A Bolsa Amarela - Lygia Bojunga PDF

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DADOS DE ODINRIGHT

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CAPA

A BOLSA AMARELA
 
Lygia Bojunga Nunes
Ilustrações de Esperanza Vallejo

 
Editora AGIR
Rio de Janeiro
1993
22º edição
 
Coleção 4 Ventos”
 
Lygia Bojunga Nunes tem colecionado, ao longo dos anos,
todos os prêmios nacionais de literatura infanto-juvenil.
Em 1982 foi agraciada com a medalha Hans Christian
Andersen, considerada o Nobel dos escritores para a
infância e juventude de todo o mundo, concedida pela IBBY
International Board on Books for Young People), com sede
na Suíça.
Seus textos são originais, sensíveis, profundos e
universais. Sua linguagem é clara e ao mesmo tempo rica.
Vamos então à leitura, mergulhar nos personagens,
vivenciar este universo.
Final da nota.
 
 
Depois de Os Colegas e Angélica, cujas histórias giram em
torno de inesquecíveis animais, Lygia Bojunga Nunes
reaparece junto ao público infanto-juvenil com A bolsa
Amarela: romance de uma menina que entra em conflito
consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes
vontades (que ela esconde numa bolsa amarela) - a vontade
de crescer, a de ser garoto, e a de se tornar escritora. A
partir dessa revelação - por si mesma uma contestação à
estrutura familiar tradicional em cujo meio “criança não tem
vontade” - essa menina sensível e imaginativa nos conta o
seu dia-a-dia, juntando o mundo criado por sua imaginação
fértil e povoado de amigos secretos e fantasias.
Ao tecer a própria história - a real e a sonhada - a menina
vai contrapondo à constelação familiar de pais, irmãos e
primos, os seres que ela inventa e que adquirem vida
própria: os fabulosos galos Afonso e Terrível (vítimas de
abusos da autoridade), um guarda-chuva-mulher, um
alfinete de fralda, etc.
Ao mesmo tempo que se sucedem episódios reais e
fantásticos, uma aventura espiritual se processa, e a
menina segue rumo à afirmação como pessoa.
 
A Bolsa Amarela
 
Para Peter
 
SUMÁRIO
 
AS VONTADES
A BOLSA AMARELA
O GALO
HISTÓRIA DO ALFINETE DE FRALDA (QUE MORA NO BOLSO BEBÊ DA BOLSA
AMARELA)
A VOLTA DA ESCOLA
O ALMOÇO
TERRÍVEL VAI EMBORA
HISTÓRIA DE UM GALO DE BRIGA E DE UM CARRETEL DE LINHA FORTE
COMECEI A PENSAR DIFERENTE

NA PRAIA
 
 
1
AS VONTADES
 

 
Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas
vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem
tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de
matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento
mais o meu. Vontade assim todo o mundo pode ver, não tô
ligando a mínima. Mas as outras - as três que de repente vão
crescendo e engordando toda a vida - ah - essas eu não
quero mais mostrar. De jeito nenhum.
Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é
a vontade de crescer de uma vez e deixar de ser criança.
Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em
vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de
escrever.
Já fiz tudo pra me livrar delas. Adiantou? Hmm! é só me
distrair um pouco e uma aparece logo. Ontem mesmo eu
tava jantando e de repente pensei: puxa vida, falta tanto ano
pra eu ser grande. Pronto: a vontade de crescer desatou a
engordar, tive que sair correndo pra ninguém ver.
Faz tempo que eu tenho vontade de ser grande e de ser
homem. Mas foi só no mês passado que a vontade de
escrever deu pra crescer também. A coisa começou assim:
Um dia fiquei pensando o que é que eu ia ser mais tarde.
Resolvi que ia ser escritora. Então já fui fingindo que era. Só
pra treinar. Comecei escrevendo umas cartas:
 
Prezado André
Ando querendo bater papo. Mas ninguém tá a fim. Eles
dizem que não têm tempo. Mas ficam vendo televisão.
Queria te contar minha vida. Dá pé?
Um abraço da Raquel.
 
No outro dia quando eu fui botar o sapato, achei lá dentro
a resposta:
 
Dá.
André.
 
Parecia até telegrama, que a gente escreve bem curtinho
pra não custar muito caro. Mas não liguei. Escrevi de novo:
 
Querido André
Quando eu nasci minhas duas irmãs e meu irmão já
tinham mais de dez anos. Fico achando que é por isso
que ninguém aqui em casa tem paciência comigo: todo o
mundo já é bem grande há muito tempo, menos eu. Não
sei quantas vezes eu ouvi minhas irmãs dizendo: “A
Raquel nasceu de araque. “A Raquel nasceu fora de
hora. A Raquel nasceu quando a mamãe já não tinha
mais condições de ter filho.”
Tô sobrando, André. Já nasci sobrando. É ou não é?
Um dia perguntei pra elas: “Por que é que a mamãe não
tinha mais condições de ter filho?” Elas falaram que a
minha mãe trabalhava demais, já tava cansada, e que
também a gente não tinha dinheiro pra educar direito
três filhos, quanto mais quatro.
Fiquei pensando: mas se ela não queria mais filho por
que é que eu nasci? Pensei nisso demais, sabe? E acabei
achando que a gente só devia nascer quando a mãe da
gente quer ver a gente nascendo.
Você não acha, não?
Raquel.
 
Dois dias depois chegou a resposta. Estava escrita bem no
cantinho do papel que embrulhava o pão:
 
Acho
André.
 
Não gostei de receber de novo telegrama em vez de carta.
Mas assim mesmo continuei contando a minha vida pra ele:
 
Oi, André!
O pessoal aqui em casa até que se vira: meu pai e minha
mãe trabalham, meu irmão tá tirando faculdade, minha
irmã mais velha também trabalha, só vejo eles de noite.
Mas minha irmã mais moça nem trabalha nem estuda,
então toda hora a gente esbarra uma na outra. Sabe o
que é que ela diz? Que é ela que manda em mim, vê se
pode. Não posso trazer nenhuma colega aqui: ela cisma
que criança faz bagunça em casa.
Não posso nunca ir na casa de ninguém: ela sai, passa a
chave na porta, diz que vai comprar comida (ela vai é
namorar) e eu fico aqui trancada pra atender telefone e
dizer que ela não demora. Bem que eu queria pular a
janela, mas nem isso dá pé: sexto andar.
Essa irmã que eu tô falando é bonita pra burro, você
precisa ver. Nem sei o que é que ela é mais: se bonita ou
mascarada. Imagina que outro dia ela me disse: “Eu sou
tão bonita que não preciso trabalhar nem estudar: tem
homem assim querendo me sustentar; posso escolher à
vontade.”
Aí eu inventei que o Roberto (um grã-fino que ela quer
namorar) tinha falado mal dela. “Sabe o que é que ele
andou espalhando?” - eu falei - “que você é tão burra
que chega a meter aflição.” Levei uns cascudos que eu
vou te contar.
E de noite, quando o pessoal chegou (fui cedo pra cama
porque vi logo vi que ia dar galho), ela contou que eu
continuava a maior inventadeira do mundo. Aí foi aquela
coisa: o pessoal todo ficou contra mim. Fui dormir na
maior fossa de ser criança podendo tão bem ser gente
grande.
Não era pra eu ter inventado nada; saiu sem querer.
Sai sempre sem querer, o que é que eu posso fazer? E dá
sempre confusão, É tão ruim! Escuta aqui, André, você
me faz um favor? Para com essa mania de telegrama e
me diz o que é que eu faço pra não dar mais confusão.
POR FAVOR, sim”?
Raquel.
 
Esperei a resposta uma porção de dias. Até que uma tarde
deu uma ventania danada. A janela do quarto estava aberta,
entrou uma folha de árvore, poeira, e um papel todo escrito
com a letra do André: Vibrei: era uma carta no duro, maior
até do que as minhas:
 
Querida Raquel.
Pra falar a verdade eu preferia não me meter nessa
história: uma vez fui desenrolar o problema de uma
amiga minha e acabei me enrolando todo também. Mas
você pediu POR FAVOR, e fica uma coisa um bocado
chata não atender um favor tão pedido com letra
grande. Então eu pensei bastante, e acabei achando que
pra não dar mais confusão você tem que fazer o
seguinte: daqui pra frente você só inventa inventado, tá
compreendendo como é que é? Se você inventa uma
história com gente que não existe, aposto que ninguém
liga. Teu pessoal só fica chateado porque no meio da
invenção você bota o namorado da tua irmã no meio, ou
então o gato da vizinha, ou então a tia Brunilda, ou não
sei quem mais. Mas se você inventa um caso com gente
inventada, com bicho inventado, com tudo inventado,
aposto que não te dão mais cascudo nem…”
 
Eu estava tão ligada na carta do André que nem tinha visto
o meu irmão atrás de mim lendo também. Ele arrancou a
carta:
- Quem é o André?
- Ninguém. O André é inventado.
 
 
Ele me olhou com aquela cara desconfiada que eu
conheço tão bem.
- Já vai começar, é?
- Palavra de honra. Eu tenho mania de juntar nome que eu
gosto, sabe? E eu gosto um bocado de André. Aí, quando foi
no outro dia, eu estava sem ninguém pra bater papo e
então inventei um garoto pro nome. Um garoto legal: dois
anos mais velho que eu, cabelo e olho preto, e pensando
assim igual a mim. Aí comecei a escrever pra ele.
- Escuta aqui: por que é que você acha que eu vou
acreditar nessa história?
- Porque é verdade, ué.
- Ele é teu namorado? É aluno lá da escola?
- Que que há? tô dizendo que ele é inventado. Invento
onde é que ele vai escrever, invento o que é que ele vai
dizer, invento tudo.
Meu irmão fez cara de gozação:
- E por que é que você inventou um amigo em vez de uma
amiga?
- Porque eu acho muito melhor ser homem do que mulher.
Ele me olhou bem sério. De repente riu:
- No duro?
-É, sim. Vocês podem um monte de coisas que a gente
não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que
escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre é um
garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem
também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do
jogo que eu gosto, todo o mundo faz pouco de mim e diz
que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo
a mesma coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo o
mundo tá sempre dizendo que vocês é que têm que meter
as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefe de
família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que -
puxa vida! - vocês é que vão ter tudo. Até pra resolver
casamento - então eu não vejo? - a gente fica esperando
vocês decidirem. A gente tá sempre esperando vocês
resolverem as coisas pra gente. Você quer saber de uma
coisa? Eu acho fogo ter nascido menina.
Meu irmão nem ligou. Mas também por que é que ele ia
ligar? eu tava dizendo que ser homem bom… Aí eu pensei
que ele ia curtir conversar comigo, mas ele virou e disse:
- Então me conta: quem é o André?
Quase caí pra trás:
- Mas eu já te contei!
- Conta melhor. Eu não tô acreditando que essa transa
toda é só pra ter um papo.
- Bom, só-só não.
- Ah!.
- O quê?
- Conta.
- É o seguinte: eu resolvi que eu vou ser escritora, sabe? E
escritora tem que viver inventando gente, endereço,
telefone, casa, rua, um mundo de coisas. Então eu inventei
o André. Pra já ir treinando. Só isso.
Aí meu irmão fechou a cara e disse que não adiantava
conversar comigo porque eu nunca dizia a verdade. Fiquei
pra morrer:
- Puxa vida, quando é que vocês vão acreditar em mim,
hem? Se eu tô dizendo que eu quero ser escritora é porque
eu quero mesmo.
- Guarda essas ideias pra mais tarde, tá bem? E em vez
de gastar tempo com tanta bobagem, aproveita pra estudar
melhor. Ah! e olha: não quero pegar outra carta do André,
viu?
O que eu vi é que a gente não tinha mais papo. Nem
respondi. E assim que ele saiu escrevi correndo um bilhete:
 
Não adianta, André: gente grande não entende a gente.
E então é melhor eu nem te escrever mais.
 
 
 
E pronto: nunca mais escrevi.
Passei uns tempos sem escrever carta nenhuma. Mas um
dia eu não tinha nada pra fazer e pensei:
“Ah, também que que há?” Fui no meu esconderijo de
nomes, peguei um nome que eu adoro, inventei uma amiga
pra ele, e comecei a escrever pra ela:
 
Lorelai:
Era tão bom quando eu morava lá na roça. A casa tinha
um quintal com milhões de coisas, tinha até galinheiro.
Eu conversava com tudo quanto era galinha, cachorro,
gato, lagartixa, eu conversava com tanta gente que
você nem imagina, Lorelai. Tinha árvore pra subir, rio
passando no fundo, tinha cada esconderijo tão bom que
a gente podia ficar escondida a vida toda que ninguém
achava. Meu pai e minha mãe viviam rindo, andavam de
mão dada, era uma coisa muito legal da gente ver.
Agora tá tudo diferente: eles vivem de cara fechada,
brigam à toa, discutem por qualquer coisa. E depois,
toca todo o mundo a ficar emburrado. Outro dia eu
perguntei: o que é que tá acontecendo que toda hora
tem briga? Sabe o que é que eles falaram? Que não era
assunto pra criança. E o pior é que esse negócio de
emburramento em casa me dá uma aflição danada.
Eu queria tanto achar um jeito de não dar mais bola pra
briga e pra cara amarrada. Será que você não acha um
jeito pra mim?
Um beijo da Raquel.
 
Ela escreveu a resposta na última folha do caderno de
comunicação:
 
Querida amiga:
Acho que o único jeito é você voltar pro quintal da tua
casa. Lá o pessoal anda de mão dada, não tem briga,
não tem cara amarrada, e ainda por cima tem gato, rio,
galinheiro, aposto que até coelho tem.
L.
 
Respondi na mesma hora dizendo que tinha coelho sim,
mas que aquilo não era jeito. Como é que eu ia voltar pro
meu quintal? Sozinha? Então eles iam deixar? No dia
seguinte, quando entrei no elevador, encontrei um papel
caído no chão. Era um bilhete da Lorelai:
 
Raquel
- Você foge e pronto.
Um beijo da Lorelai.
 
A coisa começou a esquentar. Escrevi dizendo que tá bem:
eu ia: mas só se ela fosse comigo. Ela topou. Então inventei
a viagem. Foi aí que a minha irmã cismou de fazer
arrumação no armário e achou as cartas atrás da gaveta.
Armou um barulho daqueles! “Quem é essa tal Lorelai que
quer te ajudar a fugir de - casa?” Comecei a explicar que ela
era inventada, que a viagem era inventada, que - mas ela
não deixou eu acabar de falar. Disse que eu não tinha jeito,
me deu puxão de orelha, fez queixa pro meu pai, o pessoal
ficou de novo contra mim, e eu comecei a desconfiar que a
gente ser escritora quando é criança não dá pé. Desisti de
escrever carta.
Fiquei uma porção de dias pensando no meu pessoal pra
ver se entendia por que é que eles zangavam tanto comigo.
Acabei desistindo também: gente grande é uma turma
muito difícil de entender. Mas em compensação tive uma
ideia: “E se eu escrevo um romance? Aí ninguém mais pode
ficar contra mim porque todo o mundo sabe que romance é
a coisa mais inventada do mundo.”
Achei a ideia legal e escrevi o romance. Pequeno. Achei
que pra começar era bom fazer um bem pequeno. Era a
história de um galo chamado Rei - lindo de morrer - que um
dia fica louco pra largar a vida de galo. Ele morava num
galinheiro com quinze galinhas, mas ele era um cara muito
igual e então achava que era galinha demais pra um galo
só. Pra contar a verdade, ele vivia até um bocado sem jeito
de ser chefe de uma família tão esquisita assim. Então ele
resolve fugir do galinheiro. Mas aí dá medo de todo o mundo
ficar contra ele. E então ele passa o romance inteirinho
naquela aflição de foge, não foge. Quando chega bem no
fim da história, ele resolve o seguinte: se a vida dele era
furada, ele tinha mesmo que fugir e pronto. E aí ele foge.
Era domingo quando eu acabei a história. Me chamaram
pro cinema. Saí às carreiras, larguei o romance no quarto.
Minha irmã pegou e leu. (Quando eu cheguei em casa ela
perguntou: “Como é que você pode pensar tanta besteira,
hem, Raquel?”) Achou gozado e deu pra minha mãe ler.
E a minha mãe deu pro meu pai.
E o meu pai deu pro meu irmão.
E o meu irmão deu pra minha outra irmã.
E ela deu pra vizinha.
E a vizinha deu pro marido, que ainda por cima é síndico.
Quando eu voltei do cinema encontrei todo o mundo rindo
da minha história. Era um tal de fazer piada de galo, de
galinha, de galinheiro, que não acabava mais. E o pior é que
eles não estavam rindo só da história: tavam rindo de mim
também, e das coisas que eu pensava.
Foi me dando uma raiva de ter largado o romance no
quarto que, de repente, sem pensar no que eu estava
fazendo, peguei meu romance e rasguei todinho. Rasguei o
galo chamado Rei, a família esquisita que ele tinha, rasguei
o galinheiro inteiro, e tudo que tinha lá dentro. Resolvi que
até o dia de ser grande não escrevia mais nada. Só dever de
escola e olhe lá.
Foi daí pra frente que a vontade de ser escritora desatou a
engordar que nem as outras duas.
 
