Cultos e Formas
Cultos e Formas
Cultos e Formas
1) Introdução e contextualização
“O pardal encontrou casa, e a andorinha, ninho para si, onde acolha os seus filhotes; eu, os teus
altares, Senhor dos Exércitos, Rei meu e Deus meu. Bem-aventurados, Senhor, os que habitam
em tua casa: louvam-te perpetuamente”. Salmo 84.3-4
“A sociedade atual gera muitos tipos de crise na vida das pessoas: desemprego, violência,
insegurança, perda de vidas no trânsito, separações, dependência química, doenças modernas,
tempo de vida prolongado, urbanização, secularização, globalização, etc. Os tempos pós-
modernos estão diluindo a solidez das instituições que antes davam mais segurança e proteção
às pessoas. Em conseqüência, acentuam-se as crises existenciais. Cresce o número de pessoas
que perguntam pelo sentido da vida. Mais pessoas sofrem de depressão. O medo acompanha as
pessoas dia e noite. Doenças emocionais se somatizam e as pessoas sofrem dores no corpo e na
alma”.2
O culto é muito mais do que um local de boas informações, discurso teológico e bonitas
performances litúrgicas. O culto, sendo simbólica-representação da fé cristã, é um lugar e um
tempo privilegiado, de cuidado e restabelecimento da grande rede de sentido e de vida. Um
verdadeiro ninho, nos braços de Deus. É aqui, neste aspecto, que a liturgia - e o culto como
uma forma de liturgia - e o aconselhamento pastoral podem se encontrar.
Não pretendo, aqui, apresentar um tratado sobre culto e aconselhamento pastoral. Proponho-
me, sim, a trazer aspectos que nos ajudem a pensar na dimensão terapêutica e cuidadora do
culto cristão, tanto em sua dimensão ampla, ou seja, aspectos que dizem respeito ao culto
como acontecimento humano, ou seja, culto como fenômeno antropológico e, como em sua
dimensão interna, ou seja, analisando alguns elementos litúrgicos do culto dominical. No final,
apresento uma experiência litúrgica, onde esta relação se faz presente.
Com o termo “cuidado” pretendo abarcar tanto o aspecto da poimênica (cura d´almas), como
também a dimensão da ajuda no sofrimento e da cura, como a dimensão política e social da
manutenção da vida. Tomo o termo “cuidado” do livro de Leonardo Boff, “Saber cuidar: ética
do humano – compaixão pela terra”.3 Boff constata, aqui, o fracasso do mundo
contemporâneo baseado no crescimento econômico e no avanço da técnica. "Na atual
confusão de episódios racionalistas e técnicos perdemos de vista e nos despreocupamos do ser
humano."4 A este fracasso contrapõe ele a redescoberta do afetivo, do sentimento e do
humano, na construção do mundo. "Há algo nos seres humanos que não se encontra nas
máquinas, surgido há milhões de anos no processo evolutivo quando emergiram os mamíferos,
dentro cuja espécie nos inscrevemos: o sentimento, a capacidade de emocionar-se, de
1
O autor é pastor e responsável pela Pastoral Escolar da IENH – Instituição Evangélica de Novo Hamburgo, na
cidade do mesmo nome, RS, Brasil.
2
Entrevista com Rodolfo Gaede Neto, Informe PPL, 26/09/06, p. 2 (www.pastoral.org.br)
3
BOFF, Leonardo, Saber Cuidar (1999).
4
BOFF, Leonardo, Saber Cuidar (2000), p. 8.
2
A ética do cuidado “significa uma recusa a todo despotismo e dominação. Significa impor
limites à obsessão pela eficácia a qualquer custo. Significa derrubar a ditadura da
racionalidade fria e abstrata para dar lugar ao cuidado. Significa organizar o trabalho em
sintonia com a natureza, seus ritmos e suas indicações. Significa respeitar a comunhão que
todas as coisas entretêm entre si e conosco. Significa colocar o interesse coletivo da sociedade,
da comunidade biótica e terrenal acima dos interesses exclusivamente humanos”, diz ele.6
A ética do cuidado nasce como uma terapia frente a um diagnóstico. Para pensar um culto que
de fato cuide das pessoas, precisamos diagnosticar qual o mal que acomete as pessoas nele
celebram. No mínimo sete características dos novos tempos são fontes de mal-estar e de
doença entre as pessoas.7 Não penso com isso em demonizar os tempos modernos e o fascínio
de suas ofertas. Tampouco pretendo com isso aspirar a um retorno a um outros tempos, algo
como um refúgio no passado bucólico e pastoril.
