ALGRANTI Educação de Meninas
ALGRANTI Educação de Meninas
ALGRANTI Educação de Meninas
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Resumo
A exemplo do que sucedia em Portugal, a educação das meninas na
America portuguesa, envolvia aspectos mais amplos do que aprender as
primeiras letras. Com base em documentos de caráter normativo, tais
como: tratados de educação, planos de estudos e manuais de boas maneiras
e civilidade pretende-se refletir sobre as representações da sociedade em
relação às mulheres e o que se esperava que elas aprendessem para melhor
desempenharem suas funções e atuarem em sociedade.
Palavras chaves: Educação feminina. Civilidade. Gênero.
Abstract
As it happened in Portugal, the education of girls in Portuguese America
involved much more than learning the first letters. Based in documents of
a normative nature, such as education treatises, study plans and manuals of
good manners and civility we will try to reflect on the representations that
society created regarding women and what they were expected to learn in
order to better execute their chores and act in society.
Keywords: Feminine education. Civility. Gender.
Introdução
Apesar do crescente interesse pela história da leitura e da escrita
na América portuguesa, o tema da instrução feminina tem sido pouco con-
templado pela historiografia colonial, com destaque para alguns trabalhos
centrados em estabelecimentos específicos de clausura e destinados ao aco-
*
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora titular de História do Brasil na
Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]
1
Ver por exemplo: ROCHA, Adair José dos Santos. A Educação Feminina nos século XVIII e XIX - Intenções dos
bispos para o Recolhimento das Macaúbas. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, UFMG, 2008; Luiz Carlos
Villalta (org.), dossiê “Bibliotecas, leitura e educação” In: Revista do Arquivo Público Mineiro, ano XLVIII,
jan-dez 2012, p. 20-97; OLIVEIRA, Claudia Ferreira de. Manuais de civilidade e tratados sobre a educação
portugueses: luzes sobre a educação feminina em Minas Gerais. In: V Congresso de Ensino e Pesquisa
de História da Educação em Minas Gerais. Acesso em 14/11/2014 http://www.congressods.com.br/vco-
pehe/index.php/iinstitucoes-educacionais-e-ou-cientificas
2
Sobre os manuais de civilidade ver o estudo de REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In: ARIÉS, Philippe
e CHARTIER, Roger. Da Renascença ao Século das Luzes, vol. 3 da História da Vida Privada, coleção dirigida
por Philippe Ariés e Georges Duby. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.169-210.
3
Alvará Régio de confirmação de Macaúbas, Arquivo Nacional Rio de Janeiro, Mesa do Desembargo do
Paço, cx 130, pacote 2, doc.5
4
Sobre a fundação do Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas e as funções múltiplas
que este e outros recolhimentos femininos adquiriram no século XVIII na Colônia ver: ALGRANTI , Leila
M. Honradas e Devotas: Mulheres da Colônia condição feminina nos conventos do Sudeste do Brasil 1750-
1822, 2ª. Brasília/Rio de Janeiro: Ed. EDunb/ José Olympio, 1998, p. 72-82.
5
COUTINHO, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo. Estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória do
lugar da Boa Vista de Pernambuco. Lisboa: Academia Real de Letras, 1798. Para uma análise mais abrangente
desse recolhimento ver ALMEIDA, Suely. O sexo devoto: Normatização e resistência feminina no império
português (XVI – XVIII). Recife: Editora Universitária UFPE, 2005.
6
Ver sobre o assunto; ALGRANTI, op. cit., p. 247-258; e também GANDELMAN, Luciana. Entre a cura das
almas e o remédio das vidas: o recolhimento de órfãs da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e a
caridade para com as mulheres (1739-1830). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, 2008.
7
Sobre o recolhimento de Itaipu, ver: ALGRANTI, op. cit., p.101-106.
porque segundo ele, “as mães e o sexo feminino são os primeiros mestres do
nosso [sexo].11
Mas há outro documento sobre a educação feminina atribuído a Ribei-
ro Sanches datado de 1754 e que trata do currículo das meninas e da impor-
tância de se educarem as filhas de pais honrados para gerirem suas casas ou
entrarem para a religião. De acordo com Sanches,
Hua Minina Portugueza ou ha de ser matrona hum dia, ou ha de ser
Religioza: a educação que deve ter em casa de seos Pais ou em hua
clausura deve ser tal que possa comprir as obrigacoins da Sociedade e
Reyno donde naceo, ou as obrigacoins da Religião a que se dedico. 12
11
SANCHES, Ribeiro. Consequências por não criarem as Mães seus filhos. In: Cartas para a educação da
mocidade”, op. cit., p. 57e 58.