Se o pessoal vê as minhas três vontades engordando
desse jeito e crescendo que nem balão, eles vão rir, aposto.
Eles não entendem essas coisas, acham que é infantil, não
levam a sério. Eu tenho que achar depressa um lugar pra
esconder as três: se tem coisa que eu não quero mais é ver
gente grande rindo de mim.
 
2
A BOLSA AMARELA
 

 
Meu irmão chegou em casa com um embrulho. Gritou da
porta:
- Pacote da tia Brunilda!
Todo o mundo correu, minha irmã falou:
- Olha como vem coisa.
Rebentaram o barbante, rasgaram o papel, tudo se
espalhou na mesa. Aí foi aquela confusão:
- O vestido vermelho é meu.
- Ih, que colar bacana! vai combinar com o meu suéter.
- Vê se veio alguma camisa do tio Júlio pra mim.
- Que sapato alinhado, tá com jeito de ser meu número.
Eu fico boba de ver como a tia Brunilda compra roupa.
Compra e enjoa. Enjoa tudo: vestido, bolsa, sapato, blusa.
Usa três, quatro vezes e pronto: enjoa. Outro dia eu
perguntei:
- Se ela enjoa tão depressa, pra que que ela compra
tanto? É pra poder enjoar mais?
Ninguém me deu bola. Fiquei pensando no tio Júlio. Meu
pai diz que ele dá um duro danado pra ganhar o dinheiro
que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de ver
a tia Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa
logo. Mas ele não fica. Eu acho isso tão esquisito! Outra
coisa um bocado esquisita é que se ele reclama, ela diz
logo: “Vou arranjar um emprego.” Aí ele fala: “De jeito
nenhum! ” E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais. E pra
continuar enjoando. Vou ver se um dia eu entendo essa
jogada.
Não parava de sair coisa do pacote. Minha mãe falou:
- Que boazinha que é a Brunilda: sabe como a gente vive
apertada e cada vez manda mais roupa.
Eu parei de fazer o dever e fiquei espiando. Vi aparecer
uma bolsa; todo o mundo pegou, examinou, achou feia e
deixou pra lá.
Antes, quando chegavam os pacotes da tia Brunilda e não
sobrava nada pra mim, eu ficava numa chateação daquelas.
E se eu pedia qualquer coisa o pessoal falava logo:
- Ora, Raquel, a tia Brunilda só manda roupa de gente
grande, não serve pra você.
- É só cortar, diminuir.
- Não adianta: mesmo diminuindo tudo continua com cara
de roupa de gente grande.
- Roupa não tem cara.
- Tem, sim senhora.
E nunca fiquei com nada. Num instantinho sumiam com
tudo, e usavam; usavam, usavam até pifar. Aí, no dia que a
roupa pifava, a gente ajeitava daqui e dali, e a roupa ficava
pra mim. Eu não dizia nada. Até que uma vez não resisti e
perguntei:
- Quer dizer que quando a roupa pifa, pifa também a tal
cara de roupa de gente grande?
E o pessoal falou que sim, que era isso mesmo. (É por
causa dessas transas que eu queria tanto crescer: gente
grande tá sempre achando que criança tá por fora.)
Aí aconteceu uma coisa diferente: de repente sobrou uma
coisa pra mim.
- Toma Raquel, fica pra você.
Era a bolsa.
 
A bolsa por fora:
 
Era amarela. Achei isso genial: pra mim amarelo é a cor
mais bonita que existe. Mas não era um amarelo sempre
igual: Às vezes era forte, mas depois ficava fraco; não sei se
porque ele já tinha desbotado um pouco, ou porque já
nasceu assim mesmo, resolvendo que ser sempre igual é
muito chato.
Ela era grande; tinha até mais tamanho de sacola do que
de bolsa. Mas vai ver ela era que nem eu: achava que ser
pequena não dá pé.
A bolsa não era sozinha: tinha uma alça também. Foi só
pendurar a alça no ombro que a bolsa arrastou no chão. Eu
então dei um nó bem no meio da alça. Resolveu o problema.
E ficou com mais bossa também.
 
Não sei o nome da fazenda que fez a bolsa amarela. Mas
era uma fazenda grossa, e se a gente passava a mão
arranhava um pouco. Olhei bem de perto e vi os fios da
fazenda passando um por cima do outro; mas direitinho;
sem fazer bagunça nem nada. Achei legal. Mas o que eu
ainda achei mais legal foi ver que a fazenda esticava: “vai
dar pra guardar um bocado de coisa aí dentro”.
 
A bolsa por dentro:
 
Abri devagarinho. Com um medo danado de ser tudo
vazio. Espiei. Nem acreditei. Espiei melhor.
Mas que curtição! - berrei. E ainda bem que só berrei
pensando: ninguém escutou nem olhou.
A bolsa tinha sete filhos! (Eu sempre achei que bolso de
bolsa é filho da bolsa.) E os sete moravam assim:
Em cima, um grandão de cada lado, os dois com zipe;
abri-fechei, abri-fechei, abri-fechei, os dois funcionando bem
que só vendo. Logo embaixo tinha mais dois bolsos
menores, que fechavam com botão. Num dos lados tinha
um outro - tão magro e tão comprido que eu fiquei
pensando o que é que eu podia guardar ali dentro (um
guarda-chuva? um martelo? um cabide em pé?). No outro
lado tinha um bolso pequeno, feito de fazenda franzidinha,
que esticou todo quando eu botei a mão dentro dele; botei
as duas mãos: esticou ainda mais; era um bolso com mania
de sanfona, como eu ia dar coisa pra ele guardar! E por
último tinha um bem pequeninnho, que eu logo achei que
era o bebê da bolsa.
Comecei a pensar em tudo que eu ia esconder na bolsa
amarela. Puxa vida, tava até parecendo o quintal da minha
casa, com tanto esconderijo bom, que fecha, que estica,
que é pequeno, que é grande. E tinha uma vantagem: a
bolsa eu podia levar sempre a tiracolo, o quintal não.
 
O fecho:
 
A bolsa amarela não tinha fecho. Já pensou? Resolvi que
naquele dia mesmo eu ia arranjar um fecho pra ela.
Peguei um dinheiro que eu vinha economizando e fui
numa casa que conserta e reforma bolsas. Falei que queria
um fecho e o vendedor me mostrou um, dizendo que era o
melhor que ele tinha. Custava muito caro, meu dinheiro não
dava.
- E aquele? - apontei. Era um fecho meio pobre, mas
brilhando que só vendo.
O homem fez cara de pouco caso, disse que não era bom.
Experimentei.
- Mas ele abre e fecha tão bem.
O homem disse que o fecho era muito barato: ia enguiçar.
Vibrei! Era isso mesmo que eu tava querendo: um fecho
com vontade de enguiçar. Pedi pro vendedor atender outro
freguês enquanto eu pensava um pouco. Virei pro fecho e
passei uma cantada nele:
- Escuta aqui fecho, eu quero guardar umas coisas bem
guardadas aqui dentro dessa bolsa. Mas você sabe como é
que é, não é? Às vezes vão abrindo a bolsa da gente assim
sem mais nem menos; se isso acontecer você precisa
enguiçar, viu? Você enguiça quando eu pensar “enguiça!”,
enguiça?
O fecho ficou olhando pra minha cara. Não disse que sim
nem que não. Eu vi que ele tava querendo uma coisa em
troca.
- Olha, eu já vi que você tem mania de brilhar. Se você
enguiçar na hora que precisa, eu prometo viver polindo
você pra te deixar com essa pinta de espelho. Certo?
O fecho falou um tlique bem baixinho com todo o jeito de
“certo”. Chamei o vendedor e pedi pra ele botar o fecho na
bolsa.
 
Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa
amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei no
bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando
uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso
bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado
na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal
da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas
coisas que eu andava pensando. Abri um zipe; escondi
fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zipe;
escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No
outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido
garoto (ela andava muito grande, foi um custo pro botão
fechar).
Pronto! a arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades
tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara
delas.
 
3
O GALO
 

 
Acordei de repente com um barulho esquisito. Olhei pra
janela e vi o dia nascendo. Outra vez o barulho. Quase morro
de susto: era um canto de galo; e ali bem perto de mim.
Olhei minhas irmãs. Elas continuavam dormindo
igualzinho, nem tinham ouvido canto nenhum. Espiei
debaixo da cama, atrás da cadeira, dentro do armário - nada.
Mas aí o galo cantou muito aflito: um canto assim de gente
que tá presa e quer sair. “Tá dentro da bolsa amarela!” Abri a
bolsa correndo. O galo saiu lá de dentro.
- Puxa, se você não abre essa bolsa eu morria sufocado.
Tinha pedido pro fecho ficar meio aberto pra eu poder
respirar, mas ele acabou dormindo e fechou. - Voou pra
janela, aterrissou na beirada, e ficou respirando fundo.
Eu estava de boca aberta: nunca tinha visto um galo
usando máscara. E ele usava. Preta. Tapando a cara todinha.
Só dois furos pros olhos. Ele andou de um lado pro outro na
beirada da janela.
Eu fiquei pensando quando é que eu tinha visto alguém
andar bonito assim. Ele abriu as asas e voou pra junto da
bolsa. Achei melhor fingir que nem tinha visto: ele podia ler
no meu olho que eu tinha vidrado no vôo e aí ficar prosa
demais. As penas do corpo dele brilhavam que nem o fecho;
a gente usa anel no dedo mas ele usava na perna e usava
dois: um azul e outro vermelho. Foi quando eu olhei pros
anéis que de repente me assustei: “Ué, como é que pode?!”
O rabo do galo era a coisa mais genial que eu já vi, porque
de repente dava um troço nas penas, e em vez delas ficarem
certinhas que nem no resto do corpo, elas ficavam com uma
cara zangada, se arrepiavam, mudavam de cor (tinha pena
vermelha, marrom, laranja, dourada, tinha até uma peninha
branca não sei se de idade ou de bossa), e cada movimento
que o galo fazia, elas todas se sacudiam, parecia até que
elas tavam sambando, e quando ele parava, elas ainda
ficavam dançando. Quanto mais eu olhava pras penas, mais
eu me assustava: “Puxa mas como é que pode?!”
Até que não resisti mais e falei:
- Sabe? Você é tão parecido com um galo que eu conheço,
mas tão parecido mesmo…
Ele tirou a máscara e olhou pra mim. Parecido coisa
nenhuma. Era ele mesmo. O Rei. O galo do romance que eu
tinha inventado.
 
- O que é que você tá fazendo aqui?!
- Psiu! Fala baixo, tô fugido.
- Isso eu sei, ué, fui eu que fiz você fugir do galinheiro.
- Mas a questão é que eles me pegaram.
- Não brinca!
- Me levaram de volta. Pra tomar conta daquelas galinhas
todas outra vez.
- Ai
- Você não sabia?
- Não. O meu romance acabava no dia que você fugia. Foi
até aí que eu inventei você.
- Pois é. Mas aí eu fiquei inventado e tive que resolver o
que é que eu ia fazer da minha vida. Pensei pra burro. Acabei
resolvendo que ia lutar pelas minhas ideias.
Achei aquilo tão bacana! Na escola, quando a gente lê a
vida de Tiradentes e desse pessoal importante, vem sempre
Essa frase junto: “homens que lutaram por suas ideias”.
- Que legal, Rei. E você lutou?
- Não. Foi só resolver lutar que eles me levaram de volta
pro galinheiro. Então eu chamei as minhas quinze galinhas e
pedi, por favor, pra elas me ajudarem. Expliquei que vivia
muito cansado de ter que mandar e desmandar nelas todas
noite e dia. Mas elas falaram: “Você é o nosso dono. Você é
que resolve tudo pra gente.” Sabe, Raquel, elas não
botavam um ovo, não davam uma ciscadinha, não faziam
coisa nenhuma, sem vir me perguntar: Eu posso? Você
deixa?” E se eu respondia: “Ora, minha filha, o ovo é seu, a
vida é sua, resolve como você achar melhor”, elas
desatavam a chorar, não queriam mais comer, emagreciam,
até morriam. Elas achavam que era melhor ter um dono
mandando o dia inteiro: faz isso! faz aquilo! bota um ovo!
pega uma minhoca! do que ter que resolver qualquer coisa.
Diziam que pensar dá muito trabalho.
- Ué.
- Pois é.
- Quer dizer que elas não te ajudaram?
- Se ajudaram? Ha! Quando eu expliquei que desde
pequenininho eu sonhava com um galinheiro legal, todo o
mundo dando opinião, resolvendo as coisas, achando furada
essa história de um galo mandar e desmandar a vida toda,
sabe o que é que elas fizeram?
Chamaram o dono do galinheiro e deram queixa de mim.
- No duro?
- Fiquei danado. Subi no puleiro e berrei: “Não quero
mandar sozinho! Quero um galinheiro com mais galos! Quero
as galinhas mandando junto com os galos!”
- Que legal!
- Legal coisa nenhuma; me levaram preso.
- Mas por quê?
- Pra eu aprender a não ser um galo diferente. Me botaram
num quartinho escuro. Tão escuro que quando eu saí de lá
tava todo preto. Só depois é que a cor foi voltando. Fiquei
preso um tempão; sofri à beça. Aí, um dia, eles me soltaram.
E foram logo dizendo: “Daqui pra frente você vai ser um
tomador-de-conta-de-galinha como o seu pai era, como o
seu avô era, como o seu bisavô era, como o seu tataravô era
- senão volta pra prisão. “E as galinhas disseram: “Deixa
com a gente: se ele não se comportar direito a gente avisa.”
Mas eu não era que nem meu avô, que nem meu bisavô, que
nem meu tataravô, o que é que eu podia fazer? Eu sei que ia
ser muito mais fácil eu continuar pensando igualzinho a eles.
Mas eu não pensava, e daí? Um dia botaram outro galo junto
comigo. Só pra ver o que é que eu fazia. bEles tavam crentes
que eu ia armar um barulho e dizer: “Ou você ou eu
mandando no galinheiro! Vamos brigar pra resolver qual de
nós dois é o dono dessas galinhas todas!” Mas em vez disso
eu falei: “Oi, colega. Me ajuda a acabar com a mania da
gente ter que mandar nelas todas?” Pra quê! Todo o mundo
foi correndo fazer queixa de mim. - Parou de falar e ficou
olhando a bolsa amarela de crista franzida.
- Aí prenderam você de novo?
- Não deu tempo: eu fugi.
- Você veio logo pra cá?
- Não.
- O que é que você fez?
- Hem? Ah, eu… eu andei me escondendo numa porção de
lugares, mas… sabe? nenhum assim bom como a bolsa
amarela.
- Por que?
Ele não parava de olhar pra bolsa.
- Não chove, não tem vento, ninguém se lembra de
procurar a gente aí…
Fiquei sem saber o que é que eu falava. Tava na cara que o
Rei queria um convite pra morar na bolsa amarela. Mas
como é que ia ser? Eu carregava a bolsa pra tudo quanto é
canto; quando as vontades engordavam ela ficava
superpesada; com o Rei lá dentro eu não ia nem aguentar.
Resolvi ser franca:
- Sabe, Rei? Já tem muita coisa na bolsa amarela: não dá
pra você também.
- Nem por uma temporadinha?
- Acho que não.
- Ih, Raquel, mas se eles me pegam de novo vai ser fogo.
- Você arranja outro esconderijo.
- Tá difícil: cada vez tem menos lugar pra gente se
esconder.
- É que, sabe, eu guardo muita coisa aí dentro.
- Eu sei, já examinei tudo. Mas achei que ainda sobrava um
lugarzinho pra mim.
Fingi que não tinha ouvido. Ele suspirou:
- Aí dentro é tão sossegado. Eu precisava um lugar assim
pra poder pensar com calma nas minhas ideias.
Quem sabe ele falava, nas ideias dele e acabava
esquecendo de morar na bolsa amarela?
- Me conta uma coisa: quais são as suas ideias, hem?
- Pois aí é que está: ainda não deu pra ter nenhuma ideia.
- Ué! Se você não tem nenhuma ideia, como é que você
vai lutar por uma ideia?
- Bom, primeiro eu preciso ter a ideia. Depois eu saio
lutando.
- Puxa! você nunca bolou nada lá no galinheiro?
- Não dava jeito. Cada vez que eu começava a bolar um
troço qualquer, vinha uma galinha perguntar o que é que ela
ia fazer.
- E depois que você fugiu?
- Também não dava: eu vivia apavorado, achando que iam
me pegar. Fui ficando sem jeito de não deixar ele morar na
bolsa amarela. Mas de repente me lembrei de outra coisa:
- Se descobrem que eu tô escondendo você, eu fico numa
situação um bocado ruim.
- Bom, isso é mesmo… - E aí ele ficou quieto pensando.
Depois botou a máscara e falou:
- Então até qualquer dia. - E foi indo embora. Fiquei num
aflição danada. E se pegavam ele lá fora? E se ele não
encontrava outro esconderijo bom? Aí mesmo é que ele
nunca mais encontrava a tal ideia pra poder lutar por ela.
- Ei, Rei! - Ele parou e olhou pra mim. Abri a bolsa: - Pode
entrar.
Ele nem esperou outro convite: deu um vôo espetacular,
passou rentinho do nariz das minhas irmãs, e aterrissou
dentro da bolsa. Mas deixou um pé no ar. Com jeito de entra-
não-entra.
- Não faz cerimônia, entra logo.
- É que… sabe? Tem uma coisa que desde o princípio eu tô
querendo dizer e ainda não disse. - E ficou me olhando.
- O que é que é, Rei?
- É isso mesmo: Rei. Não repara não, foi você que escolheu
meu nome, mas eu não gosto dele.
- Ah. não?
- Não. Eu sou um cara igual, gosto de sossego, sou um
sujeito muito simples: esse nome não combina comigo. E
tem outra coisa também: fica tão esquisito quando você diz:
“Ei, Rei!” Parece que você tá dizendo que errou. Você se
importa se eu pego aí no bolso sanfona um outro nome pra
mim?
Fico sempre chateada quando eu dou uma coisa e a
pessoa não gosta. Mas fingi que não tava ligando:
- Claro, pode pegar.
Mais que depressa ele sumiu dentro da bolsa. Ficou lá
dentro um tempão. Depois apareceu todo satisfeito:
- Peguei o Afonso.
- Afonso?!
- É.
Achei que ele e Afonso não combinavam de jeito nenhum.
- Mas você não tem cara de Afonso.
- Posso não ter cara, mas tenho certeza que o meu coração
é um coração de Afonso. - Bocejou, disse que tava morrendo
de sono, e eu então fechei a bolsa pra ele dormir. Mas fiquei
pensando uma pergunta que não queria sair da minha
cabeça. Lá pelas tantas não aguentei mais e abri a bolsa:
- Ei, Afonso! - Ele meio que acordou. - Como é que você
veio parar aqui dentro da bolsa amarela, hem?
- Entrei na tua casa, comecei a procurar um lugar bom pra
me esconder, vi a bolsa debaixo da cama e pronto.
- Mas como é que você entrou aqui? Você voou?
- Vim de elevador.
- Sozinho?
- Não, tinha mais gente.
- E ninguém viu que você era um galo fugido?
- Eu tava de máscara.
- Ah é ! Então boa noite.
- Dorme bem.
 