5
Id. Ibid., p. 6.
6
Id. Ibid., p. 9.
7
SATHLER-ROSA, Ronaldo, Cuidado pastoral em tempos de insegurança, p. 15-25.
8
Id. Ibid, p. 19s.
9
Há uma comparação que diz, que no século XX a humanidade produziu tantas informações quanto nos
dezenove séculos anteriores, sendo que, nos vinte últimos anos do século XX, produziu o mesmo tanto de
informações que nos oitenta anos anteriores. Suspeita-se que nos cinco primeiros anos do século XXI a
humanidade terá produzido o mesmo volume de informações que todo o século XX.
3
Tudo isto fascina e encanta e, ao mesmo tempo, gera um imenso vazio existencial, em
todas as camadas sociais, tanto nos incluídos como nos excluídos, sócio-economicamente
falando. A “insatisfação com a satisfação.”11 Os 7 pontos não deixam de ser ensaios na
tentativa de preencher algo que falta. Inclusive muitas dessas tendências estão presentes
nas novas propostas de culto, ou são, elas mesmas, um tanto “cúlticas” e “litúrgicas”: o
espetáculo, sensações, individualismo, competição, consumismo, resignação. E cada uma
dessas tendências, no entanto, o que pode oferecer é, nada mais, que uma sensação
passageira de segurança e de bem estar, para desembocar, novamente, no vazio. Ao
mesmo tempo, pessoas continuam indo aos cultos de nossas igrejas. “Vão em busca de
proteção, de segurança, de refúgio, de alívio, de descanso em Deus, de conforto na
companhia de irmãs e irmãos, de oração e intercessão, de absolvição, de comunhão, de
paz, de cura, de bênção. Enfim, as pessoas vão em busca de cuidado.”12
Frente a este cenário, pode o culto cristão ajudar as pessoas em sua busca por cuidado e
proteção? Como?
Desde sua origem a comunidade cristã incorporou em sua vida o cuidado e a prática da cura,
que, necessariamente estavam relacionados à salvação, como vemos em Atos 2.43-47. Aqui se
10
G. Lipovetsky fala de uma sociedade pós-moralista, onde desaparece a ética do dever. LIPOVETSKY, G. A
sociedade pós-moralista, 2005.
11
SATHLER-ROSA, Ronaldo. Aproximación crítica a concepciones y prácticas actuales de consejería pastoral.
p. 78.
12
Entrevista com Rodolfo Gaede, Informe PPL, 26/09/06, p. 2.
13
VON ALLMEN, J. J. O culto cristão, p. 136.
4
vê uma clara relação entre cura, cuidado, partilha, serviço e celebração, como terapias para a
salvação.14
Com o passar do tempo, cada uma dessas esferas da salvação foram sendo separadas uma das
outras, ficando os ritos e ações terapêuticas e cuidadoras da igreja, separadas do culto. O
rompimento atinge seu ápice na década de 70 (séc. XX) quando até mesmo a relação da
poimênica com a teologia é colocada sob suspeita. Nesta época o aconselhamento pastoral
tende muito mais aos modelos da psicologia e da moderna medicina, rompendo, totalmente,
com elementos da espiritualidade, dos ritos litúrgicos e das celebrações.15
A reaproximação e a inter-relação que aqui estamos fazendo é algo novo e ainda carece de
pesquisa. “Por um longo tempo o culto (protestante) estava relacionado quase que unicamente
com a proclamação, mais precisamente prédica. Depois a Ceia ganhou o devido resgate.
