatória,
segundo RAWLS, pelo menos por duas razões9: em primeiro lugar, por não concordar com os
juízos ponderados sobre o fato de os direitos individuais não deverem estar sujeitos ao cálculo
dos interesses sociais. A proposição central do utilitarismo, em sua forma clássica, seria a da
maior felicidade, pela qual o melhor resultado seria o que maximizasse a felicidade agregada
dos membros de uma sociedade tomada como um todo, ainda que significasse impor um
uma sociedade de cem pessoas, em que noventa e cinco delas pudessem ficar mais felizes
poderia ser alcançado com a escravização de alguns para produzir a maior felicidade para a
maioria, então esta ação seria a melhor! Resultados deste tipo colidiriam com os juízos
ponderados sobre os direitos que os indivíduos possuiriam e que não deveriam jamais ser
prazer mental ou, então, e tomado de uma forma mais ampla, o bem-estar psicológico, o que
9
JOHNSTON, David. Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira. Texto retirado da obra The
Idea of a Liberal Theory: A Critique and Reconstruction, New Jersey: Princeton Universtity Press,
1996, pp. 101-3 [http://www.criticanarede.com/rawlsutilitarismo.html em 7/4/2004].
10
Segundo BERGEL, para conjugar a felicidade pessoal com a felicidade geral, o utilitarismo se
nutre de um critério moral consistente em apreciar a qualidade de uma ação de acordo com suas
conseqüências sobre a vida individual e social. Embora individualista e liberal, J. STUART MILL
pregou a intervenção do Estado em favor da classe deserdada, uma modificação do direito de
propriedade, as cooperativas, a liberação política da mulher... O utilitarismo valoriza o espírito
empreendedor, a competição, o crescimento, assim como procura corretivos para os abusos
individuais ou coletivos (BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. Tradução de Maria
Ermantina Galvão. São Paulo : Martins Fontes, 2001, p. 23).
11
diferentes e até incomensuráveis concepções de bem e assim continuaria a ser mesmo que
experiência individual.
particular, destas suas duas características, tendo por objetivo fornecer um conjunto de
princípios que poderiam ser usados para determinar se as instituições e se as ações de uma
sociedade seriam justas, consistente com a nossa intuição ou os nossos juízos ponderados
sobre o fato de os indivíduos possuírem direitos, que não deveriam jamais ser sacrificados no
5. O proceduralismo
O liberalismo político, que não se confunde com o laissez faire capitalista, é uma
teoria normativa sobre a estrutura política básica da sociedade11, cuja essência encontra-se na
fundamentais e que sequer o bem estar geral da sociedade pode ser considerado motivo
ponto de vista proceduralista na filosofia política, conforme uma convicção pela qual as
sua base moral quando endossassem, explícita ou implicitamente, uma concepção de bem
11
No contexto anglo-saxônico liberal significa progressista, com posição política de centro-esquerda
e nesse sentido se contrapõe a “conservative”. É diferente da acepção de liberal a que estamos
acostumados na América Latina, onde é visto como defensor do Estado mínimo e da lei de
mercado. Não é o caso de RAWLS e sua teoria. ROUANET, Luiz Paulo. Diversidade cultural e
universalidade de valores [http://geocities.yahoo.com.br/eticaejustica/texto2.html em 7/4/2004].
12
CRISPI, Renato. La crítica comunitária a la moral liberal
[http://cepchile.cl/dms/lamg_1/doc_903.html em 14/4/2004].