4
HISTÓRIA DO ALFINETE DE FRALDA (QUE MORA
NO BOLSO BEBÊ DA BOLSA AMARELA)
 

 
Como ninguém conhece o Alfinete de Fralda muito bem, eu
acho melhor contar a história dele antes de continuar
contando a minha:
Um dia eu ia passando e vi o Alfinete caído na rua. Peguei,
limpei, desenferrujei, experimentei a pontinha dele no meu
dedo, vi que ela era afiada toda a vida:
- Puxa!
E ela começou a riscar na minha mão tudo que o Alfinete
queria dizer:
- Me guarda? Já não agüento mais viver aqui jogado: passa
gente em cima de mim; chove, eu fico todo molhado, pego
cada ferrugem medonha; e cada vez que varrem a rua eu
esfrio: “pronto! vão achar que eu não sirvo mais pra nada,
vão me levar no caminhão do lixo”; me encolho todo pra
vassoura não me ver; e depois que ela passa, e depois que o
susto passa, eu risco na calçada um anúncio de mim dizendo
que eu sirvo sim; mas nunca acontece nada. Me guarda?
- Guardo.
- Então guarda.
Guardei. No bolso do uniforme (ainda não tinha a bolsa
amarela). E perguntei:
- O que é que você fazia antes?
A pontinha foi riscando na fazenda:
- Não cheguei a fazer nada.
- Ué.
- Saí da fábrica muito mal embrulhado, vim caindo pelo
caminho, me agarrando nos outros pra ver se me aguentava,
acabei não me aguentando: caí aqui.
- E não levantou mais?
- Cada vez que eu levantava, passavam em cima de mim.
- Mas nunca ninguém te viu?
- Quando me viram eu já tava todo enferrujado e ninguém
mais me quis.
- E depois?
- Nada.
- Não aconteceu mais nada na tua vida?
- Não.
- Que história curtinha que você tem.
- Pois é.
- Você não queria ter uma história mais comprida?
- Eu não! esse pouquinho já deu tanto trabalho.
- Acha que assim chega, é?
- Acho que chega sim.
E então ficou chegando.
 
5
A VOLTA DA ESCOLA
 

 
Saí da escola apavorada com o peso da bolsa amarela.
Tinha Afonso tinha vontade tinha nome tinha livro tinha
caderno tinha tudo lá dentro. E tinha também o seguinte:
A professora mandou a gente fazer uma redação. Assunto:
“O presente que eu queria ganhar”. Escrevi que eu queria
um guarda-chuva (já cansei de pedir um lá em casa).
Comecei a inventar o guarda-chuva que ele ia ser e as coisas
que aconteciam com ele. Quando eu tava no melhor da
história, tocou a campainha, a aula acabou, a redação não
estava pronta, eu quis escrever o resto da história, a
professora não deixou, recolheu o caderno, a turma foi
saindo, a história ficou sem fim, e aí pronto: a vontade de
continuar escrevendo apertou, desatou a engordar,
engordou tanto que eu mal aguentava carregar a bolsa
amarela.
Andei um quarteirão inteiro. Com Afonso espiando a vida
pela janela.
- Puxa, que peso! - E tive que parar pra descansar.
O Afonso botou a máscara e saiu da bolsa:
- Enquanto você descansa eu vou dar uma voltinha por aí.
Quem sabe eu encontro uma ideia? - (Ele continuava louco
pra lutar pela tal ideia que ele ainda tinha que achar.) Voltou
dez minutos depois.
- Achou?
- Não. Mas achei um guarda-chuva. Estava perdido. Fiquei
muito contente porque eu andava querendo te dar um
presente. Toma.
 
O Afonso tinha pegado uma mania: era só não ter
ninguém reparando, que ele enfiava a cabeça na janela e
ficava batendo papo comigo. Mal ele me deu o guarda-
chuva, pulou pra bolsa, botou a cabeça pra fora, e começou
a me contar tudo que o guarda-chuva tinha contado pra ele.
- Na hora do guarda-chuva nascer, quer dizer, na hora que
ele foi feito, o homem lá da fábrica - que era um cara muito
legal e que gostava de ver as coisas gostando do que elas
tinham nascido - perguntou:
- Você quer ser guarda-chuva homem ou mulher?
E ele respondeu: mulher.
O homem então fez um guarda-chuva menor que guarda-
chuva homem. E usou uma seda cor-de-rosa toda cheia de
flor. O cabo ele não fez reto não: disse que guarda-chuva
mulher tinha que ter curva. E pendurou no cabo uma
correntinha que às vezes guarda-chuva homem não gosta
muito de usar.
Fui andando e pensando que eu também queria ter
escolhido nascer mulher: a vontade de ser garoto sumia e a
bolsa amarela ficava muito mais leve de carregar.
Quando a Guarda-chuva viu que o homem estava fazendo
o cabo comprido, pediu:
- Ah, me deixa pequena! Quero ser pequena a vida toda.
O homem se espantou:
- E se mais tarde você cismar de crescer?
- Não sei pra que: ser pequena é uma curtição.
Mas ele ficou cismado:
- Às vezes a gente quer muito uma coisa e então acha que
vai querer a vida toda. Mas aí o tempo passa. E o tempo é o
tipo do sujeito que adora mudar tudo. Um dia ele muda
você e pronto: você enjoa de ser pequena e vai querer
crescer.
- Será?
- É bem capaz.
A Guarda-chuva ficou pensando. Pensou bastante e depois
resolveu:
- Então tá bom, me faz pequena. Mas bota dentro de mim
o jeito de ser grande.
E o homem então fez o Guarda-chuva do tipo que estica e
fica grande se a gente puxa o cabo com força.
Parei e olhei bem pra cara da Guarda-chuva. Ela era uma
graça; e era coisa boa, bem feita, parecia até que tinha sido
guarda-chuva da tia Brunilda.
- Muito obrigada, viu, Afonso? Eu pensei que só ia ter uma
guarda-chuva assim no dia que eu fosse grande.
- Você ficou mesmo contente, Raquel?
- Contentíssima. - E aí virei pra Guarda-chuva e perguntei:
- Por que é que você não queria ser grande, hem?
O Afonso foi logo respondendo:
- Porque ela adorava brincar, e gente grande tem mania
de achar que porque é grande não pode mais brincar. Às
vezes ela ficava louca pra experimentar crescer: só pra ver
se era mesmo verdade: se quando a gente crescia a
vontade de brincar sumia. Mas ela tinha medo de arriscar.
Até que um dia tomou coragem e experimentou. E sabe que
ela curtiu demais?
- Claro que tinha que curtir! quando a gente é grande
pode tudo, resolve tudo.
- Nada disso. Ela curtiu porque viu que uma coisa não
tinha nada que ver com a outra: ela podia muito bem ser
grande, e ela podia muito bem continuar brincando. E aí ela
achou que a melhor brincadeira do mundo era toda hora
passar de pequena pra grande, de pequena pra grande, de
pequena pra grande, de pequena tlá! ! ! estalou, enguiçou,
não passou pra mais nada.
- E mesmo? - perguntei pra ela.
- É sim.
- Não tô falando com você, Afonso. Deixa ela responder.
- Mas é que não adianta você perguntar pra ela.
- Por que?
- Nem ela entende o que você diz, nem você vai entender
o que ela fala.
- Claro que entendo.
- Não entende.
- Entendo!
- E perguntei outra vez pra Guarda-chuva: É mesmo
verdade que você enguiçou?
Ela ficou quieta.
- Tô dizendo, não adianta perguntar: a língua dela é muito
complicada, só galo que entende.
- Quer fazer o favor de ficar quieto? - Dei um apertão na
Guarda-chuva e falei: - Responde!
- Mas ela não respondeu coisa nenhuma. Apertei com
mais força. - Responde, sim?! - Nada. Apertei ainda mais. Aí
a Guarda-chuva disse:-
- zzzztctctctdrrrrtdtd)96785432666
6????!!!iuiuiuiuiuugdtgdtgbzzzzxzxyxzta aa,,,,… ta?bzzzz.
Tomei o maior susto. O Afonso desatou a rir:
- Não te disse que a língua dela era complicada?
- O que é que ela falou?
- Ai.
- Ai?
- É.
- Tudo aquilo só pra dizer ai?
- É.
- Não pode ser.
- Mas é. Ela fala uma língua um bocado comprida.
Passei de contentíssima pra contente só: nunca ia poder
bater papo com a Guarda-chuva; tudo que ela dizia o Afonso
ia ter que traduzir. Suspirei:
- Bom, mas então continua. O que é que aconteceu depois
que ela enguiçou?
- Pois aí é que está: na hora que ela enguiçou a história
dela também enguiçou.
- Você quer dizer que a história dela não tem fim?
- É.
Passei de contente pra chateada.
- Ah, que que há Afonso! Toda história tem que acabar,
não pode ficar assim no ar.
- Mas a dela ficou, o que é que eu posso fazer?
- Mas a fala dela não enguiçou.
- Não.
- Pois então por que é que ela não conta o que é que
aconteceu depois?
- Não foi a fala que enguiçou, foi a história. Enguiçou junto
com o estalo. Só quando o estalo desestalar é que a história
desestala também, quer dizer, continua até o fim.
A gente foi andando. Aí eu falei:
- Pergunta se ela tem nome.
- Já perguntei.
- Tem?
- Tinha: enguiçou junto com o estalo.
A chateação aumentou. Foi nessa hora que eu resolvi abrir
a Guarda-chuva. Empurrei, empurrei a mola. Mas não
adiantava: a Guarda-chuva abria um pouquinho e parava no
meio do caminho.
- O que é que tá acontecendo, Afonso?
- Desde o estalo que ela não abre mais.
Aí eu passei pra superchateada.
- Mas Afonso, o que é que eu vou fazer com uma guarda-
chuva que não tem nome, não tem fim de história, não
abre, não funciona?
- Guarda aqui na bolsa, ela é tão bonitinha.
Bonitinha era. Muito. Tão bonitinha que eu acabei
pensando: “Bom, paciência. Em vez dela servir de guarda-
chuva, agora serve pra gente gostar de olhar.” E então
enfiei ela no bolso magro e comprido. Calhou certinho. Ela
logo espichou o pescoço pra ficar olhando o Afonso. Ele
virou a cabeça, olhou pra ela e… não sei não… mas o jeito
que eles se olharam foi um jeito assim… sei lá… um jeito
que um dia vai dar casamento.
A bolsa amarela ainda ficou mais pesada. Tive que fazer
uma força danada pra pendurar ela no ombro.
 
Mal eu tinha andado um pouco, o Afonso berrou:
- Olha lá o Terrível! Vamos falar com ele, Raquel! - Ficou
na maior agitação. - Você lembra de uma galinha gorda,
toda branca, que morava lá no galinheiro?
- Sei.
- O Terrível é filho dela.
- Ele se chama mesmo Terrível?
- Chama.
- Que nome.
- É que ele é galo de briga.
- Ah é?
- Na primeira vez que eu fugi, eu fui correndo ver o
Terrível lutar. Ele era terrível mesmo, ganhava tudo quanto é
briga.
- Mas no tempo que eu inventei o galinheiro ele ainda
estava lá?
- Não. Você não lembra que a galinha gorda vivia
morrendo de saudade de um filho que tinha ido embora?
- É mesmo!
- Era o Terrível. Desde pequenininho que resolveram que
ele ia ser galo de briga, sabe? Do mesmo jeito que
resolveram que eu ia ser galo-tomador-de-conta-de-galinha.
Você sabe como é esse pessoal, querem resolver tudo pra
gente. E aí começaram a treinar o Terrível. Botaram na
cabeça dele que ele tinha que ganhar de todo o mundo.
Sempre. Disseram até, não sei se é verdade, é capaz de ser
invenção, que costuraram o resto do pensamento dele com
uma linha bem forte. Pra não rebentar. E pra ele só pensar:
“eu tenho que ganhar de todo o mundo”, e mais nada.
- Puxa! E ele ficou toda a vida ganhando?
- Não sei. Depois que eu voltei pro galinheiro não tive
mais noticias dele.
Pulou fora da bolsa e saiu correndo.
O primo do Afonso era pequeno, de pescoço pelado, não
parava de sacudir a cabeça, e tinha um jeito tão nervoso
que metia até aflição. Estava jogando dados. Sozinho.
Jogava os dados no chão, via quantos pontos tinha feito,
depois pulava pro outro lado e jogava outra vez - fingindo
que ele era dois. Fiquei louca pra saber se ele tava
ganhando ou perdendo dele mesmo. Ia até perguntar, mas
o Afonso berrou:
- Meu primo, que saudade!
O Terrível tomou um bruto susto. Ficou todo duro (que
nem a gente fica, quando acha que tá em perigo). Em vez
de abraçar o Afonso ele falou:
- Aposto dez reais em mim numa briga com você. - E já
pegou jeito de briga.
Aí foi o Afonso que se assustou. Riu sem jeito:
- Que que há, Terrível? Você não lembra de mim? Sou teu
primo, o Rei. Só que agora não me chamo mais Rei, me
chamo Afonso. E essa é uma amiga minha, a Raquel.
Eu tava com um pouco de medo dele, mas assim mesmo
falei oi.
Ele nem me olhou. Continuou falando com o Afonso:
- Tô apostando dez reais como eu ganho de você.
 
