Que Literatura para Os Estudantes Do Ensino Médio-Regina Zilberman
Que Literatura para Os Estudantes Do Ensino Médio-Regina Zilberman
Que Literatura para Os Estudantes Do Ensino Médio-Regina Zilberman
1. O eclipse da literatura
É nos primeiros anos da década de 1970 que a literatura começa sua paulatina – e
pelo menos até agora irreversível – perda de espaço no contexto da escola brasileira. Até
então ela fora – no todo ou em partes – a base do conhecimento da língua e da tradição cul-
tural lusófona. A partir do começo daquela década, em decorrência da nova legislação, su-
mariada na Lei 5692, privilegia-se o “uso da língua”, entendida essa como “instrumento de
comunicação e como expressão da língua portuguesa”.1 O vocábulo literatura não é menci-
onado no corpo da lei.
[...] nas séries iniciais do 1o grau, a língua está englobada nas atividades de Comunica-
ção e Expressão, como instrumento, ao lado de outros, nas experiências de comunica-
ção e expressão vividas pelos alunos; nas últimas séries do primeiro grau, a língua apa-
rece sob a forma de Comunicação em Língua Portuguesa, denominação que deixa clara
a ênfase na aprendizagem da língua como comunicação; só no ensino de 2o grau apare-
ce a formulação Língua Portuguesa, sob a qual se pode já entender não só a aprendiza-
gem da língua como instrumento de comunicação mas também a aprendizagem a res-
peito da língua, tomada esta como objeto de estudo.2
1
Lei No 5692, de 11 de agosto de 1971, Art. 4, # 2. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5692.htm.
Acesso em: 06 set 2014.
2
SOARES, Magda. Comunicação e Expressão: Ensino da Língua Portuguesa no 1º Grau. Cadernos da PU-
CRJ. Rio de Janeiro: Divisão de Intercâmbio e Edições, PUCRJ, 1974. p. 24-25. Sublinhas da autora.
enquanto ferramenta da comunicação, privilegiando o ângulo pragmático de seu conheci-
mento.
3
Cf. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística general. Trad., prólogo e notas de Amado Alonso. Bu-
enos Aires: Losada, 1969.
4
Cf. ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1988. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados.
São Paulo: Perspectiva, 1993. ECO, Umberto. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1997. PEIRCE,
Charles Sanders. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972.
5
LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977. p. 133 e
seguintes.
2
provavelmente não era por estimular o diálogo ou o debate que educadores e gestores foram
levados a adotar um modelo pragmático para o ensino e a prática da língua portuguesa. Tra-
tava-se, mais certamente, de uma adesão aos meios de comunicação de massa e à indústria
cultural em uma época em que a sociedade brasileira se empenhava em apressar o processo
de modernização, e a economia nacional abria-se generosamente ao capital estrangeiro.
3
guém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas
circunstâncias de interlocução.”6
A literatura é, pois, um dos tantos e ilimitados gêneros de texto, ainda que dotado de
algumas especificidades que o elevam acima dos similares.
6
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos
do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. p. 20-21. As citações seguintes são ex-
traídas deste documento, indicando-se as páginas onde se encontram.
7
Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, s. d. [2015]. p. 37-38.
8
Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, s. d. [2018]. p. 65.
4
Dentre as modalidades de texto, o de natureza literária ocupa um lugar de destaque,
pois compete-lhe a “formação literária” do aluno, em continuidade ao “letramento literá-
rio”, iniciado na Educação Infantil, conforme a primeira versão da BNCC.9 Em sua segunda
edição, aquele objetivo é ampliado, competindo à educação literária possibilitar a vivência
de “experiências literárias formativas”, além de facultar o conhecimento da “literatura de
seu [do estudante] país”.10
Mediante arranjos especiais das palavras, ela cria um universo que nos permite aumen-
tar nossa capacidade de ver e sentir. Nesse sentido, a literatura possibilita uma amplia-
ção da nossa visão do mundo, ajuda-nos não só a ver mais, mas a colocar em questão
muito do que estamos vendo vivenciando. (p. 491)
Mais adiante, reitera-se o raciocínio, ao ser afirmado que “toda obra expressa, inevi-
tavelmente, uma visão de mundo e uma forma de conhecimento, por meio de sua constru-
ção estética.” (p. 513)
9
Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, s. d. [2015]. p. 37-38.
10
Base Nacional Comum Curricular. Segunda versão revista. Brasília: Ministério da Educação, 2016. p. 507.
11
Base Nacional Comum Curricular. Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, s. d. [2018]. p. 491. As
citações seguintes são extraídas deste documento, indicando-se as páginas onde se encontram.
5
As concessões configuradas pela admissão de que a literatura contém particularida-
des que se manifestam por ocasião da “leitura literária” não escondem o fato de que aquela
matéria perdeu relevância no contexto da educação e na prática da sala de aula. Resta-lhe
alguma aura, é certo, mas que não ultrapassa o âmbito de um rodapé explicativo. Justifica-
se, assim, perguntar como se deu esse processo que retirou da literatura a importância que
um dia ela deteve entre os estudantes.
Em primeiro lugar, ela deixou de ser modelo a emular. Consultem-se livros didáti-
cos e coletâneas anteriores a 1970, e lá figurarão excertos e poemas de nomes lapidares da
tradição literária em língua portuguesa para exemplificar o modo melhor ou mais adequado
de empregar pronomes oblíquos, certificar a construção sintática de orações e períodos, ga-
rantir o entendimento de figuras de estilo, afiançar o significado dos vocábulos (prática de
validação que persiste nos dicionários de língua portuguesa). Contudo, esses conteúdos
passaram para um segundo plano ou desapareceram dos manuais escolares, carregando jun-
to seus paradigmas literários.