Depois foi a vez da educação e agora talvez seja o tempo e relacionar culto e a litúrgica com o
aconselhamento pastoral e a cura d´almas.”16
Um movimento parecido, nesse sentido, pode ser visto, se considerarmos as ênfases nos
grandes encontros ecumênicos do Conselho Mundial de Igrejas e da Federação Luterana
Mundial. Tomando por base os documentos produzidos por essas organizações, percebe-se
que nos anos 60 as igrejas estavam preocupadas em prestar serviço médico à humanidade
necessitada. Junto com o serviço médico, mas separado desse, levava-se o anúncio e a
vivência do Evangelho. Nos anos 80 se fala de uma saúde social, ou seja, o trabalho social a
partir das igrejas deveria gerar saúde à humanidade. Nos anos 90 se fala de cura espiritual e se
redescobre o paradigma integral. Os grupos carismáticos e movimentos pentecostais têm, sem
dúvida, um papel interessantíssimo nessa caminhada. Cura passa a ser algo que determina o
todo: saúde, espiritualidade, aspecto político-social e liturgia. Vemos reflexo disso, por
exemplo, nos temas das últimas assembléias e conferências: Assembléia da FLM (Winnipeg,
2003) Pela cura do mundo. Conferência Mundial do CMI (Atenas, 2005) Vem, Espírito Santo,
cura e reconcilia. Assembléia do CMI (Porto Alegre, 2006) Deus em tua graça, transforma o
mundo. Societas Liturgica (Dresden, 2005) A força curadora e transformadora da liturgia em
um mundo dividido. As liturgias e cultos, em todos esses grandes encontros, dão forte ênfase à
cura e ao cuidado das pessoas de forma ampla e integrada.17
O que dizer, pois, dessa relação? Wilhelm Löhe escreveu: “é uma grande tolice, quando se
desconsidera que prédica, catequese e liturgia, Palavra de Deus e Sacramento são partes da
poimênica”.18 Na atualidade é possível delinear duas tendências: Uma que vê o culto e o
aconselhamento como dimensões separadas19 e a outra tendência é a busca da
complementação, como já citei acima.
14
VON HOF, Waldemar Oscar, El Culto terapéutico: el culto y sus posibilidades terapéuticas, p.12.
15
MEYER-BLANCK, Michael, Liturgie und Therapie, p. 269ss.
16
STOLLBERG, Dietrich, Therapeutische Funktion des Gottesdienstes?, p. 21
17
VON HOF, Waldemar Oscar, Op. cit., p. 17-21.
18
HAUSTEIN, Manfred, Gottesdienst und Seelsorge, p. 637.
19
Uma observação empírica: Grande parte dos seminários e simpósios de poimênica e aconselhamento pastoral
não dão espaço para pensar a liturgia como parte do processo. Alguns desses encontros oferecem momentos
celebrativos, mas não há uma reflexão como a que estamos fazendo aqui. Eu diria que a liturgia está mais
interessada em aproximar-se do aconselhamento que vice-versa, ao menos como ciência.
5
Aconselhamento pastoral e culto não são a mesma coisa.20 São práticas diferenciadas da
Igreja, ambas são “comunicação do evangelho”21 e se assemelham em alguns aspectos. Uma é
sempre mais individualizada e a outro mais comunitária,22 mas ambas querem servir, tazer a
pessoa para perto de Deus e fazê-la feliz. O que um estudo sobre sua relação pode nos ajudar é
entender em que ponto, de que forma e em que medida ambos podem se complementar.
Segundo Thilo pertence à natureza humana celebrar, transcender a vida cotidiana e se
comunicar com algo extra-nós. Esta condição humana está intimamente relacionada a
elementos que comprometem a saúde do ser humano, em sua totalidade (corpo, alma e
espírito).23
Como fazer isso, sem confundir as funções e papéis? Ainda achamos que o culto é mais uma
das muitas atividades de uma comunidade (encontros de grupos, estudo bíblico, escola
dominical, programas de assistência, catequese...). Por isso o funcionalizamos colocando nele
um pouco de diaconia, um pouco de ensino, um pouco de cuidado. Na verdade o culto é o
resumo celebrativo do todo da comunidade. O cuidado da comunidade deveria ser celebrado e
liturgicamente reforçado no culto, e não articulado, apenas, no e a partir do culto. O culto não
é mais uma atividade, mas, sim, todas as atividades, todos os tempos, todos os lugares, todo o
Evangelho em forma de celebração. Sua função é tão somente esta: encontro com Deus para
celebrar a vida de fé de uma comunidade, como parte da grande obra inaugurada em Cristo,
rumo à plenitude do Reino de Deus. Cuidado pastoral, aconselhamento, ensino, estudo,
informação, ação pastoral isto tudo acontece em outros espaços. Estarão presentes, sim, no
culto, mas de forma representativa, litúrgico-simbólica.24
Na verdade quanto mais celebrativo e representativo for o culto, mais ele estará ajudando e
cuidando das pessoas. No seu caráter celebrativo acontece o cuidado, de uma maneira
profundamente mobilizadora, com algo que transcende, justamente por sua especificidade
simbólica. Temos um paradoxo: culto não é terapêutico, mas torna-se terapêutico na medida
que celebra a graça de Deus, o cuidado em todos os tempos, em todos os lugares, nas mais
diferentes formas. Há, pois, algo de efeito colateral (Nebenwirkung)25 na celebração do culto.