(nota de rodapé: Achei que devia ser muito ruim a gente
viver sem espiar pra fora. Então cortei uma janela na
fazenda da bolsa amarela. Bem juntinho do fecho. Pra cara
do Afonso ficar parecendo enfeite de fecho em vez de cara
de galo fugido.- fim da nota de rodapé)
 
 
 
- Mas que história é essa, Terrível? por que é que você
quer brigar comigo?
- Pra mostrar que eu ganho de você. Fácil.
- Então finge que a gente já brigou e você já ganhou,
pronto. - Levantou a asa do Terrível e berrou: - Campeão!
Campeão! Campeão!
O Terrível ficou muito espantado:
- Você não se importa de perder?
- De jeito nenhum.
- Mas como é que pode?
- Terrível, vê se entende: eu não te vejo há séculos, tô
com saudades tuas, tô louco pra saber o que é que você
tem feito…
- Tenho brigado.
- Quero saber tintim por tintim da tua vida.
- Tintimbrigado tintimbrigado.
- Quantas brigas você já brigou?
- Cento e trinta e três.
- Quantas você já ganhou?
- Cento e trinta.
- Quando é que você perdeu?
- Nas três últimas.
- Por que é que você perdeu?
- Perdi a última porque eu perdi a penúltima.
- Por que é que você perdeu a penúltima?
- Porque eu perdi a antepenúltima.
- Mas por que é que você perdeu a antepenúltima?
- Porque apareceu um galo mais novo e mais forte do que
eu! Quer parar de fazer pergunta, quer!
Mas o Afonso ainda fez umazinha:
- Quando é que você vai brigar outra vez?
Aí ele ainda ficou mais nervoso e gritou:
- Sábado. E eu não posso perder, viu? Meus donos falaram
que se eu brigo mal dessa vez ninguém mais aposta em
mim; então eles não vão mais me defender; vão deixar o
outro galo acabar comigo e pronto. Eu não posso perder
essa briga de jeito nenhum! de jeito nenhum! de-de-de…
- E a cabeça dele sacudia tanto que ele não podia mais
falar.
Eu achei aquilo tão impressionante! É claro que eu já
tinha visto gente com mania de dizer que a gente tem que
ganhar dos outros tem que ser a primeira disso, a primeira
daquilo, mas nunca pensei que alguém tinha que ganhar
tanto assim.
O Afonso ficou olhando pro Terrível com uma cara muito
séria. De repente se zangou:
- Você ganhou cento e trinta lutas?
- Ganhei.
- Então você ganhou também um bocado de dinheiro?
- Eu não: meus donos é que ganharam.
- Ué, você que briga e eles é que ganham?
- É.
- Então eles tão ricos?
- Tão.
- Se eles tão ricos você não precisa mais brigar.
- Preciso.
- Você pode dizer pra eles que agora quer viver
sossegado.
- Não.
- Sem ter que arriscar mais a vida.
- Não.
- Mas não por que, cara?
- Porque eu tenho que brigar.
- Mas por quê?
- Porque eu preciso ganhar de todo o mundo. - E começou
a pular no mesmo lugar se esquentando pra briga. O Afonso
virou pra mim e cochichou:
- Puxa, ele só pensa nisso. Será que costuraram mesmo o
pensamento dele?
Aí começou uma gritaria danada; um bando de gente
apareceu na esquina berrando:
- Campeão! Campeão! Campeão!
No meio daquela turma vinha um homem carregando um
galo no ombro. Era um galo fortíssimo. Com cada unhona
assim. E uma cara de meter medo. Quando o Terrível viu o
tal galo, se encolheu apavorado:
- É o Crista de Ferro. E o homem é o dono dele.
O dono ia feliz que só vendo. Rindo. Papeando com todo o
mundo. Segurando firme a perna do Crista de Ferro pra ele
não desequilibrar com tudo quanto é festa que faziam nele.
E o pessoal em volta não parava de bater palma e gritar:
campeão!
Afonso virou pro Terrível:
- Você conhece o Crista de Ferro?
- Foi ele que ganhou de mim. É com ele que eu vou brigar
no sábado.
- Chi!… - E o Afonso achou melhor nem dizer mais nada:
viu logo que o Terrível não era páreo pro Crista de Ferro.
O bando passou pertinho. Terrível se escondeu atrás do
Afonso. Jogaram flor no Crista de Ferro, fizeram ainda mais
gritaria. E aí dobraram a esquina.
O barulho foi sumindo, e o Terrível ficou olhando pro chão.
Com uma cara triste toda a vida. Suspirou:
- Antes de começar a perder eu é que era o campeão. Eles
também batiam palma pra mim e gritavam desse jeito.
Agora eu só levo vaia. - Viu os dados. Deu uma sacudidela
de cabeça, começou a jogar outra vez com ele mesmo. Foi
se animando com o jogo. Esqueceu que a gente estava ali,
acho que esqueceu a briga também.
O Afonso me chamou pra um canto:
- A gente tem que ajudar o Terrível. Ele não pode brigar
com o Crista de Ferro. Você viu bem a pinta daquele galo?
- De amargar.
- O Terrível vai perder, vai morrer.
- Fala com ele, Afonso. Diz pra ele fugir.
O Afonso pulou pra cima dos dados. Mandou:
- Foge, Terrível! Você não vai agüentar essa briga. Foge
enquanto é tempo.
- De jeito nenhum.
- Foge !
- Sai de cima do meu dado.
- Eu fugi do galinheiro onde eu morava, agora tô tão feliz.
Foge também.
- Sai daí!
- No sábado vão acabar contigo. Não vai lá.
- Vou!
- Terrível, escuta…
- Não quero escutar. - Empurrou o Afonso, pegou o dado e
começou a jogar de novo.
O Afonso veio pra perto de mim e cochichou:
- O jeito é prender o Terrível até a hora da briga passar.
- Mas onde?
- Acho que a bolsa amarela é um bom lugar.
Quase desmaiei:
- Ah, pera lá, Afonso! A bolsa já tá lotada.
- Cada um se encolhe um pouco, vai dar.
- Mas Afonso…
- É só por uns dias.
- E o peso? Já pensou?
- Ele não é tão pesado assim.
- Mas escuta, eu mal tava aguentando carregar a bolsa
amarela; com o Terrível aí dentro como é que vai ser?
- Eu encolho a barriga pra ficar mais leve.
- Ah.
- É por pouco tempo, dá um jeitinho.
- Tá difícil.
- Pensa na briga, pensa no Crista de Ferro.
Pensei. Topei. Botei a bolsa no chão e abri. O Afonso não
perdeu tempo: chamou o Terrível com a cara mais inocente
do mundo:
- Ei! Aqui dentro tem um sujeito que tá te desafiando pra
uma briga.
Falou em briga, pronto: o Terrível esqueceu o jogo.
- Manda ele aqui.
- Ele é um cara esquisito, só gosta de brigar na bolsa.
- Fica uma briga apertada.
- Que nada, tem muito lugar, espia só.
Ele espiou.
- Cadê o cara?
- Mora aí nesse bolso. Abre o zipe.
O Terrível pulou pra dentro da bolsa e abriu o zipe. O
Afonso pulou atrás e eu fechei o fecho. Agora o Terrível só
saía lá de dentro depois da briga.
Mas que peso, puxa vida! Cheguei em casa mais morta do
que viva.
 
6
O ALMOÇO
 

 
O Terrível ficou danado quando viu que estava preso.
Desatou a brigar com as minhas vontades, com a Guarda-
chuva, com o pessoal todo. Quanto mais a gente explicava
que estava querendo salvar a vida dele, mais danado ele
ficava; queria bicar todo o mundo, pulava de um lado pra
outro, a bolsa dava cada pinote que SÓ vendo. Fui ficando
apavorada: daqui a pouco iam descobrir que eu carregava
muita coisa esquisita dentro da bolsa amarela. E então eu
pedia pela janela:
- Ò Afonso, vê se controla a situação. Mas quem diz que
ele conseguia? E aí chegou o sábado e a minha irmã falou:
- Vai te vestir, Raquel, tem almoço na casa da tia Brunilda.
Bacalhoada.
Eu adoro comer, só tem um prato que eu não aguento:
bacalhau. Mas como o pessoal aqui de casa tá sempre
paparicando a tia Brunilda, eu sabia muito bem que na hora
de dizer: “Tia Brunilda a senhora se importa se eu só como a
sobremesa?”, eles iam me olhar daquele jeito, e eu ia ter
que acabar comendo. Então já fui ficando meio aflita.
Calça comprida eu só tenho duas; uma boa, outra ruim;
enquanto uma lava, uso a outra. A boa estava lavando, e
ainda mais essa, eu pensei.
Quando fui me olhar no espelho dei de cara com uma
espinha. Bem na ponta do nariz. Espremi, começou a sair
uma aguinha lá de dentro; vi que tinha feito uma besteira.
A campainha tocou. Abri a porta e esbarrei nos donos do
Afonso. Falaram que andavam atrás de um galo que tinha
fugido do galinheiro; disseram que não sei quem tinha visto
um galo na nossa casa, pediram licença pra entrar e
procurar. Fiquei gelada. Enquanto eles batiam papo com a
minha mãe eu corri e avisei o Afonso pra não deixar o
Terrível fazer barulho. Cochichei pro fecho:
- Se quiserem te abrir você enguiça, viu?
Todo o mundo ajudou a procurar. Passaram três vezes
pertinho da bolsa amarela, mas ninguém desconfiou de
nada. Foram embora. E, na saída, um me disse:
- Você fica de olho pra ver se descobre o galo. Se descobrir
avisa logo, tá?
- Tá. (“Espera sentado que em pé cansa.”). - Fechei a
porta. Meu nariz começou a doer. Olhei no espelho e
anunciei: - Não posso ir à bacalhoada: meu nariz inchou, tá
doendo demais.
Mandaram eu botar mercurocromo e acabar de me vestir.
 
 
Quando eu abri a porta do armarinho do banheiro, um tal
de mercúrio, que estava na beira da prateleira, sem tampa
nem nada, desabou em cima de mim. Só faltei morrer de
raiva. Já estava quase pronta pra sair. Tinha baixado a
bainha da calça, passei ela a ferro, peguei uma tinta que a
minha irmã pinta o olho e pintei uma flor na minha blusa pra
ver se tapava uma mancha antiga, agora tava tudo
respingado, tudo vermelho, blusa, calça, flor, até meu sapato
levou um banho de mercurocromo. Vi que o dia ia ser fogo.
Botei aquele vestido xadrez que eu acho o fim; meu nariz
tava o fim; eu toda estava o fim; saí de casa achando a
minha vida o fim.
Mas na porta eu parei: “E se alguém abre a bolsa amarela
enquanto eu tô fora? e se descobrem o Afonso lá dentro? e
se o Terrível foge pra ir brigar? e se as minhas vontades
saem também - crescendo, engordando, tomando conta do
quarto, de tudo?” Me apavorei. O jeito era não arriscar, era
levar a bolsa comigo. Levei.
Quando o pessoal me viu carregando aquele peso; eles
disseram que eu tava maluca: eu não podia ir pro almoço
levando uma bolsa enorme, ridícula, de gente grande, e não
sei que mais. Aí eu ainda fiquei mais aflita. Comecei a
inventar uma porção de coisas. Eu não queria inventar nada;
o que eu queria mesmo era poder dizer: “Eu preciso levar a
bolsa amarela. Eu guardo aqui dentro umas coisas muito
importantes. Umas coisas que eu ainda não tô podendo nem
querendo mostrar pra ninguém.” Pronto. Que legal eu
falando assim e ninguém perguntando: “Mas por quê? Que
coisas são essas? Como é que essa bolsa abre? O fecho tá
enguiçado?” Nem mandando: “Abre! Fala! Diz!”
Então eu disse tudo inventado. Falei que no dia seguinte ia
ter uma prova de matemática um bocado difícil e que eu
estava carregando tudo quanto é livro e caderno pra depois
do almoço estudar. (Enquanto eu falava, o Afonso segurava o
Terrível pra ele não gritar nem pular.) Pelo jeito o pessoal
acreditou no que eu disse porque no fim eles falaram:
- Então, vamos de uma vez que a gente já tá atrasada.
E aí a gente foi.
 
Fui fingindo o tempo todo que a bolsa amarela não pesava
tanto assim. Mas para falar a verdade ela pesava mais que
um elefante. Cheguei na casa da tia Brunilda botando a alma
pela boca.
Eu era a única criança no almoço. Tia Brunilda tem um
filho de quatorze anos, o Alberto, mas há muito tempo que
ele já resolveu que não é mais criança e pronto. Tudo que ele
resolve a tia Brunilda topa. É o cara mais mimado que eu já
vi até hoje.
Desabei numa poltrona. A tia Brunilda disse logo:
- Vem cá, Raquelzinha. Senta aqui nessa cadeirinha.
- Essa poltrona é tão gostosa, tia Brunilda.
- Aqui você fica muito mais engraçadinha. Vem.
Todo o mundo me olhou. Não tive remédio, fui. Botei a
bolsa amarela atrás da cadeira pra ver se ninguém prestava
atenção nela.
- Você tá ficando uma mocinha, hem?
- Quer um amendoinzinho?
- O que é que você arrumou aí no narizinho?
Eu ia respondendo e pensando: será que eles acham que
falando comigo do mesmo jeito que eles falam um com o
outro eu não vou entender? por que será que eles botam
inho em tudo e falam com essa voz meio bobalhona, voz de
criancinha que nem eles dizem?
Quando eu ia comer o amendoim minha irmã falou:
- Raquel, canta pro tio Júlio e pra tia Brunilda aquele
versinho inglês que você aprendeu na escola. E tão
bonitinho.
Quase caí pra trás. Quando eu comecei a cantar o tal verso
lá em casa, o pessoal mandou eu ficar quieta porque eu tava
enchendo a paciência de todo o mundo. Agora ficavam
pedindo:
- Canta, filhinha; canta.
Experimentei fazer voz de criancinha:
- Não me lembro direito.
- Canta assim mesmo.
Eu tava com vontade de tudo, menos de cantar. Fiquei
tirando a casca de um amendoim pra ver se eles batiam
papo e esqueciam de mim. Mas não esqueceram. Então eu
cantei. Saiu ruim toda a vida. Mas foi só eu acabar que eles
disseram:
- Agora dança aquela dancinha que outro dia você dançou
lá em casa. Ficaram todos me olhando. Esperando. Olhei
meu pai pra ver se ele me salvava. Mas ele mandou recado
de olho dizendo: “dança logo, menina!”
Puxa vida, eu tinha dançado outro dia porque eu estava
contente, com vontade de dançar.
Mas agora eu queria ficar quieta comendo amendoim, será
que ninguém ia dizer: “deixa: ela não tá com vontade”?
Esperei. Ninguém disse. Dancei. Pensando o tempo todo que
eles não iam topar dançar pros outros sem vontade
nenhuma. Eu suava que só vendo. Não era da dança, não.
Suava de nervoso: será que eu ainda ia ter que fazer muita
graça?
Quando eu acabei eles bateram palma e o tio Júlio me
disse:
- Eu soube que você andou escrevendo um romancinho.
- Conta como era a história - o meu irmão falou. Fez ar de
riso e piscou meio disfarçado pro tio Júlio.
Será que eles pensam que a gente não percebe essas
piscadelas de olho? Tava na cara que o meu irmão queria ver
o tio Júlio e a tia Brunilda rindo da história do Rei.
Foi nessa hora que eu ouvi um soluço dentro da bolsa
amarela. Depois outro e mais outro. Olhei disfarçado. Cada
vez que soluçavam lá dentro a bolsa dava um pulinho. Mais
que depressa sumi pro jardim, dizendo que depois eu
contava; agora ia estudar.
Abri a bolsa. Era o Terrível, coitado. Tanto seguraram o bico
dele pra não abrir, tanto seguraram pata, asa e pé pra não
mexer, que ele resolveu ter uma crise de soluço: soluço é o
tipo da coisa que ninguém segura. Soluçou meia hora. Aí
cansou e dormiu. Ainda bem, porque nessa hora a tia
Brunilda gritou:
- Vem Raquelzinha, vamos pra mesa!
 