6
veis de representação do mundo adjacente à obra literária, e o segundo, pelos efeitos propi-
ciados em seus leitores – seja o prazer, a catarse, o conhecimento, juntos ou separados. De-
pois, esse material é organizado pela História da Literatura, que determina e classifica a
pertença dos produtos literários a uma tradição nacional, o grau de expressão identitária, os
níveis de semelhança em termos de estilo, o emprego da língua nacional e as preocupações
temáticas.
Sendo canônica porque abonada pela História da Literatura, ela pertence ao passado.
Porém, destituída da sacralidade que a condição de modelo lhe conferia, tornou-se, com o
tempo, ainda mais distante – logo, definitivamente pretérita.
2. A elasticidade da literatura
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A literatura servira até então a uma elite letrada, bastando conferir a origem social e
geográfica da maioria dos autores e autoras em evidência, para aceitar que os novos grupos
sociais não contavam com vozes próprias, a não ser no âmbito da criação oral, de preferên-
cia cantada. Perdendo o estímulo escolar, a literatura não conquistou os novos públicos
agora alfabetizados. Também não alargou a oferta, gerando a propalada “crise de leitura”,
discutida e combatida a partir dos anos 1980.
A literatura, porém, não soube encontrar seu lugar entre esses discursos, porque
continuava refém das elites letradas, que não abriram mão da especificidade de seu objeto.
Provavelmente não por outra razão se observa, nos PCNs e nos documentos subsequentes
oriundos das instâncias governamentais, uma conceituação contraditória da literatura, osci-
lante entre diluí-la entre os possíveis discursos e modos de texto, de uma parte, e, de outra,
assegurar-lhe um domínio diferenciado e superior diante de seus pares. Trata-se, ainda aqui,
da literatura canônica, a dos grandes mestres do passado, ao lado da qual figuram gêneros
com os quais poderia compartilhar a identidade – a literatura de cordel, a canção, a tira, o
cartum –, o que, todavia, não acontece, conforme uma recusa que, se é justa de um lado
(afinal, as obras literárias provavelmente contêm algum diferencial, caso contrário não re-
sistiriam tão solidamente às investidas do tempo e da história), de outro compromete sua
socialização e consumo.
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- os formatos mistos oferecidos pela indústria cultural, como a novela de televisão
(como já houve a novela de rádio), as histórias em quadrinhos e as novelas gráficas, tiras,
cartuns, charges, produtos veiculados por suportes associados à mídia, como redes de co-
municação audiovisual, revistas ou jornais;
- a renascida ficção fantástica (fantasy fiction), que, cultuada desde o século XVIII,
encontra acolhida entre o público adolescente, que elege seus heróis entre bruxos, como
Harry Potter, vampiros, como Edward Cullen, protagonista da série Crepúsculo, ou diver-
gentes, como Tris, personagem da trilogia de Veronica Roth, criaturas, todos e todas, de
boa índole e, sobretudo jovens.
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b) a transitividade e variedade dos suportes, que se estendem do impresso ao digital,
sem exclusividade de qualquer um deles.
- linguagem própria, conhecida e dominada por seus pares, segundo um código ex-
clusivo;
Dentre esses públicos, destaca-se o que é constituído pelos jovens urbanos, especi-
almente os de classe média, para o qual escritores, como John Green, há poucos anos, Jojo
Moyes recentemente, entre os estrangeiros, Larissa Manuela e Carina Rissi entre os nacio-
nais, Kéfera Buchmann, há poucos anos, recentemente Luccas Neto e Felipe Neto entre os
you tubers, elaboram obras de endereço certo. Também marcante é o público das comuni-
dades e periferia urbanas, criador de linguagens e modos de expressão apartados do cânone
institucionalizado da escola.
A maioria desses produtos passa ao largo da escola, ainda que planos educacionais e
projetos individuais busquem apropriá-los, a fim de estabelecer um diálogo fecundo e grati-
ficante em sala de aula. Contudo, não está em causa aqui sua inclusão no ou exclusão do
ensino, mas sua inclusão no ou exclusão do conceito de literatura.
Com efeito, a maior parte dos gêneros literários que aparecem acompanhados de um
adjetivo – literatura digital, jovem, oral, infantil, de cordel, marginal, alternativa – parece
não pertencer com legitimidade ao universo da arte com a palavra. Esses gêneros são litera-
tura, pero no mucho, por isso, aparentemente requerem uma adjetivação que os coloquem
em seu devido lugar.
Contudo, não se trata apenas daquilo que as pessoas usualmente leem ou conso-
mem, mas de produtos que trazem consigo inovações a pressionar o conceito propriamente
de literatura, inovações essas aqui enumeradas brevemente:
a) a atualidade;
b) a permanente mutabilidade;
10
c) a vocação para o consumo;
e) a volatividade.
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Contudo, a leitura figura entre as iniciativas praticadas por brasileiros e brasileiras,
em especial entre os grupos jovens. Obras, em diferentes formatos e suportes, são produzi-
das e consumidas. Logo, é preciso reconhecer que uma literatura está presente na vida das
pessoas, e é essa que precisa ser acolhida pela escola. Desse modo, o conceito que engloba
os objetos lidos deixará de ser exclusivista, e os planos de ensino deixarão de ser dicotômi-
cos, opondo o bem e o mal, a boa e a má arte literária, e poderão evidenciar a dialética pró-
pria e congênita que faz a vida cultural.
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