12
SANCHES, Ribeiro. Educação de hua Menina ate a idade de tomar Estado, no Reyno de Portugal. escrita a
meu Am.º o Dr. Barbosa a Elvas. Pello anno 1754: nos banhos de Bourbon Lancy , Biblioteca de Madri. Ma-
nuscritos de Ribeiro Sanches, I, 256. Apud Luís de Pina. Plano para a educação de uma menina portuguesa
no século XVIII. In: Cale: Revista da Faculdade de Letras do Porto, vol 1, 1966, p. 43 (Biblioteca Digital).
13
VERNEY, op. cit., p. 204.
14
VERNEY, op. cit., p. 213-214.
15
“Regras dos Exercícios Cotidianos de Nossas Porcionistas”, Apud ROCHA, Adair José dos Santos. A
Educação Feminina nos século XVIII e XIX, op. cit., p. 178-180.
16
ALGRANTI, Leila Escrever, ler e rezar. In: VILLALTA, Luiz Carlos, (org.), dossiê “Bibliotecas, leitura e
educação”, op. cit. p. 30. Neste artigo apresento de forma mais detalhada aspectos relativos ao plano de
estudos das educandas em Macaúbas. Uma versão publicada dos Estatutos das Macaúbas e utilizada neste
ensaio encontra-se em anexo ao artigo de ALGRANTI, Leila Mezan. Os Estatutos do Recolhimento das
Macaúbas (Norma e contravenção: os bispos de mariana e o cotidiano das reclusas) Minas Gerais, 1745-
1850. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 161, n. 406, 2000, p. 233-251. Sobre o plano
de estudos no recolhimento de Olinda ver: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Educação feminina e educação
masculina. In: Revista de História. n. 109, ano XXVIII, 1977, p. 149-163.
17
SANCHES, Ribeiro. Educação de hua Menina ate a idade de tomar Estado, no Reyno de Portugal. escrita
a meu Am.º o Dr. Barbosa a Elvas, op. cit., p. 43.
Educar as mulheres para serem mães e esposas era, ao que tudo indi-
ca, a justificativa mais comum quando se ventilava a proposta de instrução
feminina. No caso daquelas que optassem pela vida religiosa, acreditava-se
que receberiam educação mais adequada posteriormente. Mas independen-
temente do estado a ser escolhido na vida adulta, a ideia de educação para
as mulheres incluía sempre uma formação religiosa e moral . É , portanto, o
caráter de exemplaridade que a mães exerciam na educação dos filhos que
se fazia presente quando se defendia a possibilidade de educar e instruir as
mulheres na época moderna. Esse é, de fato, o terceiro aspecto geralmente
abordado quando se comenta a educação feminina na Colônia, ou na época
moderna de forma geral. Uma justificativa adotada, inclusive, por autores
dos séculos anteriores como Juan Vives18 e Fénelon e que também se apre-
senta em outros gêneros de escritos destinados a prepará-las para a vida em
sociedade. Refiro-me às normas de “bom tom” ou de viver em sociedade,
as quais se encontravam dispostas nos manuais de civilidade e em outros
gêneros de escritos da época, tais como em instruções dirigidas a jovens da
nobreza antes do casamento ou mesmo nos livros de culinária, pois estes
últimos incluíam, algumas vezes, informações sobre a arte de estar à mesa
e de bem receber. Como bem destacou Maria Alexandre da Câmara, a civili-
dade era “considerada um domínio do conhecimento tão importante como
a leitura, a história ou a geografia”.19 E como tal deveria ser transmitida aos
jovens de ambos os sexos, como veremos a seguir.20
18
VIVES, Juan. A instrução de uma mulher cristã (1523). Buenos Aires: Calpe, 1944.