Botei a bolsa amarela debaixo da mesa bem junto do meu
pé. Tudo estava calmo lá dentro. Minha aflição foi sumindo.
Trouxeram a travessa de bacalhoada e botaram bem na
minha frente. Minha aflição voltou correndo: a bacalhoada
soltava mais fumaça que qualquer chaminé, e a fumaceira
passava rentinho do meu nariz.
Sempre que o pessoal grande vê carro e fábrica soltando
fumaça eles dizem: “puxa, que poluição!”, mas pra mim a
fumaça daquela bacalhoada foi a pior poluição que eu já vi
até hoje.
Encheram o meu prato. Tomei coragem e falei:
- Tia Brunilda, a senhora vai me desculpar, mas se tem
comida que eu não topo é bacalhau.
- Bobagem da Raquel, ela gosta sim - o meu pai falou.
Olhei pra minha mãe e ela fez cara de quem diz: “não cria
caso, sim, Raquel?” Meu irmão tava do meu lado e disse:
“come”.. Minha irmã tava do outro e me deu uma cutucada
pra comer. Vi que ia dar alteração. Então mandei recado pro
estômago aguentar firme, e comecei a mastigar devagar. Foi
aí que o Alberto se abaixou pra apanhar o guardanapo e
gritou:
- Ih pessoal, vocês já viram o tamanho da bolsa da Raquel?
Antes de continuar contando o que aconteceu, É bom
explicar que o Alberto adora implicar comigo. A gente se vê
pouco, mas ele sempre arranja um jeito de me encher a
paciência.
- O que é que você carrega aí dentro, hem, Raquel?
Todo o mundo resolveu olhar a bolsa amarela. Respondi já
meio afobada:
- Nada. Não carrego nada, viu?
Tia Brunilda falou:
- Eu usava essa bolsa pra fazer compras. Mas ela é muito
grande pra você, Raquelzinha.
A minha irmã disse com a cara mais limpa do mundo:
- Pois é. Mas a Raquel cismou que queria a bolsa…
E aí o Alberto falou:
- Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem.
- Mas disse aquilo cantado. Com a música de “Vou passear
na floresta, enquanto seu lobo não vem”.
Meu coração disparou. Tudo que o Alberto dizia que ia
fazer, fazia mesmo; era só ele cismar, que me arrancava a
bolsa à força. Então, pra ver se todo o mundo esquecia o
assunto e me deixava em paz, eu falei:
- Ah, tio Júlio! o senhor queria saber como era o meu
romance não é? - E comecei a contar.
O Alberto cantarolou mais alto:
- Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem. - Se
levantou da mesa. Todos ficaram olhando pra ele. Eu
continuei contando a história. Ele veio vindo pra perto de
mim. - Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem.
Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem. -
Estendia as mãos assim que nem garra de monstrinho, e
fazia cada careta horrível.
O pessoal desatou a rir. Principalmente a tia Brunilda. Ria
de chorar. Parei de contar, me levantei, e botei a bolsa atrás
de mim. Aí o Alberto começou a me fazer cócega pra ver se
saía da frente da bolsa. Pra quê! Fiquei na maior chateação:
- Tia Brunilda, diz pro Alberto parar com isso, sim?
Ela ria.
- Por favor, tia Brunilda!
- Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem. - E
toca a fazer cócega.
Fui pra perto da tia Brunilda:
- A senhora acha engraçado tudo que o Alberto faz, não é?
Ele pode fazer a maior besteira do mundo que a senhora
acha graça.
Minha irmã fechou a cara:
- Não fala assim com a tia Brunilda.
- Ela não tá ligando a mínima o que o Alberto faz comigo,
por que é que eu vou ligar pra ela?
- Raquel!
- Por que vocês tão sempre ligando, é?
- Não precisa dizer mais nada, Raquel.
- Vou espiar essa bolsa…
- Porque vocês tão sempre paparicando ela, é?
- Raquel, eu disse chega.
- … pra ver o que é que ela tem.
- Porque ela é rica, é?
- Eu disse che-ga!
- Vou espiar essa bolsa…
- Porque ela tá sempre dando presente, é?
- Chega! ! !
Mas aconteceu uma coisa esquisita: eu não podia parar de
falar. E quanto mais cócega o Alberto me fazia, mais alto eu
ia falando. Minha irmã me torceu um beliscão tão grande
que eu gritei. O Alberto deu um bote:
- Peguei! - e puxou a bolsa. Mas eu não larguei, e puxei ela
pro meu lado. Ele puxou muito mais. E enquanto puxava
fazia careta, fazia graça, e não é que o pessoal continuava
rindo? Ele puxava, eu puxava, a bolsa ia toda pro lado dele,
me escapava da mão; ele puxava, puxava, ela foi
escapando, escapou.
- Ah! ! agora a gente vai ver o que a Raquel guarda aqui
dentro.
Eu quis falar. Trancou tudo na garganta. Me lembrei do
fecho. Pensei com toda a força pra ver se ele ouvia:
“Enguiça!”
O Alberto sentou no chão:
- Como é? esse fecho não abre?
O pessoal continuava rindo. Puxa vida, por que é que eu
não tinha nascido. Alberto em vez de Raquel? Pronto! mal
acabei de pensar aquilo e a vontade de ter nascido garoto
deu uma engordada tão grande que acordou o Terrível,
empurrou o Afonso, sei lá o que é que aconteceu direito, só
sei que a bolsa desatou a dar pinote no chão.
- Tem coisa viva aí dentro ! - o Alberto gritou.
E todo o mundo arregalou cada olho assim. Mamãe
levantou da mesa e falou com voz firme:
- Bom Raquel, agora vamos ver mesmo o que é que tem aí
dentro.
O fecho não abre - minha irmã falou.
- Mas por quê? Ele não tá trancado, não tem chave…
- Espera aí, deixa eu experimentar.
- Puxa assim, puxa assim pra ver se ele abre.
E de repente todo o mundo tava lutando pra abrir a minha
bolsa. Minha. Minha. Minha! E eu ali sem poder fazer nada.
Ah, se eu fosse gente grande! Quem é que ia abrir minha
bolsa assim à força se eu fosse grande? quem? E aí a minha
vontade de ser grande desatou também a engordar. E
quanto mais eu ficava grudada no chão sem poder fazer
nada, mais as minhas vontades iam engordando, e a bolsa
crescendo, crescendo, já nem pulava mais, só crescia,
crescia, crescia.
O pessoal tava de boca aberta:
- Parece um balão!
Esqueceram até de lutar com o fecho, esqueceram tudo.
Só olhando a bolsa crescer. Aqui pra nós eu também tava um
bocado espantada: nunca tinha visto minhas vontades
crescendo tanto assim.
A turma da bolsa amarela começou a gemer. Vi que eles
não tavam mais aguentando a espremeção lá dentro. A
Guarda-chuva pediu socorro. Mas pedir socorro na língua da
Guarda-chuva leva um tempão, e o pessoal ainda ficou mais
espantado quando ouviu aquela língua esquisita.
- Afinal de contas, Raquel, o que é que você carrega aí
dentro?!
- Fala, menina!
Cada um dizia que o barulho era uma coisa. Começaram
outra vez a querer abrir o fecho. Mas o fecho - que legal que
ele foi! -aguentou firme a força que todo o mundo fez pra ele
abrir.
- Não adianta, ele não abre.
- Deixa, espera, daqui a pouco ele não agüenta mais e
rebenta.
Largaram o fecho. Eu vi que a fazenda da bolsa já tinha
esticado tudo que podia. O Alberto gritou:
- Olha só, vai rebentar, vai rebentar!
Ninguém falou mais nada. Só ficaram esperando o fecho
rebentar. Que nem eu. E a turma da bolsa também ficou
quieta. Esperando. Só esperando. Esperando.
De repente, deu um estouro danado. Estouro no duro.
Parecia até que tinha rebentado uma bomba dentro da bolsa
amarela. Todo o mundo pulou pra trás. E aí deu outro
estouro. Ainda maior.
Fiuuu… A gente começou a ouvir um barulho de balão
esvaziando. A bolsa foi emagrecendo, emagrecendo, mas
não parava de mexer - a turma lá dentro estava numa
agitação incrível. A bolsa emagreceu até fícar do tamanho
que era antes; o Alberto então pegou ela pra abrir. E o fecho
tava tão zonzo com os estouros que nem se lembrou mais de
enguiçar: abriu!
O Afonso pulou pra fora. Mascarado. Agarrando o Terrível
com força. O Terrível tava um bocado esquisito: bico, asa,
pata, tava tudo amarrado com a correntinha da Guarda-
chuva. O Afonso berrou :
- Senhoras, senhores, querido público! Sou um galo
mágico. Aprendi uma porção de mágicas com um antigo
dono mágico. A Raquel hoje me trouxe a essa distinta casa
só pra divertir vocês e fazer a mágica da bolsa que engorda
e desengorda. Tá feita. Agora posso ir m’embora. Vou noutra
casa fazer a mágica do galo preso com uma corrente. Tchau!
- E saiu mais que depressa, arrastando o Terrível.
 
O pessoal espiou dentro da bolsa. Estavam todos quietos:
a Guarda-chuva, o Alfinete, os nomes, os retratos. Espiei
também. Lá bem no fundo vi uns restos de vontade, assim
que nem resto de balão quando estoura. Mas só eu que vi,
mais ninguém.
- Onde é que você encontrou esse galo, Raquel?
Fiz cara de quem tá achando aquilo tudo a coisa mais
normal do mundo:
- Por aí. Mágica bacana, não é?
Fiquei esperando o Afonso na portaria. Louca pra entender
direito o que é que tinha acontecido. Ele demorou muito, e
quando chegou tava um bocado cansado de tanto segurar o
Terrível pra ele não rebentar a corrente e fugir. Prendeu o
Terrível na bolsa. Aí respirou aliviado e me piscou o olho:
- Você hoje deu uma sorte danada, hem?
- Conta de uma vez o que é que aconteceu, Afonso! Não
entendi nada.
- Ele não te contou?
- Quem?
- O Alfinete de Fralda. Foi ele que salvou a situação.
- No duro? - Peguei o Alfinete no bolso bebê. Só aí é que
eu vi que ele estava todo torto. - Que foi isso?
A pontinha dele foi riscando a palma da minha mão:
- Bom, tuas vontades foram enchendo que nem balão. A
gente ficou tão espremido que começou a sufocar.
- Isso eu sei, mas e daí?
- Você lembra quando eu te contei a minha história?
- Lembro.
- Pois é: todo o mundo vivia achando que eu não servia
pra nada, mas eu sempre achei que servia sim. Lembra?
- Lembro, Alfinete, lembro, mas e daí?
- Pois é: eu sirvo sim. Viu?
- Mas conta de uma vez o que o que você fez.
- Espetei tuas vontades com toda a força. Pra ver se elas
estouravam que nem balão. E elas estouraram mesmo. Mas
puxa, vou te contar! como elas são duras. hem? Tive que
fazer tanta força para espetar as duas que acabei
entortando todo. Me desentorta?
- E a ideia da mágica? também foi sua?
- Foi minha! - o Afonso gritou.
- Você gostou?
- Se gostei.
- Eu também gostei demais. Fiquei até achando que já que
eu achei uma ideia, agora eu sou capaz de achar a outra.
- Que outra?
- A ideia que eu tô precisando achar pra lutar por ela…
Ué! Só agora que eu tô reparando: a Guarda-chuva continua
desmaiada.
- Ela tá desmaiada?
- Desmaiou de susto com os estouros. - Me desentorta,
Raquel?
- Ah, Afonso, faz alguma coisa pra ela des-desmaiar, faz.
- Mas ela tá com uma cara tão satisfeita. Olha só. Ela deve
estar sonhando bonito mesmo.
Era verdade. A Guarda-chuva estava com uma cara
genial. A gente ficou até parada, olhando pra ela. De
repente, o Afonso resolveu :
- Sabe de uma coisa? Eu vou deixar a Guarda-chuva
desmaiada até amanhã de manhã.
- Pra ela continuar sonhando bonito?
- Não. Porque se ela acorda ela começa a contar o
desmaio e fica falando a noite inteira. - Me desentorta?
- Desentorto.
- Então desentorta.
Desentortei. E aí o Alfinete de Fralda voltou pro bolso dele
na maior alegria: tinha mostrado que servia pra muita coisa
sim.
 
 
7
TERRÍVEL VAI EMBORA
 

 
Acordei com o Afonso apavorado:
- Raquel, o Terrível fugiu!
- Mas como é que pode? A bolsa não ficou fechada de
noite?
- Na certa o fecho abriu.
Fiquei danada com o fecho, fui logo desabafando:
- Seu chato! Como e que você deixa o Terrível fugir?
Mas o fecho é um bobalhão, até hoje não aprendeu a falar
coisa nenhuma. Só fica naquele tlique-tlique e pronto. E na
hora que eu desabafei com ele a única coisa que ele
encontrou pra me dizer foi um tlique com cara de dor. Foi aí
que eu vi que ele estava todo arranhado por dentro, coitado.
O Terrível na certa tinha lutado com ele e ele não teve outro
remédio senão abrir.
O Afonso me mostrou um bilhete que tinha achado no
fundo da bolsa. Dizia assim:
 
Fui brigar a briga que eu tinha que brigar.
Pra mostrar que eu ainda posso ganhar.
Terrível.
 
Olhei pro despertador da minha irmã. Eram cinco horas da
manhã.
- A que horas ele ia brigar, Afonso?
- Bem de noite.
- A noite tem tanta hora.
- Qual delas eu não sei.
- Mas você sabe onde ia ser a briga?
- Na Praia das Pedras.
- Então vamos lá.
- E se o pessoal acorda e não te vê?
- É cedo: dá tempo de ir e voltar antes de todo o mundo
acordar.
Mas o Afonso não se mexia.
- Vamos de uma vez, Afonso!
- Eu tô com medo.
- De quê?
- E se ele não ganhou?
- Não adianta ficar pensando, o melhor é ir lá ver.
E a gente foi.
 