12
viver, ou seja, os ideais de uma vida bem sucedida, convicções religiosas, orientações morais
e juízos abrangentes de valor, desde que tivessem alguma relevância prática para a conduta e
justiça que se impõem (ou que deveriam se impor) nas circunstâncias contemporâneas
bens sociais não poderia deixar de alocar bens a uma das partes envolvidas simplesmente
porque sua concepção de bem viver pareceria menos edificante ou menos nobre do que outras
concepções, isto é, porque os fins que seriam implementados pelos bens sociais disponíveis
seriam menos recomendáveis do que outros fins. A rigor, o diálogo público sobre a
convivência pública, cujo fundamento racional poderia ser localizado além ou acima das
concepções mais ou menos privadas de bem viver, se defende a tese radical segundo a qual
padrões para a avaliação imparcial de questões práticas não poderiam ser separados do
permitiriam distinguir quais delas seriam corretas. A função dos procedimentos seria atualizar
o conceito de vontade racional, isto é, permitir que todos pudessem querer segundo
da moral e poderia ser descrito sem depender dos diversos contextos. Finalmente, esta
corrente de pensamento continuaria a distinção moderna entre o justo e o bem, ainda que isto
para realizar, mediante um procedimento racional, a revisão e a crítica deste mesmo mundo
que de outra forma restaria imunizado. No caso de RAWLS, ainda que sua proposta fosse
mais importante das instituições sociais e o fundamento da inviolabilidade da pessoa, que nem
da Suprema Corte Americana, e examina como o discurso político republicano teria sido
desprezado pelo proceduralismo. Para ele, a ênfase na idéia de um estado neutro, típico do
liberalismo político, resultaria na extinção de uma teoria política contrária: a idéia republicana
clássica.
13
ZAMORA, Jaqueline Jongitud. Teorias éticas contemporâneas.
[http://www.filosofiayderecho.com/rtfd/numero5/teorias.htm em 14/4/2004].
14
CRISPI, Renato. op. cit. nota 12.
14
6. A justiça de J. Rawls
John Bordley Rawls nasceu em Baltimore, Maryland, USA, em 1921. Casou-se com
Margaret Warlfied Fox em 1949, com quem teve os filhos Anne Warfield (1950), Robert Lee
(1954), Alexander Emory (1955) e Elizabeth Fox (1957). Estudou na Princeton University,
onde se formou em filosofia (Ph.D.). Foi professor na Universidade de Harvard. Morreu aos
obra filosófica que marcou época, servindo de paradigma para conceituada evolução
doutrinária, em que se destacam Uma teoria da justiça (1970) e o Liberalismo político (1993).
passado foi a sua Uma teoria da justiça, cuja publicação, no início da década de setenta, veio
dar uma nova vitalidade ao pensamento nesta área do conhecimento. Nela propõe um
itinerário para a descoberta e a fundamentação racional dos princípios que deveriam reger a
sociedade justa, os quais se adequariam às nossas convicções intuitivas sobre justiça. A sua
teorias do contrato social, visando, explicitamente, criticar a primeira corrente, embora sem
recusar o seu conteúdo metodológico. Sua obra pode ser considerada de dificílima
No prefácio da edição de 1971 ele próprio explica ter reunido a visão de suas idéias
veiculadas em artigos escritos nos últimos doze anos. Sua exposição está dividida em partes: a
primeira aborda com maior elaboração a justiça como equidade (1958) e a justiça distributiva:
alguns adendos (1968), com capítulos correspondentes aos tópicos liberdade constitucional
(1963), justiça distributiva (1967) e desobediência civil (1966). O segundo capítulo sobre o
15
TORRES, Ricardo Lobo. A teoria da justiça de Rawls e o pensamento de esquerda. Revista da
Faculdade de Direito. V. 1994.Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p. 157-175.