20
PATTISON, Stephen, Pastoral Care and Worship, p. 427.
21
LANGE, Ernst, Aus der «Bilanz 65.», 102.
22
STOLLBERG, Dietrich, Gottesdienst und Seelsorge, 261s.
23
IDEM, p. 22
24
ADAM, Júlio Cezar,Romaria da Terra, 200ss. Von Allmen compara o culto cristão coração da comunidade,
de onde a comunidade adquire novas forças para a vida durante a semana que se inicia e para onde a comunidade
retorna cansada, do mundo, no domingo seguinte. VON ALLMEN, J. J. O culto cristão, p. 60.
25
RÖSSLER, Dietrich, Die Vernunft der Religion, 1976.
26
SCHLEIERMACHER, F. Die Praktische Theologie, 1850 (1983), 70.
27
CORNEHL,Peter, Theorie des Gottesdienstes, p. 186.
6
Dentro da estrutura do culto, ou seja, dentre os aspectos externos do culto, estão as dimensões
do tempo e do espaço, como dimensões imprescindíveis para pensarmos o culto cristão. O
tempo é algo central no culto cristão. Esta centralidade deixa claro que os cristãos levam o
tempo a sério. “É na história que Deus se torna conhecido. Sem o tempo não há conhecimento
do Deus cristão, pois é por meio de eventos efetivos acontecendo no tempo histórico que ele
se revela. Deus opta por tornar conhecidas a sua natureza e vontade através de eventos que
ocorrem dentro do mesmo calendário que mede a vida diária de homens e mulheres
comuns.”30 O cristão não tem um dimensão de tempo linear, um início e um fim da vida e da
história, nem uma dimensão cíclica (como em outras religiões), ou seja, o eterno retorno a
eventos retidos em um tempo, mas, o cristão, lida com uma dimensão de tempo em forma de
espiral. Rememora os feitos de Deus na história, mas caminha rumo a uma plenitude, no final
dos tempos. Para o cristão o tempo mítico, o tempo cósmico o tempo civil e o tempo da vida
de cada um (o kairós) formam um e o mesmo calendário.
Assim o cristão organiza sua vida diferenciando os dias da semana, tendo o domingo como
astro rei, a partir do qual, se organizam todos os demais dias. Organiza as horas do dia com
28
Considerando, p. ex., o rito cotidiano de cumprimentar uns aos outros, sabemos o quanto a simples não
retribuição do cumprimento por parte da outra pessoa nos deixa profundamente desconfortáveis, assim como, ao
contrário, a retribuição de um bom dia, nos deixa muito tranqüilos.
29
LANGE, Ernst, Predigen als Beruf, p. 89s.
30
WHITE, James, Introdução ao culto cristão, p. 37.
7
sentidos diferentes, como p. ex. nas Orações Públicas Diárias ou Liturgia da Horas. A partir do
evento da páscoa, organiza o ano inteiro, em sintonia com os ciclos da natureza, com o tempo
das festas. O culto dá forma e expressão a esta compreensão de sentido do tempo. Faz o tempo
ter sentido e intensidades, dá ao ano civil tempos fortes e tempos fracos, tempo comum.