A Praia das Pedras tá sempre meio vazia: é contramão, o
mar é ruim, e tem muita pedra na areia. De noite então fica
um deserto. Foi por isso que o pessoal fez a briga lá. Era um
pessoal muito barra pesada: eles sabiam que briga de galo é
proibido, mas eles sabiam também que fazendo a briga de
noite lá na Praia das Pedras ninguém ia ver.
Quando a gente chegou viu a marca de uma roda na areia.
O Afonso explicou que o pessoal sentava no chão fazendo
roda pra ver a briga e apostar.
A função toda já devia ter acabado há muito tempo porque
não tinha nem galo nem gente por perto. Mas no meio da
roda tinha uma bagunça danada. Tudo cavado. Risco pra
todo lado fazendo desenho de briga. Tinha sangue no
desenho. E na praia tinha um jeito de chuva. Pra falar a
verdade, já estava pingando. E tinha umas penas no chão.
- São do Terrível?
- São.
Eram duas.
Nessa hora a gente ouviu um gemido:
Bzz(((uiu))u))vbvbvbv?
O Afonso tomou um susto:
- Isso na língua da Guarda-chuva quer dizer socorro.
Abri a bolsa e olhei dentro.
- A Guarda-chuva sumiu!
Na afobação, no nervoso, ninguém tinha visto o bolso dela
vazio.
- Então foi ela mesmo que gemeu.
A gente foi correndo espiar atrás das pedras. Acabamos
encontrando a coitada da Guarda-chuva caída na areia, já
cansada de pedir socorro. E foi só ela ver o Afonso que
desatou a falar. Falou tanto que eu cheguei a me deitar pra
dormir. Mas não dormi não: a cara do Afonso foi ficando tão
ruim que eu perdi o sono. Às vezes eu perguntava:
- O que é que ela tá contando?
Mas ele nem ligava, continuava escutando. E a cara
piorando. Não era só a cara que piorava: a crista
desmoronou, a cabeça ficou baixa, e as penas do rabo dele
que eram sempre tão animadas, ficaram tão murchas que
dava até pena.
Lá pelas tantas a Guarda-chuva parou de falar. Com muito
cuidado o Afonso pegou ela nas asas e me entregou.
- Guarda ela, Raquel. A coitadinha não pode se mexer
mais; quebrou as varetas boas que ainda tinha.
Arrumei a Guarda-chuva no bolso.
- Mas o que é que aconteceu, Afonso?
- Quando ela acordou do desmaio, viu o Terrível fugindo da
bolsa amarela. Se agarrou nele e veio junto, o tempo todo
falando, falando, querendo convencer o Terrível que, ele não
tinha nada que brigar. Mas ele nem dava bola. Corria. Voava.
Chegou aqui na praia e pulou logo pra dentro da roda.
Quando viram a Guarda-chuva agarrada no Terrível,
desataram a rir. Disseram pra ela ir embora senão o Crista
de Ferro acabava com ela também. Mas ela nem ligou;
continuou falando. Riram mais. Ela continuou não ligando: o
que interessava era ajudar o Terrível. Aí o pessoal se zangou,
pegou ela de jeito e, zuque! varejou longe. Ela caiu ali.
Quebrou tudo que ainda não tinha quebrado, e o que já tava
quebrado ainda quebrou muito mais.
Ele contou aquilo baixinho, enquanto ia andando pra roda.
Fui indo atrás.
- Mas ela viu a briga?
Ele parou e ficou olhando as duas penas.
- Viu sim. Deu pra ver.
- E daí?
- Falou que o Terrível apanhou até dizer chega.
- Não pode ser.
- Foi.
- Mas ele disse que vinha aqui pra mostrar que ia ganhar.
- O Crista de Ferro ganhou.
- Aposto que ela não viu direito, Afonso.
- Viu sim.
- Tava escuro, ela viu mal.
- Ela vê bem.
- E onde é que deixaram o Terrível?
- Levaram embora. Disseram que era pra não ficar nada na
areia. Pra ninguém ver que teve briga de galo aqui. - Pegou
as penas. - Mas esqueceram as penas. - Fez festinha nelas
devagar. - Vou guardar de lembrança.
Fiquei olhando a roda. Gente pequena usava roda pra
brincadeira: ciranda, jogo de prenda, chicote-queimado…
Mas gente grande inventava umas coisas tão esquisitas pra
fazer roda. Perguntei:
- Você acha que se não tivessem costurado o pensamento
do Terrível com a tal linha bem forte ele tinha vindo aqui
brigar?
Mas o Afonso nem escutou. Já ia lá na frente. Numa pressa
danada. Andando diferente, olhando pro chão - pra ver se
ninguém via que ele estava morrendo de chateação.
 
8
HISTÓRIA DE UM GALO DE BRIGA E DE UM
CARRETEL DE LINHA FORTE
 

 
Eu tinha dito que nunca mais na vida, até ser grande, eu
escrevia outro romance. Mas aquele negócio que aconteceu
com o Terrível me deixou tão - sei lá - tão diferente, que eu
não parava mais de pensar nele. Quando eu vi já estava
escrevendo uma história contando tudo que eu acho que
aconteceu no duro. Porque eu tenho certeza que a Guarda-
chuva não viu direito. Vou copiar aqui o que eu escrevi:
 
Assim que ele nasceu resolveram que ele ia ser um galo
de briga tão brigão, tão ganhador de todo o mundo, tão
terrível, que o melhor era ele se chamar Terrível de uma vez
e pronto.
Porque no galinheiro onde ele morava era assim mesmo
mal os pintinhos nasciam, os donos do galinheiro já
resolviam o que é que cada um ia ser:
- Você vai botar ovo.
- Você vai ser tomador-de-conta-de-galinha.
- Você vai ser galo de briga.
- Você vai pra panela.
E não adiantava nada os pintinhos quererem ser outra
coisa: os donos é que resolviam tudo, e quem não gostou
que gostasse.
Terrível tinha um primo chamado Afonso. Os dois eram
enturmados que só vendo, batiam cada papo bom mesmo.
Quando os donos viram aquilo, pronto: separaram os dois. E
disseram:
- Galo de briga não pode gostar de ninguém. Galo de
briga só pode gostar de brigar.
Terrível foi crescendo, foi crescendo, ficou grande. E os
donos todo o dia treinando ele pra brigar. Mas quanto mais
treinavam o Terrível, mais o Terrível ia ficando com uma
vontade danada de se apaixonar. Porque ele era assim:
gostava demais de curtir a vida: O problema é que botavam
ele pra brigar, e todo o mundo sabe que briga é o tipo da
coisa que não combina com curtição.
Até que um dia ele se apaixonou por uma franguinha que
era uma graça. E aí aconteceu o seguinte: na hora de brigar
ele começava a pensar nela; em vez de atacar o inimigo ele
desenhava no chão um coração. Os donos ficaram furiosos
e trancaram o Terrível num galinheiro de parede bem alta.
Não dava mais pra ele ver a namorada, não dava pra ver
mais ninguém. Depois trouxeram um outro galo que
também estava treinando pra ser galo de briga e deixaram
os dois juntos: era pra eles brigarem bastante.
 
Mas o Terrível foi logo achando que o outro galo era legal,
e então deu um vôo, roubou uma meia de mulher que tava
pendurada no varal, rasgou um pedaço, encheu de folha de
pena de tudo que encontrou, amarrou com o outro pedaço e
fez uma bola. Em vez de brigar os dois foram jogar futebol.
Foi aí que os donos disseram:
- O jeito é fazer o Terrível pensar do jeito que a gente quer
que ele pense.
- Mas que jeito? Bolaram, bolaram, e acabaram
resolvendo que o jeito era costurar o pensamento do
Terrível e só deixar de fora o pedacinho que pensava: “Eu
tenho que brigar! Eu tenho que ganhar de todo o mundo!” O
resto todo sumia dentro da costura. E resolveram:
- Vamos costurar com uma linha bem forte pra não
rebentar.
 
A LOJA DAS LINHAS era uma loja que só tinha linha. De
tudo quanto é jeito e cor. Na prateleira do fundo moravam
dois carretéis, que há muito tempo estavam ali, um do lado
do outro, esperando pra ser comprados. Um era carretel de
linha de pesca; o outro, de linha forte. As duas linhas batiam
papo até não poder mais:
- Puxa vida, ainda bem que eu nasci linha de pesca: vou
viver no mar, no sol, pegando peixe, vai ser legal. Será que
o meu comprador vai ter barco?
- Você queria barco a vela ou de motor?
- Motor. Vai mais depressa. Respinga água. Vejo mais mar.
A Linha Forte suspirava:
- Você que é feliz: sabe direitinho a vida que vai ter. Eu
não. Passo o dia pensando no quê que vão me usar.
- Você queria ser usada pra quê?
- Ah, pra costurar lona de barraca de acampamento! Já
pensou? Viver sempre lá fora, acampando aqui, ali, viajando
pra baixo e pra cima, conhecendo uma porção de lugares
diferentes, que maravilha!
As duas queriam viver no mar, no mato, lá fora, sempre lá
fora: a Loja das Linhas era tão apertada, abafada, tão
sempre de luz acesa.
Quando fechavam a loja de noite, e elas viam que outro
dia tinha acabado e nenhum comprador tinha aparecido,
elas ficavam meio na fossa e diziam:
- Puxa, a gente vai acabar mofando de tanto ficar nessa
prateleira.
Até que um dia os donos do Terrível entraram na loja e
compraram a Linha Forte. Compraram sem dizer pra que
estavam comprando.
Quando a Linha de Pesca viu a amiga indo embora, quase
morreu de tristeza. Só não morreu porque estava numa
curiosidade danada pra saber como é que ela ia ser usada.
E então foi atrás pra saber. Esperou eles entrarem em casa,
e aí ficou espiando pelo buraco da fechadura. Viu direitinho
quando fizeram um talho na cabeça do Terrível, tiraram o
pensamento dele lá de dentro, costuraram ele todo com a
Linha Forte, só deixaram descosturado o pedaço que
pensava “tenho que brigar! tenho que ganhar de todo o
mundo!” Depois viu quando eles enfiaram de novo o
pensamento na cabeça e costuraram o talho com um
restinho da Linha Forte que tinha sobrado. Nessa hora a
Linha de Pesca sentiu uma pena horrível da Linha Forte:
“Coitada! Ela queria tanto viver viajando, no sol, no vento,
sempre acampando, e acaba desse jeito, fechada pra
sempre no pensamento do galo.” Voltou pra loja numa
tristeza daquelas. Se ajeitou na prateleira e continuou
esperando um comprador.
O tempo foi passando. Terrível só pensava o tal pedaço
descosturado. E então começou a ganhar tudo quanto é
briga. Todo o mundo apostava nele. Os donos pegavam o
dinheiro, e em vez de dar pro Terrível, eles diziam:
- Bobagem. Pra que que galo precisa de dinheiro? - E
metiam o dinheiro no bolso.
Terrível não ligava a mínima porque o pedaço do
pensamento dele que pensava “puxa vida, eu dou esse duro
todo e eles é que ficam com o dinheiro” também estava
costurado.
E foi assim que o Terrível ganhou cento e trinta lutas!
Durante esse tempo que passou, a vida da Linha Forte
não foi mole: como ela morava no pensamento do Terrível, e
como ele pensava sempre a mesma coisa, a vida dela era
chatíssima, não variava nunca. Então ela dormia pra passar
o tempo. Dormia até dizer chega. E às vezes pensava: eu
preciso dar um jeito da minha vida melhorar. Mas acabava
não dando pra encontrar um jeito ela precisava largueza pra
procurar, e lá dentro ela vivia muito apertada.
O corpo do Terrível foi cansando. Um dia ele lutou com um
galo mais novo e mais forte chamado Crista de Ferro,. e
perdeu. Lutou outra vez. E perdeu de novo. Os donos do
Terrível ficavam danados, mas não deixaram o Crista de
Ferro acabar com o Terrível. Marcaram a terceira luta dos
dois. Na praia. Bem escondida: ia ser uma luta feia. E
disseram:
- Olha aqui, Terrível, o negócio é o seguinte: ou você
ganha essa briga ou a gente deixa o Crista de Ferro abotoar
teu paletó.
O Terrível ficou supernervoso, mas como o pensamento
dele nunca variava, ele nem pensou em fugir nem nada. Foi
aí que ele encontrou o Afonso, o tal primo que era
enturmado com ele.
O Afonso tinha fugido do galinheiro porque queriam que
ele fosse tomador-de-conta-de-galinha e ele tinha horror
daquela vida. Andava escondido na bolsa de uma amiga
dele chamada Raquel.
Quando o Afonso e a Raquel souberam da história toda,
eles viram logo que o Crista de Ferro ia acabar com o
Terrível. Então prenderam ele na bolsa. Mas na noite da
briga o Terrível conseguiu sair da bolsa e correu pra praia.
Aí a Linha Forte ficou na maior aflição: ela sabia muito bem
que o Terrível ia morrer na briga; e ele morrendo, ela morria
também. Ela era uma linha dorminhoca, adorava uma
soneca, mas também não queria dormir sempre, pra toda a
vida - assim que nem é a morte. Começou a fazer uma força
danada pra ter uma ideia, pra dar um jeito de salvar a
situação.
- Entra na roda! Entra na roda!
Era assim que todo o mundo gritava quando o Terrível
chegou na praia.
O pessoal que apostava estava sentado na areia fazendo
roda, e o Crista de Ferro no meio da roda esperando.
Que força que a Linha Forte fazia pra encontrar uma ideia,
pra dar um jeito!
Terrível pulou pro meio da roda. A briga começou.
Crista de Ferro lutava muito melhor, e achava que lutar
era legal (na certa o pensamento dele também tinha sido
costurado).
Terrível começou a perder. Perdeu sangue, perdeu duas
penas, foi ficando cansado.
A Linha Forte cada vez fazia mais força pra dar um jeito.
Quanto mais o Terrível apanhava, mais força ela fazia. Mais
força. Mais força.
Até que de repente - plá! ! ! - de tanto fazer força,
rebentou. E foi só ela rebentar que o pensamento do
Terrível descosturou, abriu todinho, e ele desatou a pensar
mil coisas, ficou até tonto de tanto pensamento junto. Num
instante entendeu tudo que estava acontecendo, e é claro
que não sendo bobo pensou logo: besteira eu morrer nessa
praia só porque eles cismaram que eu tenho que brigar com
o Crista de Ferro. E se mandou! Correu pro mar.
Saiu todo o mundo atrás, o Crista de Ferro também.
Quando o Terrível viu o pessoal chegando perto, entrou
ainda mais pra dentro do mar. Foi aí que ele viu um barco
parado nágua. Dentro do barco tinha um homem pescando
e curtindo tanto a pescaria que nem tinha visto ninguém: só
olhava pro mar e mais nada.
Terrível foi indo pro barco. A Linha Forte se apavorou
outra vez: Terrível não sabia nadar, na certa ia se afogar, e
ele se afogando, ela se afogava junto com ele. Era azar
demais! mal se livrava de uma e caía noutra.
O pessoal já estava pertinho. Terrível desatou a engolir
água, começou a afundar.
E foi nessa hora - justinho nessa hora - que a linha do
anzol do homem do barco reconheceu o Terrível. Ela viu o
que é que estava acontecendo, se lembrou da amiga dela
costurando o pensamento do galo e - zuque! - deu uma
guinada e jogou o anzol na crista do Terrível. O anzol fisgou
a crista, e o dono do barco - crente que aquele peso era
peixe - suspendeu o caniço e foi enrolando a Linha de
Pesca. Enrolou, enrolou, o Terrível foi chegando perto do
barco, chegando, chegou! Só aí é que o homem viu que não
era peixe, era galo. Mas não ligou: ele estava mesmo
querendo uma companhia. E então ligou o motor e o barco
foi embora.
 
O barco andou mar à beça, e quem gostou mais foi a
Linha Forte: ela adorava viajar, e era um tal de ver ilha, de
ver porto, de ver peixe, de ver coisa que só vendo.
Ai, um dia, o barco chegou num lugar bem longe e Terrível
desembarcou. Era lá que ele ia viver. Sossegado. Sem ter
que ganhar de todo o mundo. Lá ele ia arranjar amigo e
desenhar coração. E não ia mais ter dono nenhum
costurando o pensamento dele.
 
Quem viu na praia as duas penas que o terrível perdeu,
pensou até que ele tinha morrido. Bobagem. Ele agora tá
curtindo a vida no tal lugar bem longe. Ele e a Linha Forte.
Os dois.”
 
 
9
COMECEI A PENSAR DIFERENTE
 

 
Enquanto eu escrevia a “História de um Galo de Briga e de
um Carretel de Linha Forte”, a vontade de escrever andou
tão magrinha que já não pesava quase nada. Que alívio.
Acabei até mudando de ideia: resolvi que se eu queria
escrever qualquer coisa eu devia escrever e pronto. Carta,
romancinho, telegrama, o que me dava na cabeça. Queriam
rir de mim? Paciência. Melhor rirem de mim do que carregar
aquele peso dentro da bolsa amarela.
O Afonso andava muito pensativo. Saía todos os dias,
ficava fora um tempão.
- Onde é que você andou, hem, Afonso?
- Procurando uma ideia por aí.
- Achou?
- Não.
Falava pouco, nem com a Guarda-chuva ele conversava.
Quando acabei de escrever a história do Terrível, eu dei
pra ele ler. Aí ele ainda ficou mais pensativo. Perguntou:
- Você acha que foi isso mesmo que aconteceu?
- Acho.
- Então de vez em quando é bom a gente ir na Praia das
Pedras ver se o barco aparece de novo.
- Vamos hoje?
Fomos. Mas não tinha barco nenhum. Quando a gente ia
voltando, de repente o Afonso berrou:
- Achei!
- O quê?
- A ideia.
- Onde?
- Dentro da tua história! - E ficou alegre que só vendo,
desatou até a cantar:
 
“Achei, tá achado
não vou mais desachar.
Achei, tá achado.
Agora é começar.”
 