15
Aponta o objetivo principal de se contrapor ao utilitarismo predominantemente
BENTHAM e MIL, cuja doutrina fora a estrutura para responder às necessidades de seus
interesses mais amplos e encaixar no esquema abrangente. Muito embora os seus críticos não
tivessem sido capazes de construir uma concepção moderna e sistemática que os combatesse,
resultando que muitas vezes pareceria ser forçado escolher entre o utilitarismo e o
contrato social de LOCKE, ROSSEAU e KANT para oferecer uma explicação alternativa da
próprio autor reconhece, sem originalidade. Tem ambição de possibilitar uma visão mais clara
que acredita ser a concepção que mais se aproximaria dos juízos ponderados sobre a justiça e
que constituiria a base moral mais apropriada para uma sociedade democrática. Destacam-se
interpretação kantiana, que ofereceriam o melhor quadro da sua doutrina. Reconhece as suas
como as de ALLAN GIBBARD (1964), entre outros, obrigando-o a incluir uma teoria do bem
para responder às objeções ao véu de ignorância. Enumera uma série de autores e estudiosos
No prefácio à edição brasileira de 1990 destaca que o texto original em inglês foi
submetido a criteriosa revisão para a edição alemã que precedera à edição francesa em 1987 e
traduzidas seriam até mesmo superiores à edição em língua inglesa. Enfatiza a justiça como
equidade, considerando as idéias centrais de uma concepção filosófica para uma democracia
constitucional. Realça a fragilidade da doutrina utilitarista, por não acreditar que ela pudesse
16
explicar as liberdades e os direitos básicos dos cidadãos como pessoas livres e iguais, o que
seria primordial para as instituições democráticas. Vale-se da visão mais geral e abstrata do
contrato social usando a idéia da posição original. Tenta superar as deficiências para a
explicação da liberdade apontada por HART, em 1973, pois as liberdades e os direitos básicos
com sua prioridade garantiriam igualmente para todos os cidadãos as condições sociais
poderes morais nos casos fundamentais. Primeiro pela aplicação dos princípios da justiça à
estrutura básica da sociedade pelo exercício do senso de justiça dos cidadãos. Depois pela
revisão e na busca racional de sua concepção do bem. Também aponta outra deficiência séria
na edição original em inglês sobre a definição dos bens primários, que passariam a se
caracterizar como aquilo de que as pessoas necessitariam em sua condição de cidadãos livres
e iguais e de membros normais e totalmente cooperativos da sociedade durante toda uma vida.
Aponta, porém, embora sustentando sua convicção original, que trataria de modo
diferente se fosse escrever agora uma teoria da justiça, pois melhor apresentaria as
média como o único princípio de justiça. Na segunda comparação as partes decidiriam entre
diferença pelo da utilidade. Também distinguiria com maior precisão a idéia de uma
da propriedade particular o objetivo seria levar a cabo a idéia de sociedade como um sistema
eqüitativo de cooperação ao longo do tempo, entre os cidadãos como pessoas livres e iguais.
17
6.1 Justiça como equidade
para RAWLS não haveria justiça sem moral, política ou economia. Parte de duas
ponderações. A primeira com a noção de equidade (fairness), que rege toda a sua teoria da
justiça, e que se daria no momento inicial definidor das premissas com as quais se construirão
numa situação inicial que é eqüitativa). E sua teoria também tem matriz no contratualismo de
indagando qual seria a melhor forma de administrar a justiça de todos senão por meio das
instituições sociais. Quer disseminar a idéia de que a justiça das instituições seria a que
sociedade organizada seria aquela definida pela organização de suas instituições, que
poderiam ou não realizar os anseios de justiça do povo ao qual se dirigiriam. A justiça seria a
virtude primeira de todas as instituições sociais, e seu estudo se faria nas estruturas básicas de
condições sociais nos diferentes setores da sociedade. Revela sua preocupação com os
princípios da justiça social, cujo objeto primário seria a estrutura básica da sociedade, ou seja,
Seu conceito de justiça resgata a noção de contratualismo do século XVII (por isso
pura hipótese (não histórica) marcada pela idéia de uma igualdade original para optar por
direitos e deveres. Essa igualdade é o pilar de toda a sua teoria. O que deveria ser escolhido
no momento do pacto inicial não seria nada mais nada menos que a estrutura fundamental da
organização das instituições justas. O bom equilíbrio destes princípios se traduziria em bom
equilíbrio das instituições sociais, pois uma vez aceitos poderiam associar as idéias
regulariam a atividade institucional que visasse distribuir direitos e deveres, benefícios e ônus.