19
CÂMARA, Maria Alexandre Trindade Gago da. Mundanidade e Quotidiano na cultura portuguesa de
Setecentos: escritas codificadas de comportamento. In: Actas do Colóquio Internacional Literatura e História,
Porto, 2004, p. 111. A autora apresenta nesse artigo uma discussão sobre os conceitos de cortesia, etiqueta
e civilidade evidenciando, entre outros aspectos, que no século XVIII os mesmos já se encontravam cris-
talizados, sugerindo padrões de comportamento.
20
De acordo com Antônio Gomes FERREIRA, a Carta de Lei de 6 de Novembro de 1772, promulgada em
Portugal, determinava que os mestres de ler, escrever e contar deviam ensinar também “as regras de
civilidade em um breve compêndio”. Cf. Educação e Regras de convivência e de bom comportamento nos
séculos XVIII e XIX. In: História da Educação ASPHE/FAE, Pelotas, v.13, n. 29, set/dez 2009, p.13.
21
LOPES, Maria Antônia. Mulheres, espaço e sociabilidade – a transformação dos papeis femininos em Portu-
gal à luz de fontes literárias. Lisboa: Livros Horizontes, 1989, p. 98
22
Sobre as mudanças no ritual das refeições , bem como nas formas de alimentação no século XVIII ver:
CAMPORESI , Piero. Hedonismo e exotismo, a arte de viver na época das Luzes. São Paulo: Editora da Unesp,
1996. Sobre o serviço e os artefatos de mesa no Rio de Janeiro, no século XVIII, ver ALGANTI, Leila. Notas
sobre alimentação e cultura material no Rio de Janeiro dos vice-reis: diversidade de fontes e possibili-
dades de abordagens. Conferência proferida no II Seminário Internacional Elementos materiais da cultura e
patrimônio, FAFICH/UFMG, abril de 2014 .
Vejamos, então, dois exemplos de fontes escritas que podem nos for-
necer uma visão mais ampla da educação feminina na época e dos diversos
domínios que esta envolvia. Os documentos escolhidos para análise foram
compostos com o objetivo ensinarem os jovens a viverem em sociedade.
O primeiro exemplo foi retirado de um manual de boas maneiras in-
titulado Escola de Política ou tractado pratico da civilidade portugueza, publicado
em 1786, no Porto, de autoria do cônego D. João de Nossa Senhora da Porta
Siqueira e se refere à comensalidade, ou seja, um aspecto bastante impor-
tante da sociabilidade da época moderna, o qual exigia um conjunto de nor-
mas que deveriam ser interiorizadas pelos jovens de ambos os sexos, quer
vivessem no Reino, quer na Colônia. Embora dirigido aos meninos, o autor
estendeu várias de suas instruções e comentários também às meninas e con-
siderou as regras de cortesia um setor importantíssimo da educação dos po-
líticos e dos cortesãos para suas ações na vida civil.23.
No prólogo da obra, Porta Siqueira informou ter se inspirado em es-
critos de autores das nações civilizadas para acompanhar a tradução da obra
de Blancard, Escola de bons costumes, a qual se debruçava sobre aspectos da
educação moral. Como bem observou, Antônio Gomes Ferreira, nestas obras
de boas maneiras havia “uma nítida intenção de interligar a educação moral
e religiosa com a da civilidade”.24
O tratado de D. João da Porta Siqueira foi organizado em doze capítu-
los e em três deles o autor se ateve a matérias vinculadas às tarefas domés-
ticas e de administração do lar, nas quais se esperavam procedimentos do
senhor ou da senhora da casa. São esses: “do modo de fazer visitas; meza e
assembléa”. Mesmo levando-se em conta que o tratado foi escrito para a ins-
trução dos meninos, a ausência de referências explícitas às funções domésti-
cas femininas é facilmente notada. É o senhor da casa, por exemplo, quem se
destaca nas recepções sociais ou à mesa. É ele também quem acompanha as
visitas até à escada ou à porta, levanta os brindes e, se for o caso, designa os
pares das danças em um encontro social.25 É, porém, no serviço da mesa que
se observa mais especificamente a distinção de gênero presente nos espaços
da casa, onde por exemplo, a sala de jantar se apresenta, como um local de
23
SIQUEIRA, D. João de Nossa Senhora da Porta. Escola de Política ou tractado pratico da civilidade portugueza
na officina de Antonio Alvarez Ribeiro, Lisboa, 1786.