 
- Mas qual é a ideia, Afonso?
- Vou sair pelo mundo lutando pra não deixarem costurar o
pensamento de ninguém. – E começou logo a fazer planos: ia
aqui, ia ali, ia fazer, ia acontecer, ia atravessar o mar, ia
achar o Terrível e não sei que mais. Aí parou e franziu a
crista:
- Só tem um problema: o mundo é grande demais, se eu
saio lutando a pé vou ficar muito cansado.
- Ué, você não sabe voar?
Ele torceu o bico, fez cara de pouco caso:
-Vôo de galo é voinho à toa. De voinho em voinho eu não
vou longe.
- Você é um galo diferente, por que é que você não
experimenta voar mais alto?
- Pois aí é que está. - E então ele me contou que toda a
vida teve mania de voar bem alto. Mas nunca experimentou
porque tinha um medo danado de cair. Até que um dia
tomou coragem e voou pro telhado de uma casa. E depois
pra folha mais alta de um coqueiro. E aí saiu voando pra ver
se chegava numa nuvem. Quando já ia chegando perdeu a
força e começou a cair. Foi caindo cada vez mais depressa. E
se não é a sorte de um urubu ir passando e perguntar “quer
carona?”, era um galo morto.
- Fiquei apavorado, sabe Raquel? Daí pra frente toda
semana eu resolvo: segunda-feira bem cedo vou
experimentar outra vez. Mas na hora eu não tenho coragem
e deixo pra outra segunda-feira.
- Há quanto tempo?
- Desde pequeno.
A Guarda-chuva quis saber que tanto o Afonso falava. Ele
contou os planos todos na língua dela. Pra quê! Ela falou,
falou, falou, e no fim chorou.
- Que que há, Afonso? Por que é que ela tá chorando desse
jeito?
O Afonso tava com uma cara tão triste que eu pensei que
ele ia chorar também.
- Ela quer ir comigo; disse que não vai aguentar a
saudade. Mas a questão é que ela não pode ir.
- Por quê?
- Ué, ela tá toda quebrada, não pode nem se mexer.
O Alfinete de Fralda saltou do bolso bebê e a pontinha dele
riscou na fazenda da bolsa:
- No dia que eu saí da fábrica, eu vi uma casa que
consertava tudo. Consertava guarda-chuva também.
O Afonso se animou:
- Vamos lá!
Botei o Alfinete na palma da minha mão, e quando cheguei
na rua pedi pra ele mostrar o caminho. A pontinha dele foi
riscando:
- Em frente. Dobra. Esquerda. Vai. Direita. Segue.
Atravessa.
Vira. Toda a vida. Vai. Aqui, é aqui!
A loja se chamava:
 
A CASA DOS CONSERTOS
 
Entrei. A Casa dos Consertos se dividia em quatro partes.
Na primeira tinha uma menina assim da minha idade; na
outra tinha um homem; na outra, uma mulher, e na outra,
um velho. A menina estava estudando, a mulher cozinhando,
o homem consertando um relógio, o velho consertando uma
panela.
Tossi - pra ver se eles olhavam pra mim. Mas os quatro
estavam tão interessados nas coisas que eles tavam fazendo
que nem me viram nem nada.
A mulher cozinhava cantando baixinho. Uma música boa
mesmo da gente ouvir. Volta e meia ela provava a comida, e
aí ficava com uma cara ainda mais feliz.
Tinha um bolo assando no forno; a casa toda cheirava a
bolo. Um cheiro tão bom, que o Afonso, as minhas vontades,
o Alfinete, todo o mundo resolveu espiar pela janela pra ver
a cara do cheiro. Falei:
- Hmm, que delícia! - Mas os quatro não ouviram.
A menina estava fazendo o mapa do mundo. Caprichava
nas cores pra ver se cada país ficava tão bom quanto o
outro, escrevia nome de capital, de cidade, parava pra
pensar, olhava nos livros, escrevia de novo, desenhava outra
vez.
O homem botou o relógio no ouvido e ficou todo satisfeito:
- Ah, agora sim, o tique-taque tá bom, agora sim!
E o velho espiou o fundo da panela e falou:
- Vou soldar essa panela tão bem soldada que ela ainda vai
cozinhar muitos anos. - Deu urna risada. - Bobalhona!
pensou que só porque estava velha não servia pra mais
nada.
E os quatro pararam o que tavam fazendo só pra rir da
panela, que era tão boba, coitada, que achava que só porque
era velha não servia pra mais nada.
A parede do fundo da Casa dos Consertos só tinha livro.
Livro do chão até o teto.
O Afonso achou que tinha que dizer uma coisa e disse:
- Oi. - Mas bem baixinho. Acho que de propósito pra
ninguém ouvir.
O homem pendurou o relógio na parede:
- Pronto, você já tá curado. - Pegou um vaso quebrado e
fez uma festinha nele: - Agora vamos ver como é que eu colo
você. Examinou ele bem. - Você vai ficar novo. Ninguém vai
pensar que já quiseram até te jogar fora.
Tinha milhões de coisas penduradas na parede: cadeira,
roupa, caneta, rádio, bicicleta, tinha até um cachorro de
verdade com a boca amarrada. Fiquei boba: será que ele
também tava ali pra consertar?
Aí eles me viram. Deram um oi superlegal. Peguei a
Guarda-chuva e mostrei pro homem:
- O senhor podia consertar essa Guarda-chuva pra mim?
Ele examinou a Guarda-chuva com muito cuidado:
- Puxa, ela deve ter levado cada tombo!
- Se levou. E agora não pode nem abrir nem passar pra
grande nem nada. Tem conserto?
- Claro que tem. Quase tudo tem conserto.
- E o cachorro? Também tá ali pra consertar?
Quando ele ia responder, o relógio começou a bater. Era
um relógio grandão. Pendurado na parede. E batia hora
tocando música. Mas não era música antiga não: era uma
música tão quente que todo o mundo ficou logo ligado e
deixou tudo que tava fazendo pra ir pro meio da casa dançar.
Faziam uns passos bacanas, riam, cantavam, cada um
curtindo a farra mais que o outro. Me chamaram pra dançar.
Fiquei assim meio sem jeito, sem saber se ia ou não. Mas o
relógio tocava cada vez mais gostoso, e o Afonso foi ficando
tão animado que pulou pra fora da bolsa e gritou:
- Vamos lá, Raquel!
E aí eu fui também. O Afonso dançava em frente da
menina, e eu dançava em frente do velho. Ele fazia os
passos mais incríveis que eu já vi. Quis copiar, errei tudo, dei
pra rir, todo o mundo riu também. Mas não era só dos erros
que a gente ria; era de tudo: volta e meia o Afonso berrava
um cocoricó genial, o velho não parava de inventar passo
maluco, o relógio balançava certinho com a música; era tudo
tão bom, tão gozado, que era mesmo pra gente rir.
Nem sei quanto tempo durou a curtição. Só sei que de
repente, a música parou. Tudo quanto é música que acaba,
vai ficando mais devagar, mais isso, mais aquilo, e a gente
vê que ela tá chegando no fim. Mas a música do relógio não.
Parou de estalo, sem nenhum aviso. E aí a menina, o
homem, o velho e a mulher também pararam de estalo.
Juntinho com a música. Olharam pra ver onde e que tinham
parado. O homem tinha parado junto do fogão, o velho junto
do mapa, a menina junto da Guarda-chuva, e a mulher perto
da panela e da solda. Nem olharam outra vez: o homem foi
logo cozinhando, o avô abriu uns livros e começou a estudar,
a mulher desatou a soldar a panela, e a menina examinou a
Guarda-chuva com jeito de quem entende de guarda-chuva
e me perguntou:
 

 
- Você tem pressa?
- Hmm-hmm.
- Então amanhã tá pronto.
Mas eu fiquei parada, querendo entender melhor a gente
daquela casa. Apontei o homem:
- Ele é teu pai?
- É. - E aí ela apresentou os três: - Meu pai, minha mãe e
meu avô.
Eles me deram um sorriso legal, e eu cochichei pra
menina:
- Por que é que ele tá cozinhando?
Ela me olhou espantada:
- O quê?
Perguntei ainda mais baixo:
- Por que é que ele tá cozinhando bastante e tua mãe
soldando panela?
- Porque ela hoje já cozinhou bastante e ele já consertou
uma porção de coisas; e eu também já estudei um bocado e
meu avô soldou muita panela: tava na hora de trocar tudo.
- Por que?
Pra ninguém achar que tá fazendo uma coisa demais. E
pra ninguém achar também que está fazendo uma coisa
menos legal do que o outro.
- Teu avô tá estudando?
- Tá
- Velho daquele jeito? (Era meio chato conversar com ela:
só eu cochichava; ela falava normal, todo o mundo ouvia.)
- Ele só é velho por fora. O pensamento dele tá sempre
novo.
- Por que?
- Porque ele tá sempre estudando. Que nem meu pai e
minha mãe.
- Eles também estudam?
- Aqui em casa a gente não vai parar de estudar.
- Toda a vida?
- Tem sempre coisa nova pra aprender.
- E quem é que resolve o que cada um estuda?
- Como é?
- Quem é que resolve as coisas? Quem é o chefe?
- Chefe?
- É o chefe da casa. Quem é? Teu pai ou teu avô?
- Mas pra que que precisa chefe?
- Pra resolver os troços, ué; pra resolver o que é que cada
um vai estudar.
- Cada um estuda o que gosta mais. Tem livro aí; a gente
escolhe o que quer. O vovô agora tá estudando teatro de
bonecos: ele vai fazer um lá na praça.
- Mas… e o resto?
- Que resto?
- Não tem sempre uma porção de coisas pra resolver?
Quem é que resolve?
- Nós quatro. Pra isso todo dia tem hora de resolver coisa.
Que nem ainda há pouco teve hora de brincar. A gente senta
aí na mesa e resolve tudo que precisa. Resolve como é que
vai enfrentar um caso que a vizinha criou; resolve se vai
brincar mais do que trabalhar; ou estudar mais do que
brincar; resolve o que é que vai comer; quanto é que vai
gastar em roupa, em comida, em livro; resolve essas transas
todas. Cada um dá uma ideia. E fica resolvido o que a
maioria acha melhor.
- Você também pode achar?
- Claro! eu também moro aqui, eu também estudo, eu
também cozinho, eu também conserto. Aqui todo o mundo
acha igual.
- Mas pode?
- Por que é que não pode?
Aí. o relógio bateu outra vez. O pai ficou ainda mais
animado e gritou:
- Almoço! A comida tá pronta. - Abriu o forno, tirou o bolo,
perguntou se eu queria comer com eles, eu aceitei correndo.
E perguntei pra menina:
- Como é que você se chama, hem?
- Lorelai.
Fiquei na Casa dos Consertos nem sei quanto tempo. Pra
contar a verdade, não vi o tempo passar. O avô da Lorelai
me contou como é que ia fazer o teatro de bonecos; o pai da
Lorelai me ensinou a fazer umas panquecas geniais; e a mãe
da Lorelai conversou tanto tempo comigo que parecia até
que ela não tinha nada que fazer. Contei pra ela como é que
as minhas vontades engordavam; contei do quintal da minha
casa; e quando eu mostrei os retratos ela achou o quintal tão
bonito que eu resolvi dar os retratos pra ela.
- E como é que vai ser quando você quiser olhar os
retratos?
- Eu venho aqui. É uma boa desculpa pra vir sempre.
- Ela riu. E eu fiquei achando que gente grande não era
uma turma tão difícil de entender que nem eu pensava
antes.
Aí o Afonso falou:
- Olha só Raquel, já é de noite.
- Chi! ! - Me apavorei toda: eu tinha saído de manhã, o
meu pessoal já devia estar um bocado nervoso, como é que
eu nem tinha visto o tempo passar? Me despedi correndo de
todo o mundo, a Lorelai foi comigo até a esquina, a gente
combinou ficar amiga pra sempre, e ela já ia voltando
quando o Afonso enfiou a cabeça na janela e perguntou:
- E o cachorro pendurado? também tá lá pra consertar?
- Tá sim.
- O que é que ele tem?
- Um grilo esquisito: só pensa em morder os outros. A
gente vai ver se conserta o pensamento dele pra fazer ele
pensar outros troços também. Tchau!
No caminho o Afonso falou:
- Aposto que costuraram o pensamento daquele cachorro.
Viu só quanta gente de pensamento costurado? Eu tenho
mesmo que sair pelo mundo lutando pela minha ideia.
O pessoal em casa já tava nervoso. Contei da Casa dos
Consertos, mas não adiantou: levei castigo: ia ficar uma
semana sem poder sair. Justinho minha última semana de
férias.
Não sei se foi a chateação do castigo ou o que foi: me
deitei e não dormi.
Apagaram a luz. Fiquei pensando na Casa dos Consertos.
Todo o mundo dormiu, só pra mim é que o sono não
chegava.
Antes, me dava uma aflição danada quando o pessoal todo
dormia e só eu ficava acordada. Pra me distrair do escuro eu
ficava fazendo de conta que eu não era mais eu. Ia
inventando como é que eu me chamava:
Reinaldo
Arnaldo
Aldo
Geraldo
Eu era um deles. Jogando futebol, trepando em árvore,
soltando pipa, sendo escritor (quem abe era melhor ser
músico?), resolvendo sozinho, ninguém me dizendo:
- É pra homem.
- Por quê?
- Porque sim.
- Porque sim não explica nada. Me explica!
- Depois.
- Quando?
- Depois:
Pedro
Antônio
Pedro Antônio ou só Antônio?
Pedro só.
Mas o depois demorava, demorava, quem diz que
chegava? e eu continuava inventando:
Roberto
Alberto
Norberto
Gilberto pra ver se acabava dormindo e a noite passando.
Mas isso era antes. Naquela noite fiquei pensando na Casa
dos Consertos e não liguei a mínima de perder o sono. Pra
ser franca, até que curti. E, por falar em curtição, puxa vida,
como a mãe da Lorelai curtia ser mulher; e como a Lorelai
curtia ser menina. Ela achava que ser menina era tão legal
quanto ser garoto. Quem sabe era mesmo? Quem sabe eu
podia ser que nem a Lorelai?
Quando eu estava no melhor do pensamento, o Afonso me
chamou baixinho:
- Ei! Como é que vai ser, hem?
- O quê?
- A Guarda-chuva fica pronta amanhã, mas você tá de
castigo uma semana. Como é que vai ser?
- Você vai lá sozinho, apanha a Guarda-chuva, leva uma
carta que eu vou escrever pra Lorelai, e diz que quando o
meu castigo acabar eu apareço.
- Mas eu não tenho dinheiro pra pagar o conserto.
- Nem eu.
- Então como é que vai ser?
Pensei.
- Leva a “História de um Galo de Briga e de um Carretel de
Linha Forte”. Vê se eles trocam a história pelo conserto.
 