pessoas, o sistema institucional deveria prever mecanismos suficientes para o equilíbrio das
etapa do contrato — corresponderia ao que não se conhece do ponto de vista da justiça, não
obstante as partes pudessem conhecer os fatos gerais que afetariam a escolha da estrutura
O princípio da igualdade teria relação com a fixação das liberdades básicas que
deveriam ser iguais para todos os pactuantes: liberdade política, liberdade de expressão, de
abdicação dos direitos fundamentais, não de todos, pressuporia que os aderentes recebessem
19
em troca benefícios maiores que aqueles que teriam antes do pacto, segundo uma
O princípio da diferença, em sua locução “funções às quais todos têm acesso”, seria
que todos deveriam possuir determinado benefício social, a diferença (segundo) cumpriria
mais abstrato ao mais concreto. A aplicação dos princípios confirmaria a realização da justiça
corrigi-las. Pelo senso de operância se poderia conferir se a estrutura seria justa ao princípio e
encontraria meios para a manutenção dessa sua estrutura justa para então se poder dizer que se
adquiririam conhecimento dos fatos gerais respeitantes à sociedade a que pertenceriam. Após
a realização do pacto original, com a escolha dos dois princípios, as partes contratantes se
igualdade e na publicidade. A lei garantiria o tratamento igual de situações iguais. Não como
A questão de se aceitar ou não as leis remonta à própria dúvida sobre a justiça das
obediência civil é um dever da sociedade perante as instituições. Uma teoria da justiça deve
20
prever, entretanto, uma teoria da desobediência (ato de resistência não violento, de caráter
político, contrário à lei, no sentido da realização de uma mudança política. Nada tem a ver
abalo das estruturas de poder da sociedade, com vista na alteração das leis que se fizessem
CRISPI16 sobre a obra de SANDEL. O primeiro em torno de sua afirmação de que uma teoria
(liberalismo dos direitos subjetivos). O segundo tem lugar dentro do liberalismo dos direitos e
enfrenta sua posição igualitária com o liberalismo libertário, para quem os direitos individuais
são possuídos por pessoas que se identificariam com suas capacidades e talentos, enquanto
RAWLS pensa que os indivíduos não são donos de seus talentos, mas seus meros detentores
(custodiadores). O Estado, portanto, só teria o papel de distribuir os méritos, mas não entrar
na definição da bondade dos fins, porque a liberdade e os direitos subjetivos teriam prioridade
noção de um Estado neutro frente aos valores, ou seja, frente ao bem. Questiona a prioridade
que RAWLS afirma da liberdade e dos direitos subjetivos sobre o bem. SANDEL, por
16
CRISPI, Renato. op. cit. nota 12.
21
exemplo, afirma que a justiça não é independente do bem, mas sim relativa ao bem, e indaga
normatividade de sua teoria. Um segundo momento nos anos oitenta com a crítica
reformuladas várias das suas proposições, RAWLS é confrontado com HABERMAS por
NAGEL (1973) questiona o grau de abstração dos contratantes, pois a simples relação de bens
do seu conceito desde 1958, quando primeiro usara a versão contratualista ao tratar da posição
geral que previa uma situação de acordo sobre os princípios que permitissem a resolução de
ignorância de 1967, mas só em 1975 respondeu a questão quando argumentou não crer que a
FEINBERG, porque admitiria juízos morais em seu modelo construtivista de caráter intuitivo.
17
POGREBINSCHI, Thamy. John Rawls: Da justiça como equidade ao liberalismo político
[http://www.iuperj.br/fórum/textos/thamy_01.pdf em 14/4/2004].
22
fairness: political not metaphysical”18, de 1985, resultante de seminários em universidades
de 1993.