24
FERREIRA, Antônio Gomes. Educação e Regras de convivência e de bom comportamento nos séculos
XVIII e XIX. I: História da Educação ASPHE/FAEPel, Pelotas, v.13, n.29, p. 9-28, set/dez 2009. Disponível em:
http//fae.ufpel.edu.br/asphe. Acesso em 13/04/2014.
25
SIQUEIRA, op. cit., p. 91.
26
LIMA, Tânia de Andrade .Pratos e mais prato: louças domesticas , divisões culturais e limites sociais
no Rio de Janeiro, século XIX. Anais do Museu Paulista: nova série, v.3, jan/dez. 1995. p. 136. Eliane Moreli
argumenta que os inventários de Campinas do século XIX, de homens sem esposas o ambiente da casa era
muito simples e despojado de luxo. Conclui que se a sala de jantar era um espaço masculino, o serviço de
louça, os arranjos de mesa, e as toalhas ligavam-se ao universo feminino. Cf. MORELI, Eliane. Morar e Viver
na cidade – Campinas (1850-1900). São Paulo: Alameda, 2010, p. 151.
27
SIQUEIRA, op. cit., p. 144.
28
Ibidem, p. 146.
de bem instruir uma jovem da nobreza portuguesa para tais tarefas pode
ser observada em um conjunto de escritos da Marquesa de Alorna (1750-
1839) compilados por Hernani Cidade e intitulados Os deveres da dona de casa
(Cartas da Condessa de Oeynhausen a uma filha que vai casar).29 Os conselhos
ou instruções foram redigidos na forma de cartas e tinham como objetivo
advertir a filha sobre as principais tarefas que em breve lhe caberiam. O
próprio Hernani Cidade teve dúvidas em relação a qual das filhas a marquesa
se dirigia, e estimou que o documento seria de 1799.30
Não cabe aqui tratar do gênero epistolar e de sua importância na co-
municação escrita, bem como na literatura do século XVIII de forma geral,
algo que tem sido muito bem estudado por especialistas no assunto.31 Tam-
bém não cabe enveredar pela discussão sobre correspondências que foram
escritas “para não serem enviadas e cartas realmente enviadas”, um aspec-
to interessantíssimo desse gênero literário, como mencionado por Vanda
Anastácio na apresentação do livro Correspondências, usos da carta no século
XVIII. Mas não podemos deixar de notar que instruções e mesmo lições em
forma de cartas ou de diálogos foi uma opção à disposição dos educadores
da época, como no caso de Verney e de Ribeiro Sanches que optaram pela
forma epistolar de comunicação.32 Afinal, a carta era “uma forma de criação,
difusão e promoção de ideias e a correspondência podia ser posta a serviço
desses objetivos”, como bem esclareceu Raquel Vazques.33
A Marquesa de Alorna é uma personagem da nobreza portuguesa do
século XVIII, famosa por suas habilidades literárias e pela educação peculiar
recebida ao longo da infância e da juventude, como prisioneira no Convento
29
ALORNA, Marquesa de (Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre). Inéditos: cartas e outros
escritos. Prefácio de Hernani Cidade. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1941.
30
A qual das filhas da Condessa foram escritas estas cartas, pergunta o autor da compilação. Conclui que
das duas únicas que casaram – D. Leonor com o Marquês de Fronteira, em 1799 e D. Juliana, com o Conde
da Ega, em 1795, é a primeira a que pela altura dos 17 anos ainda era solteira.
31
Ver por exemplo, ANASTÁCIO, Vanda. Correspondências – usos das carta no século XVIII. Lisboa: Edições
Colibri/Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, 2005
32
A obra Tesouro de Meninas (1757), de Jeanne Marie Leprince de Beaumont é um exemplo de compêndio
de educação feminina escrito na forma de diálogos, o qual continha lições com conteúdos variados, desde
ciências e humanidades, à moral , religião e etiqueta. A obra circulou na América portuguesa no idioma
original, como apontou Jocilene Pereira Lima em estudo dedicado a esse compêndio, no qual evidencia
que o modelo e formato de escrita em forma de diálogos se inspirou em obras bem mais antigas, o que
permite pensar em uma tradição nessa forma de transmissão de conteúdos. Ver da autora: LIMA. Jocilene
Pereira. Uma história dos compêndios didáticos Tesouro de Meninos e Tesouro de Meninas no Brasil. Dissertação
de Mestrado. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, Programa de Linguística, 2013.