E não apenas o calendário está organizado. O cristão leva o tempo á sério, quando, também,
organiza o tempo da vida de uma pessoa, marcando e celebrando seus ciclos e suas passagens,
ou seja, aniversários de nascimento, batismo, passagens, etc. Redimensiona o tempo, dando
aos batizados, a marca da eternidade, em Cristo. No culto e nas celebrações de passagens
(ofícios) é que estas diferentes ênfases temporais ganham forma e sentido, pois estão todas
recapituladas e refletidas no culto, o que faz do culto é um acontecimento temporal, por
excelência.
O culto e liturgia possibilitam que um dia seja vivido em intensidades diferentes, com paradas,
com início, meio e fim. Assim também a semana, com o tempo de descanso, tempo de
celebração e reflexão, possibilita que as pessoas ganhem tempo e sentido para viver. Liga a
vida toda e o planeta a sentidos que transcendem o mero acaso e a mera sucessão rotineira.
Num tempo em que o tempo se tornou padronizado, onde as pessoas já pouco diferenciam
entre dia e noite, descanso e trabalho, onde a rotina “maquiniza” a vida das pessoas de tal
forma, que o que mais se quer é fugir do tempo ou refugiar-se em momentos, como uma
válvula de escape, o culto ajuda as pessoas a dar sentido à existência.
31
Num culto, que se mostra como uma comunidade de memória e de narração, cria-se um espaço para as
experiências de vida e de fé daqueles que estavam antes de nós. Eles ganham voz quando cantamos seus hinos,
quando nos utilizamos de suas orações e nos ligamos a eles através do louvor a Deus. Eles estão junto conosco e
são comemorados quando celebramos a Santa Ceia. A história da salvação que nós contando lembramos e
lembrando contamos incluem a eles... A história da salvação inclui também os que ainda virão depois de nós.
Como memória - e tão somente como memória - cresce o futuro, cresce a esperança. Um culto como comunidade
de memória e de narração colocasse assim também contra o esquecimento do futuro, contra o abuso
inconseqüente de recursos em nome de interesses enganosos por parte das pessoas de hoje. O culto dá uma voz
aos ainda não nascidos, toma-os em conta em suas orações, os mantêm como espaços ainda vagos na comunidade
do Corpo de Cristo. BIERITZ, K.-H. Heimat Gottesdienst?, p. 265s.
32
STOLLBERG, Dietrich, Op. Cit., p. 22
8
outros reinos foram arrasados pela espada. E o poder de recordar, reforçado pelo culto geração
após geração, foi formidável demais até mesmo para a tirania da Babilônia. 33
Assim também a dimensão do espaço é fundamental para o culto cristão. Tendo a encarnação
como doutrina fundamental, não é de admirar que o fator espaço seja algo tão essencial para
os cristãos. Cristo não só entrou no tempo humano, mas também veio viver entre nós,
ocupando um lugar específico sobre a terra, na Judéia. A bíblia está cheia de nomes de
lugares onde Deus se manifestou e esteve. Os lugares não são em si, santificados, mas tornam
se referência, por causa daquilo que Deus ali fez pelos seres humanos. Os locais podem ser
uma região, montes, casas, fontes, uma árvore, cidades, ruas, vilarejos... O lugar não importa,
o evento é que é crucial. Deus e a humanidade se encontram em determinados lugares. Para as
pessoas de hoje, este lugar é, principalmente, o templo (espaço de sobrevivência?).
A comunidade cristã, desde muito cedo, estabeleceu lugares para encontrar e celebrar sua fé
no Deus Encarnado. Isto é algo tão forte que a palavra “igreja” se refere tanto ao espaço
arquitetônico quanto ao corpo dos crentes. Assim as igrejas (templos) revelam muito da
teologia de suas comunidades, assim como influenciam as pessoas que nela se reúnem. Um
culto em uma casa tem um caráter muito distinto de um culto realizado numa catedral gótica,
p. ex. O espaço litúrgico tem, ele mesmo, uma teologia e faz parte da liturgia que nele se
celebra. Por isso o espaço litúrgico tem tanta importância, quando falamos de cuidado e
terapia na e a partir do culto, quando a própria liturgia lá desenvolvida.