liberdades básicas e de se evitar um princípio que protegesse uma certa noção global de
A reação libertariana de ROBERT NOZICK, com linhagem teórica mais radical que
de liberdade e de propriedade sobre os demais. Sua obra “Anarchy state, and utopia”, de
praticável, pois haveria algo comum a todas as teorias da justiça de caráter distributivo: nelas
trabalho, a condição social, etc). Suas idéias são anarquistas e libertárias, mas também
18
Justice as fairness seria a defesa da unidade da teoria da justiça proposta por RAWLS de maneira a
demonstrar não ter havido ruptura qualitativa entre suas obras Uma teoria da justiça e Liberalismo
político. Nela deixa evidente a sua concepção política de justiça, depois incorporada no
Liberalismo político. Através de uma hermenêutica construtiva dos fatos e das idéias marcantes das
sociedades contemporâneas ocidentais enumera i) o pluralismo razoável, ou seja, a diversidade de
doutrinas abrangentes coexistindo sob certas condições políticas e sociais; ii) o fato da opressão ou
o reconhecimento de que a adesão de todos a uma doutrina abrangente particular só é alcançada
através da opressão e do uso do poder estatal; iii) o reconhecimento de que um regime democrático
só se sustenta com o endosso de diferentes e inconciliáveis doutrinas abrangentes; iv) o
reconhecimento de que a cultura política de uma sociedade democrática engendra idéias
fundamentais para a concepção política de justiça de um regime constitucional e, finalmente, v) o
reconhecimento de que nossos mais importantes julgamentos políticos são de tal ordem que
pessoas razoáveis, após ponderações, chegam às mesmas considerações a seu respeito, conforme
análise de MARIA CLARA DIAS em Resenha de Justice as fairness: a restatement de John Rawls
[http://ifcs.ufrj.br/cefm/publicações/rawls.pdf em 14/4/2004].
23
reacionárias. O liberalismo contemporâneo de NOZICK apresenta entre suas principais
compreendido como uma ética baseada no justo, confrontando-o com uma visão que
pessoa adotada, pois teria caráter metafísico, e rejeitar a prioridade do direito e do justo sobre
o bem. Em sua resposta RAWLS explica em que medida sua concepção de pessoa
apresentaria um ideal moral restrito por estar necessariamente relacionada ao seu conceito de
sociedade bem ordenada. Começa, então, a atribuir um caráter político a sua concepção de
justiça. SANDEL parte da crítica ao estado neutro defendido por RAWLS, reformulando o
razão da neutralidade do estado federal, deveria deixar aos estados membros decidir a questão
de forma democrática. LINCOLN foi contrário e sustentou que não se poderia adotar uma
postura agnóstica frente à escravatura, um mal moral indiscutível, cuja neutralidade do Estado
segundo SANDEL.19
como seu opositor tão forte e respeitado pela profusa e influente elaboração científica, cujo
19
CRISPI, Renato. op. cit. nota 12.
24
ensaio crítico escrito ao Journal of Philosophy argumenta em vertentes distintas. Pela
primeira delas RAWLS deveria separar de modo mais rigoroso as questões de fundamentação
das de aceitação, pois pareceria querer comparar a neutralidade de sua concepção de justiça às
concepções de mundo, abandonando sua pretensão de validade cognitiva. Essas duas questões
teóricas estratégicas trariam como conseqüência uma construção do Estado de direito que
disso, fracassaria em seu objetivo de harmonizar a liberdade dos modernos com a liberdade
dos antigos.
quando agradeceu pelas considerações que o levaram a repensar a sua teoria e a rever algumas
(compreensiva), enquanto a sua seria de uma explicação do político e se limitaria a ele; ii)
ideal (situação ideal de fala) com a parte de sua teoria da ação comunicativa, enquanto o seu,
a posição original. A discussão seguiu tão acirrada que “Reply to Habermas” foi o maior
trabalho publicado desde o Liberalismo político, cujo debate entre o uso público da razão
habermasiana e a razão pública rawlsiana também inspirou o último artigo publicado (The
Também outros autores desenvolveram suas produções a partir das críticas da obra
muito mais pressupostos econômicos que políticos, pois para ele as partes ao decidirem,
fariam-no por referência ao modo como as estruturas propostas responderiam aos seus
interesses pessoais.
20
KUHATHAS, Chandran & PETIT, Philip . Rawls - Uma Teoria da Justiça e os seus críticos. Trad.
M. Carvalho. Lisboa: Gradiva, 1995, apud BITTAR, Eduardo Carlos Bianca & ALMEIDA,
Guilherme de Assis. Rawls: ética, instituições, direito e deveres. In Curso de filosofia do direito.
São Paulo : Atlas, 2001, pp. 374-389.