O pessoal da bolsa amarela estava louco, pra ver se na
hora da Guarda-chuva desenguiçar, a história dela
desenguiçava também. Depois do almoço o Afonso saiu na
moita com a minha carta e com a história do Terrível debaixo
da asa. Demorou. Demorou toda a vida. Quando ele e a
Guarda-chuva chegaram eu já tava aflita:
- O que é que aconteceu, Afonso?
- Olha aí como ela tá novinha em folha!
A Guarda-chuva estava com a cara mais feliz do mundo.
Abriu, fechou, tossiu, espirrou, passou de pequena pra
grande e de grande pra pequena, riu e mostrou as varetas
novas.
- E a história dela? também desenguiçou?
- Pois foi por isso que eu demorei: ela ficou até agora
lembrando o resto da história.
- Ah, conta! Conta pra gente!
E o Afonso então contou:
- No dia que a Guarda-chuva enguiçou, tinham saído com
ela debaixo de uma chuva danada. Chegaram em casa e
deixaram ela aberta junto da janela pra secar. Ela ficou com
frio, e pra ver se esquentava, começou a passar de pequena
pra grande, de pequena pra grande, até que estalou,
enguiçou, não passou pra mais nada. Foi nessa hora que
bateu um vento forte. O vento levou a chuva embora, trouxe
uma tarde bonita, passou rentinho da janela e vuuuuuuuuu!
carregou a Guarda-chuva pelos ares. Ela morava no oitavo
andar, tá bem?
- Ah, coitada! caiu lá de cima?
- Coitada coisa nenhuma: desceu no macio, devagarinho,
voando um pouco pra cá, pra lá, vendo a vista, sentindo o
vento na cara; desceu que nem paraquedas. E a-do-rou!
Achou tão gostoso que já no meio do caminho resolveu que
ia mudar de vida: queria ser paraquedas.
- É mesmo?
- É. Mas não deu pé: caiu de mau jeito e quebrou quatro
costelas.
- Desde quando guarda-chuva tem costela?
- Tem vareta: dá no mesmo. Aí eles levaram ela pro
hospital. Mas se enganaram de médico e ela foi cair na mão
de um dentista. Ele obturava cárie o dia inteiro, só via cárie
na frente dele, nem reparou que ela era guarda-chuva,
obturou as varetas e pronto. Nunca mais a Guarda-chuva
funcionou: vareta é o tipo da coisa que a gente não pode
obturar. Então ninguém mais usava a Guarda-chuva. Ela
ficava pendurada o tempo todo num cabide que tinha perto
da janela. Se alguém dizia: “esse guarda-chuva…”
- Eles não sabiam que ela era mulher?
- Ela não conversava com ninguém: sabia que não
adiantava, eles não iam entender nada.
Então se alguém dizia: “esse guarda-chuva não serve
mais”, tinha logo um que falava: “serve sim! serve pra
enfeitar; ele é tão bonitinho!” E a Guarda-chuva ficava triste
que só vendo.
- Por que? Ela não gostava de ser bonitinha?
- Gostava. Mas ela achava que ser bonitinha só era muito
pouco: se de repente ela desbotasse, ela deixava de ser
bonitinha; aí ela não ia servir pra mais nada, porque a única
coisa que ela era, ela deixava de ser. Tá entendendo como é
que é?
- Mais ou menos. Depois eu vejo se entendo melhor.
Continua.
- Tinha também outra coisa que deixava a Guarda-chuva
na fossa: ela ficava olhando pra fora, pensando na curtição
de ser paraquedas, querendo tanto curtir outra vez! Voar
devagar; o vento na cara; cair de levinho no chão… Até que
um dia não resistiu mais: pulou pra janela, quase se
arrebentou de fazer força, e aí abriu um pouquinho. Esperou
um vento passar e lá se foi. Achou que no caminho ia abrir
mais.
- Ui, Afonso! É mesmo? Despencou lá de cima sem saber
se ia abrir ou não?
- Arriscou.
- Mas que risco !
- Riscão. Grande que nem a chateação de viver sempre ali
parada só sendo bonitinha e mais nada.
- E aí?
- Não abriu.
- Chi!
- Se esborrachou no chão, quebrou mais três costelas, não
aguentou nem levantar. Foi quando eu passei por ela.
Lembra? Naquele dia que a gente tava voltando da escola e
eu fui procurar uma ideia.
Foi só o Afonso acabar de contar a história, que a Guarda-
chuva desatou a falar pelos cotovelos.
- O que é que ela tá dizendo?
- Tá louca pra dar outra de paraquedas.
- Quando?
- Agora.
E aí a Guarda-chuva já queria sair da bolsa amarela e se
jogar pela janela. Foi um custo pra ela entender que tinha
que curtir um pouco as costelas novas antes de se arriscar
outra vez. Mas acabou entendendo. E todo o mundo então
foi dormir.
Eu já tava ferrada no sono quando o Afonso me acordou:
- Esqueci de contar, Raquel! O nome da Guarda-chuva
também desenguiçou. Sabe como é que ela se chama?
Nakatar Companhia Limitada.
- O quê?!
- É o nome da fábrica onde ela foi feita. Tudo que sai de lá
sai com esse nome.
- Que horror.
- Pois é.
No dia seguinte a gente começou a chamar a Guarda-
chuva de Nakatar Companhia Limitada. Mas não deu pé. E
então ela continuou Guarda-chuva mesmo.
10
NA PRAIA
 

 
Minha semana de castigo foi ótima: escrevi à vontade -
tudo que passava na minha cabeça, e tudo que acontecia
na bolsa amarela. Escrevi também pra turma da Casa dos
Consertos. Os quatro me responderam logo. Cada carta boa
mesmo. E eu fiquei pensando que fazia uma bruta diferença
a gente ter amigo.
 
Minha vida foi melhorando. Eu já não inventava muita
coisa, meu pessoal não ficava tão contra mim. Comecei
então a achar que ser menina podia mesmo ser tão legal
quanto ser garoto. E foi aí que as minhas vontades deram
pra emagrecer. Emagreceram, emagreceram, até que um
dia pensei: daqui a pouco elas vão sumir.
As aulas começaram de novo. Uma noite eu sonhei que
estava na praia soltando pipa. Acordei e falei pro Afonso:
- Sabe? Disseram que eu não podia soltar pipa.
- Por que?
- Falaram que era coisa de garoto.
- Ué!
- Tá vendo? Falaram que tanta coisa era coisa só pra
garoto, que eu acabei até pensando que o jeito era nascer
garoto. Mas agora eu sei que o jeito é outro. Vamos lá na
praia soltar pipa?
O Afonso topou. Comecei a juntar as coisas que precisava:
linha, tesoura, um vidro de cola. Pedi uns trocados pra
minha mãe e fui na papelaria comprar umas folhas de
papel, fino.
- Olha como o céu tá cinzento - o Afonso falou. - Compra
papel vermelho, vai ficar um bocado bonito no meio de
tanto cinza.
Comprei. Mas também comprei amarelo: tô sempre
achando amarelo genial.
- Você vai precisar de bambu.
- Não vou, não senhor.
- Vai, sim senhora, você não entende de pipa.
- Entendo.
- Vai precisar, Raquel!!
- Você vai ver como eu não vou.
E não comprei nem bambu, nem ripinha, nem nada.
Fomos pra Praia das Pedras. A Guarda-chuva desatou a
falar. Tão depressa que até se engasgou. E aí foi falando
engasgado até chegar na praia. Quando ela acabou, o
Afonso tava vibrando:
- Tá vendo, Raquel? não é à toa que eu gosto da Guarda-
chuva: ela tem ideias. Sabe o que é que ela me disse? Que
eu não preciso mais ter medo de voar alto. Ela vai junto
comigo, e se eu caio, ela dá uma de paraquedas; e se eu
caio de novo, ela dá outra; e assim toda a vida. Ela falou
que chegou a hora da gente sair pelo mundo lutando pela
minha ideia, chegou a hora de começar a vida de
paraquedas! - Pulou pra fora da bolsa, ajudou a Guarda-
chuva a saltar, e cantou em altos brados o tal do "Achei, tá
achado não vou mais desachar." Ao ver que não havia
ninguém na praia ela ficou ainda mais feliz:- veja como este
dia tão feio a praia está vazia, não há perigo de que
caiamos na cabeça de alguem.
A Guarda-chuva desengasgou e ficou pulando pra cá, pra
lá, abrindo, fechando, não sossegava. Qualquer um via logo
que ela estava na maior aflição pra começar vida nova, pra
subir de uma vez lá pro céu.
Fiquei parada. Sem saber se tava triste ou contente. Eles
indo embora a bolsa amarela ficava muito mais fácil de
carregar, mas… sei lá. Olhei o mar pra ver se via o barco
que levou o Terrível. Mas o mar tava vazio que nem a praia.
De repente, o Afonso ficou nervoso. Olhava o céu, abria as
asas, dava um voinho à toa. Ria amarelo e explicava:
- Tô esquentando. - E dava outro voinho de nada. Ficou
assim tanto tempo que a Guarda-chuva acabou reclamando.
Ele então botou a máscara e falou:
- Bom, lá vou eu, quer dizer, lá vamos nós.
- Pra que essa máscara, Afonso?
- Já pensou se eu encontro um avião lá em cima?
- O que é que tem?
 
 
 
 
- E se o meu antigo dono tá no avião e me vê pela janela?
- Apertou bem a máscara. - Já pensou se ele abre a janela,
me agarra e me leva de volta pro galinheiro? - Abriu as
asas. A Guarda-chuva, mais que depressa, se amarrou nele
com a correntinha, e ficou toda empinada, pronta pra entrar
em ação. Ele voou pra cima de uma pedra, se jogou no ar, e
começou a dar uma de passarinho, batendo as asas com
força pra tomar impulso e subir. E subir mais e mais.
Quando viu que já estava no alto, ficou tão feliz que caiu na
gargalhada. Ria pra chuchu. Não tinha nem mais força pra
bater asa. Começou a perder altura, se apavorou.
Quando eu vi que ele vinha caindo, me apavorei também.
E aí (coisa mais gostosa!) a Guarda-chuva abriu.
Foi só a Guarda-chuva abrir que o Afonso parou de cair.
Eles vieram descendo bem devagar; parecia até um
desenho parado no ar - ela bonita daquele jeito, ele com o
rabo ainda mais despenteado por causa do vento que ia
batendo nas penas - um desenho bonito mesmo da gente
olhar.
O vento levou eles pra lá, eu corri. Mas quando cheguei lá,
o vento levou eles pra cá, eu corri de volta, e aí a gente se
encontrou: eles tavam caindo de levinho na areia.
A Guarda-chuva estava tão feliz que nem levantou: ficou
com preguiça de tudo. Mas o Afonso cantou, virou
cambalhota, inventou passo de dança, o tempo todo
falando:
- Agora sim posso sair pelo mundo, voando bem alto sem
perigo de me esborrachar.
Agora sim posso lutar pela minha ideia. Agora sim vai ser
legal. - E de cambalhota em cambalhota chegou perto do
mar. Veio uma onda e, puf! pegou o Afonso. Ele levou um
trambolhão, quis levantar, a onda não deixou, ele sumiu.
- Afonso, Afonso!
Veio outra onda. E ficou vindo uma onda atrás da outra,
mas nenhuma trazia o Afonso de volta. Olhei pra areia: a
Guarda-chuva nem tinha visto nada, tava até dormindo.
Gritei pelo Afonso de novo. Mas ele não aparecia. Então
entrei no mar de uniforme, sapato, bolsa amarela e tudo.
Furei uma onda, mergulhei fundo, e aí só não fiquei de boca
aberta senão ia engolir muita água: o folgado do Afonso
estava lá na maior calma, batendo papo com uma porção
de peixes, contando a história do Terrível, dizendo que se
alguém quisesse costurar o pensamento deles, eles não
deviam deixar e patatipatatá. Quando me viu disse logo:
- Raquel, imagina que nenhum desses peixes tem nome.
Eles chamam os amigos de Ei! Psiu! Cara!
De repente, pela primeira vez na minha vida, achei Raquel
um nome legal; achei que não precisava de outro nome
nenhum. Abri a bolsa, tirei tudo quanto é nome que eu
guardava no bolso sanfona e dei pro Afonso. Ele foi
distribuindo pros peixes:
- Você aí! você gosta do nome André? Então toma de
presente. E você? Topa Reinaldo? ou prefere Geraldo? Ah,
você é mulher? Então quer Lorelai? Mas não deu pra ouvir
mais nada: meu fôlego acabou e eu tive que sair do mar.
Comecei a tremer de frio; o jeito pra esquentar era soltar
pipa. Recortei e colei os papéis pra fazer dois rabos bem
compridos. Quando o Afonso saiu do mar eu já estava quase
no fim. Ele ficou olhando de crista franzida:
- Que negócio é esse, Raquel? pra que dois rabos?
- São duas pipas, você solta uma e eu outra. Aí a gente vê
qual que sobe mais. - Preparei dois rolos de linha. - Pronto!
- Pronto o quê? Cadê as pipas?
Abri a bolsa amarela e tirei minha vontade de ser garoto e
minha vontade de ser grande. Elas tinham emagrecido
tanto que pareciam até de papel.
- Tão aqui. Agora é só pendurar o rabo e amarrar a linha.
O Afonso ficou no maior espanto:
- Você não vai mais esconder as vontades dentro da bolsa
amarela?
- Não. Elas viram que eu tava perdendo a vontade delas,
então perguntaram se podiam ir embora. Eu falei que sim.
Elas quiseram saber se podiam ir que nem pipa e eu disse:
“claro, ué”.
- E a tua vontade de escrever?
- Ah, essa eu não vou soltar. Mas sabe? Ela não pesa mais
nada: agora eu escrevo tudo que eu quero, ela não tem
tempo de engordar.
Os rabos ficaram um barato. Vermelho e amarelo. Peguei
a vontade de ser garoto; o Afonso pegou a vontade de ser
grande, e a gente ficou vendo de onde é que vinha o vento.
Quando eu berrei “já!” nós dois saímos correndo pras pipas
pegarem o vento. Lá se foram as duas com o rabo
sacudindo.
- Puxa vida, como eu curti soltar aquela pipa! Já tinha
cansado de ver garoto empinando pipa; sabia tudo quanto
era macete, sabia ver de onde vinha o vento, só não sabia
que era tão bom sentir a puxada da linha na mão.
A toda hora o Afonso gritava:
- A minha pipa tá mais alta! - E toca a dar linha.
Eu dava mais linha também:
- Que nada, ó a minha! olha só.
O tempo piorou; o céu foi ficando cheio de nuvem escura.
Toca a dar linha, toca a dar linha, minhas vontades já
estavam tão longe! A gente ficou olhando pra elas. Nem viu
a linha chegar no fim e ir embora também.
O vento soprou mais forte. As pipas abanaram o rabo e
sumiram atrás das nuvens. Ficamos esperando um tempão.
Mas elas não apareceram mais. Aí o Afonso resolveu:
- Bom, tá na hora de sair pelo mundo.
- Mas você já vai hoje?
- Agorinha.
- Mesmo?
- Mesmo.
Fiquei quieta. Pensando como é que ia ser. Ele acordou a
Guarda-chuva; depois falou:
- Vou sentir saudade de você, Raquel. Mas qualquer hora
dessas a gente dá um pulinho aqui.
- Tá. Quando eu vier procurar o barco eu procuro vocês
também.
- Não esquece de olhar atrás das pedras: vai ver a gente
tá lá fazendo um piquenique e você nem vê.
- Combinado.
A gente se abraçou forte, e a Guarda-chuva fez um
discurso enorme.
Quando ela acabou o Afonso traduziu:
- Ela disse “tchau”.
Os dois se prepararam; e quando ele saiu voando ela
ainda me jogou um beijo. Num instante eles sumiram.
Tanta coisa estava sumindo no ar que eu nem sei o que é
que eu pensei. Só sei que começou a chover, e quando fui
fechar a bolsa amarela eu vi o Alfinete de Fralda. Tirei ele
pra fora. Mais que depressa a pontinha dele abriu e foi
riscando a minha mão:
- Deixa eu ficar? Já tô tão habituado a morar na bolsa
amarela. Eu não peso nada… E é bom andar sempre
comigo: de repente você tem outra vontade que começa a
crescer demais e eu, pin! dou uma espetada nela. Deixa eu
ficar?
- Deixo.
- Deixa mesmo?
- Deixo sim.
- Então deixa.
Botei ele de novo no bolso bebê e fui andando pra casa. A
bolsa amarela tava vazia à beça. Tão leve. E eu também,
gozado, eu também estava me sentindo um bocado leve.
Table of Contents
AS VONTADES
A BOLSA AMARELA
O GALO
HISTÓRIA DO ALFINETE DE FRALDA (QUE MORA NO BOLSO
BEBÊ DA BOLSA AMARELA)
A VOLTA DA ESCOLA
O ALMOÇO
TERRÍVEL VAI EMBORA
HISTÓRIA DE UM GALO DE BRIGA E DE UM CARRETEL DE
LINHA FORTE
COMECEI A PENSAR DIFERENTE
NA PRAIA

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