Local e espaço litúrgico tem a ver com culturas locais. É um reservatório de memórias, que o
tempo já podem ter apagado, mas que no espaço, nas pedras, árvores, montes... Continuam
vivas: aqui casaram meus pais, aqui fui batizado, aqui fui confirmado, aqui estão sepultados
meus avós... É como o livro aberto de uma comunidade e de uma pessoa. Lugares estão
impregnados de sentido, sejam eles bons ou ruins. O culto faz a revelação acontecer neste
determinado local e isto tem um enorme poder de reconhecimento. Casaldáliga fala da
descoberta dos sinais dos lugares.34 Os sinais do espaço litúrgico, do templo, falam de
encontro, aceitação, recomeço, perdão, orientação, clamor, louvor, benção, reconhecimento.
As pessoas hoje carecem de lugares de referência. Pois, assim como o tempo, os lugares estão
padronizados. Num mundo globalizado, lugares como shoppings, aeroportos, lojas,
restaurantes são imunes à localidades e histórias. Passamos grande parte do dia em ditos “não-
lugares”35,ou seja, lugares que servem apenas de passagem como, repartições, salas de
reuniões, esteira da fábrica, rodovias, carros, aviões, ônibus... As casas, desde sempre, lugar de
refúgio, intimidade, encontro e interação, tornam-se hoje, locais onde se vai para dormir e
locais aos quais devotamos investimentos, esperando o dia em que, enfim, poderemos
desfrutá-las. O espaço sagrado, de encontro com Deus e com sua comunidade, me parece um
espaço realmente separado e preservado, sagrado, em todos os sentidos da palavra, espaço de
sobrevivência em meio às mudanças bruscas desses novos tempos e lugares.
33
WHITE, James, Op. Cit., 112. Muito interessante é um relato de um trabalho da Comissão Pastoral da Terra
(CPT) na reorganização de alguns poucos descendentes de um povo indígena, na região central do Brasil.
Inúmeras tentativas haviam fracassado e os poucos índios moravam em baixo de um viaduto. Então a CPT
investiu no resgate das lendas, ritos e canções que o cacique Tião ainda conhecia. Através desses elementos o
“resto” daquele povo começou um processo de reorganização como povo.
34
WESTHELLE, Vítor, Os sinais dos lugares, 256.
35
AUGÈ, Marc, Los no lugares, 2000.
9
Ir a outro lugar que transcende os lugares e não lugares do cotidiano, experimentar momentos
de quietude e silêncio, ser passivo, receber, respirar, descansar, poder falar sobre coisas que
não são comuns ao longo do dia, ouvir música e cantar, estar com pessoas conhecidas, trazer
ritmo para a vida pessoal, ouvir e refletir sobre perguntas existenciais, sonhar... tudo isto faz
do culto todo um lugar privilegiado para curar e cuidar.36
A expressão no culto é individual, mas também comunitária, o que reforça sua importância.
No culto se expressam sonhos, fantasias, desejos, mas também sentimentos reprimidos,
calados, sentimentos que não tem nome ainda. A expressão se dá diante de Deus, diante da
comunidade reunida, sendo o culto um evento público, a expressão se dá, também, diante do
mundo. Não é uma expressão com um fim em si, como apenas uma catarse, mas uma
expressão que provoca algo. V. Turner fala de uma força chamada por ele de anti-estrutura e
communitas, presente nos rituais39. Os ritos, assim como o culto, permitem que a pessoa
experimente esta anti-estrutura que, na maioria das vezes, se diferenciam daquelas do
cotidiano, da estrutura. São subversivas, em essência. Na cultura da padronização e do
espetáculo minguam os espaços onde as pessoas possam expressar seus sentimentos, suas
idéias, seus sonhos e seus gritos de protesto.
36
Grandes cidades tornam-se centros de peregrinação turística e de mercado: Nova York, Londres, Paris... São
Paulo, outros locais, são sempre de novo como oásis em meio ao deserto padronizado do mundo globalizado:
paraísos ecológicos, Nordeste do Brasil, Caribe, Mar Mediterrâneo, Ilhas do Pacífico... Os outros lugares são
desconhecidos da geografia globalizada. São tornados locais estandartizados, sem relevância.
37
CORNEHL, Peter , Op. cit., p. 181-184.
38
LANGE, Ernst, Op. cit., (1987) p. 89.
39
TURNER, Victor, O processo ritual, 1974.