33
VAZQUES, Raquel. Privacidade e publicidade: a correspondência pessoal como forma de intervenção
nos campos intelectual e do poder. In: ANASTÁCIO, Vanda. Correspondências, op. cit., p. 78.
34
Bibliografia da Alcipe http://www.fronteira-alorna.pt/pdf/bibliografia_alcipe.pdf. Acesso: 15/11/2014.
35
Sobre os usos das cartas no século XVIII, ver: ANASTÁCIO, op. cit., p. 9-11.
36
ALORNA, Marquesa de (Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre). Inéditos: cartas e outros
escritos. Prefácio de Hernani Cidade, op. cit., carta número 2, p. 79-80.
e ao estudo sobre o que pudesse interessar à jovem dona de casa. Das oito às
nove, a senhora deveria se dedicar ao almoço (café da manhã), à família e aos
arranjos domésticos; Das nove às dez horas era a vez das artes e, das dez até
ao meio dia, a jovem mãe deveria estar atenta aos filhos. Do meio dia até a
hora do jantar (o nosso almoço), “são incalculáveis as ocorrências”, advertia
a marquesa de Alorna e por isso a dona de casa deveria estar “livre, desem-
baraçada e vestida, para acudir a tudo o que ocorrer ou seja do agrado de seu
marido, ou conveniente a si ou a qualquer pessoa que dependa dele”. Refe-
rindo-se, portanto, ao final da manhã, a instrução da marquesa era clara:
essas são as horas em que também pode ter lugar a costura, o bordado, e às
vezes a música, à qual deve V. consagrar, pelo menos, meia hora cada manhã.
Toda a pessoa que quiser viver feliz e ùtilmente, deve arranjar-se de modo que
as manhãs lhe fiquem inteiramente livres para si, e as tardes para consagrar
aos outros; porque, se as horas da manhã se perdem para o estudo e para os
negócios, pouco ou nenhum proveito se tira das tardes.37
37
Ibidem, p. 80.
38
Ibidem , p. 81.
Considerações finais
Os três pontos mencionados no início desse estudo referentes às abor-
dagens da historiografia sobre a educação de meninas na América portugue-
sa, isto é: os poucos espaços institucionalizados para a instrução de meninas;
os currículos diferentes de acordo com o sexo dos estudantes; e a proposta
de educar as mulheres para melhor desempenharem suas funções familia-
res e domésticas, se ligam às expectativas da sociedade em relação a elas
na Colônia. Nesse sentido, a exemplo do que também sucedia em Portugal,
a educação no espaço doméstico acabou por assumir um caráter bastante
importante, uma vez que poucas jovens conseguiam ter acesso á uma instru-
ção institucionalizada. Dessa forma, o aprendizado mais comum consistia na
observação das mulheres da casa nas suas atividades do dia a dia e, quando
muito, no caso de jovens das elites, alguma atenção era dada ao ensino das
primeiras letras.
Cabe ressaltar, entretanto, que embora o espaço doméstico fosse
por excelência um domínio feminino defendido desde os textos medievais,
(Christine de Pisan, por exemplo) o discurso em defesa de uma educação
feminina voltada para a construção da imagem da boa mãe-dona-de-casa só
foi interiorizado plenamente pelas mulheres no século XIX e encontra-se,
a nosso ver, associado ao crescimento do sentimento de vida privada ou de
intimidade doméstica, noção bastante explorada nos tratados de educação
feminina do século XIX, bem como nas revistas e livros de cozinha dirigidos
39
Ibidem, carta número 4, p. 87.
40
A receptividade das ideias de Rousseau, divulgadas no Emilio, no final do século XVIII e durante todo
o século seguinte, indicam o modelo a ser seguido pelas mulheres burguesas especialmente. Sobre essa
questão ver ALGRANTI, Leila. Honradas e Devotas, op. cit., pp. 245-246.