25
ROSANVALON, com seu estado-providência, por sua vez, reformulou as teses
franceses. Critica principalmente a idéia de contrato social fundado em decisões sob o véu da
TORRES21, enquanto a própria negação do social, não seria “senão o momento de exercício
de um cálculo silencioso e rigoroso, uma breve reunião de experts e jamais uma assembléia
mutualização crescente dos riscos sociais em que identificava o estado como um tipo de
se confundiria em certa medida com a prática da justiça com a finalidade de dar a cada um
meios específicos para a vida social, levando a uma jurisdicionalização do social em virtude
puramente administrativa para entrega das prestações. Com isso transforma a igualdade das
chances em equidade das chances, que não consistiria apenas em compensar as desigualdades,
mas a reordenar os instrumentos necessários à existência para dar aos indivíduos os meios
repetidas, etc.
Mas não seria exato pensar o contrato social e o véu de ignorância como conducentes
à reforma das relações sociais e à superação dos determinismos que seriam hipotéticos.
RAWLS não era nem tanto formalista, porquanto o termo fairness se aproximaria mais da
imparcialidade que de equidade atribuída nas traduções de Uma teoria da justiça para as
21
TORRES, Ricardo Lobo. op. cit. nota 15.
22
TORRES, Ricardo Lobo. op. cit. nota 15.
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sistema democrático. A eqüidade de chances, por oposição à igualdade de chances, nada mais
obra de RAWLS, que vê como parte de um projeto mais amplo a que chama de iluminista,
pode atingir mais diretamente a este último autor. Defende uma volta à ética aristotélica das
virtudes como maneira de enfrentar a crise moral do Ocidente. Contesta o pressuposto de que
importante que se tenha uma tal concepção ao entrar em um debate, que pode ser kantiana,
Conclui defendendo, como único local onde se poderia atender aos requisitos morais assim
locais inapropriados para tal propósito. Vê o liberalismo como uma aplicação do projeto
universalizante iluminista, o qual considera "fracassado", pois, nesta medida, a sua concepção
de bem é insuficiente justamente por derivar desse projeto. Sua posição é a de uma tradição
moral que possui suas raízes históricas na tentativa iluminista de desenvolver uma moralidade
que transcende a tradição. Situa a teoria política liberal como parte de um projeto histórico de
tradição.
7. Conclusão
23
ROUANET, Luiz Paulo. op. cit. nota 11.
27
de suas concepções, não obstante AMARTYA SEM consiga apontar em todas as suas teorias
discussão dos valores éticos ao Direito, com os princípios passando a integrar o moderno
JOHN RAWLS identifica a justiça como equidade (fainess) que residiria exatamente
no igualitarismo da posição original, ou seja, num estado inicial do contrato social, momento
hipotético, e não histórico, em que se pudesse optar por direitos e deveres. A formação social
do pacto seria uma construção humana que beneficiaria a todos, e por meio dela se
realizariam os indivíduos socialmente. A ética seria questão importante, mas não central como
a justiça das instituições. Se a justiça existe, ela seria definida em função da capacidade que as
vigorosa, sua obra resgata a discussão do valor dos princípios para a sociedade moderna,
dando nova vitalidade ao pensamento filosófico político. Propõe um itinerário para descobrir
e fundamentar racionalmente os princípios que deveriam reger a sociedade justa. Marca o que
discussão ser humano para o centro de toda racionalidade, como outrora pensara KANT,
quando considerou o princípio moral essencial agir de forma a tratar a humanidade sempre
como um fim e nunca apenas como um meio. Daí poder ser considerada uma das principais
28
fontes inspiradoras da corrente doutrinária denominada pós-positivismo jurídico, em que se
descrição de fatos, mas como um modelo, do qual possam derivar as prescrições a adotar em
circunstâncias determinadas. Assim pode ser considerada como uma teoria transcendental da
justiça com forte inspiração kantiana, muito embora ele próprio reconheça a insuficiência de
sua formulação. Embora o autor procure negar, sua teoria, a exemplo do próprio
Mas tanto a justiça em KANT como em RAWLS não deixa de ser uma forma de distribuição
da liverdade.
o interesse pela discussão da idéia do homem como objetivo principal da sociedade, que há
BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca & ALMEIDA, Guilherme de Assis. Rawls: ética,
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30
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