10
A identidade do ser humano não é algo intrínseco, mas algo que vai se construindo, e vai se
construindo na relação com os outros. Ela de constitui no longo e penoso processo das
escolhas, opções e renúncias. A religião ajuda as pessoas na afirmação de si mesmas e
possibilitam um olhar distanciado de si próprias.
40
ADAM, Júlio Cezar, Op. cit., p. 275.
11
41
VON HOF, Waldemar Oscar, Op. cit., p. 32.
12
5) Liturgias especiais
Outra ação de cuidado é a celebração das situações de passagem. Muitos são estes momentos,
que geram crises existenciais na vida das pessoas: internações hospitalares, constatação de
doenças graves, perda de familiares, acidentes com seqüelas, nascimento de crianças com
deficiência, separações matrimoniais, perda de emprego, mudança de residência, saída dos
filhos de casa, aposentadoria, etc. A ausência e a indiferença da Igreja nesses momentos
42
Hans-Martin BARTH, Die therapeutische Funktion des Heiligen Abendmahls, p. 519ss.
43
James WHITE, Op. cit., p. 212.
44
Michael MAYER-BLANCK, Op. cit., p. 276.
13
críticos da vida causam grandes frustrações a muita gente. A sua atenção e o seu cuidado, ao
contrário, lhe resgatam a credibilidade. Em atenção às crises de passagem, os cultos podem
adquirir nova vivacidade e sentido para as pessoas. A Igreja tem uma riquíssima herança de
ritos, que podem trazer o cuidado de Deus para junto das pessoas. Também o trabalho de
visitação de cunho pastoral e diaconal e o serviço poimênico precisam ser rearticulados.45 Em
especial a unção me parece uma prática privilegiada para o cuidado das pessoas.
Conclusões
A Pastoral Popular Luterana, em seu IV Celebrar Jeitos, na cidade de Schröder, SC, parece-me
ter experimentado um ótimo exemplo de como fazer uma combinação frutífera de
culto/liturgia – aconselhamento/cuidado.46 Dois espaços foram criados, um espaço para para
ouvir as pessoas, individualmente. Um espaço para o silêncio e para orar, também para
expressar sentimentos, angústias e agradecimentos, de forma escrita. O outro espaço era o
espaço comunitário, de celebração. Tanto o espaço poimênico, como o celebrativo, estavam
marcados por elementos litúrgicos: organização do espaço, bíblia, símbolo, vela, cruz... O
caderno das orações era, regularmente, trazido para a grande tenda da celebração. Não só
trazido, mas dele se lia, incluindo os pedidos e agradecimentos às demais preces da
comunidade (oração de intercessão e kyrie). A celebração litúrgica comunitária era assim a
celebração também do que acontecia nesse outro espaço de encontro com Deus e consigo
mesmo. “O cuidado pastoral é força dada entre cristãos. Culto é expressão da fé.”47 Do culto
saía impulsos para que outros buscassem, ao longo do dia, o espaço do silêncio. Aqui se vê,
pois, a relação entre culto e poimênica. Um não substituiu o outro. Pelo contrário um apoiou-
se no outro e um complementou o outro.
Referências
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Lebensräumen – Eine empirische-liturgiewissenschaftliche Untersuchung. Stuttgart:
Kohlhammer, 2005.
ALLMEN, J. J. von. O culto cristão: teologia e prática. São Paulo: ASTE, 1969.
45
Entrevista com Rodolfo Gaede, Informe PPL, 26/09/06, p. 2s.
46
Erli MANSK; Rodolfo GAEDE NETO, Espaço para a espiritualidade individual num encontro comunitário,
p. 9ss.
47
Dietrich STOLLBERG, Op. Cit., (1997), p. 267.
14
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: a ética do humano. In: BOFF, Leonardo; BETTO, Frei;
BOGO, Ademar. Valores de um prática militante. São Paulo: Coordenação Nacional
Consulta Popular, 2000, p. 5-33.
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CORNEHL, P. Theorie des Gottesdienst. In: Theologie Quartalsschrift, 159, 1979, p. 178-
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Aufsätze zur Theorie kirchlichen Handels. München/Gelnhausen: Kaiser/Burckhardthaus,
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N. (Ed.). Peregrinação. São Leopoldo: Sinodal, 1990, p. 258-278.